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NAPOLITANO MPB Nos Anos de Chumbo

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A Masica Poputar Brasieira (MPB) NOs ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR (1969/1975)" Marcos Napolitano (Gio Pauto, SP) ‘i nuestos braves quedan sn abrazo a patria re nos muere de wisieza Yel conazin del homie se hace aos Antes aie que explote la vetinza ted pregunterd por qué canta Cartamos porque lueve sobre el suo Y somes miltantes de a vide Y porque no podenos ni quereos ajar que la cain se haga ceniza. Manto Bexeperrt A CENA MUSICAL BRASILEIRA NOS ANOS DE CHUMBO bo de Televisio, o cantor Jards Macalé, numa performance polémica e provocadora, gritava para a platéia: «Cuidado! Hé um morcego na porta principal. Cuidadot». © morcego ameacador que espreitava 0s cidadios brasileiros ficou maior ¢ mais assustador depois da promulgagio do Ato Institucional n° 5, numa sombria sexta-feira, 13 dezembro de 1968. A nova lei concentrava ainda mais os poderes no Poder Executivo e, na pritica, suspendia qualquer garantia de direitos civis, ja violentados desde golpe militar de 1964. Comecavam os ‘anos de chumbo’ da ditadura militar brasileira que durariam até 0 inicio de 1976. Neste periodo, as torturas, mortes clandestinas, sequestros ¢ desapare- ‘cimentos de opositores do regime, fossem eles ligados 4 luta armada de esquerda ou nio, tormaram-se sisteméticas. Na verdade, cram dois grandes morcegos ameagadores criados pelo regime militar. Ao lado do ‘morcego’ da repressio politica, o ‘morcego’ da censura tratava de evitar que os cidadios ameacados explicitassem suas criticas ¢ insatisfagdes. Por N: ESTIVAL INTERNACIONAL DA CANGO DE 1969, evento patrocinado pela Rede Glo- 1. Ese artigo foi claborado a partir do projeto de pesquisa apoiado pela bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq/Ministério da Ciéncia e Tecnologia. Marcos Naporrrano outro lado, este periodo coincidiu com um grande crescimento econémico, na média de 9% ao ano entre 1968 € 1974, 0 que satisfez ainda mais boa parte da classe média que apoiara o golpe de 1964. Para o campo da misica popular, os efeitos do Al-s foram imediatos. © periodo de efervescéncia criativa © debate estéticos e ideol6gicos que marcaram a ‘era dos festivais da cangio’ softia um corte abrupto*. Ao longo de 1968, 2 cena musical brasileira se agitou com o debate entre ‘tropicalistas’ ligados 4 contracultura ¢ ‘emepebistas’ tributizios do nacional-popular de esquerda. Em janeiro de 1969, © quadro era ontro. Os principais {dolos musicais dos festivais eram forcados a sair de cena. Caetano Veloso e Gilberto Gil, 0s ‘tropicalistas’ mais conhecidos, foram presos, ainda no natal de 1968. Geraldo Vandré, 0 autor da ‘marselhesa brasileira’, a canco Cantinhando, sain do Brasil clandestinamente para reaparecer no Chile alguns meses depois, j4 na condi¢io de exilado. Chico Buarque, mais popular de todos, preparava-se para deixar o Brasil, depois de ser ‘aconselhado’ a fazé-lo pelos militares no poder. Edu Lobo partiu para os EUA em 1971, a titulo de aperfeigoar-se musicalmente. Para os artistas consagrados que ficaram no Brasil (Elis Regina, Vinicius de Moraes, ¢ outros), 0 regime tratava de estabelecer uma vigiléncia constante, tal como atestam os documentos produzidos pela policia politica brasileira, recentemente liberados para consulta!. A vigilincia da policia politica se complementava pela intensa censura 3s canges, cujos compositores eram obrigados a envid-las para exame e liberagio prévias a qualquer apresentagio a0 vivo ou gravagdo em disco. No plano da criagio, a censura‘ era incorporada como uma espécie de superego pelo compositor e causava um bloqueio que, em alguns casos, impedia a propria criagio. Foi o caso de Chico Buarque, em 1974, quando se declarou um ‘ex-compositor’, 4 medida que sinha chegado 2 autocensura, Entre 1971 € 1975, a censura esteve muito ativa € tomou- se um fator estrutural na criagio musical e na produgio de cangées, mesmo enquanto commodities de mercado. Conforme Rita Morelli: contexto de represio politica vivido pelo paisa partir da ediglo do Al-s [.~] mpedin que a expansio do mercado de discos ocorresse em beneficio imediato a chamada Misica Popular Brasileira’ Para uma visio historica sobre a ‘era dos fetivas’ ver NAPOLITANO, Marcos. Seguind a cangdo: engaja- mento pote ends cultural na MPB (1959/1969), Sio Paslo, Annablume/FAPESP, 2001 (Selo universidade, 157) © Metto, Zuza Homem de. A ere dos fstivais: ume pardbla, Sto Paulo, Ealitora 34, 2003. 1. Nasourrano, Marcos. ‘A MPB sob suspeita: A censura musical vista pela Stica dos services de vigi- Hancia politica (t968-r981)", in: Revista Brasileira de Histéia, v/47 (2004), pp. 103-126. +. A censura prévia is arts ¢ diversées péblicas foi reorganizada no Brasil a partir de 1969, com a edigio de novas leis, como © Decreto 1077, € a centealizagio no Servigo de Censura as Diversées Piblicas do Departamento de Policia Federal / Minisério da Justica 5, Moret, Rita, Industria onogrdfca: um estudo antropolégico, Campinas, Ed. Unieamp, 1991 (Teses), p. 231 [A Miistca Porutar Brasttetra (MPB) Nos ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR ‘A censura também prejudicava a produgio industrial das cangées, ¢ isto ocorria num ‘momento em que a indéstria fonogrifica vislumbrava étimas perspectivas de crescimento. ‘A nccessidade de enviar as cangSes para 0 crivo dos censores, a demora de alguns pareceres, a falta de critérios claros para 0 exercicio do veto, a mudanga exigida nas letras (que acabava prejudicando toda a estrutura da composi¢io), tudo concorria para o atraso € a indefinigio de cronogramas de producio fonogrifica. Muitos dlbuns eram planejados de um modo e acabavam sendo gravados de outro, prejudicando o planejamento empresarial € financeiro das gravadoras. Os casos mais notérios foram os Lps Chico canta (1973) de Chico Buarque e Milagre dos Peixes, de Milton Nascimento (1974). Nestes casos, a ago da censura simplesmente destruiu 0 produto, vetando a letra da maior parte das cangdes, © que obrigou os cantores a improvisar arranjos instramentais e vocais de iltima hora, Nomes em ascensio no mercado, como Raul Seixas e Gonzaguinha tiveram a maior parte do material projetados para os seus élbuns de 1974, completamente vetados. O Festival Internacional da Cangio (FIC) de 1972, que prometia ser um grande acontecimento musical, apés 0 fracasso do ano anterior, foi cerceado nio apenas pela vigilncia policial do regime militar, mas também pela propria Rede Globo, que tentava interferir nos resultados finais. O resultado foi um festival tumultuado, com muitos conflitos nos bastidores € no proprio palco. ‘Mas nio era apenas pela censura que o Estado autoritirio exercia sua violéncia contra a cena musical brasileira, Eram freqiientes os casos de coergio moral e fisice dos artistas. Dois casos exemplares, com resultados opostos: Geraldo Vandré e Caetano Veloso. Geraldo Vandré cra uma das maiores estrelas da cangio engajada brasileixa, cuja carreira explodiu entre 1966 ¢ 1968. Cada vez mais ligado a uma espécie de ‘poética de barricadas’, na linha das canes épico-revoluciondtias latino-americanas, Vandré viu sua carreira subitamente interrompida com a edigio do Al-s. Na misica Caminhando, uma das estrofes foi considerada uma afronta as Forgas Armadas: «H4 soldados armados/amados ou nio/quase todos perdidos de armas na mio/nos quartéis Ihes cnsinam antigas ligdes/de morrer pela patria e viver sem razo». A miisica apresentada no FIC de 1968, cerca de um més antes da edi¢ao do AI-s, irritou os militares, Alids, a prisio imediata do compositor nio foi efetuada logo apés o Ato, porque Vandré fugiu do pais, numa seqiiéncia de episédios ainda muito obscura. A principio Vandré teria se refugiado no Pakicio dos Bandeirantes, sede do governo de Sao Paulo, pois era amigo pessoal do governador Abreu Sodré. Em fevereiro de 1969, Vandré teria conseguido cruzar a fronteira do Uruguai e, em julho de 1969, 0 jornal © Globo localizou-o no Chile, Expulso deste pais por falta de visto, Vandré iniciou um périplo pela Argélia seguindo para varios paises Europeus até fixar-se na Franga © LP Chie Canta foi pensado, originalmente, para ser a tilha sonora da pega Calabar ~ 0 elagio da tragao, de Chico e Ruy Guerra, © texto revia a imagem do portugués Domingos Fernandes Calabar, incorporado como traidor da patria na hist6ria oficial brasileira, pois aliara-se aos holandeses na ocupagdo do Nordeste brasileiro, entre 1630 e 1654. Nio apenas algumas cangGes, mas a pega, foi proibida pela censura, sendo liberada somente em 1979. 643 Maxcos Napourrano por cerca de um ano ¢ meio. L4, gravou seu iiltimo LP Das terras de Benviré (angado no Brasil, em 1973). Em seguida Vandré voltou ao Chile, de onde teria saido em retorno 20 Brasil em julho de 1973, depois do tancazo de junho em Santiago, ensaio geral do golpe de setembro contra Salvador Allende. Esta é uma das partes mais obscuras da biografia do compositor. Uma reportagem do Jomal do Brasi? afirmava que Vandré teria desembarcado no Brasil, mas teria sido preso, ainda no acroporto, ficando incomunicavel numa unidade do 1 Exército e, em seguida, na carceragem da Policia Federal em Brasilia, durante 33 dias. Em agosto de 1973, os militares teriam simulado um novo desembarque, oficializado, com amplo aparato de imprenss, quando Vandré, com a expressio de um autémato, apelon 4 concérdia entre militares e civis e fez declaragdes de auto-arrependimento e elogios 20 novo ‘clima de paz ¢ trangiiilidade’ trazidos pelo regime militar. Episédios como este, reforgaram 05 rumores que Vandré teria sido torturado ou soffido lavagem cerebral, fatos que © proprio artista, em suas poucas entrevistas posteriores tratou de desmentir. O que fica patente é a coercio fisica € mental contra aquele que era uma espécie de lenda viva da cangio engajada brasileira, levando-o a uma espécie de crise existencial e criativa tio profunda que provocara a interrupgio da sua carreira. Depois disso, Vandré tomou-se um obscuro advogado, voltando a usar o seu nome de batismo — Geraldo Pedrosa de Aratijo Dias —, como se matasse simbolicamente o lendério artista engajado dos anos 60. No caso de Caetano Veloso ocorreu 0 contririo. Em que pese 0 sofrimento fisico e ‘mental do compositor baiano, durante a sua prisio e exilio londrino, amplamente relatado em depoimentos, reportagens ¢ na sua autobiografia', a perseguicio que a ditadura lhe impés, acabou, paradoxalmente, resgatando a imagem do polémico Caetano, critico da esquerda ortodoxa em 1968, para o piblico estudantil de oposigio. Veloso nunca abando- naria o tom polemista em relagio aos valores estabelecidos pelo ‘gosto médio’ de ptiblico de esquerda, ainda que fossem valores criticos 20 regime. Mas a prisio e o exilio acabaram por diluir a imagem de artista ‘alienado’ que o perseguia desde os festivais da cangio da TV Record. Depois de trés meses de prisio, Caetano saiu do pais em julho de 1969, exilando- se em Londres, numa tentativa de langar-se no mercado internacional. Em janeiro de 1971, ele receben permissio para ficar um més no Brasil, para assistir as ceriménias dos quarenta anos de casamento dos seus pais com a condigio de nio falar em politica. Logo que desembarcon no Rio, ainda na pista de aterrissagem, Caetano foi separado da esposa ¢ levado para um apartamento no centro da cidade. Ali me interrogaram ¢ me ameagatam por ses horas. Tive muito medo, muita angistia. Diante de wm gravador de rolo ligado [...], 0s homens que me Jevarain — mais os que estavamn 4 minha espera (Codos se identificavam como “Vandre volta © & preso’, in: Jomal do Brasil, 18-07-1973, apud Anatz0, Paulo Cesar de. Ex no sou cachoro nao. Misica populer cafonae ditadura militar, Bio de Janeiro, Record, 2002, p. 109. *. Vevoso, Caetano. Verdade pial, Sio Pavlo, Companhia das Letras, 1997 644. A Miisica POPULAR BRASILeIRA (MPB) Nos ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR oficiais, mas usavam roupas civis) — exigiram que eu compusesse uma cangio de propaganda da Transamazénica a estrada que o governo militar comegava a consteuir € que era um dos simbolos do Brasil Grande [...] Quando eu ji tinha conseguido me desobrigar de compor sobre a Transamazbnica, impuseram as condigdes de minha estada de um més: eu teria que seguir logo para Salvador [.-1] estava proibido de cortar 0 cabelo e fazer a barba enguanso estivesse em tervit6rio nacional (emiam que perecesse obra deles); nio podia recusar entre~ vistas com a imprensa, mas teria que di-ls por escrito e submete-as i leitura prévia por parte dos agentes federais que me vigiariam durante toda a estadia; finalmente, ora obrigado a fazer duss apresentagSes na TV, uma no prograrna do Chacrinka e outra no Som Livre Exportagio, 0 novo musical da TV Globo, para que ‘tudo parecesse normaP. A imprensa registrou, sem maiores detalhes de bastidores, a tensa passagem de Caetano no Brasil, quando ele parecia ‘entediado’ durante a apresentagio no programa Som Livre e lacdnico durante a entrevista coletiva no Rio de Janeiro, pouco antes de embarcar de volta para Londres, na qual proferiu apenas 11 palavras, retirando-se abruptamente quando inda~ gado sobre a situagio politica do Pais. «Amigos chegaram a comentar que ele estava com medo de falar inclusive com eles € que © corte da auséncia tinha sido fundo demais»”. Assim, dois mitos musicais, construidos na década anterior, exilados e coagidos pelo regime, viviam (¢ viveriam) destinos completamente diferentes. Caetano, ao voltar para 0 Brasil, em janeiro de 1972, com o LP Transa e com o sucesso da cangio de carnaval Chuva, suor ¢ cerveja fE-lo reencontrar com o grande péblico. A tumultuada volta de Vandzé, no ano seguinte, nio significou seu retorno 3 cena musical. Neste caso, morreu artista € ficou 0 mito. No caso de Caetano, 0 mito potencializou a carreira do artista que se consolidaria ainda mais nas décadas seguintes. E preciso considerar a trajetoria dos dois compositores para além das suas particulatidades individuais, pois nelas temos 0 exemplo de duas insercdes diferenciadas da miisica, e sua Fangio social, num contexto autoritério, A derrocada artistica (e pessoal) de Vandré, num certo sentido, traduzia 0 colapso de tum projeto estético-ideolégico calcado na tradicio da misica exortativa de protesto, algo como uma ‘cango de barricadas’, sem espaco no cendrio fonografico (¢ politico) brasileiro daquele contexto. Para evitar os problemas e armadilhas preparadas pelas forgas da repressio na chegada a0 Brasil, como ocorreria mais tarde com Caetano e Vandré, o retorno de outro fdolo da MPB, Chico Buarque de Hollanda, ocorrido em margo de 1970, foi cercado de muito “barulho’, conforme sugestio de Vinicius de Moraes. Jé no aeroporto havia uma forte presenga da imprensa, de amigos e empresirios. Chico Buarque se aproveitava da sua condigio de idolo popular maximo da MPB para escapar do cerco da ditadura. Apesar disso, Chico passou a ser sistemnitica ¢ rigorosamente censurado. 9%. Tbidem, pe 452. *. *O Rastro de um mito’, in: Revisia Veja, 07/02/1971, P. $2 (as Marcos NaPoutrano No caso de Elis Regina, a relag3o com o regime militar, no inicio dos anos 70, foi mais problemitica. A cantora, que mais tarde seria uma das vozes mais atuantes da oposi¢ao civil na cena musical do contexto da ‘abertura politica’ (1976-1982), envolveu- se num episédio polémico da propaganda ufinista do governo Médici"’. No dia 21 de abril de 1972, uma das datas nacionais brasileiras (execugo de Tiradentes, militar que se rebelara contra a Coroa portuguesa, no século xvin), © govemno programou um grande evento televisivo, intitulado Encontro Civico Nacional. As 18h30 deste dia, Elis Regina apareceu na TV regendo um coral de artistas cantando o Hino Nacional brasileiro, numa festa claramente oficial e pré-regime. O impacto no piiblico de esquerda, segmento que a tinha como uma das suas cantoras preferidas, foi muito negativo, Muitos jornalistas € criticos passaram a hostilizar a cantora, jé famosa pelo seu temperamento explosivo. Percebendo o erro, Elis Regina passou a explicar sua participagio no evento porque tinha sido ameacada de prisio, caso no aderisse 4 proposta do governo. Este é um ponto obscuro até hoje, pois Marcos Lézaro, seu empresirio na época, afirmou em entrevista que Elis participara do Encontro Civico Nacional porque tina sido bem paga e nao via problemas em participar do evento. A relagio do regime militar com os mésicos, durante os anos de chumbo, passava, pois, por diversas estratégias: censura, coer¢ao policial, cooptagZo financeira e, até mesmo, busca de adesio esponténea & ideologia propagada pelo regime. No caso da MPB, porém, © paradoxo era de outra ordem: criada por muitos artistas simpatizantes da esquerda e consumida por um piiblico critico ao regime, esta corrente especifica da cangio brasileira vivia 0 paradoxo de ser o carro-chefe da indiistria fonogrifica em expansio, capitaneada por empresas transnacionais como a Phillips, a RCA e a EMI-Odeon, e a expressio privi- legiada de uma resisténcia civil na azea da cultura. No plano comercial, a indistria fono- ‘grafica era beneficiada pelo amplo desenvolvimento econémico produzido pela politica do regime militar, sobzetudo apés 1968. Apoiado pela classe média, e pautado por um discurso modemizante no plano econémico, o regime militar nio podia radicalizar a repressio € a censura aos produtos culturais consumidos por esta mesma classe. Seus segmentos mais intelectualizados ¢ de formagio superior, forneciam os quadros profissionais recrutados pela economia em expansio, mas consumiam uma cultura considerada ‘subversiva’?. A MPB foi, num certo sentido, beneficiada por esta contradi¢io que fazia contrastar a base s6cio-econémica do regime com sua ideologia conservadora. "Para uma anélise mais aprofundada da propagands no Governo Médici ver Fico, Catlos. Reinventando 0 otiniome: dtadure, propaganda e imaginaso socal no Brasil, Rio de janeiro, Fundagio Getilio Vargas, 1997 " Percreapo, Léa. Um instante maestro! Rio de Janeiro, Record, 1993, p. 156. ¥, Micetr, Sergio. °O pape! politico dos meios de comunicagio de mass’, in: Bra: o trinsito da mem6- ria, organizado por SaGl Solsnowski e Jorge Schwarz, Sio Paulo, Edusp-Univesity of Maryland Press, 1994, pp. 41-68. 46 A Mastca Porutar Brasttma (MPB) Nos ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR MPB, MERCADO FONOGRAFICO E RESISTENCIA POL{TICO-CULTURAL AO REGIME MILITAR Como todo regime autoritério, 0 governo militar brasileiro sonhava com uma arte de integracio e propaganda. Esse projeto nio vingou, em que pese algumas tentativas feitas no infcio dos anos 1970, pela Agencia de Relagdes Piiblicas do governo Médici, nio houve nenhuma politica sistemética e coerente de cooptacio de artistas, sobretudo aqueles mais valorizados, para servir & propaganda oficial. Apesar de algumas misicas ufanistas de muito sucesso na época, tais como Bu fe amo meu Brasil (Don), Brasil, eu fico (Jorge Benjor), Das duzentas pra Ié (Jodo Nogueira), a cena musical brasileira dos anos 70, nao foi dominada por nenhum tipo de movimento adesista ao regime, ao contrério da ditadura do Estado Novo (1937-1945), quando muitos compositores consagrados ¢ talentosos aderiram 4 linguagem_ ufanista, produzindo cangdes que se integraram no cancioneiro popular, como Aquarela do Brasil (Ari Barroso) ¢ Brasil Pandeiro (Assis Valente) Do ponto de vista de Theodor Adorno", toda cangio inserida numa estrutura de consumo cultural realiza a ‘paz social’ ¢ reproduz os ‘valores’ ideol6gicos dominantes, independente do sentido explicito da letra ¢ das boas intengées criticas dos compositores.. ‘A neutralizagio do valor de uso da obra de arte, em fungio do seu valor de troca no mercado, base da teoria adorniana, esti por trés desta argumentacio, Mas, ainda que admitamos a validade desta tendéncia da cangio inserida na inddstria, ela ndo pode ser tomada como zregra absoluta para entender fodas as situagdes histéricas concretas da cansio. Em certas cir- cunstincias historicas, a cultura ¢ arte participam diretamente dos processos de construgio de hegemonias € contra-hegemonias, na medida em que formam. e conformam estados de consciéncia social e identidades politicas. A cangio brasileira, particularmente o campo da MPB, ocupou este expago, ainda que estruturalmente ligada ao mercado. Por outro lado, este papel nfo se deu pelo viés da exortagio e do choque, mas da sublimagio lirica. No entanto, esta consciéncia social nfo era fruto necessariamente do estatuto mercantil da cangio, mas das contradides da propria classe média que produzia e consumia cangSes, cxiticas a0 regime. Além disso, pode-se destacar o papel da can¢io popular na cultura politica nacional-popular de esquerda que, em Gltima instincia, continuava presa 20s va~ lores de ‘unido nacional’, ‘anti-imperialismo’ c ‘alianga de classes’ contra o autoritarismo, defendidos pelo Partido Comunista Brasileiro, mesmo apés o golpe militar de 1964 colocar em cheque esta titica. Hi uma inegivel homologia entre a vontade de agregar todos os géneros nacionais de raiz, devidamente modernizados, eixo central da idéia de MPB e um projeto nacional-popular que perdeu na politica, mas triunfou na cultura", ™ Aponno, Theodor W. ‘Sobre a musica popular’ in: dome, organieado por Gabriel Cohn, Sio Paulo, Atica, 1994 (Colegio Grandes Cientista Sociais, $4), pp. 115-146. "5. Ver Narorrrano, Marcos. Segundo a angio (J op at (vei a nota 2) “Ver Ontrz, Renato, A modem trtigo brasileira, Sio Paulo, Brasiliense, ro88 649 . Marcos Napoxrrano No inicio dos anos 1970, apesar de carecer da renovacio artistica propriamente dita, ¢ de ser perseguida pelo regime, a miisica brasileira retomava aos poucos um lugar central no mercado fonogrifico, em bases empresariais ¢ industriais mais sofisticadas. Por sinal, 0 mercado para este tipo de mtisica cresceu 34%, em 1972. Os anos seguintes, 1973 € 1974, confirmariam esta tendéncia de sucesso e crescimento, com o ingresso de novos nomes no mercado, como Joo Bosco ¢ Raul Seixas. Enfim, nos anos de chumbo, a can¢io brasileira como um todo — sobretudo as tendéncias ligadas ao ‘género’ MPB” — parecia superar as barreiras e desconfiancas do regime militar, conciliando sucesso de paiblico (principalmente entre as camadas mais cultas ¢ de maior poder aquisitive) e reconhecimento da critica especializada. No embate entre 0 ufanismo civico estimulado pela cultura oficializada e a cangio engajada adotada pelos segmentos da sociedade civil criticos ao regime, esta tiltima acabou se impondo no mercado fonogrifico, nao apenas pela inegivel qualidade poético- musical, mas também porque desempenhava um papel importante no sistema comercial de cangdes. Os catilogos das principais gravadoras que atuavam na cena musical brasileira passaram a abrir cada vex mais espao para os artistas que estavam identificados com a MBB. Ao contrério do que muitas vezes é afirmado em entrevistas de miisicos, produtores ¢ empresirios, nao se tratava de uma concessio das gravadoras ao ‘bom gosto’ musical. A MBB, conforme palavras de André Midani"* vinha numa trajet6ria de consolidagio desde (os anos 1960 € possibilitava para as gravadoras a criago de um cast estivel de compositores ¢ intérpretes altamente valorizados pelas novas camadas médias, responsiveis pela dinimica do mercado de bens culturais, Em otras palavras, no ambito do mercado brasileiro, a MPB possibilitou as gravadoras escaparem & dependéncia de sucessos musicais pontuais ¢ isolados. Com a expansio do mercado de long plays no Brasil, acompanhando a tendéncia de consumo mundial da época, a MPB mais uma vez foi valorizada. O ‘produto LP! tinha alto valor econdmico agregado e era direcionado para uma faixa de consumo mais sofisticada € com melhor poder aquisitivo, permitindo 3 indéstria maior lucto e maior movimentagio de capital e tecnologia. Portanto, a MPB (€ alguns outros géneros, como parte dos cantores de samba tradicional e de pop-rock), além de ser a expressio dos grupos sociais de oposicio ao regime militar, também era fundamental para a estratégia da indstria fonogrifica brasileira, situagio que perdurou até o inicio dos anos 1980”, Neste sentido, © controle da censura sobre a mtisica popular tornava-se muito complexo, pois além da pressio social pela liberdade de criagio e pensamento, havia a pressio econémica de uma . Aqui trabalho com um conceito de género musical amplo, que inclui nio apenas aspectos mu= sicolégicos, mas performativos, conjunto de eventos musicals que envolve uma comunidade de sentido (autores, citica, pablico). A MPB pode ser enquadrada nesta definigio. Ver Fann, Franco. ‘A Theory of Musical Genres: Two Applications’, in: Popular Music Perspectives, organizado por Philip Tagg e David Hiorn, Gteborg-Exeter, IASPM, 1981, pp. 52-81. ™. "Miisica Popular em debate (1) in: Joma do Brasil, 24/09/1969, p. B-1. "Ver Dias, Marcia Tosta, Os dones da voz, Industria fonogrdfica brasileira e mundialzasto da autura, Sao Paulo, FAPESP-Boitempo Editorial, 2000. 648 A Masica Popuzaz BRASILEIRA (MPB) NOS ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR indistria fonogrifica em expansio que dependia diretamente daquele tipo de miisica critica a0 regime para aumentar seus lucros. ‘Ao manter-se dentro de um gosto médio e jé consagrado do piiblico, o mainstream da MPB acabou por ganhar uma flexibilidade expressiva perfeitamente articulada a0 mer- cado. As poéticas alegéricas (baseadas na fragmentacio do fiuxo de consciéncia expres- sado por um sujeito poético), ou as posticas desconstrutivas e agressivas (que buscavam. problematizar o proprio fuxo e fungio comunicativa da linguagem), quando ocorriam, eram muitas vezes contrabalangadas por um discurso musical mais convencional, no plano melédico-harménico, timbristico on da performance vocal. Este aspecto da can¢io, mesclando potticas de choque agressio com clementos musicais mais estabilizados no gosto médio da audiéneia, parece ser uma peculiaridade do campo musical brasileiro. No teatro e no cinema, como jé afirmamos, havia uma tendncia mais radical de quebra dos padres de linguagem dos filmes e pegas, em todos os seus aspectos constitutivos. © experimentalismo poético e musical que marcou determinadas carreiras, como Tom Zé, Caetano Veloso, Walter Franco, Jards Macalé, Luiz Melodia, entre outros, teve um nicho significative no mercado, sobretudo no inicio da década de 70. O pacto com 0 piiblico s6 ameagava romper-se quando o artista ia além das inovagdes na performance ‘ow nas letras, ¢ ousava também no plano musical, como nos LPs Revolver e Ou nao (Walter Franco), Araga Azul (Caetano Veloso) ou Estudando 0 samba (Tom Zé), para citar 0s casos mais firmosos e radicais no campo da experimentagio pés-tropicalista. Nestes casos, letra, estrutura musical, arranjos e performance vocal convergiam para uma estratégia de choque ¢ estranhamento totais que ameagavam implodir 0 conceito cléssico de cangio. Esse radicalismo era matizado nos primeiros élbuns de Jards Macalé (1972) € Luiz Melodia (Pérola Negra, 1973), que articulavam experimentalismo poético, perfor- mances ousadas ¢ provocativas com tradicdes musicais estabelecidas dentro da linguagem do pop ¢ do samba. Nestes casos, mantinha-se 0 centro tonal da melodia e os padrdes timbristicos consagrados, ainda que levados aos limites da dissonincia ¢ da estridéncia. A pecha de ‘malditos’ que acompanhou estes dois compositores, deve-se muito mais as suas posturas diante das formulas ficeis de sucesso da MPB do que uma adesio a0 experimentalismo radical que implodisse a estrutura musical das cang6es. Talvez, a tinica excecio a esta tendéncia tenho sido Tom Zé, que apesar de amplo espago na imprensa, logo apés a sua vitéria no Festival da TV Record de 1968, nfo conseguiu se impor na cena fonogrifica, sendo redescoberto apenas no final da década de 1990. No seu caso, © radicalismo experimental ocorren no pela quebra da moldura estética da cangio, mas pela incorporagio critica de um despojamento musical e da banalidade poética como dados expressivos da cangio de vanguard, que apontavam para a impossibilidade de fazer miisica industrialmente bem acabada — ancorada na tradigZo da poesia culta e~ da misica universal — numa situagio periférica. Ou seja, precisamente o contrario da tendéncia expressa no conceito de MPB. 649 Marcos Na?ourrano Privilegiada pela indtistria fonogréfica, consagrada pelo piblico ¢ pela etitica, a MBB pode resistir as tentativas de controle censério do regime militar, consagrando-se definitivamente como uma espécie de instituigio sociocultural brasileira, tio eléstica que, com o tempo, tornou-se dificil defini-la a partir de um ponto de vista unicamente musicol6gico*. As tentativas de defini¢a0 univoca da sigla MPB tem ido de encontro as vicissitudes de gosto da classe média brasileira ¢ as tendéncias estimuladas pelo mercado fonogrifico. Nao & por acaso que, no inicio dos anos 70, a critica especializada cunhou © termo ‘tendéncias’ para dar conta da pluralidade de estilos e influéncizs musicais que cabiam no acrénimo. Num amplo leque que ia da tradigio do samba a vanguarda pop, a cena musical brasileira tornou-se um pélo de convergéncia de uma opiniio publica progressista que vivia uma situago paradoxal: cerceada pelo conservadorismo do regime militar, mas, ao mesmo tempo, formadora de opiniio em outros grupos sociais, além de ter 0 poder de definir a hierarquia sociocultural do pais, estabelecendo o limite entre o ‘bom’ € 0 ‘mau’ gosto musicais. Para esta opinizo pitblica, acuada diante do autoritarismo € da violéncia dos anos de chumbo, o campo da MPB era uma forma de articular as esferas pitblica e privada, tormando-se um pélo privilegiado na «rede de recados»** que fazia circular as mensagens da contravioléncia no seio da sociedade civil. Além de ser © centro de uma cumplicidade politica construida na negagio sublimada da ditadura militar, a MPB acabou por servir a uma espécie de educagio sentimental voltada para a reconstrugio de uma cultura politica democritica, que irs marcar a cena piiblica brasilei- 1a, sobretudo a esquerda, no final da década de 1970. As FORTICAS DO ENGAJAMENTO E A CANGRO COMO CONTRA-VIOLENCIA SIMBOLICA Apesar deste clima de coergo oficial e critica 2o regime, a cangio brasileira nio radi- calizou uma poética de agressio, mantendo-se mais proxima de uma tradigo de sublimacio lirica do que da tendéncia exortativa e panfletiria das linhagens mais conhecidas da cangio de protesto. Obviamente, havia muitas cangdes proximas a esta tradigo do protesto mais exortativo, caso de Apesar de Vocé, de Chico Buarque de Hollanda, bem como cangdes proximas a uma pottica experimental ¢ agressiva aos padres de gosto estabelecidos, no plano da letra e da misica. Em outras 4reas artisticas importantes para a esquerda opositora 20 regime radicali- zou-se a chamada ‘poética da agressio’. As diretrizes de criagio e critica cultural baseadas Ver Napouitano, Marcos. Seguindo a can [..], op. dt. (vefa a nota 2) *. Wisnix, José Miguel Soares. '© minuto © 0 milénio ou Por favor, professor, uma década de cada vez’, in: Bantana, Ana Maria ~ Wistik, José Miguel Soares - AUIRAN, Margarida. Anos 70. 1: Milsca popular, Rio de Janeiro, Editora Europa, 1980 (Collegio Ano 70, 1), pp. 7-23. 650 | A Masica Porutar BRAsILEmA (MPB) Nos ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR na poética da agressio tinham um foco privilegiado no teatro no cinema. Estes dois campos, ao lado das artes plisticas, radicalizavam suas formas de expresso, como estratégia de ‘guerritha cultural’ contra 0 ‘terrorismo cultural’ (¢ politico) do regime militar. Para além deste inimigo direto situado nos aparelhos de Estado, os artistas mais radicais visavam ctiticar a propria moral burguesa e, para tal, acabavam operando uma revisio radical das suas proprias bases estéticas e ideolégicas. Esta poética no foi apenas o resultado direto do novo clima de repressio ¢ intolerincia que reinava no Brasil apés 1968, mas foi estimulada por ele. Neste novo contexto repressivo, a poética da agressio, a linguagem alegérica, a expresso de clementos itracionais ¢ inconscientes do ser humano, a sexualidade agénica sem limites, passaram a dar o tom de iniimeras produces para o teatro e para o cinema, seduzindo parte dos artistas de esquerda. £ bom lembrar que o Partido Comunista Brasileiro nfo aprovava esta via de expressio artistica, pois condenava esta poética como manifestagio de uma ‘decadéncia moral da burguesia’, travestida de linguagem vanguardista, Por outro lado, os setores mais jovens, ligados 4 contracultura e 3s vanguardas pop, viara 0 PCB como reserva de moralismo e de nacionalismo estético que estaria superado pelos novos padrdes de gosto e comportamento surgidos no final dos anos 60%. Zuenir Ventura, importante jomnalista cultural da época, afinado com a estética comunista mais ortodoxa, sintetizou este confito da seguinte mancira: Desencorajada pela censura, impotente diante do Al-s, dilacerada por dentro e pressionada por fora, a cultura brasileira contempordnea tem transitado por viria trilhas [..] em busca de uma safda. No plano ideolégico, esse impasse se traduziria por diss tendéncias antagénicas clasificadas. por simplificagio, de racionalismo ¢ inacionalismo. O intelectual, na saa busca da verdade [...] poderia encarar a realidade com os olhos da lucidez ou contempli-la arravés de ‘uma nuver de famaga”* Em meio a esta tensio bisica que dividia o campo da resisténcia cultural ao regime em otientagdes estéticas e ideol6gicas auto-excludentes, emergiram préticas € discursos que marcavam uma espécie de ‘contra-violéncia’ simbélica da sociedade civil, como resposta a violéncia que partia do Estado autoritirio. ‘Aqui, cabe um paréntesis para delimitar uma particularidade da cangio engajada brasileira, identificada com a sigla MPB e sua relagio com o tipo de cangio historicamente ‘O grupo de teatro Oficina, com sua perspectiva and-racionalist, influenciada pelo Living Theatre, a comente do Cinema Marginal, levando para as tlas personagens degradados © amorais, como forma de , Ver Sanpxont, Catlos. Feitigo decente: transformapies do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), Preficio por ‘Walnice Nogueira Galvio, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ecitor-Editora UFRJ, 2007 683 Marcos Narorrano foram resgatados, atualizados e valorizados pela Bossa Nova, MPB e até pela Tropicalia. Em outras areas artisticas nio foi assim. O Cinema Novo desenvolven uma forte rejei¢ao a0 gosto popular herdado, valorizando apenas cineastas considerados precursores do mo- vimento, como Humberto Mauro ¢ Nelson Pereira dos Santos. No teatro de esquerda, a radicalizagio das experimentagdes conduziu a quebra da linguagem do drama realista, conduzindo a um significativo afistamento do piiblico mais amplo de classe média, forma- do nos padrdes do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) dos anos 1950. Finalmente, a cango engajada desempenhava uma funcio catalisadora no sistema** de artes do Brasil, 4 medida que se apoiava numa linguagem artistica mais consolidada junto ao grande pablico consumidor de cultura e, ao mesmo tempo, construfa um padrio de gosto estético e expressio que a permitia equilibrar-se entre a tradi¢io e ruptura, sem sucumbir a. um possivel impasse fruto desta dicotomia. B bom lembrar que o primeiro momento do movimento tropicalista (1968) tentou, justamente questionar este ‘gosto médio da cancio’, através do esbogo de uma poética e performance agressivas, parédicas e irdnicas, mas que acabaram rapidamente assimiladas por um mercado fonogrifico em expansio e aberto a um certo grau de experimentalismo”. As canges dos anos de chumbo procuravam dar conta de uma experiéncia traumati- ca, o siléncio e a derrota impostos pelo autoritarismo da direita no poder, que contrastava tendo em vista a agitagio politico-cultural da década anterior. O controle, esvaziamento ¢ repressio da esfera publica acabavam por gerar falta de perspectiva na esfera privada. Este foi um dos resultados do corte abrupto com ‘espirito 68", provocado pelo Al-s e pelo novo patamar de violencia policial e repressio politica do regime militar brasileiro. Nio se tratava mais de cantar a revolugio (politica ou comportamental) através de uma poética agressiva e de choque ou de aprimorar o nivel de conscientizacio popular baseada na velhas aliangas de classes sociais, preconizada pels esquerda nacionalista, dizendo que era amigo ou inimigo do ‘povo’. As cangdes do inicio dos anos 1970 caracterizavam-se pela dentincia do ‘vazio’ cultural e existencial e pela manutengio de um espirito lirico de contestagio, por onde se afirmavam os valores democriticos da resisténcia civil a0 regime. Sio cangGes de resisténcia ¢ nio cangdes de exortagio que traduzem a sensagio de imobilidade e derrota, ainda que recoloquem a esperanca em dias melhores. Dai, talvez, a predomindncia da poética da sublimagio lirica Quando uso a expressio ‘sistema’ tenho em mente 4 definiglo bisica de Antonio Candido que presupde 2 integraggo de artistas, empresirios, técnicos ¢ priblico, num conjunto conflitante e permeado ppor debates e tenses, ligadas as estraturas sociais mais amplas. Esta categoria permite maior flexibilidade de anilise da articularo entre obras, autores e sociedade, muito mais do que o conceito de Campo, tal como defendide por Pierre Bourdieu. Ver CAnpivo, Antonio. Literatura e sodedade, Sio Paulo, Editora Nacional, 1965; 9. ed. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2006. Ver Favanerto, Celso F. Tropica. Alegria, alegria, Sio Paulo, Kair6 s Livratia e Editora, 1979; 2. ed. ‘Atelié Editorial, 1996. Para um exemplo deste procedimento, ver o dlbum coletive do movimento, Tropcilia ‘ou Pants etcicenss. Phillips, 1968. 654 ee RR enone A Miisica Popusar BRasiLsIRA (MPB) Nos ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR ‘A cangio dos anos de chumbo, além de ser veiculo para a circulagio de imagens que configuravam a experiéncia do medo e da repressio politica, também foram impor- tantes para a disscminagio de valores da oposigio ao regime militar, afirmando sobretudo a ‘coragem civil’ inerente 20 ato c imperativo de resistir contra 0 autoritarismo”. Estes valores disseminaram os ideais de ‘contra-violéncia’ simbélica, contraponto ao terrorismo de Estado e fancionaram como base da ‘sublimagio lirica’. Poderiam ser agrupados em dois grandes motes poéticos e temiticos: a) resisténcia e; b) critica. Estas categorias eram reiteradas através de imagens posticas, performances e lingua- gens musicais que serviam como contraponto Aquilo que significava a experiéncia social da repressio: derrotismo, conformismo ¢ isolamento. Para o fechamento do ‘circulo do medo’ imposto pelo autoritarismo — expressio cunhada na época — era fundamental conseguir a cumplicidade do siléncio, e este era desafiado pela vox que emanava da cangao. Resisténcia € critica combinavam-se como estratégias da oposigio civil para manter-se viva no espago piiblico, ou melhor, para manter vivo o préprio espaco piblico, vigiado sistematicamente pela repressio e pela censura. A resisténcia pode ser vista como a operagao de ligagio com uma determinada meméria de valores ¢ lutas, herdados do passado recente, lutando contra 0 dezrotismo, A artica, ainda que sutil, manteve a consciéncia em guarda contra © conformismo, Havia ainda uma terceira categoria nfo dominante — exortago — que expressa a fungio tradicional da cangio engajada que apontava para o imperativo da agio coletiva, mas presente em alguns poucos exemplos da primeira metade da década, sendo mais comum no final dos anos 1970. Estas duas categorias assumiam varias formas e imagens poético-musicais: resisténcia como recusa do establishment, como afirmagio dos valores negados pela repressio politica, como pequenos atos de revolta individual contra o sistema; critica como negacio dos valores ideol6gicos e politicos oficiais ou como desconstrugio das palavras-de-ordem e slogans do regime militar, ou ainda como negagio do modo de vida (way of lfé) endossada pela elite conservadora no poder. Resisréncia ‘Uma das canges mais contundentes da atitude de resistencia foi Pesadelo, de Mauricio ‘Tapajés e Paulo César Pinheiro. A reiteragio de atitudes de contravioléncia como reagio a0 autoritatismo formam 0 niicleo da expressio poética da cangio. Logo na primeira estrofe, sao feitas alusdes & repressio policial do xegime, tentando inverter os efeitos do ‘circulo do medo” que marcava a cidadania: ® Hincen, Wolfgang, ‘Corsje en la politica sobre um verdelero en Praga, sanadores nocteamericanos, ‘Whisteblowersy una caret iin’ in: Hstres Quests & Debates, xxt/4 (2004) pp. 167-181 655 Marcos Narourrano Se a vinganga encara 0 remerso pane Voxé vem me agama, alguéns vem me solta Vooé vai ma mara, ela um dia volta B sea ong 6 tua, ela wm dia & nossa Num trecho dos mais paradigmaticos sobre a atitude de resistencia face ao regime, 9s compositores afirmam a vitéria moral da cidadania critica, mesmo na situagio limite do siléncio da censura e da morte: Vou conta um verso, eu esceve outro Voo8 me prende vivo, eu eseapo morto De repente olka eu de nove Perturbando a paz, exigindo troco A vor que & assumida pelo poeta nio é, obviamente, a expressio da consciéncia individual, mas a de uma atitude coletiva ¢, como tal, vista como invencivel, dentro da visio de histéria adotada pela esquerda. Retomando os paradigmas da cango engajada dos anos 60, a letra termina com a certeza da vitéria politica no «dia de amanhio" Que med vocé tem de nds, fhe af © muro ea, olka a ponte Da liberdade guards O braze do Crist, horizonte Abvaza o dia de amonha, olka af Em Pesadelo, as figuras de linguagem se articulam para compor um clima sombrio, ‘mas 20 mesmo tempo um elogio as titicas de reagio a violencia da repressio. Enfim, uma cangio que mantém a tradigio ativista da esquerda. Ume registro semelhante das atitudes de resistincia pode ser percebido na cangio Primavera nos dentes, gravada pelo grupo Secos € Molhados*. O andamento lento da balada pop, matiza o eventual tom exortativo da letra, dando-lhe uma conotagao muito mais melancélica ¢ sutil, ainda que determinada © exemplar. Numa bela sucessio de imagens poéticas, a consciéncia se transforma em coragem para afirmar a existéncia, em condigdes de opressio, sabotando o interior da cengrenagen» do sistema: », Ver Gatvao, Walnice Nogueira. Saco de gatos: ensaios aftcas, S20 Paulo, Duas Cidades, 1976. , © conjunto Secos e Molhados, formado por Joio Ricardo, Gerson Conrad e Ney Matogrosso, surgit em 1973 ¢ teve uma metesrica carreira de, aproximadamente, um ano, Seu primeiro LP veiculow indameras canges criticas a0 regime como El Rey, O Patio Nosso de Cada Dia, Sangue Latino, entre outras. AA performance, sobretudo do cantor Ney Matogrosso, e a postura andréginas também causava furor no plblico. 656 A Masica Porutar Brasicama (MPB) Nos ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR (Quem tem consciénca para ter coragem Quen tem forza de saber que existe E mo cenro da prépria engrenagem Inventa a contramola que resse ‘Mesmo diante do clima de fim de sonho do inicio dos anos 1970, expresso que no contexto brasileiro ganhava tons ainda mais sombrios, a cangio afirmava, de maneira lirica, a dignidade da propria atitude de resisténcia em si e por si, independente do desfecho ou da certeza da vitéria no «dia de amanha», As imagens contrastantes da derrota e da violéncia, transmutam-se em atitude de afirmagio da dignidade, politica e existencial, da resistencia, culminando na bela metifora que d4 nome 8 cangio: Quern ne vata mesmo demotado Quer ja pedide nunca desespera E envolto em tempestade decepado Entre os denis segura a primavera A primavera tem 0 sentido de esperanga e a imagem dos dentes funciona como uma metifora de forca e determinagio de quem, mesmo que jé tenha perdido bragos e pernas para lutar, se opde ao quadro de opressio dos versos anteriores. Chico Buarque de Hollanda foi um compositor que transitou pelas trés formas de expressio da contravioléncia poética — resisténcia, critica e exortago. Em Quando 0 Camaval Chegar, cangio de 1972, 0 compositor enviou um recado que tanto pode set lido pelos cidadios eriticos a0 regime, quanto pelos donos do poder politico. Mais ‘uma vez, cle utilizava a metéfora do Camaval como momento de liberdade coletiva e afirmagio da coletividade democritica contra a elite autoritiria, O simbolismo em torno do camaval, que jé havia sido utilizado sob outra forma na famosa cangio Apesar de vocé, serve como reiteragio do sentido libertario da histéria dos povos, imagem que a esquerda do século xx usou ¢ abusou. Chico Buarque inicia a cangio demonstrando a ilusio da ‘paz social’ construida a base do autoritarismo, da repressio ¢ da censura. O samba ¢ o carnaval adquirem um sentido politico, de ago e movimento coletivo de liberdade, reprimidos pelo regime € substituidos por uma atitude de espera titica e consciente: Quem me v sempre prado, tate Garant que ex nto si sanbar Tou me guardando pra quando o caval cegor £11538 vend, sbende, sentind, exctando EE wi poss far Tow me gusrdando pr quando o camtvel dager ‘A aparente passividade do sujeito postico, expressio da sensagio coletiva que tomou conta da cidadania critica nos anos de chumbo, era negada pela reiteragio da expressio 6s7 Marcos Napourrano «tou me guardando pra quando © Carnaval chegar», bordio cantado em tons menores. A assimilagio da violéncia autoritiria no era passiva, mas contabilizada como divida a ser resgatada: E quem me ofende, humilhando, pisendo, pensando Que ew vow atwrar E quem me vf apanhando da vida duvida que ow vi revidar Tou me guardando pra quando o camaval chegar Reafirmando a tradigo da cangio engajada dos anos 60, Chico reiterava a crenga no sdia de amanhi», momento da libertagio coletiva, que chegaria independente de qualquer ago ¢ nao poderia ser impedido pela repressio, pois estava inscrito na propria logica da histéria humana: Eu veo a bara do dia surgindo, pedo pra gente cantar Exton me guardando pra quando 0 camaval chegar Ex tno tanta alegia,adiada, aboada, quem dea gritar stow me guardando pra quando o camavalchegar A mesma imagem de afirmagio de vitalidade na aparente paz social imposta pelo autoritarismo ressurge na cangi0 de Gilberto Gil (Copo Vazio), especialmente composta para ser interpretada por Chico Buarque. Na primeira estrofe, Gil questiona a sensago de ‘vazio’ dominante — imagem recorrente para configurar os ‘anos de chumbo’ — com a presenga de algo que nfo se nota, mas que existe mesmo assim: sempre bom lembrar Que sm capo vazio até chi de ar ‘A imagem do «copo vazio/cheio de ar» é humanizada na sinestesia «ar sombrion das expresses faciais, produto de uma situagio adversa. Mas a «dor» produzida por esta sisuago adversa é sublimada pelo poeta, pois nela habita a vitalidade que nega 0 vazio: sempre bm tember Que on ar ombri de on rests si chlo dem ar ves Vaio dag que no ar do copo apa ur agar E sepre bon embrar Guardar de cor Que 0 ar vazio de um resto sombrio td che de dor 638 A Maisica Poputar Brasiteina (MPB) Nos ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR Em Cala a boca Barbara, cangio de Chico Buarque ¢ Ruy Guerra composta para a pega Calabar, proibida pela censura em 1973%, 0 clogio a resisténcia atinge um alto nivel de sofisticagio poética. O proprio nome da cangio € uma articulago de duas figuras de som —aliteragio ¢ assonincia, sugerindo a palavra proibida Calabar, ausiva ao personagem real Domingos Femandes Calabar, que foi estigmatizado pela histéria oficial brasileira como um grande traidor da Pétria, ainda que em formagio, na medida em que foi colaboracio- nista dos holandeses, que invadisam o litoral nordeste brasileiro no século xvi. Quando a pega de Chico e Ruy Guerra foi proibida pela censura, a propria palavra Calabar foi banida nos meios de comunicagio que aludiam 4 obra de Chico, por considerar-se subversiva a propria mengdo ao personagem (e & pega de Chico). O sentido politico da cangio se disfarca sobre metaforas que aglutinam as imagens da terra (no cas0, © Brasil) ¢ do corpo da mulher amada (Barbara, nome da esposa de Calabar). Construida sobre uma estrutura dialégica, 0 elogio que Barbara faz. da sabedoria do ‘guerreiro/guerzilheiro’ que foge ao perseguidor é entrecortado pela expressio «cala a boca», intervengio abrupta e em tom de aviso € ameaga: Ele sabe dos caminhos dessa minha tra ro meu corpo se econdeu, minhas matas perce (Os meus tes, os meus bragos Ele 0 meu gueriro nos colchées de tera Nas bandetas, bons lenis Nas trindheinas, quantos ait, ai Uma outra voz, medrosa ou ameacadora, nio se sabe ao certo, se insinua na cangio, tentando re-instaurar 0 ‘cizeulo do medo’ ¢ impondo 0 siléncio na fala de Barbara Cola a boca - otha o foo! Cala a boca - otha a relval Cala a boca, Birbara Cala a boca, Barbara [el Cala boca othe a noite! Cala a boca otk o fio! Cola a boca, Birbara Cala a boca Bérbora DLA proibigio desta cangio fez parte da proibicio mais ampla da pega de teatro Calabar, 0 elegio da” tmaigio, que diseutia 0 conceito de pitria e nagio numa situagio colonial (ao caso a luta entre holandeses & portugueses pela posse do nordeste brasileiro). Os miliares entenceram a metifora ¢ consideraram a pega subversive, Sua hiberagio ocorreu apenas em 1979. 659 Marcos Narorrrano ‘Uma outra estratégia para driblar a censura ¢ elogiar a resisténcia, era aglutinar fantasia ec realidade numa mesma mensagem poética, criando um clima metaférico ¢ impressionista, muito utilizado principalmente pelos jovens letristas do ‘Clube da Esquina’. ‘Outros compositores, como Aldir Blanc (parceiro hist6rico de Joio Bosco), se iden- tificavam mais com o olhar do cronista sobre o cotidiano e também incorporaram esta estratégia, mesclando o olhar de cronista irénico com uma perspectiva quase impressionista ¢ centrada nas emogies fugidias e momentineas diante de um determinado acontecimento. Na miisica de estréia da dupla, Bala com Bala (1973), Blanc habilmente transfigura o clima de medo c violéncia que marcava a consciéncia cidadi na forma de uma projecio de fantasias de um espectador diante de um filme de aventuras, estilo faroeste. A figura do espectador, neste caso, pode funcionar como uma metafora da cidadania impotente diante da realidade politica. A primeira estrofe descreve o clima de uma sala de cinema, a ansiedade do espectador diante da cena de violéncia e a sua identificagio com 0 «mocinho»: sla cala€ 0 jomal prepara quem est na sala ‘Com pipocae cor bala ¢ 0 undbu sai voando © tempo care eo sur exone, vem alguém de pore Hid wm core-one, €0 mocinho chegando, dando. Bu esque sempre neste hora (nda, furs) O duelo do bem contra o mal, base dos filmes de aventura hollywoodianos, converte- se em reffextio sobre a atitude pacifista elogiada pela moral cristi («dar a outra face»). O espectador, realizando-se pelas ages do ‘mocinho’ (good gus) contra os “bandidos’ (bad 915), lembra 0 quanto é dificil ser agredido ¢ nio reagir, evocando o clima de violéncia oficial da época. ‘Minka velha fuga em todo impasse; Bu esque sempre nesta hora (nda Toura) Quanto me custa dar a outa face, O espectador tem o maximo da sensagio de catarse na cena da briga generalizada, Gliché nos westems. As girias populares cariocas, criando efeitos onomatopaicos, descrevem. a.cena e as ages herdicas do mocinho: (© tapa estala no balacobaco € fala com fala E é bala com balae o gal se espalhando, dando, No ralacrala quando ceaba a bola fra com fa E rapa com rapa eeu me realizando, bambo. O filme termina ¢ a fantasia acaba. O espectador volta ao seu estado de consciéncia da realidade, com a «coragem» imaginada e projetada no filme transformada em «ansagov, 660 A Masica Porutar Brasiisma (MPB) Nos ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR estado de recolhimento ao principio de realidade, o que na época significava, quase sempre, accitar a violéncia oficial sem poder reagir, como o herdi_ do filme: Quando a luz acende é wma tristeza {irepo, press) ‘Minha coragem muda em cansao. ‘Toda fita em strie que se preza (dizem, reza) Acaba sempre no melhor pedogo Cririca Em relagZo ao outro conjunto expressive de cangdes marcado pela expressio poética 4a ati 208 valores dominantes, duas varifveis dominaram a cangio dos anos de chumbo. ‘Uma vertente mais proxima da tradigio da cangio engajada tradicional enfatizava a critica sociopolitica. A outra, mais préxima da contracultura dos anos 60, pautava-se pelas questdes cexistenciais e comportamentais. Na primeira, 0 establishment a ser criticado era identificado ‘com as estruturas ¢ ideologias politicas que sustentavam 0 antoritarismo ¢ a repressio. Na segunda, o alvo era representado pelos valores morais e comportamentais da classe média provinciana ¢ da burguesia, em dltima instincia, entendidas por muitos artistas como as principais bases sociais do regime militar no perfodo. Obviamente, estas duas vertentes ‘poéticas poderiam aparecer na obra de um mesmo compositor ou, mais raramente, pode- iam aparecer aglutinadas na mesma cancio. Comecemos pela vertente de critica existencial e comportamental que tinha destaque ra obra dos compositores mais identificados com as correntes da Contracultura, experi- mentalismo ¢ subculturas jovens. Entretanto, como ji afirmamos no comego deste texto, mesmo nestes casos, a postura lirica € um apego 4 formas musicais mais convencionais, ainda que eventualmente sofisticadas, temperou a postura agressiva e a busca do choque extético. ‘As imagens de viagens, fiagas da realidade, buscas e encontros afetivos eram as mais recorrentes nesta vertente. © contexto de opresdio era a antitese do elogio da liberdade individual presente nas cangées. Em Oriente, hino da liberdade ¢ busca individual hippie, Gilberto Gil cantava: Se oven, pez Pela constelagio do Cruzeiro do Sul tl Conder, raz A posible de i ro Jpio ‘Nim cargo do Lloyd lavando o porto Pela aisidade de ver (Onde o sols conde tJ Marcos Narourano Determine, rapaz Onde vai ser se curso de pés-gaduagio Seooremt, rapax Pela rotagio da Tera em tomo do Sol Sorridente, rapaz ela continuidade do sonho de Adio ‘A viagem, no sentido literal e figurado, era outra prova de liberdade © negagio da vida sedentéria e estabilizada da classe média conservadora, base social de apoio ao regime militar. Em Manoel, o audaz (Toninho Horta / Femando Brandt), temos a sintese da vida estradeira (on the road), tomada no como exilio intemo, mas como movimento constante ¢ libertirio: Se ex jem seo mew nome ‘Se eu ji nem sei porar Viejar& mais en veo mts A ia, lz etrada pb Jeep amereiou Manoel o Audaz, Manuel o Audaz, Manuel o Audez Vamos I, viajar E oar livre, comp line ‘A metéfora da estrada como liberdade num contexto autoritirio reaparece em Nada serd como antes (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos). A imagem da estrada nas cangdes de MPB, 20 contririo da imagem clissica das ‘pedras rolantes' ¢ do andari- Iho solitério ¢ desenraizado, tipicos da tradigao do blues norte americano, propiciava encontros ¢ uma sensagio de novidade ¢ liberdade (sum gosto de sol»), negadas pelo contexto autorititio (a eboca da noite»). Uma parte da critica chegou a apontar uma certa alusio ao exilio, na medida em que o irmao do autor da letra era um dos exilados da ditadura’. x jd estou com 0 pé nessa estrada Qualquer dia a gente se v6 Sei que nada zeré como antes, aman Que noticias me dao dos amiges, Que noticias me dao de vook? Alvorog em meu coragio Amanhd ou depois de amanht Resistindo na boca da naite um gozto de sol 4 Metto, Zuza Homem de — SevEn1ANo, Jairo. A cando no tempo: 85 anos de musicas brasileiras, 2 voll, Sio Paulo, Editora 34, 1997-1998, vol. u, p. 176. 662 pee A Masica Poputar Brasttema (MPB) Nos ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR O hino miximo da contracultura e do espitito hippie brasileiro foi Vapor Barato (Wally Salomio / Jards Macalé), balada pop melancélica, onde a busca existencialista enfrenta até a perspectiva da solidio, na busca de um ‘cu minimo” capaz de sobreviver & opressio da vida sociale politica. Tendo como paradigma esta cangio, os compositores Jards Macalé ¢ Wally Salomio chegaram a propor um movimento poético denominado ‘morbeza romantica’. A palavra ‘morbeza’ é um neologismo produzido pela agiutinacio de dois outros vocabulos (morbidez e beleza), e sintetizava os sentimentos ambiguos de uma parcela da juventude brasileira que vivia sua utopia hippie libertaria em meio a um contexto altamente autoritirio e repressivo, Diz. letra, imortalizada por uma performance arrastada, melancélica e agénica de Gal Costa, que ia do sussurro ao grito: Oh, sim, ew estou to cansado ‘Mas no pra dizer que nao acredito mais em vock om minha clas vermelhas Meu cazaco de gener Chia de ands Vou desendo por todas as ruas EE vou tomar aqule veo nevio Ew ni press de nuit dito (Crages a Deus!) Raul Seixas, em Ouro de Tolo (1973), favia uma leitura existencial da ascensio material da classe média sob o ‘milagre’ econdmico patrocinado pela ditadura. Cantada numa entonacdo propositalmente arrastada e entediada, essa balada pop deu inicio a escalada de sucesso do compositor, cujo estilo, a0 menos nesta cangio, lembrava 0 de Bob Dylan, ao colocar frases poéticas longas em frases musicais curtas ¢ estruturas harménicas simples, provocando um efeito de extensio artificial da melodia, adiando 0 repouso na tnica. A letra contrapde o bem estar material alcangado pela participacio no ‘milagre econdmico’ brasileiro. A locugio verbal «devia estar» funciona como ex- pressio a um s6 tempo de diivida e de cobranga a si mesmo. O interlocutor do sujeito poético (esenhor») é uma metéfora do poder que concede e delimits a felicidade social ¢ individual Eu devia estar contente Porque tenho wom emprego Sou 0 dito cidadio rspetado E ganho quatro mil uzenes por més Eu devia estar agradecer ao Senhor or ter tido sucesso Na vida como artista Ex devia estar feliz porque consegut comprar Um Corel 73 663 Marcos Naroutrano A davida é assumida plenamente logo em seguida (se agora eu me pergunto, ¢ ait), para deslocar o sentido da vida em outra direc, na qual o compositor deixa em suspenso (ceu tenho uma porgio de coisas grandes /para conquistar / eu nio posso ficar ai parado»). A vida cotidiana e os bens materiais da classe média em ascensio sio desconsiderados, como se fossem provas da falta de perspectiva diante das possibilidades existenciais numa &poca de mudanga de valores: Eu devia estar feliz pelo Senor Ter me concedido 0 Demingo Prk ir com a familia no jardim zolégico Dar pipocas as macacos Al, mas que sjetochato sou eu Que nao acha nade engrgado ‘Maceo, praia, care, jomal, toboga Bw acho tudo fs ura aco Num dos momentos mais ousados da letras, tendo em vista 0 discurso da ordem e a intolerincia com a critica que norteavam o poder hegeménico naquele contexto, Raul Seixas desqualifica as profissSes que garantiriam o establishment: E vod ainda acedita que & um doutor Padre ow polit E que estdcontribuindo com sua parte Para 0 nasso belo quad socal A critica a0 momento histérico € 20s sonhos de consumo da classe média conflui para a busca de uma saida esovérica, interior e exterior (mo cume calmo do meu olho que vés). © contraste entre 0 comego ¢ o final deste conjunto de versos potencializa 0 mal-estar existencial que a can¢io quer passar, produzido pela choque entre a busca de algo vago e intangivel («a sombra sonora de um disco voador») ¢ a vida regrada da classe média em ascensio («o trono de um apartamento com a boca escancarada [...] esperando a morte chegan Bu & que no me sento No trono de um apartament (Con a boca eancarada Chea de dentes Esperando a morte chegar argue longe das cenas Embandeiradas 604 A Mastca Poputar BrastLerea (MPB) NOS ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR Que separam 0: guintsie No cume cairo Do meu olko que vt Assenta a sombra sonora Dum disco voador A segunda vertente da cangio critica dos anos de chumbo pautou-se pela critica sociopolitica, sob a qual os elementos comportamentais ¢ existenciais eram percebidos em sua dimensio mais sociolégica e ideolégica Em Comportamento Geral (Luiz Gonzaga Jr. 1973), cuja divulgago nas ridios foi proibida pela censura, Gonzaguinha utiliza-se da ironia, ancorada em expresses das classes populares (seutw», exepas), para questionar a passividade elogiada pela ideologia oficial: oct dove noter que nip tem mais tutu E dizer que no esth preoagpado Vocé deve lutar pela sepa da feira E dizer que estérecompensado ord deve estampar sempre ura ar de alegria E dizer atudo tom melhoradow oct deve rezar pelo bem do patrdo E esquecer que esté desempregado Vout merce, voct merece Tudo vai bem, tudo legal Coneja, samba, ¢ amanhd, seu Zé ‘Se acaberem com teu comaval? Veo deve aprender a baixar a cabega E dizer sempre: «muito obrigadoo ‘Sio palavras que ainda te deixare dizer or ser homem bem dstiplinade Deve pois 8 fazer pelo bem da Nagio Tudo aguilo que for ordenado Pra ganhar um Fusco no julze final E diploma de bem comportado Yow merce, wack mere Tudo vai bem, tudo legal Cera, soma, e amanhd, seu Zé ‘Se ecaborem com teu carnaval? A ironia também é a estratégia poética de Acorda Amor (Julinho da Adelaide, pseu- . dénimo utilizado por Chico Buarque em 1974), samba ‘malandro’ que faz a critica dos seqiiestros clandestinos realizados no meio da noite pelos agentes da repressio. Como em. qualquer ditadura, © cidadio estava mais ameagado pela policia do que pelos ladrdes. In- 665 Marcos Narourano vertendo a ordem do mundo e o mundo da ordem, a letra tem seu pice na frase «chame o ladrio», substituindo a evocagio mais comurm quando nos sentimos ameagados por alguém (‘chame a policia’): Aconia amor Eu tive wm pesadelo agora Sonei que tinha gente td fora Batendo no porto Que afisto Bra a dura Nuon muito eccura vianura Minha nossa somta catura chame, cham, chame carne 0 ladsio, chame 0 lediio £1 ‘Sho 0: homens Eu aqui parado de pifrna Eu niio gosto de passar vexeme Chame, chame, chame Chane 0 ladrio, chame 0 ladrio Nesta simples inversio, Chico Buarque denuncia a pritica da ilegalidade dos se- gliestros e prises clandestinas, realizadas pela policia em nome da ordem politica e social vigentes. Além disso, ha uma alusio clara aos prisioneiros politicos desaparecidos no se- guinte trecho: ‘Se eu demorar us meses Conv as vezes ocd soer ‘Mas depois de wom ano cx do vindo Ponka a roapa de domingo E pode me exquecer ‘Ao utilizar-se da ironia, tipica da tradigio do ‘samba malandro” dos anos 1930, além de registrar a misica sob pseudénimo, Chico Buarque aparentemente despolitizava a can- Gao, transformando-a numa can¢io ambigua, onde 0 malandro perseguido pela policia ¢ © cidadio perseguido pelo regime se aglutinavam no mesmo personagem poético. A letra termina com um aviso, direcionado nio apenas para o interlocutor intemo da ago poética, mas para o ouvinte-ctimplice na resistencia 4 ditadura: Acoria amor Que 0 bicho & brabo € nfo sossega Se vocé come 0 bicho pega Se few ew nto sei nto Atencio 666 ‘A Masica PorutaR BRasILeIRa (MPB) Nos ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR Nao demort Dia deseschega a sua hora Ni discuta & toa ‘Niv vedame Clare, chame la, chame, chame Chame 0 ladrio, chore 0 lari, chame o ladrio Ni exquega a exova, 0 sabonete 0 vildo A can¢io Cilice (Gilberto Gil / Chico Buarque), composta em 1973, e proibida pela censura oficial, tornou-se uma das alegorias maximas dos anos de chumbo®. A letra incorporava uma série de imagens sagradas, profanadas de maneira proposital, veiculando e a0 mesmo tempo denunciando o clima de violéncia politica oficial que dominava o espago piblico. Ao incorporar a famosa fala de Cristo, a voz que emanava da cangio, identificada com a cidadania oprimida, nio s6 era um apelo & cleméncia divina, mas uma dentincia do autoritarismo metaforizado na figura do «pai» que castiga. Pai, festa de mim ese cle ai, afta de mi ese elie Pei, asta de mim ese clice De vinko tint de songue O siléncio imposto, produzindo um conformismo racionalizado, nfo era suficiente para conter as pulses de liberdade e © desejo reprimido, criando um estado de tensio constant ‘Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor, engoir a labuia ‘Mesmo calada a boca, resta 0 pelto Siléncio na cidade nio se escuta A realidade imposta ¢ a filiago aos valores ‘cristios-ocidentais’, tio propalados pelo discurso oficial, sie questionados: De que me vale ser filho da santa ‘Melhor seria sr filha da eutra (Outrareaidade menos morta ‘Fanta mentia, santa fogs bata Una anilise do contexto de composisio e primeira audigio desta cangio encontra-se em Costa, Caio Tullio. Calese: a saga de Vanaucchi Leme, a USP como aldeia gaulesa, 0 show pribido de Gilberto Gil, Sto Paulo, A. Girafa 2003. Lembramos que a cangio foi apresentada num evento estudantil por ocasifo da morte sob tortura de Alexandre Vanucchi Leme, milisante do movimento estudantil ¢ estudante da Universidade de Sio Paulo, em 1973 ‘ 667 Marcos NaPourrano © clima de pesadelo ¢ torpor, antitese da consciéncia racional, toma conta da vor optimida da cidadania, cujos dilemas eram: aceitar ou nfo o siléncio imposto pela ditadura; manter-se ou nio dentro dos limites racionais da politica, espaco cerceado pelo autori- tarismo no poder. A tensio entre torpor ¢ vigilia marca a consciéncia fragmentada do reprimido, aliés um mote poético importante em Chico Buarque, que j surgira na cangio Construgao (1971) e seria retomada em 1976, na forma de um apocalipse festivo ¢ libertirio em O que seré (A flor da tera). Em Célice, Chico e Gil expressam a agonia sublimada da consciéncia critica, oscilando entre o imperativo da razio que espreita e mantém 0 centro do individuo e a desagregacao subjetiva dos estados de embriaguez ¢ inconsciéncia: Come & aie acoder aldo Se na calada da noite eu me dano Querolangar um gio desumano Que é ume manera de ser exutado Exve sili td me atordoa Atordoado ex pemnanez atento Na arguiboncada pra « qualquer momenta Ver emerir 0 monstr da lagoa Ll Eis palavra presen garganta use pileque homtrica no muda ‘De que adianta ter boa vontade ‘Mesmocalad 0 pit, resta a cca ‘Dos bébados do centr da cidade t Quere perder de vex a caega “Minha cabega perder tex julz0 Quer cere maga de Slo deel ‘Me embriagar aif que alguém me esque ‘A luta entre palavra e siléncio, consciéncia e torpor, que em Calice recebe um tra~ tamento quase épico, em Me Deixe Mudo (Walter Franco, 1974) recebe um tratamento despojado e leve, confirmado pela levada de reggae da gravacio de Chico no LP Sinal Fechado (1975). A letra valoriza uma expresso minimalistae silébica, concentrada em frases/ vversos que funcionam como recados sussurrados, onde cada verso que sugere alienagio, isolamento ¢ siléncio € negado pelo verso seguinte, que sugere 0 oposto, Neste jogo de opostos ¢ elipses, constrdi-se a ‘rede de recados’ da cidadania vigiada: No me pergunte Nip ine rsponda Nao me proawre E no se esoonde Ni diga nada 668 ee A Masica Porurar Brasicema (MPB) Nos ANOS DE CHUMBO DO REGIME MILITAR Saiba de tudo Fique calada Me deixe mudo Sea no canto Seja no contro Figue por fora Fique por dentro ‘Sea 0 avesso ‘Soja metade ‘Se for comeso Figue a vontade Em 1974, com a posse do general Emesto Geisel, a cangio popular foi uma das primeiras expresses socioculturais a configurar a nova sensa¢io de esperanga com a promessa de distensio politica, controle da repressio e fim da censura. Entretanto, as promessas s6 se confirmaram alguns anos depois". A partir dai, apesar do regime militar continuar vigoroso, as vozes criticas na sociedade civil foram se ampliando e as cancées de MPB comecaram a vishumbrar um mundo onde o prazer poderia voltar a ter vez, € a sublimagio poética da violéncia e da opressio poderia ceder espago & sublimagio poética da paz e da liberdade. Gilberto Gil (Deixei recado, 1975) foi um dos primeiros a perceber e cexpressar a possibilidade desse novo tempo: Fale do tempo Fale do fo Falei da dor Agora calo Gao ochinelo Rea Andi Conendo “Andel sfiendo Ande demas Agors écito Oho pro eto Peso na paz Enfim, por volta de 1977, a era de violéncia politica extrema parecia atenuada, mas a era de liberdade plena ainda nao havia comecado. A tensio entre a cancio como veiculo das atitudes criticas ¢ militantes ea cangio como veiculo de lirismo ou puro entretenimento %, Pouco mais de um ano depois da posse do govemno Geisel, em outubro de 1975, a morte sob tortura do jomalista Viadimir Herzog, famcionsrio da TV Cultura, foi uma demonstragio de forca dos érgios de repressio, Sua missa ecuménica, na Catedral da Sé em Sio Paulo, foi um marco na repolitizacio do espago piiblico. Cerca de 8 mil pessoas desafiaram as ameacas do regime e compareceram a0 Ato, 669 Marcos Narourrano marcou cena musical da ‘abertura politica’. A ansiedade da cidadania por uma nova era de liberdade, que, todavia, ainda nio havia chegado plenamente, transformava-se em sensagio de iminéncia de um gozo reprimido. A expressio musical desta sensagio € expectativa coletivas passava a ser um imperativo nio apenas ético e politico, mas também erético. A cangao engajada do periodo da abertura politica anunciava o futuro préximo (0 fim iminente da ditadura) e expurgava os traumas do pasado recente (a violéncia dos anos de chumbo). Mas ela também iluminava as frestas de liberdade conquistada pela sociedade civil ¢ fazia cumprir a promessa de felicidade contida na arte, ainda que esta promessa durasse a breve medida de uma cangio. Ao fim ¢ ao cabo, 6 para isto que cantamos.

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