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Apostila - Bíblia II - Introdução Ao at

Este documento fornece uma introdução geral ao curso "Bíblia II - Introdução ao Antigo Testamento", dividido em quatro unidades que cobrem os principais gêneros literários do Antigo Testamento: 1) o Pentateuco, 2) os livros históricos, 3) os livros poéticos e 4) os livros proféticos. O objetivo é fornecer uma visão panorâmica de cada livro, incluindo sua estrutura, conteúdo e forma literária.

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Wilan Souza
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Apostila - Bíblia II - Introdução Ao at

Este documento fornece uma introdução geral ao curso "Bíblia II - Introdução ao Antigo Testamento", dividido em quatro unidades que cobrem os principais gêneros literários do Antigo Testamento: 1) o Pentateuco, 2) os livros históricos, 3) os livros poéticos e 4) os livros proféticos. O objetivo é fornecer uma visão panorâmica de cada livro, incluindo sua estrutura, conteúdo e forma literária.

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Julho/ 2019

Professor/autor: Me. Ênio Caldeira Pinto


Coordenadoria de Ensino a Distância: Dr. Marcos Orison Nunes de Almeida
Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Departamento de desenvolvimento
institucional
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por:

Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR


86055-670 Tel.: (43) 3371.0200
SUMÁRIO
Bíblia II - Introdução ao Antigo Testamento

Introdução geral à disciplina.................................................................................................04


Unidade I - O Pentateuco
Introdução..............................................................................................................................11
1. A história do texto do Antigo Testamento........................................................................11
2. O Cânon do Antigo Testamento........................................................................................16
3. A Torá: A história das origens...........................................................................................27
4. A Torá: Formas literárias....................................................................................................30
3. A Torá: Interpretando textos normativos..........................................................................38
Unidade II - Os livros históricos
Introdução..............................................................................................................................52
1. Teorias sobre os livros históricos.....................................................................................54
2. O eneateuco: outra teoria relevante...................................................................................65
3. O gênero das histórias........................................................................................................71
4. Visão panorâmica sobre os livros históricos.....................................................................78
Unidade III - Os Livros Poéticos
Introdução..............................................................................................................................97
1. A literatura sapiencial........................................................................................................98
2. A Perseverança, otimismo e vida....................................................................................111
3. Os Salmos: Gênero e teologia..........................................................................................123
4. O Cântico da vida e do amor............................................................................................138

Unidade IV - Os livros proféticos


Introdução............................................................................................................................144
1. O movimento profético.....................................................................................................145
2. Panorama teológico dos profetas...................................................................................154
3. Estrutura literária do oráculo profético..........................................................................163
4. Hermenêutica dos profetas............................................................................................163

Para assistir os vídeos, ouvir os podcasts e fazer os exercícios,


acesse o AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem)

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 3


BÍBLIA II – Introdução ao antigo testamento
Introdução geral à disciplina
Prezado(a) estudante, seja bem-vindo(a) a mais uma disciplina da Área
de Bíblia. Desta vez será a disciplina Bíblia II: Introdução ao Antigo
Testamento, cuja ênfase recairá sobre o estudo literário de cada livro,
ou seja, o reconhecimento das grandes coleções de tipologias textuais
(Pentateuco, Históricos, Profetas e Poesia) e os principais elementos
da composição deles (autoria, data e lugar). Em síntese, esta disciplina
cobrirá o Estudo do contexto histórico e geográfico do antigo oriente,
análise literária dos livros do Antigo Testamento. Doravante, para facilitar
a escrita, em todo o decorrer da leitura deste material, será utilizada a
sigla AT para Antigo Testamento.

O objetivo desta disciplina é proporcionar ao(à) estudante de Teologia uma


visão panorâmica sobre o conteúdo literário do Antigo Testamento, bem
como auxiliar sobre a variedade de leituras (hermenêuticas) das principais
coleções, além de oferecer subsídios de ensino e aprendizagem para o
anúncio da Palavra de Deus. Este tipo de abordagem irá paulatinamente
contribuir para o crescimento do(da) estudante, tornando a leitura do
AT dinâmica, contextual e relevante para a prática da espiritualidade e
estudo da Palavra.

Para esta disciplina, espera-se que o aluno adquira as seguintes


competências: a) assimilar a estrutura literária de cada uma das principais
coleções; b) discorrer panoramicamente o conteúdo de cada livro, ou
seja, os grandes temas; c) sintetizar as principais divisões (blocos ou
perícopes maiores) dos livros do AT; e d) descrever as grandes coleções
do AT enquanto obra literária sagrada. E as principais habilidades são:
a) listar e apresentar as divisões do AT; b) apresentar o conteúdo formal
de cada livro; c) praticar a leitura bíblica de textos do AT como estudo
devocional e hermenêutico; e d) ensinar o conteúdo introdutório aos
livros do AT para grupos pequenos em comunidades religiosas.
4 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
Aqui, na Faculdade Teológica Sul Americana (FTSA), o ensino do Antigo
Testamento sempre é enfatizado como uma das ferramentas que
possibilita o entendimento acerca da importância da Palavra (leitura,
estudo e interpretação) no processo de formação da identidade cristã,
tanto através da prática da espiritualidade como do aperfeiçoamento
do conhecimento (sabedoria) e da qualidade ministerial (culto, liturgia,
educação cristã e educação teológica, aconselhamento, etc). De fato, o
ensino do conteúdo bíblico é um dos pontos fortes da instituição, porque
acredita na educação como processo de redenção de vidas.

Outra ênfase que a FTSA quanto ao ensino do AT é que muitos alunos


acabam simpatizando-se pelo estudo de textos que acabam se tornando
a pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso. E, dentre os textos mais
escolhidos, os Profetas e os Salmos são os mais apreciados pelos
estudantes. Tal escolha comprova o porquê termos alunos voltados à
prática da justiça – uma qualidade essencial do ministério profético –
e do sentido da vida enquanto indivíduo integralmente alcançado pela
fé em Cristo – uma transformação ocasionada em pessoas que foram
impactadas por um ministério voltado ao cuidado da vida.

Portanto, a estrutura do conteúdo desta disciplina será cumprida em


quatro unidades. A primeira delas corresponde ao agrupamento dos cinco
primeiros livros do AT, denominado de Torá ou simplesmente Pentateuco.
Em seguida, virá o conteúdo dos livros Históricos – assim denominados
porque se referem à transição do período tribal para o período monárquico
e suas composições, ou seja, rolos que trazem dados da historiografia
do povo de Deus. A terceira unidade discorrerá sobre um agrupamento
de dezessete livros, denominados Profetas – grupo de escola sapiencial
que inauguram o movimento dos arautos de Deus. A quarta e última
unidade tratará sobre os efeitos estilísticos e poéticos da Sabedoria ou
simplesmente Poesia – conjunto de livros que tratam de ensinamentos
sobre o estilo de vida, comportamentos, orientações, práticas litúrgicas,
celebrativas e ritos. Como já dito, esta disciplina fornecerá uma visão
panorâmica de cada uma das grandes coleções do AT.
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 5
Para que você, aluno(a) de Teologia, obtenha excelente êxito nesta
disciplina, é oferecida uma estrutura que irá te proporcionar um
entendimento panorâmico (geral) de como será ensinado o conteúdo.
Esta estrutura é baseada na metodologia dos livros de Introdução ao
Antigo Testamento. Ou seja, há um roteiro fixo (físico e mental) que
percorrerá todo o estudo do AT, mas que se torna dinâmico quando o
conteúdo de cada um dos livros é inserido. Esta metodologia é oferecida
por todas as instituições sérias de ensino teológico, mas é preciso já fazer
aqui uma breve distinção, qual seja: não se deve entender esta disciplina
como aquela que irá interpretar a passagens bíblica de um livro do AT,
mas aquela que irá oferecer uma visão panorâmica de todo o livro. E
por que assim, deste jeito? É porque a disciplina é de Introdução ao AT,
logo, a metodologia é de oferecer uma visão panorâmica. Mas, quando
chegar a disciplina de Metodologia Exegética, então serão oferecidos os
instrumentos (roteiros) e ferramentas (procedimentos de interpretação)
para uma passagem (tecnicamente chamada de perícope). Neste caso,
não se adotará livros de Introdução, mas os de Comentários exegéticos.

Então, o roteiro sugerido para esta atual disciplina é o seguinte: autoria,


lugar, data, conteúdo, forma literária. No primeiro quadro a seguir, você
entenderá como deve ser feita a identificação da autoria, também
chamada de redator, escritor, ou ainda, remetente. Trata-se de obter
uma visão geral sobre o tipo de pessoa que escreveu o referido texto
6 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
(conhecimento sobre o assunto, observação indireta ou participação direta,
nível de formação e meios de acesso à informação, etc). A descoberta da
autoria é mediante vários métodos de identificação escriturística, auto-
revelação (o próprio autor se declara na escrita), pseudonomia (quando
atribui-se a obra a uma pessoa renomada, célebre, notável, geralmente como
homenagem), ou ainda quando convencionou-se tradicionalmente dar um
nome à composição do texto. Enfim, saber sobre a autoria de um texto ajuda,
na maioria das vezes, no processo de interpretação do texto todo.

No segundo eslaide, a estrutura é utilizada para descobrir sobre o lugar


em que o livro bíblico foi escrito. Esta técnica ajuda a identificar (e a
entender) dois tipos de contextos: o do autor e o do leitor. A relevância
desta identificação consiste em assumir os papeis de intérprete sobre o
texto bíblico. Por exemplo, a leitura do Salmo 1 permite situar um homem
abençoado (feliz) porque, em sua trajetória de vida, não se ajuntou a
homens injustos (incrédulos), antes preferiu meditar na Palavra de Deus
e buscar estilos de vida abundante e saudável, tal como a do homem do
campo, junto ao riacho e alimento da terra. No entanto, a composição
deste salmo, dando abertura ao Saltério (150 salmos) foi escrito durante
o período do Exílio Babilônico, cujo movimento sacerdotal procurou
recuperar a cultura e a tradição nacional de Israel através de cânticos
e celebrações litúrgicas, ao mesmo tempo que adoravam e cultuavam
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 7
a Deus. Neste sentido, qual é o real contexto: o do leitor, que insiste em
ser um homem abençoado? ou o do escritor, que quer estimular a viva
esperança de culto em meio a terras estranhas? Seja qual for o contexto
escolhido, a interpretação será: se for o do leitor, então o comentário
será sobre a vida simples, de um lavrador ou morador do campo, sistema
familiar e tribal, vinculado às raízes da terra como bênção de Deus; e se
for o do escritor, então o comentário será sobre a tradição sacerdotal que
resgatou valores centrais do estudo da Lei (Torá) de Deus como roteiro
de uma vida bem sucedida.

O terceiro roteiro apresenta a dica de como pode-se determinar a data da


escrita. Na verdade, é mais um indicativo de como pensou-se a cronologia
do livro do que propriamente a convenção do calendário (dia, mês e ano).
São raros os textos que dão estas dicas. Miquéias 1:1, por exemplo, é rico
em informar quase com exatidão o período de sua escrita: “Palavra de
Javé dirigida a Miquéias de Morasti, no tempo em que Joatão, Acaz e
Ezequias eram reis de Judá. Palavra que lhe foi dirigida em visão a respeito
de Samaria e Jerusalém”. A relevância desta identificação colabora muito
para o levantamento do contexto histórico – um procedimento requisitado
pela Hermenêutica e par excellence pela Exegese Bíblica. A datação é
uma etapa importante, pois auxilia o leitor (intérprete) a observar o tempo
de como uma determinada situação estava sendo peculiar para uma
comunidade e, em seguida, como no desenvolvimento da narrativa (ou da
8 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
história) essa mesma situação foi alterada (transformada), seja para uma
destruição ou para uma restauração.
O quarto eslaide aponta para a análise do conteúdo de cada livro do AT.
Trata-se de uma metodologia que facilita o rápido entendimento sobre
o todo do livro. É muito comum, inclusive, ater-se às divisões principais

(também conhecida como composição e/ou estrutura). Classicamente,


esta análise é feita a partir de vários blocos (ou agrupamentos), indicadas
em cada livro de Introdução ao Antigo Testamento ou nas Bíblias de
Estudo. A relevância desta técnica contribui para a rápida assimilação
do conteúdo, a fim de direcionar o(a) estudante para a unidade de
pensamento entre outros livros. A divisão do conteúdo possibilita
o estudo sistemático de leituras históricas e teológicas, difundidas
pelo próprio escritor do livro bíblico. Por exemplo, o livro de Salmos é
dividido em cinco grandes agrupamentos (assemelhando-se à divisão
do Pentateuco), mas que dentro de cada divisão sempre há um salmo
introdutório e um salmo conclusivo, cooperando com o leitor sobre o
entendimento dos 150 salmos produzidos. E, da mesma forma, como
entender a divisão do livro de Isaías, a partir da classificação de autoria:
Primeiro Isaías (capítulos 1-39), Segundo Isaías (capítulos 40-55) e
Terceiro Isaías? (capítulos 56-66). Em outras palavras, a divisão é um
sistema de leitura e de interpretação.
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 9
O quinto, e último, roteiro considera a identificação da tipologia textual
(também chamada de análise literária, ou ainda crítica das formas), através
da qual os escritores bíblicos fizeram uso para comunicar a mensagem
de Deus. Quando o assunto foi escrito, o autor teve que colocá-lo em
uma forma textual, e, para isto, ele precisou adotar linguisticamente um
tipo de texto que fosse conhecido pelos leitores e de fácil compreensão.
Vale dizer aqui que as tipologias textuais são adotadas naturalmente
pelos compositores (escritores), e, tratando-se de contextos culturais de
leitores, ocorrem muita dificuldade de interpretação quando o contexto
literário do leitor difere do contexto do autor. Por exemplo, a forma de
oráculo profético, pronunciado por Amós, não se encontra em nenhuma
produção literária de falantes brasileiros, pois as formas são diferentes.
Neste sentido, o(a) aluno(a) de Teologia estuda as formas ou tipologias
textuais contidas nos textos bíblicos, também chamados de perícope,
para compreender as partes do texto (estrutura), e, ao mesmo tempo,
identificando os recursos literários utilizados para produzir o sentido e
significado, isto é, as rimas, as figuras de linguagem, os efeitos sonoros,
etc. (chamada de análise estilística).

No vídeo introdutorio será feita a apresentação e, ao mesmo tempo, a


indicação de três livros sobre a Introdução ao Antigo Testamento. Não se
trata de leitura obrigatória, nem tampouco de aquisição (compra) deles.

10 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


A presente indicação é uma recomendação sobre obras que discorrem
sobre cada livro do AT, cujo propósito é situar o(a) estudante sobre o
conteúdo escriturístico revelado por Deus ao seu povo.

Assista ao vídeo: Apresentação à disciplina - Professor Ênio

Unidade 1: O Pentateuco
Introdução
Nesta primeira unidade, você irá obter uma visão geral (ou panorâmica)
sobre o conteúdo dos cinco (penta, cinco) primeiros livros (teucos,
rolos) do Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio. Para isto, a proposta de estudo abordará os seguintes
tópicos: (1) A história do texto do Antigo Testamento, (2) O cânon do
Antigo Testamento, (3) A Torá: a história das origens, (4) A torá: Formas
Literárias, e (5) a TORÁ: Interpretando textos normativos. Em cada um
deles, haverá vídeos, leituras complementares e a seção SAIBA MAIS,
além dos 2 exercícios de fixação, dos 2 exercícios de aplicação e de 1
exercício de reflexão.

O objetivo desta unidade é conhecer as diferentes formas textuais dos


cinco primeiros livros e dominar os principais conteúdos de cada um
deles. Recomenda-se que, para o estudo de cada livro, o texto bíblico
seja consultado panoramicamente, a fim de familiarizar-se com a leitura
das aulas e a imediata conferência com a Bíblia.

A Avaliação 1 será feita no fim da Unidade II, sendo composta de dez


questões objetivas.

1. A história do texto do antigo testamento


é de comum senso que literalmente os livros não caem do céu. Os
textos escritos (em vez de textos orais) têm autores, usam letras, uma
certa língua (ou mais de uma) e utilizam algum meio material para
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 11
serem preservados no tempo. Uma longa história de produção, tradição
e tradução aconteceu para que hoje os leitores pudessem acessar os
textos do AT através de um belo volume impresso de papel, com capa de
couro e em uma língua inteligível. Assim como hoje, os mecanismos e
recursos digitais, têm possibilitado um alcance maior de leitores do AT.

As palavras do AT (tanto como as do NT) foram escritas por homens (Jo


1:14), mas sob a orientação do Espírito Santo, isto é, foram “inspirados”
a escrever a Palavra de Deus). Isso significa que o AT tem uma origem
humana, a partir da qual deve-se conhecê-la para melhor perceber a
sua mensagem. Define-se o processo de formação da Bíblia através da
seguinte sequência:

Os homens de Deus:
• contaram e transmitiram as palavras de Deus oralmente (Dt 6,6-7; 1Co 15,3);
• escreveram textos em tabuletas de argila e em folhas de papiro (Ex
17,14; Jr 36,2; Lc 1,1-3);
• copiaram as tabuletas e as folhas e juntaram-nas em rolos e em códices
(compilações de folhas de papiro ou pergaminho).
Depois dos rolos e códices, vieram os livros escritos e mais tarde os livros
impressos. Os textos originais do AT (isto é, os textos escritos pelo próprio
autor) não existem mais. A única coisa que preservada até os dias atuais
são as cópias e as cópias das cópias. Arqueólogos conseguiram achar
pedaços e partes de cópias bastante velhas dos textos do AT, mas nunca
acharam um texto original escrito por um autor bíblico. Vale ressaltar
aqui, que o AT atual, disponibilizado nas inúmeras versões de Bíblia em
Língua Portuguesa, sempre considerou o critério do cânon para afirmar
que a Bíblia (AT) está completa. Ou seja, Deus deu sua Palavra completa,
não podendo haver acréscimos! E, no desenvolvimento da transmissão
e ensino acerca das Escrituras, o leitor cristão interpretou literalmente
que a Bíblia foi encontrada integralmente em um só volume. Vale a pena
estudar sobre os detalhes de cada descoberta e de cada procedimento
utilizado pela Comissão no processo de formação do cânon.
12 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
Há quatro fatos que precisam ser destacados para conhecer sobre a
história do texto do AT. O primeiro deles é sobre Os Rolos de Qumran ou
simplesmente Os Papiros do Mar Morto. Afinal, as histórias mais notáveis
sobre a formação do AT, para exemplificarem sobre a chegada da Palavra
de Deus até nós, são melhores aceitas quando contadas pelos achados
dos rolos do Mar Morto, em Qumran. No ano de 1947, um jovem pastor
de ovelhas achou em uma cova nas montanhas perto do mar morto uns
rolos de escritura depositadas em cântaros de barro. Levou alguns deles
e os vendeu na feira da sua aldeia. Por acaso um arqueólogo passou
por aquela feira e achou os rolos. Logo reconheceu o grande valor deles
e comprou-os. Depois pediu ao jovem que lhe mostrasse o lugar onde
é que tinha achado os rolos. Assim foram descobertas as cavernas de
Qumran, que contêm uma antiga biblioteca de um monastério judaico (os
monges de Qumran), situado perto do Mar Morto, onde foram guardados
inúmeros textos sagrados do AT originários do ano 200 a.C., isto é,
quase mil anos mais velhos de que os códices de Aleppo e Leningrado. A
investigação dos rolos de Qumran mostrou que não existe uma diferença
significativa entre os textos do ano 200 a.C. e as cópias do ano 930 d.C.
Uma prova maravilhosa da fidelidade e exatidão do processo da tradição
dos textos sagrados do AT.

O segundo fato pelo qual pode-se adotar como entendimento acerca da


formação do Antigo Testamento diz respeito à existência da Septuaginta,
comumente chamada de Tradução dos Setenta, ou ainda, representada
pela numeração romana LXX. Ela foi a primeira coleção completa dos
livros do AT. A palavra septuaginta é latina e vem de uma tradição antiga
que afirma ter sido exatamente setenta e dois homens que fizeram tal
tradução. Mas na verdade este trabalho levou muito mais tempo, mais ou
menos de 300 até 100 a.C. A razão porque esta tradução foi feita é que
houve muitos judeus, na época do Império Romano (a partir de 63 a.C.)
que viveram fora dos territórios da Palestina e que não aprenderam a
língua hebraica dos seus antepassados. Eles precisaram de uma tradução
de suas Sagradas Escrituras na língua oficial do Império Romano, que na
época era o grego. A qualidade e o estilo da tradução são bem variados
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 13
de livro para livro. Há casos que saem do literal à paráfrase. Em sua
origem, a ordem dos livros da LXX eram: a Torá, os Livros Históricos, os
Livros Poéticos, os Apócrifos e os Livros Proféticos. Na época da Igreja
Primitiva (século I), a Bíblia que tanto os apóstolos e os cristãos liam e
citavam era diretamente uma referência à LXX. Neste sentido, algumas
citações no NT que fazem referência às passagens do AT parecem livres
e diferentes do atual AT, que foi traduzido do diretamente do hebraico.

O terceiro fato que precisa ser considerado é a contribuição dos


Massoretas. As cópias mais importantes dos textos do AT são as cópias
feitas na língua hebraica, realizada por uma escola de escribas israelitas
chamados massoretas. Os massoretas foram homens com uma grande
tradição na arte de escrever e copiar; produziram cópias dos livros do AT e,
ao mesmo tempo, tiveram o objetivo de manter o texto original inalterado
e ileso. Durante muitos séculos, os massoretas mantiveram uma tradição
irrepreensível e imaculada dos textos do AT. Porém, as cópias mais
antigas, escritas pelos massoretas, ainda preservadas atualmente, são
originárias do ano 930 d.C. São os códices chamados Codex Aleppo e
Codex Leningradensis (têm estes nomes porque se encontram hoje em
dia nos arquivos das cidades de Alepo e Leningrado (St. Petersburgo, na
Russia). Isto significa que entre o tempo em que o último livro do AT foi
escrito (400 a.C.) e o tempo em que a cópia mais antiga do AT inteiro foi
escrita, existe um espaço de mais de que 1000 anos! Logo, as cópias
massoréticas conseguiram manter o sentido da originalidade da Palavra
de Deus, ditada, narrada e copiada do AT.

Por último, o quarto fator no estudo da formação do texto do AT a ser


considerado refere-se à Bíblia Hebraica. Ao observar o uso frequente da
LXX na igreja cristã (primitiva), i.e., como os fiéis conseguiram provar,
através dos próprios textos da LXX, que Jesus Cristo é o Messias, os
judeus decidiram abandonar esta tradução grega e voltaram para a sua
Bíblia Hebraica, isto é, a coleção dos livros do AT na língua hebraica. Esta
coleção já tinha existido antes de Cristo, o próprio Senhor Jesus a usou
(Lc 24:27 e Mt 23:34). Entretanto, o Cânon Hebraico tornou-se fixo e foi

14 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


estabelecido somente no ano 90 d.C., no Sínodo de Jabne ou Jâmnia, em
rejeição à LXX que os cristãos utilizaram. E, para tornar tal diferenciação
mais nítida da LXX, uma nova ordem de livros foi colocada para a
Bíblia Hebraica: Lei, Profetas Anteriores (Livros Históricos), Profetas
Posteriores, Escrituras. Por este tempo, alguns cristãos continuaram
seguindo a LXX e, por isto, decidiram manter a ordem antiga, na qual os
Profetas Posteriores vêm no fim, pois apontavam para Cristo. Já os judeus
decidiram acrescentar os 5 rolos das festas (Rute, Cantares, Eclesiastes,
Lamentações e Ester) e os livros do tempo do cativeiro (Daniel, Esdras,
Neemias e Crônicas) para o fim do cânon.

O vídeo a seguir não é propriamente um vídeo, mas um áudio, narrado


por Maurício Filho. Trata-se de um resumo muito significativo sobre a Lei
(Torá, Pentateuco). Vale a pena observar como a exposição faz relações
sobre as dualidades: material e espiritual, entre outros.

Assista ao vídeo: O que é Torá / Pentateuco?


Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=17FqFcYYdMw
Duração: 10m40s

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 15


Exercício de fixação - 01
Basicamente, o judaísmo e o cristianismo têm fonte primária na
literatura do Antigo Testamento, cuja história de transmissão,
preservação e desenvolvimento foram reconstruídos através de
achados importantes, compromisso pessoal de grupos religiosos,
cuidado quanto à tradução dos textos e respectiva produção escrita
como referência de leitura. Especificamente sobre a história do
texto do AT, é correto afirmar que:
a. ( ) O AT abrange os rolos de papiros encontrados no Cairo (Egito),
quando os hebreus estavam no Egito e, depois os escritos exílicos que
foram encontrados em Nínive.
b. ( ) O AT compreende historicamente os rolos de Qumran, a
Septuaginta, os textos massoréticos e a BHS (Bíblia Hebraica).
c. ( ) O AT é o primeiro testamento, escrito por Moisés, e refere-se
aos livros de Gênesis, Levíticos, Números, Josué e Juízes, porque
resumem a história do povo de Deus.
d. ( ) O AT é a coletânea escrita durante a peregrinação no deserto,
desde o Sinai até à entrada em Canaã, e os escritos foram preservados
pelos levitas.
e. ( ) O AT registra os feitos de Deus com o seu povo e,
resumidamente, refere-se apenas ao Código de Lei, isto é, aos Dez
Mandamentos.

2. O Cânon do antigo testamento


Para iniciar este tópico, vale a pena gastar algumas linhas sobre a definição
de cânon. Basicamente, o significado é “régua”, isto é, a medida utilizada
para determinar a exatidão dos critérios previamente escolhidos. Trata-
se de confirmação do conteúdo do texto (mensagem, ensinamento e
função) em relação aos demais textos já canônicos. É mais uma procura
por erros teológicos (ou dogmáticos) do que de produção literária. Uma
vez que o texto passasse pelos critérios de análise canônica (literalmente
16 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
pelas medidas), ele era inserido aos demais já existentes e começava a
ser chamado de Escritura.

O que vale também afirmar aqui é que os textos do AT influenciaram demais


a teologia cristã, bem como de outras literaturas sacras no mundo. Como
já dito, o AT era considerado a Bíblia dos primeiros cristãos e também a
Bíblia de Jesus. Tanto Jesus como os primeiros cristãos costumavam ler
o AT em uma tradução grega (a Septuaginta [LXX]). A imagem seguinte
mostra uma página deste texto. Trata-se de um manuscrito da metade
do século IV.

Acima, você pode ver duas páginas do Codex Sinaiticus, ou seja, o texto
do AT em grego. Observe que este texto é sem divisões entre as palavras
e utiliza só as letras maiúsculas. Os primeiros cristãos e os judeus que,
possivelmente, não falavam hebraico utilizavam este texto para conhecer
o conteúdo do AT. Se você é capaz de ler em inglês, visite este o site a
seguir. Você poderá visualizá-lo, sem precisar ir até a biblioteca.

Disponível em: h�p://www.codexsinai�cus.org

Para o mundo cristão, o AT é inseparável do NT, pois juntos constituem-


se no que comumente chama-se de Bíblia Cristã. E, neste caso, o AT é
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 17
a primeira e a maior parte desta Bíblia. E, como o AT é especificamente
sobre o povo de Israel, os textos dele desempenham um papel muito
relevante para as comunidades cristãs, pois há sempre a necessidade
de interpretar o contexto hebraico, associado à respectiva mensagem
de Deus para o seu povo, e, posteriormente, deve-se reler tal contexto
à luz da mensagem do Novo Testamento. Em certo sentido, isto explica
porque há sempre leituras do AT na liturgia que as comunidades cristãs
fazem semanalmente.

A Bíblia tem um papel decisivo para a fé cristã, pois ela testemunha


acerca dos feitos de Deus no mundo. A pergunta com que muitas religiões
se ocupam é: “Como conhecer a Deus?” Algumas filosofias e religiões
acham que o seu deus pode ser reconhecido pelo pensamento humano,
pela nossa interpretação do mundo, ou experiências paranormais. Outra
máxima vale para a religião cristã: o Deus cristão quer ser reconhecido
como aquele que já se revelou para os homens.

Jesus era judeu, conhecia as Escrituras Sagradas do Judaísmo e


testemunhou de que não havia nenhum outro deus além do Deus dos
patriarcas de Israel: o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. A Bíblia não só
testemunha da experiência de Jesus, mas da totalidade dos procedimentos
de Deus “Pai”, como Jesus disse no primeiro pedido da Oração do Pai
Nosso. Isto também nos amarra, como cristãos, ao AT. Sem dúvida, Deus
está continuamente agindo na história e está presente também nos dias
de hoje, mas na Bíblia o testemunho foi interpretado mais claramente.
Consequentemente, na fé cristã pode-se refletir sobre Deus somente na
interação com a Bíblia. Sem a Bíblia não há nenhum conhecimento de
Deus que seja confiável. Portanto, o AT era a Bíblia de Jesus.

A Bíblia nos traz experiências das primeiras testemunhas de nossa fé.


Pois a Bíblia preserva o testemunho da fé desde gerações distantes,
sendo assim, nossa obrigação em torno dos textos bíblicos é dupla: (1)
precisamos de uma compreensão histórica – o que o texto significava;
(2) precisamos buscar o significado atual dos textos bíblicos – o que o
texto significa.
18 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
Na história cristã houve e ainda há a tentativa de desvalorizar o AT como
um documento obsoleto ou eliminá-lo do cânon cristão. Já em meados
do séc. II o teólogo cristão Marcião de Sinope elaborou a tese de que
o Deus proclamado por Jesus e Paulo estava em contradição ao deus
vingativo e feroz do AT. Em discussões calorosas, a Igreja Antiga insistiu
na primeira parte do cânon e considerou Marcião como herege da igreja
junto com seus numerosos seguidores. Mas as perguntas que Marcião
propusera foram levantadas muitas vezes durante a história da igreja.

No século XIX o famoso historiador da igreja, Adolf von Harnack, exigiu


que finalmente estava na hora da igreja cristã lançar o AT (como símbolo
da grande paralisação eclesiástica) no monte de escória da história
(HARNACK, 1924, p. 217).

A desvalorização do AT frequentemente andava e anda junto com a


desvalorização do povo judaico. O antijudaísmo cristão contribuiu com
o antissemitismo moderno. A igreja entendeu como um novo Israel
herdando o status do antigo povo de Deus que consequentemente
deserdou. O AT, por consequência, era a escritura sagrada de uma religião
estranha e sem graça.

Por isso, não deve-se esquecer o seguinte: Jesus era judeu, Paulo
também. O que é chamado no cristianismo de “Antigo Testamento” era a
Bíblia que ambos possuíam. As escrituras judaicas determinavam seus
pensamentos e conversas. Além disso, os textos do Novo Testamento
não podem ser entendidos sem o AT. Eles frequentemente reiteram os
conceitos, imagens, metáforas, fundamentos, histórias e teologia do AT.
Só pense sobre esse nome “Jesus Cristo” ou “Messias”!

Neste sentido, pode-se chamar a Bíblia cristã de uma “edição ampliada”


do AT. Significa dizer que nessa “nova edição” há novas escrituras
(biografias, livros históricos, cartas...) que foram tomando o título
de sagradas escrituras. Isso tem algumas implicações para a nossa
concepção e para o nome do AT.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 19


O AT não conta com nenhuma designação própria para sua coleção de
livros. Como já visto, a escritura sagrada dos judeus foi a Bíblia de Jesus
e de seus discípulos. Por isso, o NT refere-se ao AT como “a escritura” ou
“as escrituras”. Em o NT percebe-se uma diferenciação entre esse corpus
das escrituras:

A lei (de Moisés) e Moisés e os Moisés, os a lei de Moisés,


profetas e as os profetas e os
os profetas profetas escrituras Salmos
Mt 5:17; 7:12; 11:13;
22,40;

Lc 16:16; Jo 1:45; At Lc 16:29.31 Lc 24:27 Lc 24:44


24:14; 28:23;

Rm 3:21

No vídeo abaixo, há um trecho retirado do filme “Os Dez Mandamentos”,


gravado em 1956 (mas a imagem está excelente). Entenda como a
ênfase é feita sobre o entendimento do termo “Lei” como liberdade, viver
e morrer sem lei, a lei de Deus, etc.

Assiste ao vídeo: Os Dez Mandamentos


Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=oIZyd237xgM
Duração: 4m20s

No prólogo à tradução grega do livro apócrifo Eclesiástico (“Sirácida”,


132 a.C.) diz: “Muitas e grandes coisas são nos dados através da lei, dos
profetas e das outras escrituras, que lhe seguem...”, dando a interpretar que
“outras escrituras” poderiam significar os “testamentos”. A terminologia
“testamento” sugere a ideia de “aliança”, como pode-se observar no NT:

• Lc 22,20; 1Co 11,25: “Este cálice é o novo testamento/aliança no meu


sangue...”;

20 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


• 2Co 3,6: “O qual nos fez também capazes de ser ministros de um novo
testamento/aliança ...”;

• Hb 9,15; 12,24: Jesus como Mediador do novo testamento/aliança.

Pode-se, então, com isto deduzir que as ações de Deus anteriormente


são da “velha aliança/antigo testamento”? Claro que não! Especialmente
2Coríntios 3:6 (evidentemente) põe uma relação desigual entre a velha
e nova aliança. Mas isso não é correto no que tange a relação entre AT
e NT. E com o anúncio do Novo Testamento já no AT, em Jeremias 31,
é preciso distinguir bem esses conceitos de aliança. Entretanto, em
2Coríntios 3:14 encontram-se os dizeres paulinos: “Mas os seus sentidos
se endureceram; porque até hoje, quando fazem a leitura da antiga
aliança, o mesmo véu permanece, não lhes sendo revelado que, em Cristo,
é removido”. Aqui, onde se lê “antiga aliança,” refere-se, obviamente, a
um livro. O que leva a concluir, por um lado, em um comentário sobre
o AT no NT que o AT é antiquado. Por outro lado, isso obviamente não
é verdade para todo o AT. Contudo, aqui encontra-se essa tensão entre
a continuidade e descontinuidade ao descrever a relação entre os dois
testamentos (livros).

Por causa disso, Erich Zenger sugere descrever o AT como “Primeiro


Testamento” (ZENGER, 2003). Alguns teólogos também usam o termo
“Bíblia Hebraica” ou “Tanach”, uma palavra artificial que vem das letras
iniciais das palavras hebraicas, que descrevem o conteúdo tripartido do
AT: Torá, Neviim e Ketuvim (Instrução-Lei, Profetas e Escrituras). Essas
possibilidades evitam termos que sugerem uma depreciação do AT.
Todavia, chamar essa primeira parte da Bíblia cristã “Antigo Testamento”
é uma designação tradicional que está sempre lembrando os cristãos de
que o Novo Testamento é uma continuação do AT. Contudo, deve-se estar
alerta aos perigos de uma desvalorização dos livros incluídos e também
da probabilidade de barreiras na conversação com os judeus.

Pelo menos hoje, precisa-se de uma forte valorização do AT. Especialmente


na sociedade atual, na qual a fé cristã está cada vez menos conhecida,
e deve-se enfatizar mais a leitura do AT. Sem o AT, toda a salvação de
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 21
Jesus fica “no ar”. Além disso, o AT esclarece as perguntas fundamentais
do ser humano em relação a Deus.

Um lembrete: O AT testemunha acerca do amor de Deus pelo pecador,


bem como as variadas tentativas de resgate e redenção deste pecador.
Um dos grandes obstáculos porque muitos rejeitam a Cristo é porque
também rejeitaram a revelação do Antigo Testamento.

Diferente do NT, o cânon do AT possui diferenças de tamanho para várias


igrejas cristãs. As dúvidas giram, acima de tudo, em torno dos livros
apócrifos (literalmente “livros escondidos”). A Igreja Antiga os incluiu em
torno de 400 d.C. Eram livros que o judaísmo e os primeiros cristãos não
incluíam nas escrituras sagradas. Foram os reformadores no séc. XV que
decidiram que todos os livros sem fundamento hebraico não deviam ser
utilizados nos cultos públicos, sendo que, dessa forma, eles também não
pertenciam ao cânon.

A Igreja Católica ficou com os apócrifos (Judite, Tobias, Baruque,


Eclesiástico, Sabedoria de Salomão, I e II Macabeus, além de adições
aos livros de Ester e Daniel). Ela aceitou esses livros como “livros
deuterocanônicos” (= livros de um segundo cânon). Entretanto, as
11 Igrejas Ocidentais (Igreja Ortodoxa) decidiram, apenas em 1672,
incluir os livros Judite, Tobias, Eclesiástico e Sabedoria de Salomão. A
tradição judaica desde o início se limitou para as escrituras hebraicas (ou
aramaicas; partes de Esdras e Daniel). Esta delimitação do conteúdo do
cânon (judaico) pode ser datada no tempo de Jesus.

O cânon judaico reflete os tempos de origem e canonização dos vários


livros da coleção. Também percebe-se uma hierarquia entre os livros –
nenhum dos livros tem a mesma autoridade que a Torá. Por isso a tradição
rabínica colocou um alto valor na “Torá Oral” que traz a maior parte da
Torá do Sinai. Essa tradição oral foi escrita na Mishná e outros livros.
Esses textos nunca foram continuados pela igreja cristã. A hierarquia é
também visível nas leituras na sinagoga. A Torá é lida inteiramente todos
os anos. Vários textos dos profetas são lidos como comentários da Torá.
Entre as Escrituras, os Salmos e os Megilloth (“cinco rolos”: Cântico; Rute;
Lamentações; Eclesiastes; Ester) fazem parte da liturgia - mas com uma
22 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
função menos importante que a Torá. Os últimos são lidos nas grandes
festas do judaísmo:
Os 5 Megilloth
Schavuot Pessach Sucot Tishá BeAv Purim
Festa de
Festa das Festa da Festa dos comemoração
Festa de Purim
semanas páscoa Tabernáculos da destruição
do templo
Rute Cântico; Eclesiastes Lamentações Ester

Como a palavra grega “cânon” significa “regra” ou “instrumento de medir”,


é possível já pensar em produção teológica. Com o termo “cânon do AT”
determina-se a coleção encerrada de escritos inspirados pelo Espírito
Santo. Abrange aqueles escritos que têm autoridade normativa para a
igreja, isto é, que servem como regra para a o desenvolvimento da fé e da
vida dos cristãos. Pode-se resumir uma interpretação teológica do cânon
a partir da contribuição de Erich Zenger (2003):
BLOCO SEÇÃO ASSUNTO INTERPRETAÇÃO
I Gn – Dt Revelação originária no Torá como promessa e
Sinai interpelação
II Js 2 Mc História de Israel na terra Passado
III Jó – Sr Sabedoria para a vida Presente
IV Is – Ml Profetismo Futuro

Os livros Gn-Dt preservam que a Torá revelada no Sinai, contendo os


dois focos “mandamento do amor a Deus” - “mandamento do amor ao
próximo” (cf. Mc 12:28-34 par.), constitui a revelação originária de Deus,
fundamentada na Criação e quem vem a todos os povos por meio de
Israel. O fato de os Dez Mandamentos terem sido outorgados como
proclamação de direito divino e de direito humano conforme a “história”
no deserto do Sinai e anterior à tomada da terra, descrita em Gn-Dt, é
interpretado pela própria tradição judaica como mandamentos que não
devem ser lei de vida apenas para Israel, mas para todos os povos. Isso vale
justamente para os cristãos, que devem “cumprir” a Torá no discipulado de
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 23
Jesus (cf. Mt 22:34-39 com base em Mt 5:17-20). Os blocos subsequentes
II-IV visam conduzir para essa vida com a Torá do Sinai.
O bloco II (Js-2Mc) demonstra a partir do exemplo de Israel o que acontece
numa comunidade que vive com essa Torá, mostra sua concretização e
como isso ocorre, mas também que pode fracassar. Os leitores cristãos
da Bíblia devem sentir e experimentá-lo com esse povo, envolvendo-se
intimamente – como história de suas irmãs e seus irmãos judeus (não
como história deles próprios) e como história do seu Deus comum.
O bloco III (Jó-Sr) convida cada pessoa a buscar, com ajuda desses escritos
sapienciais, a verdadeira sabedoria salvadora da vida. A maneira de fazê-lo
é ouvir a Torá, orando-a e meditando nela, pois ela se comunica, a todos os
que se abrem a ela, por meio da Criação e das instruções a Israel.
O bloco IV (Is-Ml) projeta a visão de que o mundo e a história chegam à
plenitude quando os povos peregrinam até Sião, para lá aprender a grande
Torá da paz de Javé (Is 2,1-5: texto programático canônico no início do
bloco IV) e para participar desse modo da renovação ou restauração
fundamental de tudo, prometida pelos livros dos profetas a toda a terra –
e que acontecerá, naturalmente não deixando Israel de fora, mas por meio
desse povo e com ele. A partir de profetismo, que por diversas correntes
foi lido no tempo de Jesus como promessa escatológica, isto é, como
projeto de um drama consistente do fim dos tempos, até mesmo a Torá
(bloco I) adquire um dinamismo profético-escatológico na perspectiva
da expectativa imediata do fim. Por outro lado, o agir de Javé em e por
meio de Jesus (singularmente no evento da Páscoa), testemunhado no
Novo Testamento, pode ser entendido como ato decisivo no contexto
desse drama escatológico anunciado pelos profetas. Dessa maneira, na
Bíblia cristã, o profetismo abre-se em direção do Novo Testamento que o
segue” (ZENGER, 2003, p. 40s).
Neste sentido podemos também ler o NT:
FUNDAMENTAÇÃO TORÁ EVANGELHOS
Passado Livros históricos Atos dos Apóstolos
Presente Livros sapienciais Epístolas Apostólicas
Futuro Livros proféticos Apocalipse de João

24 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Exercício de aplicação - 02
Observe as três figuras abaixo e as respectivas descrições de cada uma.

Duas pessoas estão Um vendedor Um designer gráfico


conversando sobre viajante sai às ruas é responsável por
assuntos variados. anunciando os produzir um cartaz,
Quando cada uma produtos de sua cujos enunciados
delas chega em sua própria produção foram esteticamente
casa, repassam o agrícola. São elaborados para a
conteúdo da conversa verduras e legumes produção do sentido
para os demais frescos, colhidos e significado. Mas
membros da família. diariamente de sua nem todos os
Algumas chegam, horta. Geralmente, ele leitores entendem
inclusive, a gravar estaciona o seu carro a mensagem, pois
o áudio para os com os produtos e estão acostumados
membros da família faz o anúncio, que com letras redondas
que, ocasionalmente, consegue ecoar e formatos
estão distantes. até aos moradores convencionais.
distantes de sua
barraca.

ISTO PORQUE:
Os homens de Deus:
• contaram e transmitiram as palavras de Deus oralmente;
• escreveram textos em tabuletas de argila e em folhas de papiro;
• copiaram as tabuletas e as folhas e juntaram-nas em rolos e em
códices (compilações de folhas de papiro ou pergaminho).

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 25


PORTANTO, é correto afirmar:
a. ( ) A forma de transmissão do Antigo Testamento foi a
epifânica, ou seja, “a voz de Deus sendo falada audivelmente”.
b. ( ) A inspiração das escrituras pelo Espírito Santo é o único
critério de fidelidade porque os escritores resumiram a Palavra de
Deus em linguagem escrita.
c. ( ) A palavra ditada é o livro de Deuteronômio, pois significa
repetição da Lei.
d. ( ) O uso do conteúdo dos textos veterotestamentários,
através da recitação e da leitura, se tornaram meios de registro,
preservação e transmissão para os copistas e escribas.
e. ( ) Os povos semitas, em especial o povo de Deus, gostam de
repetir e decorar textos, sejam eles sagrados ou não.

Acesse o AVA para fazer o exercício!

Saiba mais: O Pentateuco – Resumo!!!


Para ler e visualizar rapidamente o conteúdo de cada um dos livros
do Pentateuco, clique no endereço abaixo.
GÊNESIS
h�ps://www.gotques�ons.org/Portugues/Livro-de-Genesis.html
ÊXODO
https:��www.gotquestions.org�Portugues�Livro-de-Exodo.html
LEVÍTICOS
h�ps://www.gotques�ons.org/Portugues/Livro-de-Levi�co.html
NÚMEROS
h�ps://www.gotques�ons.org/Portugues/Livro-de-Numeros.html
DEUTERONÔMIO
h�ps://www.gotques�ons.org/Portugues/Livro-de-Deuteronomio.html

26 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


3. A Torá: a história das origens
A interação entre o AT com seu contexto ocorre quando comparamos
o conteúdo de Gênesis 1-11 com as histórias contadas por outros
povos daquela época e região. Em 1872, George Smith descobriu no
Museu Britânico o primeiro texto paralelo bem próximo ao Gênesis 1-11.
Traduzindo uma tábua cuneiforme da biblioteca assíria de Assurbanipal
(séc. VII a.C.) em Nínive, ele percebeu que tinha encontrado um relato
de um dilúvio global que em muitos aspectos se assemelhava à história
contada em Gênesis. Mais tarde foi descoberto que o texto de Smith
fazia parte da Epopeia de Gilgamesh.

Essa obra conta a respeito de um grande rei que saiu do seu papel real para
viajar pelo mundo em busca da imortalidade. A Epopeia de Gilgamesh foi
composta provavelmente por volta de 1700 a.C. e, bem depois, revisada
em 1200 a.C. para reproduzir a mais conhecida versão dessa epopeia.
Os estudiosos acharam que a história do dilúvio provavelmente foi
emprestada pelo autor da epopeia de Gilgamesh de uma outra fonte, a
qual utilizou para realçar seu próprio texto.

Uma possível fonte para a história do dilúvio é um épico Atrahasis, um


poema épico da antiga Babilônia (1600 a.C.), que abrange a história do
mundo desde a criação do homem até a nova ordem depois do dilúvio.
Tudo começa quando os deuses menores viviam na terra escavando os
rios e canais, e cultivavam os alimentos para os grandes deuses. Mas,
depois de 3600 anos os deuses menores se cansaram do seu trabalho e
entraram em greve.

Eles cercaram o grande deus Enlil em seu palácio, que finalmente cedeu.
Um outro deus maior, Ea, e a deusa-mãe Nintu, então, criaram sete
casais, sete homens e sete mulheres, para fazer o trabalho no lugar dos
deuses menores. Mas a criação da humanidade gerou problemas para os
grandes deuses.

Depois de 600 anos a população tinha crescido tanto que o barulho

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 27


humano perturbou o descanso dos grandes deuses! Enlil, por conseguinte,
determinou que uma praga devesse apagá-los. Mas um sacrifício
oportuno ao deus da praga por Atrahasis (significa “extrasábio”) parou
a praga. Então, a população cresceu de novo, e Enlil tentou controlar o
crescimento da humanidade mais duas vezes – pela seca e pela fome. E
novamente sacrifícios aos deuses certos resolveram a situação.

Eventualmente, Enlil persuadiu todos os seus colegas divinos a apoiar o


seu plano para destruir a humanidade, enviando um dilúvio universal. No
entanto, o deus Ea não concordou com esta proposta e, secretamente,
abriu o jogo e recomendou que Atrahasis construísse um navio para a
sua família, amigos e animais para escapar. A inundação foi realmente
catastrófica, acabando com todas as criaturas e assustando até os
deuses por sua ferocidade. Mas Atrahasis e sua equipe sobreviveram.

O barco finalmente desembarcou em uma montanha e os de dentro


desembarcaram. Piedoso, Atrahasis ofereceu um sacrifício tão logo que
desembarcou. Imediatamente os deuses rodearam o sacrifício ansiosos
por experimentarem a oferenda. Eles estavam com muita fome! Destruir
a humanidade em uma enchente significou que os sacrifícios pararam,
logo os deuses também não tinham nada para comer.

Chegando ao sacrifício um pouco tarde, Enlil, o deus mais poderoso,


ficou chocado e com raiva ao encontrar alguns seres humanos. Ele se
acalmou quando os outros deuses explicavam que a culpa foi de Ea.
Enlil concedeu vida eterna a Atrahasis, o único homem a alcançar este
objetivo. No entanto, para impedir que a explosão demográfica ficasse
novamente fora de controle, Enlil e Nintu redesenharam a humanidade
um pouco. A partir de agora, algumas mulheres sofreriam de infertilidade,
os bebês muitas vezes seriam natimortos ou morreriam muito jovens,
e ainda outras mulheres entrariam em ordens religiosas e nunca mais
teriam filhos. Finalmente, parece que a partir de então, a morte passou a
vir a todos em idade avançada: Até agora as pessoas morriam apenas de
doenças ou se fossem mortas por alguém.

28 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Existe mais um texto do mesmo período da epopeia de Atrahasis, é a
história suméria da inundação. Este texto também relata sobre a criação
do homem e culmina com a história do grande dilúvio. Infelizmente, muitas
partes da história suméria estão perdidas, mas a versão reconstruída
mostra paralelos com Gênesis 1-9 bastantes surpreendentes.
Paralelos entre a história da inundação suméria e a de Gênesis 1-9:
HISTÓRIA DA CONTEÚDO GÊNESIS
INUNDAÇÃO
SUMÉRIA
Criação do homem e dos animais; triste
Gn 1
condição do homem, não há canais de
Linhas 1-36
irrigação, sem roupas, sem medo de
Gn 2-3
animais, incluindo cobras.
Deusa Nintur planeja acabar com o
Linhas 37-50
nomadismo humano. Gn. 4,1-16
Linhas 51-85 Falta de plano de Nintur.
Estabelecimento da realeza (reis, corte,
palácios...);
Gn 4,17-18
A construção das primeiras cidades,
Linhas 86-100 incluindo Eridu; Gn 4,26
Estabelecimento de culto
Lista de reis antediluvianos Gn 5
Linhas 101-134 Ruído humano Gn 6,1-8
Linhas 135-260 O dilúvio Gn 6,9-9,29

Há semelhanças suficientes para conjecturar que ambos, Gênesis e a


história da inundação suméria, são dependentes de um entendimento
comum do que ocorreu no início da história humana. É interessante
observar que as interpretações desses acontecimentos são muito
diferentes, embora o gênero dos vários textos seja muito semelhante.
Esses textos do Antigo Oriente Próximo abrem uma porta para entender
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 29
o mundo em que o AT se formou. É importante conhecer este mundo
para fazer uma contextualização desses textos antigos para aqueles que
estudam o AT.

A modernidade também tem os seus mitos da origem do homem – a


evolução biológica, a evolução sociológica, econômica, etc. Estes “textos”
falam bastante sobre valores e visões da humanidade em geral e bem
específico quando pensa-se sobre assuntos da ética ou da moralidade.
É necessário haver um alinhamento entre a interpretação da sociedade e
a do texto bíblico. Como Gênesis 1-11 foi um texto muito contra cultural
em seu contexto, precisa-se ter uma visão da humanidade contrária a que
está propagada hoje em nossa cultura pós-cristã. Deve-se entender esta
porção de textos (1-11) como um registro sobre a história das origens,
descrita pela cultura israelita, ou cultura do povo de Deus.

4. A Torá: Formas literárias


Neste tópico, os estudos de Zenger et. al. (2003) são mais uma vez
utilizados. Observe a tabela a seguir:

ZENGER, ERICH et. al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

Os nomes dos cinco livros nas diversas línguas (hebraico, grego e latim)
são propositais, isto é, foram planejados a facilitar o reconhecimento do
conteúdo de cada um deles.

Como primeira parte do AT, esses livros (também chamados de


“pentateuco” – que significa “cinco livros”) são fundamentais para
entender o restante do AT e até mesmo a Bíblia inteira. Todos os outros

30 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


livros bíblicos têm o Pentateuco como base e desdobram os temas lá
mencionados. Como tal, grande parte da Bíblia pressupõe a Torá e
toma como certo que a conhecemos. Sem saber bem a literatura da
Torá, perdemos muitas das alusões sutis para os seus temas, o que nos
ajudará a entender muitas passagens do AT, bem como do NT.
Uma vista geral da Torá

Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio

Do Sinai
pelo deserto
Criação e Do Egito pelo Instruções para
a Moab
promessa deserto ao NO SINAI a vida na terra
(à divisa
da terra Sinai da promessa
da terra
prometida)

----------------------------------------Israel a caminho-----------------------------------------------

ZENGER, ERICH et. al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

Em um nível narrativo, pode-se interpretar a Torá como biografia


dramática do povo Israel. É um caminho que começa com o chamado de
Abraão dentre as nações e termina com um final aberto na fronteira da
terra prometida. É um caminho cheio de sofrimento e conflito.
Os cinco livros estão agrupados, em forma de quiasmo espelhado
(paralelos), em torno do livro do Levítico como centro teológico.
O Gênesis e o Deuteronômio formam a moldura externa:

ZENGER, ERICH et. al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 31


Êxodo e Números perfazem a moldura interna. Eles se estruturam
paralelamente por meio de numerosas histórias iguais. O Sinai constitui
quase que um tipo de divisor de águas (antes do Sinai era “legítimo”
clamar por pão e água, depois do Sinai isso ao pecado):

ZENGER, ERICH et. al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

No centro da composição situa-se a constituição de Israel como povo


santo, em cujo meio o santo Javé quer tornar-se presente e agir. É por
isso que se encontra no meio do livro do Levítico – por sua vez também
construído concentricamente – a mensagem de Javé como o Deus
disposto à reconciliação.

ZENGER, ERICH et. al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 2003

A Torá fornece a narrativa fundamental que forma a cosmovisão bíblica.


Ou seja, todas as culturas e sociedades têm suas narrativas fundamentais
que explicam o que o mundo é, como funciona, o que deu errado com o
mundo, onde a humanidade pode achar a esperança para colocá-la de

32 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


novo no caminho certo. Para dar um exemplo de uma cultura estrangeira
para todos nós: o “sonho americano” (American Dream). Este “sonho”
afirma que “você só precisa tomar seu destino em suas próprias mãos
e você terá sucesso. Ajude a si mesmo e Deus vai te ajudar.” Esta é uma
espécie moderna (no sentido filosófico da palavra) da visão da vida –
cheia de positivismo (e calvinismo!). Ainda muitos norte-americanos
são levados por ela a uma atitude imperialista referente outros povos e
culturas que contam outras histórias sobre o mundo.

Cada seção da Bíblia desenvolve mais profundamente o tema do


Pentateuco. Ao interpretar Gênesis 12:1-3 (“chamado de Abraão”) como
sendo a exposição original do chamado do povo de Deus, certamente
ele será reafirmado com variações em outras partes de Gênesis e
desenvolvido nos demais livros do Pentateuco. O AT inteiro gira em torno
da relação entre os descendentes de Abraão e a terra, o seu crescimento
como uma nação, e sua relação singular com Deus. Os progressos
realizados no cumprimento das promessas feitas a Abraão não andam
em uma só direção. Recuos são frequentes, tanto no Pentateuco como
posteriormente. O livro de Números narra o adiamento de 40 anos da
chegada à terra santa como um resultado da falta da fé dos espiões.
O livro dos Reis narra a queda de Jerusalém e o exílio do povo para a
Babilônia por causa de sua infidelidade a Deus. No entanto, ambos os
episódios foram seguidos por perdão e um novo começo que acabou
levando a um maior cumprimento das promessas.

Mas nem dentro do período bíblico nem nos dois milênios seguintes,
o cumprimento integral tem sido alcançado. Se os judeus modernos
interpretam o seu regresso à terra de Israel como cumprimento da
promessa a Abraão e como resposta às suas orações, eles não desfrutam
da paz e da segurança prevista pelo Pentateuco. Os cristãos afirmam que
a vinda de Jesus trouxe mais próximo o dia em que em Abraão “todas as
famílias serão abençoadas”. Mas eles também oram para que o Reino de
Deus seja vindo e sua vontade seja feita na terra como no céu. Desta forma,
o Pentateuco ainda fala tanto para o presente como falou ao passado.
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 33
Quando se lê a Bíblia, é recomendável estar conscientes de que ela é
“literatura”. A Bíblia não é um livro mágico, descolado e isolado, mas –
como já visto – é parte de um contexto histórico, cultural e literário. Este
é um dos desafios para os leitores da Bíblia e, especialmente, para os
que estão ensinando os outros a ler a Bíblia – uma vez que o tempo,
a cultura e a literatura são muito diferentes da maneira antiga de fazer
textos, de escrever. Logo, fica-se propenso a erros de interpretação, se
não atentar para o fato de utilizar os conceitos formados pela literatura
contemporânea ao ler a Bíblia. É uma tarefa difícil deixar as próprias
convenções literárias para trás e ler a Bíblia sobre o pano-de-fundo de
suas próprias convenções literárias. Muitos especialistas estão tentando
isto e, nos últimos 30 anos, ficaram muito mais perto de fazer justiça à
própria Bíblia como literatura antiga: ela é a Palavra de Deus, e só por isso
vale a pena todo esse esforço!

Aqui, a tentativa não é resolver questões da área de pesquisa bíblica, mas


oferecer um bom começo para ler a Bíblia enquanto literatura. O truque é
estar alerta para o gênero de um determinado texto bíblico. Um gênero
é uma forma literária e refere-se ao tipo de texto utilizado para transmitir
um determinado conteúdo.

Qualquer pessoa crescendo no segundo milênio a.C. e lesse Gênesis


1-11, imediatamente compararia esse texto em sua mente com textos
semelhantes sobre a origem do mundo e da criação da humanidade.
Qualquer leitor de Êxodo 20-24 irá instantaneamente reconhecer a
semelhança na forma (e conteúdo) desta passagem com outras coleções
de lei do Antigo Oriente Próximo.

Sabendo disso, é preciso pensar sobre o lugar vivencial do texto que estamos
lendo. No Antigo Oriente Próximo, histórias sobre a origem do mundo e da
humanidade não foram em nenhuma forma concebidas para serem lidas
como tratados científicos sobre aspectos físicos, geológicos ou biológicos
deste evento. Temos outros tratados como esses escritos na mesma época
– sobre a matemática, a engenharia civil, a magia e a economia –, mas
34 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
estes também não têm uma forma semelhante as das revistas científicas
de hoje. Portanto, histórias sobre a origem da humanidade são literárias,
textos poéticos que tentam moldar a visão dos leitores, para estabelecer
uma ordem e para interpretar as dificuldades da vida.

Outro exemplo são as coleções de lei na Bíblia. Seria fatal lê-los como um
advogado lê, por exemplo, um decreto legislativo. Arqueólogos encontraram
muitas coleções de lei do Antigo Oriente Próximo e as semelhanças na
forma e no conteúdo com as leis bíblicas são impressionantes, da mesma
forma que tais arqueólogos foram capazes de situar quando essas
leis foram publicadas pelos seus respectivos reis. Normalmente, isso
acontecia no final do seu reinado, quando o velho rei tentava estabelecer
um monumento (literário) da sua sabedoria e capacidade jurídica.
Sugerindo essa função para essas coleções faz sentido, já que quase não
foram encontrados qualquer processo judicial (… e foram encontrados
muitos destes documentos) que citem essas grandes coleções de lei de
alguma maneira. A lei realmente praticada nos tribunais das cidades era
bem diferente das encontradas nas coleções de lei.

Sobre as coleções de leis na Bíblia, a sugestão é para que as leituras


fossem feitas como tentativas de definir Deus como rei no contexto do
antigo oriente. As pessoas daquela época pensaram sobre o rei como o
pastor do povo, um líder com a responsabilidade de cuidar de seu povo,
para estabelecer a paz interna e externa e as condições adequadas
para o povo prosperar. Neste pano de fundo, as leis bíblicas nos dizem
muito sobre o caráter de Deus, seus valores e suas atitudes sobre a
sociedade e a humanidade em geral. E tudo de uma forma muito prática
e contextualizada, relevante para a vida cotidiana de Israel.

Assim, pode-se esboçar a estrutura macro da Torá (também chamada de


gênero maior) como resultado da tensão entre a história (Deus agindo
para o seu povo) e a lei (mostrando a forma como Israel pode realmente
viver como é chamado, como povo de Deus). Veja a tabela:

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 35


A “Torá”, nesse sentido, é mais bem entendida como instrução por
qual o autor pretende ensinar seus leitores a viver realmente o que
eles já são – parte do povo escolhido de Deus. Lendo os evangelhos
do Novo Testamento, chega-se ao propósito muito semelhante, isto é,
comunicativamente os evangelhos são projetados para serem “cursos de
discipulado” – para ensinar os seguidores de Jesus como ser parte desta
nova família de Jesus, a igreja.

Exercício de fixação - 03
A Torá, em sua definição mais simples, compreende o conjunto dos
cinco primeiros livros (rolos) do Antigo Testamento, denominado
Pentateuco. Tais rolos foram temática e estruturalmente
harmônicos entre si porque constituíram-se em um guia literário
para o povo de Deus. Sendo assim, observe a seguinte estrutura:
I II III IV V VI
Gênesis Gênesis
Êxodo Levítico Números Deuteronômio
1-11 12-50

36 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


E, em relação aos conteúdos e ênfases de ensino histórico e
teológico, leia os extratos na tabela a seguinte:

Expansão da Lei a aliança com o propósito de santidade


A
entre o povo de Javé, já que ele viveria em seu meio

Renovação da aliança e segunda entrega da Lei como


B preparativo da a entrada na terra da promessa pela segunda
geração do povo de Javé.
C Criação, queda e julgamento.

Provação e purificação do povo da aliança de Javé na


D
peregrinação pelo deserto do Sinai.

Aliança, eleição de Abraão e conservação providencial de


E
sua família

Livramento milagroso do povo de Javé da escravidão do


F Egito, relacionamento da aliança da Lei como constituição
teocrática para Israel.

Uma vez definida a relação da primeira tabela com a segunda,


assinale a alternativa que corresponde corretamente a esta relação.
a. ( ) I-C, II-B, III-D, IV-A, V-E, VI-F
b. ( ) I-A, II-D, III-F, IV-B, V-C, VI-E
c. ( ) I-C, II-E, III-F, IV-A, V-D, VI-B
d. ( ) I-D, II-A, III-E, IV-F, V-B, VI-C
e. ( ) I-F, II-C, III-A, IV-B, V-D, VI-E

Acesse o AVA para fazer o exercício!

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 37


5: A Torá: interpretando textos normativos
Na linguagem da igreja ou mesmo da academia teológica, costuma-se
falar das leis do Pentateuco, ou dos seus textos legais, ou até mesmo
se usa o título Código para descrever certos trechos do Pentateuco:
Código da Aliança (Êx19-24), Código da Santidade (Lv 17-26), Código
Deuteronômico (Dt 12-26). Esse costume, porém, dificulta a nossa
compreensão desses textos. Por quê?

Quando estes textos são chamados de leis ou de códigos, pensa-se neles


como sendo equivalentes às leis e códigos de leis de nosso tempo. Para
nós, as leis estabelecem os deveres e direitos dos cidadãos e regem a
vida social. Se alguém quebra a lei deve ser punido por isso, e o Poder
Judiciário é o responsável por aplicar a punição. Enquanto leis, pensa-
se nesses textos como se fossem produto ou de uma determinação
direta de Deus que deve ser aplicada em todo e qualquer lugar em todo
e qualquer tempo – ou, ao contrário, pode-se pensar neles como sendo
fruto da vontade humana, de modo que poderíamos selecionar as leis
válidas e as leis revogadas.

O maior problema, contudo, reside na confusão teológica que surge


da conflitividade entre Lei e Graça na teologia cristã. “Lei” passa a
ser entendida como as leis do Antigo Testamento, superadas pela
Graça de Deus, de modo que já não têm mais nenhuma validade para
os cristãos. Esses hábitos de compreensão dos textos normativos do
Pentateuco são prejudiciais à sua interpretação dos mesmos. É preciso,
então, desenvolver novos conceitos e hábitos hermenêuticos, a fim de
compreender esses textos.

5.1. Interpretando textos normativos da Torá


Os antigos judeus chamavam os seus textos normativos de torá. Esta
palavra hebraica significa, em primeiro lugar, instrução, ensinamento.
Quando a torá vem de Deus, ela é um ensinamento com autoridade,
cumpre uma função normativa. Uma norma não é a mesma coisa
38 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
que uma lei, embora ambas sejam muito parecidas. Todas as leis são
normas, mas nem todas as normas são leis. Lei é um tipo de norma que,
estabelecida pelo Estado, deve ser obedecida por todos os cidadãos
desse Estado, sob pena de punição. Lei é, em sentido mais amplo, o
conjunto de leis que definem a identidade político-jurídica de um país, e
que encontra na Constituição a sua expressão máxima. As normas são
guias para a conduta e os relacionamentos humanos, e a maioria delas
não está escrita, nem faz parte de um conjunto de leis de uma nação
ou Estado. Normas, nesse sentido mais genérico, são um componente
da cultura de um povo, enquanto leis são um componente da estrutura
política de um país.

A torá (no plural hebraico: torôth) no Pentateuco é da natureza das


normas e não das leis! Ou seja, as torôth que encontramos no Pentateuco
não foram estabelecidas pelo Estado para servir de base para o
julgamento das pessoas e instituições sociais. Quando ocorriam crimes,
por exemplo, não havia um sistema de tribunais, semelhante ao nosso,
nos quais os criminosos eram julgados. Os crimes eram julgados por
“leigos”, por pessoas importantes de uma vila ou cidade, que se reuniam
apenas quando necessário e tomavam suas decisões com base nos
hábitos culturais – ou, nas normas daquela vila ou cidade. Casos que
não conseguiam ser resolvidos no ambiente local eram enviados para o
Templo ou para o Palácio, a fim de que os sacerdotes ou o rei tomassem
a decisão de acordo com a instrução (torá) de Deus. O relato de I Rs 3:16-
28 (quando Salomão ameaça dividir uma criança ao meio) é um exemplo
da sabedoria superior do rei para lidar com situações difíceis – note que
o rei não usa nenhum “código legal” para basear a sua decisão.

As coleções de normas no Pentateuco, embora muito parecidas com


códigos legais cumpriam, de fato, outras funções:
(a) serviam como coleções de ensinamento para os líderes políticos e
religiosos do povo de Israel;
(b) serviam como textos didáticos para escribas e outros funcionários do
Templo e do Palácio;

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 39


(c) serviam para demonstrar a grandeza do Deus de Israel que não era
como os outros deuses dos povos antigos;

(d) sua função mais importante, porém, era a de – juntamente com os


textos narrativos do Pentateuco – definir a identidade do povo de Israel a
partir da sua compreensão da ação e da vontade de Deus expressas na
aliança entre Ele e Seu povo.

Precisa-se, então, compreender os textos normativos como instrução,


ensino ou teologia, e não mais como leis. São normas culturais e
teológicas que visam instruir o povo de Deus à prática da fidelidade
à aliança entre YHWH e Seu povo. Como os textos normativos fazem
parte da narrativa do Pentateuco sobre a identidade de Israel, eles não
são lei no sentido do debate teológico-eclesiástico, mas expressão da
graça de Deus. Em outras palavras, Israel não se tornaria povo de Deus
se cumprisse as leis; Israel se tornou povo de Deus pela graça libertadora
de Deus no êxodo e na promessa da Terra. As normas divinas vieram
depois da libertação divina. Repare bem no seguinte texto bíblico: “Deus
pronunciou todas estas palavras, dizendo: Eu sou YHWH teu Deus que te
fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses
diante de mim. (...)” (Êx 20:1-3).

Antes da lista de normas (v. 3-17) para a vida do povo de Deus, vem a
declaração da graça – “que te fez sair”. Note, ainda, como, no verso 1, o
texto define o que nós, erradamente, chamamos de “Dez Mandamentos”
– “todas estas palavras” – deveríamos, então, chamar este famoso texto
de Decálogo (Dez Palavras) e não de dez mandamentos, posto que,
embora tenham força normativa, não são leis, mas a instrução de Deus
para nós que cremos nEle.

Note bem, agora, outro texto: “Eis que vos ensinei estatutos e normas,
conforme YHWH meu Deus me ordenara, para que os ponhais em prática
na terra em que estais entrando, a fim de tomardes posse dela. Portanto,
cuidai de pô-los em prática, pois isto vos tornará sábios e inteligentes
aos olhos dos povos. Ao ouvir todos esses estatutos, eles dirão: ‘Só
40 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
existe um povo sábio e inteligente: é esta grande nação!’. De fato! Qual a
grande nação cujos deuses lhe estejam tão próximos como YHWH nosso
Deus, todas as vezes que o invocamos? E qual a grande nação que tenha
estatutos e normas tão justas como toda esta Torá que eu vos proponho
hoje?” (Dt 4:5-8).

Repare no primeiro verbo do texto: ensinei! Os estatutos e normas da Torá


são o ensinamento de Moisés ao povo de Israel. A finalidade do ensino
é que o povo de Deus, após entrar na terra prometida – (a) mantenha a
posse dela, (b) seja reconhecido como um povo sábio e inteligente, (c)
cujo Deus é um Deus próximo, amigo do povo, o Deus da aliança. Mais
uma vez temos a sequência: graça libertadora de Deus – promessa –
ensino – prática do que foi ensinado.

Para resumir e encerrar esta seção: os textos normativos do Pentateuco


devem ser estudados e compreendidos como ensino de Deus para nós,
não podem ser separados de seu contexto narrativo, não devem ser lidos
como Lei em contraste com a Graça. As normas vétero-testamentárias são
normas da graça, são expressão da fidelidade de Deus em relação ao seu
povo e da fidelidade que Deus deseja que seu povo tenha para com Ele.

Exercício de aplicação - 04
Observe um trecho sobre o Pentateuco:
As coleções de normas no Pentateuco, embora muito parecidas
com códigos legais cumpriam, de fato, outras funções, a saber:
(a) serviam como coleções de ensinamento para os líderes políticos
e religiosos do povo de Israel;
(b) serviam como textos didáticos para escribas e outros
funcionários do Templo e do Palácio;
(c) serviam para demonstrar a grandeza do Deus de Israel que não
era como os outros deuses dos povos antigos;
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 41
(d) sua função mais importante, porém, era a de – juntamente com
os textos narrativos do Pentateuco – definir a identidade do povo
de Israel a partir da sua compreensão da ação e da vontade de
Deus expressas na aliança entre Ele e Seu povo.
Considerando os termos grifados é correto afirmar que:
a. ( ) O Pentateuco contém narrativas que ajudam o leitor quanto
à interpretação dos processos civis, litúrgicos, confessionais e
educacionais do povo de Deus.
b. ( ) O Pentateuco é uma elaboração com ênfase literária dos filhos de
Jacó.
c. ( ) O Pentateuco é o desvendamento das quatro linhas teológicas: o
Reino do Sul, o Reino do Norte, o Deuteronômio e os Sacerdotes.
d. ( ) O Pentateuco é o agrupamento da linha de pensamento da tribo
dos levitas.
e. ( ) O Pentateuco é o registro da chamada e comissionamento da
nação de Israel, desde o Egito até Canaã.

5.2. Um exemplo de interpretação (Dt 14,22-29)


Na prática, então, como deve-se compreender um texto normativo, a partir
dessa nova hermenêutica. Observe uma das normas mais interessantes
do Deuteronômio, a que trata do dízimo (Dt 14,22-29). Por uma questão
de economia de espaço, a discussão dos versos 24-26a ficarão de fora, o
que permitirá prestar mais atenção aos demais versículos.

A norma tem duas partes: a primeira se refere ao dízimo anual (22-27),


a segunda ao dízimo trienal (28-29). O dízimo requerido pela norma
ao israelita é dos frutos da colheita, incluindo o vinho e o azeite, que
seria ofertado juntamente com os primogênitos do gado (bovino) e do
rebanho (ovino e caprino). O dízimo anual deveria ser levado ao lugar
escolhido por Deus para ser adorado e, nesse lugar, deveria ser comido

42 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


pelo ofertante, sua família e empregados ou escravos e pelos levitas da
cidade do ofertante. Em relação ao levita, ele deveria ser incluído na festa
das famílias porque ele não poderia dar o dízimo ao Senhor, pois não
possuía terra (herança é o termo teológico do Antigo Testamento para a
propriedade de uma família – presente de Deus que não poderia ser dado
nem vendido a outras pessoas). Repare que interessante: o dízimo é para
ser comido festivamente, no culto de gratidão a Deus pela colheita, e não
para ser entregue aos sacerdotes para o sustento deles (conforme pedia
a norma em Levítico!).

E mais, a norma pede o dízimo anual com uma intenção didática: “a fim


de que aprendas a temer Javé, teu Deus, todos os teus dias”. Que é temer
a Deus? É reconhecer que Ele é o Senhor de nossa vida, de nossos bens,
de nossa família, de nosso presente e de nosso futuro. É reconhecer
que em Deus encontramos a fonte da sabedoria, da inteligência, da
capacidade para o trabalho, etc. Assim, entregar o dízimo é uma forma
de aprendizado. Ofertamos o dízimo, a fim de não nos esquecermos de
que tudo o que temos vem das mãos do Senhor.

E o dízimo trienal? O dízimo trienal era para ser estocado nas cidades,
com o propósito de servir de alimento para os “sem-terra”: levitas, órfãos,
viúvas, imigrantes (provavelmente fugitivos do reino do norte e que foram
morar no reino do Sul após a destruição de Samaria). O dízimo anual é
gratidão, o trienal é solidariedade. Quem ama a Deus, ama ao próximo!
Note o detalhe final do texto: “a fim de que te abençoe Javé, teu Deus,
em toda obra de tuas mãos, que fizeres”. Somos gratos a Deus pelas
bênçãos que recebemos, de modo que damos o dízimo dessas bênçãos
para aprendermos a temer ao Senhor. Como tementes a Deus, somos
solidários com os necessitados, e repartimos com ele nossas bênçãos.
Quando assim fazemos, Deus renova a bênção sobre nosso trabalho!
Quando acumulamos de forma egoísta a bênção divina, não repartindo
com o próximo, transformamos a bênção em pecado!

A escolha do texto deuteronômico sobre o dízimo foi proposital. É um texto


pouco conhecido sobre um tema muito discutido nas igrejas. Certamente
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 43
você terá ficado interessado nas diferenças entre a norma deuteronômica
do dízimo e a norma em Levítico e Malaquias. A presença de diferenças
desse tipo é comum nas coleções de normas no Pentateuco e revela as
diferentes interpretações que o povo de Deus fez de seu ensino de Deus
sobre a fidelidade à Aliança. Caso você deseje estudar mais a fundo as
coleções de normas do Pentateuco, você encontrará bastante material
para sua edificação e para seu crescimento em sabedoria e discernimento.

5.3. Torá: identidade do povo de Deus


Há, no Pentateuco, duas grandes teologias complementares que servem
para descrever a identidade do povo de Deus. Essas formas não abrangem
todos os textos do Pentateuco, mas oferecem uma síntese da teologia
dos primeiros livros da Bíblia.

A primeira delas diz respeito à teologia sacerdotal na Torá. Por teologia


sacerdotal entende-se, na tradição acadêmica de estudos bíblicos,
o conjunto de temas e textos do Pentateuco que giram ao redor dos
conceitos de santidade, sacrifício e sacerdócio como mediação entre o
povo e Deus. O livro de Levítico é a parte do Pentateuco que expressa
com mais profundidade a teologia sacerdotal, embora essa teologia
seja encontrada também em trechos de Gênesis, Êxodo e Números.
Dentre os vários temas importantes da teologia sacerdotal, nosso foco
de estudo neste texto recairá sobre o conceito de santidade. Preste
bastante atenção ao seguinte texto, fundamental para a compreensão da
santidade na teologia sacerdotal:

Pois sou eu, YHWH, o vosso Deus. Fostes santificados e vos tornastes
santos, pois que eu sou santo; não vos tornei, portanto, impuros com
todos esses répteis que rastejam sobre a terra. Sou eu YHWH que vos fiz
subir da terra do Egito para ser o vosso Deus: sereis santos, porque eu
sou santo” Lv 11:44-45 (cp. Lv 19:2; 22,31-33).

A santidade do povo de Deus depende da santidade de Deus. YHWH é


um Deus santo e seu povo, necessariamente, precisa ser santo. Em que

44 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


consiste a santidade de YHWH? Em primeiro lugar, santidade significa a
peculiaridade de YHWH – Ele é um deus diferente de todos os demais
deuses – por isso, Israel é convocado a não ter nenhum outro deus diante
de YHWH. Como consequência de Sua peculiaridade, YHWH é um deus
exaltado acima dos demais deuses, Ele está acima de todos os poderes,
humanos ou sobre-humanos que tenham existido ou que possam existir.
Em terceiro lugar, por ser santo, YHWH é um Deus exigente – não aceita
ser profanado por nada nem por ninguém – a sua santidade é inviolável.
Em quarto lugar, YHWH, o santo, santifica o seu povo – oferece a seu povo
uma participação na Sua santidade. Enfim, sendo peculiar e exaltado
acima de todos os poderes, YHWH é um deus transcendente – Ele não
sofre as limitações das coisas criadas -, mas, na Sua transcendência, Ele
se aproxima do Seu povo e vive em seu meio.

O Deus Santo de Israel se aproxima do seu povo mediante o ato de


libertação. Como visto no texto anterior, na Torá a graça de Deus é
anterior à exigência divina. Note a sequência do pensamento em Levítico
11:44-45: no verso 44, primeiro vem a afirmação de que YHWH é o Deus
de Israel; a seguir, a afirmação de que Ele santificou Israel e, enfim, a
exigência de que Israel não se torne impuro. A sequência é repetida no
verso 45: YHWH libertou Israel do Egito, por isso, exige de seu povo que
seja santo como Ele mesmo é santo. Mediante a ação libertadora, YHWH
realiza uma aliança com o povo liberto, fazendo-se Seu Deus e tornando
aquele povo o Seu povo. O agir de Deus torna mais concreta a nossa
compreensão da peculiaridade de YHWH: Ele é diferente de todos os
demais deuses, porque somente Ele é um deus libertador, um deus que
socorre o necessitado e oprimido.

Por fim, pode-se descrever a exigência de santidade a partir do caráter e do


agir de YHWH. O povo de YHWH deve manifestar, em sua vida cotidiana,
a santidade de Deus. Sendo o Santo um deus libertador, o seu povo
precisa ser um povo que vive em liberdade. Povo livre é aquele que não
se deixa escravizar pelas seduções do egoísmo, do dinheiro e do poder.
Povo livre é povo que pratica a solidariedade, socorrendo o necessitado
e o oprimido. Povo santo e livre é povo que, recusando-se a ser igual
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 45
aos demais povos e pessoas, não se afasta deles, mas se aproxima
para oferecer a palavra da santidade libertadora do seu Deus. Quando o
povo de Deus se comporta de maneira egoísta, indiferente ao próximo e
idólatra (seguindo deuses feitos por mãos humanas), o nome de Deus é
profanado, a santidade de Deus é turvada e pessoas e povos que não O
conhecem perdem a chance de conhecê-Lo. A exigência de santidade é,
assim, exigência de testemunho ao mundo. No livro do Êxodo a presença
da teologia sacerdotal da santidade é intensa na seguinte descrição da
identidade do povo de YHWH:

Vós mesmos vistes o que fiz aos egípcios, e como vos carreguei sobre
asas de águia e vos trouxe a mim. Agora, se ouvirdes a minha voz e
guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar
entre todos os povos, porque toda a terra é minha. Vós sereis para mim
um reino de sacerdotes e uma nação santa (Êx 19,4-6).

A segunda forma textual refere-se à teologia deuteronômica na Torá, que


apresenta seu conceito central o de fidelidade a YHWH. Como o próprio
nome indica, a teologia deuteronômica é a que se encontra no livro
do Deuteronômio – mas está presente também em Gênesis e Êxodo.
Duas são as principais diferenças em relação à teologia sacerdotal: (a)
a teologia deuteronômica dá pouca atenção aos rituais sacrificiais e
ao papel do sacerdócio (não há nada em Deuteronômio parecido com
Levítico 1-10, que descreve detalhadamente rituais e normas para o
sacerdócio); e (b) também dá pouca atenção à regulamentação da pureza
e impureza, enfatizando mais a prática da Torá do que a manutenção da
pureza pessoal e comunitária. Não há diferença, porém, na compreensão
da santidade de Deus e da sequência graça-exigência. O povo de
YHWH deve ser fiel, porque YHWH é fiel e manifestou sua fidelidade ao
libertar os filhos de Israel do Egito. A exigência divina visa o bem-estar
do seu povo. Entretanto, a teologia deuteronômica dá grande ênfase à
exclusividade de YHWH e descreve a relação da aliança entre YHWH e

46 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Israel como uma relação de amor fiel. Vamos dedicar atenção a um texto
que é fundamental até hoje para a identidade israelita, conhecido como
Shemá (Ouve), Dt 6,4-9.

No primeiro verso do texto, encontramos a afirmação fundamental da


fé judaica: YHWH, nosso Deus, YHWH um. Propositadamente mantive a
forma gramatical do texto hebraico “YHWH um” (sem verbo entre o sujeito
e o predicativo do sujeito), que tem recebido diversas interpretações
e traduções. A afirmação YHWH um destaca diferentes dimensões da
fé deuteronômica: (a) YHWH é o único Deus de Israel, no sentido da
exclusividade, ou seja, independentemente de quantos deuses tenham
existido ou possam existir, para Israel há somente um Deus – YHWH –
somente a Ele Israel adora, somente a Ele Israel é fiel, somente YHWH é
a fonte de vida para Israel; (b) YHWH é um Deus pluralmente singular, no
sentido de que Ele não precisa de outros deuses para repartir as tarefas (no
pensamento vétero-oriental, os deuses tinham funções especializadas,
por isso era necessário crer em vários deuses que cumpriam essas
diferentes tarefas, tais como guerrear, fazer chover, curar doenças, etc.).
Como Deus pluralmente singular, YHWH é sufi ciente, Israel não necessita
de nenhum outro Deus para atender as suas necessidades – ou seja,
YHWH não é um deus especialista, parcial; e (c) YHWH é o único Deus
não feito por mãos humanas, os demais deuses são ídolos, fabricação de
mãos humanas e não são capazes de agir. O aniconismo da fé israelita
não se restringia apenas à ausência do uso de imagens da divindade, mas
era expressão da sua crença na exclusividade e singularidade de YHWH.
Por outro lado, a expressão “YHWH nosso Deus” destaca a aliança entre
o Senhor e o povo israelita – aliança de amor, amizade, companheirismo,
fidelidade e soberania de YHWH sobre Israel e a favor de Israel.

Aniconismo: termo técnico que nomeia o fato de os judeus não fazerem


imagens de seu Deus, seguindo a exortação do Decálogo. Vem da língua
grega: ícone=imagem; a=sem.

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Consequentemente, o povo que faz aliança com o fiel e único Deus, é
convocado a construir sua identidade a partir do amor a Deus. A escolha
do verbo amar, no livro do Deuteronômio, tem significado muito especial. O
livro do Deuteronômio adota e adapta o estilo dos tratados internacionais
assírios. Nesses tratados, o rei de um país mais fraco que se associava
ao rei de um país mais forte assumia o compromisso de amar o rei mais
poderoso. Semelhantemente, os juramentos assírios feitos por oficiais
que iniciavam seu serviço ao rei assírio faziam a mesma exigência: o
oficial do rei se comprometia a amar ao rei. Assim, ao convocar Israel
a amar a YHWH, o Deuteronômio não só destaca a relação de aliança
entre Deus e o povo, como afirma que YHWH é o único rei de Israel, o
único rei a quem Israel deveria ser fiel, o único rei a quem deveria servir. A
repetição da palavra todo(a) e a soma dos termos coração, alma e força
indicam que o compromisso de Israel com YHWH deveria ser integral.
Assim como YHWH é um, o povo de Israel deveria ser unido em um único
propósito: ser fiel a YHWH. O coração do israelita não poderia se dividir
entre seu Deus e outros deuses, entre YHWH e outras lealdades.

Dessa forma, as palavras de YHWH, sua instrução (torá), deveriam ocupar


o pensamento do israelita o tempo todo, e deveriam ser ensinadas de
geração em geração. Eis aqui a peculiaridade deuteronômica em relação
à teologia sacerdotal – ao invés de enfatizar a santidade e a pureza,
mantidas através da participação na vida litúrgica no Templo, a teologia
deuteronômica enfatiza o estudo das palavras de YHWH e sua prática na
vida cotidiana, como demonstração da fidelidade de Israel ao seu único
Deus. Todo o tempo, todas as dimensões da vida, todas as gerações do
povo de Deus são convocadas à meditação, estudo e prática da Torá de
YHWH. Se viver dessa maneira, Israel dará testemunho da singularidade
e exclusividade de YHWH a todos os povos.

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Exercício de reflexão - 05
Em Gênesis 12:1-3 encontra-se o relato da Chamada de Abrão, cuja
leitura proporciona compreensões acerca de como tal início veio
produzir a nação de Israel. Veja o texto:
Então o Senhor disse a Abrão: “Saia da sua terra, do meio
dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra
que eu lhe mostrarei. “Farei de você um grande povo, e o
abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você será uma
bênção. Abençoarei os que o abençoarem, e amaldiçoarei os
que o amaldiçoarem; e por meio de você todos os povos da
terra serão abençoados”.
Bíblia NVI, Gênesis 12:1-3

Diante dos dois textos apresentados e considerando o que foi


aprendido sobre a Torá, argumente sobre a ideia de bênção na
formação da nação de Israel e como isso se aplica à nossa vida.
(mínimo de 100 palavras).

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 49


Leituras complementares
HILL, Andrew E.; WALTON, J. H. Panorama do Antigo Testamento. São
Paulo: Vida, 2011, p. 53 a 70.

Referências
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Sociedades do antigo oriente
próximo. Serie Princípios 47. São Paulo: Editora Atica, 1986.

HARNACK, A. von. Marcion. Das Evangelium vom fremden Gott. 2ª ed.


Leipzig: [s.d.], 1924.

HILL, Andrew E.; WALTON, J. H. Panorama do Antigo Testamento. São


Paulo: Vida, 2011

LA SOR, William et. al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 1999.

MITCHELL, T. C., and BRITISH MUSEUM. The Bible in the British Museum.
Paulist Press, 2004.

ZENGER, ERICH et. al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo:


Edições Loyola, 2003.

50 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 51
Unidade II: Os livros históricos
Introdução
Nesta segunda unidade, você irá entrar em contato com a porção de
escritos que foram denominados, tanto pelos católicos como pelos
protestantes, de Livros Históricos. E, mesmo para esses dois grupos, a
quantidade de livros é um pouco diferente. Para os católicos, a divisão
completa tem 16 livros, e para a tradição dos protestantes, a coleção
agrupa apenas 12. E há, ainda, a divisão feita pela Bíblia Hebraica, que traz
duas outras classificações do mesmo grupo. A tabela abaixo esclarece
esta divisão, de acordo com a ordem proposta pelas respectivas tradições:

52 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Antes de prosseguir, faz-se necessário duas observações até aqui. A primeira
diz respeito à existência de estudos que tentam exemplificar o porquê dos
livros de Josué, Juízes, Samuel (1 e 2) e Reis (1 e 2) serem considerados
“profetas”. O que vale dize aqui é que este grupo social foi o que mais se
destacou por tornar a “profecia” (oráculos) a interpretação da atuação de
Deus na História de Israel. Neste sentido, é correto também afirmar que os
livros canônicos considerados ‘históricos’ são proféticos, pois entendem a
história como o testemunho das ações de Deus junto ao seu povo.

A segunda observação é que também se faz necessária a recomendação


de como os livros históricos devem ser semanticamente considerados
“históricos”. Ou seja, deve-se adotar uma linha de interpretação para
considerá-los históricos. Neste caso, a proposta aqui é já indicar uma
chave de leitura para estes livros. Uma excelente recomendação é dada
pelos autores Andrew E. Hill e John H. Walton, no livro Panorama do
Antigo Testamento (2011, p. 192), a saber:

Sugestões para a leitura de literatura histórica do Antigo Testamento

• Considere os livros do prisma teológico, não apenas históricos.


• Lembre que o foco principal da literatura é Deus e sua aliança, não
pessoas ou acontecimentos.
• Lembre que causa e efeito históricos são analisados em termos do
papel de Deus, não das ações das pessoas.

Espera-se que, com esta indicação, o(a) estudante de Teologia perceba


que ao lê-los há dupla recompensa: (a) conhecimento dos processos e
dinâmicas das ações de Deus junto ao seu povo, enquanto um cenário que
vai sendo construído ao longo do tempo, isto é, vai se compreendendo
como a história se processo no tempo da vontade de Deus; e (b) o
texto bíblico enquanto texto literário, além de ser suis generis literário,
ele também revela outras perspectivas, tais como: sociológicas,
antropológicas, linguísticas, entre outras mais, e, fortemente, históricas.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 53


O objetivo desta unidade é apresentar as diferentes teorias sobre os
livros históricos (teoria, composição, mensagem e crítica) e como eles
contribuem para o conhecimento do Antigo Testamento.

A Avaliação 1 será feita no fim desta unidade, sendo composta de dez


questões objetivas: cinco questões da Unidade 1 e cinco questões da
Unidade 2.

Saiba mais:
OS LIVROS HISTÓRICOS DO ANTIGO TESTAMENTO

Prezados alunos! No link abaixo há alguns eslaides que sintetizam


o conteúdo dos livros históricos. Eles não trazem discussões e
nem fundamentação de pesquisa. Sobretudo, são sínteses de três
grandes autores sobre o AT: Carlos Mesters, Euclides M. Balancin
e Ivo Storniolo. Vale a pena conferir, pois a proposta é estudar os
livros históricos a partir de três agrupamentos.
Acesse, clicando aqui:
http://resultspromocional.com.br/familiamissionaria1/LIVROS%20
HIST%C3%93RICOS.pdf

1. Teorias sobre os Llivros históricos


Para iniciar o primeiro tópico, ressalta-se a importância de considerar
toda o Antigo Testamento como um meio de “auto revelação de Deus”.
Ou seja, os recursos literários utilizados (gênero [forma e ou tipologia
textual], estrutura [as partes do gênero literário] e a estilística [as figuras
de linguagem e os efeitos sonoros da linguagem]) são fontes da língua
hebraica e aramaica para desvendar as ações de Deus com o seu povo.
Neste sentido, considera-se os fatos narrados como sendo históricos
porque eles revelam os acontecimentos de Deus com Israel (tanto no
período tribal como monárquico), registrados por pessoas do próprio povo.
54 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
E deve-se atentar para que tais acontecimentos sejam cautelosamente
interpretados dentro dos parâmetros da instrução e do conhecimento de
Deus, isto é, observando-se os padrões literários, tais como: os ciclos de
narrativas e as histórias contadas de geração em geração.

É comum entre os eruditos e estudiosos do Antigo Testamento fazer


uma introdução aos Livros Históricos a partir da Teoria da História
Deuteronomista, também denominada simplesmente pelas siglas
HD (História Deuteronomista), ou ainda, simplesmente pela letra “D”
(Deuteronomista). Esta teoria (ou fonte) consiste em considerar o trecho
de Josué até Reis como uma coleção única. Os estudiosos afirmam
tratar-se de uma “escola” que se baseou na descoberta do “Livro da Lei”,
relatada em 2Reis 22 e 23, durante o reinado de Josias. No relato bíblico,
é dito que tal descoberta havia inspirado a adoração no templo em
Jerusalém pelo rei Josias. O texto do livro de Deuteronômio é no estilo
exortativo, tipo sermão, com a finalidade sempre de repreender e orientar
o povo. E o seu conteúdo é exemplarmente fundamentado na Aliança,
cujo vocabulário é constante nas exortações. Do ponto de vista teológico
(ensino), a ênfase é sobre a dualidade entre bênção e maldição. Ou seja,
quando o povo obedece a YHWH e volta-se para o cumprimento de seus
desígnios, então ele é abençoado. Mas, quando este povo desobedece
ou mesmo contraria os mandamentos do Senhor, então o juízo cai sobre
toda a nação e há consequências por muitas gerações.

LEMBRETE: PROPOSTA DE LEITURA DA HISTÓRIA


DEUTERONOMISTA (HD)
Josué, Juízes, Samuel (1 e 2) e Reis (1 e 2)

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 55


A HD tem a sua formulação mais elaborada pelo estudioso alemão Martin
Noth (1902-1968). Em 1943, enquanto se destacava como excelente
professor sobre os estudos do Antigo Testamento na Universidade de
Bonn, divulgou o enredo desta teoria. Para ele, é preciso considerar o
processo temporal e histórico que varia entre a tradição oral, a descoberta
do livro, a complementação de trechos feitas no exílio e a redação final
por volta do século VI (cerca de 550 a.C.). O que ele mais destacou não
foram as questões de data e edições da HD, mas sobretudo a ênfase
teológica que este agrupamento de livros teve sobre a história de Israel.

Há muitas teorias sobre a HD, mas é de senso comum que a redação


começou no tempo do rei Ezequias, quase no final do século VIII e com
redação maior no tempo de Josias, quando da sua reforma, isto é, já no
final do século VII (Norman K. Gottwald, por exemplo). E, depois disto,
várias inserções foram feitas nos livros de Josué, Juízes, Rute, 1 e 2
Samuel, e 1 e 2 Reis. Contudo, há outros pesquisadores (Samuel Schultz,
por exemplo) que, devido aos conflitos com datas e épocas, tratam da
atual composição como redações finais, desde sua origem. Vale ressaltar
que relevância da formulação teórica da HD é que ela é uma abordagem
que ensina como estudar a história de Israel, isto é, a partir da lealdade
de Israel com Deus.

Segundo a narrativa de Deuteronômio 28, é plausível concordar que


os temas da obediência à lei e a fé em YHWH são as características
essenciais da história de Israel com Deus. Há que que se pensar aqui
que as “falas” ou os “dizeres” encontrados n HD tratam de ênfases
teológicas de como ler a história do povo de Deus. Em síntese, trata-se de
entender que a história de Israel é lida a partir da dualidade entre bênção
e maldição. Eis alguns textos e comparações:

Veja a tabela na próxima página!

56 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


1 Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos
ensino, para os cumprirdes, para que vivais, e entreis, e possuais
a terra que o SENHOR, Deus de vossos pais, vos dá.
2 Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis
Deuteronômio dela, para que guardeis os mandamentos do SENHOR, vosso
Deus, que eu vos mando.
4:1-3 3 Os vossos olhos viram o que o SENHOR fez por causa de Baal-
Peor; pois a todo homem que seguiu a Baal-Peor o SENHOR,
vosso Deus, consumiu do vosso meio.
4 Porém vós que permanecestes fiéis ao SENHOR, vosso Deus,
todos, hoje, estais vivos.

11 Portanto, empenhai-vos em guardar a vossa alma, para


amardes o SENHOR, vosso Deus.
12 Porque, se dele vos desviardes e vos apegardes ao
restante destas nações ainda em vosso meio, e com elas vos
Josué aparentardes, e com elas vos misturardes, e elas convosco,
23:11-13 13 sabei, certamente, que o SENHOR, vosso Deus, não
expulsará mais estas nações de vossa presença, mas vos
serão por laço e rede, e açoite às vossas ilhargas, e espinhos
aos vossos olhos, até que pereçais nesta boa terra que vos
deu o SENHOR, vosso Deus.

11 Então, fizeram os filhos de Israel o que era mau perante o


SENHOR; pois serviram aos baalins.
12 Deixaram o SENHOR, Deus de seus pais, que os tirara da terra
do Egito, e foram-se após outros deuses, dentre os deuses das
gentes que havia ao redor deles, e os adoraram, e provocaram o
SENHOR à ira.
Juízes
13 Porquanto deixaram o SENHOR e serviram a Baal e a Astarote.
2:11-23 14 Pelo que a ira do SENHOR se acendeu contra Israel e os deu
na mão dos espoliadores, que os pilharam; e os entregou na mão
dos seus inimigos ao redor; e não mais puderam resistir a eles.
15 Por onde quer que saíam, a mão do SENHOR era contra eles
para seu mal, como o SENHOR lhes dissera e jurara; e estavam
em grande aperto.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 57


A mensagem da HD é enfática sobre a fidelidade à aliança (à Lei do Senhor
e, consequentemente, ao próprio YHWH). Esta ênfase é caracterizada pela
repetição e pela comparação. Para o Reino do Norte, a repetição foi a mais
evidente, devido à constante lembrança da dificuldade de abondarem o
pecado de Jeroboão – fazendo desta temática o fracasso que perpetuou a
todos os reis, desde Jeroboão até Zinri, que reinou por apenas sete dias. E,
para o Reino do Norte, a comparação foi utilizada para lembrar que nenhum
rei seria como Davi, “homem segundo o coração de Deus”, em fidelidade,
êxito e adoração. Para o(os) autor(es) da HD, Davi enfatizava a adoração
em Jerusalém e aniquilação da apostasia no território de Israel.

Até aqui é possível exemplificar a proposta da leitura sobre a História


Deuteronomista, através de um pequeno resumo. Trata-se dos discursos
apresentados pelos livros, desde Deuteronômio até 2 Reis. Esta proposta
foi elaborada por Römer (2008)

TEXTO DISCURSO TEMAS


Discurso de despedida de Moisés.
Critérios para avaliar a História
Deuteronômio seguinte. ORIGENS
1–30 Capítulo 28 (e outros lugares).
Anúncio do exílio.
Discurso de Javé a Josué.
Josué 1
Anúncio da conquista.
CONQUISTA
Discurso de despedida de Josué.
Josué 23 Realização da conquista.
Anúncio do exílio.
Juízes 2:6– Discurso introduzindo o tempo dos
3:6 juízes.
TEMPO DOS
Discurso de despedida de Samuel. JUÍZES
1 Samuel 12 Sumário da história precedente.
Anúncio da sanção divina.

58 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Discurso inaugural de Salomão.
Cumprimento das promessas a MONARQUIA
1 Reis 8
Davi. UNIDA
Anúncio do exílio.
Discurso: comentário sobre o
colapso de Israel.
2 Reis 17 OS DOIS REINOS
Sumário da história precedente.
Anúncio do exílio de Javé.
ÚLTIMOS DIAS
2 Reis 25 (Fim em aberto): exílio.
DE JUDÁ

Disponível em:
https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/Ribla/article/
viewFile/8022/5897

Assista ao vídeo: Os Livros Históricos


Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=gFU1NFzj35U
Duração: 5m42s

Ainda com respeito à mensagem da HD, é preciso sim confirmar que a


ênfase é em relação à aliança de Deus com o seu povo, e não propriamente
aos personagens citados com certa proeminência. É o caso de Josué,
Sansão, Davi, Elias, Josias, entre outros. A ênfase é mesmo sobre Deus.
Os autores alertam para que tal ênfase não seja dada na interpretação,
pois haveria problemas teológicos e de difícil reparação, tal como
a explicação de ‘genocídios’ em nome de Deus, ‘poderes mágicos’,
‘adivinhação como critério de julgamento’, entre outros. Mais à frente,
alguns exemplos serão tratados com maior clareza.

Não há, entre os eruditos, unanimidade sobre a HD – o que realmente


é louvável! Pois, qualquer tentativa de obter uma teoria padrão para a
HD incorre em graves erros hermenêuticos e exegéticos. Por exemplo,
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 59
ao afirmar a HD como base para interpretar os livros históricos será
preciso determinar uma época, provavelmente no reinado de Josias.
Todavia, alguns argumentos contra a HD favoreceriam a autoria dada a
Moisés, pois foi ele quem ouviu e viu Deus escrever a sua Lei para o
povo. Neste sentido, o período da conquista da Canaã é para o sentido
da promessa, da obediência e da posse da terra, enquanto na reforma de
Josias, a ênfase é para a centralidade da adoração a Deus no templo em
Jerusalém. Portanto, há um distanciamento histórico entre a conquista
de Canaã e o reinado de Josias, aproximadamente seiscentos anos.

Saiba mais:
OS LIVROS HISTÓRICOS (OS PROFETAS ANTERIORES E A
VOZ DA OPOSIÇÃO
Resenha:
SKA, Jean-Louis. O Antigo Testamento explicado aos que
conhecem pouco ou nada a respeito dele. São Paulo: Paulus, 2015.
163p. ISBN: 978-85-349-4182-2
Trecho extraído: 4 Os livros históricos (Os profetas anteriores) e a
voz da oposição
Trata-se aqui dos profetas anteriores: Josué, Juízes, 1-2 Samuel e
1-2 Reis. Esses livros reassumem os principais fatos da história de
Israel, do início da conquista da terra (Josué 1) prosseguindo até
o exílio de Babilônia (2Reis 25). A abordagem é de um escritor do
Sul, muito crítico da monarquia (p. 67). Ska destaca que os grandes
personagens da história de Israel, na tradição rabínica, não são os
soberanos, os chefes, mas os profetas. Em Eclesiástico 46,1 Josué
filho de Nun é elogiado como “valente na guerra” e depois informa
sucessor de Moisés no “ofício profético”. É indicativo que esses
livros sejam chamados profetas anteriores. Foram os profetas que
salvaram Israel, opondo-se em muitas ocasiões à política dos reis
(p. 68). O texto de 2Reis 17,13-15 ilustra a causa da

60 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


catástrofe de Israel e Judá: a falta da observância da lei, pois não
ouviram o apelo de conversão dos profetas (2Reis 17,13). Portanto,
a causa da tragédia do Exílio é de ordem ética. Israel e Judá se
comportaram mal” (p. 70). A visão do texto é profética. Josué
não é visto como grande general, militar, conquistador, mas um
fiel sucessor de Moisés obediente à lei (Josué 1,7-8) (p. 70). Ska
arremata: “Josué se assemelha mais a um rabino, ou a um doutor
da lei, do que a um conquistador”. É o que parece na abertura do
livro de Josué (Josué 1,7-8). No discurso de despedida (Josué 23),
Josué confia como herança ao povo a Torah e exorta: “Esforçai-vos,
pois, muitíssimo para guardar e cumprir tudo o que está escrito
no livro da lei de Moisés, sem vos desviardes nem para a direita
nem para a esquerda” (Josué 23,6). No final do livro, que fala da
conclusão da Aliança de Siquém (Josué 24), Josué acrescenta as
palavras da Aliança “no livro da lei de Deus” (Josué 24,26). Se o
tempo de Josué é considerado, segundo Ska, a idade de ouro da
história de Israel, isso se deve não às vitórias, mas à fidelidade à
lei (p. 72-73). No livro dos Juízes, na passagem das gerações entre
Josué e os Juízes, termina a idade de ouro e surge uma geração
que não conhecia o Senhor, que começa a fazer o mal aos olhos do
Senhor. Ska sugere a leitura de Josué 24,29-31 em correlação com
Juízes 2,8-10. Tais relatos constituem a moldura de Josué e Juízes
e apontam para uma outra geração que vai praticar o mal aos olhos
do Senhor. As consequências da infidelidade do povo estão claras
em Juízes 2,11-23. Há recaídas cíclicas do povo no pecado. É uma
reflexão com dados posteriores que explica porque o povo sofreu
a catástrofe do exílio. A causa fundamental do exílio é a atitude
religiosa de Israel que se distancia de Deus para adotar outro Baal
(p. 75). Ska explica: “Adotar o culto a Baal significa acolher outros
comportamentos, outras políticas e outros objetivos sociais e
econômicos”. O que aparece especialmente em Oséias (p. 75).

Os livros de Samuel: Monarquia ou Profetismo? O autor vai mostrar


como aparecem posições de apoio à monarquia, e

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 61


oposição à monarquia, nem sempre fáceis de distinguir. Começa
com a explicação da etimologia do nome Samuel que não tem
correspondência com o verbo pedir (shamu, escutar): “Ana deu à
luz um filho a quem chamou Samuel, porque disse ela, eu o pedi ao
Senhor” (1Samuel 1,20), a explicação de Ana não corresponde. Ska
explica aqui a substituição do nome Samuel por Saul. O nome Saul
corresponde realmente a “pedido, desejado”. Pode-se entender que “o
relato queira mostrar que o filho verdadeiramente desejado é Samuel
e não Saul” (p. 76). A primazia estaria na profecia, representada por
Samuel, e não na monarquia, representada por Saul? Ou, ao contrário,
o texto estaria querendo legitimar o reinado de Saul com a explicação
de que foi o filho pedido. Parece que a postura antimonárquica pode
estar nessa narração. As narrativas a seguir mostram que Samuel
condenará Saul duas vezes, por motivos até ridículos (cf.1Samuel
13,8-14 e 1Samuel 15) (p. 79). Saul perderá o poder, mas adiante Davi,
que cometeu faltas muito mais graves, não perdeu o poder (p. 79),
comenta Ska. Nesse caso são textos pró-davídicos. Porém o texto
antimonárquico mais claro é 1Samuel 8,11-18, em que os anciãos de
Israel pedem a Samuel um rei. A descrição do “direito do rei”, é uma
feroz sátira à monarquia. Outro texto de oposição à monarquia é o
apólogo de Joatão em Juízes 9,8-15. A história deuteronomista (1 e
2 Reis) vai indicar outros motivos porque os reis são condenados: ―
fizeram o mal aos olhos do Senhor. Nem todos os reis de Israel ou Judá
serão condenados. Alguns se salvam: Davi, Ezequias e Josias são os
principais (p. 78; 82). Fica claro nessa breve análise a complexidade
dos textos. Os relatos “contrabalançam a exaltação da figura de um
rei, com trechos onde aparece a voz da oposição à monarquia” (p. 80).

Os livros dos reis apresentam uma crônica dos reinos do Norte e do


Sul acompanhadas de um juízo se o rei fez o mal ou o bem aos olhos
do Senhor, isto é, se observou a lei do Senhor. Ska apresenta 1 Reis
2,1-4, (o texto da sucessão de Davi) que possui uma introdução
semelhante ao oráculo dirigido a Josué (em Josué

62 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


1,7-8): “Sejas forte, seguirás a observância do Senhor” (1 Reis 1,2-
3). É uma recomendação para observar a lei escrita. O futuro da
dinastia de Davi depende da fidelidade a Deus e sua lei. Toda a
atuação dos reis será avaliada à luz da observância ou não da lei
do Senhor. Mas o critério do julgamento é também centralização
do culto e purificação (p. 83). Pecado maior era prestar culto
fora de Jerusalém, nos lugares altos. Assim Jeroboão, filho de
Nadab, é julgado como alguém que fez o mal, porque construiu
dois santuários, um em Dan e outro em Betel, longe de Jerusalém.
Resumindo, Ska destaca três linhas de leitura: uma nomística
baseada na observância da Torah, a segunda cultual porque se
interessa pela centralização do culto em Jerusalém, e a terceira,
profética. Os acontecimentos foram previstos pelos profetas. Ska
comenta a ausência de Jeremias entre os profetas em 1 e 2 Reis.
O seu nome não aparece, por causa de sua posição filobabilonense
(Jeremias 21,8-10.27), talvez também por causa dos ataques
contra o templo (Jeremias 5,1-9; 7).

Enfim as coisas foram mal porque os filhos de Israel e os reis não


ouviram os profetas. Ska destaca que as coisas vão muito bem
quando se escuta o profeta – Roboão obedece a Semeías (1Reis
12,22-24); Ezequias segue o que disse Isaías (2 Reis 19-20) (p. 85).

Ska destaca com propriedade a ideologia nos relatos de julgamento


dos reis. Em 2Reis 14,23-29, o relato do governo de Jeroboão II (787-
747) é um dos mais positivos do reino do norte (p. 86), no entanto
os autores fazem um julgamento negativo: “fez o mal aos olhos
do Senhor e não se afastou dos pecados, aos quais Jeroboão filho
de Nadab havia arrastado Israel” (2Reis 14,24). Os juízos positivos
ou negativos se sobrepõem às crônicas do governo dos reis, em
função das ideias condutoras, como faria Tucídides (p. 87). Nessa
avaliação, ao nosso ver, é clara a rejeição do reino do Norte. Isso
porque Jeroboão, filho de Nadab, primeiro rei do Norte,

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 63


foi o responsável pelo cisma. Assim, aparece citado como exemplo
negativo. Ao contrário, Davi, nas avaliações, é citado como exemplo
positivo de um rei que não se afastou da lei do Senhor. Para
concluir, Ska retoma os motivos da perda da terra e do Exílio em
alguns discursos (Josué 23; Juízes 2-3; 1Samuel 12, 1Reis 8; 2Reis
7). Essa retomada dá ao leitor do livro mais clareza da ideia chave
que perpassa a história dos reis de Israel e Judá: os motivos do
julgamento negativo dos reis são também motivos que causaram
a desgraça do exílio de Babilônia. Segundo Ska, aqui o juízo é feito
diante do prejuízo que significou o exílio (p. 84), ou seja “a história
é lida com o sentido dado posteriormente” (p. 84).

ARTUSO, Vicente. “O Antigo Testamento explicado aos que


conhecem pouco ou nada a respeito dele”. In: Horizonte, Belo
Horizonte, v. 16, n. 50, p. 952-967, maio/ago. 2018

Disponível em:

h�p://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/ar�cle/download/
P.2175-5841.2018v16n50p952/13579

Exercício de fixação
Uma das propostas de estudar os livros históricos é através da
assim chamada História Deuteronomista, que consistia em um
roteiro de livros que contava a história do povo de Deus, desde o
período tribal até o exílio. Das alternativas propostas abaixo, qual
delas caracteriza a coleção dessas indicações de leituras:
a. ( ) A mensagem da HD é enfática sobre a fidelidade à aliança
(à Lei do Senhor e, consequentemente, ao próprio YHWH). Esta
ênfase é caracterizada pela repetição e pela comparação.

64 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


b. ( ) A origem da HD tem sua formulação teórica no achado
do Livro da Lei, relatada em 2Reis 22 e 13, durante o reinado de
Josias.
c. ( ) O texto do livro de Deuteronômio é no estilo exortativo, tipo
sermão, com a finalidade sempre de repreender e orientar o povo.
E o seu conteúdo é exemplarmente fundamentado na Aliança,
cujo vocabulário é constante nas exortações.
d. ( ) Do ponto de vista teológico (ensino), a ênfase é sobre
a dualidade entre bênção e maldição. Ou seja, quando o povo
obedece a YHWH e volta-se para o cumprimento de seus
desígnios, então ele é abençoado. Mas, quando este povo
desobedece ou mesmo contraria os mandamentos do Senhor,
então o juízo cai sobre toda a nação e há consequências por
muitas gerações.
e. ( ) A teoria consiste em considerar o trecho de livros do
AT, localizados entre Josué até Reis, como sendo uma única
coletânea de textos.
Acesse o AVA para fazer o exercício!

2. O eneateuco: outra teoria relevante


Antes de iniciar este segundo tópico, é preciso esclarecer que, como
já dito antes, há várias teorias para serem introduzidas à compreensão
dos livros históricos do Antigo Testamento. No tópico anterior, falou-se
sobre a HD, isto é, à História Deuteronomista. Neste aqui, agora, você irá
entender algumas outras, mas mais especificamente à teoria de leitura
de nove rolos, também chamada de Eneateuco.
Ao longo da história do ensino e aprendizado sobre o Antigo Testamento
em ambientes acadêmicos e eclesiásticos, várias propostas de estudo
foram sendo formuladas com a finalidade de facilitar o conhecimento
sobre os Livros Históricos. Até o início do século XX, era comum, por
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 65
exemplo, nas missas católicas e também nos cultos protestantes (este
último com menor frequência) a escolha de um dos três calendários
litúrgicos (Ano A, B ou C), a partir do qual há a sequência de leituras de
textos bíblicos. Por exemplo, em cada celebração litúrgica havia a leitura
do Antigo Testamento e, ao longo das demais partes do culto, outras
leituras são feitas do Novo Testamento, inclusive a dos Evangelhos.
É função do pregador fazer a sincronia dessas leituras de tal forma a
conduzir a pregação. Uma das estratégias determinadas por este método
era proporcionar a visão histórica do povo de Deus, desde o AT (Israel)
até o NT (a Igreja). Hoje, [in]felizmente esta metodologia de leitura bíblica
não é tão mais evidente assim nas comunidades cristãs. A Igreja Católica
ainda mantém este tipo litúrgico, mas tem perdido também espaço para
outros movimentos contemporâneos.
Para o estudo dos Livros Históricos, sempre houve propostas de lê-los
como blocos literários ou unidades literárias. Ao longo da história do
ensino sobre o AT em ambientes cristãos, foram estas as propostas:

PROPOSTA COLEÇÃO LITERÁRIA (BLOCO LITERÁRIO)


TETRATEUCO Gênesis, Êxodo, Levítico e Números
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e
PENTATEUCO
Deuteronômio
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio
HEXATEUCO
e Josué
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio,
OCTATEUCO
Josué, Juízes e Rute.
HISTÓRIA DEUTERONO- Deuteronômio, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e
MISTA 2 Reis
ENEATEUCO Gênesis, Êxodo, Levítico, Números,
(Primeira História de Deuteronômio, Josué, Juízes, Samuel (1 e 2) e
Israel) Reis (1 e 2).

História das origens e ampliação, Livro das Crôni-


HISTÓRIA CRONISTA cas (1 e 2)

66 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


A proposta de leitura do Eneateuco foi feita por Otto Eissfeldt (1887-
1973), um erudito teólogo alemão e apaixonado pelo estudo do Antigo
Testamento. Ele foi o que mais detalhou um estudo introdutório ao
Antigo Testamento, uma obra de 860 páginas. Sua abordagem foi
exemplarmente literária, fazendo comparações com outras histórias
religiosas do Antigo Oriente Próximo. A teoria elaborada por ele recebeu
o nome de “Hipótese Documentária”, que depois foi rebatizada como
Eneateuco, mais ou menos em 1934. O bloco literário escolhido por ele
vai de Gênesis a 2 Reis, ou seja, tem o início com as narrativas da criação
(Gn 1 e 2) e vai até o Exílio Babilônico (2 Reis). Na verdade, é uma extensa
coleção de livros que sumariza a história (Judá e Samaria).

Para a maioria dos estudiosos do AT, o Eneateuco é considerado uma


Primeira História de Israel ou ainda “História Primária”. De fato, o roteiro
de Gênesis a Reis sempre foi admitido pela literatura e cânon hebraico
como uma “proposta coerente de leitura”. E há também algumas lacunas
que foram muito bem preenchidas através deste roteiro. Por exemplo: o
relato de Juízes 2:8-10 está bem relacionado com o contexto de Êxodo
1:6-8, como segue:

Juízes 2:8-10 Êxodo 1:6-8


Faleceu Josué, filho de Num, servo Faleceu José, e todos os seus
do SENHOR, com a idade de cento irmãos, e toda aquela geração.
e dez anos; sepultaram-no no limite Mas os filhos de Israel foram
da sua herança, em Timnate-Heres, fecundos, e aumentaram
na região montanhosa de Efraim, ao muito, e se multiplicaram, e
norte do monte Gaás. Foi também grandemente se fortaleceram,
congregada a seus pais toda aquela de maneira que a terra se
geração; e outra geração após eles encheu deles. Entrementes, se
se levantou, que não conhecia o SE- levantou novo rei sobre o Egito,
NHOR, nem tampouco as obras que que não conhecera a José.
fizera a Israel.
BÍBLIA ARA

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 67


Se observar a cronologia, Êxodo comenta um período em que o povo de
Israel estava no Egito, enquanto Juízes comenta o período em que Israel
já se havia estabelecido em Canaã. Para os estudiosos, estas lacunas são
“ganchos literários” enfatizando a ligação ainda com a tradição (história)
dos patriarcas. Do ponto de vista literário, a passagem de Êxodo 1:6-8
situa o leitor sobre o ciclo dos três grandes patriarcas (Abraão, Isaque e
Jacó) para o início do novo período como povo de Deus sendo conduzido
à libertação (do grego, eks = saída, fora de; hodos = caminho). No
imaginário do povo, Abraão era nômade (tribo) e deu início ao grande povo
de Deus. No Egito, foram feitos escravos, mas o clamor do povo sofrido
chegou até Deus, que providenciou Moisés como Salvador. Portanto, a
passagem refere-se à transição do patriarcalismo para a o evento do
êxodo (libertação). Na verdade, o imaginário continuava sendo o de
tribo (clã), no entanto, havia agora a esperança de serem conduzidos por
Deus à terra prometida. De certa forma, houve a alteração de significado
enquanto povo: eram nômades, mas agora são peregrinos no deserto.

Já a seção de Juízes 2:8-10 quer enfatizar a transição que houve da


liderança de Josué para o período em que Israel seria administrado por
juízes (literalmente pessoas escolhidas para julgar o povo), pois “naquela
época não havia rei em Israel (Jz 17:6). Há autores (HIl e Walton, por
exemplo), que preferem acreditar que a escrita de Juízes é pré-monárquica
e que, supostamente, estava sendo escrita quando já existia rei em Israel,
enquanto outros preferem apena mencionar que o conceito de realeza
já existia entre o povo, mas definitivamente Juízes 2:8-10 demonstra a
transição do movimento patriarcal para o de juízes.

Há vários outros relatos que acabam sendo comparados pelo Eneateuco.


Por exemplo, o relato da criação descrita em Gênesis 1, situando o leitor a
respeito de um jardim, isto é, de um local em que habitava a humanidade
(Adão e Eva) e que continuamente Deus fazia-se presente com os seres
criados. Em comparação com o trecho de Êxodo 35 a 40, é mencionada
a indicação da construção de uma outra morada (habitação de Deus),
ou seja, o Tabernáculo. E, seguindo esta ideia de lugar como morada
68 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
(do hebraico, maqom), os capítulos 18 e 19 de Josué menciona que o
santuário (Tabernáculo) precisa ser instalado na terra prometida também.
E é em 2 Reis 6:1 que menciona-se a construção do templo, efetuada por
Salomão. O que vale destacar aqui é a ideia de “Deus habitar com o seu
povo” estar sendo confirmada pelo roteiro do Eneateuco, cujo objetivo é
promover a compreensão sobre a história de Israel. Aos interessados em
datas e cronologias, entre o evento do êxodo e a construção do templo,
demorou-se 480 anos.

De certa maneira, o Eneateuco pode se confundir como uma proposta de


leitura “temática” sobre a História de Israel. Mas, na verdade, os eruditos
desta teoria dizem que não! A leitura bíblica por meio deste roteiro condiciona
o leitor a importar-se com o único tema central, ou seja, a fidelidade à aliança
e à lei, desde Gênesis até Reis. Neste sentido, o conteúdo dos enredos vai
se transformando por causa dos acertos e dos erros de Israel. Se o povo é
infiel, então todos são punidos, a terra é perdida e o povo será exilado! Eis um
modelo prático de como esta leitura é possível:

GÊNESIS 2-3 ENEATEUCO


O jardim do Éden Corresponde à terra
O preceito de não comer do fruto da árvore do saber do bem e do mal
Corresponde à Lei de Moisés
A expulsão de Adão e Eva do Corresponde à desobediência do
Jardim povo que leva ao Exílio.

Chama-se a atenção sobre a “compreensão” feita por este sistema de


leitura. Ou seja, a conclusão é feita pelo leitor, pois não há como “ser
induzido” senão pela própria leitura. Neste sentido, os “temas” são
sistematizados (semanticamente organizados) pelo próprio leitor. É aqui
que reside uma das importâncias do Eneateuco para o entendimento
acerca da História de Israel, isto é, a autonomia que o leitor tem sobre
suas conclusões após a leitura. E, segundo as orientações dos teóricos,
se houver algum equívoco na interpretação, ele será corrigido quando
confrontado com outras informações e propostas de leituras. E,

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 69


seguindo a linha de pensamento da proposta de leitura, é importante
que a Primeira História seja a desse roteiro, ou então o leitor vai ter um
tipo de dificuldade sobre o entendimento “histórico” das narrativas do
Tetrateuco, do Pentateuco e do Hexateuco.

Exercício de aplicação
Leia o Salmo 146.

1 Aleluia! Louva, ó minha alma, ao SENHOR.


2 Louvarei ao SENHOR durante a minha vida; cantarei louvores ao
meu Deus, enquanto eu viver.
3 Não confieis em príncipes, nem nos filhos dos homens, em quem
não há salvação.
4 Sai-lhes o espírito, e eles tornam ao pó; nesse mesmo dia, perecem
todos os seus desígnios.
5 Bem-aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por seu auxílio,
cuja esperança está no SENHOR, seu Deus,
6 que fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e mantém
para sempre a sua fidelidade.
7 Que faz justiça aos oprimidos e dá pão aos que têm fome. O
SENHOR liberta os encarcerados.
8 O SENHOR abre os olhos aos cegos, o SENHOR levanta os
abatidos, o SENHOR ama os justos.
9 O SENHOR guarda o peregrino, ampara o órfão e a viúva, porém
transtorna o caminho dos ímpios.
10 O SENHOR reina para sempre; o teu Deus, ó Sião, reina de
geração em geração. Aleluia!
BÍBLIA ARA, Salmo 146

70 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Baseando na teoria do Eneateuco, isto é, na proposta de leitura de
nove rolos sobre a História de Israel, em cuja teoria é possível que o
leitor identifique temas e ele mesmo faça a relação comparativa, a
fim de interpretar a história do povo de Deus. Neste sentido, a partir
dos termos grifados do Salmo 146, é correto afirmar que:
a. ( ) A mensagem principal do Salmo 146 é caracterizar Deus
como Rei, haja vista ele ser criador de todas as coisas, inclusive
do sofrimento de Israel no deserto e no exílio.
b. ( ) O Salmo 146 pertence ao Hallel (começa e termina com
a expressão Aleleuia), que vai do 146 ao 150 e se referem aos
instrumentos litúrgicos utilizados no louvor a Deus.
c. ( ) Este Salmo era cantado antes da leitura do Livro da Lei
(Pentateuco), pois menciona-se a tradição patriarcal através da
expressão “o Deus de Jacó”.
d. ( ) O conteúdo do Salmo 146 reforça o tema do Deus Criador
– tema este muito comentado pelos patriarcas, no período tribal,
que compreenderam a fé como princípio da justiça de Deus.
e. ( ) Salmo 146 é tradicionalmente o comentário sobre o reinado
de Deus, referindo-se à condenação de que YHWH não queria reis
sobre o seu povo.

Acesse o AVA para fazer o exercício!

3. O gênero das histórias


Como dito na primeira unidade, o cânon do AT tem várias partes e
desenvolvimentos. Falou-se sobre a Torá como parte fundamental do AT,
para um entendimento histórico, teológico e literário. Nesta unidade, tem
sido apresentada uma “introdução” aos livros considerados históricos.
Eles apresentam narrativas, comentários sobre eventos, acontecimentos
e pessoas. Entende-se o termo “gênero das histórias” para significar os
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 71
doze “livros históricos do AT”, indicados pela classificação da Tradição
Protestante (Josué a Ester), mas também considerados de relevância
par estudos os demais livros classificados pela Tradição Católica (Judite,
Tobias, 1 e 2 Macabeus). Devido aos muitos capítulos abrangidos por
estes livros, a exposição deles será também panorâmica. Aqui, serão
apresentados os grandes temas e assuntos gerais, cobrindo alguns
aspectos dos livros históricos, sobretudo os temas que enfatizam o
desenvolvimento e a compreensão da História de Israel.

Uma perspectiva interessante é fornecida por Anthony Ceresko, em seu


livro temático sobre a Sabedoria no Antigo Testamento. Ele introduz
duas dimensões libertadoras para a leitura da Bíblia:

“As tradições históricas de Israel falam da luta pela


criação de uma comunidade humana livre do domínio
e da exploração, uma sociedade em que os homens e
mulheres viviam juntos como irmãos e irmãs sob o regime
justo e amoroso de Deus. Essas tradições históricas
destacam uma libertação política e socioeconômica.
De outro lado, os escritos sapienciais constituem um
esforço em favor da libertação pessoal, uma libertação
que livra os indivíduos das fontes psíquicas da servidão
pessoal ou social – a ambição, a luxúria ou um orgulho
e uma agressividade desmesurados, por exemplo”
(CERESKO, 2004, p. 11-12).

É importante fazer uma distinção importante entre história e historiografia.


História são fatos reais lembrados por uma comunidade ou indivíduos.
Alguns itens são omitidos a partir desta memória e outras sobrevivem
séculos sem serem esquecidas. História é passado e não reproduzível.
Todos os comentários que as pessoas fazem é sobre a história!

72 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Saiba mais:
Literatura: Gêneros literários
Os gêneros literários podem ser classificados em três categorias
básicas: gêneros épico, lírico e dramático.

A Literatura é uma manifestação artística difícil de ser conceituada.


Para nos ajudar a melhor entendê-la, Aristóteles, em sua Arte Poética,
definiu aquilo que chamamos de gêneros literários. Portanto, é
interessante observar que a história da teoria dos gêneros pode
ser contada a partir da Antiguidade greco-romana, quando também
surgiram as primeiras manifestações poéticas da cultura ocidental.

Os gêneros literários reúnem um conjunto de obras que apresentam


características análogas de forma e conteúdo. Essa classificação
pode ser feita de acordo com critérios semânticos, sintáticos,
fonológicos, formais, contextuais, entre outros. Eles se dividem
em três categorias básicas: gêneros épico, lírico e dramático.
Vale salientar também que, atualmente, os textos literários são
organizados em três gêneros: narrativo, lírico e dramático.

Disponível em: h�ps://brasilescola.uol.com.br/literatura/generos-


literarios.htm

PRINCIPAIS GÊNEROS ÉPICOS (NARRATIVOS) MAIORES:


No gênero épico ou narrativo há a presença de um narrador,
responsável por contar uma história na qual as personagens atuam
em um determinado espaço e tempo. Pertencem a esse gênero as
seguintes modalidades:
Fábula Epopeia Novela Conto Crônica Ensaio Romance
Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/literatura/generos-literarios.htm

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 73


PRINCIPAIS GÊNEROS LÍRICOS (POESIA) MAIORES:

Os textos do gênero lírico, que expressam sentimentos e emoções,


são permeados pela função poética da linguagem. Neles há a
predominância de pronomes e verbos na 1ª pessoa, além da
exploração da musicalidade das palavras. Estão, entre as principais
estruturas utilizadas para a composição do poema:
Elegia Ode Écloga Soneto
Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/literatura/generos-literarios.htm

PRINCIPAIS GÊNEROS DRAMÁTICOS (TEATRO) MAIORES:


De acordo com a definição de Aristóteles em sua Arte Poética, os
textos dramáticos são próprios para a representação e apreendem
a obra literária em verso ou prosa passíveis de encenação teatral. A
voz narrativa está entregue às personagens, atores que contam uma
história por meio de diálogos ou monólogos. Pertencem ao gênero
dramático os seguintes textos:
Auto Comédia Tragédia Tragicomédia Farsa
Disponível em:
h�ps://brasilescola.uol.com.br/literatura/generos-literarios.htm
Notavelmente, os livros históricos do AT se encaixam no gênero maior
épico ou narrativos, e cada relato pode ainda ser classificado em outros
gêneros menores, tais como: fábula, epopeia, novela, conto, crônica,
ensaio e romance. Há ainda outros gêneros que se subdividem dentre
esses maiores, por exemplo: as fábulas podem ser de animais, objetos,
plantas, seres animados e inanimados, etc); as crônicas são as que mais
se destacam nos livros históricos do AT; novelas também são excelentes
tipologias textuais de comunicação e transmissão da história do povo.

Por outro lado, toda história precisa ser registrada, contada. E o ‘escritor
da história’, é muitas vezes conhecido como autor, novelista, romancista,
74 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
fabulista, cronista, etc. Atualmente, muitos dos graduados em História
acabam dedicando-se à pesquisa e, neste sentido, assumem com
sucesso a arte de escrever sobre história – e, portanto, acabam sendo
denominados historiadores. O fato é que os primeiros historiadores
não eram totalmente providos dos elementos que tornam a sua arte o
significado da história. Eles dominavam os gêneros épicos (narrativos)
e, no conteúdo destes textos é que algumas marcas e elementos de
‘história’ estavam sendo identificadas.

O resultado de escrever sobre a história é então chamado historiografia.


Um conceito simples e muito fácil de entendimento pode ser assim
resumido:

A historiografia refere-se a uma narração de eventos passados a


partir de uma perspectiva específica. É a arte do escritor escrever
a história!

Esta última frase é muito, muito importante, ou seja, considerar a narrativa


como o instrumento utilizado para ler os livros históricos da Bíblia, assim
como durante a leitura de qualquer outra historiografia, antiga ou moderna.

Voltando ao conceito de historiografia, eis algumas implicações


importantes deste gênero:

• Historiografia é necessariamente seletiva, não se pode gravar


tudo o que aconteceu.
• Historiografia está necessariamente vinculada a certo ponto de
vista, não se registrar a história de forma objetiva.
• Todo o registro da história é movido por determinados interesses
e uma série de pressupostos que poderiam ser conscientes, mas
muitas vezes não são.
• Historiografia é intencionalmente escrita: os autores querem
influenciar o pensamento e a conduta de seus contemporâneos.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 75


• Historiografia bíblica está amplamente tomando notas de muitos
interesses comuns, tais como projetos de construção ou conflitos
tribais, mas também de outros como conversas particulares e
até mesmo relatos de sentimentos – destacando assim a sua
qualidade literária.

• Além disso, a historiografia bíblica reflete opiniões teológicas.


Isto pode ser visto muito bem no entendimento das histórias sobre
causalidade: os atos de YHWH de graça(salvação) ou de juízo geral
(julgamento), determinam a sequência dos acontecimentos.

• Por fim, a historiografia bíblica é praticamente anônima – a


princípio, este tipo de entendimento pode soar estranho, pois é
natural que o autor receba os créditos pela produção literária –
mas foi a maneira cuidadosa de narrar a situação. Neste sentido,
o intérprete desta história tem que ser cuidadoso ao criar qualquer
especulação ou adivinhação nesta área.

A anonímia ou anonimato é uma das características de quem escreve


a historiografia bíblica. Muitas coisas mais poderiam ser ditas sobre o
assunto, mas você já entendeu a ideia geral: historiografia é literatura
em seu sentido mais amplo. Meier Sternberg (1985), a este respeito,
considera que todos os livros do AT são literatura e, como tal, querem
comunicar certos ensinamentos para os seus leitores propostos. Ler a
história a partir da narrativa, e principalmente as narrativas bíblicas, é
deixar-se ser fascinado pela leitura com “outros olhos”, a fim de apreciar
a sua qualidade literária.

Em seguida, vou apresentar uma visão geral das histórias. Depois quero
dar a minha resposta para a nossa pergunta introdutória (sobre Sansão).
Finalmente vou acrescentar alguns aspectos sobre a ética refletida nas
histórias.
76 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
Exercício de aplicação
Leia o trecho de Juízes 9:8-15

8 Foram, certa vez, as árvores ungir para si um rei e disseram à


oliveira: Reina sobre nós.

9 Porém a oliveira lhes respondeu: Deixaria eu o meu óleo, que


Deus e os homens em mim prezam, e iria pairar sobre as árvores?

10 Então, disseram as árvores à figueira: Vem tu e reina sobre nós.

11 Porém a figueira lhes respondeu: Deixaria eu a minha doçura, o


meu bom fruto e iria pairar sobre as árvores?

12 Então, disseram as árvores à videira: Vem tu e reina sobre nós.

13 Porém a videira lhes respondeu: Deixaria eu o meu vinho, que


agrada a Deus e aos homens, e iria pairar sobre as árvores?

14 Então, todas as árvores disseram ao espinheiro: Vem tu e reina


sobre nós.

15 Respondeu o espinheiro às árvores: Se, deveras, me ungis rei


sobre vós, vinde e refugiai-vos debaixo de minha sombra; mas, se
não, saia do espinheiro fogo que consuma os cedros do Líbano.

BÍBLIA ARA, Juízes 9:8-15

Juízes é um dos livros narrativos épicos, ou seja, transmitem


retratos da História de Israel. Especificamente na passagem acima,
foi utilizado um gênero literário para falar sobre a o espinheiro ser
rei sobre todas as demais árvores. Das alternativas abaixo, o gênero
que melhor descreve este cenário é:

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 77


a. ( ) A epopeia, pois considera o espinheiro o herói que irá salvar
a nação de Israel. No contexto de Juízes, refere-se a Abimeleque.
b. ( ) A fábula, porque dá vida aos seres inanimados e, portanto, é
uma narrativa simbólica.
c. ( ) O romance, que procurou demonstrar a relação entre todas
as personagens tipificadas pelas árvores.
d. ( ) A novela, haja vista ela apresentar as árvores oliveira, figueira,
videira e espinheiro como personagens que têm suas estórias
dentro de uma história maior.
e. ( ) O conto, que centralizou o discurso em quatro argumentos:
óleo, doçura, alegria e fogo.
Acesse o AVA para fazer o exercício!

4. Visão panorâmica sobre os livros históricos


Neste tópico será oferecido uma visão panorâmica das Histórias de
Israel, ou melhor, dos livros cujas narrativas comentam sobre períodos
da História do Povo de Deus. Sabemos que o Pentateuco descreve a
criação do mundo e os primórdios da história humana e, em seguida,
em sua maior parte, direciona o foco sobre as relações do criador com o
povo de Israel. Deus compromete-se com Israel por aliança e lhes dá um
chamado, de trazer a bênção para as nações do mundo. Deuteronômio, o
último livro do Pentateuco, termina com Israel prestes a entrar em Canaã,
a terra que Deus prometeu dar-lhes como território nacional. Neste ponto,
as histórias começam.

Josué descreve a conquista de Israel sobre Canaã sob a liderança de


Josué, e a divisão de Canaã e partes da Cisjordânia (a terra ao leste
do rio Jordão) entre as 12 tribos de Israel. Os próximos capítulos de
Josué demonstram que até o final da vida de Josué os israelitas ainda
não tomaram posse completa de Canaã. Os conceitos básicos do livro
78 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
de Josué são: (a) a fidelidade de Deus no cumprimento das promessas da
aliança; (b) a importância da obediência; e (c) a conquista e a divisão da terra.

ESBOÇO DE JOSUÉ
I - Entrada no território
• Preparação para a entrada na terra (1 e 2)
• Travessia do Jordão (3 e 4)
• Circuncisão (5.1-12
II - Narrativas da conquista
• O comandante do exército do Senhor (5:13-15)
• Jericó (6)
• Ai (7 e 8)
1. Derrota em Ai (7:1-5)
2. Ofensa de Acã (7:6-26)
3. Vitória em Ai (8:1-29)
4. Leitura da Lei em Ebal e Gerizim (8:30-35)
5. Coligação do Sul (9 e 10)
6. Lista das conquistas s(12)
III - Descrição de divisão do território
• Acordo de reivindicações anteriores (13 – 17)
1. Rúben, Gade e metade de Manassés na Transjordânia (13)
2. Calebe (14)
3. Judá (15)
4. Manassés e Efraim (16 e 17)
• Restante das tribos (18 e 19)
• Designação das cidades de refúgio (20)
• Distribuição das cidades dos levitas (21)
IV - Questões referentes à aliança
• Possível violação à construção do altar (22)
• Exortações aos líderes tribais (23)
• Renovação da aliança em Siquém (24)
HILL e WALTON (2011, p. 200-201)

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 79


Em Juízes, a geração posterior a de Josué não completou a conquista
de Canaã. Segue-se um longo período de infidelidade religiosa e de
instabilidade política. Líderes (juízes) surgem, mas apenas trazem alívio
temporário. O livro termina com Israel ainda sem a plena posse das
terras. Os conceitos básicos deste livro são: (a) os ciclos do período dos
juízes; (b) a desobediência à aliança pelo povo, pelos sacerdotes e líderes
tribais; (c) o tema da justiça e da graça de Deus; (d) o papel do Espírito do
Senhor; e (e) a provisão divina de libertadores.

ESBOÇO DE JUÍZES
I. Contexto: Fracasso na expulsão dos cananeus (1:1 – 2:5)
II. Introdução: Ciclo de apostasia (2:6 – 3:6)
III. Ciclos: “Os israelitas fizeram o que o SENHOR reprova”
A. Otoniel (3:7-11)
B. Eúde (3:12-31)
C. Débora (4 e 5)
D. Gideão (6-8)
1. Abimeleque (9)
2. Tolá e Jair (10:1-5)
E. Jefté (10:6 – 12:7)
1. Ibsã (12:8-10)
2. Elom (12:11-12)
3. Abdom (12:13-15)
F. Sansão (13 – 16)
IV. Depravação tribal: “Cada um fazia o que lhe parecia certo”
A. Danitas (17 e 18)
B. Benjamitas (19-21)

HILL e WALTON (2011, p. 213-214)

80 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Rute é situada no período dos juízes. Rute, uma mulher moabita, adentrou
a uma família israelita, trazendo bênção para si mesma e aos outros. Ela
é uma ancestral de Davi, futuro rei de Israel. Os autores Hill e Walton
(2011) dizem o seguinte sobre Rute:

“A história comovente de Rute apresenta ao leitor do


AT uma das heroínas silenciosas da fé. Como registro
de incidente ocorrido no período dos juízes, oferece
grande contraste com a imagem negativa da época. Em
vez de israelitas abandonando a lealdade e a adoração
a Javé à procura de outros deuses, a história descreve
Rute agindo com base na lealdade, seguindo a Javé e
condenando outros deuses” (2011, p. 222)

ESBOÇO DE RUTE
I. Migração e tragédia da família de Elimeleque (1:1-5)
II. Noemi e Rute retornam para Belém (1:6-22)
III. Rute encontra Boaz (2)
IV. Plano de Noemi e seu sucesso (3)
V. Casamento de Rute e Boaz, e nascimento do filho (4:1-17)
VI. Genealogia de Perez

HILL e WALTON (2011, p. 223-224)

Samuel é o último dos juízes de Israel, mas os livros de Samuel (1 e 2),


em homenagem a ele, descrevem os primórdios da monarquia em Israel.
O reinado de Saul, primeiro rei de Israel, termina em desastre. Mas Davi
emerge como o sucessor de Saul e conclui a conquista de Canaã ao tomar
Jerusalém. Ele derrota ou faz alianças com nações vizinhas, trazendo
estabilidade. Durante os últimos anos do seu reinado, ele tem de superar
uma rebelião liderada por seu filho Absalão. Os conceitos básicos destes
livros são: (a) a instituição da monarquia; (b) a importância da soberania
divina; e (c) o processo de estabelecimento da aliança com a casa de Davi.
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 81
ESBOÇO DE 1 E 2 SAMUEL
I. As tradições de Siló (1 Sm 1:1 – 4:1a)
II. A narrativa da arca (1 Sm 4:1b – 7:1)
III. A instituição da monarquia (1 Sm 7:2 – 12:25)
IV. O reinado de Saul (1 Sm 13-15)
V. Ascensão de Davi ao poder (1 Sm 16:1 – 2 Sm 5:10)
VI. Sucessos de Davi (2 Sm 5:11 – 9:13)
VII. Fracassos de Davi (2 Sm 10 – 24)
A. Enfrentando a ação humana: a narrativa da sucessão (2 Sm 10 -20)
B. Enfrentando a ação divina: apêndice (2 Sm 21 – 24)
HILL e WALTON (2011, p. 228)

Os livros dos Reis (1 e 2) descrevem o reinado de Salomão, filho de Davi,


que constrói um templo para YHWH, em Jerusalém. Após sua morte,
seu único reino se divide nos reinos: Reino do Norte (Israel, capital
Samaria) e o Reino do Sul (Judá, capital Jerusalém). O restante de Reis
descreve o declínio gradual dos dois reinos. O autor atribui este declínio
à infidelidade religiosa. Os assírios destroem o Reino do Norte e levam os
sobreviventes ao exílio. Algumas gerações depois, os babilônios fazem
o mesmo com o Reino do Sul. Jerusalém e o templo são destruídos. Os
conceitos básicos são: (a) os primeiros resultados após a instalação da
monarquia, delimitando a relação entre o bem e o mal; (b) as bênçãos
(arrependimento e restauração) e as maldições (julgamento e exílio) da
aliança; (c) a voz profética como consciência (ciência e conhecimento)
da realidade; e (d) a adoração, enfatizada pelo javismo contra o baalismo.

ESBOÇO DE 1 E 2 REIS
I. Rei Salomão (1 Reis)
A. Sucessão (1 e 2)
B. Sabedoria (3)
C. Reinado (4-11)
82 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
II. Rei Roboão (12:1-22)
III. Reis de Israel e Judá de 931 a 853 a.C.
A. Jeroboão I (12:22 – 14:20)
B. Roboão (14:21-33)
C. Abias (15:1-8)
D. Asa (15:9-24)
E. Nadabe (15:25-32)
F. Baasa (15:33 – 16:7)
G. Elá (16:8-14)
H. Zinri (16:15-20)
I. Onri (16:21-28)
J. Acabe (16:29-34)
IV. Ministérios proféticos de Elias e Eliseu
A. Elias e o rei Acabe (1Rs 17:1 - 22:40)
B. Rei Josafá (1 Rs 22:41-50)
C. Rei Acazias (1 Rs 22:51 – 2 Reis 1:18)
D. Eliseu e o rei Jorão (2Rs 2:19 – 8:15)
V. Reino de Israel e Judá de 852 a 722 a.C.
A. Jeorão (8:16-24)
B. Acazias (8:25-29)
C. Jeú (9 e 10)
D. Atalia e Joás (11 e 12)
E. Jeoacaz (13:1-9)
F. Jeoaz (13:10-25)
G. Amazias (14:1-22)
H. Jeroboão II (14:23-29)
I. Azarias (15:1-7)
J. Zacarias (15:8-12)
K. Salum (15:13-16)
L. Menaém (15:17-22)
M. Pecaías (15:23-26)
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 83
N. Pecal campanha assíria contra Israel (15:27-31)
O. Jotão (15:32-38)
P. Acaz (16)
Q. Oseias (17:1-6)
R. Queda de Samaria (17:4-41)
VI. Reino de Judá de 729 a 587/586 a.C.
A. Ezequias/campanha assíria contra Judá (18-20)
B. Manassés (21:1-18)
C. Amom (21:19:26)
D. Josias (22:1 – 23:30)
E. Jeoacaz (23:31-35)
F. Jeoaquim/Primeira invasão babilônica (23:36 – 24:7)
G. Joaquim/Segunda invasão babilônica (24:8-17)
VII. Queda de Jerusalém (25:1-21)
VIII. Apêndice histórico A: Governador Gedalias (25:22-26)
IX. Apêndice histórico B: Joaquim no exílio
HILL e WALTON (2011, p. 254-256)

Os livros das Crônicas (1 e 2) seletivamente recontam a narrativa que


atravessa todos os livros já mencionados. As genealogias em I Crônicas
1-9 remontam a Adão, ou seja, até o início do Pentateuco, mas a maior
parte das Crônicas corre paralela a Samuel e Reis. Há, no entanto, muitas
omissões e acréscimos em relação a Samuel e Reis, e muitas diferenças de
ênfase. Os últimos versos de II Crônicas descrevem como o rei persa Ciro,
que tinha conquistado a Babilônia, promulgou um decreto que permitiu a
sobrevivência do reino do sul e o retorno de seus descendentes do exílio.
Os conceitos básicos destes livros são: (a) recordação do passado para
dar esperança no presente; (b) a centralidade da adoração no templo; (c)
a idealização dos reinados de Davi e Salomão; e (d) a legitimação dos
sacerdotes e levitas como líderes comunitários.
84 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
ESBOÇO DE 1 E 2 CRÔNICAS
I. Prefácio genealógico
A. Patriarcas (1 Cr 1)
B. Filhos de Israel (2 e 3)
C. Famílias de Judá (4:1-23)
D. Simeão (4:24-43)
E. Rúben, Gade,Manassés (5)
F. Levi (6)
G. Issacar, Benjamin, Naftali, Efraim, Aser (7)
H. Saul (8)
I. Exilados que retornaram (9)

II. Monarquia unida


A. Reinado de Davi (1Cr 10 – 29)
1. Morte de Saul (10)
2. Ascensão de Davi (11 e 12)
3. Retorno da arca da aliança (13-17)
4. Conquistas de Davi (18-27)
5. Organização do Reino de Davi (21-27)
6. Preparações de Davi para o templo (28:1 – 29:9)
7. Despedida e morte de Davi (29:10-30)
B. Reinado de Salomão (2Cr 1 – 9)
1. Realeza de Salomão (1)
2. Construção do templo (2:1 – 5:1)
3. Dedicação do templo (5:2 – 7:22)]
4. Atividade de Salomão (8 e 9)

III. História de Judá


A. Roboão (10 – 12)
B. Abias (13:1 – 14:1)
C. Asa (14:2 – 16:14)

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 85


D. Josafá (17:1 – 21:1)
E. Jeorão (21)
F. Acazias (22:1-9)
G. Atalia e Joás (22:10 – 24:27)
H. Amazias (25)
I. Uzias (26)
J. Jotão (27)
K. Acaz (28)
L. Ezequias (29 – 32)
M. Manassés (33-1-20)
N. Amom (33:21-25)
O. Josias (34:1-36:1)
P. Jeocaz (36:2-4)
Q. Jeoaquim (36:5-8)
R. Joaquim (36:9-10)
S. Zedequias (36:11-16)

IV. Exílio (36:17-23)


HILL e WALTON (2011, p. 279-281)

Os livros de Esdras e Neemias, em homenagem a dois líderes no período


pós-exílico, tomam o decreto de Ciro como seu ponto de partida. Eles
descrevem o regresso de grupos sucessivos da Babilônia para o antigo
território de Judá, a reconstrução do templo e dos muros de Jerusalém,
e o regulamento da comunidade restaurada em Judá, com base na lei
de Moisés. Os conceitos básicos presentes nestes dois livros são: (a)
a restauração física da cidade de Jerusalém; (b) a reforma religiosa e
social decorrentes do arrependimento; (c) Javé como Deus que cumpre
a aliança.

86 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


ESBOÇO DE ESDRAS E NEEMIAS
I. Narrativa de Sesbazar e Zorobabel (Esdras)
A. Decreto de Ciro (1:1-4)
B. Retorno sob o comando de Sesbazar (1:5-11)
C. Retorno sob o comando de Zorobabel (2)
D. Reconstrução do altar e do templo (3 – 6)

II. Memórias de Esdras: primeira parte (Esdras)


A. Chegada de Esdras (7 e 8)
B. Reformas religiosas e sociais de Esdras (9 e 10)

III. Memórias de Neemias: primeira parte (Neemias)


A. Chegada de Neemias (1 e 2)
B. Reconstrução do muro de Jerusalém apesar da oposição (3 e 4)
C. Reforma econômica e social de Neemias (5:1 – 7:73a)

IV. Memórias de Esdras: segunda parte (Neemias)


A. Leitura da lei (7:73b – 8:12)
B. Adoração e confissão (8:13 – 9:37)
C. Renovação da aliança (9:38 – 10:39)
V. Memórias de Neemias: segunda parte (Neemias)
A. Repovoamento de Jerusalém (11:1 – 12:26)
B. Dedicação do muro de Jerusalém (12:27 – 13:3)
C. Mais reformas sociais e religiosas de Neemias (13:4-31)

HILL e WALTON (2011, p. 295-296)

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 87


O livro de Ester tem sua narrativa localizada na Pérsia, no período pós-
exílico. Este livro também descreve o que aconteceu aos descendentes
dos antigos cidadãos de Judá, mas centra-se sobre os judeus (o termo
começa a ser usado em Neemias e Ester), que não retornaram. Ester e
Mordecai, dois judeus que se envolveram com as obras da corte persa,
conseguiram evitar uma ameaça de todo o império persa para os judeus.
Os conceitos básicos do livro de Ester são três, a saber: (a) Deus também
age quando está nos bastidores; (b) O plano de Deus para seu povo não
pode ser frustrado; e (c) as conspirações dos ímpios estão condenadas.

ESBOÇO DE ESTER
I. Ascensão de Ester (1 e 2)
II. Mardoqueu recusa prostrar-se
A. A ira de Hamã: Mardoqueu em perigo (3:1-6)
B. Decreto de Xerxes: Israel em perigo (3:7-15)
III. Plano de livramento: Ester em perigo (4 e 5)
IV. Primeiro banquete de Ester
A. Insônia de Xerxes: Mardoqueu é lembrado (6:1-5)
B. Humilhação de Hamã: Mardoqueu é honrado (6:6-13)

VI. Destruição dos inimigos de Israel (9:1-19)


VII. Comemoração do Purim (9:20-32)
VIII. Posição resultante de Mardoqueu (10:1-13)
HILL e WALTON (2011, p. 308-309)

Assista ao vídeo: Desenho bíblico: A história de Ester


Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=arwNpMRkqZQ
Duração: 24m32s

88 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Exercício de fixação
Os livros históricos do Antigo Testamento são compreendidos
como o conjunto de escritos que descrevem a História de Israel. São
livros que, na maioria das vezes, levam o nome de seus expoentes
mais evidentes. Como são escritos narrativos, a história do povo
de Deus assumiu vários gêneros literários. Neste sentido, a lista a
seguir sintetiza alguns conceitos e situações do desenvolvimento
histórico da nação israelita, “contadas” por homens e mulheres:
1. Uma judia é feita rainha no reino da Pérsia.
2. Conquista da terra de Canaã e divisão do território.
3. Uma estrangeira adentra à nação de Israel, tornando-se uma
heroína silenciosa da fé.
4. Institucionalização da monarquia, orientada pelo ministério
sacerdotal e profético.
5. Retorno, reconstrução e repovoamento da nação.

Tomando como base os enunciados de 1 a 5, identifique abaixo o


livro histórico cujo autor seja o responsável pelo conteúdo e aponte,
dentre as alternativas abaixo, a ordem correta:
a. ( ) 1 = Ester; 2 = Josué; 3 = Rute; 4 = 1 e 2 Samuel; 5 = Esdras e
Neemias.
b. ( ) 1 = Rute; 2 = Esdras e Neemias; 3 = Ester; 4 = 1 e 2 Samuel; 5
= Josué.
c. ( ) 1 = Rute; 2 = 1 e 2 Samuel; 3 = Ester; 4 = Esdras e Neemias; 5
= Josué.
d. ( ) 1 = Ester; 2 = Rute; 3 = Rute; 4 = Esdras e Neemias; 5 = 1 e 2
Samuel.
e. ( ) 1 = Ester; 2 = 1 e 2 Samuel; 3 = Rute; 4 = Josué; 5 = Esdras e
Neemias.
Acesse o AVA para fazer o exercício!

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 89


5. A natureza da narrativa bíblica e a ética dos textos
históricos
Para iniciar este tópico, chama-se a atenção para refletir sobre a seguinte
questão:

Como você explicaria o fato de Sansão perder


sua força quando seu cabelo foi cortado (Jz
16:16-21; cf. 13:5) e recuperá-la quando seu
cabelo cresceu de volta (16:22, 28-31)?

Talvez você deva perguntar: “Por que formular este tipo de questionamento
para estudar teologia?” Ou ainda, “Como este tipo de pergunta se relaciona
com o conteúdo dos livros históricos?” Pois bem, esta questão é muito
comum em ambientes de ensino sobre a passagem de Juízes. E não é de
uma criança de 5 a 8 anos de idade. Mesmo os adultos têm dúvidas sobre
narrativas como esta aqui. É claro que a passagem de Sansão e Dalila
suscita opiniões variadas sobre a passagem. O fato é que as narrativas
bíblicas, que foram construídas com propósitos de revelar a história do
povo de Deus, precisam também ser lidas e interpretadas através de uma
perspectiva ética!

A visão ética das narrativas do AT permite ampliar os horizontes dos


acontecimentos e, consequentemente, identificar os valores (axiomas)
que os relatos (ou episódios) querem enfatizar sobre a relação de Deus
com o seu povo, bem como do seu povo com os demais povos. Afinal,
será que tudo o que Abraão, Davi e Elias fizeram em suas vidas foi
exemplar, só porque eles são os heróis da Bíblia? Sendo assim, neste
tópico, propõe-se um estudo ético sobre uma passagem bíblica, isto é, a
de Juízes 16 “A história de Sansão”.

A primeira observação a considerar sobre o relato de Sansão é que se


trata de uma narrativa simbólica. Esta orientação é dada por Gordon
J. Wenhan (2000), em seu livro “Story as Torah” (História como Torá),

90 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


pois considera a narrativa histórica com fundamentos éticos, ou seja,
providenciando uma linguagem simbólica cujos elementos revelam
valores a serem considerados pela cultura. Há que se imaginar a cena:
um personagem homem, quase um super homem, que estava fazendo
coisas grandes para o povo de Deus. Mas já parecia um pouco estranho
que a força dele dependesse do cumprimento dos seus cabelos.
Parece muito estranho, especialmente porque a Bíblia normalmente
não utiliza tais conceitos, quase mágicos, para explicar eventos. Ao ler
essa passagem com um pouco mais de atenção, outros elementos vão
acabando sendo mais estranhos ainda. Na tragicomédia Sansão é uma
figura muito alarmante. Juízes 13 suscita grandes esperanças quanto
ao seu papel como libertador (13:5), mas logo podemos observar como
Sansão fez tudo terrivelmente errado – praticamente o tempo todo.
Ele era um nazireu (uma pessoa separada para ser mais santa, cf. Nm
6:18-20), mas contaminou-se grosseiramente comendo mel silvestre da
carcaça de um leão, tocando os ossos de burro morto, casando com um
mulher filisteia (estrangeira, Dt 7:3-4), uma vez que os filisteus eram a
principal ameaça a Israel neste momento, não sendo motivado por uma
preocupação com o seu povo, mas por um desejo sexual e conduzido
por uma dívida pessoal a sua própria honra e, finalmente, terminando sua
vida com um ato de vingança pessoal. Por conseguinte, o autor de Juízes
não termina sua narrativa com a fórmula habitual de paz, com a qual ele
termina quase todos outros ciclos do seu livro.

Assim como outras narrativas, é possível ler esta aqui em vários níveis.
Não é muito difícil interpretar a história de Sansão no nível biográfico.
Você observa um líder escolhido por Deus que se comporta mal e colhe
o que plantou. Pode-se aprender muito sobre santidade e integridade
pessoal, mas existem algumas dificuldades, alguns aspectos da história
permanecem quase irreais: Sansão brincando os líderes dos filisteus
deliberadamente, colocando-se em risco para demonstrar a sua força (Jz
16). Também são encontrados alguns elementos dos contos folclóricos:
uma mulher estéril dando à luz (13); charadas (14) e, como já observado,
a força mágica (16). Esta é uma narrativa que, pela sua estranheza,
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 91
sugere que não se pode ler simplesmente pelo seu valor literal, mas sim
como uma espécie de parábola da posição de Israel em frente de YHWH:
Israel compromete a sua vocação divina, comete erros, encontra-se em
situações difíceis, é resgatado por Deus e, em seguida, é aparentemente
negligenciado, mas por fim não é abandonado. Assim Sansão pode ser
visto como simbólico para Israel.
Aqui deve-se observar como uma narrativa sobre um personagem
histórico é usado para obter uma mensagem que vai muito além de
informar sobre os acontecimentos passados. A técnica de composição
para apontar o leitor a este nível de leitura é, neste caso, colocar algumas
situações fora do comum. E lembre-se sempre: os israelitas antigos
não eram tão bobos assim: normalmente a força não está relacionado
a cabelos; e, normalmente, as colunas não podem ser destruídas com a
força de um homem.
Juízes destaca a loucura de Israel estar propenso a negar a Deus durante
todo o tempo. Assim, a insistência do autor na história de Sansão e no
controle de Deus sobre o destino de Israel reforça a mensagem central
teológica e ética dos juízes: fidelidade total a Deus é indispensável. Se
as pessoas apenas reconhecessem que Deus controlava os assuntos
humanos, eles não dariam a sua fidelidade a qualquer outro.

A segunda observação a considerar é que, além da interpretação


simbólica, é preciso também considerar o comportamento ético dos
personagens. Lendo a história, por vezes, sobre a ética das pessoas
envolvidas ou sobre o que Deus, aparentemente, aceita como um
comportamento ético provocam admiração aos leitores. Basta pensar
sobre as atitudes dos patriarcas em Gênesis e as histórias revoltantes em
Juízes. Ou as guerras em Josué. Ou os métodos questionáveis de Davi.
Certamente, o(a) leitor(a) será capaz de acrescentar coisas novas a essa
lista. Parece não ser totalmente estranho que muitas pessoas hoje em
dia tendem a rejeitar o AT por estes motivos. Como eles podem aceitar
um livro como normativo que aprova um comportamento aparentemente
muito questionável – e, às vezes, até exige isso?

92 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


O processo de deduzir a ética dos autores das histórias é bastante
difícil. É realmente bom tudo o que Abraão fez? Será que o fato de ser
o rei escolhido por Deus permitia a Davi agir da forma que agiu? Será
que o autor de Josué realmente aprovou o genocídio que Israel realizou
no processo de conquista de Canaã? Precisamos ter cuidado! Estes
questionamentos são muito bem trabalhados por John Barton (2003),
em seu livro “Understanding Old Testament Ethics” (Entendendo a Ética
do Antigo Testamento), também por Gordon J. Wenhan (2000), no livro
já citado “Story as Torah” (História como Torá) e ainda por Christopher
J. H. Wright (2004), na obra de sua autoria “Old Testament Ethics for the
People of God” (Ética do Antigo Testamento para o Povo de Deus) – tais
autores estão citados nas Referências.

Devido à relevância da leitura sobre o comportamento ético das narrativas


do AT, uma série de estudos tem surgido para guiar os interessados neste
caminho:
• É preciso ter uma perspectiva histórica: textos de épocas diferentes
podem ter pontos de vista diferentes e, sendo assim, podem diferir
dos tempos atuais.
• Não se deve tentar discernir o relatório das ações e os ideais
subjacentes.
• É preciso estar atento à avaliação literária de eventos e até mesmo
à falta dela. Muitas vezes os autores bíblicos dão o seu veredicto
nas entrelinhas, por exemplo, a maneira que um personagem se
desenvolveu, ou o fato de um autor simplesmente ficar em silêncio
sobre determinados resultados ou reações.
• É preciso estar ciente do fato de que, por vezes, como seres
humanos, há a tendência de realizar outros afazeres que Deus tem
já havia destinado inicialmente.
A questão da ética no AT nunca será fácil e difícil ao mesmo tempo,
especialmente nas histórias. Mas, ao mesmo tempo em que há bastante
cuidado para não ler esses textos de forma muito plana, consegue-se

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 93


descobrir muitas informações valiosas sobre o comportamento humano
e como lidar com ele de uma forma fiel à complexidade do mundo. Muitas
vezes, o povo de Deus atualmente tenta se orientar através de uma névoa
cinzenta. Isso não era diferente nos tempos antigos. É preciso ter os
olhos fixos em Deus e, em seguida, tentar explorar a vida a partir do ponto
de vista do amor e da justiça.

Assista vídeo: Desenho bíblico: Sansão e Dalila


Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=8YU1UnGLGPw
Duração: 44m54s
Obs.: Neste mesmo vídeo, a segunda parte está em espanhol.

Exercício de reflexão
Um dos princípios hermenêuticos (interpretativos) requerido
do(da) leitor(a) dos livros históricos é que ele(ela) saiba interpretar
as narrativas simbólicas e os comportamentos éticos dos
personagens. Neste exercício, você deverá ler o trecho dos capítulos
11:1 até 12:25 de 2Samuel. Trata-se do comportamento do rei
Davi, que tanto cobiçou Batseba, mulher de Urias, como inclusive
arquitetou o assassinato dele. Diante da leitura, faça um texto
argumentativo, trazendo à tona a interpretação deste episódio.
(mínimo de 100 palavras).
Acesse o AVA para fazer o exercício!

94 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Leituras complementares
GERSTENBERGER, Erhard S. “A Ética do Antigo Testamento: chances e
riscos para hoje”. In: Estudos Teológicos. 36 (2): 107-118, 1996.
MENDONÇA, Élcio Valmiro. “O Livro de Juízes e a História Deuteronomista”.
In: RIBLA, São Bernardo: UMESP. Texto acessado em 12/07/2019 e
disponível em:
https :�� www . metodista . br � revistas � revistas-ims � index . php � Ribla � article �
viewFile�8022�5897

Referências
BARTON, JOHN. Understanding Old Testament Ethics: Approaches and
Explorations. Louisville: Westminster John Knox Press, 2003.
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Sociedades do antigo oriente
próximo. Serie Princípios 47. São Paulo: Editora Atica, 1986.
CERESKO, ANTHONY R. A Sabedoria no Antigo Testamento.
Espiritualidade Libertadora. São Paulo: Paulus, 2004.
HARNACK, A. von. Marcion. Das Evangelium vom fremden Gott. 2ª ed.
Leipzig: [s.d.], 1924.
HILL, Andrew E.; WALTON, J. H. Panorama do Antigo Testamento. São
Paulo: Vida, 2011
LA SOR, William et. al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo:
Vida Nova, 1999.
MITCHELL, T. C., and BRITISH MUSEUM. The Bible in the British Museum.
Paulist Press, 2004.
RÖMER, t. A chamada História Deuteronomista: introdução sociológica,
histórica e literária Trad. Gentil Avelino Titton. Petrópolis: Vozes, 2008.
SATTERTHWAITE, PHILIP E., and J. GORDON MCCONVILLE. A Guide to the
Historical Books. Vol. 2. Exploring the Old Testament. InterVarsity Press, 2007.
STERBBERG, Meir. The Poetics of Biblical Narrative. Bloomington: Indiana
University Press, 1985.
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 95
WENHAM, GORDON J. Story as Torah: Reading Old Testament Narrative
Ethically. Grand Rapids: Baker Academic, 2000.
WRIGHT, CHRISTOPHER J. H. Old Testament Ethics for the People of
God. Downers Grove: Inter-Varsity Press, 2004.
ZENGER, ERICH et. al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo:
Edições Loyola, 2003.

96 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Unidade III: Os livros Poéticos
Introdução
Esta é a terceira unidade da disciplina de Bíblia II: Introdução ao
Antigo Testamento. Ela tratará sobre os livros que compõem a coleção
denominada de Sabedoria ou simplesmente Livros Poéticos. Para a
tradição protestante, tais livros correspondem ao agrupamento de Jó,
Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cantares. E, para a tradição católica,
acrescentam-se os livros de Sabedoria e Eclesiástico (Sirácida).

Há vários sentidos para a designação “Poéticos”. Em contextos linguísticos


e literários, referem-se aos recursos estilísticos da língua hebraica para
a produção de efeitos sonoros, rima, assonância, aliteração e figuras de
linguagem. E em contextos teológicos, históricos e culturais, os poéticos,
ou simplesmente poesia, denominam o conjunto de livros que tratam
de ensinamentos sobre o estilo de vida, comportamentos, orientações,
práticas litúrgicas, celebrações e ritos. E mais ainda, tais escritos
contribuem para o ensino sobre o desenvolvimento da espiritualidade
humana (judaica e cristã), através das disciplinas espirituais: meditação,
contemplação, discernimento, reflexão, entre outras.

Especificamente nesta unidade, os livros poéticos serão apresentados


enquanto resultados da produção sapiencial. Neste sentido, o(a)
estudante de teologia será introduzido ao entendimento acerca da
sabedoria, ou seja, como relacionar conhecimento, experiência, vivência,
compreensão, inteligência e ensinos. Sendo assim, a unidade está
estruturada da seguinte forma:

TÓPICO CONTEÚDO LIVRO BÍBLICO


1. A Literatura Sapiencial Provérbios
2. Perseverança, Otimismo e Vida Jó e Eclesiastes
3. Os Salmos: Gênero e Teologia Salmos
4. O cântico da vida e do amor Cântico dos Cânticos

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 97


Lembrando que aqui na FTSA, há uma ênfase direcionada à prática da
espiritualidade cristã. Ela surgiu pelo entendimento da fé em Cristo
como centro que permeia os relacionamentos entre todos. E foi em
meio à convivência multiconfessional entre os(as) estudantes, a troca
de experiências e relatos entre docentes, funcionários e alunos, que a
FTSA compreendeu os momentos de culto como espaço desta prática.
Neste sentido, a Teologia dos Salmos, enquanto adoração celebrativa,
tem proporcionado excelentes momentos de solidariedade, comunhão e
fortalecimento da fé.

A expectativa é que nesta unidade, o estudo dos Livros Poéticos favoreça


o aprendizado dentro do contexto da sabedoria cristã: as variadas
experiências da fé em Cristo e as diversas formas que as comunidades
cristãs apresentam em suas vivências de culto e liturgia.

1. A literatura sapiencial
Os livros sapienciais são um grupo de livros que se diferenciam
principalmente pela razão dos seus gêneros literários (tipologias de
textos), pois utilizam-se de uma linguagem mais poética e unificada
por uma perspectiva da vida mais filosófica. O termo sapiencial vem do
latim sapientialis e diz a respeito daquilo ou daquele que é intelectual
(erudito, racional), mas também relaciona-se com o desenvolvimento da
sabedoria (diferente de conhecimento). Na verdade, é um termo muito
difundido na antiguidade para designar sobre preceitos éticos e morais
para a vida humana.

O termo “sapienciais” é adicionado aos livros bíblicos para designar o


conjunto dos livros que ensinam os princípios fundamentais para a vida
do povo de Deus. Para a introdução deste tópico, a ênfase será sobre os
grandes temas centras e assuntos gerais desta coleção. E o estudioso
do tema Sabedoria do Antigo Testamento, Antony Ceresko, ao comentar

98 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


sobre as duas dimensões libertadoras na Bíblia, traz uma excelente
contribuição, quando diz:

“As tradições históricas de Israel falam da luta pela criação de


uma comunidade humana livre do domínio e da exploração, uma
sociedade em que os homens e mulheres viviam juntos como irmãos
e irmãs sob o regime justo e amoroso de Deus. Essas tradições
históricas destacam uma libertação política e socioeconômica.
De outro lado, os escritos sapienciais constituem um esforço em
favor da libertação pessoal, uma libertação que livra os indivíduos
das fontes psíquicas da servidão pessoal ou social – a ambição,
a luxúria ou um orgulho e uma agressividade desmesurados, por
exemplo” (CERESKO, 2004, p. 11-12).

Pode-se dizer que o projeto dos livros sapienciais consiste em conduzir


o indivíduo ao desenvolvimento de sua maturidade, enquanto ser
humano maduro, capaz de amar e ser amado. E, dentre as tradições
primitivas (orais e escritas), é comum o agrupamento de ensinamentos
que caracterizam a compreensão acerca de todos os ‘processos’ do
desenvolvimento humano: conhecimento, inteligência, experiência,
vivência, comportamento, etc.

Assista ao vídeo:
Paralelismo Quiástico - Prof. Ênio Caldeira

Saiba mais: Sabedoria mesopotâmica


Sofredor III
23 Meu amigo, minha mente é um rio cuja fonte nunca acaba
24 O volume acumulado do mar, que nunca diminui.
25 Perguntarei a você; ouça o que digo.
26 Preste atenção por um momento; ouça minhas palavras.
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 99
27 Meu corpo está acabado; a fraqueza [me] entristece,
28 Meu sucesso desvaneceu, minha estabilidade sumiu,
29 Minha força está debilitada, minha prosperidade terminou,
30 Gemidos e tristeza obscureceram minhas feições.
31 O milho dos meus campos está longe de [me] satisfazer,
32 Meu vinho, a vida da humanidade, é muito pouco para saciar.
33 Pode uma vida de alegria ser garantida? Desejaria saber como
Amigo VI
56 Ó palmeira, árvore de riqueza, meu precioso irmão,
57 Dotado de toda sabedoria, jóia de [ouro,]
58 Você é estável como a terra, mas o plano dos deuses é remoto.
59 Veja o magnífico asno selvagem na [planície;]
60 A flecha seguirá o chifrador que pisoteou os campos.
61 Venha, considere o leão que você mencionou, o inimigo do gado.
62 Para o crime que o leão cometeu o abismo o aguarda.
63 Os novos ricos opulentos que acumulam bens
64 Serão queimados na fogueira pelo rei antes do seu tempo.
65 Deseja partir como estes partiram?
66 Antes busque a recompensa duradoura do [seu] deus!
Sofredor II
67 Sua mente é vento norte, brisa agradável para os povos.
68 Amigo distinto, seu conselho é excelente.
69 Somente uma palavra coloco diante de você.
70 Os que negligenciam o deus seguem na prosperidade,
71 Enquanto os que oram à deusa empobrecem e perdem suas
posses. 72 Na minha juventude, busquei a vontade de meu deus;
73 Com prostração e súplica segui minha deusa.
74 Mas carregava corvéia sem lucro como jugo.
75 Meu deus decretou em vez de riqueza destituição.
76 O aleijado é meu superior, o lunático me sobrepuja.
77 O vadio foi promovido, mas eu fui humilhado.
100 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
Amigo XXIV
254 Ó sábio, ó erudito, que domina o conhecimento,
255 Na sua angústia você blasfema seu deus.
256 A mente divina, como o centro dos céus, é remoto;
257 Conhecê-la é difícil; os povos não a conhecem.
258 Entre todas as criaturas que Aruru formou
259 As primícias são completamente ...
260 No caso da vaca, o primeiro bezerro é pequeno,
261 O restante da prole tem o dobro do tamanho.
262 O primeiro filho é fraco.
263 Mas o segundo é chamado guerreiro heróico.
264 Embora o homem conheça a vontade de deus, os povos não a
conhecem.
Sofredor XXVII
287 Você é gentil, meu amigo; veja minha tristeza.
288 Ajude-me; olhe para a minha angústia; conheça-a.
289 Eu, embora humilde, sábio e suplicante,
290 Não tive ajuda nem socorro por nenhum momento.
291 Andei pela praça da minha cidade discretamente,
292 Minha voz não se levantou, meu falar foi baixo.
293 Não levantei minha cabeça, mas olhei para o chão,
294 Não adorei mesmo quando escravo na companhia dos meus
associados.
295 Que o deus que me lançou fora me dê auxílio,
296 Que a deusa que [me abandonou] demonstre misericórdia,
297 Pois o pastor Sarnas guia os povos como deus.
HILL e WALTON, 2011, p. 361-362

Dentro da Bíblia Hebraica, há três livros (Jó, Provérbios e Eclesiastes)


que, apesar das suas diferenças, têm muito em comum. Os acadêmicos
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 101
passaram a considerá-los como representantes de um tipo distinto
de literatura. O que estes três livros têm em comum é que eles estão
preocupados com a sabedoria. Se você usar uma concordância bíblica
e pesquisar a palavra, você encontrará o vocábulo “sabedoria” (ou os
seus cognatos) aparecendo com relativa frequência. Entende-se o termo
Sabedoria como os escritos que descrevem ou comentam, ou ainda,
ensinam sobre a experiência humana.
Há uma obra muito interessante de Ernest C. Lucas sobre os Salmos
(2003), através da qual ele propõe um guia de leitura dos salmos enquanto
compreensão da “sabedoria”, que refere-se a uma abordagem à realidade
e que pode ser descrita nos seguintes pontos de vista:

Humanista: preocupa-se com o que é bom para o homem e a mulher;

Experiencial: está enraizada em uma observação cuidadosa da vida, do


comportamento humano e da natureza;

Prática: utiliza a teoria para dar conselhos em situações da vida real; em


geral, às situações que são vistas como peculiarmente da nação israelita.

Como princípio, a literatura sapiencial não faz nenhuma menção dos


grandes momentos da história de Israel, da aliança do Sinai ou da aliança
com Davi. O templo, o seu sistema de sacrifícios e o calendário das festas
quase não são mencionados. Nem o sacerdote nem o profeta recebem
menção ao lado do “sábio” e do tolo.

Em outras partes do Antigo Testamento, a palavra hebraica para sabedoria


“hokmah” significa “habilidade”, isto é, o conhecimento prático em qualquer
esfera, desde o artesão até o político. Mas em Provérbios, hokmah é
sempre a habilidade de viver: a capacidade do indivíduo conduzir sua vida
da melhor forma possível (WHYBRAY, 1994, p. 4). Neste sentido, é muito
comum o recurso literário ser o constante uso da metáfora, acompanhando
enfaticamente da comparação. No imaginário cultural do povo judaico,
uma árvore com raízes fortes é um símbolo de sabedoria.

102 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Exercício de fixação:
“Os antigos hebreus reconheciam que a sabedoria era mais que
meros ensinos dos sábios ou o acúmulo de experiência ao longo da
vida. O objetivo básico da sabedoria hebraica era o relacionamento
adequado com Javé, o próprio Deus da Sabedoria”.
Hill e Walton, 2011, p. 352

A partir da informação acima, assinale a referência que indica o


objetivo da sabedoria hebraica.

a. ( ) “Porém os magos do Egito fizeram também o mesmo com


as suas ciências ocultas; de maneira que o coração de Faraó se
endureceu, e não os ouviu, como o Senhor tinha dito” (Ex 7:22).

b. ( ) “Como o homem pode ser puro? Como pode ser justo quem
nasce de mulher? Pois se nem nos seus santos Deus confia, e se
nem os céus são puros aos seus olhos, quanto menos o homem,
que é impuro e corrupto e que bebe iniquidade como água” (Jó
15:14,16).

c. ( ) “Não! Com Deus está a sabedoria e a força; ele tem conselho


e entendimento (Jó 12:13).

d. ( ) “Não explore os pobres por serem pobres, nem oprima os


necessitados no tribunal, [...] Não se associe com quem vive de
mau humor, nem ande em companhia de quem facilmente se ira”
(Pv 22:22-23)

e. ( ) “Por isso recomendo que se desfrute a vida, porque debaixo


do sol não há nada melhor para o homem do que comer, beber e
alegrar-se. Sejam esses os seus companheiros no seu duro trabalho
durante todos os dias da vida que Deus lhe der debaixo do sol” (Ec
8:15).
Acesse o AVA para fazer o exercício!

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 103


Ao ler os livros bíblicos, você perceberá que eles são bem diferentes das
nossas convenções literárias. Por isso, recomenda-se a utilização de
outros ‘textos paralelos’, a fim de compará-los e aproximar a identificação
dos contextos (literários e também históricos). E, de fato, descobrimos que
Jó, Provérbios e Eclesiastes não são únicos dentro do corpus da literatura
judaica antiga ou na literatura de todo o mundo do Antigo Oriente. Há dois
livros apócrifos ou deuterocanônicos que podem ser classificados como
literatura sapiencial: Jesus Ben Sirá (ou Eclesiástico; do sec. II a.C.) e
Sabedoria de Salomão (sec. I a.C.). Estes dois livros nos mostram como as
ideias e os temas encontrados na literatura sapiencial da Bíblia Hebraica
foram recebidos e desenvolvidos entre os judeus da Palestina (Ben Sirá) e
entre os greco-judeus da Diáspora de língua grega (Sabedoria).

Uma boa parte da literatura que sobreviveu desde o antigo Egito e


Mesopotâmia chegou a ser chamada de “literatura sapiencial”, devido a
sua comparabilidade com a sabedoria bíblica. Há uma maior diversidade
entre os textos que entre os três livros bíblicos, e eles claramente
ostentam a marca distintiva das suas próprias culturas. Isso leva alguns
estudiosos a hesitar em dar-lhes o rótulo de “literatura sapiencial”. No
entanto, apesar da sua diversidade, para a maioria dos estudiosos estes
textos do Egito, Israel e Mesopotâmia ainda têm bastante em comum,
logo, são razoavelmente condizentes a essa classificação. Enquanto o
material egípcio e mesopotâmico for usado com cuidado, encontraremos
nele um contexto mais amplo dentro do qual poderemos compreender os
livros bíblicos. Claro que há debates acadêmicos sobre quem copiou de
quem, ou onde essa literatura tem a sua Sitz im Leben (lugar vivencial ou
situação em vida) na sociedade israelita antiga.

É muito comum em contextos de estudo teológico (seminários e


faculdades teológicas), o(a) estudante de não assimilar muito bem que
alguns textos da Bíblia foram cópias e ou paráfrases de outros textos mais
antigos. Esta abordagem não deve/deveria perturbar os(as) alunos(as).
Seguramente, os textos bíblicos são “inspirados” e, neste sentido, tanto os
estilos como as verbes literárias de cada autor foram impressas também
104 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
na produção escrita. Neste sentido, pode-se assumir com segurança que
a sabedoria israelita era decorrente da experiência das pessoas comuns.
Essas experiências foram transmitidas informalmente, e é bem provável
que elas aconteceram em um contexto familiar e rural. No entanto,
isso não exclui a possibilidade de receber influência de fora de Israel.
Especialmente no contexto da educação formal e do contexto régio
(monarquias, impérios e exílio). Ao acessar os livros de introdução ao
Antigo Testamento, os estudantes de teologia vão encontrar argumentos
bem diferentes das hermenêuticas das comunidades cristãs. Estes
argumentos se referem aos resultados obtidos de todos os processos de
pesquisa sobre a literatura da sabedoria bíblica.

Não surpreendentemente, pode-se encontrar exemplos de literatura


sapiencial em quase todas as sociedades humanas. Muitas vezes,
a sabedoria é transmitida oralmente por ditos curtos e frases que
resumem regras para viver em um mundo complexo, observando o
mundo, comparando eventos e raciocinando para levar à sabedoria. É
teologicamente significativo que a sabedoria judaica sempre aceite como
base o conhecimento de Deus como criador, que ordenou (organizou,
deu sentido a) o seu mundo. Esta ordem deve ser reconhecida: “O temor
do Senhor é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do santo a
prudência” (Pv 9:10).

Portanto, nos livros sapienciais da Bíblia, o conceito “sabedoria” não


significa inteligência ou sabedoria intelectual, mas a capacidade de
gerenciar a vida cotidiana. Essa habilidade é baseada na observação
dos processos sempre repetidos da vida e das relações de reflexão e
transferência dessas experiências.

A seguir você ouvirá um áudio (vídeo). Trata-se da leitura do capítulo


1 de Provérbios feita por Cid Moreira. Ao ouvir, atente para as palavras
utilizadas, e considere o agrupamento dos provérbios enquanto produção
de Sabedoria do povo de Deus.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 105


Áudio: Provérbios 1 “Cid Moreira” - Duração: 6m04s
Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=jIyXaLDvv9g

Para exemplificar, então, a literatura sapiencial, o livro de Provérbios é o


mais indicado. A princípio, pode-se considerar um senso comum entre
os eruditos da sabedoria hebraica na frase “o mundo funciona assim...”
– ou seja, um pequeníssimo adágio (ditado popular) para explicar como
as “coisas se organizam na vida”. Cada sentença é um tipo de ilustração
sobre determinado assunto, com propósito de instrução para as pessoas
(leitores, ouvintes, etc).

Para iniciar o estudo panorâmico, Provérbios, na sua perspectiva


sapiencial da vida, é bastante otimista de que o mundo tem uma lógica
de bom funcionamento e que o povo sábio pode descobrir isso. Assume-
se que o mundo está em um equilíbrio de forças, equilíbrio garantido por
Deus. O mundo não é irracional, é reconhecível e confiável. O homem
bom encontra o sucesso e reconhecimento, o homem mau tropeça em
sua própria impiedade e será punido. Cada ato está sendo seguido por
um pronunciamento de reciprocidade. Essa relação é chamada a relação
de ato-consequência e Provérbios tem em grande estima esta relação.

O propósito do livro de Provérbios é fornecer instrução para um viver


bem-sucedido. Sendo assim, é um livro pedagógico que foca a educação.
Nesse contexto educativo, Provérbios lida menos com a recompensa e
punição, e se concentra mais nas consequências naturais de um ato.
Esta é a mensagem de sabedoria: Vale a pena fazer o bem, e deixar o
mal. Em seguida, irá correr bem para você.

Naturalmente, essa relação de ato-consequência tem seus limites. Já


os contribuintes de Provérbios revelam que eles têm uma visão mais
nuançada da realidade. Assim, a pobreza pode também ser o resultado
de injustiça (13:23) e não de preguiça (10:4). Injustiça também pode
levar à riqueza (16:8). E que tal uma introspecção bem profunda, tal
como: Os passos do homem são dirigidos pelo Senhor; como, pois,
106 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
entenderá o homem o seu caminho? (20:24). E, quando o indivíduo
aceita a compreensão dos limites humanos, então provoca-se em sua
consciência a noção de realidade!

Nem sempre (talvez raramente) a colheita de uma boa semente é tão boa
quanto era de esperar. Os limites deste tipo de sabedoria são alcançados
quando o indivíduo começa a deduzir a ação da consequência: “Quem é
rico é sábio e justo.”, “Quando você é pobre, você deve ter sido preguiçoso,
caso contrário não seria pobre”; “Qualquer pessoa que está doente ou
sofrendo, deve ser culpado de alguma coisa. A doença é o resultado de
mau comportamento”. Isso não é sabedoria – é uma filosofia sem amor
da classe média que alcançou prosperidade. Portanto, recomenda-se
o seguinte cuidado: a lógica da relação de ato-consequência funciona
em uma direção só! Isto é o que se descobre ao ler os livros de Jó e
Eclesiastes (que será comentado no próximo item)

Eis, pois, algumas questões sobre a literatura e teologia de Provérbios:

O que é um provérbio?
Eles não são tão fáceis de definir, mas ao observá-los, consegue as
seguintes conclusões:

• Um provérbio é breve.

• Um provérbio é baseado na experiência.

• Um provérbio muitas vezes surge da observação cuidadosa da vida e


do mundo.

• Um provérbio é expressado de forma memorável.

• Um provérbio pretende apresentar uma visão valiosa.

Assim, pode-se sintetizar o seguinte: um provérbio bíblico é uma


reflexão sobre a vida cristalizada em uma frase breve e memorável.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 107


Algumas recomendações não devem ser esquecidas: Em primeiro lugar,
uma única frase sapiencial carece de contexto. Este contexto deve ser
elaborado pelo leitor. Isso é exatamente o que faz um provérbio tão atraente
por um lado, mas por outro lado, às vezes, de difícil compreensão. Quando
há consciência disso, os dois provérbios “opostos” fazem muito sentido:

“Não respondas ao tolo segundo a sua estultícia; para


que também não te faças semelhante a ele. Responde
ao tolo segundo a sua estultícia, para que não seja
sábio aos seus próprios olhos” (Pv 26:4-5).

Muitos provérbios bíblicos são simplesmente observações “do jeito


que está” e não contém qualquer avaliação explícita. Não se deve
simplesmente assumir que a declaração de uma realidade significa a sua
aprovação. Compare o seguinte:

“O presente é, aos olhos dos que o recebem, como


pedra preciosa; para onde quer que se volte servirá de
proveito” (17:8).

“O ímpio toma presentes em secreto para perverter as


veredas da justiça” (17:23).

Lendo estes dois provérbios juntos, podemos concluir que o suborno


frequentemente funciona, mas que é errado utilizá-lo. Isso se equilibra ainda
mais, ao ler: “O que age com avareza perturba a sua casa, mas o que odeia
presentes viverá” (15:27). Nem todos os provérbios oferecem conselhos
bons – eles podem ser apenas uma observação da nossa realidade.

Finalmente, os provérbios não são leis. Eles são observações


permanentes, que descrevem a norma e não expressam o inevitável.
Isso pode ser observado a partir da perspectiva diferente no parágrafo
anterior. A vida e os seres humanos são complexos demais para serem
resumidos em uma breve frase ou para detalhar a verdade sobre uma
determinada situação. Aqueles que são sábios estão cientes de usar os
provérbios com a devida discrição.
108 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
ESBOÇO DE PROVÉRBIOS

Título e propósito (1:1-7)


Reflexões de um pai sobre o caminho da sabedoria
Discursos sobre a sabedoria (1:8 – 4:27)
Instruções sobre o casamento e a advertência contra o adultério (5-7)
Sabedoria personificada (8 e 9)
Provérbios de Salomão (10:1-22:16)
Adágios anônimos (22:17 – 24:22)
Mais adágios anônimos (24:23-34)
Mais provérbios de Salomão (25 – 29)
Apêndices
Adágios de Agur (30)
Adágios do rei Lemuel (31:1-9)
Poema acróstico anônimo sobre a esposa ideal (31:10-31)

HILL e WALTON (2011, p. 392-393)

No vídeo, a seguir, você perceberá como vários líderes fazem uso da leitura
do Livro de Provérbios, principalmente destacando e aplicando alguns dos
“ditados” que conduzem a vida humana para a obediência a Deus.

Vídeo: Resumo e alguns destaque de Provérbios.


Duração: 7m09s
Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=m3NFxS7ssYQ

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 109


Exercício de aplicação
Os cinco versos a seguir são extraídos do Livro de
Provérbios, da versão da Bíblia Almeida Revista e Atualizada.
A) “O temor do Senhor é o princípio do saber, mas os loucos
desprezam a sabedoria e o ensino” (1:7).
B) “Confia no Senhor de todo o teu coração e não te estribes no teu
próprio entendimento” (3:5).
C) “O que atenta para o ensino acha o bem, e o que confia no Senhor,
esse é feliz” (16:20).
D) “Para o insensato, praticar a maldade é divertimento; para o
homem inteligente, o ser sábio” (10:23).
E) “Filho meu, não se apartem estas coisas dos teus olhos; guarda
a verdadeira sabedoria e o bom siso” (3:21).
A partir da produção de sentido de cada um deles, indicadas pelo
grifo, é possível relacioná-los com as sínteses abaixo:
I. “sensatez, equilíbrio e juízo”
II. “critério, sensibilidade, inteligência, prudência, obtenção de
sucesso”
III. “capacidade ou habilidade”
IV. “entendimento, conhecimento, ou discernimento”
V. “experiência e ou bom senso”
PORTANTO, dentre as alternativas abaixo, assinale a que traz a
correta correspondência entre os versos e suas sínteses:
a. ( ) A=I; B=V; C=III; D=IV; E=II
b. ( ) A=IV; B=II; C=I; D=V; E=III
c. ( ) A=V; B=IV; C=II; D=III; E=I
d. ( ) A=II; B=III; C=IV; D=I; E=V
e. ( ) A=III; B=I; C=V; D=II; E=IV
Acesse o AVA para fazer o exercício!
110 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
2. Perseverança, otimismo e vida
Dentre a ampla literatura sapiencial do AT, há que considerar algumas
“conclusões” também acerca dos exemplos mais existenciais descritos
sobre a vida humana. Por exemplo, não é verdade, em seu todo enunciado,
afirmar que apenas os ímpios sofrem. Bem como, é plausível dizer que a
sabedoria infinita de Deus é a chave para reconhecer a sua justiça. Afinal,
o tema da justiça de Deus não pode ser reduzido a uma simples fórmula,
como a do princípio da retribuição (HILL e WALTON, 2011, p. 357). Neste
sentido, os temas sobre perseverança e otimismo para o ensino sobre a
vida são amplamente abordados nos livros de Jó e Eclesiastes. Neste
tópico, a ênfase de estudos será sobre eles.

Ao ler o Livro de Jó, a primeira impressão é que Deus faz o que Ele
quer. Mas vale aqui, alguns questionamentos: se a conexão entre ato e
consequência é quebrada pelo pecado e pela injustiça, o que a sabedoria
pode oferecer em uma crise? Por que o insucesso? Por que é que os
opressores são ricos e gordos? Por que é que alguns sofrem de uma
doença ou da pobreza mesmo não tendo feito nada de errado e sendo
tementes a Deus? Muitas vezes, o mundo parece estar fora de ordem.
Parece que Deus não está fazendo o seu trabalho para manter o sistema.
As respostas do padrão tradicional são bastante insatisfatórias para
explicar a causa do sofrimento. Isso pode ser visto no livro de Jó (e
mesmo em nossa própria realidade!).

Considerando que muitos alunos(as) já leram o livro ou mesmo algum


resumo do livro de Jó, há pontos interessantes que ensinam algo sobre
como lidar com algumas dificuldades na Bíblia Hebraica. A primeira delas
seria como lidar com as tensões evidentes no estilo de um determinado
livro. Em Jó, o cenário narrativo que constrói quase uma moldura ao redor
do diálogo (Jó 1-2; 42:7-17) é esteticamente bem diferente dessa parte
principal do livro, que é um diálogo de estilo alto-poético, artisticamente
tecido. Além disso, o cenário narrativo demonstra a localização de Jó
e seus amigos em Edom, sendo então, um contemporâneo de Abraão.
As outras características do livro, no entanto, sugerem fortemente os
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 111
séculos IV ou III para a sua forma final. Para complicar ainda mais, muitos
estudiosos sugerem que o capítulo 28, o poema sobre a sabedoria, não
pode fazer parte da primeira composição, por ser tão calmo e tranquilo
em sua entonação. E o que mais pode ser dito sobre estas situações?

A seguir há um pequeno vídeo, em desenho animado, resumindo a


história de Jó. São 15m26s de imagens e sons, feitos em 1ª e 3ª voz.
A relevância deste vídeo é orientar sobre como os “cenários” são
construídos simultaneamente à própria narrativa – identificar os cenários
são requisitos da interpretação de textos de sabedoria (casa, campo, céu,
etc). Vale a pena conferir!

Vídeo: A história de Jó (em desenho) - Duração: 15m26s


Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=JdxbJbq_09Y

Durante as últimas décadas, várias perspectivas mudaram


consideravelmente na área de estudos bíblicos e cada vez mais os
teólogos estão preparados para tentar ver os textos bíblicos com olhos
literários. Isso significa que eles tentam entender a Bíblia como literatura
e não como documentos arbitrários que testemunham sobre a fé dos
antigos israelitas. Como já dito, muitos suspeitam que o cenário narrativo
de Jó seja secundário, apenas porque difere no estilo e no vocabulário.
Atualmente, um consenso está se desenvolvendo, o de que a moldura
narrativa estrutura integralmente a compreensão do diálogo. Com a
narrativa, o leitor sabe muito mais do que Jó sabia. Por isso, para o leitor
nunca aparece a questão se Jó merece o seu sofrimento. Então, se torna
muito mais importante para o leitor, e também através da discussão dos
amigos dele, como o sofrimento se desenvolve teologicamente e, bem no
final, como Deus resolverá esse enigma para Jó.

O capítulo 28, com seu tom calmo, não combina com a argumentação
calorosa de Jó. O que é falado por Jó parece ser sugerido pela titulação
dada em 27:1 “Prosseguindo Jó em seu discurso, disse”. No entanto, há
uma nova posição no capítulo 29:1, que introduz um novo argumento.
112 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
Assim, podemos supor que o capítulo 28 nunca foi destinado a ser lido
como a fala de Jó, mas sim como um comentário do autor. Na verdade,
o capítulo 28 de Jó vem em um momento muito apropriado do diálogo. É
uma expressão do ponto de vista de que os humanos têm a capacidade
de compreender a sabedoria divina e que a resposta adequada a esta
questão é ter reverência a Deus e evitar o mal. Isto prepara o caminho
para os discursos divinos – e ajuda o leitor a separar mentalmente o
último discurso de Jó do diálogo anterior.

Uma nota breve sobre a questão teológica deve terminar a presente


reflexão sobre Jó. Como já observado, muitos estudiosos veem uma
aparente tensão teológica entre o epílogo e o resto do livro. Os versos
de abertura do prólogo parecem indicar a doutrina convencional de
recompensa e punição. Jó é apresentado tanto como “íntegro e reto,
temente a Deus e afastando-se do mal” e como “o maior de todos os
povos do oriente”, o leitor pode supor que existe uma ligação direta entre
a sua grande piedade e sua grande riqueza e posição social. No entanto, o
pressuposto de que sempre deveria haver tal ligação é quebrado quando
Deus aceita o desafio de Satanás, para experimentar Jó. O diálogo, em
seguida, explora as implicações do rompimento desse vínculo. Em Jó
42:7-9, Deus condena os amigos de Jó por defenderem a posição de que
deve haver uma ligação entre a religiosidade e a prosperidade. No entanto,
a restauração de Jó parece restabelecer essa ligação, contradizendo
a essência da mensagem do livro. Houve numerosas tentativas para
resolver essa aparente tensão.

Em função da quebra de ligação entre a justiça e a prosperidade, a


restauração de Jó não deve ser entendida como justiça, mas como o
fato de que o teste está terminado. Argumentou-se aqui que a arte (a
estrutura literária) do livro exigia isso. É preciso que haja uma conclusão
adequada para o teste, e qualquer término além da restauração de Jó seria
intolerável para o leitor. Outros veem no epílogo, não tanto a restauração
de Jó, mas a restauração da reputação de Deus. A aceitação de Deus ao
teste de Satanás e a aflição de Jó, no mínimo, levanta questões sobre a

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 113


preocupação de Deus com Jó. Isto precisa ser direcionado. Uma resposta
é dada, pelo menos em certa medida no epílogo, ao tratamento de Deus
para com Jó.

Em ambas as interpretações do epílogo os estudiosos salientam que


Deus age livremente, não sob a restrição de qualquer vinculação inevitável
de piedade e de prosperidade, como fora afirmado pelos amigos de
Jó. As ações de Deus no epílogo devem ser vistas como decorrentes
da liberdade de Deus. Esta liberdade é a lição a ser aprendida com os
diálogos e seu clímax nas intervenções divinas. Deus não é obrigado a
agir de acordo com uma lei rigorosa de recompensa e punição. Ele pode
agir gratuitamente para com os seus servos – e Ele age!

ESBOÇO DE JÓ
I. Prólogo (1 e 2)
II. Diálogos
A. Primeiro lamento de Jó (3)
B. Primeiro ciclo: Consolo
1. Elifaz (4 e 5)
2. Jó (6 e 7)
3. Bildade (8)
4. Jó (9 e 10)
5. Zofar (11)
6. Jó (12 – 14)
C. Segundo ciclo: O destino dos perversos
1. Elifaz (15)
2. Jó (16 e 17)
3. Bildade (18)
4. Jó (19)
5. Zofar (20)
6. Jó (21)

114 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


D. Terceiro ciclo: acusações específicas
1. Elifaz (22)
2. Jó (23 e 24)
3. Bildade (25)
4. Jó (26 e 27)

III. Interlúdio: hino à sabedoria (28)


IV. Discursos
A. Primeiros discurso: Jó
1. Memórias (29)
2. Aflição (30)
3. Juramento (31)
B. Segundo discurso: Eliú
1. Introdução e teoria (32 e 33)
2. Veredito de Jó (34)
3. Ofensa de Jó (35)
4. Conclusão (36 e 37)
C. Terceiro discurso: Deus
1. Primeira exposição (38 e 39)
2. Segunda exposição (40 e 41)
D. Conclusão de Jó (40:3-5; 42:1-6)
V. Epílogo Zofar (11)
(HILL e WALTON, 2011, p. 362-363)

Ainda sobre o livro de Jó, em hebraico, há uma distinção forte entre o artigo
determinado (definido) e o indeterminado (indefinido). Em Jó, “Satanás”
sempre contém com artigo determinado (“o Satanás”), supondo, assim que
aqui “Satanás” é um título (o acusador ou o adversário), não um nome. Só
muito mais tarde na literatura judaica - e, claro, nos escritos cristãos – encontra-
se a ideia de que “Satanás” denota um ser especificamente demoníaco.

No vídeo a seguir, há um excelente estudo do capítulo 42 de Jó, feita


pelo pregador Rev. Hernandez Dias Lopes. Atente para a maneira como
o tema “consolo” se torna a hermenêutica do pregador para interpretar e
aplicar o significado através da vida de Jó.
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 115
Vídeo: A tua vida pode ser a de Jó - Duração: 46:12
Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=pxv0ZoHyAHI

Dando prosseguimento aos temas perseverança, otimismo e vida, o


Livro de Eclesiastes é o que vai melhor lidar com o tema sobre a vida.
Este livro estabelece o insondável sentido da vida determinada por Deus.
O livro de Eclesiastes apresenta o seu autor como “Qohelet” (1:1). Aqui
esta palavra é utilizada em hebraico para evitar a decisiva tradução como
“pregador” ou talvez melhor como “professor”, pois este homem (autor)
certamente ensinava mais do que pregava.

O versículo mais conhecido de Eclesiastes é claramente 1:2 “Vaidade


de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade”
(Bíblia ARA). Isto é repetido no final de 12:8. Outro refrão no livro é 1:14
“... eis que tudo era vaidade e aflição de espírito”. Usando apenas uma
concordância, percebe-se a frequência desta palavra em todo o livro.
Há muitas variações semânticas deste termo em hebraico. E muita
especulação também! E o perigo reside em querer fazer teologia a partir
dos vários significados que ela tem. O conselho é explorar o maior
número de significados e, em trabalho de síntese, aproveitar as melhores
contextualizações. É certo que a teologia de Qohelet permite entende-la
também por “vaidade”. Mas, infelizmente, a palavra hebraica que o autor
usa (hevel) tem uma gama de significados possíveis. Os mais comuns
que têm sido relacionados à Qohelet são:
• Vaidade, no sentido da insignificância, inutilidade;
• Absurdo, no sentido do que é não é razoável ou é irracional;
• Absurdo, no sentido de que é incompreensível e misterioso;
• Efemeridade, que passa rapidamente.
O “lema” de 1:2 é seguido imediatamente pelo “tema” em 1:3: “O que
as pessoas ganham em toda a labuta em que elas trabalham sob o
sol?” A palavra chave aqui é a palavra hebraica traduzida como ganhar
116 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
(em hebraico jitron). As duas declarações devem ser interpretadas à luz
de cada uma. Cada uma fica em sua própria maneira “universal” em seu
alcance. A repetição da “vaidade de vaidades” em 1:2 é uma forma hebraica
de expressar um superlativo “completamente / totalmente inútil”, e este é
seguido por dizer “tudo é vaidade”, de modo que nada é excluído. As frases
“toda a labuta” e “sob o sol” dão a 1:3 um sentido inclusivo também.

É impressionante como as interpretações destes versículos podem


ser variadas. Crenshaw (1987) compreende esses versículos como
expressão de uma visão profundamente pessimista sobre a vida. Ele
traduz hevel como “absurdo” ou “fútil” e, portanto, 1:2 representa uma
avaliação muito negativa da vida. A palavra jitron ele traduz como
vantagem e, portanto, 1:3 expressa que os seres humanos podem não
ganhar nada, independente de todos os seus esforços. Perdue (1994), por
outro lado, interpreta Qohelet como tendo uma visão menos pessimista.
Ele vê na raiz hebraica de hevel o sentido da respiração e aponta para a
sua qualidade metafórica “efemeridade”. A vida é como um vento, uma
sombra, muito instável e breve. Para Perdue, Qohelet lamenta a brevidade
da vida e não a sua insignificância.

Estas duas concepções diferentes de 1:2-3 direcionam os leitores para


diferentes compreensões das várias passagens em Eclesiastes, que
defendem o gozo da vida (por exemplo, 3:12 e 22; 5:18; 11:8-9). Crenshaw
(1987) vê isso como algo que incentiva os prazeres em uma tentativa
sem fundamento para salvar alguma coisa além da insignificância da
vida. Com base no entendimento de Perdue (1994), essas passagens
podem ser vistas sob uma luz mais positiva. Whybray (1982) assinala
que essas passagens formam uma série através das quais há um
aumento constante de ênfase, e que o último nessa série (11:9-12,7) tem
uma posição chave no final do livro. Uma característica comum dessas
passagens é a afirmação de que todo prazer (satisfação) vem como um
dom de Deus. As exortações a aceitar o gozo da vida como um dom de
Deus podem ser vistas como, implicitamente, afirmações de que, apesar
de sua brevidade, a vida tem algumas qualidades positivas, porque Deus
não abandonou suas criaturas a uma vida de desespero completo.
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 117
Há muitas outras coisas neste livro filosófico que podem manter os
leitores da Bíblia ocupados por algum tempo. Por exemplo, a datação e
a autoria estão longe de serem fáceis de resolver. Ou a questão de saber
se Qohelet citava trechos de outros pensadores, a fim de comentar sobre
eles, ou o fato de que ele tem sim uma visão de mundo muito dualista, em
que ele tenta encontrar algum equilíbrio evitando extremos. Como esta
introdução aqui é em nível panorâmico, há a necessidade de observar
outros temas teológicos presentes em Qohelet, tais como: a grandeza
de Deus, a sua incompreensibilidade, a sua fiabilidade (confiabilidade),
a brevidade da vida, a segurança do juízo, os dons que Deus dá, os
contrastes entre seres humanos e animais. A recomendação é que todos
os versículos relevantes a respeito dos assuntos sejam observados com
as demais passagens em conjunto.

E no final, ouça os conselhos do “professor”: “E, ademais disto, filho meu,


atenta: não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da
carne!” (12:12)

ESBOÇO DE ECLESIASTES
I. Introdução (1:1-11)
II. Sa�sfação: Problema e solução
A. Problemas: Sa�sfação não pode ser encontrada
1. Na sabedoria (1:12-18)
2. Na fuga (2:1-11)
3. No legado (2:12-23)
B. Solução: Sa�sfação não pode ser procurada
1. Desfrutar a vida como dádiva de Deus (2:24-26)
2. Deus determinou as vicissitudes da vida (3:1-8)
3. Desejo de encontrar sen�do deve nos levar a Deus
(3:9-15)
III. Frustrações: Problema e solução
A. Problema: Frustrações são inevitáveis
1. A vida é injusta e depois vem a morte (3:16-22)
2. Frustração de ser ví�ma
a. Ví�ma de opressão sem defensor (4:1-3)
118 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
b. Ví�ma da própria cobiça (4:4-6)
c. Ví�ma da solidão (4:7-12)
d. Ví�ma da fu�lidade (4:13-16)
e. Não buscar alívio com votos (5:1-7)
3. Frustração do suborno
a. Ví�ma de injus�ça polí�ca (5:8,9)
b. Não buscar riqueza como alívio (5:10-6:9)
4. Sem perspec�va de mudança (6:10-12)
B. Solução: Frustrações não podem ser evitadas
1. Aprender com as dificuldades da vida (7:1-12)
2. Aceitar prosperidade e adversidade como proveniente
de Deus (7:13-18)
3. Não esperar encontrar jus�ça ou sabedoria no mundo
IV. Normas para traçar plano de vida
A. Viver sob autoridade, mas não esperar que o governo
resolva seus problemas (8-1:9)
B. Viver como se o princípio da retribuição fosse verdadeiro,
mas não esperar seus resultados nesta vida (8:10-14)
C. Não esperar ter todas as respostas (8:15-17)
D. Este é um mundo perdido que só tem a morte a oferecer
(9:1-6)
E. Desfrutar da vida que Deus concedeu (9:7-10)
F. Esperar o inesperado (9:11-12)
G. Sabedoria é melhor que força
1. 1. Muita sabedoria pode ser desfeita por pouca insensatez
(9:13-10:1)
1. 2. Resultados e conduta da insensatez (10:2-20)
H. Ter cautela e preparo, mas não se deixar paralisar (11:1-6)
I. Desfrutar a vida, mas lembrar da responsabilidade (11:7-
10)
J. Não esperar a velhice para ter perspec�va correta da vida
(12:1-8)
V. Colofão (questões finais) (12:9-14)

HILL e WALTON, 2011, p. 361-362

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 119


SAIBA MAIS: Significado do livro de Eclesiastes
Disponível em: h�ps://umsocorpo.com.br/significado-do-livro-de-eclesiastes/

O Livro de Eclesiastes não identifica diretamente o seu autor. Há


alguns versículos que dão a entender que Salomão escreveu este livro.
Existem alguns indícios no contexto que podem sugerir que uma outra
pessoa escreveu o livro após a morte de Salomão, possivelmente
centenas de anos mais tarde.

Autor: O Livro de Eclesiastes não identifica diretamente o seu autor.


Há alguns versículos que dão a entender que Salomão escreveu este
livro. Existem alguns indícios no contexto que podem sugerir que uma
outra pessoa escreveu o livro após a morte de Salomão, possivelmente
centenas de anos mais tarde. Ainda assim, a crença convencional é
que o autor era na verdade Salomão.

Quando foi escrito: O reinado de Salomão como rei de Israel durou de cerca
de 970 AC até cerca de 930 AC. O livro de Eclesiastes foi provavelmente
escrito no final do seu reinado, em aproximadamente 935 AC.

Propósito: Eclesiastes é um livro de perspectiva. A narrativa do


“Pregador”, ou “Sábio”, revela a depressão que inevitavelmente resulta
da procura da felicidade em coisas mundanas. Este livro dá aos
Cristãos a oportunidade de ver o mundo através dos olhos de uma
pessoa que, apesar de muito sábio, está tentando encontrar sentido
em coisas humanas e temporárias. Quase todas as formas de prazer
mundano são exploradas pelo Pregador, e nenhuma delas lhe dá
sentido algum.

No final, o pregador chega a aceitar que a fé em Deus é a única


maneira de encontrar um significado pessoal. Ele decide aceitar o fato
de que a vida é breve e, no fim das contas, inútil sem Deus. O pregador
aconselha o leitor a concentrar-se em um Deus eterno, em vez de
prazer temporário.

120 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Versículos-chave: Eclesiastes 1:2: “Vaidade de vaidades, diz o
Pregador; vaidade de vaidades, tudo é vaidade.”

Eclesiastes 1:18: “Porque na muita sabedoria há muito enfado; e quem


aumenta ciência aumenta tristeza.”

Eclesiastes 2:11: “Considerei todas as obras que fizeram as minhas


mãos, como também o trabalho que eu, com fadigas, havia feito; e eis
que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nenhum proveito havia
debaixo do sol.”

Eclesiastes 12:1: “Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade,


antes que venham os maus dias, e cheguem os anos dos quais dirás:
Não tenho neles prazer.”

Eclesiastes 12:13: “De tudo o que se tem ouvido, a suma é: Teme a


Deus e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo
homem.”

Resumo: Duas frases são repetidas muitas vezes em Eclesiastes. A


palavra traduzida como “vaidade” aparece muitas vezes e é usada
para enfatizar a natureza temporária das coisas mundanas. No fim
das contas, mesmo as conquistas humanas mais impressionantes
serão deixada para trás. A expressão “debaixo do sol” ocorre 28
vezes e refere-se ao mundo mortal. Quando o pregador se refere a
“todas as coisas debaixo do sol”, ele está falando de coisas terrenas,
temporárias e humanas.

Os sete primeiros capítulos do livro de Eclesiastes descrevem todas as


coisas mundanas “debaixo do sol” nas quais o Pregador tenta encontrar
satisfação. Ele tenta descobrimentos científicos (1:10-11), sabedoria e
filosofia (1:13-18 ), alegria (2:1), álcool (2:3), arquitetura (2:4), bens (2:7-
8) e luxúria (2:8). O Pregador concentrou-se em filosofias diferentes
para encontrar um significado, tal como o materialismo (2:19-20) e até
mesmo os códigos morais (incluindo os capítulos 8-9).

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 121


Ele descobriu que tudo era vaidade, uma distração temporária que,
sem Deus, não tinha nenhum propósito ou longevidade.

Os capítulos 8-12 de Eclesiastes descrevem as sugestões e


comentários do Pregador sobre como a vida deve ser vivida. Ele chega
à conclusão de que, sem Deus, não há nenhuma verdade ou sentido à
vida. Ele já tinha visto muitos males e percebido que mesmo as melhores
realizações do homem não valem nada a longo prazo. Assim, ele aconselha
o leitor a conhecer a Deus desde a juventude (12:01) e seguir a Sua vontade
(12:13-14).

Prenúncios: Para todas as vaidades descritas no livro de Eclesiastes,


a resposta é Cristo. De acordo com Eclesiastes 3:17, Deus julga os
justos e os ímpios, e os justos são apenas aqueles que estão em
Cristo (2 Coríntios 5:21). Deus colocou o desejo pela eternidade em
nossos corações (Eclesiastes 3:11) e tem providenciado o Caminho
da vida eterna através de Cristo (João 3:16). Somos lembrados de que
ir atrás da riqueza do mundo não só é vaidade, porque não satisfaz
(Eclesiastes 5:10), mas mesmo se pudéssemos alcançá-la, sem Cristo
perderíamos nossas almas e que proveito há nisso? (Marcos 8:36).
No fim das contas, cada decepção e vaidade descrita em Eclesiastes
encontra a sua solução em Cristo, na sabedoria de Deus e no único
verdadeiro significado a ser encontrado na vida.

Aplicação Prática: Eclesiastes oferece ao Cristão a oportunidade de


compreender o vazio e o desespero com os quais aqueles que não
conhecem a Deus têm que lidar. Aqueles que não têm uma fé salvadora
em Cristo se deparam com uma vida que no fim das contas vai acabar
e tornar-se irrelevante. Se não há salvação, e não há Deus, então não
existe nenhum sentido, propósito ou direção para a vida. O “mundo
debaixo do sol”, longe de Deus, é frustrante, cruel, injusto, breve e total
“vaidade”. No entanto, com Cristo a vida é apenas uma sombra das
glórias por vir em um paraíso que só é acessível por meio d’Ele.

122 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Exercício de fixação
Qohelet é um termo hebraico para “professor”, “mestre”, “pregador”,
entre outros. Não se sabe ao certo se tal termo é um nome
próprio, pseudônimo ou ainda um título ou função. Pela tradição
literária, atribui-se este livro ao “filho de Davi, rei em Jerusalém”
– provavelmente Salomão. Das informações abaixo, qual delas
alinha-se adequadamente com o significado de Qohelet?
a. ( ) O autor de Qohelet é dado a Salomão porque ele era sábio.
b. ( ) A mensagem de Qohelet é que a vida a ser buscada é
centrada em Deus.
c. ( ) A sabedoria só se alcança pela leitura de Qohelet.
d. ( ) A mensagem central de Qohelet é fazer com que o indivíduo
espere pela ação do governo para resolver seu problema.
e. ( ) Qohelet ensina que a vida é a satisfação pela conquista dos
bens, pela procriação e pelo legado deixado.

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3. Os Salmos: gênero e teologia


Nem todos gostam de poesia. Afinal, ler poemas sempre requer o
esforço um pouco maior do que ler outras formas da literatura. É preciso
saber distinguir um poema de um texto que não é um poema. A rima é
importante quando se trata de poemas. Mas há outros elementos que
caracterizam a natureza de um poema, tal como as figuras de linguagem
utilizadas. E o que dizer a respeito das canções? São poemas as canções?
É possível descrever os hinos antigos da igreja como poemas, ou melhor,
as músicas mais recentes das marcas Hillsong, Vineyard e outros mais?
Neste tópico, você irá descobrir alguns aspectos básicos da poesia
hebraica. Quando se trata de Salmos, amplia-se o estudo sobre os
diferentes tipos de Salmos e aspectos teológicos (como vingança
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 123
e retaliação, gratidão e louvor, confissão e contrição, entronização e
reinado, etc).

Os textos poéticos do Antigo Israel não têm a aparência que normalmente


espera-se para os poemas. Eles não rimam. Mesmo quando são lidos
em hebraico, não rimam. Você pode já ter observado isto, lendo poesia
moderna. Alguns poetas modernos escrevem sem rima. Geralmente, na
poética a linguagem é utilizada com fins estéticos. Isso significa que
o poeta normalmente toma grande atenção com a forma do texto e
com a escolha das palavras. Um poeta bom pode comunicar emoções
e sutilezas que um texto de prosa não pode transmitir. “A poesia é a
mínima distância entre o sentimento e o papel” (Levi Trevisan). Então,
quando se lê poesia, deve-se interrogar menos “Que é isto?” e mais “Que
significa isto?” Poemas querem abrir – ou até construir – um mundo
de significado. Normalmente, neste mundo, encontramos bastante
metáforas, linguagem indireta, repetições e exageros.

Tudo isso não é diferente com a poesia hebraica. A forma literária mais
utilizada neste grupo de textos é o parallelismus membrorum (paralelismo
das partes). Os poetas do Antigo Israel criaram textos que vivem de
diferenças sutis no significado de palavras ou de expressões. É um
processo semântico onde uma linha expressa uma ideia e a linha seguinte
a mesma coisa, mas com palavras diferentes. A linha “A” é secundada da
linha “B”. Podemos observar três tipos gerais de paralelismo:

A mesma ideia é repetida em ambas as


linhas (Sl 33,10-11):
O SENHOR desfaz o conselho dos gentios,
• Paralelismo sinônimo: quebranta os intentos dos povos.
O conselho do SENHOR permanece para
sempre; os intentos do seu coração de
geração em geração.

124 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


A segunda linha contrasta o que é dito na
primeira linha (Sl 30,5):
Porque a sua ira dura só um momento; no
• Paralelismo antitético: seu favor está a vida.
O choro pode durar uma noite, mas a alegria
vem pela manhã.

Aqui são colocados todos os versículos


em que a segunda linha nem repete nem
contrasta a primeira. Relações possíveis
• Paralelismo sintético: seriam explicação ou intensificação. Só
quando lidos como síntese estas linhas
fazem bom sentido.

Obviamente, não é possível pressionar cada frase da poesia bíblica a


este sistema. E poesia hebraica também é muito mais do que “arquétipos
de pensamento” (sinonímia, antinomia...). Requer do leitor, estudioso e
ouvinte a necessidade ir além do significado das palavras, mas também
dos sentidos produzidos. Neste sentido, o estudo da linguagem é sempre
mais complicado, pois não se estuda apenas a semântica, mas também
a morfologia e a sintaxe das palavras e das expressões. Portanto, deve-
se observar os seguintes aspectos da poesia hebraica:

• Concisão: as frases muitas vezes parecem ser muito curtas, mesmo


faltando palavras que seriam gramatical ou semanticamente necessárias.
(Sl 12,3: O SENHOR cortará todos os lábios lisonjeiros, a língua que fala
soberbamente.);

• Paralelismo gramatical (de palavras individuais ou de unidades


sintáticas);

• Paralelismo fonológico (algumas linhas jogam com o som das palavras;


Sl 32,1 – é claro que você só ouve na leitura em hebraico: Bem-aventurado
aquele cuja transgressão é perdoada (nesui), e cujo pecado é coberto (kesui);
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 125
• Utilização de pares de palavras: homem/mulher, céu/terra, fidelidade/
verdade, acordar/dormir... (Sl 115,16: Os céus são os céus do SENHOR;
mas a terra a deu aos filhos dos homens);
• Ritmo, mas esta é uma característica bastante difícil e muito variável
(algo somente visto no original hebraico);
• Linguagem figurada: já temos observado isso quando refletindo sobre
poesia em geral. Frequentemente não podemos entender literalmente (Is
55,12: Os montes e os outeiros romperão em cântico diante de vós, e
todas as árvores do campo baterão palmas.).

LEMBRETE:

Por que isso é importante para nós? Bem, basicamente você não pode
ler a poesia como outros textos não-poéticos. Muitas vezes, uma
leitura literalmente não faz sentido – e não deve nos assustar. Como
sempre: não é tão importante interpretar a Bíblia literalmente, mas
interpretá-la corretamente! A consciência de suas características
literárias ajuda muito a evitar as armadilhas exegéticas. Não é fácil
dominar a abordagem literária, mas é um caminho de estudo muito
abençoador!

Dentro do cânon, os Salmos ocupam uma posição especial. Neste livro, di-
ferentes linhas do Antigo Testamento são juntadas. Aqui, há retrospecção
da história de Israel (Sl 78, 106 e outras), há elementos proféticos (Sl 50
e em outros lugares), e textos de sabedoria (Sl 1, 49 e outras). O saltério
combina o que em outras partes do cânon fica para si. O saltério guia o lei-
tor na oração, um caminho de lamento a louvor. No início do livro superam
os salmos de lamento, mas no final todo mundo se junta no louvor a Deus.
Este é o caminho por onde cada salmo de lamento quer levar o orador.
Também é a linha principal que atravessa todo o livro.

Como um “livro de orações da Bíblia”, o saltério é indispensável para a

126 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


igreja do Novo Testamento. Ele ensinava como podia-se falar com Deus
e mostrava Deus como o todo-poderoso é misericordioso, um Deus que
se volta para o seu povo em cada necessidade, demonstrando que só Ele
merece toda honra!

O Livro dos Salmos é na verdade uma coleção de diferentes tipos de


poesia, que abrange muitos séculos de história (de 1100 a.C., os Sl 29 e
68, a c. 400 aC, o Sl 119), e atinge – essencialmente – a sua forma atual
em torno de 300 a.C. Esta forma atual é uma unidade ou só uma coleção
arbitrária de textos independentes? Através da leitura são reconhecidas
várias características diferentes de formação, mas estes estruturam o
livro apenas em parte, não o livro inteiro. A mais óbvia é a divisão dos 150
Salmos em cinco livros. No final de cada livro tem uma doxologia breve
(ZENGER, 2003, p. 314). Tabela do Zenger, p. 314

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 127


Através destas cinco partes do Saltério é formalmente criada o paralelo
ao Pentateuco. No entanto, não se pode determinar uma correlação mais
extensa ou profunda. Até aqui, enfatiza-se que o saltério é realmente um
livro (uma coleção de salmos). Lendo todos os salmos, descobrem-se
muitos grupos de Salmos que são compostos deliberadamente juntos.
Um exemplo: os Salmos 26 a 32 começam com três salmos de pedido
(26-28) que correspondem aos três salmos de agradecimento (30-32).
No centro, Salmo 29, celebra-se Deus como um rei que salva o seu povo.
Após um período de focalizar o contexto histórico do texto bíblico, no início
do século XX, estudiosos da Bíblia concentrarão sua atenção sobre o próprio
texto bíblico. Um dos primeiros e mais importantes desenvolvimentos que
surgiram a partir dessa mudança foi o reconhecimento de que muitos dos
Salmos têm padrões recorrentes de estrutura, o fluxo do pensamento, e
até temas e técnicas de composição. A partir deste reconhecimento, os
acadêmicos desenvolveram um campo de estudo chamado de “método
histórico-formal” ou “análise das formas”.
Este método de estudo começa com o entendimento de que os aspectos
de uma cultura particular que ocorrem em ocasiões repetidas e regulares,
como as práticas religiosas, tendem a assumir uma estrutura ou formas
estáveis. Isto pode ser visto em quase todos os cultos de adoração, quando
a sequência do culto é relativamente previsível, uma vez que muitos
aspectos do culto são repetidos a cada semana. Em muitos casos, por
exemplo, podemos prever com muita precisão as palavras exatas que uma
certa pessoa vai usar em oração. É por isso que muitas igrejas desenvolvem
uma Ordem de Culto (liturgia) para estruturar esses elementos recorrentes.
É natural responder aos estímulos que são familiares e reconhecíveis,
e estes sinais comunicam para os adoradores muito mais do que
simplesmente o que as próprias palavras dizem. Eles evocam uma gama
completa de pensamentos, sentimentos ou experiências, simplesmente
porque são conhecidos e repetidos. Pode-se até fazer comédias sobre a
familiaridade de algumas dessas formas. Por exemplo, até certo ponto
verdadeiro, um pastor que, quando chegou ao ponto de seu sermão, em
que disse “em conclusão”, todo mundo sabia que isso significava apenas
trinta minutos mais de pregação!
128 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
Um dos usos mais óbvios dessas formas ocorre em orações, simplesmente
porque elas são repetidas tantas vezes. Especialmente as orações antes
das refeições tendem a assumir uma qualidade ritual com as mesmas
palavras ou frases usadas repetidamente. Isso não é necessariamente
negativo, pois essa repetição dá estrutura para a ocasião e fornece sinais
para que as pessoas, em determinadas atividades, saibam o que está
ocorrendo e as respostas que são esperadas.
Desde quando o Saltério é uma coleção de orações da comunidade de fé,
não é surpreendente que encontremos nessas estruturas as repetições e
os métodos convencionais de expressão. Mesmo que haja uma grande
variedade nos salmos – e cada salmo tenha o direito de ser lido em uma
base individual –, há também muitos aspectos que são partilhados:
importantes elementos estruturais, as formas padronizadas de se referir
aos problemas enfrentados pelos indivíduos ou a comunidade, e como
expressar os gritos de ajuda. É esta estrutura que dá provas de que os
Salmos eram parte da vida espiritual pública do Antigo Israel, bem como
fornecer-nos com algumas ferramentas para compreender melhor a
importância teológica dessas orações (LUCAS, 2003, p. 1-28).
A maioria dos estudiosos da Bíblia concordam em apresentar o estudo
dos salmos a partir do gênero literário que eles assumem. Os estudiosos
concordam no seguinte sistema de classificação dos salmos:

• Hinos
• Louvor geral de Deus
• Salmos celebrando Deus como Rei
• Salmos de Sião (46, 48, 76, 84,87, 122)
• Salmos de Lamentação
• Individuais
• Coletivos
• Salmos de Ações de Graça (Todah)
• Individuais
• Coletivas
• Salmos reais
• Tipos menores: Salmos da Confiança, Salmos Sapienciais...

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 129


Hinos - Tendem a seguir uma estrutura tríplice simples:

Tipo: Hino

• Eles abrem com uma chamada para louvar a Deus;


• A parte maior dá os motivos de louvor;
• O salmo encerra com um apelo renovado para adorar;

Salmo 117 é um exemplo:


Louvai ao SENHOR todas as nações,
louvai-o todos os povos.
Porque a sua benignidade é grande para conosco,
e a verdade do SENHOR dura para sempre.
Louvai ao SENHOR.

A função de um Hino ou “Salmo de Louvor descritivo” (Westermann)


é a de louvar a Deus porque ele é Deus, e o povo dele sabe que Ele é
porque “grita” por Ele e Ele agiu. Enquanto os Salmos de Ações de Graça
começam com a libertação de Deus na história e finalizam com louvor, os
hinos assumem a libertação e as ações de Deus na história, e louvam a
Deus por ser o tipo de Deus que age de determinadas maneiras.

Os hinos são um pouco mais distantes das ações de Deus na história e


não são em resposta a qualquer experiência particular ou imediata de
Deus. Enquanto eles estão solidamente assentes na compreensão de que
Deus agiu no passado na vida das pessoas e da comunidade, os hinos
se desenvolvem além da experiência imediata para uma estabilidade na
vida que permite a reflexão sobre a natureza e o caráter de Deus como
aquele que oferece e proporciona.

130 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Salmos de Lamentação
Consistem no maior grupo no saltério. Mais ou menos uma terceira parte
dos salmos pertence a este tipo. Eles expressam a reação do autor a
Deus quando enfrenta uma situação de necessidade ou aflição. Sua
estrutura é relativamente flexível: nem todos os elementos aparecem em
todos os salmos e nem sempre na mesma sequência.

Tipo: Salmo de Lamentação

• Endereço a Deus, Invocação;


• Reclamação a Deus (descrição do problema: uma crise de
qualquer tipo; em salmos penitenciais é o pecado; uma reivindicação
de inocência; uma condenação do “mau” ou do “inimigo”;
• Afirmação de Confiança (“Mas, quanto a mim” ou “Não
obstante”; isto, às vezes, é o ponto de viragem do salmo);
• Petição (para a intervenção de Deus; muitas vezes usa-se a
expressão “salvar” ou “entregar”);
• Aviso de Resposta (voto de louvor, de adoração);
• Exclamação de louvor.

Um bom exemplo deste tipo é Sl 54 (lamentação individual):

Invocação de 1. Salva-me, ó Deus, pelo teu nome, e faze-me


Deus justiça pelo teu poder.
2. O Deus, ouve a minha oração, inclina os teus
Petição
ouvidos às palavras da minha boca.
3. Porque os estranhos se levantam contra mim,
Reclamação e tiranos procuram a minha vida; não têm posto
Deus perante os seus olhos.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 131


Afirmação de 4. Eis que Deus é o meu ajudador, o Senhor está
confiança com aqueles que sustêm a minha alma.

Chamada de 5. 5 Ele recompensará com o mal os meus


Vingança inimigos. Destrói-os na tua verdade.

6. Eu te oferecerei voluntariamente sacrifícios;


Voto
louvarei o teu nome, ó SENHOR, porque é bom.

7. Pois me tem livrado de toda a angústia; e os


Exclamação de
meus olhos viram o meu desejo sobre os meus
Louvor
inimigos.

A função de um Lamento é fornecer uma estrutura para a crise, mágoa,


tristeza ou desespero, para mover o adorador da dor à alegria, da escuridão
à luz, do desespero à esperança. Esse movimento da dor à alegria não é
só uma experiência psicológica ou litúrgica, ainda que as inclua. E não é
uma libertação física da crise, ainda que muitas vezes seja a antecipe. O
movimento para “fora das profundezas” é profundamente espiritual.

O significado teológico de um lamento é a expressão da confiança em


Deus, mesmo na ausência de qualquer prova de que ele está ativo no
mundo. Através de uma estrutura sequencial e deliberada, o lamento se
movimenta da articulação da emoção na crise à petição para que Deus
intervenha, a uma afirmação de confiança em Deus mesmo que não haja
a libertação imediata da crise.

Salmos de Ações de Graça


Podem ser chamados também Salmos de Todah – essa palavra hebraica
significa “agradecimento”. Estes Salmos são ligados às Lamentações
que quase sempre incluem um voto de agradecimento ou de um sacrifício
de agradecimento. Este sacrifício é especial, pois apenas uma parte do
animal é queimada no altar, o resto é levado para casa pelo adorador para
fazer uma festa – um churrasco, se quiser – para os amigos e a família.
132 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
Assim, todos podem juntar-se na ação de graças e louvor a Deus. Todah
é um tipo de louvor oferecido a Deus para testemunhar à comunidade o
que Deus fez. Este fato coloca a “ação de graças” firmemente no culto da
comunidade como um sinal visível de louvor a Deus por sua graça.

Este tipo de Salmo tem uma estrutura tríplice:

Tipo: ação de graça


• Introdução que envolve o nome de Deus (Javé). Pode incluir uma
declaração da intenção de agradecer a Deus e pode ser expandido por
várias adições hínicas;
• A seção principal é basicamente um relato da experiência do salmista
(isto pode incluir uma descrição de seu estado anterior de angústia; uma
oração de libertação, que foi proferida neste estado; uma conta do ato
de Deus da libertação; uma referência para o cumprimento do seu voto);
• Conclusão, incluindo muitas vezes uma exortação ao louvor a Deus.

Salmo 116 é um bom exemplo deste tipo:

1-2 Introdução: invocação de Deus


3 - 11 Relato da experiência
12 - 19a Intenção de cumprir a promessa
19b Exortação ao louvor.

Salmos Reais (Régios)


Estes salmos formam um grupo de cânticos unificados por seus
conteúdos, embora sejam de vários tipos. O tema revolve em torno da
relação entre Deus e o rei. Os Salmos 2, 18, 20, 21, 45, 72, 89, 101, 110,
132, 144 são geralmente considerados Salmos Reais. Segundo Günkel,
famoso estudioso dos salmos, a configuração original dos Salmos
Reais foi a coroação do rei de Israel. Contudo, eles foram preservados e
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 133
adaptados para outros usos muito tempo depois de a monarquia chegar
ao fim. O restante de seu propósito original é óbvio e ajuda a compreender
algumas das características destes salmos.

Salmos Sapienciais
Os Salmos Sapienciais são assim chamados porque eles compartilham
características com as tradições de sabedoria do Antigo Testamento (Jó,
Provérbios, Eclesiastes) em termos de estrutura literária, vocabulário e
conceitos. Eles lidam frequentemente com temas como as injustiças
da vida e a justiça de Deus, a responsabilidade de escolher o caminho
correto ou o modo de vida, o valor relativo das riquezas e a natureza
transitória da existência humana.

Poemas da Lei
Os Poemas da Lei, que incluem o Salmo 119, são simplesmente salmos
que refletem sobre o valor de viver uma vida boa pelas instruções de
Deus preservada na Torá. Tematicamente, eles estão perto dos salmos
de agradecimento, em que a Torá é celebrada como um dom gratuito de
Deus, pela qual Ele fornece instruções para viver bem a vida no mundo
que Ele criou.

Há vários outros livros que classificam os Salmos em grupos maiores


que os aqui apresentados. Todavia, a classificação colocada aqui, ajudará
os(as) estudantes de Teologia a compreender panoramicamente o livro
dos Salmos.

Vídeo: Livro de Salmos


Duração: 5m
Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=zqSlz39UoRo

134 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


É preciso também comentar sobre a Teologia dos Salmos, ou seja, o que
eles querem ensinar a respeito de Deus e a relação com o seu povo. Na
década de 1980, alguns estudiosos tiveram a ideia de estudar o livro dos
Salmos como uma unidade, ainda que o estudo por temas fosse a mais
utilizada. Isso significa que eles procuraram uma macroestrutura, temas
teológicos que atravessam todo o livro e uma intenção principal do livro.

Alguns têm entendido o Saltério como tendo uma forte perspectiva


escatológica: livros 1-3 descrevem o fracasso da monarquia davídica,
livro 4 responde a isso com a afirmação de que realmente Deus é rei e
termina com um apelo para restaurar a nação (Sl 106) e o livro 5 mostra
que este fundamento será atendido desde que haja confiança da nação
em Deus e que viva de acordo com a lei.

Outros viram Salmos como instrução: ele deve ser lido como uma
fonte de instrução divina para viver justamente. Eles seguem o
exemplo dado pelos Salmos 1, 19 e 119. O principal a ser aprendido
é que “Deus é rei”. Devido a este fato toda a criação é chamada para
adorar a Deus e, portanto, o elogio é o verdadeiro objetivo de toda vida
humana. Mas o elogio não vem sempre com facilidade, muitos salmos
introduzem a ideia de que precisamos continuar a obedecer, servir e
louvar a Deus, mesmo no meio da angústia e do sofrimento (cf. Sl 73
- o salmo no meio do livro!).

Um tema teológico que muitas vezes surge na igreja é como compreender


os salmos da vingança. Basta ler Salmo 139. Este Salmo é tão amado –
mas só quando se deixa de fora os versos 19-22! Leia também Sl 58,6-
11; 69,22-28; 83,9-18; 109,6-20; 137,7-9; 149,5-9. Como isso refere à
ideia de Jesus amar os nossos inimigos? Qual é a sua resposta a essas
passagens? [Tais perguntas são só para pensar, mas com certeza haverá
algum momento em que elas poderão ser contextualizadas e anunciadas
nas comunidades!].

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 135


John Wesley proibiu que essas passagens fossem cantadas em suas
igrejas. Erich Zenger (2003), um teólogo católico atual, defende que
não podemos desmerecer estas passagens como subcristãs. É preciso
reintroduzi-las em nossa adoração! Zenger está vendo esses salmos no
paradigma de Deus como criador e juiz supremo do mundo. Em um mundo
cheio de pecado e maldade, a justiça de Deus é um sinal de esperança,
não de medo. “Justiça” é uma palavra “boa” na Bíblia. Significa que as
pessoas podem esperar que Deus irá trazer-lhes justiça, mesmo que eles
só possam sonhar com isso em sua situação presente. Deus irá, no final,
fazer tudo como deve ser!

Assim, encontram-se nos Salmos as expressões de quem está sofrendo


de opressão e deseja ardentemente que a justiça seja feita por Deus. É
melhor o salmista esperar Deus agir, do que ele mesmo recorrer a uma
vingança pessoal. O conceito moderno do pecado como individual tem
levado muitos cristãos a negligenciar a realidade da injustiça social (que
era uma característica comum das experiências do Antigo Israel). Estes
salmos dão às vítimas da injustiça um meio de expressar seu sofrimento
e desafiam aqueles que tentam ignorar esta realidade brutal. Zenger
destaca o fato de que tem a ver com uma linguagem poética e, portanto,
deve-se esperar palavras fortes. O povo pode falar com Deus sobre
absolutamente tudo. E viver não é somente levantar e acenar com as mãos
na igreja e falar sobre o Deus maravilhoso e lindo que a comunidade tem.
Às vezes, Deus parece muito distante e escuro – o Deus Absconditus
famoso de Martinho Lutero. Esta é a realidade do povo que crê (cristão),
ou seja, ser capaz de refletir isto nas comunidades de adoração.

Vídeo: Salmo 23 em hebraico


Duração: 6h
Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=yQMsgwx0Hig

136 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Exercício de aplicação
O Salmo 100 é par excellence mais utilizado nas liturgias das
comunidades cristãs, especialmente aos cultos de domingo.
Abaixo, transcreve-se na íntegra o referido cântico, apresentado
pela versão da Bíblia Almeida Revista e Atualizada:
1 Celebrai com júbilo ao Senhor, todas as terras.
2 Servi ao Senhor com alegria,
apresentai-vos diante dele com cântico.
3 Sabei que o Senhor é Deus;
foi ele quem nos fez, e dele somos;
somos o seu povo e rebanho do seu pastoreio.
4 Entrai por suas portas com ações de graças
e nos seus átrios, com hinos de louvor;
rendei-lhe graças e bendizei-lhe o nome.
5 Porque o Senhor é bom,
a sua misericórdia dura para sempre,
e, de geração em geração, a sua fidelidade.
A partir dos termos em destaque e do conteúdo apresentado pelo Salmo
100, assinale a alternativa abaixo que corresponde à comunidade que
se projetará em seu entorno como efeito da influência deste salmo em
sua vida litúrgica:
a. ( ) O louvor feito pelas comunidades cristãs representa a maneira
como Deus aceita a gratidão da nação.
b. ( ) O interessante do júbilo é que ele acontece em contexto de festas;
neste sentido a páscoa é a maior festa cristã para uma comunidade dar
testemunho à sociedade.
c. ( ) No contexto do Salmo, os Cânticos de Louvor eram realizados no
Templo. Logo, a comunidade cristã precisa apresentar a gratidão em
templos consagrados.
d. ( ) O Salmo 100 é considerado o louvor dado a Jesus através da igreja.
Neste caso, os cristãos são os representantes da gratidão a Deus.
e. ( ) A gratidão é uma excelente virtude cristã a ser oferecida à
sociedade, pois ela reflete a ação de Deus com o seu povo;

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 137


4. O cântico da vida e do amor
Cântico dos Cânticos foi “o livro mais frequentemente interpretado
da cristandade medieval” (E. Ann MATTER, 1992) e também inspirou
um grande número de comentários judaicos medievais. O Cântico dos
Cânticos tem desempenhado um papel fascinante na cultura ocidental.
Foi um caso de teste e uma oficina para o método alegórico e ainda um
esteio de ascetismo e um ímpeto para o misticismo.

É muito mais difícil estabelecer uma mensagem teológica do livro


comparado com qualquer livro profético, por exemplo – Cantares nem
sequer menciona Deus – e ainda lê-lo refresca o coração e a incentiva
para apreciar e para afirmar a vida, especialmente na área de sexualidade.

Formalmente, o livro é poético em alto estilo. Muitas palavras são


difíceis de traduzir, pois só aparecem aqui na Bíblia hebraica. Cântico
dos Cânticos representa um conjunto disperso de 30 canções de amor:
“Discursos” da mulher alternam com respostas por parte do homem. Não
há desenvolvimento evidente da trama. Apesar disso, estruturas foram
encontradas (isso faz parte de ser teólogo, eles sempre podem descobrir
estruturas em qualquer texto). Um dos mais prováveis é descrito na
tabela a seguir, oferecida por Zenger (2003, 343):

138 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Como já foi mencionado, o livro não usa o nome de Deus, nem está
falando de qualquer outra forma de Deus ou questões religiosas (talvez
8,6 é uma exceção, onde alguns leem a forma abreviada ‘Jah’ do nome
de Deus). Assim, houve muita discussão sobre o manter ou não este livro
no cânon do Antigo Testamento. Parece que só foi mantido no cânon,
porque poderia ser interpretado alegoricamente falando da relação de
Deus com Israel (cf. Os 2; Jr 2; Ez 16,23). Como a interpretação alegórica
do livro ao longo da história foi tão crucial, pode-se, pelo menos, não
simplesmente ignorar esse tipo de interpretação hoje.

Uma característica muito interessante do livro é o da igualdade na


parceria dos dois amantes. Então, ele começa e termina com as palavras
da mulher sobre seu amado. Cantares 7:11 menciona o desejo do
homem para com a mulher – lendo Gênesis 3:16, podemos esperar que
este deva ser o contrário: não era o desejo da mulher para com o homem
uma consequência da queda? Contudo, Cântico dos Cânticos parece
compreender o amor como superação dessa maldição (8:6-7). Alguns
intérpretes compreendem a porta fechada e posteriormente aberta, do
jardim (4:12-16), como uma alusão ao Jardim do Éden.

Muitos intérpretes enfatizam o papel positivo da reciprocidade do amor


erótico e sexual nesses textos. Veja em seguida um bom resumo da
mensagem teológica:

A convocação para usufruir a vida e o amor, no centro do livro,


obtém, pela estrutura composicional dele, uma motivação a partir
da teologia da criação. […]
Quando na literatura do AT é lançado o tema do amor entre
homem e mulher, essa abordagem acontece, sobretudo, para
gerar descendência no contexto de uma sociedade estruturada
de modo preponderantemente patriarcal. O Cântico dos Cânticos
representa uma exceção. Nele, o amor erótico-sexual entre
homem e mulher, independentemente das exigências, sem dúvida,
legítimas da sociedade, é cantado como um poder que obedece às
suas próprias leis. A consideração de Cantares na Sagrada

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 139


Escritura poderá, assim, preservar, biblicamente orientadas, uma
antropologia e doutrina da sexualidade humana diante de uma
fixação patriarcal, de um direcionamento unilateral para gerar
descendência, e da observância exagerada de aspectos jurídicos.
Com a valorização e admiração do corpo do homem e da mulher,
Cantares se posiciona diametralmente contra toda cultura que
hostiliza o corpo e o amor. Voltando a refletir sobre o significado
original de Cantares, a Igreja poderá ser vitoriosa em superar
tendências hostis ao corpo e ao amor de sua própria história.
Contudo, também por respeito à história da interpretação judaica e
cristã, não se deve deixar totalmente de lado a explicação alegórico-
tipológica. Ela percebeu corretamente que no “amor físico”, como
é enaltecido em Ct, reside uma força que transcende a dimensão
meramente corporal humana.
(ZENGER, 2003, p. 348)

ESBOÇO DE CÂNTICO DOS CÂNTICOS


I. Cabeçalho (1:1)
II. A jovem sulamita no harém de Salomão (1:2-3:5)
A. O rei e a jovem sulamita gracejam (1:2-2:2)
B. A jovem procura seu amado ausente (2:3-3:5)
III. Salomão corteja a jovem sulamita (3:6 – 7:9)
A. A primeira proposta de Salomão (3:6-5:8)
B. A segunda proposta de Salomão (5:9-7:9)
IV. A jovem sulamita rejeita o rei Salomão (7:10-8:4)
V. A jovem sulamita e o pastor amado se reencontram (8:5-14))
A. Os irmãos da jovem veem os apaixonados chegando (8:5a)
B. A jovem fala ao seu pastor amado (8:5b-7)
C. Os irmãos da jovem recordam o passado da irmã (8:8-9)
D. A jovem se orgulha da sua castidade (8:10-12)
E. O pastor convida a jovem a cantar (8:13)
F. A jovem atende com cântico (8:14)
(HILL e WALTON, 2011, p. 412-413)
140 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
Exercício de aplicação
Considere os conceitos abaixo, retirados do dicionário Aurélio
Online:
SEXO: substantivo masculino
Reunião das características distintivas que, presentes nos animais,
nas plantas e nos seres humanos, diferenciam o sistema reprodutor;
sexo feminino e sexo masculino.
Aquilo que marca a diferenciação (órgãos genitais) entre o homem
e a mulher, delimitando seus papéis na reprodução.
Reunião dos indivíduos que fazem parte de um mesmo sexo.
[Por Extensão] Uso Popular. Ação ou prática sexual; transa.
[Por Extensão] Brasil. Uso Popular. Os órgãos sexuais; genitália.
[Por Extensão] Característica do que é sensual; sensualidade.
Etimologia (origem da palavra sexo). Do latim sexus.us.

ERÓTICO: adjetivo
Que se refere ao amor: as poesias eróticas de Catulo.
Que se refere ao amor sexual; lúbrico, lascivo.
Licencioso: literatura erótica.
PORNOGRAFIA: substantivo feminino
Tudo o que se relaciona à devassidão sexual; obscenidade,
licenciosidade; indecência.
Caráter imoral de publicações, gravuras, pinturas, cenas, gestos,
linguagem. Disponível em: https://www.dicio.com.br/aurelio-2/
Um dos grandes desafios da missão da igreja é contextualizar a
mensagem da Palavra de Deus para a sexualidade humana. Há
sim excelentes propostas oferecidas por homens e mulheres
comprometidas com o ensino cristão. Todavia, o mundo da
pornografia tem “manchado” o erótico e banalizado o sexo, a ponto
do próprio povo de Deus sofrer com qualquer argumento a favor da
sexualidade humana.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 141


O Livro de Cantares tem ensinado o povo de Deus a compreender a
sexualidade humana como algo bom, bonito e abençoado por Deus,
desde o princípio. Neste sentido, há uma estreita relação entre os
conceitos de sexo, erótico e pornografia que precisa ser também
anunciada pelo povo cristão. Diante deste desafio, construa um texto
argumentativo que apresente a relação entre os conceitos e aponte
caminhos para o resgate da sexualidade humana (mínimo de 100).
Disponível em: https://www.dicio.com.br/aurelio-2/
Um dos grandes desafios da missão da igreja é contextualizar a
mensagem da Palavra de Deus para a sexualidade humana. Há
sim excelentes propostas oferecidas por homens e mulheres
comprometidas com o ensino cristão. Todavia, o mundo da
pornografia tem “manchado” o erótico e banalizado o sexo, a ponto
do próprio povo de Deus sofrer com qualquer argumento a favor da
sexualidade humana.
O Livro de Cantares tem ensinado o povo de Deus a compreender a
sexualidade humana como algo bom, bonito e abençoado por Deus,
desde o princípio. Neste sentido, há uma estreita relação entre os
conceitos de sexo, erótico e pornografia que precisa ser também
anunciada pelo povo cristão. Diante deste desafio, construa um texto
argumentativo que apresente a relação entre os conceitos e aponte
caminhos para o resgate da sexualidade humana (mínimo de 100).

LEITURAS COMPLEMENTARES
DUTRA, Débora Thomaz Cavalcante. Cânticos dos Cânticos de Salomão:
representação poética do idealismo amoroso. Guarabira, PB: Universidade
Estadual da Paraíba, 2011 (artigo do Depto de Letras). Texto acessado
em 26/07/2019 e disponível em h�p://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/
bitstream/123456789/1408/1/PDF%20-%20D%C3%A9bora%20Thomaz%20
Cavalcante%20Dutra.pdf

ZENGER, Erich. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo, SP: Loyola,


2003, p. 283-290.
142 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
VÍDEOS COMPLEMENTARES
Indica-se aqui alguns vídeos (muitas vezes longos) e de renomados
expoentes. Neste sentido, os vídeos aqui mencionados não são
obrigatórios, pois, na maioria das vezes, estão em outra língua.

Assista ao vídeo: Los Livros Poéticos y Sapienciales


(prof. José Luis Sicre) - Duração: 1h03m26s
Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=HWKauD5krtE

REFERÊNCIAS
CERESKO, ANTHONY R. A Sabedoria no Antigo Testamento.
Espiritualidade Libertadora. São Paulo: Paulus, 2004.
CRENSHAW, JAMES L. Ecclesiastes: a Commentary. OTL. Philadelphia:
Westminster Press, 1987.
GUNKEL, Hermann. The Psalms: a form-critical introduction. Minneapolis,
MN: Fortress Press, 1967.
LUCAS, ERNEST C. A Guide to the Psalms & Wisdom Literature. Exploring
the Old Testament, Volume 3. InterVarsity Press, 2003, p. 79-115.
MATTER, E. Ann. The voice of my beloved: the Song of Songs. Philadelphia,
EUA: University of Pensylvania Press, 1992.
PERDUE, LEO G. Wisdom & Creation: The Theology of Wisdom Literature.
Nashville: Abingdon, 1994.
WESTERMANN, Claus. The Psalms: structure, content and message.
Minneapolis, MN: Augsburg Publishing House / Fortress Press, 1980.
WHYBRAY, NORMAN. “Qoheleth, Preacher of Joy.” JSOT, no. 23 (1982):
87-98.
ZENGER, Erich. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo, SP: Loyola,
2003.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 143


UNIDADE IV: OS LIVROS PROFÉTICOS
INTRODUÇÃO
É chegada a quarta e última unidade da disciplina Bíblia II: Introdução ao
Antigo Testamento. Já foram estudados três grandes blocos de livros: 1) o
Pentateuco, 2) os Livros Históricos, 3) a Sabedoria os Livros Poéticos. Resta
agora, portanto, os Livros Proféticos. Estes correspondem a duas grandes
coleções, denominadas de Profetas Maiores (Isaías, Jeremias, Lamentações,
Ezequiel e Daniel) e Profetas Menores (Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas,
Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias).

A literatura profética, dada à sua importância, é o grupo de livros que


mais ocupa espaço escrito do Antigo Testamento. Trata-se do grupo
responsável pela conscientização acerca das ações da liderança
nacional, da justiça social e, principalmente, da manifestação do direito
(retidão) e da paz para o povo de Deus. A profecia, enquanto gênero
literário, refere-se ao proferimento de oráculos que concentram a
mensagem de chamada ao arrependimento, à promessa da fidelidade a
Deus e à recompensa dos abençoados por Deus. Cada profecia é sempre
pronunciada em linguagem simbólica, pois evoca os mecanismos
linguísticos pelos quais o povo (ouvinte, adorador, líderes e até mesmo
outros pessoas externas à comunidade de Israel). Por isto, dependendo
do conteúdo expresso em cada oráculo, é possível classificá-los como
“oráculos de juízo” (ou de julgamento, castigo, punição) e de “oráculo de
salvação” (libertação, bênção, recompensa, etc). É relevante já dizer que
‘profecia’, em contextos bíblicos é sempre em a “crítica” acerca dos erros
(pecados), tanto dos líderes como do povo.
Sendo assim, nesta unidade, você irá entrar em contato como os
seguintes tópicos:
1. O MOVIMENTO PROFÉTICO
2. PANORAMA TEOLÓGICO DOS PROFETAS
3. ESTRUTURA LITERÁRIA DO ORÁCULO PROFÉTICO
4. HERMENÊUTICA DOS PROFETAS

144 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


No tópico 1, a ênfase será sobre a pessoa do profeta e o seu livro, com
a finalidade de ressaltar o papel do profeta como “arauto” de Deus, o
responsável em comunicar a palavra de YHWH. Já o tópico 2 oferecerá
um pano de fundo teológico para o estudo dos profetas. Na sequência,
tópico 3, serão destacados aspectos literários do oráculo profético, a fim
de oferecer um esboço de como os oráculos são formulados. Por fim, o
tópico 4, será uma breve exposição sobre a hermenêutica dos profetas,
ou seja, como a profecia deve ser direcionada em sua interpretação
para que os efeitos esperados aconteçam em meio ao povo na
contemporaneidade.

Como já dito em unidades anteriores, esta disciplina é “panorâmica”, ou


seja, um estudo introdutório sobre os livros proféticos. Isto significa que
o estudo mais detalhado decorrerá de outras disciplinas (Hermenêutica,
Metodologia Exegética e Teologia Bíblica) e implicará em domínio de
leituras e metodologias de estudo exegético. A sugestão é que, na medida
do possível, cada aluno(a) se esforce paulatinamente em dominar as
leituras acerca dos livros proféticos, assimilando seu conteúdo e decifrando
a força que a profecia (oráculo) tem na transformação individual e coletiva.
Fica, aqui, a dica que a ênfase desta disciplina foi a abordagem literária, isto
é, sobre a tipologia de gênero textual que os escritos proféticos assumiram
para transmitir a mensagem de Deus ao seu povo.

1. O MOVIMENTO PROFÉTICO
Os livros proféticos do Antigo Testamento contêm algumas das
passagens bíblicas mais conhecidas e, ao mesmo tempo, alguns dos
textos mais obscuros e difíceis da Bíblia. De Isaías a Malaquias, forma-
se um bloco unificado nas Bíblias atuais. Como dito desde a primeira
unidade, a Bíblia Hebraica oferece um esboço diferente da classificação
protestante. Ela considera dois dos livros que constam nos profetas entre
as Escrituras, que são os livros de Daniel e Lamentações. Esta tradição
hebraica chama Josué, Juízes, Samuel e Reis os “Profetas anteriores” e

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 145


a coleção de “profetas posteriores” consiste em somente 4 livros: Isaías,
Jeremias, Ezequiel e o Livro dos Doze. Esse último livro é a coleção dos 12
profetas menores, o que pode ser entendido como uma unidade fechada
e composta. Lamentações foi, desde os primeiros dias, intimamente
associado com Jeremias, embora seja basicamente uma coleção de
dicas e salmos breves – um texto poético. Mas falando sobre poesia,
grandes partes dos livros proféticos também estão escritas nesse alto
estilo poético. Assim, o agrupamento de Jeremias e Lamentações não
pode ser considerado estranho.

Apenas para relembrar, eis a classificação das tradições católica,


protestante e hebraica dos livros do Antigo Testamento. Na Bíblia
hebraica, há a seguinte divisão:

146 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 147
Na Bíblia Cristã, para a Tradição Católica, há 46 livros; e na Tradição
Católica Protestante, há 39 livros.

Ao iniciar a leitura dos profetas, logo descobre-se o quanto é difícil descrever a


relação entre o profeta “real” e o seu livro. Alguns profetas nem sequer deram
o trabalho de escrever a sua mensagem – pelo menos não há nenhum livro
existente de pessoas como os profetas Elias e Eliseu, Natã, ou Bileão. Por
isso, nos parágrafos seguintes, será oferecida uma breve discussão sobre
as questões relacionadas com os profetas reais e, em seguida, dar alguma
orientação para a leitura de livros reais. Diz-se “profeta real” para comentar
sobre a pessoa (física, real, existente) e o livro que leva o seu nome e não
propriamente à tradição de dizer/afirmar que o profeta é o livro.

Isaías 6 é uma das passagens clássicas, em que a pessoa do profeta


é retratada de maneira mais vívida. O entendimento comum do que um
profeta deve ser ou o que ele experimenta é frequentemente baseado
nessa narrativa do chamado de Isaías: o profeta tem uma visão
esmagadora; torna-se profundamente consciente de seu pecado e,
consequentemente, anda motivado e inspirado por este evento durante
todo o seu ministério. Na leitura de outro texto, Malaquias 4:4-6 (quase
o último texto da coleção profética do AT), observa-se uma mensagem
completamente diferente: os leitores são encorajados a se lembrar da
lei de Moisés e recebem a promessa da chegada de “Elias”. Aqui, a lei
se tornou um livro e os profetas também são considerados literatura –
aqui pode-se perceber o conceito de “lei e profetas” como um cânon de
escrituras (um conjunto de livros que permitem a leitura e interpretação
da vontade de Deus para o povo).

O profeta individual e o seu livro formam duas partes na tradição


profética do Antigo Testamento: a primeira tenta conscientizar uma
pessoa com uma mensagem muito urgente e de interesse imediata a
seus contemporâneos, enquanto que a segunda tenta coletar palavras
proféticas para o benefício das gerações mais além do seu próprio tempo
– inclusive para o atual contexto, desafiando cada comunidade cristã a
desempenhar um papel mais profético na sociedade.
148 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
Os profetas podem ser vistos em várias perspectivas. De um ponto de
vista sociológico, pode-se distinguir 4 tipos de profetas, dependendo de
sua filiação a um grupo e/ou alguma instituição:
• Irmandades proféticas: estudantes de escolas proféticas,
“cooperativas proféticas”;
• Profetas do templo (ligados a uma instituição);
• Profetas da corte (ligados a uma instituição);
• Profetas individuais (que são os profetas literários como Isaías ou
Jeremias, mas também Elias, Eliseu, dentre outros).

Uma outra perspectiva óbvia é a cronologia – e, neste caso, a lógica


seria por períodos. Logo, dependendo do período escolhido, é possível
observar os quatro tipos de profetas.

Vídeo: O Profeta Elias


Duração: 15m12s
Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=7qgMEbDWo3A

Os livros dos profetas começam com Amós e Oséias. Estes profetas


literários geralmente falam a todo o povo. Tanto antes do exílio, falam da
queda de Israel e Judá; quanto durante e depois do exílio, eles prometem
também uma nova salvação para o povo. Após o exílio a comunicação
de Deus através dos profetas foi retomada pelo uso mais óbvio da Torá
(Esdras) e pela literatura apocalíptica (Daniel...).

A pessoa do profeta desaparece por trás da mensagem, mas não se deve


simplesmente dispensá-la com o nome do profeta, pois Deus sempre
fala por meio de seres humanos concretos. O profeta só recebe esta
comunicação de Deus sem informação prévia, pois a iniciativa é de Deus.
Em outras culturas do Antigo Oriente Próximo, os profetas perguntavam
a seus deuses usando certas práticas.
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 149
Os profetas, muitas vezes, preocupavam-se com o problema da sua
legitimação. A fórmula usada pelo mensageiro era normalmente de designá-
los como mensageiros de Deus. Mas quem poderia saber se eles estavam
dizendo a verdade? O Antigo Testamento trata este problema através da
perspectiva dos verdadeiros profetas, os quais tiveram que prevalecer contra
os falsos profetas ou o questionamento direto de sua legitimação. No livro,
muitas vezes, a narrativa do chamado tenta resolver a questão. Na esfera
pública, o profeta tem que ser medido em relação ao cumprimento de suas
palavras. O verdadeiro profeta é independente de seus ouvintes – ele apenas
depende de Deus (Mq 3:5). E por essa razão, Deus afirmará as palavras de
seu profeta, por meio do cumprimento dessas (Jr 28:9).

Por causa de sua mensagem, muitas vezes desconfortável e da falta


de uma legitimação imediata, os profetas muitas vezes eram rejeitados
e perseguidos – e às vezes precisavam mesmo sofrer o martírio
(especialmente o martírio de Jeremias, e também o comentário de Jesus
em Lucas 11:47ss sobre o sangue dos profetas, desde Abel até Zacarias).

A mensagem dos profetas é normalmente falada como a palavra de Deus


em uma situação concreta e especial. A predição de eventos futuros
é apenas uma ferramenta para comunicar e enfatizar a mensagem
contextualizada. Essas previsões nunca foram destinadas a satisfazer
a curiosidade de ninguém (inclusive nossa curiosidade!) sobre o futuro.
Eles visam a mudar a vida de seus ouvintes específicos. Algumas dessas
previsões, porém, são mais abrangentes e, portanto, podem falar de um
futuro mais distante.

Normalmente, os profetas falam uma linguagem forte, chocante, cheia


de ritmo e poesia. Eles também atuavam simbolicamente para reforçar a
sua mensagem (cf Ezequiel). Os grandes temas são:

• Afasta-se de outros deuses (Jr 2);

• Volta-se para a lei e a justiça (Am 2);

150 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


• Confia em Deus nas decisões políticas (Is 30);

• A salvação virá (Is 11).

As palavras proféticas orais, denominadas oráculos, foram bastante


comuns no Antigo Oriente Próximo. Mas os livros proféticos são uma
característica singular de Israel e Judá. A escrita das palavras começou
no momento em que a mensagem dada por via oral foi recusada (cf Jr
36). Jörg Jeremias escreveu: “Paradoxalmente, foi a desobediência e a
falta de vontade de ouvir dos ouvintes em primeiro lugar, que levam as
primeiras palavras escritas dos profetas. O imediatismo das palavras
orais ganha, por ser escrito, uma qualidade paradigmática e comunica
aspectos gerais sobre o relacionamento de Deus com Israel, que seriam
transferidas para novas situações históricas” (J. Jeremias, Hosea und
Amos, FAT 13, Tübingen 1996, 29+31).

Na literatura, há o estudo sobre a arte de seus escritos. Os profetas não


podem ter sido muito originais em sua teologia (muitas vezes eles apenas
aplicavam a Torá), mas eles são inigualáveis no Antigo Testamento, por
seu poder de persuadir. Nos profetas não há limite para os métodos
variados de persuasão. É sempre muito esclarecedor pensar em como
os profetas tentaram realizar um grande impacto sobre seus ouvintes.

A “crítica retórica” é um desenvolvimento recente e importante, não só focando


nos profetas, mas em toda literatura bíblica. Mas talvez seja importante usá-
la para os profetas, pois assim, perceberemos como o estudo da linguagem
é usado para convencer as pessoas a um ponto de vista.

Por que os profetas tantas vezes falam de formas poéticas? Parte da


resposta, sem dúvida, é que a linguagem sublime da poesia foi pensada
de modo adequado para falar de Deus. Mas, além disso, os profetas
usaram sua poesia para segurar a atenção do ouvinte: ao desafio e à
surpresa. Basta dar uma olhada em Amós 1 e 2 e percebe-se como ele
fala de todos os pecados dos vizinhos de Israel antes que ele – sem
acalmar o tom – gira ao redor de Israel, confrontando-os com sua culpa.
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 151
A arte dos profetas não é um extra opcional para sua mensagem, mas
essencial para ela. Infelizmente, apenas alguns desses recursos podem
ser representados na tradução. Porém, como essa arte não está apenas
na sua poesia, mas também na sua narrativa; no seu uso de metáforas;
no seu uso retórico de diálogo (e.g. Ageu, Malaquias), e em suas ações
simbólicas (Ez 4:1-7,27) que foram utilizadas para o efeito, porque, às
vezes, eram o extremo e o chocante:

1. Casamento de Oséias com uma prostituta, Os 1;

2. A metáfora de Jeremias do divórcio para proclamar o fim do


relacionamento entre o Senhor e Israel, Jr 3,1-5;

3. Ezequiel empurrando a imagem da prostituta a extremos escabrosos,


Ez. 16:23).

A arte dos profetas em seus discursos pode ser explicada em um nível


mais profundo, o que revela efetivamente a importância central da Palavra
de Deus nos seus pensamentos. Os profetas usavam poesia, porque era
uma forma adequada de falar de Deus. Evidentemente, o testemunho
bíblico não sugere que poesia é o único meio adequado de falar sobre
Deus (já que a Bíblia inclui também as leis, narrativas, cartas e outras
formas). Mas a poesia tem a capacidade tanto de falar sobre coisas que
são muito familiares, quanto de levar a imaginação a novas formas de
pensar e de compreensão. Os poemas não têm significados cortados
e secos, mas muitas vezes são abertos a várias interpretações. É essa
abertura que convida o leitor ou ouvinte a pensar em Deus.

Para dizer que o discurso profético é retórico, então, devemos destacar


um ponto teológico. Profetas falam a Palavra de Deus e eles fazem isso
de inúmeras formas para que sejam adequadas ao seu objeto (Deus e o
reino celestial) e a sua intenção (para chamar as pessoas de volta a Deus).
O discurso profético é basicamente uma fala de um mensageiro. Mas
como é que este discurso pode ser eficaz? A pronúncia de uma sentença
pode ter o efeito de transformar as pessoas de seus pecados, e assim
evitar o julgamento que lhe foi pronunciado. O melhor (talvez o único)
152 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
exemplo disto no corpus profético é o livro de Jonas, no qual o povo de
Nínive se arrepende. A intenção retórica de Deus foi presumivelmente
cumprida no arrependimento do profeta, mesmo que Jonas tenha se
demonstrado oposto a isso!

Exercício de fixação
O texto abaixo é do Profeta Miqueias 1:2-7, cujo relato é sobre os
pecados de Israel e Judá:
2 Ouvi, todos os povos,
prestai atenção, ó terra e tudo o que ela contém,
e seja o Senhor Deus testemunha contra vós outros,
o Senhor desde o seu santo templo.
3 Porque eis que o Senhor sai do seu lugar,
e desce, e anda sobre os altos da terra.
4 Os montes debaixo dele se derretem,
e os vales se fendem;
são como a cera diante do fogo,
como as águas que se precipitam num abismo.
5 Tudo isto por causa da transgressão de Jacó
e dos pecados da casa de Israel. Qual é a transgressão de Jacó?
Não é Samaria? E quais os altos de Judá?
Não é Jerusalém?
6 Por isso, farei de Samaria um montão de pedras do campo,
uma terra de plantar vinhas;
farei rebolar as suas pedras para o vale
e descobrirei os seus fundamentos.
7 Todas as suas imagens de escultura serão despedaçadas,
e todos os salários de sua impureza serão queimados,
e de todos os seus ídolos eu farei uma ruína,
porque do preço da prostituição os ajuntou,
e a este preço volverão.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 153


Neste oráculo (anúncio profético), o uso de linguagem simbólica
fica evidente porque ilustra a força da denúncia feita pelo profeta.
Das alternativas abaixo, indique aquela que traduz claramente o
sentido destes símbolos marcados pelos versos grifados:
a. ( ) As pernas de Deus são tão grandes que alcançam os picos
da montanha, e pisando-as, elas se abrem.
b. ( ) Sião é o monte sagrado onde Deus faz sua morada. Ao sair
dali, todos os outros lugares são transformados porque a pisada
de Deus santifica o lugar.
c. ( ) Os termos referem-se ao uso da teofania, ou seja,
manifestações de Deus através de fenômenos da natureza: um
terremoto causando a abertura da montanha, que soltam larvas.
d. ( ) As montanhas e os rios são referências à grandiosidade de
Deus, que estão em sentido de oposição aos pecados de Israel e
Judá.
e. ( ) A profecia precisa ser simbólica porque os profetas falam
em mistérios.

2. Panorama teológico dos profetas


Neste tópico, a ideia é dar uma olhada panorâmica para cada livro
dos profetas. Mas antes disso sugere-se afiar o olhar com algumas
observações teológicas gerais. Com a pregação dos profetas, no tempo
de crise política (após 760), deu-se o início de um novo modo de falar e
agir de Deus com seu povo.

Os escritos proféticos são mais conhecidos por sua crítica às


instituições que, inicialmente, foram dadas pelo próprio Deus, mas que se
desenvolveram longe Dele. Assim, eles formam um corretivo necessário
contra o estabelecimento de sacerdotes e reis. O importante para eles é
a crítica a um sentido errado da eleição e da autoafirmação que acaba
por conduzir a um abandono das palavras de Deus. Faz parte desta
154 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
mensagem um futuro glorioso para Israel (e do mundo inteiro), apesar de
todos os atos de autoengrandecimento. Os profetas têm uma mensagem
corretiva que acaba abrindo um caminho para mudar e, finalmente,
para evitar a condenação. Mas há também a noção de julgamento
inevitável (especialmente Amós, que só fala, muito timidamente, de uma
salvação futura). Esta mensagem mostra como o amor divino pode ser
profundamente violado.

Mesmo como comunidade do Novo Testamento, é preciso estar atentos


a essa forte mensagem (simplesmente não podemos prever, quando
Deus irá “permitir-nos” colher dos frutos do nosso pecado, ou quando
ele vai agir no perdão misericordioso mesmo tendo as consequências
naturais da nossa natureza). Claro que isso precisa ser equilibrado pela
vitória final da sua misericórdia – o julgamento já foi tomado por Jesus.

Um aspecto importante que merece destaque é o da necessidade de


restabelecer em nossas igrejas: o cultivo da correção crítica das pessoas
da liderança – seja da sociedade (política), da economia ou da própria
igreja. Pentecostes foi o dia em que a visão da profecia universal de Joel
tornou-se realidade. O Espírito de Deus foi derramado sobre todos os
crentes para que eles pudessem conhecer a mensagem divina com a
cruz e a ressurreição de Jesus em seu coração. Portanto, o trabalho de
todos consiste em testemunhar esta mensagem para o mundo, tal como
os profetas fizeram por Israel.

A dupla mensagem dos profetas – a oposição ao culto de outros deuses


do que Javé e a procura de justiça social na comunidade, que afirmava
ser o povo escolhido – levaram a uma teologia mais desenvolvida, nova
e progressista de Israel. Foi o ponto alto do pensamento teológico em
Israel – proposição afirmada por muitos eruditos do AT. Isso serviu de
modelo e influência para Julius Wellhausen nos séculos XIX e XX. Ele
imaginou que os profetas eram os “criadores” do monoteísmo ético
de Israel e que todos os outros pensamentos teológicos – seguintes –
foram decorrentes disso. Especialmente a lei, que está ligada aos rituais
e ao legalismo. Antes dos profetas existiram apenas o animismo e o
politeísmo em várias formas. Os dias deste sistema já estão muito longe,

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 155


e tornou-se um consenso comum de que as relações entre os profetas e
as outras tradições bíblicas são muito mais complexas. Se os profetas
não são distintos no conteúdo de sua teologia, eles são especiais na
forma da sua comunicação. Por isso, pode-se pensar em temas variados,
como “Profetas e sabedoria”, “Profetas e Lei” – ou até mesmo “Profetas e
Deuteronômio” –, e “Profetas e Salmos”. Claro que também, pode-se olhar
para as diferenças e semelhanças entre os profetas. Para o(a) aluno(a)
de Teologia, tudo isso ajudará bastante a entender a mensagem profética
de maneira mais clara. De certa forma, os variados temas teológicos dos
profetas serão melhor desenvolvidos pela disciplina de teologia bíblica.

Exercício de fixação
Uma das habilidades do profeta é proclamar o oráculo em forma de
denúncia (crítica), cujo efeito é conscientizar líderes e instituições
sobre a prática do direito (retidão) e da justiça. Das alternativas
abaixo, indique o verso bíblico (tirados da versão Bíblia do Peregrino)
que caracteriza exemplarmente esta habilidade.
a. ( ) “no primeiro ano do seu reinado, eu, Daniel, lia atentamente
no livro das profecias de Jeremias o número dos anos que
Jerusalém devia permanecer em ruínas: eram setenta anos”
(Daniel 9:2)
b. ( ) “Sedecias tinha vinte e um anos de idade quando começou
a reinar. Foi rei em Jerusalém por onze anos. Sua mãe chamava-
se Hamital e era filha de Jeremias de Lebna” (Jeremias 52:1).
c. ( ) “Assim me disse Javé, enquanto me segurava pela mão e
me proibia de seguir o caminho desse povor” (Isaías 8:1)
d. ( ) “Depois disso, derramarei o meu espírito sobre todos os
viventes, e os filhos e filhas de vocês se tornarão profetas; entre
vocês, os velhos terão sonhos e os jovens terá visões!” (Joel 3:1)
e. ( ) “Assim diz Javé: Por três crimes de Gaza e pelo quarto,
eu não vou perdoar: porque fizeram cativo um povo inteiro, para
entregá-lo a Edom” (Amós 1:6)

156 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Ler Isaías é sempre muito edificante – aqui encontram-se alguns dos
textos mais amados do Antigo Testamento. É realmente muito difícil
limitar-se ao introduzir este livro – mas é necessário.

O livro do profeta Isaías, com seus 66 capítulos possui uma divisão


tríplice: Isaías (1-39), chamado de Primeiro Isaías; Deutero-Isaías (40-55)
ou Segundo Isaías; e Trito-Isaías (56-66) ou Terceiro Isaías. Cada uma
destas partes pertence a uma época muito diferente de Israel e apenas
1-39 têm qualquer ligação real com o homem Isaías, filho de Amós, a partir
do final do século VIII. Os outros são do exílio ou pós-exílio. Essa divisão
foi consenso acadêmico por muito tempo, mas está se dissolvendo
cada vez mais, pois a maioria dos estudiosos hoje está convencida de
que não faz sentido ler um destes três separados dos outros dois. Os
temas e palavras-chaves funcionam por todo o livro. Apesar de algumas
discussões consideráveis sobre a data do livro de Isaías, você pode ficar
tranquilo que você está perfeitamente certo de lê-lo como uma unidade.

Então aqui vem uma proposta de uma estrutura geral:

Jerusalém julgada e resgatada

é o conhecido “canção da vinha”. O anúncio do julgamento


5:1-7
se tomou a forma de uma parábola.

é a visão do conselho do trono de Isaías. Pode ser visto


1-12 como vocação de Isaías. A chamada Trishagion (“Santo,
6
santo, santo”) veio desde Ap. 4:8 na liturgia cristã até hoje
(muitas canções veem dessas palavras).

anúncio do nascimento e da entronização do rei da salvação


9:1-6 (“O povo que andava em trevas…”), veja também 11:1-9, o
rei da salvação e o seu reino de paz.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 157


A justiça de Deus estabelecida entre as nações
são oráculos sobre as nações estrangeiras p.ex. contra
Babel (13-14+21), Moabe (15+16), Síria (17) ou Egito
13-27
13-23 (18-20). Mas estes oráculos sempre são implicitamente
orientados a Judá: A desgraça destes significa ao mesmo
tempo, salvação ou alívio do povo de Deus.

Um rei justo em Jerusalém

O ciclo assírio 28-31 vem de 701, quando rei Senaqueribe da Assíria


28-35 tentou ocupar Jerusalém.
Cap. 32 formula a expectativa de um reino de paz depois desses
eventos.
Jerusalém é salva, mas a sombra da Babilônia a ameaça

36-39 Cap. 36-39 são um relato dos eventos do cerco de Jerusalém por
Senaqueribe. Estes capítulos servem para mostrar a verdade da
mensagem do profeta.
O retorno do exílio da Babilônia
Cap. 40 começa com a esperança de um novo êxodo: em uma grande
procissão o povo retornará pelo deserto para a Israel.
Cap. 41-44 formulação do monoteísmo

40-55 Hinos sobre o servo sofredor


42,1-9 exaltação e miséria do servo
49,1-13 o servo se torna como luz das nações
50,4-9 o servo preparado para servir e sofrer
52,13-53,12 o servo sofrendo
Novo céu e novo mundo
Os exílios retornarão, as nações vão juntar-se com Israel; esta é a
56-66 mensagem principal destes capítulos. Ao lado disso lemos também
sobre as ameaças aos egoístas da comunidade (jejum falso e certo,
cap. 58).

158 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


Alguns temas emergentes podem ser vistos através desta estrutura. Em
um nível fundamental, a metáfora básica de Javé como o rei celestial (Is
6,5) atravessa a maior parte da profecia. Outros deuses não existem e,
portanto, não devem ser adorados, e todas as relações com a comunidade
devem ser moldadas pelas normas definidas pelo rei divino – que refletem
a sua justiça e ética.

Outro aspecto do tema do rei desenvolvida em Isaías é o reino escatológico


de Deus. Este tema levanta a questão da relação entre o reinado divino
e humano. O rei humano de Sião ocupa este cargo por nomeação do
rei divino, e também é considerado responsável pelo estabelecimento
da justiça ao seu povo. Este pensamento é, então, desenvolvido pelo
conceito de promessas messiânicas, de um rei que realmente cumpre
plenamente o que Deus exige dele (Is 9-11). Esta figura messiânica
domina a primeira parte de Isaías, enquanto no segundo momento, a
metáfora se volta para o servo. Essa transição não é muito dura, como
“servo” era uma designação comum para o rei do Antigo Oriente Próximo
– o rei é o servo de Deus que deve estabelecer a justiça e a paz ao seu
povo. A identidade deste “servo” em Isaías é difícil de definir. Podendo
ser um indivíduo ou um grupo (Israel), ele tem características divinas e,
por outro lado completamente humanas, parece, às vezes, uma figura
real, por vezes, um profeta. O tema de servo anda de mãos dadas com
a mensagem da salvação das nações (Is 49:6). O retorno do exílio da
Babilônia não é um simples retorno à forma como as coisas eram antes.
Deus quer um povo verdadeiramente justo para habitar sua “cidade” – e
este povo será composto de pessoas de muitas nações.

A data do livro é outro grande problema. Mas lembre-se da nossa


discussão acima sobre a relação do profeta com o seu livro: podemos
ser bastante relaxados sobre isso. O próprio profeta em primeiro lugar,
falou ao seu povo por via oral. Só em uma fase posterior o livro foi escrito
e certamente com a intenção de preservar a mensagem do profeta
para as gerações futuras. De fato, ao tentar ler a mensagem de Isaías
em diversos cenários históricos, a retórica faz sentido em todos eles –
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 159
e ainda, o livro continua a falar para nós. Isso aponta para a qualidade
literária dos textos deste livro.

A tríade dos profetas Jeremias, Ezequiel e Daniel deveria ser uma


discussão bem próxima a do profeta Isaías. A leitura desses três é
fascinante e muito diferente entre eles. Uma boa indicação de perguntas
para orientar a leitura desses três profetas poderiam ser:

• O que a introspecção (quase psicológica) da personalidade de


Jeremias contribui para a mensagem do seu livro?

• Em Ezequiel, lemos muito sobre as metáforas – metáforas de ação e


metáforas de conceitos. Quais seriam os critérios para estabelecer o
significado de uma metáfora? Como metáforas trabalham na mente
do leitor?

• Lendo Daniel, muitas vezes, somos apanhados em histórias


intrigantes combinadas com visões altamente imaginativas. Como é
que a sequência dos textos em Daniel influencia nossa compreensão
do livro? Quais são as partes de Daniel que você consideraria como
tendo um valor essencialmente simbólico e que partes querem
comunicar fatos históricos? Será que precisamos distinguir essas
duas opções?

A intenção destas perguntas é fazer com que se reflita sobre elas, a partir
do conteúdo dos livros proféticos, de forma mais profunda e relevante.
E, a partir da reflexão, a aplicação se torne mais clara e que esteja mais
alinhada à verdade divina anunciada pelos profetas.

Os doze profetas menores formam um livro. Essa coleção, logo no início,


acabou sendo considerada um livro; como pode ser visto na tradição
massorética: as somas da Massora final se referem a todas as palavras
destes doze livros e afirmam que a palavra “Sião”, em Miqueias 3:12, é
(matematicamente) a palavra central desta coleção. São encontradas
várias referências aos doze (nos rolos de Wadi Murabba’at e Qumran e
em uma referência em Eclesiástico 49:10).
160 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
Essa coleção segue uma sequência cronológica. Primeiramente,
encontramos os profetas que ameaçavam a queda do Reino do Norte:
Oséias, Amós, Miquéias (1:2-7). Judá era salva deste mesmo destino,
porque eles seguiram o conselho de Joel e pediram a ajuda de Deus,
que por sua vez poupou seu povo (Joel 2:18). Obadias e Jonas discutem
como as nações estão relacionadas com o destino de Israel. Com
Miquéias, Naum, Habacuque e Sofonias, ouve-se os profetas pregarem
o castigo a Judá. Suas advertências passaram despercebidas e, assim,
Judá também desapareceu. Entre Sofonias e Ageu deve-se ler sobre o
exílio, a fim de obter mais detalhes sobre este episódio nos dois reinos.
Ageu, Zacarias e Malaquias, finalmente, gravam a mensagem que levou à
restituição limitada de Judá, sob o domínio persa. Mas ao mesmo tempo,
sublinham a forma final do desejo de Deus para salvá-los e com eles todo
o mundo; ainda é uma coisa do futuro.

Como o estudo aqui é panorâmico, a intenção foi a de fornecer uma visão


geral sobre os profetas. No link a seguir, indicada na seção “Saiba Mais”,
há mais informações sobre como esses profetas interpretam a realidade
de seus tempos à luz do relacionamento especial entre Deus e Israel.

Exercício de aplicação
A profecia quando proclamada evidencia conteúdos de acusação e
ou julgamento, de instrução, de esperança e ou de salvação. Todos
eles são construídos em linguagem simbólica. Neste sentido,
muitas Bíblias de estudo trazem em seus comentários informações
que ajudam na interpretação e esclarecimento da passagem bíblica.
A seguir, há um trecho do profeta Naum, que diz:
“Você multiplicou, mais do que as estrelas do céu, o número
dos seus comerciantes. O grilo pula e voa longe. Seus guardas
parecem bandos de gafanhotos, e seus funcionários um enxame
de insetos que pousa no muro em dia de frio. Mas, quando sai o
sol, vão embora, e ninguém mais sabe para onde foram” ((Bíblia do
Peregrino 3:16-17
3:16-17)

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 161


A Bíblia do Peregrino traz o seguinte comentário sobre esta
passagem:
16-17: A riqueza de Nínive repousava sobre a multidão de funcionários
que recolhiam tributos das nações dominadas, e sobre os comerciantes
que arrebanhavam para a Assíria tudo o eu havia de melhor nos outros
países. Com a ruína dela, também desaparece essa longa mão do
poder assírio. (BÍBLIA DO PEREGRINO, 1995, p. 1204)
Diante disto, pode-se afirmar que a profecia se caracteriza
corretamente quando:
a. ( ) O intérprete domina a os conceitos literários, teológicos e
históricos, permitindo situar a relevância e impacto da mensagem
na época do profeta e o desvendamento de sua profecia.
b. ( ) O leitor das profecias bíblicas identifica uma situação
semelhante no contexto contemporâneo e faz comparações,
indicando as acusações e as esperanças para o povo.
c. ( ) A passagem é lida nos momentos de culto e o líder pede
para alguém interpretá-la para todos os participantes.
d. ( ) O cristão consegue discernir o inimigo e pontuar as ações
do mal contra o povo de Deus.
e. ( ) Cada leitor tem a liberdade de identificar as possibilidades
de entendimento acerca dos termos simbólicos, isto é, alegorizar
a passagem.

Saiba mais: UNIDADE LITERÁRIA DOS DOZE PROFETAS


Neste link abaixo, você encontrará um excelente material sobre os
Profetas Menores.

h�ps://www.webar�gos.com/ar�gos/shenei-assar-uma-analise-sobre-
a-unidade-literaria-dos-doze-profetas-menores/13129

162 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


O vídeo a seguir é uma síntese da história de Israel. Vale a pena
obter esta síntese a fim de “relembrar” todo o conteúdo, pois na
próxima unidade, é bom ter em mente a história como pano de
fundo da atuação dos profetas.

Vídeo: Resumo histórico do Antigo Testamento


Duração: 14m35s
Disponível em: h�ps://www.youtube.com/watch?v=MfFDdTwx5WU

3. ESTRUTURA LITERÁRIA DO ORÁCULO PROFÉTICO


Neste tópico, você irá assistir uma videoaula através da qual estudará sobre
a estrutura literária do oráculo profético. Observe que haverá uma introdução
às características essenciais do profeta, que são necessárias para proclamar
a profecia. E, logo em seguida, a exposição das partes do texto.

4. HERMENÊUTICA DOS PROFETAS


Neste último tópico, vale a pena comentar sobre como se processa a
interpretação dos profetas e principalmente a relevância deles para a
contemporaneidade. A escolha do texto de Jeremias deve-se ao fato do
prof. Júlio Paulo Mantovani Tavares Zabatiero refletir sobre o tema da “Nova
Aliança em Jerusalém”. A seguir, você entenderá como o pensamento profético
(forma, conteúdo e mensagem) são relevantes paro o desenvolvimento das
comunidades cristãs e a integração com a mudança social.

4.1. A Nova Aliança


Muito bem! Já estamos nos aproximando da conclusão deste nosso
estudo. Vamos nos ocupar de um tema muito importante para a fé cristã:
a nova aliança. Nossa base será o livro de Jeremias, especialmente o
capítulo 31. O texto é conhecido, e é muito citado em o Novo Testamento.
Enfim, mãos à obra!

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 163


No livro de Jeremias encontramos uma novidade (literalmente falando). O
profeta Jeremias conhecia a ideia da aliança de Deus com os pais (Êxodo
6) e viu, na sua própria época, que o povo de Israel (principalmente rei e
sacerdotes) não era fiel ao Deus da aliança. Por isso, ele afirma que Deus
fará uma nova aliança com o seu povo. Como será a nova aliança?

Os capítulos. 30-31 de Jeremias são denominados por vários


pesquisadores como “livro da consolação” e, atualizando a linguagem
de Jr 3:12ss, anunciam a restauração do povo de Deus e a renovação
da aliança entre DEUS e o seu povo restaurado. Os versos 1-3 formam a
introdução ao livreto, indicando a procedência jeremiânica e a temática
da restauração da sorte do meu povo – Israel e Judá. 30:5-7 e 23-24
enfocam a restauração de “Jacó” e a reconstrução de Sião, com novo
governo (evitam-se os termos específicos para “rei” e “reinado”), como
atos exclusivos de DEUS. No capítulo 30, após a introdução em prosa (1-4),
pequenos oráculos (oráculo = fala, anúncio) em forma poética, retratam
a esperança do profeta (5-11, 12-17 e 18-24). Jr 31:1 é a introdução ao
capítulo, que inclui os seguintes oráculos: 2-9.10-14.15-22.23-25.27-
30.31-34.35-37.38-40, que retomam os temas da restauração de Israel e
Judá, da mudança da sorte e linguagem dos capítulos iniciais do livro de
Jeremias. Nosso estudo será restrito ao capítulo 31, no qual encontramos
o tema da Nova Aliança.

31,1 Naquele tempo, diz DEUS, serei o Deus de todas as tribos de


Israel, e elas serão o meu povo. 2 Assim diz DEUS: O povo que se
livrou da espada logrou graça no deserto. Eu irei e darei descanso
a Israel. 3 De longe se me deixou ver DEUS, dizendo: amo-te desde
os tempos antigos; por isso, com benignidade te atraí. 4 Ainda te
edificarei, e serás edificada, ó virgem de Israel! Ainda serás adornada
com os teus adufes e sairás com o coro dos que dançam. 5 Ainda
plantarás vinhas nos montes de Samaria; plantarão os plantadores
e gozarão dos frutos. 6 Porque haverá um dia em que gritarão os
atalaias na região montanhosa de Efraim: Levantai-vos, e subamos a
Sião, a DEUS, nosso Deus!

164 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


O primeiro oráculo do capítulo 31 oferece, por assim dizer, a racionalidade
teológica da esperança apresentada no capítulo 30. É colocado na
sequência temática aproveitando a linguagem da aliança no final do
capítulo 30 e, assim, retoma temas da tradição deuteronômica com sua
linguagem do êxodo, da liberdade, do amor e da fidelidade de DEUS. A
fórmula da aliança é reestilizada na abertura: “serei o Deus de todas as
tribos de Israel, e elas serão o meu povo” – a evocação de todas as tribos
de Israel remete às tradições dos pais e mães de Israel em Gênesis. Em
seguida, a linguagem é extraída das narrativas do êxodo egípcio: “o povo
que se livrou da espada logrou graça no deserto” – alusão ao escape no
Mar dos Juncos e à peregrinação pelo deserto antes da entrada na Terra
prometida (cf. Êx 5:21; 15:9; 18:4).

Em Jeremias, o deserto é o lugar onde Israel outrora seguiu fielmente


a DEUS (2,2). É parte do passado esquecido da nação (2,6). Jeremias
assemelha Israel a um nômade e a um burro selvagem acostumado ao
deserto (2,24; 3,2). Ele fala de um terrível vento do deserto que irá destruir
Israel (4,12) e de inimigos que virão do deserto para devorar a terra (12,12).
Em uma demonstração de juízo, DEUS tornará a terra fértil e produtiva
em um deserto inabitado (4,26; 9,11; 12,10; 22,6; 23,10). Eventualmente a
Babilônia, o instrumento de destruição, irá também se tornar um deserto
(50,12). Entrementes, DEUS está tão doente com a infidelidade de Israel
que o amante esquecido anseia por habitar no deserto (9,2). Interessante
é o fato de que somente aqui em Jr 31,2 a imagem do ‘deserto’ possui um
sentido inconfundivelmente positivo. (STULMAN, 2005, p. 258.)1

Também a expressão ‘de longe’, no verso 3, é uma alusão ao êxodo, desta


vez ao episódio da teofania de DEUS narrado em Êxodo: ver 19:12-13;
21:23-24; 24:1-2.

Assim como ocorreu quando do êxodo egípcio, o novo êxodo de Judá


do cativeiro babilônico ocorrerá porque DEUS ama seu povo. Temos aqui
uma das mais belas e tocantes declarações do amor de Deus por seu
povo: “amo-te desde os tempos antigos; por isso, com benignidade te
atraí”. Mais uma vez nos aproveitamos da interpretação de Stulman:
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 165
“tal tipo de amor vê o amando apenas através dos olhos da misericórdia.
Israel não é mais ‘infiel’ (3,11.23; ver também 31,22), ou promíscuo, mas
é agora ‘virgem Israel’ (31,4; ver também 18,13; 31,21). Tal benevolência,
ademais, se exalta diante da bem-definida categoria deuteronômica
de bênção-maldição (Dt 27-28) – a despeito das inúmeras falhas da
nação, DEUS permanece leal e a abraça incondicionalmente. Os atos
salvíficos de Deus, assim, têm pouco a ver com a piedade, virtude ou
prestígio de Israel (cf. Dt 4,37; 7,8), e tudo a ver com a misericórdia”
(STULMAN, 2005, p. 258).

A sorte de Israel, transformada pela graça amorosa e fiel de Deus, se


transforma e em lugar de gemidos e gritos de dor, o som da música e
da festa se fará ouvir novamente. Israel, mais uma vez, poderá realizar a
peregrinação festiva ao encontro de DEUS em sua casa em Jerusalém,
subindo alegremente, cantando e dançando em louvor àquele que ama
incondicionalmente e refaz a vida de seu povo. O amor de Deus, porém,
não pode ser entendido como uma desculpa para a infidelidade, de modo
que o juízo não é a negação do amor, mas a consequência da infidelidade.
Quem ama e é traído sabe bem de que Jeremias está falando. Ressalta,
mais uma vez, a referência de Jeremias ao reino de Israel, a sua capital
Samaria (v. 5-6) – palavra que certamente não cairia bem aos ouvidos
dos judaítas exilados ou remanescentes na terra, ouvintes de Jeremias.
Como séculos mais tarde dirá o Messias em uma de suas parábolas, o
filho pródigo é recebido de volta à casa com alegria, mesmo que o ciúme
do bom filho seja incapaz de entender o significado do verdadeiro amor.

A linguagem da dança, da festa, da alegria continua a ressoar nas demais


perícopes do capítulo 31, até a declaração da nova aliança. É Israel quem
recebe a promessa de retorno e restauração, Judá terá de aceitar a
fidelidade individida de DEUS e encontrar um modo de restaurar a unidade
perdida do povo de Deus – as fronteiras nacionais para nada contam, o
que vale é a eleição divina: um só povo, uma só terra, um só Deus.

Em Jeremias 31:27-34, encontramos um exemplo de anúncio de

166 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


restauração. O texto é subdividido em três seções (mas estudaremos
apenas as duas últimas), iniciadas com a expressão “dias virão”, ou
“naqueles dias”. Na primeira seção, DEUS promete restaurar a casa
de Israel (que havia sido destruída pelos assírios no VIII século a.C.) e
de Judá, após o fim do reino de Judá (tomado pelos babilônios no VI
século a.C.) – vigiei (juízo) & vigiarei (restauração). Na segunda seção,
o Senhor anuncia uma nova mentalidade sobre o pecado e a culpa –
cada um morrerá pela sua própria iniquidade – rompendo com a forma
tradicional de incluir os filhos e netos na culpa dos pais/avós (quando um
fazendeiro ficava endividado, por exemplo, suas filhas e filhos poderiam
ser escravizados para abater a dívida), mentalidade que permitia, na
prática, isentar os pais poderosos de castigo (note, por exemplo, que é o
filho de Davi com Bateseba que morre, ao invés do pecador Davi, e isto é
atribuído pelo escritor ao juízo de Deus). Na terceira seção temos um dos
textos mais famosos do Antigo Testamento para os cristãos: o anúncio
da nova aliança! Vejamos, então, o texto e sua teologia.

29 Nesses dias não mais se dirá: Os pais comeram uvas verdes, e os


dentes dos filhos se embotaram. 30 Cada pessoa, porém, será morta
como consequência de seu próprio delito. Cada pessoa que comer
uvas verdes terá seus dentes embotados. 31 Aproximam-se dias –
oráculo de DEUS – em que firmarei com a casa de Israel e com a casa
de Judá uma nova aliança. 32 Não será como a aliança que fiz com
seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para tirá-los da terra do
Egito. Eles traíram minha aliança enquanto eu ainda era esposo entre
eles; oráculo de DEUS. 33 Esta é a aliança que firmarei com a casa
de Israel depois desses dias – oráculo de DEUS – gravarei a minha
instrução em suas entranhas e no seu coração as escreverei; então eu
serei o seu Deus e eles serão o meu povo. 34 Não ensinará mais cada
um ao seu vizinho, nem cada um ao seu irmão, exortando: Conhece a
DEUS. Cada pessoa me conhecerá, da mais insignificante até a mais
poderosa – oráculo de DEUS. Perdoarei o seu delito e de seu pecado
não mais me lembrarei.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 167


Note as expressões indicativas de que Jeremias está falando a respeito
de dias de transição: nesses dias (v. 29), aproximam-se dias (v. 31),
depois desses dias (v. 33). Note a profusão de verbos no futuro, 13 – que
contrastam com os verbos no passado, 7. Note, ainda, que a expressão
‘oráculo de DEUS’ é usada três vezes, reforçando a origem e a autoridade
divina da inovação proposta por Jeremias. Esse uso repetido ressalta a
estranheza da mensagem de Jeremias em seu contexto, de modo que ele
apela insistentemente à autoridade divina. Novo e velho se contrapõem
nesta pequena fala de Jeremias.

O velho mundo, em desaparecimento na época de Jeremias, era o mundo


rural, do reino de Judá independente, protegido por DEUS, o deus de Davi,
morador do Templo em Sião, chefe dos exércitos do rei, abençoador
do povo. O novo mundo nascente era um mundo urbanizado, gente se
acotovelando em poucas cidades, gente sem-terra tendo de aprender
nova profissão, morar em casinhas apertadas, pegar o ônibus da periferia
para o centro. A urbanização fora provocada pelas seguidas incursões
militares estrangeiras que obrigavam as populações rurais migrarem
para as cidades em busca de proteção. DEUS não parecia ser um deus
muito amigo do rei, nem do seu povo.

Como vimos, o velho mundo tinha suas certezas teológico-políticas.


Eram pelo menos três: (1) DEUS escolheu Davi e sua família para reinar
para sempre em Israel (tudo bem que Israel já deixara de fazer parte
do domínio davidida no século IX a.C. e se tornara província do Império
assírio no séc. VIII. A linhagem davídica reinava apenas em Judá, mas
quem se preocupa com exatidão quando ouve a profecia?); (2) DEUS era
o deus do rei de Judá e, assim, o comandante-em-chefe dos exércitos
terrestres do rei e dos celestes dele mesmo, e olha que DEUS é retratado
como bom de briga nas tradições antigas de Israel e Judá; (3) DEUS
mora no Templo, por isso, Sião será inabalável – montanha da felicidade,
refúgio seguro em tempos de aflição, umbigo do universo.

O novo mundo jeremiânico, porém, nasce rompendo com essas certezas.


Desde o rei Acaz, mais de cem anos antes do tempo de Jeremias, um
168 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
descendente de Davi continuava no trono, mas era servo de outros reis
– da Assíria ou do Egito, ou da Babilônia. Nos dias de Jeremias, porém,
não mais havia um davidida no trono. A primeira certeza desmoronou.
DEUS era bom guerreiro mas, aparentemente, os deuses da Assíria, do
Egito e da Babilônia, na ordem cronológica, eram melhores. O exército
de Judá, segunda certeza, foi para o cemitério. Os muros de Jerusalém,
que livraram Ezequias da morte, mas não do tributo, ainda estavam em
pé depois das guerras contra assírios e egípcios; o Templo mantinha
sua imponência. De três certezas, uma ainda funcionava. Mas nos dias
de Jeremias o Templo foi destruído, os muros de Jerusalém foram
demolidos, quase metade da população morreu. Terceira certeza –
literalmente desabou.

A teologia da corte real de Jerusalém e do sacerdócio do Templo de


Jerusalém estava se esvaindo também – mas como a fé não é vista, o rei
e o sacerdócio ainda diziam: DEUS nos livrará! Entretanto, um sacerdote
do interior, também profeta, não teria medo de ficar na oposição. Outro
sacerdote-profeta, Hananias, peitou Jeremias várias vezes, e a dúvida
se estabeleceu: quem era o verdadeiro profeta? Jeremias ou Hananias?
Moral da história: Jeremias entrou para a Bíblia. Hananias só é lembrado
porque Jeremias colocou as discussões com ele no seu livro.

O novo mundo de Jeremias pode ser chamado de a Modernidade Judaíta.


Jeremias foi um profeta-filósofo da Modernidade. Vários historiadores,
seguindo Karl Jaspers, um teólogo-filósofo católico-romano europeu,
descrevem a época na qual viveu Jeremias como Era Axial (era do ‘eixo’, ou
seja, o eixo é a peça que faz girar a roda. Metaforicamente, então, era axial
é a época em que a roda do mundo gira e coisas novas acontecem), pois
afirmam que nessa época uma grande mudança civilizacional ocorreu
em todo o mundo. Era Axial é um conceito sinônimo de Modernidade.
Literalmente, modernidade significa novidade. Na Sociologia usa-se o
termo Modernidade para descrever as mudanças radicais entre o mundo
feudal e o mundo democrático. Não é preciso concordar plenamente
com essa tese para reconhecer que, em Judá, a época da dominação
babilônica teve efeito similar ao da Modernidade para a Europa feudal.
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 169
Vamos voltar ao seu pequeno texto.

Lembra-se da profusão de verbos no futuro e do contraste entre o velho e


o novo? Modernidade é o nome que se dá exatamente ao tempo em que
o velho é substituído pelo novo, novo que sempre se renova. Por que não
reconhecer a Modernidade judaíta?

Note quantas vezes aparece a expressão cada um e o pronome da


primeira pessoa do singular: quinze vezes! Modernidade é o nome que
se dá para a passagem do mundo feudal da coletividade subalterna ao
nobre para o mundo democrático e capitalista dos direitos individuais e
da iniciativa privada. Por que não reconhecer a Modernidade judaíta?

Note no texto a inversão da forma de conhecer as coisas: a nova


aliança não será como a antiga, escrita em tábuas de pedra, mas estará
gravada no íntimo e no coração de cada pessoa. Jeremias está tirando
dos sacerdotes o monopólio da Torá e o democratizando! Modernidade
é o nome que se dá ao tempo em que a autoridade exterior do dogma
é substituída pela certeza interior da razão pesquisadora do sujeito
autônomo. Por que não reconhecer a Modernidade judaíta?

Note no texto a universalização individual da moralidade: “Cada pessoa


me conhecerá, da mais insignificante até a mais poderosa ... perdoarei
o seu delito e de seu pecado jamais me lembrarei”. A responsabilidade
ética passa a ser reconhecida como individual e o perdão dos pecados é
um ato direto de Deus – o que reforça o fim do monopólio sacerdotal –
não só sobre a instrução, mas também sobre o perdão. Modernidade é o
nome que se dá ao templo em que os direitos individuais e a igualdade
de todas as pessoas são afirmados como inalienáveis. Por que não
reconhecer a Modernidade judaíta?

Por quê? Por que a Modernidade moderna se define como o tempo em


que não mais se precisa de Deus, que está quieto e passivo no distante
céu transcendental – enquanto a Modernidade judaíta é fruto da palavra
e da ação de Deus “aqui e agora”: note no texto a tríplice presença da

170 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


fórmula do dito profético. Por que a Modernidade moderna se define
como o tempo das relações contratuais, mediadas pela instituição estatal
– enquanto a Modernidade judaíta se define como o tempo das relações
da aliança, sem mediação institucional, definidas pela fidelidade: note no
texto a linguagem afetiva da aliança. Por que a Modernidade moderna
é enganadora – a autonomia do sujeito individual só existe para Ricos,
Poderosos, Filósofos e Cientistas – a imensa maioria das pessoas
só faz é pagar a conta (tudo bem que a gente ganha umas coisinhas
interessantes – celular, computador, avião, televisão, DVD, HD ...). Por
outro lado, a Modernidade judaíta é esperançosa: esses dias virão –
antes deles chegarem, porém, nós temos de mudar nosso estilo de vida,
nossa fé, nossa teologia, nosso mundo – note no texto como o defeito da
velha aliança foi a traição dos pais e não um erro de DEUS.

Exercício de aplicação
Observe a sequência das fotos abaixo:

As imagens a seguir sintetizam a riqueza e a força que as profecias


de Jeremias proporcionaram ao povo de Deus. Elas indicam
produção de sentido e significado da situação histórica em que o
povo presenciava. A partir dessas imagens, assinale a alternativa
abaixo que confirme o conteúdo das profecias de Jeremias.

a. ( ) Jeremias proporcionou vários oráculos de julgamento, porque


através deles o povo conheceria a sua origem profética.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 171


b. ( ) A Lei, cognato para a Aliança, só teve força na época de
Moisés, pois produzia proteção para o povo através da presença
de Deus no Tabernáculo, e através dos sacrifícios para purificação.

c. ( ) A Aliança refere-se aos conchavos do rei com os sacerdotes


e profetas, o que ocasionou o desespero de Jeremias frente ao
império assírio.

d. ( ) O povo precisava ter consciência do poder da Aliança, pois


era a representação da relação de Deus com ele, a ponto de YHWH
ser o oleiro que destrói e edifica, que faz justiça com seu povo,
mesmo trazendo um inimigo contra Israel.

e. ( ) A mensagem de Jeremias era de duplo sentido: salvar e


condenar; curar e ferir; justiça e injustiça.

Os dois mundos de Jeremias continuam existindo até hoje. É claro que


com novos nomes, novos rostos, novos estilos. Mas estão ainda entre
nós. Como nos tempos de Jeremias, vivemos uma época de transição.
A Modernidade moderna se esgotou, mas a Modernidade Pós-Moderna
ainda não se instalou. O Cristianismo Moderno se esgotou, mas o
Cristianismo Mais-do-que-Moderno ainda não se criou.

Acredito que estamos começando a aprender que esses dois mundos


não são cronologicamente sucessivos. Eles coexistem. Velho e Novo
compõem o nosso tempo presente. Injustiça e Justiça duelam a cada
momento. Pecado e Perdão andam lado a lado. Lei e Graça se alternam
em nossos corações. Como construir o novo? Soprar o espírito da
nova aliança na velha. Tão simples, mas tão difícil. Uma resposta
modernamente antiga: “vinho novo rompe os odres velhos”. Uma resposta
modernamente moderna: Por quê? Por que a Lei é sedutora, o Dogma é
tranquilizador, a Instituição é confiável. Por outro lado, a Graça parece
pesada demais, a Teologia tira o sono da gente, a Fidelidade não parece
fiel. Resta crer em DEUS. Mas, ai de nós! O DEUS de Jeremias é do contra!
172 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
4. 2 Leituras proféticas possíveis
Estamos encerrando nossa disciplina de Introdução ao Antigo Testamento.
Vimos várias características históricas, literárias e teológicas da Escritura
judaica. Para concluir nosso breve estudo, iremos refletir sobre como
a Bíblia interpreta a própria Bíblia – ou, em linguagem técnica, vamos
refletir sobre a hermenêutica na Bíblia.

Quando lemos a Bíblia, encontramos vários exemplos de citações (cópia


literal) de outros textos, bíblicos ou não; encontramos alusões a outros
textos (uso de linguagem semelhante a de outros textos, mas sem copiar
literalmente tais textos); também encontramos explicações de outros
textos bíblicos. Esses fenômenos servem para nos ajudar a dar valor à
interpretação de textos bíblicos, na medida em que ela está presente na
própria Escritura. Antes de observarmos alguns exemplos positivos de
uso da hermenêutica na Escritura, vejamos uma situação negativa:

Considerai a longanimidade de nosso Senhor como


a nossa salvação, conforme também o nosso amado
irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe
foi dada. Isto mesmo faz ele em todas as cartas, ao
falar nelas desse tema. É verdade que em suas cartas
se encontram alguns pontos difíceis de entender, que
os ignorantes e vacilantes torcem, como fazem com
as demais Escrituras, para a própria perdição (2 Pedro
3,15-16).

Pedro lamenta o fato de que membros de igrejas interpretavam mal as


cartas paulinas, assim como interpretavam mal as Escrituras, torcendo o
sentido dos textos e causando, assim, a sua própria perdição! Este dado
negativo ressalta a necessidade da hermenêutica para a compreensão
das Escrituras cristãs.

Os trechos a seguir estão em ordem cronológica: o mais antigo é o do


livro do Êxodo, depois o do Deuteronômio e, por fim, o do Salmo 86.
Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 173
Repare como o texto de Êxodo é interpretado e reformulado:

YHWH, YHWH, Deus de ternura e de piedade, lento para a cólera, rico


em graça e fidelidade; que guarda sua graça a milhares, tolera a falta,
a transgressão e o pecado, mas a ninguém deixa impune e castiga a
falta dos pais nos filhos, e os filhos dos seus filhos, até a terceira e a
quarta geração (Êx 34:6-7);
Saberás, portanto, que YHWH teu Deus é o único Deus, o Deus fiel,
que mantém a aliança e o amor por mil gerações, em favor daqueles
que o amam e observam os seus mandamentos; mas é também o
que retribui pessoalmente aos que o odeiam; faz com que pereça
sem demora o que o odeia, retribuindo-lhe pessoalmente (Dt 7:9-10);
Tu YHWH, Deus de piedade e compaixão, lento para a cólera, cheio de
amor e fidelidade, volta-te para mim, tem piedade de mim! (Sl 86:15-16).

1. O texto deuteronômico interpreta o do êxodo a partir da nova situação


urbana em que o Deuteronômio está sendo escrito: (a) desaparece a
expressão “a falta dos pais nos filhos, e os filhos dos seus filhos, até
a terceira e a quarta geração”, que é substituída pelas expressões
“o que retribui pessoalmente aos que o odeiam [...] retribuindo-lhe
pessoalmente”. O Deuteronômio interpreta o texto do Êxodo e já lhe
dá um novo sentido (ou um sentido renovado). O texto do êxodo fazia
bastante sentido em uma comunidade agrária, pouco urbanizada, em
que os filhos e netos viviam na propriedade do pai (e do avô), e sofriam
os efeitos dos problemas do pai (ou do avô) – quando a colheita ia mal,
todos sofriam! Já o texto do Deuteronômio é escrito em um ambiente
urbanizado, onde pais e filhos e netos vivem em casas separadas, têm
(podem ter) diferentes profissões e suas vidas não estão ligadas de forma
tão intensa quanto no sítio; (2) pela mesma razão, o termo “milhares” de
êxodo é substituído por “mil gerações” e recebe o acréscimo de “em favor
daqueles que O amam e observam os seus mandamentos”; (3) O texto do
Deuteronômio é da mesma época (ou talvez um pouco anterior) aos de
Ezequiel 18 e Jeremias 31, textos que também indicam uma mudança de
mentalidade em Judá:
174 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA
Nesses dias já não se dirá: Os pais comeram uvas verdes e os dentes
dos filhos se embotaram. Mas cada um morrerá por sua própria falta.
Todo homem que tenha comido uvas verdes terá os dentes embotados”
(Jr 31,29-30). “A palavra de YHWH me foi dirigida nestes termos: Que
vem a ser este provérbio que vós usais na terra de Israel: ‘Os pais
comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados’? Por
minha vida, oráculo de YHWH, não repetireis jamais este provérbio em
Israel. Todas as vidas me pertencem, tanto a vida do pai, como a do
filho. Pois bem, aquele que pecar, esse morrerá (Ez 18,1-4);

e (4) o Deuteronômio insere sua própria visão da aliança na interpretação


de Êxodo: YHWH é descrito como “teu Deus”, “o único Deus”.

2. Já o Salmo 86 cita apenas a primeira parte do texto do êxodo, deixando


de fora toda a seção sobre a punição. Por quê? Porque o Salmo 86 é
uma oração individual de súplica, de modo que o contexto litúrgico da
interpretação autoriza o intérprete a se apropriar de apenas parte do
texto interpretado, a fim de destacar a mensagem que deseja comunicar
aos seus ouvintes. A interpretação que o Salmo 86 faz do texto do êxodo
é exemplo de uma “nova aplicação” do texto em um novo contexto. Não
se trata de negar os aspectos do texto que não foram citados, nem de
ressignificar o texto (como no caso do Deuteronômio), mas, sim, de
apropriar-se do texto em uma situação distinta da situação em que o
texto interpretado foi elaborado.

Este breve exemplo nos oferece três princípios hermenêuticos no Antigo


Testamento: (1) um texto sempre é interpretado a partir do contexto de
quem o interpreta; (2) a interpretação de um texto envolve vários textos
com parentesco discursivo (temático); e (3) a interpretação nunca é
repetição do sentido do texto interpretado, podendo ser uma ampliação,
uma reformulação, uma correção, ou uma nova aplicação.

Vejamos outro exemplo, desta vez destacando um aspecto mais técnico


da interpretação, o recurso à intertextualidade:

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 175


Em Dt 12,13-19 há dois exemplos de citação de Êx 20,24, o primeiro no
verso 14 e o segundo no 15:

(a) Em Dt 12,14 que faz referência ao santuário único e às instruções


acerca do que fazer no santuário citam Êx 20,24 mas de forma quiástica,
ou seja, invertida. A lei do altar em Êx 20,24 tem dois componentes
principais:
A Sacrificarás sobre ele tuas ofertas queimadas
B em todo lugar onde... .

Dt 12,14 toma esses dois elementos em ordem quiástica, invertida,


fazendo com que o foco da lei recais sobre o lugar do sacrifício e não
sobre o ato do sacrifício (como em Êxodo):
B1 no lugar que Javé tiver escolhido
A1 lá oferecerás tuas ofertas queimadas

(b) Em Dt 12,15 o texto de Êx 20,24 é ressignificado, de modo a permitir o


abate de animais nas cidades, longe do altar (o que era exigido no texto
do Êxodo):
A sacrificarás sobre o altar tuas ofertas queimadas
B em todo lugar onde Eu proclamar meu nome
Eu virei a ti e te abençoarei

O texto do êxodo é citado invertidamente e ressignificado em Dt 12,15:


A1 conforme o desejo de teu coração poderás abater e comer carne
B1 conforme a bênção de Javé teu Deus em cada um de teus portões

O trecho a seguir é sobre as leituras proféticas possíveis em o Novo


Testamento.

Aconteceu, naqueles dias, que Jesus veio de Nazaré da Galiléia e foi


batizado por João no rio Jordão. E, logo ao subir da água, ele viu os

176 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


céus se rasgando e o Espírito, como uma pomba, descer até ele, e
uma voz veio dos céus: ‘Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo’.
(Mc 1,9-11)

Repare no conteúdo da voz que veio dos céus: as sentenças Tu és o


meu filho amado, em ti me comprazo vêm do Antigo Testamento, e são
retiradas de três textos distintos: Gn 22:2 “Deus disse: ‘Toma teu filho,
teu único, a quem amas, Isaque, e vai à terra de Moriá, e lá o oferecerás
em holocausto sobre uma montanha que eu te indicarei” (cf. 22:12.16);
Sl 2:7 “Publicarei o decreto de YHWH: Ele me disse: ‘Tu és meu filho, eu
hoje te gerei’.” e Is 42:1 “Eis o meu servo que eu sustento, o meu eleito,
em quem me comprazo. Pus sobre ele o meu Espírito, ele trará o direito
às nações”. O Evangelho de Marcos usa diferenciadamente os três textos
vétero-testamentários: no caso de Gn 22 temos uma alusão, pois não
há uma cópia literal do texto de Gênesis: “filho amado” (de Marcos)
equivale - “a quem amas” (de Gênesis). Nos casos do Sl 2:7 e de Is 42:1 é
usada a estratégia da citação, pois parte do texto vétero-testamentário é
literalmente copiada: “Tu és meu filho” (no caso do Salmo); “me comprazo”
(no caso de Isaías).

Por que Marcos junta três textos aparentemente tão diferentes para falar
de Jesus? Ou, em outras palavras, que princípios hermenêuticos Marcos
usou ao construir o seu texto? Dois dos princípios nós já conhecemos –
Marcos interpreta os textos do Antigo Testamento à luz de seu próprio
contexto como intérprete. Marcos já conhece a vida de Jesus e essa vida
de Jesus se torna a chave para interpretar os textos do Antigo Testamento
– o princípio hermenêutico (1) acima. Marcos não escolhe os textos do
Antigo Testamento de qualquer jeito. É a cristologia que serve de base para
a escolha: o texto de Gênesis é aludido porque Jesus era anunciado como
o novo Isaque – mas um Isaque diferente, que morreu sacrificialmente. O
Salmo é citado porque a igreja cristã acreditava que Jesus era o pregador
do reino de Deus, o rei assentado à direita do trono de Deus Pai. Isaías é
citado porque Jesus era anunciado como o Servo de Deus que morre e
ressuscita em benefício do Seu povo – o princípio (2) acima.

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 177


O terceiro princípio que vimos no exemplo do Antigo Testamento é usado
de forma peculiar por Marcos. Ele, de fato, corrige o sentido dos textos
vétero-testamentários, mas não os textos em si, e sim a interpretação que
rabinos judeus faziam desses textos, afirmando que a interpretação cristã
era a mais correta. Isto nos mostra um quarto princípio hermenêutico:
(4) o da conflitividade da interpretação – textos sagrados recebem
interpretações conflitantes nas diferentes comunidades de seguidores
desses textos. Um novo princípio, por fim, também é perceptível: (5)
Marcos usa uma técnica comum entre os intérpretes judeus: a associação
de textos das diferentes seções do cânon hebraico mediada pelo uso de
palavras-chave ou temas-chave.

No pano-de-fundo dessa técnica está o texto bíblico de Dt 17:6: “Pela


boca de duas ou de três testemunhas, será morto o que houver de morrer;
pela boca duma só testemunha não morrerá”. Esse texto é interpretado
a partir de outro princípio hermenêutico: (6) se um texto vale para uma
situação material, também há de valer para uma situação espiritual. As
três seções do cânon hebraico são as três testemunhas que confirmam
a validade do texto de Marcos! (Note como este princípio está presente
também na pregação de Paulo, 1 Co 9:8-14 e 1 Tm 5:17-18 que interpreta
o texto “não amordaçarás o boi que debulha” como um texto que valida o
pagamento de remuneração aos pregadores da palavra.)

Exercício de reflexão
Na imagem a seguir, há uma breve proposta de redação, feita pela
professora Daniela Diana. No conteúdo da mensagem, há o tema
da corrupção no Brasil. Leia um trecho da informação:
Corrupção no Brasil: como fazer uma redação sobre o tema
Daniela Diana - Professora licenciada em Letras
A corrupção no Brasil não é algo novo e talvez seja um dos maiores
problemas que afeta o bem-estar da população.
Há muito tempo se fala de desvios de verbas públicas, da corrupção

178 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


de políticos, da lavagem de dinheiro, do pagamento de propinas,
do abuso de poder, dentre outros.
Esses temas, por serem muito atuais, sobretudo pelos esquemas
da Lava Jato e da Odebrecht que ocorreram recentemente no
Brasil, despertam a atenção de todos.

Protesto contra a corrupção no país


Assim, para estudar para o vestibular e/ou Enem é muito
importante estar atento aos assuntos da atualidade. Isso porque
eles podem ser cobrados tanto nas provas, como na redação.
Portanto, confira as dicas de como fazer uma redação sobre o
tema da “Corrupção no Brasil”.
Diante do exposto, indique caminhos através dos quais a igreja
cristã pode utilizar-se da profecia para transformar a realidade
social brasileira. (Mínimo de 100 palavras).

LEITURAS COMPLEMENTARES
NEGRO, Mauro. “Profetas e Profetismo: identidade e missão”. In: Revista
de Cultura Teológica, v. 17, n. 67, abril/junho de 2019, p. 153-177. Texto
acessado em 20/07/2019 e disponível em:

Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA | 179


https://revistas.pucsp.br/culturateo/article/download/15459/11558

MILHORANZA, Alexandre. “Literatura Profética”. Texto acessado em


30/06/2019 e disponível em: https://www.milhoranza.com/2012/10/18/
literatura-profetica/

ZENGER, Erich. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo, SP: Loyola,


2003, p. 367-380.

VÍDEOS COMPLEMENTARES
Os Profetas de Israel. Luís Sayão. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=wuNf_gmUZ9E

As aventuras de Jeremias (desenho bíblico). Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=RSrSt-i-48g

REFERÊNCIAS
JEREMIAS, Jörg. Hosea und Amos: Studien zu den Anfängen des
Dodekapropheton. Tübingen: JCB Mohr, 1996, p. 29-31.

McCONVILLE, J. Gordon. A Guide to the Prophets. Vol. 4. Exploring the


Old Testament. InterVarsity Press, 2002.

1STULMAN, Louis. Jeremiah. Nashville: Abingdon Press, 2005, p. 258.

180 | Bíblia II - Introdução ao AT | FTSA


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