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Tese (Julianne - 0liveira) - 1

Esta pesquisa qualitativa analisa longitudinalmente um caso clínico de uma criança que não fala por meio de três conceitos psicanalíticos: foraclusão do furo, neoborda autística e alienação retida. O estudo permite acompanhar a construção da linguagem, do corpo e do Outro ao longo do tratamento e observar como isso possibilita ao sujeito tratar de sua alienação retida.

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Esta pesquisa qualitativa analisa longitudinalmente um caso clínico de uma criança que não fala por meio de três conceitos psicanalíticos: foraclusão do furo, neoborda autística e alienação retida. O estudo permite acompanhar a construção da linguagem, do corpo e do Outro ao longo do tratamento e observar como isso possibilita ao sujeito tratar de sua alienação retida.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas


Departamento de Psicologia
Programa de Pós-Graduação em Psicologia

Julianne Gomes Correia de Oliveira

NEOBORDA:
uma direção do tratamento de crianças que não falam

Belo Horizonte
2023
Julianne Gomes Correia de Oliveira

NEOBORDA:
uma direção do tratamento de crianças que não falam

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Minas Gerais como requisito parcial
para obtenção do título de Doutora.

Área de concentração: Estudos Psicanalíticos.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ângela Maria Resende


Vorcaro.

Belo Horizonte
2023
Julianne Gomes Correia de Oliveira

NEOBORDA:
uma direção do tratamento de crianças que não falam

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Minas Gerais como requisito parcial
para obtenção do título de Doutora.

Área de concentração: Estudos Psicanalíticos.

___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Ângela Maria Resende Vorcaro — UFMG (Orientadora)

___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Márcia Maria Rosa Vieira Luchina — UFMG (Examinadora)

___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Mônica Maria Farid Rahme — UFMG (Examinadora)

___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Ariana Lucero — Universidade Federal do Espírito Santo (Examinadora)

___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Ana Martha Wilson Maia — Escola Brasileira de Psicanálise (Examinadora)

Belo Horizonte, ____ de agosto de 2023.


A ele que Toni-fica minha vida.
AGRADECIMENTOS

A Ângela Vorcaro, minha orientadora, pelo acolhimento desde a banca de seleção até
os mais profundos detalhes que a natureza de nosso vínculo possibilitou. Obrigada pela aposta,
pela amizade e pela partilha generosa de sua transmissão psicanalítica. Tenho profunda honra
de ser a última orientanda de sua trajetória docente.
À professora Márcia Rosa, pelo afinco teórico e pelo suporte em todos os momentos do
doutorado.
A Ana Martha Wilson Maia, pela acolhida em seu seminário Autismo e psicose infantil:
da clínica à política, e retorno, pela abertura de uma bela transmissão psicanalítica e por ter me
possibilitado o primeiro lugar de transmissão do caso clínico abordado nesta tese.
À banca escolhida para esta tese — professora Ariana Lucero, professora Márcia Rosa
e professora Cláudia Mascarenhas —, que, desde a qualificação, possibilitou um giro pela
autorização clínica neste trabalho.
À professora Mônica Maria Farid Rahme, pelo aceite carinhoso em participar da banca
examinadora.
A David Moreno, Isa Gontijo, Keilah Gerber, Marina Otoni e Patrícia Gomes, pela
amizade que o doutorado me proporcionou. Destaco a importância afetiva de O-mar-David pela
intersecção infamiliar entre Cali e Recife que nos une. A Isa Gontijo por me ensinar a alegria
que é testemunhar os amigos atravessarem os andarilhos do desejo. A keilah Gerber pela
amizade refinada e pelo amor a Amós Oz, que nos colocou a trabalho no início deste doutorado.

Ao Espaço Nardin, pela abertura dos campos de pesquisa e clínica no estágio doutoral.
Especialmente, às colegas Maria Helena De-Nardin e Emmanuely De-Nardin, pela generosa
parceria, pela aposta e pelo gesto de humanidade exercido cotidianamente na dureza da clínica.
Aos amigos que o Espaço Nardin me trouxe: Luciana de Castro, Aline Miranda, Letícia
Antonelli, Arthur Boutolus, Débora Oliveira, Erika Cristina e Ana Paula. Em especial, a
Luciana de Castro, pela doce amizade.
A Aline Miranda, pela presença inesquecível.
A Ariadne Meira, Aline Siero, Daniela Couto, Daniela Viola, Claudia Moreira e
Fernanda Paolucci, pela amizade e pelo encontro belorizontino.
A minha família, que sustenta a saudade e um profundo incentivo diante dos caminhos
que minha vida tomou. A Sônia, minha mãe, que me bordou. A Paulo, meu pai, que me deu o
dom da ternura. A meus irmãos, Julierme e Helder, que me ensinaram a natureza singular da
fraternidade. A Ketery, que me deu a inédita alegria de ser tia de Elis, a qual, nascida no início
desta pesquisa, em meio a um dilacerante Carnaval recifense, trouxe uma alegria desmedida
para nossa família.
A Sandra Marinho, Marco Aguiar, Daniela Albuqueque e Leticia Albuquerque, pela
construção familiar e por serem minha borda protetiva no doloroso 2022.
A Lucíola Freitas de Macedo, pela leveza da presença.
A João, que ultrapassou os limites da função de estagiário, operando como um elemento
clínico fundamental para o caso clínico apresentado nesta tese. Agradeço por todo suporte
operacional, clínico e ético.
Aos pais de Tom. De tantas palavras redigidas nesta tese, não consigo extrair a profunda
gratidão que sinto por terem depositado em mim a confiança de ser analista de seu filho, pela
autorização do uso do caso nesta pesquisa e, principalmente, por terem me dado a oportunidade
de participar das “aventuras lá fora”.
A Antonio Carneiro de Albuquerque Netto, Toni. É por sua insistência em viver que
duas vidas vivem em mim. Sem você, nenhuma linha desta tese poderia ter sido escrita. Te amo,
profundamente.
À UFMG, pela admissão e pelo suporte durante toda minha trajetória doutoral.
À CAPES, por viabilizar esta pesquisa.
A todos, meus profundos agradecimentos.
no princípio
toda língua é estrangeira

acerca-se do seu corpo como de uma cidade


até tomá-lo
fazê-lo chamar-se a si mesmo pelos nomes
que ela lhe dá:
pé perna barriga dentes
fazer a língua chamar-se língua
chamar-se a si mesma pelo nome dela
língua
domá-la para ensinar-lhe uma coreografia sua
que ela, língua, por sua vez, ensina ao pensamento
cantando

estar na língua como numa


casa louca
que obriga ao abrigar

ela pensa o seu sexo


ela pensa o seu coração — fecha-os
abrindo-os

ela é música
e combate

ela fala na sua boca


com a boca dos mortos

ela é a eletricidade
dos cadáveres

daqueles cuja boca ela encheu


antes da terra

ela cria raízes no seu corpo


dela não é possível se livrar

você é o livro
dela

e se aprende outra
é contra ela
contra sua memória
excessiva
e em viagem
com ela
que te cobra e cobre
como um mar

(Marques, 2021, p. 63)


RESUMO

Oliveira, J. G. C. (2023). Neoborda: uma direção do tratamento de crianças que não falam
[Tese de doutorado]. Universidade Federal de Minas Gerais.

Esta pesquisa se insere em um regime discursivo que dispensa o uso genérico do termo autismo,
vigente na lógica capitalista atual, que define como autistas todas as crianças que tropeçam no
exercício da função da fala e que se defendem do laço social. Trata-se de uma pesquisa
qualitativa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas
Gerais (CEP/UFMG), a qual se baseia em uma análise longitudinal de um caso clínico atendido
pela pesquisadora. O locus da pesquisa foi uma instituição clínica situada na cidade de Belo
Horizonte, Minas Gerais, onde tem sido realizado um estágio doutoral desde 2019. A coleta de
dados da pesquisa foi realizada nas dependências da instituição, abrangendo desde a análise
documental até entrevistas semiestruturadas, relatos de sessões, transcrições de vídeos de
sessões e transcrições de vídeos caseiros cedidos pela família. Para fundamentá-la, partiu-se de
três pressupostos epistemológicos da teoria psicanalítica — a foraclusão do furo (Laurent,
2012), a neoborda autística (Laurent, 2012) e a alienação retida (Maleval, 2021) —, que
orientaram não só a escrita desta tese, como também a direção do tratamento de uma criança.
O relato permite acompanhar a temporalidade da construção da linguagem, do corpo e do Outro
e observar como esta possibilita ao sujeito tratar de sua alienação retida, da não-toda foraclusão
de seu furo e, consequentemente, da construção de sua neoborda. Esta pesquisa evidencia que
o ensino de Lacan oferece subsídios para nortear o que se pode propor como uma clínica de
lalíngua, isto é, uma clínica voltada a privilegiar o que comparece na criança como detritos da
linguagem, os quais fundamentam a junção de seu organismo à linguagem na tentativa de fazer
corpo, mesmo que este permaneça incipiente para o laço social. Para concluir, no pós-escrito,
os pais oferecem um testemunho sobre o tratamento psicanalítico da criança.

Palavras-chave: Neoborda. Autismo. Crianças. Tratamento. Psicanálise.


ABSTRACT

This study is part of a discursive regime that dispenses with the generic use of the term autism,
current in the contemporary capitalist logic, which defines as autistic people all children who
stumble in the exercise of the function of speech and who defend themselves from the social
bond. This is a qualitative study approved by the Research Ethics Committee of the Federal
University of Minas Gerais, which is based on a longitudinal analysis of a clinical case treated
by the author. The locus of the study was a clinical institution located in the city of Belo
Horizonte, Minas Gerais, in which a doctoral internship has been carried out since 2019. Data
collection for the study was carried out on the institution’s premises, ranging from document
analysis to semi-structured interviews, session reports, transcriptions of session videos and
transcriptions of home videos provided by the family. This study is based on three
epistemological hypotheses of psychoanalytic theory — the foreclosure of the hole (Laurent,
2012), the autistic neoedge (Laurent, 2012) and retained alienation (Maleval, 2021) —, which
guided not only the writing of this thesis, as well as the direction of treatment of a child. The
report allows following the temporality of the construction of the language, the body and the
Other and observing how this temporality gives the subject the possibility of dealing with his
retained alienation, the not-all foreclosure of his hole and, consequently, the construction of his
neoedge. This study reveals that Lacan’s teaching offers subsidies to guide what can be
proposed as a lalangue clinic, that is, a clinic aimed at privileging what appears in the child as
language debris, which underlie the junction of his organism to the language in the attempt to
make a body, even if it remains incipient for the social bond. As a conclusion, in the postscript,
the parents offer testimony about the child’s psychoanalytic treatment.

Keywords: Neoedge. Autism. Children. Treatment. Psychoanalysis.


RESUMEN

Este estudio se enmarca en un régimen discursivo que prescinde del uso genérico del término
autismo, vigente en la lógica capitalista corriente, que define como autistas a todos los niños
que tropiezan en el ejercicio de la función de la palabra y que se defienden del lazo social.
Tratase de un estudio cualitativo aprobado por el Comité de Ética en Investigación de la
Universidad Federal de Minas Gerais, que se basa en un análisis longitudinal de un caso clínico
tratado por la autora. El locus del estudio fue una institución clínica ubicada en la ciudad de
Belo Horizonte, Minas Gerais, en la que se realiza una pasantía de doctorado desde 2019. La
recolección de datos para el estudio se llevó a cabo en las instalaciones de la institución, desde
el análisis de documentos hasta entrevistas semiestructuradas, relatos de sesiones,
transcripciones de videos de sesiones y transcripciones de videos caseros proporcionados por
la familia. Para fundamentarlo, se apoyó en tres presupuestos epistemológicos de la teoría
psicoanalítica — la forclusión del agujero (Laurent, 2012), el neoborde autista (Laurent, 2012)
y la alienación retenida (Maleval, 2021) —, que orientaron no solo la escritura de esta tesis, así
como la dirección del tratamiento de un niño. El relato permite seguir la temporalidad de la
construcción del lenguaje, del cuerpo y del Otro y observar cómo esa temporalidad permite al
sujeto lidiar con su alienación retenida, la no-toda forclusión de su agujero y, en consecuencia,
la construcción de su neoborde. Este estudio muestra que la enseñanza de Lacan ofrece
subsidios para orientar lo que se puede proponer como una clínica de lalangue, es decir, una
clínica destinada a privilegiar lo que aparece en el niño como restos del lenguaje, que subyacen
en la unión de su organismo con el lenguaje en un intento de hacer un cuerpo, aunque sea
incipiente para el lazo social. Como conclusión, en la posdata, los padres ofrecen un testimonio
sobre el tratamiento psicoanalítico del niño.

Palabras clave: Neoborde. Autismo. Niños. Tratamiento. Psicoanálisis.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Alienação .................................................................................................................. 28

Figura 2. Buquê invertido ........................................................................................................ 30

Figura 3. Dois espelhos ............................................................................................................ 31

Figura 4. Borda pulsional......................................................................................................... 68

Figura 5. Máquina do abraço ................................................................................................... 87

Figura 6. Malha sensorial suspensa ....................................................................................... 146

Figura 7. Macacão malha sensorial ........................................................................................ 148

Figura 8. Tom examinando o bebê ........................................................................................ 163

Figura 9. Rede de brinquedos ................................................................................................ 194

Figura 10. Macacão sensorial com bolinhas dentro ............................................................... 194

Figura 11. Túnel de espumado ............................................................................................... 224

Figura 12. Mapa do tesouro ................................................................................................... 227

Figura 13. Espaço Nardin e o parque aquático (carta ao Prefeito) ........................................ 247
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14

1 O CORPO LACANIANO ................................................................................................... 24


1.1 O Corpo Simbólico ........................................................................................................... 27
1.2 O Corpo Imaginário ......................................................................................................... 29
1.3 O Corpo Real .................................................................................................................... 32

2 O CORPO E A LINGUAGEM NO AUTISMO ............................................................... 49


2.1 A Diferença Autística ....................................................................................................... 51
2.2 Alienação Retida e S1........................................................................................................ 56
2.3 A Foraclusão do Furo ....................................................................................................... 64
2.4 A Neoborda Autística ....................................................................................................... 67
2.5 A Formalização dos Componentes da Neoborda ........................................................... 73
2.5.1 Os Objetos Autísticos ...................................................................................................... 73
2.5.2 O Duplo ........................................................................................................................... 76
2.5.3 O Interesse Específico .................................................................................................... 80
2.6 Um Caso Paradigmático .................................................................................................. 82

3 CASO CLÍNICO ................................................................................................................. 91


3.1 Apresentação e Descrição Metodológica ........................................................................ 91
3.2 Primeiro Tempo de Atendimento: A Primeira Analista ............................................... 94
3.3 Segundo Tempo: Uma Nova Analista ............................................................................. 97
3.4 Terceiro Tempo: A Instituição ........................................................................................ 99
3.5 Entre Tempos: A Escola .................................................................................................. 99
3.6 Do Mutismo a Lalíngua a Céu Aberto .......................................................................... 106
3.6.1 Março de 2020: Fritando Ovo ...................................................................................... 109
3.6.2 Março de 2020: Soletrando .......................................................................................... 111
3.6.3 8 de Março de 2020: Apresentação Musical com a Mamãe ....................................... 111
3.6.4 Viva a Quarentena! ...................................................................................................... 113
3.6.5 14 de Maio de 2020: Pique-Esconde ............................................................................ 113
3.6.6 19 de Maio de 2020: Tom e a Grade que Tranca Migo .............................................. 115
3.6.7 19 de Maio de 2020: Tom Médico ................................................................................ 116
3.6.8 28 de Maio de 2020: Tatuagem na Mamãe ................................................................. 118
3.6.9 10 de Junho de 2020: Montando Carrinho de Bombeiros.......................................... 118
3.6.10 15 de Junho de 2020: Banho de Mangueira ............................................................. 119
3.6.11 19 de Junho de 2020: Almoço com Pelúcias ............................................................. 119
3.6.12 26 de Junho de 2020: O Ataque do Dinossauro ........................................................ 120
3.6.13 27 de Junho de 2020: Pesca no Brinquedo ............................................................... 121
3.6.14 28 de Junho de 2020: Trocando Pilhas ..................................................................... 121
3.6.15 29 de Junho de 2020: Montando LEGO.................................................................... 122
3.6.16 4 de Julho de 2020: Números..................................................................................... 123
3.6.17 6 de Julho de 2020: Lavando o Carro........................................................................ 124
3.6.18 8 de Julho de 2020: Cuidando do Migo ..................................................................... 124
3.6.19 18 de Julho de 2020: Escondendo a Mamãe ............................................................. 126
3.6.20 30 de Julho de 2020: Cozinhando .............................................................................. 126
3.6.21 Atendimentos Psicanalíticos ....................................................................................... 127
3.6.22 16 de Agosto de 2020: Pista de Carrinho................................................................... 135
3.6.23 18 de Agosto de 2020: Carrinhos, Números e Troca ................................................ 136
3.6.24 22 de Setembro de 2020: Pisca de Carrinhos ............................................................ 138
3.6.25 16 de Outubro de 2020: Dinossauro e Menino Gato ................................................ 139
3.6.26 23 de Outubro de 2020: Cortando a Unha ................................................................ 140
3.6.27 30 de Outubro de 2020: Assistindo ao Jogo .............................................................. 141
3.6.28 25 de Dezembro de 2020: Manhã de Natal ................................................................ 141
3.7 A Língua Verbosa e Privada ......................................................................................... 142
3.8 Da Língua Privada à Língua Partilhada: O Analista como um Duplo Tradutor .... 153
3.9 Tratamento da Alienação Retida .................................................................................. 155
3.10 A Elocubração de Saber sobre Lalíngua .................................................................... 162
3.11 A Não-Toda Foraclusão do Furo................................................................................. 167
3.12 O Corpo como Superfície de Inscrição ....................................................................... 172
3.13 A Construção Imagética do Corpo ............................................................................. 175
3.14 O Nascimento do Duplo ............................................................................................... 185
3.15 Os Primeiros Objetos Autísticos ................................................................................. 190
3.15.1 Março de 2020: Relâmpago McQueen ...................................................................... 191
3.15.2 16 de Maio de 2020: Pista Hot Wheels ...................................................................... 192
3.16 Os Interesses Específicos .............................................................................................. 195
3.17 A Neoborda de Tom ..................................................................................................... 202

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 220


PÓS-ESCRITO ..................................................................................................................... 230

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 248

APÊNDICE A — TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ....... 256

APÊNDICE B — TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ....... 259

APÊNDICE C — LINHA DO TEMPO DO CASO........................................................... 262

APÊNDICE D — MAIS, AINDA... DUPLOS, DUPLAMENTE ..................................... 263


14

INTRODUÇÃO

O interesse por investigar a neoborda como direção do tratamento dos autismos parte
de indagações teóricas levantadas pelos psicanalistas Éric Laurent e Jean Claude Maleval, em
consonância com minha prática clínica com sujeitos autistas. Na esfera acadêmica, a temática
do autismo me acompanha desde o mestrado, realizado entre 2011 e 2013, tendo sido objeto de
estudo da dissertação (Oliveira, 2013) que agora fornece subsídios para a interrogação que
norteia a tese de doutoramento que aqui proponho: os estudos da neoborda podem indicar a
direção do tratamento de crianças que não falam?
Tomo como referência para a problemática em questão a obra de Laurent (2012/2014)
intitulada La bataille de l’autisme, a qual ganhou, na tradução brasileira, o título de A batalha
do autismo: da clínica à política. Nela, o autor demonstra como o autismo perpassa não só as
dimensões clínica e política, como também a mercadológica, problematizando, assim, a guerra
capitalista que vem sendo travada, a nível mundial, em nome de seu tratamento. Avista-se nesse
horizonte o “mercado de tratamento do autismo”, sustentado por protocolos que estabelecem
uma categoria em que o espectro das manifestações define os graus de morbidade, cujo
tratamento se detém apenas na normatização do comportamento do autista, em franca oposição
a uma especificação da singularidade do sujeito. Nesse regime discursivo, constata-se que o
termo autismo adquiriu a propriedade genérica de definir todas as crianças que se defendem do
laço social, tropeçando no exercício da função da fala.
Reconhecendo o movimento normativo que esse regime impõe, mas sem a ele aderir,
optei por preservar a distinção do sujeito, mesmo que a presença do autista no campo social o
leve a uma inserção em exclusão. Considero que não é por se manifestar no modo dito autista
que ele deixa de ser sujeito à linguagem, pois tal estrutura — a da linguagem — especifica a
própria condição humana. Assim, no decorrer desta tese, utilizarei a expressão sujeito autista,
distinguindo o ponto de vista estrutural em que me apoio, partindo do que defende Drummond
(2012), para a qual tomar o autista como sujeito é importante, ainda que não seja o bastante. O
argumento dessa autora é o de que

É preciso avançar no sentido de, fazendo uso do dispositivo teórico da psicanálise, construir a
lógica do autismo, articular a questão da qual o autismo seria a resposta. Essa construção teórica
nos orienta e é uma condição preliminar a todo tratamento possível do autismo. (p. 9)

Historicamente, a psicanálise contraiu um vasto conhecimento no campo do autismo, a


começar pelos estudos de Eugen Bleuler, em 1895, pelos quais o autoerotismo passou a ser
tratado como uma espécie de conotação para o isolamento autístico, sintoma este da
15

esquizofrenia. Leo Kanner, em 1943, e Hans Asperger, em 1944, estabeleceram e descreveram


importantes categorias diagnósticas para o autismo: tanto o autismo infantil precoce quanto a
síndrome de Asperger1 foram nomenclaturas atribuídas por eles aos conjuntos de sinais e
sintomas que passaram a classificar essa disfunção a partir da metade do século XX. Na
atualidade, os manuais diagnósticos fazem convergir as diferentes classes autísticas no
chamado transtorno do espectro autista (TEA). Tendlarz (2017) resume os desdobramentos de
tal condição clínica no campo psicanalítico:

Os pós-freudianos e os kleinianos se interessaram por esse quadro. Melanie Klein localiza Dick
dentro de uma esquizofrenia atípica. Nos anos 50–60, Margaret Mahler, em Nova York, coloca
a necessidade de atravessar a carapaça autista. Durante a mesma época, Bruno Bettelheim, em
Chicago, introduz a “fortaleza vazia”. Nos anos 70, Meltzer examina a topologia e o uso do
espaço próprio, bidimensional, resultado da identificação adesiva. Francis Tustin postula a
“carapaça autista” como uma barreira protetora frente ao mundo exterior, gerada pela
autossensualidade corporal que inclui o uso de objetos autistas e formas autistas de sensações.
Do lado da orientação lacaniana, Rosine e Robert Lefort o pensam como uma quarta estrutura.
(p. 2)

Tendo em vista o percurso histórico supracitado, que traz à baila diferentes abordagens
do autismo na psicanálise, realizarei, nesta tese, um recorte pela orientação lacaniana,
privilegiando a unicidade do sujeito, com o método de construção de um caso clínico. Sem
inviabilizar o trânsito por outros campos do saber psicanalítico, demarcarei, quando necessário,
as diferenças teóricas inclusas nesse mesmo saber.
Até então, a clínica do autismo, sobrecarregada de teorias sobre a suposta etiologia dessa
condição, foi se desmembrando em diferentes linhas teóricas no que tange ao tratamento dos
casos. A despeito da diferença entre a clínica psicanalítica e a abordagem psiquiátrica, Pimenta
(2018) salienta dois pontos em comum entre elas: primeiro, a noção de espectro autista deixa
entrever a possibilidade de uma progressão na interação social estabelecida; segundo, os
critérios diagnósticos para identificar o autismo já apontam para os elementos a serem
examinados em seu tratamento, quando considerados em relação à abertura ao Outro e aos
requintes de funcionamento. Nas palavras da autora,

A lógica classificatória do espectro autista condiz com o reconhecimento, pela psicanálise, de


uma complexa construção de uma borda autística, a ponto de conseguir promover uma maior
interação social. Nos termos psicanalíticos a noção de espectro engloba aqueles quadros que

1
É importante destacar um dado histórico presente no livro Crianças de Asperger: as origens do autismo
na Viena nazista, da historiadora Edith Sheffer (2019): Hans Asperger foi um dos principais arquitetos
da eutanásia de crianças tidas como “anormais”, sendo responsável diretamente pelo assassinato de 44
delas por meio de procedimentos como curas de enxofre e vômitos, tortura e execução por injeção letal.
Com a nova classificação para o autismo, o diagnóstico de síndrome de Asperger entrou em desuso.
Eticamente, portanto, só recorreremos a essa nomenclatura na contextualização histórica dos autismos.
Não objetivamos perpetuá-la para além disso.
16

vão de uma menor a uma maior abertura ao Outro. Dentre os primeiros encontra-se o autismo
de Kanner, e dentre os últimos, a síndrome de Asperger, e em seu patamar mais extremo, o
autismo de alto funcionamento. (p. 126)

Lacan comparece com uma série de elementos que possibilitam distinguir o autismo da
psicose, sobretudo quanto às particularidades da alucinação, ao caráter verboso do sujeito e à
posição deste em relação ao discurso do mestre. Em seu ensino, encontramos, em um intervalo
de 20 anos, três referências importantes para o estudo do autismo, a saber: o seminário Os
escritos técnicos de Freud, doravante Seminário I (1953–1954), a Alocução sobre as psicoses
da criança (1967) e a Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975).
Com vistas a detalhar essas referências, iniciarei pelos comentários lacanianos sobre os
casos Dick, de Melanie Klein, e Robert, de Rosine Lefort, realizados no Seminário I. Neste,
Lacan ([1953–1954]/1986) postula que ambas as crianças estão imersas no real. Em relação a
Dick, que não tem um diagnóstico definido, ele entende que o menino é uma criança que “não
tem o desejo de se fazer compreender, não procura se comunicar, as suas únicas atividades mais
ou menos lúdicas são emitir sons e comprazer-se nos sons sem significação, nos barulhos” (p.
98). Sobre a realidade que Dick experimenta, Lacan argumenta que “tudo lhe é igualmente real,
igualmente indiferente” (p. 98), o que o leva a considerar que “Dick serve-se da linguagem de
uma forma propriamente negativista” (p. 101), isto é, com o propósito de negar o Outro. É lícito
dizer que, nesse movimento de usufruir da sonoridade, já se evidencia um modo singular de o
sujeito transitar na linguagem. Aliás, Lacan supõe que, em Dick,

O sistema pelo qual o sujeito vem se situar na linguagem é interrompido, ao nível da palavra.
Não são a mesma coisa, a linguagem e a palavra — essa criança é, até certo nível, mestre da
linguagem, mas ela não fala. É um sujeito que está aí e que, literalmente, não responde. (p. 102)

Vale notar que, para o caso Dick, Lacan descreve, de maneira implícita, um uso da
linguagem que visa ao gozo, negando à própria linguagem sua função comunicativa. Isso talvez
nos permita realizar uma aproximação dessa discussão com uma formulação posterior de seu
ensino, sobre lalíngua, como veremos mais adiante.
Quanto a Robert, Lacan ([1953–1954]/1986) o situa como um caso de psicose
alucinatória crônica, considerando “o fato de essa criança só viver o real” (p. 124). A propósito
da expressão “O lobo!” que o menino repete com frequência, ele assevera que esta consiste na
“palavra reduzida ao seu caroço” (p. 125) e alerta que o que se tem aí é “o estado nodal da
palavra” (p. 125). É a partir dessa palavra congelada que o sujeito pode encontrar uma saída
para se constituir. Sublinha-se, nessa colocação, a referência a um ponto nodal que articula a
linguagem ao real e que congela a criança, fixando-a. É isso que vem a exigir do sujeito, para
sua constituição, a busca de uma saída. Pode-se reconhecer nesse ponto, tendo em vista as
17

futuras elaborações lacanianas, a importância da passagem de S1 (caroço) para S2 (saber), o que,


no entanto, nem sempre ocorre.
Em Alocução sobre as psicoses da criança, Lacan (1968[1967]/2003), ainda muito
distante de uma distinção do autismo, fala de uma jornada coordenada por Maud Mannoni sobre
as psicoses na infância. Ele retoma uma frase que proferiu 20 anos antes em uma reunião na
casa de seu amigo Henri Ey: “Longe de ser a falha contingente das fragilidades do organismo,
a loucura é a virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência” (p. 359). No que
concerne à criança psicótica, Lacan resgata uma importante observação feita por David Cooper:
a de que “para obter uma criança psicótica, é preciso ao menos o trabalho de duas gerações,
sendo ela seu fruto na terceira” (p. 360). Por fim, nesse discurso, Lacan questiona seus ouvintes:

Mas o que pergunto a quem tiver ouvido a comunicação que questiono é se, sim ou não, uma
criança que tapa os ouvidos — dizem-nos: para quê? Para alguma coisa que está sendo falada
— já não está no pós-verbal, visto que se protege do verbo. (p. 365)

Salienta-se, nesses trechos, a indicação lacaniana de que todo ser falante está implicado
em uma falha fundamental que o inaugura, da qual a estruturação pela via da loucura é uma
possibilidade dentre outras. Ao mesmo tempo, observa-se como Lacan (1968[1967]/2003)
lastreia a posição da criança em relação à cadeia de gerações, afirmando que o sujeito, desde o
início da vida, está submetido ao que ouve. Nessa modalidade constitutiva elementar, a voz é
incorporada e articulada, fazendo alteridade ao Outro, como ele já havia afirmado no seminário
d’A angústia, doravante Seminário X, alguns anos antes:

A verdade entra no mundo com o significante antes de qualquer controle. Ela se experimenta,
reflete-se unicamente por seus ecos no real. Ora, é nesse vazio que a voz ressoa como distinta
das sonoridades, não modulada, mas articulada. A voz de que se trata é a voz como imperativo,
como aquela que reclama obediência ou convicção. Ela não se situa em relação à música, mas
em relação à fala. (Lacan, [1962–1963]/2005, p. 300)

Essa afirmativa permite retomar o comprazimento sonoro de Dick, anteriormente


focalizado por Lacan ([1953–1954]/1986) no Seminário I, como uma forma de modalização
dos resíduos da estrutura da linguagem.
Em 4 de outubro de 1975, após uma semana de trabalhos organizados pela Sociedade
Suíça de Psicanálise, Lacan profere o que ficou conhecido como sua Conferência em Genebra
sobre o sintoma. Encontramos nela comentários preciosos acerca da criança, do autista e do
esquizofrênico em sua relação com a fala e a voz. De início, Lacan ([1975]/1998) reflete sobre
suas observações de crianças pequenas, que, mesmo antes de serem capazes de construir uma
frase, dizem “talvez, ainda não”. Isso prova que, na criança, existe “uma peneira que se
18

atravessa, através da qual a água da linguagem chega a deixar algo para trás, alguns detritos
com os quais brincará, com os quais necessariamente ela terá que desembaraçar-se” (p. 11).
O pressuposto lacaniano sobre o autismo nessa época comporta a impressão de um
sujeito que escuta a si mesmo, estando, portanto, situado na linguagem, embora se proteja do
verbo, permanecendo, por isso, fora do discurso. A respeito das alucinações, Lacan
([1975]/1998) afirma que “nem todos os autistas escutam vozes, mas articulam muitas coisas e
se trata de ver precisamente onde escutaram o que articulam” (p. 12). Subvertendo o
pensamento corrente, ele convoca seus interlocutores a escutar os autistas:

Trata-se de saber por que há algo no autista ou no chamado esquizofrênico, que se congela,
poderíamos dizer. Mas o senhor não pode dizer que não fala. Que o senhor tenha dificuldade
para escutá-lo, para dar seu alcance ao que dizem, não impede que se trate, finalmente, de
personagens de preferência verbosos. (p. 13)

Em 1975, já considerando a referência ao termo diagnóstico autismo, Lacan o aproxima


e o distingue da esquizofrenia, ao mesmo tempo que supõe que o autista, como todo ser falante,
filtra da linguagem algo da estrutura desta, cujo uso não tem fins interativos e que, por isso,
distingue-se da língua partilhada como lalíngua. Ou seja, Lacan acredita que o autista está
submetido à linguagem, mas que ele se serve dela de um modo singular, que não se presta à
comunicação e, por isso, ela não é facilmente audível. A posição desse sujeito perante a
linguagem deixa os clínicos um pouco surdos, exigindo deles uma detenção mais específica.
Lacan parece indicar aí que os autistas ensinam que a presença de S1 (caroço) pode ocorrer
desencadeada de S2 (saber). A propósito, é isso que mantém a criança fora do discurso, a
despeito do fato de ela incorporar a estrutura de linguagem.
Na esteira do pensamento lacaniano, proponho, para esta tese, a investigação da
neoborda como uma possível direção no tratamento dos autismos. A neoborda é um conceito
forjado por Laurent (2012/2014) para designar uma borda artificial, ainda que superficial e
frágil, que permite ao autista se defender do Outro e realizar trocas com este. A neoborda é um
artifício de defesa contra o inassimilável — a presença pungente da dimensão real em sua
vivência —, compondo, inicialmente, um lugar de proteção, fazendo deste, também, um lugar
de gozo. O autista se serve dessa borda artificial para se encapsular, demarcando os limites
suportáveis da incidência do Outro, operando com seu corpo uma demarcação espacial da
condição imutável de seu mundo. É nesse lugar que ele faz amálgama dos fenômenos de duplo,
interesses específicos e objetos, estabelecendo os elementos constitutivos da neoborda.
Os objetos autísticos e os duplos têm como função primeira manter à distância do autista
aquilo que se apresenta para ele como insuportável do mundo dos falantes, podendo, entretanto,
19

intermediá-lo com algo do Outro. Destacam-se as engenhosidades de autistas que, de maneira


inventiva, desenvolveram arduamente seus objetos e duplos, culminando em interesses tão
específicos que possibilitaram um saber-fazer-com isso [savoir-y-faire]. Para esses autistas,
consideramos que foi possível uma evolução clínica dentro de sua estrutura específica.
Ao receber um sujeito com aparente sintomatologia autística, é conveniente primar
pelos detalhes em seu comportamento, em sua linguagem e no modo de se enlaçar e se
desenlaçar do Outro: a preferência pelo isolamento ao contato social, o retraimento do olhar e
o que se destaca juntamente a esses dois fatores, isto é, as diversas dificuldades de se comunicar.
Comumente, deparamo-nos, na clínica com autistas, com uma recusa em atribuir à própria voz
uma sonoridade, mantendo-se em profundo silêncio. Os que não apresentam essa recusa de
maneira enfática contorcem-se na vocalização, que, por vezes, se apresenta destimbrada,
monocórdica e/ou melódica, caracterizando a forma ecolálica da voz. Para além desses
fenômenos, destacam-se, na clínica do autismo, manifestações como o apego intenso a certos
objetos, denominados objetos autísticos. Esses objetos têm um funcionamento muito preciso e,
frequentemente, assumem uma função particular na economia psíquica dos sujeitos autistas.
Adverte-se que a função dos objetos materiais aos quais os autistas aderem distingue-se daquela
do objeto transicional, suposto e descrito por Winnicott (1971/1975). Apartados das funções
simbólicas de jogo, pelas quais poderiam operar como intermediários da sustentação materna
imediata ou representando o próprio sujeito, os objetos autísticos são fixados ao corpo,
restringindo-se à função de defesa contra a interação ou a comunicação.
Estudar o autismo hoje proporciona à psicanálise o encontro com um novo paradigma
clínico. Podemos supor que, no tempo de Lacan, o paradigma era a psicose de James Joyce, a
qual demonstrou que a loucura pode ser um modo de estabelecer uma invenção que inclui o
sujeito no laço social. O autismo seria o paradigma clínico de nossa época, na medida em que
nela impera a suposição de total autonomia decisória do indivíduo, o que implica nos confins
em que o autista comparece, encarnando ele o ápice da indiferença ao laço social.
Os autismos nos ensinam sobre os tempos do Um sozinho, este radicalmente separado
de qualquer significante, produzindo um efeito devastador de gozo informe sobre o próprio
corpo, gozando de si mesmo. Os autismos nos convocam a uma clínica para além do princípio
do prazer e colocam em evidência a pesquisa sobre o falasser [parlêtre], necessária para que
seja possível formalizar a constituição subjetiva nas formações de laço social atuais da
civilização. É a partir desse cenário de estudos clínicos que surge a proposta desta tese. Seu
desígnio é elevar os recentes e originais achados oriundos da clínica psicanalítica de orientação
lacaniana ao estatuto de pesquisa, com vistas a formalizar uma metodologia de orientação
20

clínica para o tratamento de crianças excluídas da função da fala, nomeadas no espectro do


autismo. Proponho, nesse seguimento, sustentar academicamente uma clínica de construção da
neoborda para o tratamento dos ditos autismos.
Esta pesquisa propõe, como objetivo geral na perspectiva da psicanálise lacaniana, a
construção da neoborda como metodologia de intervenção clínica no tratamento de crianças
excluídas da função da fala, nomeadas pelo campo social de autistas. Como objetivos
específicos, destacam-se: (a) localizar, analisar e descrever o conceito de neoborda,
diferenciando-o da noção de borda, já conhecida em psicanálise; (b) levantar testemunhos de
autistas sob os vieses da teoria do circuito e da construção da neoborda; (c) examinar elementos
que fundamentem a proposição da construção da neoborda a partir da experiência; e (d)
estruturar, a partir dos dispositivos obtidos, uma metodologia de orientação clínica para o
tratamento de crianças que não falam na psicanálise lacaniana.
O método da pesquisa requer, em um primeiro momento, recolher autobiografias de
autistas já divulgadas. A proliferação desses relatos traz consigo novas modalidades de
orientação metodológica para o tratamento, na medida em que este passa a se apoiar em
soluções inventadas pelos próprios sujeitos. Com isso, observa-se um deslocamento do relato
do especialista para o relato testemunhal. Tal mudança de perspectiva interessa à psicanálise e
a seu modo particular de fazer pesquisa clínica, que visa, desde a abordagem inaugural de Freud,
a extrair da experiência uma escrita mínima da linguagem — ou, como diria Lacan, a estrutura
mínima do falasser. Nesta pesquisa, ampliarei o uso do termo testemunho para abarcar a
transmissão de uma experiência clínica absolutamente singular, visando a uma transmissão
incomparável do percurso que o caso faz, ao sair de sua posição-limite com a linguagem.
O método é um processo que posiciona ética e epistemologicamente a pesquisa. Isso
significa que a escolha do método induz a diferentes concepções de ciência e de fazer científico.
O ponto de partida desta tese são os testemunhos de autistas, obtidos por meio de documentos
autobiográficos enquanto trabalhos criativos e autorais, como destaca pertinentemente Maleval
(2009a). Nesses testemunhos, podemos encontrar soluções singulares e originais, que retratam
a modalidade de incorporação do significante, favorecendo o estabelecimento de mudanças na
economia de gozo que permitem a saída do isolamento (Bialer, 2014).
A análise de testemunhos não é algo novo em psicanálise. Maleval (2010), ao investigar
autistas de alto funcionamento, defende a utilização de estudos de casos clínicos recorrendo a
grandes nomes da pesquisa psicanalítica:

Freud e Lacan fazem ao contrário, a hipótese de que é partindo de formas mais elaboradas da
defesa psicótica que podemos compreender as formas mais arcaicas. Freud e Lacan privilegiam
21

a paranoia e as Memórias do Presidente Schreber para apreender a psicose. [...] Esta


metodologia, que consiste de partir das formas mais altas da defesa, a fim de esclarecer
posteriormente as formas mais simples, a de Freud e Lacan para o estudo da psicose, parece-me
ser a mais heurística para o estudo do autismo. É o autismo de alto desempenho, e o de Asperger,
que deve permitir iluminar novidades sobre o autismo de Kanner. (p. 2)

Tendo isso em vista, o procedimento metodológico partiu do conceito de neoborda,


considerando que este abrange os fenômenos do duplo, dos objetos autísticos e do interesse
específico. É a descrição desses fenômenos nos escritos de autistas que definem a orientação
desta tese, à medida que esses sujeitos podem se sustentar mediante um tratamento de suas
neobordas.
O testemunho de Temple Grandin, por exemplo, referencia o trabalho de uma vida em
torno de um objeto autístico que se desdobrou na edificação de duplos e em um interesse
específico ampliado. Isso me mobilizou a tomar o movimento de Grandin como um paradigma
para a construção da neoborda, sendo seu objeto autístico o elemento central a partir do qual se
desenvolveram os demais componentes.
Ao longo de seu testemunho, Grandin detalha inúmeras tentativas de construção de um
aparelho. Em seu depoimento, encontra-se uma elaborada forma de objeto autístico complexo.
Ela sonhava com uma máquina mágica que pudesse envolver completamente seu corpo, como
uma espécie de abraço.

Às vezes eu me perguntava se aquele brete não iria tomar conta de mim e me impedir de
sobreviver sem ele. E então compreendi que o brete era apenas um aparelho de imobilização
feito de restos de compensado. Era um produto de minha mente. Os mesmos sentimentos que
eu tinha no brete podiam me ocorrer fora dele. Os pensamentos eram criações da minha mente,
e não do brete. Quando entrava no brete, sentia-me mais próxima de pessoas como minha mãe
[...] embora fosse apenas um aparelho mecânico, o brete derrubou minha barreira de
defensividade táctil, e eu podia sentir o afeto e a preocupação dessas pessoas, conseguindo
exprimir meus sentimentos por mim mesma e pelos outros. (Grandin & Scariano, 1999, p. 97)

A obra testemunhal mais recente é a de Owen Suskind (2017), filho do jornalista


americano Ron Suskind. Seu relato, Vida animada, foi escrito por seu pai, ganhando ainda uma
adaptação como documentário. Owen, que era obcecado pelos filmes da Disney, tinha um
interesse particular por uma cena de A pequena sereia, na qual a feiticeira Úrsula dizia à
personagem-título, Ariel, que queria sua voz. O menino rebobinava o filme inúmeras vezes
nessa cena e repetia “sussuvuz” e “juicervoice”, o que foi escutado pelos pais como “just your
voice”. Os pais de Owen puderam “capturar” a função do duplo que os desenhos exerciam para
o filho e passaram a conversar com ele com as vozes e a pantomima das personagens dos filmes
da Disney. Com isso, Owen, que não falava há anos, começou a falar, inicialmente
reproduzindo a fala dr personagens dos filmes. Hoje ele tem um clube onde assiste, com vários
22

adolescentes autistas e deficientes, aos filmes da Disney e no qual convida atores que fazem as
vozes das personagens para se apresentar (Alvarenga, 2018).
Daniel Tammet (2007), em seu livro Nascido em um dia azul, faz um relato de vida
composto de detalhes de elementos clínicos fundamentais, o qual nos permite depreender a
lógica de seu funcionamento subjetivo, a saber: as crises de cólera, o encapsulamento autístico,
a presença de objetos autísticos, a invenção de duplos, a lógica visual de números e letras, a
aprendizagem de várias línguas, a participação em concursos diversos e, por fim, a invenção de
uma língua própria. Os fenômenos de corpo em Tammet são claramente identificados como
tentativas de construção de borda, na medida em que relata em seu testemunho que passa a
empilhar livros ao redor do próprio corpo, objetivando construir um envelope corporal
composto de letras e números.
Donna Williams faz um depoimento autobiográfico de imenso valor. Nele, encontra-se
um vasto percurso na construção do duplo e de objetos autísticos. Robert e Rosine Lefort
(2003/2017), em seu livro A distinção do autismo, afirmam que Williams, por muito tempo e
de maneira preponderante, se entregou a seu duplo. Desde o início de sua vida, ela se relaciona
muito bem com a ausência da linguagem, a qual esteve reduzida, até seus quatro anos de idade,
à ecolalia, sem que pudesse atribuir nenhum sentido às palavras. Maleval (2009/2017) pontua,
de forma precisa, que os amigos imaginários de Williams, como Carol e Willie, fazem com que
ela eleve ao mais alto grau a construção do duplo, dotando-o de capacidades extraordinárias de
adaptação a outro mundo. O objeto autístico participa do duplo, ao passo que o duplo pode
tornar-se um objeto autístico.
Esses quatro autistas, cujos testemunhos autobiográficos trazem fenômenos da
neoborda autística, franqueiam a formalização da neoborda como uma metodologia capaz de
orientar o tratamento clínico de crianças excluídas da função da fala e nomeadas no espectro
do autismo.
Há um trabalho de leitura dirigido pela escuta em que o pesquisador procura identificar,
de forma semelhante ao que acontece na clínica, as falhas e os tropeços de um discurso, seja
este proferido ou escrito (Caon, 1994).
O procedimento para a análise de dados consistiu em um estudo de caso dirigido pela
escuta psicanalítica. Assim, extraí um caso de minha clínica que mobiliza interrogações a
respeito da direção do tratamento de crianças mediante a construção de um circuito que objetiva
edificar a neoborda para além de uma modalidade de defesa, permitindo ao sujeito sustentar sua
singularidade no mundo a partir de seus interesses. O que está em jogo na direção do tratamento
é o consentimento do sujeito à entrada do analista no circuito de sua borda artificial,
23

possibilitando-lhe um deslocamento de sua neoborda para a complexificação de seus


componentes, de modo a se conectar, em alguma medida, ao laço social.
O caso em questão teve seu tratamento iniciado em 2019, sendo conduzido inicialmente
por Ângela Vorcaro, orientadora desta tese, quando a criança tinha ainda dois anos e oito meses.
De seus três anos até o presente momento, em que tem sete anos, a criança vem sendo analisada
por mim. O relato coloca em revelo uma criança diagnosticada como autista e permite
acompanhar a temporalidade da construção da linguagem, do corpo e do Outro, o que nos leva
a defender que a análise possibilitou a ela tratar de sua alienação retida, da não-toda foraclusão
do seu furo e, consequentemente, da construção de sua neoborda.
Esse caso nos conduziu à discussão de três importantes teses oriundas das pesquisas de
Éric Laurent e Jean Claude Maleval, psicanalistas que têm se dedicado ao último ensino de
Lacan, levando-nos a interrogar como os sujeitos autistas, imersos no real, constroem suas
bordas autísticas, freiam seu gozo e enunciam sua voz. É nesse recente desenvolvimento teórico
que busco formalizar uma prática clínica para além da construção do simbólico, objetivando a
construção da neoborda em crianças que não falam.
Se consideramos recente esse desenvolvimento teórico, é porque seu marco inicial são
as publicações dos autores supracitados: La bataille de l’autisme, de Laurent, trabalho lançado
originalmente em 2012, L’autiste et sa voix, de Maleval, que veio a público em 2009, e La
différence autistique, a mais nova obra de Maleval, publicada em 2021. Elenquei, dentro delas,
as seguintes teses: a foraclusão do furo (Laurent, 2012/2014), a neoborda autística (Laurent,
2012/2014), e a alienação retida (Maleval, 2021). Essas teses, em minha análise, convergem
em um encadeamento lógico que orienta a direção do tratamento nos autismos.
Não tenho a pretensão de propor aqui uma cura para o autismo, muito menos a
normatização de qualquer sujeito ao status quo “neurótico”. O que pretendo é considerar as
soluções singulares daqueles que vivem nessa condição, indo além de uma visão deficitária
sobre seu modo de ser. Isso encontra legitimidade, por exemplo, nos testemunhos de autistas
que publicaram suas soluções em biografias ou na extração dessa singularidade de nossa
experiência clínica com crianças que não falam.
É pelo Zeitgeist2 de nossa época que a presente tese se organiza como formalização
acadêmica de uma metodologia calcada na escuta clínica e na intervenção. Visamos, assim, a
defender a psicanálise como uma abordagem de tratamento, haja vista a disputa atual que tem
a intenção de desqualificá-la mundialmente para a intervenção com sujeitos autistas.

2
O Zeitgeist se refere a tudo que é contemporâneo, traduzindo-se por espírito do tempo (Wagner, 2014).
24

1 O CORPO LACANIANO

Se vocês podem pensar com os músculos subcutâneos da testa,


podem também pensar com os pés.
(Lacan, [1974]/2011, p. 14)

O corpo não é o organismo (Lacan, [1972–1973]/1985). Partimos dessa premissa


lacaniana com o objetivo de realizar um percurso pela contraposição entre a condição
imaginária humana, que supõe “ser um corpo”, e a dimensão simbólica, que admite “ter um
corpo”, ambas sustentadas por um substrato material real designado por Freud (1937/2018)
como “rocha básica subjacente” (p. 325). Distingue-se esse corpo do organismo enquanto
conjunto de aparelhos e sistemas. A concepção lacaniana desdobra e especifica a afirmativa
freudiana, que diz de um dentro (organismo interno) em oposição a um fora (ambiente externo).
O corpo que convém a nossa pesquisa é tido como uma superfície de inscrição, sendo ele não
apenas constituído pela dimensão narcísica, especular, uma vez que é diferenciado, a partir dos
furos animados, pelos objetos da pulsão (o seio, as fezes, o olhar e a voz) e nos modos de
extração destes. Esses objetos consistem em semblantes do que há de real no sujeito, enquanto
sua distinção e seu mapeamento no organismo são efeito da operação da linguagem que nele
incide, a qual é orientada imaginariamente, e em grande parte, pelos agentes do cuidado.
Para formalizar essa abordagem, seguiremos postulados tradicionais da teoria freudiana,
considerando o modo como Lacan os resgata, os atualiza e neles avança, diferenciando o campo
narcísico do campo pulsional para localizar uma hiância entre eles. Esse percurso é fundamental
para que possamos nos situar em relação à dimensão do corpo no autismo, haja vista que o
autista constrói um modo particular de habitá-lo.
Vorcaro (2022), durante a 21ª edição da Jornada Corpolinguagem e a 13ª edição do
Encontro Outrarte, destrinchou a hipótese segundo a qual um movimento corporal demarca a
fenda simbólica em que o ser falante se estabelece, em um modo de nominação franqueado por
manifestações do corpo que ultrapassam sua nomeação. A autora resgata, em sua abordagem,
a estrutura topológica do ser falante, cuja distinção exigiu de Lacan (1974/2003) a retomada
das dimensões da angústia, da inibição e do sintoma, introduzidas por Freud (1926/2014),
levando-o a defini-la como o lugar irrepresentável do sujeito (Lacan, 1974–1975), o qual orienta
o estatuto do corpo inaugurado no postulado freudiano da existência de uma atividade psíquica
inconsciente.
O diferencial de nossa espécie habita na ideia de posse de um organismo operador das
funções vitais e na convicção imaginária do ser falante de ser um corpo. Acerca do ponto de
25

união e de fronteira do psíquico e do físico, Vorcaro (2022), advertida do reconhecimento da


precariedade científica da pulsão que levou Freud a tomá-la como convenção, sublinha que a
ordem pulsional é localizável como registro real, como terceira dimensão da urdidura que o
enodamento tríplice constringe: a imaginária unidade somática e o simbólico do corpo falante.
Na esteira do pensamento freudiano, a autora retoma a consideração sobre o território somático,
reagente a excitantes mecânicos, físicos e químicos, o qual envolve um sistema nervoso
autônomo, tendente à inércia em sua função primária de manter nula a diferença entre repouso
e movimento.
Em um resgate da fisiologia, Vorcaro (2022) retoma o caráter bipartido dos nervos
sensoriais (aferentes) e motores (eferentes), reforçando que estes compõem um sistema
autônomo. A dinâmica desse sistema, operador da condução de cargas em arco-reflexo, é
atingida por quantidades de carga procedentes do exterior, que chegam aos nervos sensoriais.
O organismo, então, as descarrega por mecanismos musculares. Essa dinâmica de vaivém
reflexo protege o sistema nervoso central de insuportáveis limiares de carga, ao inverter a carga
de choque recebida.
Essa dimensão fisiológica nos permite indexar a analogia lacaniana, resgatada por
Vorcaro (2022), entre a unidade somática e uma cachoeira. O emparelhamento humanizante da
linguagem com o organismo vivo possibilita discorrer a metáfora da cachoeira, ao supor que

Tal como o organismo vivo é aparelhado com a linguagem ao ser humanizado, o fluxo d’água
é interceptado por uma turbina inserida nele, para gerar energia elétrica. Essa máquina montada
segundo uma cadeia de equações, a turbina, feita da estrutura e de artefatos de linguagem,
aproveita-se do potencial hidráulico de um fluxo represado, introduzindo as condições para a
transformação da energia potencial da queda d’água em energia elétrica renovável e
armazenável. Analogamente, a estrutura de linguagem intercepta o campo somático,
transformando-o em corpo. Contudo, sublinha-se a importância de também considerar, na
hidrelétrica, o escoamento da água excedente, num vertedouro que não passa pela turbina, onde,
talvez, haja ainda certa analogia com a persistência de um excedente irrepresentável. (Vorcaro,
2022)

O estabelecimento do pensamento freudiano entre o anímico e o somático aponta para


o lugar da pulsão, tal qual Lacan (1971/2003) distinguiu o litoral entre mar e terra para
diferenciar o impacto da letra no simbólico e no real. Esses percursos que estabelecem os
circuitos da pulsão, disparados por estimulações endógenas, têm como trajeto uma fonte
somática e um retorno a outro ponto da zona erógena inicial, considerando, como afirma Lacan
([1964]/1988), que esse vaivém “mostra em seu intervalo uma hiância” (p. 183).
Vorcaro (2022) acrescenta que, em vez de neutralizar a excitação, retornando à inércia,
o movimento da pulsão perfaz um trajeto organizado e orientado pela linguagem, excedendo a
mera inversão reflexa para conjugar seus distintos elementos (fonte, pressão, alvo e objeto),
26

buscando algo a mais que propicie uma satisfação que repercuta nas bordas da fonte somática
de excitação, isto é, na zona erógena, ou seja, no território da unidade somática já imantada pela
linguagem, nela reverberando uma modalização do usufruto da vida, um mais de gozo.
O debate acima disposto nos interessa por possibilitar a delimitação da noção de zona
erógena, a qual opera como uma borda, convidando-nos a pensar em suas implicações para a
construção de um corpo e para as modalidades de circuitos que uma criança realiza, bem como
se essas modalidades incluem ou não o Outro na cena assim armada. Interrogamo-nos, para
além dos postulados freudianos e lacanianos, como podemos pensar na construção da neoborda,
partindo das teorias do circuito pulsional, da zona erógena, da hiância e do corpo. Como os
sujeitos que ainda não falam, sem a vetorização da linguagem no circuito pulsional, ampliam
seus circuitos pulsionais curtos e os estendem à construção de uma borda complexa?
Freud (1915/2014) compara o movimento da pulsão à lava de um vulcão, com suas
erupções sucessivas deixando marcas e sulcos ramificados. Em suas palavras,

Podemos, então, de certo modo, imaginar que a primeira e mais original erupção pulsional
prossiga de forma imutável, sem experimentar nenhum tipo de desenvolvimento. Uma onda
posterior experimentaria, desde o início, uma alteração, tal como a passagem para a passividade,
juntando-se com esse novo caráter à erupção anterior, e assim por diante. (p. 45)

Para os sujeitos com variedade objetal, a pulsão, embora esteja submetida ao caráter da
repetição, se manifesta em diferentes configurações e papéis. A clínica com crianças excluídas
da fala nos mostra que é relativamente comum entre elas circuitos curtos e com poucas
variedades objetais, assim como a tomada de partes de seus corpos como objetos, estreitando
ainda mais seu circuito. Freud (1915/2014) especifica que a mobilidade da pulsão pode ser
paralisada, caso a fixação ao objeto se oponha à dissolução dessa ligação. Podemos supor que
esse objeto fixado corresponda ao objeto autístico.
A particularidade dos objetos autísticos nos mostra que sua materialidade não é perdida,
mantendo-se eles consistentes e não submetidos a substituições. A satisfação pulsional não se
dá pelo movimento de retorno, e sim por sua colagem corporal ao sujeito, apresentando uma
dinâmica inicialmente rígida de ligação.
Em nossa pesquisa, iniciamos a problematização do corpo em suas dimensões real,
simbólica e imaginária, pois, para ter um corpo, é necessária uma trajetória sequenciada de
fatores lógicos dependentes do Outro — especificamente, do olhar e da voz do Outro. Esse
primeiro tempo lógico requer uma montagem de sons e palavras e uma construção imagética
mínima. Provisoriamente, podemos considerar que o corpo ao natural é desnaturalizado pelo
simbólico, sendo, pois, feito de linguagem, em vista da marca que o localiza na identificação
27

simbólica primária (signum do ideal do eu), fixando-o. Vale ressaltar que, em A terceira, Lacan
([1974]/2011) disserta sobre um corpo ao natural, que, segundo ele, consiste em uma suposição
teórica de um corpo anterior ao acontecimento do gozo. Em seus termos, “o corpo deve ser
compreendido ao natural como desenlaçado desse real que, para ex-sistir a ele na qualidade de
fazer seu gozo, não lhe é menos opaco” (p. 21).
Concomitantemente, a forma do corpo é constituída e vivida através do imaginário, que
preside as identificações secundárias (eu ideal e super-eu). O corpo real é a báscula que
comparece naquilo para o que aponta a discrepância entre o corpo simbólico e o corpo
imaginário. Essa hiância assinala a incomensurabilidade entre as dimensões do simbólico e do
imaginário, ao mesmo tempo que as articula como corporeidade no litoral da letra, por meio do
que a fundamenta como lalíngua. A letra, estrutura localizada do significante que o retira do
discurso em que estava enredado — o enxame que atinge a criança —, é o signo que, ao se
incorporar, faz corpo.
Os registros R.S.I. (real, simbólico e imaginário) se estendem por toda a teoria lacaniana
e recebem as marcas das sucessivas mudanças conceituais, a depender da época do ensino de
Lacan. Aqui, neste trabalho, recolheremos pontos de sedimentação que nos possibilitem
desdobrar o corpo em suas perspectivas simbólica (linguagem), imaginária (imagem) e real
(gozo).

1.1 O Corpo Simbólico

A influência da linguística de Ferdinand Saussure e da antropologia de Claude Lévi-


Strauss possibilitou a Lacan uma virada estruturalista, reposicionando a psicanálise no campo
da linguística. Textos desse período, como Função e campo da fala e da linguagem em
psicanálise (1953) e A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957), são
marcos de como ele se apropriava dos conceitos da linguística estrutural e os subvertia e
desenvolvia no campo da psicanálise, concebendo o simbólico como o sistema do inconsciente.
Dizia Lacan (1956[1953]/1998) que o inconsciente é “estruturado como uma linguagem” (p.
270), demostrando que o simbólico é a morada da linguagem e do significante, sendo também
o lugar da lei, da palavra e da abstração. Se a palavra é mesmo a morte da coisa, não é necessária
a presença do objeto, tendo em vista que ela o representa. O simbólico é o lugar do equívoco e
dos lapsos — enfim, das formações do inconsciente.
A experiência corporal não é apenas marcada por imagens integradoras (imagos), mas
também pela distinção e organização simbólica destas. O simbólico é a própria estrutura da
28

linguagem, sendo articulado por símbolos, significantes e significados. Para Lacan, a


articulação entre significantes possibilita a produção de significados, de que resulta o discurso.
A palavra, como afirma Lacan, é plena e vazia e faz movimentos de metáfora e metonímia. O
saber significante faz corpo, mortificando o chamado corpo ao natural. Esse significante
promove uma “terraplanagem” do gozo. O corpo simbólico é o corpo tomado pelo inconsciente,
sendo este o discurso do Outro. O sujeito, por sua vez, é causado pela linguagem, mas seu corpo
funciona como suporte simbólico nos desbarrancamentos que fazem suporte à letra.
A dimensão simbólica do corpo é inicialmente delineada a partir do efeito da marca que
distingue o corpo em uma posição, franqueando a operação imaginária do espelho. Assim, a
partir de um traço distintivo, o corpo é envelopado e in-corpo-rado pelo significante, no mesmo
movimento em que adquire sua consistência imaginária. O corpo é, portanto, submetido a uma
rede de linguagem tecida pelos deslocamentos da metáfora e da metonímia, os quais
possibilitam ao sujeito dizer “sou fulana filha de sicrana”.
Em torno desse significante constituinte — o ponto de partida de qualquer ser falante
—, Lacan desenvolve sua teoria da constituição do sujeito, conhecida pelas operações de
alienação e separação apresentadas no seminário Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, doravante Seminário XI (1964). Em termos gerais, essas operações se definem pela
imersão da linguagem no corpo do ser, promovendo um encontro, ilustrado pelo apoio da teoria
dos conjuntos, que produz um significante no lugar do Outro, mesmo que ainda não discernido.
O outro que fala incide sobre o corpo vivo do infans, tornando-o desertificado pela
desnaturalização causada pelas operações de alienação e separação. Causado pela linguagem,
o sujeito é fisgado pelo não sentido, sendo forçado a uma escolha entre “a bolsa ou a vida”,
tornando-se escravo da linguagem.

Figura 1. Alienação.
Fonte: Lacan, [1964]/1988, p. 200.

Esse é o primeiro movimento da causação do sujeito que se impõe ao infans, o qual, ao


fazer uma demanda ao outro, retorna alienado, possibilitando a transformação do grito em
29

apelo. O segundo movimento da causação do sujeito é também o que a conclui: a separação. A


interseção entre os conjuntos aponta para o que falta em ambos, e é por esse ponto de falta que
desponta o objeto causa de desejo, o objeto a. É devido à separação que o sujeito se constitui
como uma hiância. Há um ponto de falha de sentido que o faz sair da alienação radical, dando
margem a uma alienação não-toda. A separação implica não apenas a constituição do sujeito,
mas também o estabelecimento de uma divisão no campo do Outro.
No seminário A identificação, doravante Seminário IX, Lacan ([1961–1962]/2003)
associa a constituição do sujeito à negação e à privação. Ele recorre à matemática para afirmar
que “a negação nunca é linguisticamente um zero, mas um não um” (p. 152). O devir do sujeito
se dá pela privação primeira, que aparece como um simples traço que demarca uma ausência.
Essa exclusão primitiva é a possibilidade de conformação à linguagem, pois, a partir dela, é
possível advir um sujeito negativizado. Tal negação constitui o sujeito pelo traço unário, que
permite a instauração de um vazio. A função do traço unário condiz com a primeira formação
do ideal do eu, o qual, embora seja emoldurado pelas identificações imaginárias, também
abrange a identificação simbólica do traço. O traço unário funda o lugar do corpo, isto é, resulta
em um furo na linguagem que funda o sujeito. O corpo é o que enoda o real e o simbólico.

1.2 O Corpo Imaginário

O início do ensino lacaniano é marcado pela teoria do imaginário, e, em virtude disso,


podemos afirmar que as primeiras teorias sobre o corpo estão interligadas àquilo que se
estrutura no espelho: as imagos tóricas e a concepção despedaçada do corpo. O ponto
culminante desse momento é o texto O estádio do espelho como formador da função do eu
(1949), complementado pelos desdobramentos da Observação sobre o relatório de Daniel
Lagache (1960), em que, por meio do atrelamento do corpo ao imaginário, o eu adquire
destaque entre eles. A fase do espelho oferece a Lacan uma perspectiva teórica para
compreender a identificação entre os pares, a constituição do eu e, não obstante, a agressividade.
Ao reconhecer sua imagem no espelho, o sujeito a apreende de maneira virtual, acarretando a
ilusão de uma estrutura corporal que o retira de seu desamparo original. A experiência especular
confere forma a esse corpo, dando ainda suporte às identificações seguintes (Lacan,
1949/1998).
Encontramos em A agressividade em psicanálise (1948) e O estádio do espelho como
formador da função do eu (1949) importantes teorizações do corpo como imagem: imagem que
lhe dá consistência e que lhe serve como suporte imaginário. Nos primórdios da vida, sem
30

condições de realizar ações específicas para sua sobrevivência, o infans está desamparado e,
portanto, mergulhado em um caos sensorial, sem o alento da concatenação que a linguagem
ainda vai lhe fornecer, realizando uma série de movimentos desconexos. Ao registro
imaginário, cabe a função de totalizar o corpo, circundá-lo como uma unidade, o que
testemunha o júbilo do infans diante do espelho, condição necessária para a formação do eu e
da imagem narcísica.
Ainda no início de seu ensino, Lacan põe em destaque a dialética entre o corpo
despedaçado e a imagem inicial de um corpo totalizado, perpassado pelo traço que vem a
localizá-lo em relação ao ideal do eu. Como consta na Observação sobre o relatório de Daniel
Lagache, é esse o ponto de partida para a operação do estádio do espelho, para os esquemas
óticos e, por fim, para as operações de alienação e separação, visando à extração do objeto a3
(Lacan, 1961[1960]/1998).
Ao retomar o estádio do espelho no Seminário I, Lacan ([1953–1954]/1986) se serve do
esquema de Bouasse, mais conhecido como a experiência do buquê invertido, para demonstrar
como se dá a articulação do imaginário com o simbólico na constituição do sujeito. Ao
apresentar suas explicações sobre o espelho, ele adverte que “[...] o espaço imaginário e o
espaço real se confundem. Isso não impede que devam ser pensados como diferentes” — “[...]
distinções que lhe mostram o quanto a dimensão simbólica conta na manifestação de um
fenômeno” (p. 93).

Figura 2. Buquê invertido.


Fonte: Lacan, [1953–1954]/1986, p. 94.

3
Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, Lacan (1959[1957–1958]/1998)
esclarece, em nota acrescentada em 1966, a importância de localizar o objeto a no esquema R. Ele afirma
que a extração do objeto a fornece um enquadre, na fantasia, ao suporte da realidade para o S barrado
do desejo ($).
31

O esquema de Bouasse consiste em uma experiência na qual o observador — que


podemos tomar como Outro primordial — se posiciona especificamente em um ponto que o
possibilita ver um vaso com a imagem das flores projetada sobre ele. O espelho côncavo
possibilita a inversão da imagem, levando a imagem real do buquê (imagem formada no espelho
côncavo) a aparecer na imagem virtual de maneira invertida sobre o vaso (objeto real). Lacan
se vale do experimento do buquê invertido como uma metáfora para o corpo do bebê (buquê) e
para o olho (função materna). Esses elementos desempenham um jogo de posições em que o
corpo do bebê é construído inicialmente por esse olhar proveniente do outro. Lacan realiza
algumas modificações nesse primeiro esquema, acrescentando um espelho plano e modificando
a posição do olho, por meio das quais podemos estabelecer um segundo tempo do estádio do
espelho. Quando esse espelho côncavo é posicionado em um lugar específico, ele permite a
quem desempenha essa função de Outro primordial antecipar uma imagem do eu do bebê,
mesmo que este ainda não esteja lá.

Figura 3. Dois espelhos.


Fonte: Lacan, [1953–1954]/1986, p. 163.

O esquema simplificado dos dois espelhos fornece uma perspectiva pela qual o
observador pode ver o vaso unificado com as flores, constituindo o espelho plano uma metáfora
para o olhar do Outro primordial (A). As modificações feitas por Lacan nesse segundo tempo
mantêm o “olho” no esquema, ainda que em uma nova posição, da qual ele não representa mais
o olho da mãe. Nessa nova posição, ele passa a representar aquele que vê a própria imagem
refletida no espelho plano (A), isto é, o bebê.
Os esquemas dos espelhos serviram a Lacan para fundamentar a tese de que a
insuficiência do bebê leva à necessidade de um a mais: uma unidade ortopédica fisgada pelo
32

olhar do Outro. Nos entrelaces do imaginário e do simbólico, a imagem totalizada do corpo se


apoia no traço unário herdado do Outro. A captura imaginária que fixa o bebê possibilita o
desenho de um eu ideal. Como afirmou Vorcaro (2021) no seminário Decomposições do corpo
em psicanálise, ministrado em 2021, é daí que se pode experimentar os jogos determinantes das
identificações narcísicas — os de transitivismo, domínio, impotência e rivalidade —, bem como
as operações sobre as posições no fantasma.
Apesar de não serem especularizáveis, haja vista que suas experiências provêm da
relação do corpo com o organismo e o gozo, o falo (-φ) e o objeto a possibilitam uma
demarcação imaginária no corpo. Conforme Vorcaro (2021), a presença do -φ preenchendo o
lugar do objeto a assinala a castração imaginária do sujeito em sua relação com o Outro. O -φ
aqui não se mantém ausente como falta inapreensível que garante ao sujeito não fazer de sua
castração o que falta ao Outro. Ora, a articulação entre i(a) e a, os dois pilares do desejo, torna
acessível a relação imaginária constituída pela fantasia ($◊a).
Brousse (2014) associa o objeto pequeno a com um grampo entre a imagem do corpo
fragmentado e o organismo. Os pontos que grampeiam a imagem com o organismo se referem
às zonas erógenas do corpo (boca, ânus, ouvidos e olhos) e ao falo. A sequência dos fatores
lógicos que grampeiam o corpo-imagem ao organismo perpassa pelo corpo simbólico
(linguagem) ancorado nas funções enodadoras do falo e do objeto a.

1.3 O Corpo Real

Abrimos nosso texto com a proposta de apresentar um corpo lacaniano. Todavia, esse
corpo está sob a sepultura4 freudiana. De encontro com a perspectiva médica de sua época,
Freud constrói, em sua teoria, uma práxis psicanalítica na qual o corpo e o aparelho psíquico
transcendem ao biológico. Ele não nega o papel biológico do corpo, mas pondera que, entre o
somático e o psíquico, ocorre a irrupção do inconsciente. Freud, portanto, não se ocupou de
uma terapêutica orgânica, e sim de outra terapêutica, a qual levava em consideração os efeitos
inconscientes nos corpos das histéricas.
Em sua juventude, como médico neurologista, Freud se dedicou, junto a Jean-Martin
Charcot, ao estudo da histeria, na tentativa de desvendar o que ocorria com os corpos histéricos.
Convencido de que a neurologia não tinha as ferramentas necessárias para tratar dessa

4
O uso do significante sepultura não é sem propósito; faz alusão ao corpo sepultura de que fala Lacan
(1970/2003) em Radiofonia.
33

psicopatologia, ele passou a dar atenção ao que se estende para além dos nervos: sua teoria tem
como essência a força do inconsciente, que, segundo ele, domina e imputa enigmas aos corpos
modalizados sob a forma de sintomas qualificados de conversivos.
Ao pôr em primeiro plano a fala do paciente, Freud muda a gramática clínica de sua
época e cria um método revolucionário de “cura pela palavra” [talking cure]. Em seus estudos
psicanalíticos iniciais, ele propõe que o corpo é afetado pela linguagem: “há como que uma
intenção de exprimir o estado psíquico através do estado físico, e a linguagem corrente fornece
a ponte para isso” (Freud, 1893/2023, p. 42). Ele o especifica como “uma representação
complexa que consiste nas imagens mencionadas, ou, dito de outra forma, à palavra
corresponde a um intrincado processo associativo para o qual concorrem os referidos elementos
de origem visual, acústica e cenestésica” (Freud, 1891/2013, p. 102).
A partir da decantação da experiência com uma histérica, Freud localiza outra realidade,
esta presidida pelo desejo inconsciente: “Se olharmos para os desejos inconscientes, reduzidos
a sua expressão mais fundamental e verdadeira, teremos de concluir, sem dúvida, que a
realidade psíquica é uma forma especial de existência que não deve ser confundida com a
realidade material” (Freud, 1900/2001, p. 591). Atribuindo o escândalo envolvendo sonhos e
fantasias ao desconhecimento do aparelho psíquico e da relação entre consciente e inconsciente,
Freud (1900/2001) afirma que “muitos impulsos que irrompem na consciência são ainda
neutralizados pelas forças reais da vida mental, antes de amadurecerem sob a forma de atos”
(p. 591). Para ele, “ao retratarem nossos desejos como realizados, os sonhos estão decerto nos
conduzindo para o futuro. Mas esse futuro, que o sonhador representa como presente, foi
moldado por seu desejo indestrutível à imagem e semelhança do passado” (p. 592). A partir de
então, outras formações inconscientes (sintomas, atos falhos e chistes) foram sendo
reconhecidas por Freud como emersões da vida cotidiana de todos os sujeitos.
Freud conferiu importância determinante à sexualidade infantil, que tem especificidades
que a distanciam da função reprodutiva da sexualidade adulta, ainda que tome pessoas como
objetos sexuais. Em virtude dos elementos aí encontrados, Freud distinguiu as configurações
iniciais dessa sexualidade primária objetivando uma satisfação. Ela tem como características os
fatos de se ligar a uma das funções somáticas vitais, não ter objeto sexual, sendo então
autoerótica, e ter o objetivo dominado por uma zona erógena. A propósito da erogeneidade,
Freud reconheceu que qualquer parte do corpo pode assumir essa função com o objetivo de
obter satisfação, desde que ocorra um estímulo apropriado. A satisfação anteriormente
experimentada deixa como marca a necessidade de repetição, que se revela pelas sensações
peculiares de tensão desprazerosa e excitação centralmente condicionada e projetada para a
34

zona erógena periférica. Portanto, a importância da sexualidade infantil consiste em substituir


a sensação projetada pela excitação da zona erógena por um estímulo externo capaz de removê-
la, produzindo, assim, satisfação. Para eliminar o estímulo da zona erógena, é necessário aduzir
um segundo estímulo ao mesmo lugar. Constatamos, nesse seguimento, que Freud (1905/2016)
situa a pulsão como mediadora das primeiras relações do infans com a alteridade.
A pulsão é, segundo Lacan ([1964]/1988), um conceito fundamental da psicanálise, e,
para a construção de nosso argumento, não poderia ser tomada de maneira diferente. Isso porque
a pulsão é o elemento de ligação entre o corpo e a psique. Sua posição é fronteiriça, estando
localizada em um hiato. Ela é, tanto do ponto de vista lógico quanto do ponto de vista
topográfico, anterior ao próprio sistema inconsciente e, mais ainda, a qualquer inscrição no
aparelho psíquico ou neuronal (Iannini, 2014).
Freud (1915/2014), em As pulsões e seus destinos, declara preciosamente que “o
estímulo pulsional não advém do mundo exterior, mas do interior do próprio organismo” e
complementa que a pulsão “pode ser alcançada somente através de uma modificação adequada
da fonte interna de estímulos” (p. 19). A Freud interessa a posição do ser vivo quase totalmente
desamparado, submetido aos estímulos sobre sua substância nervosa. Esse ser vivo passa a
estabelecer as primeiras diferenciações dos estímulos que recebe, de modo a se orientar no
mundo, discernindo aquilo que lhe é externo, na medida em que pode afastá-los mediante uma
ação muscular própria: a fuga. Por outro lado, esse ser vivo se depara com estímulos contra os
quais tal ação é inútil, pois o caráter de constante premência é mantido. Discretizados, esses
estímulos endógenos demarcam a existência de um mundo interior. Portanto, é na eficácia da
atividade muscular do organismo que a substância perceptiva adquire um ponto de referência
para a distinção de um “fora” e de um “dentro”. É de nosso interesse esse estado da fronteira
entre o dentro e o fora. Por isso, não podemos perder de vista que a pulsão é, como define Freud
(1915/2014),

[...] um conceito fronteiriço entre o anímico e o somático, como representante psíquico dos
estímulos oriundos do interior do corpo que alcançam a alma, como uma medida da exigência
de trabalho imposta ao anímico em decorrência de sua relação com o corporal. (p. 25)

O fato de as pulsões ganharem uma demarcação no corpo, haja vista que se “originam
no corporal e atuam no anímico” (Freud, 1915/2014, p. 27), nos força a retomar os quatro
componentes que sua atividade conjuga: pressão [Drang], fonte [Quelle], objeto [Objekt] e meta
[Ziel]. Em vista do recorte de nosso estudo, daremos ênfase à fonte da pulsão, com vistas a
pensar em seu funcionamento a partir de uma hiância na organização somática que persiste
35

como furo na suplência da linguagem, fazendo do organismo Um com furo no corpo. De acordo
com Freud (1915/2014),

Por fonte da pulsão entende-se o processo somático em um órgão ou parte do corpo, cujo
estímulo é representado na vida anímica da pulsão. Não se sabe se esse processo é regularmente
de natureza química ou se também pode corresponder à liberação de outras forças, por exemplo,
mecânicas. O estudo das fontes pulsionais já não pertence à psicologia; ainda que a origem em
uma fonte somática seja o elemento mais decisivo para a pulsão, só conhecemos na vida anímica
por causa de suas metas. O conhecimento mais específico das fontes pulsionais não é
estritamente necessário para a investigação psicológica. Por vezes, as fontes da pulsão podem
ser inferidas, de modo retrospectivo, a partir de suas metas. (p. 27)

A fonte da pulsão está localizada em um órgão ou uma parte do corpo. Embora Freud
não acreditasse que o estudo das fontes pertencesse à psicologia, sustentamos que, com as
leituras lacanianas, é possível retornar à teoria freudiana e ir além dela no que tange às fontes
da pulsão como furos no corpo. O modelo freudiano de corpo mostra que a criança é
polimorficamente perversa. Isso significa que, nelas, qualquer parte do corpo pode se tornar
uma zona erógena, ainda que a libido se canalize preferencialmente nas zonas oral, anal e
genital. Todavia, a depender do investimento libidinal de uma alteridade, qualquer parte do
corpo pode vir a ser erogeneizada. Pelo caráter do corpo infantil, subordinado às demandas
externas, as zonas erógenas se configuram como portas libidinizadas para sua própria demanda.
Vale lembrar que a noção de demanda pode ser definida como o enquadramento de uma
necessidade pela linguagem, que o distorce (Lacan, [1958–1959]/2016). O investimento
libidinal do Outro, enquanto agente da linguagem, demarca os furos orgânicos do organismo,
atribuindo-lhe um corpo ao estabelecer as zonas erógenas que o circunscrevem e o delimitam
topologicamente, o que deve se constituir como circuito pulsional.
O profundo trabalho de Freud sobre as pulsões localiza o caráter mítico que permitiu
discernir e conjugar seu caráter meio somático e meio psíquico. Aliás, foi isso que serviu a
Lacan como caminho para diferenciar e relacionar linguagem, corpo e objeto a. A respeito desse
último, vale dizer que a própria concepção de objeto foi redefinida e circunscrita no ensino
lacaniano, assim como a de corpo. Talvez seja possível dizer que o objeto a constitua um
conceito polissêmico. Ora, em sua primeira aparição, ele corresponde ao objeto de desejo, como
podemos depreender do seminário O desejo e sua interpretação, doravante Seminário VI
(1958–1959); em seguida, ele perpassa a formulação de Hamlet, nos Escritos, até ser
diferenciado do falo imaginário, no Seminário IX; posteriormente, no Seminário X, ele adquire
o estatuto de causa de desejo, o qual é desdobrado mais adiante no Seminário XI, em que, depois
de ter sido elevado ao estatuto de lacuna inobjetivável no campo simbólico, é esclarecido, pelos
modos preferenciais pelos quais se mantém como semblante (olhar, voz, seio e excremento),
36

que referencia o inapreensível que substitui o ser assimilado e projetado no Outro, extraindo-se
na formação do fantasma, que estabelece um modo de lidar com esse Outro, atrelando-se a ele.
Dada a importância do objeto a para a teoria e para a clínica psicanalítica, Lacan foi
pertinente ao dar uma letra para esse objeto, sustentado pela escrita da impossibilidade de
metaforização e significantização, demarcando seu caráter inobjetivável. Lacan faz um
percurso a respeito desse conceito, o qual lhe possibilitou uma formalização lógica.
Inicialmente, está localizado como objeto imaginário do desejo em relação ao pequeno outro,
retratado no estádio do espelho, seguido de novas coordenadas simbólicas na relação do a com
o grande Outro. Para Lacan, o ser falante se engaja na cadeia significante, e isso implica a
extração de algo de separado, algo de sacrificado, algo de inerte, que é a libra de carne (Lacan,
[1962–1963], 2005).
É importante frisar que, da extração do objeto a, decorre a operação de perda de gozo,
pelos empreendimentos voltados a sua demarcação, o que exige a distinção e os enodamentos
das dimensões real, simbólica e imaginária em torno de um vazio, exatamente pelas distintas
vertentes que tal objeto assume. Em sua dimensão imaginária, o que está em jogo é a captura
da imagem e o fascínio por ela. Na face simbólica, o objeto a encarna em meio à multiplicidade
de significantes, por vezes fálicos. Por fim, na vertente real, legada a das Ding, a Coisa, ele é
tido como um resto, resultante do que não é representado pelo aparelho psíquico — o resto da
relação com o Outro. É nesse circuito de extração do objeto a que podemos supor o furo em
que o inconsciente é estruturado como linguagem possibilitando ao sujeito um enquadramento
da realidade, a qual podemos chamar de fantasma.
Ao definir o objeto a como causa de desejo, Lacan ([1962–1963]/2005) dá um novo
estatuto a ele: “o objeto a não é a finalidade, a meta do desejo, mas, sim, sua causa. Ele é a
causa do desejo na medida em que o próprio desejo é algo não efetivo, uma espécie de efeito
baseado e constituído na função da falta” (p. 343).
A formalização da extração desse objeto nos possibilita, neste trabalho, compreender o
que está́ em jogo na aquisição da linguagem por uma criança e as consequências de uma falha
operatória, que acarretaria sua não extração. Sem a produção do nó da linguagem, o infans fica
submetido a um gozo desprovido da regulação do aparelho psíquico.
Estuda-se o corpo para tratar de sua relação com a linguagem, por meio da qual se
depreende um gozo, ou seja, um modo de usufruto do efeito da linguagem sobre o organismo.
No seminário ...ou pior, doravante Seminário XIX, Lacan (1972–1973/2012), situando o gozo
como real, diz que ele é “[...] propriedade do corpo vivo, sem dúvida, mas nós não sabemos o
que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso se goza” (p. 29). A linguagem fura o
37

corpo ao natural, na medida em que o esquadrinha, imprimindo uma marca cicatrizante que
deixa, para sempre, um traço. É por meio dessa marca indelével que os circuitos pulsionais
podem se instalar, apoiados em furos corporais, demarcando o corpo e estruturando o
inconsciente. Em termos lacanianos, entrar na linguagem confere limites ao corpo, mediante o
apoio de um furo assimilável aos orifícios corporais, em torno dos quais uma borda se instaura.
Na concepção lacaniana, “ter um corpo” não é um dado anatômico ou biológico. A
estrutura da linguagem corta o corpo, tornando-o sensível ao significante. É por conta desse
corte que o falasser pensa, abrindo as comportas do imaginário. Porém, entre o significante e o
corpo, existe o insu (não sabido), isto é, o corpo real, do qual se destacam modalidades de gozo
“insabidas” pelo eu.
Encontramos em Joyce, o sintoma (1979) uma escrita fonética da contração l’homme [o
homem]: LOM [UOM]. Ao modo joyceano, Lacan (1979/2003), no final de seu ensino, assinala
o peso que o corpo tem para um falasser. Nesse momento, ele não está mais tratando do corpo-
imagem, e sim do corpo-sintoma: “UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium”
(p. 561). Posteriormente, Lacan enfatiza o fato de o homem ter um corpo, e não ser um corpo:
“é o ter, e não o ser, que o caracteriza” (p. 561). O fato de lalíngua impregnar o corpo de UOM,
uomanizano, torna possível que ele se diferencie do animal, na constituição do falasser.

Daí minha expressão falasser [parlêtre] que virá substituir o ics. de Freud (inconsciente, é assim
que se lê): saia daí́ então, que eu quero ficar aí. Para dizer que o inconsciente, em Freud, quando
ele o descobre (o que se descobre é de uma vez só, mas depois da invenção é preciso fazer o
inventário), o inconsciente é um saber enquanto falado, como constitutivo do UOM. A fala, é
claro, define-se aí por ser o único lugar em que o ser tem um sentido. E o sentido do ser é presidir
o ter, o que justifica o balbucio epistêmico. (Lacan, 1979/2003, p. 561)

É na década de 1970 que Lacan tece, em momentos distintos, a rede na qual a função
da fala impacta o corpo (organismo já banhado pela linguagem), situando lalíngua (em francês,
lalangue) como o que é incorporado da língua partilhada, discernindo uma língua anterior que
se apresenta ao sujeito possibilitando um trauma constituinte, do qual advém o falasser. Em
nosso levantamento, constatamos que Radiofonia (2003), o Seminário XIX (1971–1972) e O
aturdito (1972) são obras que marcam uma reparação de Lacan em relação a seu primeiro
ensino, no qual a linguagem e o corpo são processos dissociados. É a partir da noção de lalíngua
que Lacan redefine o inconsciente, tratando-o como um saber que nela se inscreve (Lacan,
[1974]/2011). Como enunciara no seminário Mais, ainda, doravante Seminário XX, após
recobrar a noção de inconsciente estruturado como uma linguagem: “o inconsciente é um saber;
um saber fazer com alíngua [lalíngua]” (Lacan, [1972–1973]/1985, p. 190).
38

Tomar o gozo como paradigma para pensar o corpo exige que retomemos a distinção
entre o prazer como homeostase e o gozo como tensão. O princípio do prazer freudiano está
relacionado com a homeostase e a constância do organismo; já o conceito de gozo, forjado por
Lacan, corresponde exatamente àquilo que desequilibra essa constância, produzindo um mais
além, um excesso.
No seminário O saber do psicanalista, destinado aos residentes de psiquiatria do
Hospital Sainte-Anne, Lacan ([1971–1972]/2011) retoma a discussão do princípio do prazer,
afirmando, na lição de 4 de novembro de 1971, que esse princípio não tem nada a ver com o
hedonismo, uma vez que o que na verdade vigora é o princípio do desprazer. O prazer existe,
segundo Freud (1911/2010), na medida em que reduz a tensão. O gozo se define por seu caráter
de resto impossível de simbolizar, ou seja, é uma incidência real que “não cessa de não se
escrever”.
Lacan ([1971–1972]/2011) diferencia uma gama de gozo para dizer que o próprio corpo
participa do gozo sexual, embora não seja possível tocá-lo, uma vez que entra em jogo o falo,
que atribui significado a um significante completamente evanescente. Para ele, há um
esfacelamento da ideia de sexualidade, que está no centro, enquanto falta do que se passa no
inconsciente. Substituindo essa falta, surgem os impasses gerados pela função do gozo sexual,
fadados a diferentes formas de fracasso constituídas pela castração. O gozo, assim, não tem
nada a ver com a copulação5.
O falasser está para lalíngua como o sujeito está para a linguagem. Decifrar o
inconsciente é confrontar os enigmas trazidos por lalíngua que afetam o falasser. É “o depósito,
a aluvião, a petrificação deixada como marca da experiência inconsciente por parte de um
grupo” (Lacan, [1974]/2011). O rio da linguagem, que desagua sobre o infans, tem como
nascente a voz materna.
A respeito do gozo de lalíngua, consideramos que se trata de um conceito de grande
impacto na teoria lacaniana, o qual nos orienta nas pesquisas do autismo de modo pungente. É
pelo advento de lalíngua que inscrevemos uma corporificação. Afetado por ela, o sujeito
responde formulando hipóteses sobre a língua, seja para se tornar um ser falante, seja para se
defender dela. Lalíngua é a matriz do mal-entendido, do sem sentido, na qual o sujeito responde

5
Pretendo, nesta tese, situar o leitor quanto à diversidade de gozo em Lacan. Para isso, parto de Miller
(2012), que desenvolveu uma chave de leitura para adentrar essa temática. Miller divide os tempos do
ensino de Lacan em seis paradigmas de gozo: (1) a imaginarização do gozo; (2) a significantização do
gozo; (3) o gozo impossível; (4) o gozo normal; (5) o gozo discursivo; e (6) a não-relação. Mediante a
apresentação de cada um desses paradigmas millerianos, farei um percurso pelos seminários realizados
por Lacan ao longo da década de 1970, de modo a levantar as últimas definições de gozo.
39

de modo elucubrativo. Convém sinalizar que essa forma primordial de língua tanto mortifica
quanto é causa do gozo. Dependendo de como ressoa no infans, ela retorna como fragmentos
significantes, entonações ou pedaços daquilo que é inarticulável nas formações do inconsciente.
Para Lacan ([1972–1973]/1985), lalíngua é feita de gozo, sendo a fonte de “toda sorte de afetos
que restam enigmáticos” (p. 190). O gozo contido em lalíngua faz com que ela toda seja uma
obscenidade (Lacan, 1976–1977).
O encontro da lalíngua com o corpo não corresponde a nenhuma lei prévia: “é
contingente e sempre perverso” (Miller, 2014, p. 30). Segundo Soler (2010),

[...] a alíngua [lalíngua] não é um corpo, mas uma multiplicidade de diferenças que não tomou
corpo. Ela não é um conjunto, não é uma estrutura, nem de linguagem, nem de discurso, pois
não há ordem na alíngua. Alíngua é o nível a-estrutural do aparelho verbal, ao passo que a
linguagem e o discursos são ordenações. (pp. 15–17)

Deixando ressoar a afirmação lacaniana presente em O aturdito de que o “que se diga


fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve” (Lacan, 1973[1972]/2003, p. 448),
poder-se-ia complementá-la considerando que é a substituição do que foi dito pelo Outro e
esquecido pelo que foi ouvido pelo infans que distingue o que há de estrutural em lalíngua, que
é efeito da linguagem.
Gerbase (2020) apresenta uma interessante formulação sobre o modo de conceber
lalíngua, definindo-o em três tempos. Para o autor, o inconsciente não começa com a lalação, e
sim com o aleitamento e a deambulação. É só mais tarde que o que se passa nos estádios oral e
anal alcança alguma significação na lalação. Digamos que o “desenvolvimento” começa pelo
estádio oral, passa para o estádio anal e, quando chega ao terceiro estádio — o estádio fálico,
que é o estádio metafórico, o estádio da lalação —, aparece um símbolo que não tem objeto. O
estádio oral tem o objeto seio, enquanto o anal, o objeto fezes. O estádio fálico, no entanto, não
tem semblante de objeto diretamente atrelado ao corpo, pois o falo não é o pênis. Como Lacan
([1956–1957]/1995) discorre no seminário A relação de objeto, doravante Seminário IV, o que
está colocado no estádio fálico é a falta de objeto. Nesse seguimento, como afirma Gerbase
(2020), a lalação, o domínio do significante e lalangue [lalíngua] — os ecos da língua —
surgem na fase oral, mas só depois adquirem significação. Pretendemos confrontar essa
perspectiva com outras, considerando a importância do conceito de lalíngua.
A seguir, trilharemos um caminho pela topologia do furo, objetivando investigar a
perspectiva de um corpo que se estrutura através de um furo e de um vazio. No ensino lacaniano,
a noção de furo aparece em diferentes momentos, acompanhando as ideias de Lacan até o fim
de sua transmissão, quando propõe uma clínica nodal. No rastro dessa abordagem, definimos
40

uma trajetória investigativa que abrange desde o seminário A ética da psicanálise, doravante
Seminário VII (1959–1960), até o seminário intitulado L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à
mourre, doravante Seminário XXIV (1976–1977). Podemos considerar que Lacan conserva a
importância do furo desde as ideias de vazio, recobrimento, atravessamento, enlaces e
desenlaces até o momento em que entra em jogo a noção de existência e consistência. De acordo
com Miller ([2000–2001]/2013), o “furo traumático” [troumatisme] é o trauma do qual não se
cura. Ora, a ex-sistência exige uma saída, um furo, ou seja, uma borda.
A trajetória pelo furo [trou] no ensino lacaniano não é linear. No seminário Os não-
tolos erram (ou: Os nomes do pai), Lacan ([1973–1974]/2018) emprega pela primeira vez o
neologismo troumatisme, mescla de trou [furo] e traumatisme [traumatismo], concernindo à
incidência traumática do furo, em que este é condição para o ser sujeito do inconsciente.
Antecipamos que esse furo atualiza o conceito freudiano de zona erógena, importante no que
se refere à fonte da pulsão e de todo circuito pulsional. É de suma importância a investigação
do furo, pois é em torno dele que as bordas pulsionais fervilham.
Para esta tese, o percurso sobre o furo em Lacan dá subsídios para a discussão da tese
de Laurent (2012/2014) sobre a foraclusão do furo no autismo. Portanto, mapearemos a
formalização do furo na obra lacaniana. O ponto de partida é o Seminário VII, em que Lacan
([1959–1960]/1988) rastreia a gênese do vazio. Encontramos, especificamente na lição Da
criação ex nihilo, a primeira dimensão do furo e do vazio no ensino lacaniano. O vazio é uma
condição lógica para a topologia do furo. Ele, vale mencionar, não é a falta. Nessa mesma lição,
Lacan retoma a função que a Coisa, isto é, das Ding — o que, para Freud (1950[1895]/1995),
retorna inapreensível em cada experiência do sujeito —, desempenha quanto à sublimação, em
referência à Melanie Klein e seu interesse pelas pinturas de uma paciente que buscava preencher
os espaços vazios, evitando-lhe o espanto. Klein desconsidera aí o ponto central da questão da
sublimação. No entanto, Lacan situa que ela ilustra, de maneira exemplar, “o plano central pelo
qual esquematizo topologicamente [...] a Coisa” (p. 148). Como destaca mais adiante, “a pintura
é, primeiramente, algo que se organiza em torno de um vazio” (p. 169). “Podemos organizar a
história da pintura em torno do domínio progressivo da ilusão do espaço” (p. 174). “[...] é que
a ilusão do espaço é algo diferente da criação do vazio. É o que representa o aparecimento das
anamorfoses no final do século XVI, início do século XVII” (p. 175).
No segundo momento da lição supracitada, Lacan ([1959–1960]/1988) se ocupa do
cerne da relação do homem com o significante. Ele questiona:
41

[...] como é que a relação do homem com o significante, na medida em que ele pode ser o seu
manipulador, pode colocá-lo em relação com um objeto que representa a Coisa? É aqui que
intervém a questão de saber o que o homem faz quando modela um significante. (p. 150)

Lacan ([1959–1960]/1988) retoma, então, a noção primeira e prevalente do que constitui


o significante, cujas estruturas de oposição modificam o mundo humano. Como ele pondera,
“no que diz respeito ao significante, o homem é o artesão de seus suportes” (p. 150). Esses
significantes, no entanto, são modelados pelo homem, com sua mão, o que torna possível situar
a noção de criação com o emprego do vaso utilizado por Heidegger em seu artigo A coisa.
A intenção de Lacan é situar a diferença entre o vaso como utensílio e sua função
significante. O significante, como um significante modelado — esse nada de particular tal como
o vaso —, cria o vazio, introduzindo aí a perspectiva segundo a qual é possível adentrar o vazio
e o pleno no mundo com o mesmo sentido. Se um vaso/significante pode estar pleno, é porque,
na medida de sua essência, ele é vazio. O vaso/significante é equivalente à fala e ao discurso,
que podem ser plenos ou vazios. Talvez possamos dizer que o pleno e o vazio são significantes
que funcionam como “as estruturas de oposição cuja emergência modifica profundamente o
mundo humano” (Lacan, [1959–1960]/1988, p. 150).
A metáfora do oleiro que tangencia a matéria-prima, utilizada por Heidegger, parece
servir de paradigma: seria o barro ou o vazio? À medida que o barro faz a borda no vazio, abre-
se a possibilidade de construção de inúmeros artefatos. É a representação do vazio a ser
delimitado por alguma matéria que permite a construção de algo. Mas a dimensão crucial é a
de que o significante introduz o furo, pois, como ressalta Lacan ([1959–1960]/1988), “o vaso é
feito a partir de uma matéria. Nada é feito a partir de nada” (p. 153). A introdução desse
significante modelado constitui a noção da criação ex nihilo, que, segundo Lacan, é coextensiva
à exata situação da Coisa como tal.

Ora, se vocês considerarem o vaso, na perspectiva que inicialmente promovi, como um objeto
feito para representar a existência do vazio no centro do real que se chama a Coisa, esse vazio,
tal como ele se apresenta na representação, apresenta-se, efetivamente, como um nihil, como
nada. E é por isso que o oleiro, assim como vocês para quem eu falo, cria o vaso em torno desse
vazio com sua mão, o cria assim como o criador mítico, ex nihilo, a partir do furo. Todo mundo
faz piada a respeito do macarrão, que é um furo com algo em volta, ou ainda a respeito dos
canhões. O fato de rir não muda em nada o que está em questão - há uma identidade entre a
modelagem do significante e a introdução no real de uma hiância, de um furo. (Lacan, [1959–
1960]/1988, p. 153)

Em 1960, na redação definitiva da Observação sobre o relatório de Daniel Lagache,


publicada nos Escritos, Lacan (1961[1960]/1998) faz alusão ao furo com a imagem de um
círculo. Em seus termos,
42

[...] essa ausência do sujeito [...] é a defesa a que podemos chamar natural, por mais marcado
pelo artifício que seja esse círculo queimado na mata das pulsões, por ela oferecer às outras
instâncias o lugar em que acampar para organizar os seus. Esse lugar é justamente aquele a que
toda coisa é chamada para ser lavada da falha, que ele possibilita por ser o lugar de uma
ausência: é que nem toda coisa pode existir. (p. 673)

O Seminário IX não oferece uma definição explícita do furo, embora possibilite situar a
continuidade do interesse lacaniano em definir a estrutura do sujeito a partir de estudos sobre
superfícies e profundidades e dos recursos à topologia. Nesse seminário, Lacan ([1961–
1962]/2003) faz um uso muito minimalista de figuras topológicas como o toro e o cross-cap.
Privilegiaremos aqui a figura do toro, pois ela é a figura esburacada por excelência.
Como é possível verificar no Seminário VII, Lacan já apresentava as figuras do
macarrão e dos canhões para ilustrar algo que inclui o vazio, o furo e a borda. No Seminário IX,
Lacan ([1961–1962]/2003) segue suas reflexões utilizando metáforas biológicas para designar
o dentro e o fora, culminando em lições dedicadas ao toro. Tratava-se de uma “era dos
pressentimentos”, como ele mesmo dizia, introduzindo a topologia em seu ensino. Lacan
exemplifica a figura do toro no cotidiano dos brinquedos, fazendo alusão à figura do bambolê.
Geometricamente, ele define o toro como um “círculo em torno de um eixo, e o que é
engendrado é uma superfície fechada” (p. 182). Apesar das alusões a bambolês e anéis, dentre
outros, a importância do toro consiste em tomá-lo como uma estrutura esburacada.
Tal discussão nos interessa por localizar a topologia do espaço pulsional, isto é, do furo
central do toro. O furo não é apenas um vazio; é algo que possui uma borda. Como isso pode
ser útil para pensarmos na questão do corpo? Conforme Lacan ([1961–1962]/2003),

[...] há uma estrutura topológica da qual se tratará de demonstrar em que ela é necessariamente
a do sujeito, estrutura que comporta que haja alguns de seus laços que não possam ser reduzidos.
É todo o interesse do modo do meu toro. É que, como vocês veem, basta olhar para ele, há sobre
esse toro um certo número de círculos traçáveis; aquele, já́ que se fecharia em si mesmo, eu o
chamarei, simples questão de denominação, círculo pleno. (p. 184)

Nesse momento do ensino lacaniano, já é possível fazer alusão ao corpo como um toro,
como um cano de PVC com um furo em cima e outro embaixo. O organismo, enquanto corpo
real — o real do corpo —, é o estatuto mais primitivo do ser falante. As zonas erógenas
permitem grampear a imagem corporal. Se o furo não tem uma borda, nenhum objeto vai entrar
e sair. Em outras palavras, estaria impossibilitada a entrada no laço social a partir do circuito
pulsional. Para que essa entrada seja possível, é necessário que aconteça, por meio da
consistência simbólica, uma comunicação entre o organismo e o mundo exterior.
No Seminário X, Lacan ([1962–1963]/2005) lança a seus ouvintes a seguinte
declaração: “Se lhes fiz praticar tanta topologia no ano passado, foi justamente para lhes sugerir
43

que a função do furo não é unívoca” (p. 148). Em sua décima lição, Lacan faz um percurso pela
falta mais radical, introduzindo o objeto a. Ele também discorre sobre a topologia diferencial
dos furos. Para ele, existe uma falta que o símbolo não supre, e é pela angústia, enquanto afeto,
que somos introduzidos em uma função radical, que é a função da falta. Em suas palavras,

A relação com a falta é tão inerente a constituição de qualquer lógica que podemos dizer que a
história da lógica é a de seus sucessos em mascarar aquilo pelo qual ela se apresenta com um
vasto ato falho, se dermos a essa expressão seu sentido positivo. [...] ter sucesso neste ato falho
é não faltar com a falta. (p. 147)

Lacan ([1962–1963]/2005) diz, inicialmente, que não existe falta no real, a qual só é
apreensível por intermédio do simbólico. Ele desdobra esse postulado por meio de um pequeno
apólogo, tomando uma biblioteca como referência, convocando a pensar que ali se pode dizer
que “aqui está faltando o volume tal em seu lugar” (p. 147). Só sabemos que está faltando um
volume ali porque, em algum momento, o livro já esteve presente naquele lugar, ou seja, houve
a introdução prévia do símbolo no real. Essa falta de que Lacan fala no apólogo pode ser
preenchida facilmente pelo símbolo: ela designa a ausência.
Para além disso, Lacan ([1962–1963]/2005) recorre à matemática e se vale de figuras
topológicas para pensar metaforicamente a estrutura psíquica. Ela imagina esta como se fosse
construída a partir de um plano projetivo, uma superfície capaz de receber qualquer tipo de
projeção, ainda que sob algumas condições. A partir do estudo topológico das figuras do toro e
do cross-cap, ele demonstra que a função do furo não é unívoca, dando destaque à
complexidade da relação com a superfície planificada. Referindo-se à figura do toro, ele
enuncia que,

Na aparência, essa superfície é das mais simples de imaginar, mas, quando a elaboramos, para
poder referir-nos a ela, e sob a condição de considerá-la realmente pelo que ela é, uma superfície,
vocês puderam constatar que vimos diversificar-se estranhamente nela a função do furo. (p. 148)

Na figura do toro, podemos encontrar círculos que são redutíveis e conseguimos


representar o furo pelo encolhimento de um círculo. A questão, entretanto, é saber como um
furo pode encher-se e vir a se obturar. Na superfície do toro, existem círculos que não são
passíveis de encolher até seu desaparecimento. Nesse sentido, um estudo topológico como esse
é útil para demonstrar que existem estruturas que não comportam a obturação do furo.
O cross-cap é outra figura topológica utilizada por Lacan para representar
metaforicamente o psiquismo. Trata-se de um caminho para abordar a possibilidade de
representar um tipo irredutível de falta. Nessa figura, não encontramos a diversidade de dois
tipos de círculo, presentes na figura do toro. Independentemente do corte que se faça na
44

superfície do cross-cap, nunca haverá um círculo de redução puntiforme. Conforme Lacan


([1962–1963]/2005),

[...] vocês sempre terão, no nível do cross-cap, uma coisa, uma coisa que aparentemente poderá
reduzir-se a superfície mínima, não sem que reste, no fim, seja qual for a variedade do corte,
algo que se simboliza não como uma redução concêntrica, mas com uma forma irredutível, esta
ou aquela, que é a mesma: a chamada forma do oito interior, que não podemos deixar de
diferenciar da pontificação concêntrica. (p. 149)

No decorrer da décima lição, Lacan ([1962–1963]/2005) insinua a possibilidade de


existência de uma falta que é radical, um furo impossível de obturação, uma falta que o símbolo
não supre, radical na própria constituição da subjetividade. Ele enuncia essa falta como uma
formulação maciça e radical, em seu caráter irredutível. A partir do momento que isso é sabido,
a partir do instante em que algo chega ao saber, alguma coisa é perdida, e a maneira mais segura
de abordar essa coisa perdida é concebê-la como algo do corpo. Lacan argumenta que esse
ponto comporta o suficiente do insustentável que tentamos incessantemente contornar. Esse
ponto é exatamente o que traduz a função da própria estrutura representada pela falta. Em um
esforço para contorná-lo, só fazemos desenhar mais seu contorno, e, à medida que nos
aproximamos dele, somos sempre tentados a esquecê-lo.
Lacan afirma, a partir daí, que todo tormento de nossa experiência decorre do fato de
que a relação com o Outro, na qual se situa toda possibilidade de simbolização e de lugar do
discurso, liga-se a um vício estrutural. É justamente a possibilidade de existência dessa falta
radical que torna possível a relação com o Outro, naquilo de onde surge a existência do
significante. Esse ponto é aquele que não pode ser significado. É o ponto que Lacan nomeia de
ponto falta-de-significante. Inicialmente, ele diz que nada falta que não seja da ordem
simbólica. No entanto, ao longo da lição, ele pondera sobre a possibilidade de existência de
uma falta mais radical, citando a privação como sendo algo real.
A privação é situada por Lacan como aquilo que gira em prol do próprio discurso. Na
apresentação do Seminário X, ele diz que “essa privação é real e, como tal, pode ser reduzida;
mas será que basta, para anulá-la, circunscrevê-la cientificamente, se conseguimos fazê-lo?”
(Lacan, [1962–1963]/2005, p. 150). Para ele, não é a redução da privação, tampouco sua
simbolização ou sua articulação que suspenderão a falta. A privação é algo real, enquanto a
falta pertence ao domínio simbólico. A castração, vale lembrar, é simbólica, estando referida a
um certo fenômeno de falta. O nível dessa simbolização na relação com o Outro — isto é, uma
das formas possíveis de aparecimento da falta — é o -ϕ, o suporte imaginário da castração.
Essa, entretanto, é apenas uma das traduções possíveis da falta original, que Lacan chama de
vício estrutural inserido no ser-no-mundo do sujeito com que lidamos. Ele sustenta que
45

conceber a falta em sua estrutura original é um caminho essencial para a abordagem de qualquer
experiência analítica.
O Seminário XI é um marco histórico do ensino lacaniano, dado o rompimento de Lacan
com a IPA (Associação Psicanalítica Internacional), culminando em sua célebre excomunhão.
As modalidades de furo que despontam nesse seminário recebem uma diversidade de nomes,
como hiância, mancada, falha, claudicação, borda e orifício. Na lição inicial da unidade sobre
O inconsciente e a repetição, Lacan ([1964]/1988) localiza o inconsciente em uma “mancada”,
isto é, em um furo ou em uma falha. Ele afirma que “o inconsciente freudiano, é nesse ponto
que eu tento fazer vocês visarem por aproximação que ele situa nesse ponto em que, entre a
causa e o que ela afeta, há sempre uma claudicação”, posto que “o inconsciente nos mostra a
hiância por onde a neurose se conforma a um real” (p. 27). Ainda nessa lição, Lacan, que já
concebe o inconsciente estruturado como uma linguagem, introduz “a lei do significante no
lugar onde essa hiância se produz” (p. 28). A estrutura do inconsciente lacaniano aparece como
um tropeço, uma vacilação, uma descontinuidade e uma claudicação.
Discorrendo sobre essa nova lógica do inconsciente como uma descontinuidade, Lacan
([1964]/1988) traz à baila a noção do um: “o um que é introduzido pela experiência do
inconsciente é o um da fenda, do traço, da ruptura” (p. 30). Essa noção possibilita uma abertura
para o conhecimento do aspecto dinâmico do inconsciente. Ora, é justamente a partir dessa
hiância que se abre, no inconsciente, um buraco, que se marca sob a forma de traço.
Na primeira lição de A transferência e a pulsão, intitulada Do amor à libido, Lacan
([1964]/1988) articula a ideia de borda aos orifícios do corpo, assinalando que “o inconsciente
é bem mais algo próximo da bexiga” (p. 184). Mais adiante, ele apresenta a imagem da lâmina
como superfície que tem uma borda, a qual se insere na zona erógena, isto é, em um dos orifícios
do corpo que estão ligados à abertura-fechamento da hiância do inconsciente. Nesse momento
do seminário, Lacan acrescenta aos objetos parciais freudianos os objetos olhar e voz6,
argumentando que

As zonas erógenas estão ligadas ao inconsciente, porque é lá que se amarra a presença do vivo.
Descobrimos que é precisamente o órgão da libido, a lâmina, que liga ao inconsciente a pulsão
dita oral, a anal, às quais acrescento a pulsão escópica e a que será preciso quase chamar pulsão
invocante. (p. 188)

Na unidade sobre O campo do Outro e o retorno sobre a transferência, especificamente


na lição O sujeito e o Outro (I): a alienação, Lacan ([1964]/1988) deduz uma topologia cuja
finalidade é ilustrar a constituição do sujeito. A respeito da função topológica da borda, ele

6
A voz já vinha sendo abordada como objeto parcial desde o Seminário VI.
46

afirma que “tudo surge da estrutura do significante. Essa estrutura se funda no que primeiro
chamei de função de corte, e que articula agora, do desenvolvimento do meu discurso, como
função topológica da borda” (p. 196). Na lição seguinte, O sujeito e o Outro (II): a afânise,
Lacan continua sua discussão sobre o processo de alienação e separação, dando destaque à
afânise, que consiste no apagamento que o sujeito sofre no processo de sujeição ao Outro. Essa
dinâmica das operações de alienação e separação pode servir como um movimento de
fechamento e abertura do inconsciente na cadeia de significantes, momento em que se abre uma
fenda pela qual aparece o sujeito, o qual desaparece na sequência. Nesse sentido, pode-se dizer
que o sujeito nasce pela hiância, isto é, pelos furos.
Podemos tomar o Seminário XI como um grande marco na conceitualização do furo em
Lacan, pois o processo de separação comporta o destacamento do semblante que, na fantasia,
articula-se ao sujeito. A extração do objeto a e a produção do furo simbólico, abordados nele,
geram consequências para a construção do imaginário, resultando no estabelecimento das zonas
erógenas e dos orifícios corporais. O circuito da pulsão em torno do objeto a conserva a
gramática de Freud, ativa e passiva, em torno da zona erógena, possibilitando um percurso rumo
ao Outro. A pulsão é um furo porque só se delimita ao passar pelo outro.
No seminário De um Outro ao outro, doravante Seminário XVI, encontramos a
teorização de Lacan ([1968–1969]/2008) do objeto a como aquilo que tem a substância de furo.
Nessa teorização, as peças depreendidas do corpo se moldam a essa ausência. O furo oferece
uma forma ao gozo.
Retomando o Seminário XI, Lacan ([1964]/1988) tece uma correlação da hiância com o
umbigo dos sonhos freudiano: “umbigo dos sonhos, escreve ele [Freud] para lhe designar, em
último termo, o centro incógnito — que não é mesmo outra coisa, como o próprio umbigo
anatômico que o representa, senão essa hiância de que falamos” (p. 28). Podemos articular essa
passagem com uma intervenção de Lacan realizada 11 anos depois, a qual ficou conhecida
como a “Resposta de Lacan a Marcel Ritter”. Em 1975, em Estrasburgo, Lacan, ao participar
de uma jornada de cartéis, foi questionado por um participante sobre o termo Unerkannte, que
aparece na versão original do texto freudiano A interpretação dos sonhos. Freud vislumbra o
ponto insondável, o umbigo do sonho, relacionando-o ao Unerkannte. Esse não-reconhecido é
o ponto em que a interpretação escapa e não avança.

Mesmo no sonho interpretado de forma mais minuciosa, é frequente haver um trecho que tem
de permanecer obscuro; é que, durante o trabalho de interpretação, percebemos de que há nesse
ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar [...]. Esse é o
umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. (Freud, 1900/2001, p. 506)
47

Em resposta ao questionamento de Marcel Ritter sobre o Unerkannte, Lacan


([1975]/2019) afirma que o umbigo do sonho é um furo e relembra que Freud relacionou a
pulsão com os orifícios corporais. Ritter questionou se o real pulsional seria equivalente ao real
não simbolizável do Unerkannte. Lacan, em resposta, distingue os furos da pulsão e do
inconsciente: segundo ele, são dois reais distintos. O furo simbólico que enoda distingue-se do
nó que fecha o anel do orifício da pulsão, por onde entram os dizeres no corpo, fazendo eco.
Contemporânea ao seminário R.S.I., doravante Seminário XXII (1974–1975), a resposta a
Marcel Ritter dá uma amostra da perspectiva lacaniana do real como impossível. Trata-se de
um real que não é simbolizável, estando situado no impossível de dizer. Conforme Lacan
([1975]/2019),

[...] só há real pulsional enquanto real, é isso que, na pulsão, reduzo à função de furo. Isto é, o
que faz a pulsão se relacionar com os orifícios corporais. Acho que todos aqui conseguem
lembrar que Freud caracteriza a pulsão pela função do orifício do corpo. Parte de uma espécie
de ideia, da consistência do que passa por aquele orifício. Esta constância é certamente um
elemento da realidade. Eu até tentei retratá-la como algo matemático que é definido pelo que é
chamado de constante rotativa. O que é muito bom para nos dizer que isso é o que é especificado
a partir da borda do buraco.7 (p. 36)

Diferente dos orifícios pulsionais, o umbigo é um furo fechado. É isso que leva Lacan
([1975]/2019) a afirmar que

Tem algo que não se faz à toa, que se resume a uma cicatriz, um ponto do corpo que está em
um nó e que esse nó também não é pontuável em seu próprio lugar, é claro, já que ali há o
mesmo deslocamento que está ligado à função e ao campo da fala.8 (p. 36)

O umbigo do sonho mostra os limites do simbólico, o furo do inconsciente. Ele localiza


o furo pulsional — os furos do corpo — e aponta para algo real.
Para concluir, mediante esse percurso sobre o furo, podemos pensar que um corpo
topológico consiste em um furo central provido de uma borda — a zona erógena freudiana —,
sendo que, ao redor dessa borda, constrói-se a superfície corporal, pela qual acontece a
identificação especular. A isso se soma outra operação simbólica: a da castração, que simboliza
o furo como falta, ao passo que dá unidade ao corpo. A foraclusão do furo, tese de Laurent

7
No original: [...] il y a un réel pulsionnel uniquement pour autant que le réel, c’est ce que, dans la
pulsion, je réduis à la fonction du trou. C’est-à-dire ce qui fait que la pulsion est liée aux orifices
corporels. Je pense qu’ici tout le monde est en état de se souvenir que Freud caractérise la pulsion par
la fonction de l’orifice du corps. Il part d’une sorte d’idée, de la constance de ce qui passe par cet
orifice. Cette constance est assurément un élément de réel. J’ai même essayé de la figurer par quelque
chose de mathématique qui se définit de ce qu’on appelle une constante rotationnelle. Ce qui est bien
fait pour nous signifier qu’il s’agit là de ce qui se spécifie du bord du trou.
8
No original: Il y a quelque chose dont ce n’est pas pour rien que cela se résume à une cicatrice, à un
endroit du corps qui fait nœud. Et que ce nœud est pointable non plus à sa place même, bien sûr,
puisqu’il y a là le même déplacement qui est lié à la fonction et au champ de la parole.
48

sobre o que ocorre no autismo, se trata, portanto, de uma clausura absoluta: não é apenas um
tamponamento, e sim uma anulação do furo. Isso, certamente, produz inúmeras repercussões
na economia pulsional do sujeito.
49

2 O CORPO E A LINGUAGEM NO AUTISMO

Embora não tenha sido tema de seus seminários, a estrutura do autismo e a direção de
seu tratamento está presente em Lacan. Com vistas a responder à questão proposta para esta
seção, exploraremos brevemente o corpo no autismo, especificamente o corpo topológico,
buscando descrever como ele se dá. Laurent (2014) afirma que os sujeitos autistas nos
aproximam da necessidade de uma “revolução topológica”, pois eles evidenciam que a relação
com o espaço não está dada, assim como o furo.
Os autistas nos ensinam de forma contundente que um corpo não é dado, e sim que este
se constrói a partir da operação do significante sobre o gozo9. O corpo é uma substância gozante
que permite que o Outro dos significantes o encarne. No autismo, esse gozo não é simbolizado,
ou seja, não é uma experiência que sofre um apagamento. Como afirma Laurent (2012), o não
apagamento do Um do gozo marca um corpo que goza de si mesmo.
Nas leituras psicanalíticas do autismo, é relativamente consensual que o autista não
ascende ao Outro na trajetória dos tempos pulsionais. Não haveria, portanto, extração do objeto
a. Eis que podemos aferir que é exatamente nesse ponto, o do objeto a, que se estabelece um
ponto central para entender o corpo no autismo. O objeto a é um vazio topológico necessário
para fechar o circuito pulsional, apoiado em uma borda que o circunscreve. O vazio está situado
no campo do real, mas de um real que sofre com a relação com o significante. O vazio se
constitui em relação à representação como irrepresentável, como ausência irredutível —
ausência que o símbolo não pode suprir. Das Ding (a Coisa) é o furo no real, a falta na origem,
centrada no registro do desejo. Ela prepara o terreno para a falta, que está no registro do
simbólico. O vazio, das Ding e a falta são condições necessárias para o objeto a.
No autismo, a falta da extração do objeto a resulta em um não estabelecimento do
circuito pulsional, necessário para localizar o gozo em torno das zonas erógenas, acarretando a
instauração da imagem unificada do corpo. Para tanto, o gozo não localizado dispersa-se no
corpo de maneira caótica e devastadora. A clínica nos ensina que localizar o gozo possibilita ao
sujeito uma ordenação corporal mínima. Também nos ensina que é possível suprir as falhas da
unidade corporal mediante a construção de uma neoborda que sustente um corpo e se articule a
um novo lugar diante do Outro, operando clinicamente a partir de lalíngua e do objeto a.
Segundo Marchesini (2013), no autista, o gozo informe não é capturado por esse furo com borda
que daria forma ao gozo e que está em qualquer parte devido à ausência desse objeto

9
Em nossa tese, pretendemos caracterizar o gozo de que estamos falando.
50

condensador de gozo. Esse espaço vazio, no qual os fragmentos de corpo poderiam se situar,
está foracluído.
Ao abordar a dimensão do corpo das pessoas autistas, Laurent (2012/2014) afirma que
“não falta nada, não há buracos e, portanto, não é possível extrair algo para colocar no buraco”.
Ele ainda argumenta sobre a intensa angústia dos autistas “que vão ao banheiro e não podem
separar-se das suas fezes: não há buraco na dimensão do real, essa castração no real, era uma
tentativa de fazer frente a foraclusão do buraco” (p. 29). Para tanto, ele aponta para uma saída
possível, na qual seria importante

Um forçamento de inclusão de um buraco para encontrar uma saída diante desse pleno gozo que
invade o corpo. Produzir um buraco. Para depois, extrair algo do corpo e colocá-lo aí e, assim,
acalmar esse gozo infernal do acontecimento de corpo que invade o sujeito. Creio que essa
dimensão de foraclusão do buraco, esse trauma do buraco em francês, podemos jogar com
troumathisme, como fez Lacan. (p. 29)

Teoricamente, essa seria a vivência do corpo autista: sem diferenciação entre o dentro e
o fora, como descreve Brémaud (2011). O autista vivencia sua experiência de corpo na mais
pura superfície. A banda de Moebius é nossa representação visual dessa experiência de corpo.
Em geral, os autistas recusam o contato e, diante de qualquer demanda que, de modo geral, é
vivenciada como intrusiva, se equalizam àquilo que Tustin (1981/1984) chamou de carapaça
autista. Esse termo é retomado por Laurent (2014) para designar uma superfície corporal em
que todos os orifícios estão tapados. A noção de carapaça o remete “ao fato de que um sujeito,
por não ter um envelope corporal, não reage à imagem de seu corpo e coloca no lugar do
espelho, que não funciona, uma neo-barreira corporal que o enferma” (p. 65). Ela funciona,
pois, como “uma bolha de proteção para o sujeito” (p. 65).
A carapaça funciona como uma bolha protetora para o sujeito, que constitui um limite
corporal quase imutável além do qual nenhum contato parece possível. Cabe frisar que Laurent
(2012/2014), ao se apropriar da noção de carapaça autista e defini-la como uma neoborda,
termina por nos apresentar esse novo conceito. A neoborda seria constituída por um retorno de
gozo decorrente da foraclusão do furo. Ela circunscreve o lugar de defesa maciça e, portanto,
de gozo, onde o sujeito autista se situa, gozando de si mesmo, “sem o trajeto da pulsão que
poderia articular seu corpo ao Outro” (p. 43). Decantando a definição de neoborda, surgem-nos
alguns questionamentos: como conceber esse retorno do gozo sobre uma borda? Se não há
trajeto de ida e de volta da pulsão, o que e como esta retorna?
Em suma, no autismo, encontramos um corpo particularmente afetado, tomado pelo
gozo. Devido à não extração do objeto a, não existe a possibilidade de extrair um objeto
pulsional, sendo o gozo, assim, vivido puramente no corpo. Podemos dizer, conforme Correa
51

(2012), que, a rigor, os autistas não têm um corpo, e sim um organismo. É aqui que se insere
uma dicotomia fundamental: uma coisa é ter um corpo; outra é ter um organismo. Com os
autistas, deparamo-nos com essa fratura exposta de um organismo não silenciado pela
incorporação de um corpo tomado como próprio, o que nos convoca a uma clínica na qual o
tratamento sobre o gozo se revela uma prioridade.
O ponto de partida para delimitar o corpo no autismo é a proposição de Laurent
(2012/2014) segundo a qual há uma foraclusão do furo no autismo. Seria o corpo do autista um
corpo sem furo? Como se constitui um corpo sem furos? Tal hipótese nos leva a indagar o que
é um furo e quais os seus tipos e suas dimensões.

2.1 A Diferença Autística

Maleval (2021), em La différence autistique, tece um argumento justificando


inicialmente porque o autismo não é uma psicose. Em seguida, ele orienta o leitor acerca dos
determinantes da estrutura autística e das particularidades da transferência no autismo.
Apresentar-se-á, nesta seção, as discussões realizadas pelo autor, tendo em vista que, no
decorrer da escrita desta tese, sua publicação, datada do ano de 2021, possibilitou a inserção de
novas chaves de leitura para o caso clínico que será apresentado a seguir.
Miller, no prefácio do livro de Maleval (2021), afere o rigor clínico do autor, por este
demarcar a diferença autística ao estudar autistas um por um e traço por traço,
consequentemente apresentando as diferenças sutis entre eles. Miller localiza que o trabalho de
Maleval apresenta um rigor qualitativo, indo de encontro à prática da ciência positivista atual.
A autenticidade da clínica do autismo se dá, para a psicanálise, por uma criteriosa análise das
diferenças em torno de cada traço, que gira em torno de um quadro conceitual muito preciso,
fugindo às fenomenologias superficiais que ordenam a classificação do discurso médico. Miller
aponta que, apesar da ausência de marcadores biológicos e genéticos isolados, os critérios
diagnósticos do autismo são puramente baseados em critérios comportamentais. O debate
psicanalítico proposto por Maleval no livro fundamenta o autismo como uma estrutura, e Miller
recobra que uma estrutura se caracteriza por ser um esquema significativo fixo e invariável,
enquanto o espectro consiste em uma representação que ordena uma variação graduada. À
psicanálise convém interrogar o que varia no espectro?
Ao excluir o autismo do campo das psicoses, Maleval (2021) apresenta a modalidade
de defesa dessa condição, o que caracteriza a estrutura autística como o congelamento do
significante-mestre (S1), sendo este passível de permanecer congelado ou se descongelar. Miller
52

afere que Maleval diverge dos Lefort, que defendem que o S1 estaria excluído, e infere que o
significante-mestre pode retornar de forma pluralizada e iterativa, arriscando um matema para
pensar o que ocorre na estrutura autística:

(S1)0 → S1 S1 S1 S1...

A proliferação do enxame de S1 ocasiona a iteração de um significante unário sem


qualquer efeito de significação. Miller ainda diferencia esse movimento do significante-mestre
imutável, distinto da metonímia, o qual implica o deslizamento do significado sob o
significante. “Um filósofo diria que ele pertence tanto ao mundo de Parmênides quanto ao de
Heráclito. O autista sempre toma banho no mesmo rio, pois, do contrário, tem crise, angústia e
pânico”10 (Maleval, 2021, p. 13).
Nesses comportamentos e interesse reduzidos e repetitivos, coloca-se um dos critérios
para o diagnóstico do autismo sinalizado como (S1)0. Maleval (2021) apresenta critérios da
linguagem autista no decorrer de seu livro: balbucio, vocalização involuntária, linguagem
verbosa, linguagem privada e linguagem factual — uma linguagem apenas de S1, que, segundo
Miller, não responde à definição padrão do significante lacaniano, segundo o qual este
representa o sujeito para outro significante. No caso da linguagem, no autista não há outro
significante em cadeia que encontra o Outro. A consequência dessa modalidade de linguagem
é o autista permanecendo inibido e “congelado”, tendo suas emissões vocais como outros tantos
meios de gozo.
Maleval (2021) inicia seu argumento interrogando por que o autismo não é uma psicose
na literatura internacional, localizando historicamente que, em 1975, o Congresso dos Estados
Unidos aprovou o processo Developmental disabilities, o qual estabeleceu o reconhecimento
oficial de deficiências do desenvolvimento, “que em conjunto incluem autismo, epilepsia,
retardo mental e paralisia cerebral”11 (p. 25). Essa aprovação influenciou diretamente as
alterações no DSM-III de 1980, em que o autismo se tornou um distúrbio global do
desenvolvimento, incluindo, seis anos depois, o significante “invasivo” do desenvolvimento.
Esse movimento retirou das classificações o autismo do campo das psicoses.
No campo psicanalítico, Maleval (2021) aponta os critérios para se considerar o autismo
fora do eixo das psicoses:
1. Ausência de delírios e alucinações verbais;

10 No original: Un philosophe dirait qu’elle n’appartient pas plus au monde de Parménide qu’a celui
d’Héraclite. L’autiste se baigne toujours dans le même fleuve, sinon il y a crise, angoisse, panique.
11 No original: [...] l’autisme, l’épilepsie, le retard mental et les infirmités motrices cérébrales.
53

2. Desejo de imutabilidade;
3. O autismo não se desencadeia;
4. O autismo evolui dentro do autismo; e
5. A especificidade dos escritos dos autistas.
Maleval (2021) coloca que tanto o autismo quanto a psicose compartilham distúrbios da
identidade e do pensamento, além de fenômenos da deslocalização do gozo, porém, a psiquiatria
contemporânea “considera, com alguma relevância, que se o autismo e a esquizofrenia podem
ter sintomas negativos e características cognitivas em comum, os sintomas positivos da
esquizofrenia (delírios e alucinações) pertencem apenas a ela”12 (p. 32).
O desejo de imutabilidade é fortemente reduzido no DSM-III como resistência à
mudança. O DSM-V insere a imutabilidade no grande conjunto de padrões restritivos e
repetitivos de comportamento, embora seja possível, na psiquiatria atual, fazer um diagnóstico
de autismo sem comportamentos de imutabilidade. O desejo de imutabilidade, segundo Maleval
(2021), “dá origem a fenômenos de repetição, que não são movidos por significantes
inconscientes, mas por um desejo consciente de introduzir regras no caos do mundo. A maioria
dos autistas enfatiza o quanto as regras são valiosas para eles”13 (p. 34). O autor complementa
que, para o esquizofrênico, há um desejo de rechaçar o outro, enquanto, para o autista, de
discipliná-lo.
A respeito do não desencadeamento no autismo, Maleval (2021) aponta para uma linha
divisória: “a psicose é desencadeada, enquanto o autismo estaria presente desde o nascimento.
Ressalta-se também que a maioria das internações para a esquizofrenia ocorre na adolescência,
enquanto o autismo é quase sempre detectado nos primeiros anos”14 (p. 36).
O autismo evolui dentro do próprio autismo. Esse é um dos importantes critérios que
Maleval (2021) coloca como definidor da retirada do autismo do campo das psicoses. Para ele,
o autismo evolui da síndrome de Kenner para a síndrome de Asperger, diferentemente de uma
esquizofrenia, que “pode evoluir para uma paranoia, depois cair em um estado melancólico, ter

12 No original: [...] considéra, avec une certaine pertinence, que si l’autisme et la schizophrénie peuvent
avoir en commun des symptômes négatifs et des caractéristiques cognitives; en revanche les symptômes
positifs de cette dernière (délire, hallucinations) lui appartiennent en propre.
13 No original: L’immuabilité suscite des phénomènes de répétition, qui sont commandés non par des

signifiants inconscientes, mais par une volonté consciente d’introduire dés règles dans le chaos du
monde. La plupart des autistes soulignent combien les règlements leurs sot précieux, de sorte qu’ils en
sont très respectueux.
14 No original: La psychose se déclenche, tandis que l’autisme serait présent dès la naissance. On

souligne encore que la plupart des entées d’as la schizophrénie se font à l’adolescence, alors que
l’autisme se décelé presque toujours dès les premières années.
54

um episódio maníaco, retornar ao delírio paranoico e finalmente desenvolver apaziguamento


parafrênico”15 (p. 40).
Para seu último tópico argumentativo, Maleval (2021) trata da especificidade dos
escritos dos autistas, pois estes escrevem em nome dos autistas, “pelo que reivindicam
veementemente sua condição de autistas”16 (p. 41), diferentemente dos esquizofrênicos, que
anunciam suas ideias delirantes e que, exatamente pela existência destas, se sentem
perseguidos.
É devido a esses cinco critérios que Maleval (2021) argumenta que o autismo não é uma
psicose e que o desejo de imutabilidade, a ausência ou a escassez de delírios e alucinações, a
especificidade das escritas autísticas, a ausência de desencadeamento e, sobretudo, a evolução
do autismo para o autismo aferem uma autêntica estrutura subjetiva. Para o autor, a definição
do autismo como uma estrutura comporta três características principais:
1. A retenção inicial dos objetos da pulsão;
2. A alienação retida ligada a um congelamento e um descongelamento do
significante-mestre; e
3. O retorno do gozo sobre uma borda.
Decorrente da alienação retida e de um congelamento do significante-mestre, o sujeito
autista, para Maleval (2021), teria três possibilidades para adentrar a linguagem: língua verbosa,
língua privada, e língua factual de signos.
Em 1975, Lacan tece um comentário sobre o caráter verboso dos autistas. Maleval
(2021) desenvolve esse ponto como um tipo de manifestação da língua nos autistas: a língua
verbosa. A desmutização dos autistas segue uma trajetória singular para cada um, embora tenha
fenômenos comuns, tais como o advento dos processos ecolálicos e do cantar. Estes são
processos comuns na clínica do autismo e não são sem proposito: eles denunciam que
reproduzir palavras não é o mesmo que se apropriar da linguagem, pois as palavras servem para
uma satisfação solitária sem o caráter da enunciação, isto é, sem passar pelo processo de
subjetivação. Segundo Maleval (2021), “a música é um avatar da língua verbosa que os autistas
usam com facilidade, mais para buscar uma satisfação pessoal do que para um vínculo social”17

15 No original: Un schizophrène peut évoluer vers la paranoïa, puis tomber dans un état mélancolique,
faire un épisode maniaque, présenter à nouveau un délire paranoïaque, faire un épisode maniaque,
présenter à nouveau un délire paranoïaque, et fin par élaborer un apaisement paraphrénique.
16
No original: Les autistes qui écrivent le font au nom des autistes, dès lors ils se revendiquent fortement
comme tels, même quand ils sont parvenus a une insertion social satisfaisante.
17 No original: La musique constitue un avatar de la langue verbeuse des autistes utilisée plus volontiers

à des fins de satisfaction personnelle que pour chercher à faire lien social.
55

(p. 90). As vocalizações involuntárias dos autistas não advêm de uma produção intelectual,
consistindo em uma produção de gozo vocal desassociada de uma entrega do objeto voz, que a
posição de enunciação exige.
Para Maleval (2021), a língua verbosa é consequência de uma retenção da voz, isto é,
de uma “defesa contra a palavra”, e, na medida em que a criança cresce, a língua verbosa toma
formas mais complexas, parecendo muitas vezes intencional, ao mesmo tempo que aparenta ser
um monólogo. O autor acrescenta que essa modalidade de língua se parece com uma música
para o autista, suscitando ecos agradáveis em seu corpo, e que ela tem uma função exploratória,
não devendo ser tomada como uma língua sem sentido, pois suas variações promovem uma
busca de aprendizado do idioma e de suas ordens e regras verbais.
Maleval (2021) afirma que a língua privada é alusiva à “linguagem do poeta”, podendo
transmitir uma mensagem através de sua melodia. Os autistas que se servem da língua verbosa
e que se arriscam com ela em uma interação social permanecem em domínio da voz, expondo-
a moderadamente diante do Outro. Para o autor, esses esforços podem levar o autista a construir
uma língua privada, que emerge da língua verbosa, produzindo neologismos que objetivam
ordenar seu mundo interior. Embora essa língua estabeleça ordem no mundo interior, ela torna
a realidade mais complexa e não auxilia na comunicação. Apenas a criação de neologismos
isolados não configura uma língua privada, e sim um avatar da língua verbosa. Alguns autistas
ditos de alto funcionamento criam uma língua privada complexa, a exemplo de Daniel Tammet,
com sua língua própria, o mänti, que ele define como “expressão tangível e comunicável do
meu mundo interior” (Tammet, 2006, p. 192). Segundo Tammet (2006),

Chamei meu idioma de “mänti”, da palavra finlandesa mändy, que significa “pinheiro”. [...]
Muitas das palavras mänti são de origem escandinava ou báltica. Essa é outra razão do nome:
os pinheiros só́ crescem juntos e em grande número, e simbolizam amizade e comunidade. O
mänti é um projeto em desenvolvimento com uma gramática desenvolvida e conta com um
vocabulário de mais de mil palavras. (p. 191)

O mänti é uma língua privada criada a partir de várias línguas estrangeiras, com mais
de mil palavras, conforme Tammet testemunha em seu livro. Disso podemos dizer que a língua
privada não se trata de lalíngua, pois esta está sujeita a homofonias e mal-entendidos
impossíveis de se ordenar em um dicionário (Maleval, 2021).
As línguas privadas dos autistas, conforme Maleval (2021), “entram em gostosas
ressonâncias com o corpo”18 (p. 126), pois elas permitem um controle do objeto voz,
caracterizando-se como um avatar da borda autística. Elas constituem um objeto linguístico que

18 No original: [...] entrent volontiers en résonance avec le corps.


56

esboça uma primeira forma de interesse específico. Sobre a questão dos neologismos, o autor
diferencia o uso destes nos autistas em relação aos paranoicos, pois esses últimos os usam como
modo de comunicação com o outro, tentando transformá-los em uma linguagem universal,
diferentemente dos autistas, que inserem os neologismos em sua língua privada.
Embora seja uma extensão estrutural da língua verbosa, a língua privada se diferencia
dela por ser uma construção original do sujeito. O gozo transbordante da língua verbosa,
balbuciada de maneira incessante, encontra a língua privada como um modo de moderar o
objeto voz.
Para Maleval (2021), outra modalidade de língua é a factual de signos fixos. Essa
modalidade de língua está comumente presente nos “autistas de Asperger”, estando
comprometida com o discurso do Outro, enquanto a língua verbosa está completamente
separada desse terceiro. Conforme o nome já diz, é uma língua que expressa a factualidade, por
vezes puramente descritiva, “sem comentários, sem afetos, parecendo dirigir-se a uma simples
representação das coisas, sem implicação da voz enunciativa”19 (Maleval, 2021, p. 130). Tais
definições a diferenciam da língua verbosa, tendo em vista que a língua privada requer um
esforço de comunicação do sujeito ao se conectar com a língua do Outro. Outro aspecto da
língua factual de signos fixos seria o esforço do sujeito em atribuir significados fixos às palavras
que estabelecem uma certa codificação da realidade, obedecendo o critério “uma palavra/um
significado”. As dificuldades com o equívoco e com a generalização apontam para a rigidez do
signo, comumente demonstradas nas dificuldades de aprendizagem.
A respeito dos afetos, a língua factual apresenta-se separada da matriz destes, em que
se denuncia as fraturas do enodamento do simbólico com o corpo. A lógica de codificação dos
afetos se manifesta como difícil de objetivar. É por esse argumento que Maleval (2021) se apoia
na tese dos Lefort, contida em A distinção do autismo (2017), ao afirmar que, para o autismo,
o fato do significante não se ligar ao corpo tem como consequência não se ligar ao afeto.

2.2 Alienação Retida e S1

A trama do circuito pulsional e a dimensão do furo, desdobradas nas discussões já


apresentadas sobre o corpo lacaniano, são resultantes de uma primeira marca significante
decorrente do trauma da língua. Na clínica com crianças exiladas da fala, pairam sobre estas

19No original: [...] sans commentaires, sans affects, semblent viser à une simple présentation des choses,
sans implication de la voix énonciative.
57

inúmeras nomeações sobre essa sintomatologia. A postura médica classificatória tem tomado o
exílio da fala como condição patognomônica do transtorno do espectro autista. É sabido que,
em sua maioria, os autistas alcançam algum trabalho com a linguagem e que, nos casos
considerados mais graves, eles permanecem em mutismo permanente, mesmo sendo
submetidos a processos terapêuticos.
O que interessa à psicanálise é como cada sujeito responde ao trauma da língua, sendo
este um acontecimento que atinge a todos. Para discorrer sobre os tempos da língua, Bayón
(2020) estabelece que o furo entre o corpo e lalíngua obedece a tempos lógicos que nos situam
sobre aqueles que apresentam um recolhimento radical sobre a linguagem. Retiramos do
estabelecimento teórico do autor algumas colocações interessantes, as quais sugerem outro giro
em relação à tese laurentiana da foraclusão do furo. No fim de 2020, Bayón lançou o livro El
autismo, entre lalangue y la letra, e é sobre este que nos debruçaremos nesta subseção,
cotejando-o com os avanços apresentados em sua transmissão.
Por que consideramos os achados de Bayón outro giro em relação à tese de Laurent
sobre a foraclusão do furo? Vejamos: em sua obra, Bayón (2020) detalha sua hipótese de
pesquisa, segundo a qual a foraclusão do furo obedece a tempos lógicos da língua. Essa
foraclusão ocorreria, particularmente, no primeiro tempo lógico. Para o autor, existem três
tempos da língua: o tempo de lalíngua, o tempo da letra e o tempo da linguagem.
Sobre o primeiro tempo, o tempo de lalíngua, podemos tateá-lo no Seminário XX. Em
1973, Lacan ([1972–1973]/1985) oferece uma dimensão do que chama de constelação a partir
do termo enxame significante, que recebe esse nome devido à homofonia na língua francesa
entre S1 e essaim. Assim, “um giro nos transporta do significante à letra e ao enxame de
significantes-mestres: S1, S1, S1, S1...” e “não é mais a [...] ‘constelação’ que faz a amarração
entre os vários pontos desconhecidos uns dos outros” (Rosa, 2009, p. 69). Esse movimento
corresponde a um tempo do infans em que, apesar de a linguagem incidir no organismo, ela
ainda antecede sua incorporação, visto que, como diz Lacan ([1972–1973]/1985), “a linguagem,
de começo, ela não existe” (p. 189). Nesse tempo, há um choque da linguagem no corpo, isto
é, o gozo no corpo.
Segundo Bayón (2020), o parlêtre se constitui a partir do gozo de lalíngua em um tempo
ainda “sem linguagem e sem Outro” (p. 64). É nesse tempo que encaixamos aquilo que Lacan
(1972–1973/2008) afirma sobre o enxame significante: aglomerado de S1 do qual, no segundo
tempo, o Um será anzoleado para se tornar mestre, letra fundante. Esse S1 deixa de ser
inequívoco e passa a produzir algum equívoco. Essa operação é o que Bayón (2020) define
como o segundo tempo lógico, que tem a letra como um acontecimento. Na medida em que
58

surge um significante-mestre, o S1 adquire o estatuto de letra que marca, deixando uma cicatriz
do que furou o corpo. Abrindo um espaço topológico para a extração de gozo, a letra acarreta
um esvaziamento e a inscrição de uma borda. É nesse tempo que temos o nascimento do Outro
e da linguagem como função de saber sobre o gozo imaginário. O encontro de lalíngua no corpo
introduz um quantum, um excesso de gozo, que vem a se distribuir de distintos modos, mediante
um saber-fazer.
O terceiro e último tempo lógico é o da linguagem, isto é, da elucubração de saber sobre
lalíngua. A linguagem está repleta de lalíngua, sendo esta seu material e sua substância. Bayón
(2020) retoma Lacan quando este afirma que o inconsciente seria um savoir-faire com lalíngua.
Esse saber-fazer resulta no inconsciente estruturado como uma linguagem. Para Bayón (2020),
o aparato de linguagem redistribui o gozo de diferentes modos na cadeia significante:

[...] por um lado, uma elaboração, uma tramitação de gozo que se localiza em S1. Por outro, uma
distribuição de gozo que se processa em um deslocamento dos significantes em direção ao S2 e,
por fim, que o processamento e a distribuição são designados como uma habilidade, um saber-
fazer com lalíngua. (p. 66)

Em vista da constituição lógica do sujeito, Bayón (2020) afirma que a foraclusão na


psicose se daria no terceiro tempo da língua, o da elucubração de saber sobre lalíngua, enquanto,
no autismo, a foraclusão se estabeleceria no primeiro tempo lógico, o do choque da linguagem
no corpo. Esse é justamente o ponto de parada, de congelamento do autista: a impossibilidade
de realizar aquela elucubração. Sem a referência da letra fazendo um litoral entre saber e gozo,
o autista permanece habitado por lalíngua, sem poder gerar uma distribuição de gozo, realizada
pela construção do saber no plano S1–S2. No autismo, deparamo-nos com “lalíngua a céu
aberto” (p. 73). Enquanto, na psicose, é possível localizar uma letra sem extração do objeto, no
autismo, o sujeito fica imerso naquele enxame, inteirando S1 inequívocos.
Se tomarmos a foraclusão como um termo jurídico, tal qual Lacan a referenciou,
podemos entender que é necessário que algo tenha existido e passado do prazo de vencimento
para que, assim, ela pudesse ocorrer. Se há furo em lalíngua e, depois, sua foraclusão, como se
daria o furo original em lalíngua? Bayón (2020) nos mostra um caminho distintivo em direção
ao furo, pois, segundo ele, o furo tem duas dimensões no autismo: a primeira delas, entre o real
e o imaginário, na construção da pulsão e do corpo; já a segundo, entre o real e o simbólico. A
primeira dimensão do furo, do corpo e do imaginário no autismo tangencia o percurso realizado
por Lacan nos Seminários VII, IX, X e XI. Nessa dimensão, situamos a teoria lacaniana que
toma os orifícios corporais como vias de construção do corpo topológico em uma superfície
cortada e marcada pelas zonas erógenas. As bordas do corpo, dos órgãos, exercem uma função
59

dinâmica e fronteiriça na relação desse corpo com o mundo. É necessário considerar que, nesse
tempo do ensino de Lacan, as teses do corpo imaginário, do espelho e do esquema ótico são
essenciais para que pensemos na construção do corpo. Elas convergem na dimensão do furo,
apresentada por ele na sequência. Podemos perceber que Lacan costura novos conceitos em sua
construção, de modo que, mesmo que o dividamos didaticamente em “primeiro” e “segundo
Lacan”, não há necessariamente uma ruptura conceitual no que se refere ao corpo.
Retomando o pensamento de Bayón (2020) sobre as duas dimensões do furo,
encontramos um problema no autismo, à medida que essa condição não leva à produção do furo
no corpo. É exatamente a diferença entre o imaginário e o real, entre o vazio e o furo, que define
as zonas erógenas e funciona como furo no corpo. Não havendo diferença entre a superfície
corporal, o corpo próprio e o resto do espaço tridimensional, temos um corpo informe, sem
bordas e sem fronteiras diante do gozo.
Se pensarmos em um corpo sem furos, imaginamos um espaço que não é tridimensional.
Isso porque volume e altura, topologicamente falando, só se constroem a partir da noção de
furo. Temos, então, algumas pistas para pensar nos fenômenos clínicos envolvendo os autistas,
quando estes apresentam extremas dificuldades de lidar com a imagem corporal, apresentando
hipersensibilidade tátil a tudo que possa deformar ainda mais seu corpo, tomando qualquer
elemento vindo do Outro como invasivo. Os autistas não estão presos à unidade imaginária
estabelecida pelo objeto a. Que tipo de espaço eles habitam?
Bayón (2020) conclui que a primeira versão do furo em Lacan estabelece a construção
do imaginário real do corpo, que ocorre entre o imaginário e o real, a partir da borda simbólica.
A segunda construção do furo se daria entre lalíngua e a letra.
A letra é uma barra entre os significantes que sustenta o vazio da Coisa. A letra é o que
faz borda a esse vazio. A letra é o que faz furo na linguagem, no sentido. E a letra é o objeto a
que circula entre linhas, transportando o gozo. Trata-se da letra como litoral, como borda entre
saber e gozo. Laurent (2012/2014) alega que a clínica do autismo nos convoca para uma clínica
da instância da letra, inspirado no que Lacan propõe sobre o circuito da letra, não em relação
ao significante e seus efeitos na mensagem, mas em virtude de outro paradigma: a letra em
relação ao gozo sem sentido. Portanto, como o autista captura a letra? Como o corpo captura a
materialidade da letra?
Para representar como o autista sente a invasão do gozo no corpo, tomemos a imagem
de um enxame, invasivo e caótico, sem o recurso de um simbólico que possa diferenciar o que
lhe acomete. O autista está impedido de habitar o campo da linguagem exatamente por estar
60

aprisionado em lalíngua. O que ocorre com os autistas que “aprendem” a falar? Ora, ocorre
alguma distinção, alguma borda possível no esvaziamento do gozo.
A vocação da letra no autismo não é representar, e sim delimitar as fronteiras do real,
que não apresenta furo nem descontinuidade. A aposta na função da letra consiste na
eliminação, pelo autista, de uma coisa em excesso em seu corpo, fazendo um buraco, tal qual
Lacan (1971/2003) discorre em Lituraterra, ao colocar que, entre saber e gozo, a letra faz borda
no furo do saber. A noção de litoral aponta para um corpo traumatizado pela linguagem. O furo
dinamizado aloja o gozo turbinado pelo material de lalíngua. O que está em jogo na clínica do
autismo, paradigma de lalíngua, é a provocação de um arremedo, algo que se assemelha a um
furo como tal.
O que cada um de nós faz com lalíngua é o que nos diferencia, pois ela fica marcada.
No autismo, lalíngua está presente, mas sem a possibilidade de que, a partir dela, se inscreva
um circuito da pulsão. Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, como se
organizaria o inconsciente de um autista? Como inconsciente real? Só podemos falar de um
simbólico no autismo se considerarmos outra modalidade de simbólico, diferente daquela que
encontramos na neurose e na psicose.
Se tomamos como base para pensar o autismo um paradigma de lalíngua, consideramos
localizar a abordagem lacaniana sobre o autismo em correntes que divergem a respeito do S1,
operação significante. Escolhemos essa perspectiva da letra, isto é, do S1 para estreitar nossas
discussões sobre lalíngua, sobre o furo e, consequentemente, as discussões da tese sobre a
foraclusão do furo e a estrutura autística. O debate que apresentamos consiste em uma divisão
de duas correntes em torno do S1. A primeira delas seria contemplada pelos Lefort (2003), Soler
(1990) e Martin Edge (2015), que consideram uma ausência de alienação significante. A
segunda corrente, composta pelos psicanalistas Maleval (2020), Laurent (2014) e Rabanel
(2008), sustenta que há uma alienação significante que revela um “estado nativo do sujeito”,
expressão de Miller (2014) em O ultimíssimo Lacan, e uma reiteração de um S1 no autismo para
reduzir os equívocos de lalíngua. Para Maleval (2020), há uma primazia do signo não
incorporado no pensamento do autista e uma alienação parcial retida, pela qual é proposta a
ideia da alienação retida.
Maleval (2020) apresenta uma nova tese sobre o autismo. Sua hipótese é a de que o
autista entrar na alienação, ainda que de forma parcial, isto é, de maneira retida: as vocalizações
involuntárias e a língua verbosa são consideradas indicativos de que os autistas sofrem o
impacto da linguagem. O autor se apoia em dados clínicos e relatos autobiográficos e explicita,
61

com eles, que a alienação retida aponta para uma especificidade da alienação significante no
autista, observada na retenção da voz, que impede a operacionalidade do significante-mestre.
Maleval (2021), ao se debruçar sobre o congelamento de S1 e o congelamento dos afetos,
se questiona sobre a raiz desses congelamentos e retorna a Lacan, em suas orientações em torno
do significante-mestre, pedra do vivo, que assume o gozo do sujeito, tornando sua representação
frente aos outros significantes e a sua expressão verbal sintomática e corporal. Segundo Maleval
(2021), não se trata de uma carência, e sim de um congelamento (p. 112). “O congelamento se
refere a uma presença, que não está inteiramente ativa, mas deixa a possibilidade de um
descongelamento, o qual, nós veremos, é atestado pelos autistas de alto nível” (p. 117). Uma
identificação simbólica, esboçada, antecipada e petrificada, parece discernível muito cedo nos
autistas. Ela se manifesta de maneira efêmera e pouco afirmada nas vocalizações involuntárias,
na expressão de afetos de rejeição ao outro, bem como nas escolhas de medidas de defesa. A
função unária do significante-mestre é desde cedo atuante e discernível, mas o significante-
mestre custa a representar o gozo do sujeito perante outros significantes. Em formas um pouco
menos severas de autismo, o congelamento dos afetos começa a diminuir, tornando-se seletivo.
O congelamento do S1 suscita uma falha da experiência interna, traduzindo-se por uma
dificuldade do sujeito de tomar posse de seu corpo e de se exprimir fundamentando em seus
afetos. Assim, desconectado do corpo, durante muito tempo, o vivo faz retorno a uma borda
que parece animar o sujeito, quando este se conecta a ela. Acontece, entretanto, que certos
autistas conseguem operar uma mutação subjetiva decisiva, que lhes permite uma introjeção
mais ou menos realizada. Segundo Maleval (2021), quando o sujeito não está mudo, ele
primeiro tenta falar envolvendo o mínimo possível sua presença enunciativa, por meio de uma
linguagem verbosa, privada ou factual. Passando por um longo trabalho, com suporte dos
duplos e dos interesses específicos, o autista consegue descongelar um significante-mestre que
lhe permite atrelar um gozo em sua fala.
A inserção originária do autista na linguagem passa por uma língua cindida em uma
língua de signos, a qual não configura um inconsciente freudiano, para o qual a articulação S–
S constitui uma articulação necessária. O autismo não se trata de interpretação do reprimido. A
lalíngua do autista se desdobra além do sentido; porém, em sua função exploratória, ocorre que
o sujeito aguarda um sentido fornecido ou confirmado pelo Outro. É por intermédio da borda
que o autista processa seu gozo, e é para isso que as intervenções do analista devem orientar.
Reiteramos que a perspectiva lacaniana da década de 1970 conjuga a letra como um
sulco que marca o corpo, pois não há como o sujeito não ser marcado por nada, mesmo que
essa marca promova um circuito curto. Em seu seminário El ultimíssimo Lacan, Miller (2014)
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homenageia os Lefort na aula Varidad de Lacan, em que ressalta que a clínica da criança é uma
clínica do nascimento do Outro. Miller reconhece a audácia dos Lefort em considerar que nem
sempre o mar de significante e o Outro estão presentes. Embora sem um estabelecimento
formal, os Lefort já apontavam para uma mudança de paradigma do primeiro ensino de Lacan,
no qual o Outro era constituído a partir de Um-corpo. Para o autor, a obra dos Lefort mostra a
rubrica do autismo, demarcando assim que o autismo é o “status ‘nativo’ do sujeito” (p. 119).
É por essa perspectiva que o último ensino de Lacan se efetiva, para localizar não somente o
autismo, mas um “elemento comum” a todo parlêtre: lalíngua.
Miller (2014) afirma que lalíngua deve ser entendida em relação a Um-corpo, como um
neologismo, que, por ter um hífen, retém o traço de sua operação. Por essa perspectiva, orienta
a considerar que há lalíngua e Um-corpo, Um-corpo cuja relação se baseia em lalíngua.
Em A distinção do autismo, os Lefort (2003/2017) localizam o autismo como uma
quarta estrutura, além das já estabelecidas: neurose, psicose e perversão. Com os casos Nádia,
Marie Françoise e Robert, os Lefort nos ensinam que, no autismo, não ocorre um “nascimento
do Outro”. Na época de suas pesquisas, no primeiro tempo da teoria lacaniana, os Lefort não
operavam com os conceitos lacanianos lançados na década de 1970, os quais resultaram em um
novo paradigma de inconsciente, em que o parlêtre deriva de um trauma da língua.
Os Lefort (2003/2017) diferem o autismo da esquizofrenia e da psicose, não somente
em relação ao período de aparição — desde o nascimento, o autismo, e na juventude, a
esquizofrenia —, mas também por sua evolução. A respeito do autismo, os Lefort levantam a
hipótese sobre a ausência do balbucio no bebê autista. Isso estaria em jogo na não entrada do
sujeito na linguagem, tendo o balbucio de lalíngua sido prejudicado. Dessa forma, não haveria
para o autista nem lalíngua nem S1. A esquizofrenia apresenta, segundo os autores, picos
evolutivos normais ou quase normais, ou, ao contrário, uma evolução letal nos casos
gravíssimos. Os Lefort também sublinham outro tipo de evolução para a construção delirante,
como a explicitada na paranoia schreberiana. A respeito da foraclusão do Nome-do-Pai,
mecanismo da psicose, eles afirmam que, no autismo, “certamente há foraclusão”, mas que não
se pode ser reducionista e aplicá-la na metáfora paterna de forma pura e simples. Na construção
do argumento, os autores retomam o projeto de Freud (Entwurf), de 1895, e desenvolvem as
ideias freudianas sobre o sistema de percepção em relação às coisas do exterior.
A dinâmica do sistema de representação concerne ao sistema pulsional. Para os Lefort
(2003/2017), a foraclusão na psicose significa o resultado da ausência da função foraclusiva
necessária a afirmação [Bejahun], caracterizando a foraclusão mais como um excesso do que
como um déficit, isto é, um excesso real impossível de ser negativizado. Em relação aos níveis
63

de foraclusão, os autores estabelecem que haveriam dos níveis: um pela função foraclusiva da
Bejahun, que interessa ao julgamento de atribuição, e secundariamente a Verneinung, o
julgamento de existência, que dá abertura fundamental para o registro simbólico. É nesse ponto
que se trata da metáfora paterna: no registro do simbólico, o Outro fica descompletado, e o
Nome-do-Pai é convocado a responder a esse Outro por um simples e puro furo.
Ainda no desenvolvimento distintivo entre autismo e psicose, os Lefort (2003/2017)
indicam que, no caso de ausência de Bejahun e de sua foraclusão, o sujeito permanece diante
de um significante que já não significa nada, cujo lugar está longe, esperando qualquer
significação fálica, podendo ou não advir pelo Nome-do-Pai, frustrando o gozo, através do qual
apenas o grande S barrado do sujeito pode advir. Os autores sinalizam aí uma foraclusão mais
radical no autismo, muito aquém de um esboço de castração.
É por esse ponto conclusivo dos Lefort que podemos supor que Laurent (2012/2014)
deu nome a sua tese de foraclusão do furo, para estabelecer o modo de defesa no autismo. Bayón
(2020) afirma que, diferentemente da foraclusão na psicose, no autismo a foraclusão se
estabeleceria no primeiro tempo lógico, o do choque da linguagem no corpo. Devido à ausência
dos processos de alienação-separação e na falta da incorporação simbólica, o autista, selado no
real, não inscreve o significante no Outro, resultando em um rechaço primordial, pelo qual não
haveria um consentimento de gozo de lalíngua no corpo.
Em sua mais recente publicação sobre o autismo, La différence autistique, Maleval
(2021) inicia respondendo à questão das razões pelas quais o autismo não seria uma psicose,
abrindo o campo para sua tese original sobre a estrutura autística. A retenção inicial dos objetos
da pulsão, a alienação retida, o “gel et degél du significant-maitre” e o retorno do gozo sobre
uma borda são os argumentos do autor para diferenciar o autismo da psicose, firmando-se como
uma tipologia clínica particular. A verdadeira especificidade da alienação do autista se refere
ao fato de ela ser comandada por uma retenção da voz que não permite a operacionalidade do
significante-mestre. Quando o sujeito não é mudo, ele se dedica primeiro a falar colocando o
menos possível de sua presença enunciativa, por intermédio de uma língua verbosa, privada ou
fatual. Segundo o autor, a alienação se caracterizaria como inacabada, resultado em duas formas
de estar na linguagem, sendo uma pelo significante e outra pelo signo. Ambas apresentam a
questão da retenção do objeto voz, que se manifesta diferentemente para os autistas que falam
verbosamente e para os que apresentam uma língua factual. A espectralidade dos fenômenos
linguísticos é apresentada por esses sujeitos em distintos níveis: balbucio, vocalização
involuntária, linguagem verbal, linguagem privada e linguagem factual, denunciando a iteração
do S1 sozinho, sem cadeia e sem representação para outro significante a quem possa chamar ou
64

se dirigir, resultando em um sujeito “congelado correlativamente; as emissões vocais, livres de


qualquer contenção significativa, manifestam-se como tantos meios de fruição” (p. 14).

2.3 A Foraclusão do Furo

A foraclusão do furo estaria para o autismo como a foraclusão do Nome-do-Pai está


para a psicose? Se o termo foraclusão tem como definição linguística a negação que incide
sobre um significante primordial, já firmado, ele pode também ser aplicado a uma operação de
linguagem que incide sobre um furo, impedindo que a própria linguagem se instale? Se a
linguagem não se instala, como o autista se serve de uma operação dela? É por essa
diferenciação entre psicose e autismo que iniciamos a investigação da tese de Laurent
(2012/2014) sobre a foraclusão do furo. Em termos topológicos, o furo encontra-se no cerne da
relação entre os registros R.S.I. Sua foraclusão, portanto, traria inúmeras implicações clínicas.
Para pensar na construção do corpo no autismo, pretendemos nos servir da teoria topológica do
corpo, sendo esta uma das perspectivas lacanianas sobre o corpo que

Consiste em um corpo topológico, no qual há um furo central provido de uma borda, a zona
erógena freudiana, e ao redor dessa borda constrói-se a superfície do corpo, na qual acontecerá
a identificação especular. A isto se acrescenta outra operação simbólica, a castração, que
simboliza o furo como falta e dá unidade ao corpo. (Álvarez, 2013)

Se o autista não dispõe do furo, consequentemente não teria uma borda. Nesse sentido,
com que corpo estamos lidando? Segundo Álvarez (2013), o esquizofrênico, por exemplo,
dispõe do furo e de suas bordas, mas não consegue montar, com seus órgãos, uma unidade
corporal. A tese de Laurent (2012/2014) impõe uma divisão fundamental entre autismo e
psicose considerando os processos de foraclusão, havendo, no autismo, a foraclusão do furo e,
na psicose, do Nome-do-Pai. A foraclusão do Nome-do-Pai se dá em um tempo lógico da
construção da linguagem, em contrapartida à foraclusão do furo, que ocorre em um tempo
anterior.
A foraclusão do furo especifica, nos autismos, o tipo de rechaço à alienação, bem como
a não extração do objeto a. No lugar do furo e da borda simbólica que o contorna, cria-se um
encapsulamento carapaçado que permite ao autista funcionar com uma borda protetora, mesmo
que esta, por vezes, seja precária. Mais adiante, na próxima subseção, trabalharemos
especificamente a questão da borda autística protetora, que Laurent (2012/2014) designa como
neoborda, e também a modalidade de sua carapaça. Aqui, nosso enfoque é a questão da
foraclusão do furo e sua incidência como intolerância por parte dos autistas.
65

Segundo Laurent (2012/2014), existem inúmeros testemunhos clínicos dessa


intolerância ao furo nos sujeitos autistas. A foraclusão torna o mundo invivível e leva o sujeito
a operar um furo forçado, por meio da automutilação, buscando encontrar uma saída para o
excesso de gozo que invade seu corpo. Diante da foraclusão do furo, outros elementos
constituintes do sujeito se apresentam de forma interrogada. Como assinala Laurent, dizer que
não há furo é também dizer que não há borda que o delimite, tendo em vista que uma borda é
uma zona fronteiriça passível de ser transposta: é o lugar onde contatos e trocas podem ocorrer.
Aquele que possui um furo tem uma borda conferida ao corpo pela inscrição da castração, pela
extração do objeto a e pela imagem corporal. Conforme Laurent, “é só a partir da produção
desse furo que o sujeito poderá emitir outras palavras além dos dois significantes de partida,
ampliando assim seu mundo” (p. 42).
Perante a inexistência do furo e da borda, é apropriado dizer que o corpo-carapaça do
sujeito autista funciona como uma neoborda, pois forma um limite quase corporal,
instransponível, para além do qual nenhum contato parece possível. Segundo Laurent
(2012/2014), é preciso de um tempo — que varia conforme os casos —, depois que algo tenha
podido se enganchar, para que a neoborda relaxe e se desloque, constituindo um espaço, que
não é nem do sujeito nem do Outro, onde possa ocorrer trocas de um tipo novo articuladas a
um Outro menos ameaçador.
A distinção topológica entre furo e vazio só é possível com a presença e a ausência da
borda. A foraclusão do furo implica a ausência dela. Dizer que não há furo no autismo é o
mesmo que dizer que não há fronteira que delimite o buraco (Laurent, 2012/2014). Diante
dessas considerações, podemos inferir que a dimensão do corpo e o espaço no autismo tornam-
se desafios topologicamente orientados. Brémaud (2011) sintetiza, com harmonia, nossa
introdução a esse tema:

O lugar e o verso, o interior e o exterior, o topo e o fundo, leva pouco tempo para alguém
perceber que os autistas enfrentam uma grande dificuldade — e mais frequentemente uma
impossibilidade — estar no espaço, o que é por vezes referido como “perturbações da
organização espacial”. E porque a maioria dos clínicos concordam que seu espaço não é
estruturado da mesma maneira que o dos sujeitos neuróticos e também é diferente do da maioria
dos sujeitos psicóticos. Em essência, para dar conta do espaço autista, muitas vezes é feita
referência à topologia e especialmente à banda de Moebius. (p. 651)

Dando continuidade a seu argumento, Laurent (2012/2014), ao tratar da topologia do


espaço pulsional, afirma que “a única articulação com o corpo é a de uma rejeição radical”, pois
o real impõe uma topologia que não é a de um corpo circunscrito, que determina um dentro e
um fora, em relação ao qual o objeto poderia ser êxtimo. A figura topológica a que se refere é
o toro, representado por seu furo central. Nos Seminários XXII e XXIV, Lacan se utiliza da
66

demonstração do toro para situar a topologia do corpo, sendo este portador de dois furos: um
que representa um interior absoluto e outro que se abre para o que chamamos de interior.
As perturbações do espaço, nos autismos, se apresentam clinicamente de forma
ilustrativa, quando parece que, na dificuldade de metaforizar o brincar, a criança não equivale
um avião de brinquedo a um avião de verdade, tapando os ouvidos no momento em que o avião
de brinquedo decola. Em virtude desse exemplo citado por Laurent (2012/2014), convém dizer
que temos uma topologia que anula a distância: quando o avião entra no campo escópico, é
como se ele estivesse bem perto. Ao anular a distância, quando penetra no mundo do autista, o
objeto, mesmo que não possa ser nomeado, desperta o rumor da língua. Extrapolando qualquer
cálculo, o objeto desperta o que há de intratável nos equívocos da língua. Isso possibilita
compreender o momento em que o autista tapa os ouvidos, pois a língua lhe grita todos os
equívocos possíveis.
Após apresentar algumas vinhetas clínicas, Laurent (2012/2014) comenta que elas
demonstram como o espaço se estrutura sob modos particulares. Elas esclarecem quando a
topologia do espaço subjetivo deve ser levada em consideração, incluindo o que se diz a respeito
do ponto da visão e o que não é dito: o espaço fora do campo de visão, o corpo fazendo limite
entre ambos. Evidenciam como o sujeito autista tem de operar, sem a ajuda de nenhuma imagem
estabelecida, para construir um espaço fora da visão, bem como o campo visual. Para conseguir
realizá-lo, o sujeito fabrica para si instrumentos originais, a partir de dispositivos centrados nos
modos de aparecimento e desaparecimento do corpo: os neo-fort/da.
Na articulação de sua tese com os fenômenos clínicos, Laurent (2012/2014) reflete sobre
a retratação do furo sobre o corpo, o que aponta para a ausência radical de qualquer separação,
de qualquer elaboração da perda do objeto que se apoiaria no Outro. Deve-se falar então,
simultaneamente, de uma mutilação insustentável sentida pelo sujeito e de uma reversão
insuportável do espaço não furado sobre o corpo sem borda.
A língua traumatiza o sujeito. É considerando essa constatação lacaniana que Laurent
(2012/2014) diferencia a psicose do autismo, à vista da reiteração do Um. Segundo ele, para
fundar uma abordagem psicanalítica renovada do autismo, é fundamental a leitura que Miller
(2012) faz do Um do gozo. Na psicose, há um distúrbio na cadeia entre dois significantes, um
S1 e um S2, devido à ruptura de articulação entre um e outro e, mais precisamente, à
decomposição dos fenômenos que os estruturam enquanto mensagens. No autismo, essa
interrupção da mensagem não é detectada; tais fenômenos de ruptura não aparecem em primeiro
plano. Trata-se, antes, da reprodução de um mesmo significante, de um significante Um, de um
67

S1, radicalmente separado de qualquer outro significante, não remetendo, portanto, a nenhum
S2, mas que, no entanto, produz um efeito de gozo, manifesto pela repetição.
Se essa reiteração existe com tamanha potência, é porque o Um do gozo não se apaga
para o sujeito situado no campo coberto pelo espectro dos autismos. Pelo fato de essa marca do
acontecimento do corpo não poder ser afetada pelo mínimo apagamento, toda fala é capaz de
provocar o terror. Como o significante tem um impacto sem mediação sobre o corpo, seu efeito
é uma repercussão maciça e imediata, quase instantânea, sobre o corpo do sujeito.
Uma vez nomeado, o corpo não pode esquecer sua inclusão no banho de linguagem.
Essa impossibilidade de apagar o Um marca o corpo gozando de si mesmo, além do princípio
do prazer. Encontramos, assim, a marca desse acontecimento originário, traumático, que é a
inscrição do banho de linguagem no corpo. Nesse nível, não se trata de códigos, de mensagens,
nem da linguagem separada da língua. É um nível da língua em que todos os equívocos
proliferam perigosamente. Lacan, aproximando-o da lalação do infans, denominou-o lalíngua.
O modo como o sujeito autista trata essa proliferação lalativa equivale a querer reduzi-
la ao Um da letra que se repete, incluída ou não no campo da fala, vocalizada ou repetida em
silêncio. Ora, o Um se repete, mas sem conseguir tratar a proliferação dos equívocos reais da
língua. Essas frases são consequências do trauma que o encontro com o Outro da linguagem
produz no corpo-Um, o qual, diz Lacan, torna-se, então, falasser, lugar de uma letra que será
falada ou não. Nas neuroses, esse espaço é o dos “equívocos”, como Lacan os chama em O
aturdito (1973[1972]/2003); nas psicoses, é o da construção de uma língua pessoal que pode
incluir certos equívocos; finalmente, nos autismos, como já mencionamos, é o espaço da
construção e do deslocamento de uma borda.

2.4 A Neoborda Autística

Frequentemente escutamos relatos e descrições sintomatológicas de pessoas com


autismo que apresentam problemas com o corpo. É comum o significante “sensorial” nessas
comunicações. De fato, há algo que nos convoca a pesquisar o que constantemente é chamado
de “problemas da integração sensorial”. Em autistas severos20, é comum encontrarmos
fenômenos de automutilação e autolesão, assim como atos de bater a cabeça na parede ou lançar
o próprio corpo, enquanto se debate. Isso indica a produção de um lugar de perda que serve

20
Compreendemos como autistas severos aqueles que necessitam de apoio substancial, têm dificuldade
de se comunicar verbalmente e não verbalmente, são dependentes em atividades diárias e mantêm
interações com o Outro de forma restrita e defensiva.
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para depositar o gozo excessivo. A noção de borda na clínica do autismo remonta a inúmeras
observações fenomenológicas clínicas, desde o uso da saliva em excesso, escorrendo pela boca,
pela mão e pelos objetos no mundo, até o uso da urina e da menstruação com outros fins, para
além de seu descarte aprendido socialmente. Esses exemplos nos remetem às noções de
intolerância ao furo e ausência ou precariedade da borda, inscritas pelo efeito do significante
que falta no universo simbólico do autista. Psicanalistas como Bruno Bettelheim, Margaret
Mahler, Donald Meltzer e Francis Tustin designaram esses fenômenos clínicos, de modo geral,
como fortaleza vazia e carapaça autista.
Na teoria lacaniana, quando nos deparamos com o termo borda, este está referido à
borda pulsional, presente no falasser “portador” de um furo. A borda pulsional, como diz Lacan
([1964]/1988), é “a fonte, a Quelle, quer dizer, a zona erógena dita erógena na pulsão” (p. 169).
A borda circunscreve o objeto da pulsão em seu circuito, que obedece aos tempos pulsionais.
Ainda que o circuito pulsional tenha o movimento de ida e volta — circular, mas não recíproco
—, sua montagem depende do Outro, S(Ⱥ), que encarna a presença de um oco em que se aloja
o objeto da pulsão a ser contornado, como ilustra a Figura 4. Por não passar pelo furo do Outro,
visto que o Outro não existe enquanto simbólico, o circuito da pulsão tende a não se constituir
no autismo. Se não ocorre o retorno em um circuito, não se inscreve a fonte da pulsão, isto é, a
zona erógena, resultando na impossibilidade de sua localização.

Figura 4. Borda pulsional.


Fonte: Lacan, [1964]/1988, p. 169.

A noção de furo é solidária à noção de borda, como descrevemos anteriormente. Em


tons lacanianos, o furo é real e a borda está entre o simbólico e o real. O objeto a dá a
consistência lógica que implica a estrutura da borda topológica. Se no autismo não há a
69

operação de extração do objeto a, resultando na inexistência de um vazio demarcado por uma


borda, o que seria então a borda autística?
Dizer que não há furo no autismo é dizer que não há borda, já que é esta que delimita o
furo. Lacan ([1959–1960]/1988) introduz o Seminário VII alegando que é a gênese do furo,
como uma topologia do real, a condição lógica anterior ao funcionamento do registro simbólico.
Evocando as contribuições desse seminário, Cazenave (2019) situa um vazio sem a ação do
significante. Quando o vaso é contornado, produzindo o vazio, é o vaso que contorna o vazio.
Ou seja, o vazio não lhe é anterior.

O significante ao incidir sobre o real com o traumático, introduz uma hiância que constitui o
espaço da Coisa como tal. A coisa como lugar do gozo constitui topologicamente como um
lugar vazio de representação, um lugar fora da cadeia significante e seu sujeito. A Coisa em sua
origem é anterior ao significante, mas somente encontra seu lugar a partir do significante. Seu
lugar no centro da economia psíquica é o de um interior excluído como o estrangeiro e o hostil,
se apresenta em uma relação de extimidade com o sujeito, bordeada por uma barreira que
defende do gozo real. (Cazenave, 2019, p. 35)

A função da borda, segundo Cazenave (2019), faz com que nós a interpretemos como
uma barreira que defende o sujeito do gozo real. Porém, podemos inferir que a borda possui
outras funções, como as de: armar um espaço que situa o vazio; proteger o sujeito de um gozo
sem limites; diferenciar o vazio e o furo, consistindo em um agregado; desempenhar a função
topológica, entre o vazio real e o que faz o furo, de uma construção simbólico-real que tem
implicação no imaginário, como a construção de uma superfície com cortes; instrumentalizar o
corpo, dando-lhe uma armadura; e alojar as zonas erógenas, possibilitando que os objetos da
pulsão se exteriorizem no corpo.
Cazenave (2019) aborda diferentes tipos de borda: a borda como superfície corporal,
que corresponde à autossensualidade de Tustin; a borda do objeto tranquilizador, que se mostra
como defesa contra o mundo intrusivo, podendo incluir os duplos, os objetos autísticos e os
interesses específicos; a borda dinâmica, em cuja construção o sujeito se inclui. Maleval e
Laurent falam, respectivamente, de uma borda autística e de um encapsulamento autista. Apesar
dos nomes distintos, eles convergem na direção dos casos de autismo, pela construção particular
do autista, em uma singularidade possível ao tratamento de seu gozo.
Em conformidade com Maleval (2009/2017), a borda da criança autista pode ser uma
barreira autoerótica gerada por estimulações corporais, tais como movimentos, balanceios,
pressão sobre os olhos etc., que separam sua realidade perceptiva do mundo exterior, quando
este se torna muito insistente. Em vários testemunhos de pessoas com autismo, isso consiste em
um fator prevalente. A mente e o corpo se descontinuam, o que é algo que convoca esses sujeitos
70

a encontrar soluções para suavizar esses distanciamentos, nos quais, por vezes, há muito
sofrimento acoplado.
Devido à foraclusão do furo no autismo e à não inscrição de um circuito que o inscreve
(a fonte da pulsão, a zona erógena), o autista cria uma defesa autística, isto é, uma borda
autística contra a angústia que o encontro com o outro não esvaziado de gozo lhe desperta.
Componentes da borda autística, o duplo, os objetos autísticos e os interesses específicos
possibilitam um certo deslocamento em relação ao campo do Outro, permitindo ceder alguma
carga de gozo possível.
A borda pode ser pensada pela perspectiva da letra: não como suporte do significante,
mas, em última instância, como diz Laurent (2012/2014), como o que opera em qualquer
registro, amarrando-o como uma borda. No autismo, teríamos a clínica do gozo, intervindo na
borda para extraí-lo. Tomemos duas nuances de intervenção na borda: as vias do esvaziamento
e da construção. A depender do caso, do autista severo ao autista de alto funcionamento, haverá
diferentes nuances de intervenção, seja para esvaziar o gozo informe e excessivo, seja para
construir e refinar uma borda dinâmica. É uma clínica do detalhe, pois intervir no esvaziamento
de gozo, delimitando fronteiras com o real sem furo e sem descontinuidade, é também permitir
avanços na construção de uma borda.
Nesta seção, pretendemos propor a neoborda como direção do tratamento dos autismos
em psicanálise lacaniana. Para tanto, refaremos o percurso teórico com vistas a definir esse
conceito. Como vimos, o conceito de neoborda foi originalmente cunhado por Laurent
(2012/2014) em A batalha do autismo. Trata-se de um termo complexo que engloba muitas
noções conhecidas da psicanálise de orientação lacaniana, como as de borda autística, duplo,
interesse específico e objetos autísticos. Para defini-lo em nossa tese, precisaremos enveredar
por elas e por outros conceitos psicanalíticos, principalmente os que emergem da segunda teoria
lacaniana, a da clínica orientada pelo real. Como esclarece Pimenta (2014),

Com a entrada em cena do real que agita a harmonia das normas simbólico-imaginárias, surge
o conceito de objeto a. Nessa segunda teoria, o corpo se constitui como topológico, com um
furo central e sua borda. A superfície do corpo se erige ao redor da borda, sendo a via pela qual
sobrevém a identificação especular. Uma segunda operação simbólica é acrescida, a castração,
simbolizando o furo como falta, dando unidade ao corpo. Essa clínica do objeto a, ao dar lugar
especial ao gozo, se reconfigura por sutilezas não contempladas naquela primeira. (p. 1)

A subjetivação do corpo ocorre quando o significante, ao tomar o corpo, produz um


efeito de mortificação, de perda de gozo. Para que um sujeito emerja, é necessário um
tratamento do gozo. “É um gozo foracluído do lugar do Outro e que retorna para o real,
especialmente no corpo próprio” (Valas, 2001, p. 90).
71

Laurent (2012/2014) fala da construção de uma borda artificial que se apoia nos objetos,
no duplo e nos interesses específicos. Ele a chama neoborda, definindo-a como o que ocupa o
lugar do que está lá, quando não há limites do corpo. Essa neoborda é o lugar onde o sujeito
está situado: um lugar de defesa maciça, um lugar de pura presença. Daí observa-se, nos relatos
de autistas, incríveis achados de como eles criam ferramentas defensivas para se proteger do
real. Esse tratamento do gozo, pelo que formula Laurent, faz com que ele retorne sob uma
borda, diferenciando o autismo da esquizofrenia, em que o gozo retorna no corpo, da paranoia,
em que ele retorna no Outro, da neurose, em que o gozo retorna sob o objeto perdido, e, por
fim, da perversão, na qual o retorno do gozo ocorre no fetiche. Nesse sentido, “iremos constatar,
com efeito, que as modificações da posição subjetiva do autista implicam uma mobilização
necessária de seu gozo” (Maleval, 2009/2017, p. 13). É nesse pensamento que se funda nossa
tese, na construção de uma defesa contra o real, na construção de uma borda artificial.
A borda delimita um mundo interior de liberdade e poder, pois esse mundo se constitui
como uma proteção contra o mundo exterior. Todavia, é necessário salientar que tal borda se
dá como um tratamento complexo por parte do sujeito, em uma ocasião na qual ele pode, às
vezes, desenvolver admiráveis capacidades, designadas por Maleval (2009/2017) como “ilhotas
de competência”. A borda é, antes de tudo, uma proteção, mas é também — e especialmente —
o lugar do gozo do sujeito. É se conectando a esse lugar que o gozo encontra sua dinâmica.
A neoborda precede a instituição necessária de um espaço onde o autista poderá exercer
trocas de um tipo novo, articuladas a um Outro menos ameaçador. Esse lugar, que não é nem
do sujeito nem do Outro, é um espaço de jogo que se constitui pelo alargamento e pelo
deslocamento da neoborda (Laurent, 2012). Complementando: pelos dizeres de Laurent
(2012/2014), o que está em jogo, para a orientação psicanalítica, é a construção de uma “cadeia
singular que amalgame significantes, objetos, ações e jeitos de fazer- de modo a construir um
circuito que faça função de borda e de circuito pulsional” (p. 83). Pelos destaques do escrito de
Drummond (2018), é importante ressaltar que

Para os autistas, ligar-se à máquina da linguagem, ao Outro, depende de uma invenção própria.
Por isso, encontramos neles uma infinidade de invenções, desde o sujeito que fala por meio de
um computador, o que fala por meio de marionetes, o que fala em outra língua, o que lhe repete
o que lhe é dito ou final das palavras, o que só fala cantando ou o que só suporta que lhe falem
num certo tom ou cantando. Há também aqueles que fazem uso de um objeto que media sua
relação com o outro. (p. 42)

O tratamento se orienta, então, pelo deslocamento da neoborda e pela criação de ilhas


de competência, sugeridas pelo próprio sujeito. São nas ilhas de competência que se encontram
72

as invenções mais singulares dos autistas de alto funcionamento. Como disserta Alvarenga
(2018),

Para Éric Laurent, entrar em relação com o sujeito autista, confrontar-se com esse real, de uma
perspectiva psicanalítica, implica a invenção sob medida: ela deve incluir o que permanece no
limite de sua relação com o Outro: seus objetos autistas e seus duplos, que funcionam como
bordas. Não se trata de um duplo virtual, especular, tal como no estádio do espelho, mas de um
duplo real: o duplo funciona como uma borda do corpo do sujeito autista, que não tem corpo. A
função desse duplo seria, portanto a de fazer suplência a essa ausência de borda. “A inexistência
da borda do furo é apenas o redobramento da inexistência do próprio corpo, pois um corpo só
existe se um objeto pode separar-se dele — o que supõe a sustentação do olhar do Outro que
outorga um corpo e lhe dá uma consistência”. (p. 58)

No autismo, constrói-se uma borda a partir de um furo, introduzindo, metonimicamente,


outros objetos, assim como outros interesses específicos. Essa perspectiva permite diferenciar
finamente os fenômenos de borda dos acontecimentos de corpo e resulta em uma clínica
original, que recebe o nome de clínica do circuito. Para Laurent (2012/2014), o circuito
metonímico pode servir para a construção das bordas pulsionais.
A respeito do que o autismo ensina para a psicanálise sobre a metonímia, vale dizer que
esta é a maneira pela qual a cura tem efeitos de corporização, com o analista incidindo na
negativização de um corpo para provocar certa extração do objeto. O traçado do litoral é o que
arma um circuito pulsional, o que em outros casos consiste em decifrar um acontecimento de
corpo para que este envolva o sintoma. O tipo de uso da construção metonímica serve para
definir bordas pulsionais, precisando, ademais, armar as coordenadas de espaço e tempo.
Embora não seja um componente da neoborda, a clínica do circuito autístico é formalizada por
Laurent (2012/2014) como uma abordagem clínica para intervir sobre ela.

Em que consiste, então, a aplicação da psicanálise ao autismo? Trata-se de permitir o sujeito


livrar-se de seu estado de retraimento homeostático no corpo encapsulado. Podem instaurar-se,
então, um vai e vem de trajetos em torno do objeto do Outro, que levam o sujeito a desprender
de um objeto do corpo do analista; esse objeto vai entrar numa série de substituições,
construindo assim os rudimentos de uma metonímia, de um deslizamento de um objeto ao outro,
acompanhado ao mesmo tempo de uma colagem com o corpo do analista. (Laurent, 2012/2014,
pp. 54–55)

Em nota de rodapé, Laurent (2012/2014), ao falar da clínica do circuito, traz uma


preciosa citação de Miller: “Nessa clínica do circuito, os objetos são valorizados como
significantes” (p. 186). Seguindo a mesma construção argumentativa, Pimenta (2018) sintetiza
a dinâmica da clínica do circuito da neoborda, afirmando que,

Quanto mais amparado pela borda, mais recursos para interagir e se abrir ao laco social. A
posição do analista, no tratamento do autista, deve levar em consideração a identificação dos
recursos que o autista usa para tratar o Outro, ou seja, para colocá-lo em uma distância
suportável; instituir-se em uma posição passiva, de se deixar regular pelo autista; modular o
73

olhar e voz e usar falas não imperativas; realizar intervenções que visem a instituição de um
espaço de jogo, como afirma Laurent (2014); identificar e manter o objeto autístico protetor,
ajudando a torna-lo complexo; verificar o que ou quem está funcionando como duplo; discernir
e considerar a borda protetora que tenha sido instituída pelo autista; reconhecer o privilégio
dado ao signo e elaborar com o movimento de mimetizar a extração do objeto empreendido por
ele”. (p. 122)

Ora, se no significante está a supremacia da clínica da neurose, e se os objetos são


valorizados na clínica do circuito como significantes, então estamos tratando de algo muito rico
para a clínica do autismo. É pelo desenvolvimento da neoborda que podemos encontrar uma
forma de tratar o Outro no autismo.
A seguir, detalharemos os componentes da neoborda, dando amostras de nossa pesquisa
bibliográfica, com vistas à formalização desse conceito.

2.5 A Formalização dos Componentes da Neoborda

Para formalizar uma metodologia de estudo e tratamento do autismo centrada na via


conceitual da neoborda laurentiana, é necessário demarcar e identificar, nos casos clínicos,
alguns de seus componentes. Seguindo as pegadas de Pimenta (2018), que afirma que, para
“estruturar uma borda que institua o contorno de um corpo, ainda que superficial e frágil”, “o
autista conta com três elementos” (p. 123), detalharemos, a seguir, cada um destes, a saber: o
objeto autístico, o duplo e o interesse específico.

2.5.1 Os Objetos Autísticos

Sendo o objeto autístico um dos componentes da neoborda, cabe detalhar com mais
exatidão sua natureza. A primeira conceitualização dos objetos autísticos aparece com Francis
Tustin, e, para ela, os objetos autísticos funcionam como uma proteção contra a perda e,
portanto, não são seus substitutos (Tustin, 1975). Essa afirmativa nos leva a diferenciar os
objetos autísticos dos objetos transicionais e do objeto a, pois a existência desses últimos
implica a extração de um “espaço entre dois”. Ou seja, os objetos transicionais e o objeto a
exigem a presença de um sujeito submetido ao simbólico e às leis da linguagem, herdeiro das
operações que o constituem: a alienação e a separação.
O termo objeto, na teoria psicanalítica, adquire diferentes ordenações, sendo cunhado
por distintos teóricos. Ao longo da teoria freudiana, o conceito de objeto percorre um percurso
ramificado. Apesar dessas diferentes concepções teóricas, pode-se afirmar que, na teoria
74

psicanalítica, de forma geral, o objeto está ligado ao circuito da pulsão e a todo processo de
formação subjetiva.
Na teoria psicanalítica, comumente encontramos conceituações acerca do objeto, como
a dos objetos transicionais, cunhada por Winnicott (1971/1975), e a de objeto a, de Lacan
([1958–1959]/2016), que se diferem dos objetos autísticos. Estes se distinguem das demais
variantes de objetos por uma série de questões. As diferenças encontram sustento no diagnóstico
diferencial do autismo, pois a demarcação no corpo das zonas erógenas, os fenômenos de
desordem pulsional e a posição subjetiva diante do Outro estão em xeque nos sujeitos autistas.
Para diferenciar o objeto transicional do objeto autístico, é importante considerar que, para que
haja o primeiro, é necessária a perda do objeto pela criança, dando lugar a objetos substitutos,
por meio dos quais se pode alcançar alguma satisfação. Para Tustin (1975), os objetos autísticos
funcionam como uma proteção contra a perda e, portanto, não são substitutos.
O autista não experimenta a perda do objeto, pois, quando alucina, o que ele encontra é
um objeto real do mundo externo, o qual, no entanto, não foi investido libidinalmente por outro
ser humano, não abrindo espaço para a emergência das fantasias (Laurent, 1999). Por isso, o
autista não tenta recuperar um suposto objeto perdido, interrogando-se sobre os meios de obtê-
lo. Ele vive a experiência de satisfação de forma não inscrita, ou seja, no real do corpo.
O autista está radicalmente separado do Outro da linguagem, do tesouro dos
significantes. Ele não está colado ao corpo do outro ou em um processo de indiferenciação em
relação a esse, semelhante ao que agenciaria o grande Outro, caracterizando um dos principais
critérios do diagnóstico diferencial entre autismo e psicose infantil. Ameaçado pelo que lhe faz
alteridade real,

O autista procura romper todo laço com o Outro real, presente no para-além de seu mundo
seguro no mundo dos seres vivos imprevisíveis e inquietantes. Seu gozo chega a seu pensamento
de maneira caótica e inapreensível, do exterior de seu mundo, bem como do interior de seu ser.
(Maleval, 2009ª, p. 8)

Laurent (2007) ressalta a importância dos objetos para a formação de um corpo no


autista, afirmando que “o objeto-fora-do-corpo [...] é seguidamente tomado, encerrado no
interior do que se tornará corpo íntimo. Será sempre a produção de uma montagem do corpo,
ainda que seja um objeto fora-do-corpo” (p. 31). O objeto atua como um órgão suplementar que
as crianças tentam introduzir em seu corpo, como o órgão que conviria à linguagem.
A temática dos objetos autísticos foi resgatada por Maleval (2009b) em seu artigo Os
objetos autísticos complexos são nocivos?, no qual importantes questões abrem seu campo de
investigação: “por que o sujeito parece tão ligado a ele [o objeto]? A que serve esse objeto?
75

Pode o sujeito viver sem isso?” (p. 223). No caminho de sua investigação, Maleval pondera,
considerando a função do objeto autístico simples, que este seria, na perspectiva winnicottiana,
uma espécie de precursor do objeto transicional, apresentando a especificidade de ser ainda
percebido como “totalmente eu”. Para ele, no desenvolvimento normal, o primeiro se funde ao
segundo. Tal objeto mostra que a perda do objeto primordial de gozo dá lugar a objetos
substitutos, com os quais o sujeito consegue uma certa satisfação.
Partindo da premissa lacaniana de que “toda formação humana tem, por essência, e não
por acaso, de refrear o gozo” (Lacan, 1968[1967]/2003, p. 362), reforçamos a hipótese,
levantada por Maleval (2009b), de que a fixação do autista nos objetos não se reduz a
estereotipias sem fundamento. É, na verdade, uma repetição da ordem do gozo, em uma
constante tentativa de barrar seu excesso. Fazer barreira é constituir limites e fronteiras.
O uso dos objetos é uma invenção do autista para refrear o gozo, possibilitando um
endereçamento ao Outro que mobiliza aquele que é “encapsulado” em si mesmo. O autista
mantém com esse objeto uma relação de relocalização incessante, uma tentativa de situar-se.
Sobre os tipos de objeto, encontramos a classificação de Pimenta (2018), com base nas
proposições de Maleval:

O objeto autístico, aquele do qual falava Kanner, pode ser considerado simples ou complexo. O
objeto autístico simples não colabora para a interação social do autista, mantendo-o isolado e
protegendo-o das relações com as pessoas. Ele apresenta duas características principais: a
dureza e o dinamismo, que auxiliam o autista a se animar libidinalmente, tomando o objeto
dinâmico como um duplo. Por sua vez o objeto autístico complexo traz o simples como base,
mas o aprimora, de modo a contribuir para a composição corporal do autista e a decorrente
abertura para a interação social. A “máquina de apertar” de Temple Grandin é um de seus
exemplos, bem como a máquina elétrica construída por Joey. (p. 123)

Alguns autistas, denominados autistas de alto funcionamento, são capazes de escrever


sobre suas vidas. Entre eles está Temple Grandin, que, em entrevista a Sacks (2006), alerta
sobre o perigo de retirar os objetos de um autista:

Meu uso da máquina de pressão provocava polêmica entre terapeutas, amigos e parentes.
Chegaram mesmo a tentar tirá-la de mim. A longo prazo, isso me prejudicou porque fizeram
com que me sentisse culpada, como se o uso da máquina fosse algo pervertido ou doentio.
Precisei de muitos anos para superar esse sentimento de culpa e aceitar completamente o
aparelho. (p. 110)

A própria Grandin21 reconhece a importância da fixação nos objetos. Conforme relato


confiado a Sacks (2006),

21 Retomaremos o objeto autístico complexo de Temple Grandin na seção intitulada Um caso


paradigmático.
76

Quanto às fixações, é necessário canalizá-las para atividades positivas. A obstinação ou


persistência pode fazer milagres. Autistas adultos com alta capacidade de funcionamento
capazes de trabalhar e ter uma vida independente, muitas vezes trabalham no mesmo campo de
interesse de suas fixações infantis. Hoje sou uma bem-sucedida projetista de equipamentos para
a pecuária, com uma empresa própria. Quem poderia imaginar, vendo a menina esquisita que
eu era? (p. 148)

Na sua mais recente obra sobre o autismo, La différence autistique, Maleval (2021)
evidencia que o objeto autístico está ligado à construção de um sujeito, na medida em que
possibilita uma extração de gozo, pois ao autista, que tem sua identificação fálica deficiente,
esse objeto possibilita integrar um gozo excessivo.

2.5.2 O Duplo

A noção de duplo possui distintas gradações. Para iniciarmos nossa trajetória por esse
conceito, elegemos o texto freudiano O infamiliar (1919) como ponto de partida. Nesse texto,
Freud (1919/2019) retoma as ideias de Otto Rank, que realizou uma minuciosa apreciação a
respeito do duplo. Este, na perspectiva de Rank, guarda relação com os espíritos protetores e as
doutrinas sobre a alma, que, segundo Freud, servem como garantias contra o declínio do eu,
tratando-se de um “energético desmentido do poder da morte” (p. 69).
Para Freud, (1919/2019), “a alma ‘imortal’ foi o primeiro duplo do corpo” (p. 69).
Avançando nessa conjectura, ele assume que o duplo surge “junto com esse protonarcisismo
dos primórdios, pois, a partir de um desenvolvimento posterior do eu, ele [o eu] pode ganhar
um novo conteúdo” (p. 71), apresentando duas dimensões: uma delas superegoica e outra,
delirante.
Como postula Freud (1919/2019), o duplo que funciona como supereu “serve à auto-
observação e à autocritica, conduzindo o trabalho de censura psíquica” (p. 71). Trata-se do que
conhecemos como “consciência moral”. Nos casos patológicos, como o do delírio de ser
observado, no entanto, esse duplo é isolado, separado do eu, tornando-se perceptível ao
terapeuta, já que o sujeito o experimenta com estranheza. Freud considera o duplo algo
extraordinário devido ao grau de infamiliaridade do sujeito em relação a ele. A projeção do
duplo para fora do eu faz com que ele seja experimentado como um estranho.
A temática do duplo ganha destaque na obra O nascimento do Outro, dos Lefort (1984),
sendo inicialmente valorizado e considerado como extremamente importante para o autista.
Porém, em seus estudos, os Lefort concluíram que a relação dos autistas com os duplos seriam
intrinsecamente destrutivas. De encontro a esse tratamento, Maleval (2009/2017) afirma que o
77

duplo, com efeito, impõe-se ao autista como uma estrutura privilegiada capaz de fazê-lo sair de
sua solidão tranquilizante, oriunda de sua conformidade consigo mesmo. O duplo também o
torna apto a receber um gozo delimitado em que ele pode se apoiar. Desse modo, o duplo
apresenta-se como uma tentativa de esboço do campo do Outro, que permite alternativas de
enunciação suportáveis e de apaziguamento da angústia frente ao despedaçamento do gozo e à
falta decorrente do equívoco da linguagem. É importante destacar que, devido à não
identificação primordial com o traço unário22, a identificação através do duplo serve como uma
compensação imaginária protetora para o autista. Essa relação identificatória com os duplos
protege o autista e o auxilia na constituição de bordas protetivas, a fim de colocar ordem em
seu mundo. A preponderância do duplo é resultante da deficiência da identificação simbólica
no autista.
Para diferenciar o duplo autístico dos fenômenos do duplo encontrados na psicose,
Maleval (2009/2017) complementa:

De encontro ao que se observara nas psicoses, o duplo autístico não é fundamentalmente


persecutório, muito pelo contrário: o sujeito encontra nele, com frequência, um elemento
próprio para apaziguar os seus transtornos. Não é um objeto estranho e maléfico que testemunha
uma deslocalização do gozo; é um objeto familiar, sempre controlado ou considerado como um
amigo inerente ao mundo assegurado, e do qual o sujeito se vale de bom grado para tratar o
gozo pulsional. (p. 129)

Como afirma Pimenta (2018), duplo é o segundo elemento que concorre para a
elaboração de uma borda. O duplo pode ser uma pessoa, um animal ou mesmo uma personagem.
A ele, o autista se cola, dando-lhe equivalência. Em diferentes segmentos, o duplo pode ser uma
estratégia linguística, que se apresenta como personagem de desenhos e filmes, da qual o autista
se apropria de modo que passa a se comportar de forma similar, apresentando, inclusive,

22
Para melhor estruturar essa afirmativa, pretende-se discorrer sobre a hipótese, em desenvolvimento
no grupo de pesquisa sobre o autismo da professora Dr.ª Ângela Vorcaro, de que “[...] no autismo, os
traços mnêmicos carregados de sensações não se decantaram no traço unário distintivo e
incomensurável, só passível de ser representado pelas substituições significantes. O funcionamento
significante implica inibições que franqueiam a ultrapassagem do desapontamento da alucinação do
objeto de satisfação, com o consequente encaminhamento da atenção para as modalidades de adiamento,
antecipação e substituição implicadas na perda da ilusão alucinatória de satisfações que substituem esse
traço pelo significante. Sem a decantação do traço unário distintivo, ou seja, sem que o objeto de
satisfação tenha sido perdido, o juízo de existência – que reconhece a presença externa ou constata a
ausência exterior do que é apenas representado – só opera para reafirmar a diferença absoluta entre o já
representado e o percebido atual. Sendo impossível lidar com semelhanças e dessemelhanças implicadas
no semblante dos representantes da representação, o autista se mantém no plano do juízo de atribuição,
contando com traços consistentes das suas experiências, que busca reencontrar em sua iteração. Assim,
mesmo que a alucinação da satisfação não satisfaça, no autismo nada pode substituí-la, o que mobiliza
a insistência que quer reencontrar uma identidade perceptiva impossível. É o que parece dar lugar à
busca de imutabilidade do que lhe faz bordas e à angústia diante das alterações de seu entorno” (Vorcaro,
2019).
78

ecolalias em referência à personagem escolhida. De modo diferente, é possível que um duplo


seja inventado pelo sujeito, por meio de suas características, hábitos e interesses específicos.
Laurent (2012/2014) atrela a experiência do furo sem borda ao duplo, que emergiria
como uma presença que objetiva funcionar como “uma borda do corpo do sujeito autista, o
qual, por sua vez, não tem corpo — a função desse duplo, sendo, portanto, a de fazer suplência
a essa ausência de borda” (p. 99). Para ele, a ausência da experiência do espelho, no autista, se
reduz à formação de um duplo.
Caso consideremos com Freud (1915/2006) que o trabalho psíquico do sujeito é o de
estabelecer pontes verbais que ligam, fixam e conectam as representações das experiências que
ele mesmo destacou, podemos deduzir que o autista trabalha na busca de enlaces que fixam
representações a elementos concretos destacados da fluidez do mundo. A modalidade específica
de sua operação é a codificação, em que, com o corpo, ele ata, em signos, relações diretas e
recíprocas entre coisa e nome, uma a uma, de maneira a estabelecer, registrar e conferir algumas
estacas de orientação (Vorcaro, 2019).
Lacan ([1975]/1998), na Conferência em Genebra sobre o sintoma, ao ser questionado
a respeito do autismo, respondeu que os autistas são, sobretudo, “verbosos”. Ora, a linguagem
deles é solitária, não tendo, a princípio, serventia para a comunicação. A função que o duplo
promove é a de um suporte na linguagem, por meio do qual, por vezes, o autista consegue falar
“por procuração”, o que o protege do Outro invasivo. Embora seja um recurso, ele não possui
o estatuto, como diz Maleval (2009/2017), de enodar a linguagem com o gozo, pois, tomando
a cena do campo simbólico como proliferação caótica, o recurso do autista é, mesmo assim, a
própria linguagem: é da linguagem e na linguagem que esse sujeito opera as reduções sígnicas
capazes de referenciá-lo. Apurando, no campo da linguagem, elementos em operação recíproca
e contínua, o autista recruta-os para, com eles, fazer um código de signos fixos, alheios à
enunciação. Sem mensagem e sem equívocos, devido à exclusão das dessemelhanças, o
imaginário não se coloca a serviço de sustentar e amortecer a relação do simbólico com o real,
pois toda representação que ultrapassa a relação direta, imediata e unívoca é reduzida ao real,
inassimilável, e, portanto, está fadada à experiência avassaladora da angústia (Vorcaro, 2019).
Retomando o pensamento de Pimenta (2018), devemos dizer que a colagem do autista
com o duplo não pode ser confundida com outros modos de relação com o Outro. Não se trata
de uma identificação, no sentido técnico da palavra, mas de uma equação adesiva, que se dá por
meio de um transitivismo. A autora resgata um exemplo dado por Temple Grandin, quando, ao
almejar desenhar uma planta como um engenheiro que observava, imaginou-se sendo ele e fez
79

a planta que almejou. Não lhe restou nenhum aprendizado desse processo, pois, ao se descolar
do duplo, as habilidades figurativas, que eram do engenheiro, não mais lhe pertenciam.
Na relação entre o sujeito autista e o duplo, pode-se dizer que esse último se caracteriza
principalmente por não ser um objeto estranho e maléfico em relação ao sujeito, e sim familiar,
possibilitando a ele valer-se de seus recursos — até mesmo de partes do corpo de uma pessoa
— para obter o que é necessário e evitar, assim, qualquer sinal de enunciação ou pedido
(Maleval, 2012).
Em La différence autistique, Maleval (2021) acrescenta que a modalidade de
transferência no autismo se dá com o analista encarnando uma das funções de borda,
especificamente a do duplo. Tendo em vista que a borda permite dar lugar ao gozo do autista,
é por ela que se pode codificar os significantes e a representação dos signos. Para o autor, a
borda constitui um marco para o objeto perdido. No tratamento de autistas severos, quando o
analista é aceito, a criança o envolve como centro impulsor de seu gozo e inicia uma relação
fusional, de maneira que o transforma em um duplo dinâmico. Tal possibilidade de recorrer a
essa modalidade de transferência é um grande alívio.
Maleval (2021) diferencia o duplo autístico do duplo presente na psicose, pois esse
último é tido como um outro autônomo e malvado, ao qual o sujeito é incapaz de se impor,
restando-lhe destruí-lo. No autismo, o duplo é um objeto tranquilizador, dominado e admitido
entre os objetos familiares. É sob a assinatura de um assistente tranquilo que a transferência no
autismo se dá como possível. Para o sujeito autista, o duplo-analista seria uma estrutura de
apoio que o acompanha em suas criações e que se interessa por seus interesses específicos. De
início, muitos tratamentos se iniciam com a presença exclusiva do objeto autístico, o qual o
analista mentoriza e libidiniza para sua complexidade. É necessário ressaltar que não se trata
de um objeto a ser interpretado, mas cabe ao analista “intervir para atenuar e canalizar o gozo
em excesso e praticar um incentivo suave para instalar uma dose homeopática de mudança no
imutável” (Maleval, 2021, p. 350).
Segundo Maleval (2021), os autistas não se mostram divididos por seu inconsciente,
não colocando, pois, o analista na posição de sujeito que supõe que sabe sobre seu desejo. Pelo
contrário, quando os autistas esboçam seus interesses específicos, eles vão se tornando
verdadeiros autodidatas. É pela via de se tornar um assistente benevolente, discretamente ativo
e atento aos interesses específicos que o analista se configura como um duplo ao qual se permite
iniciar a transferência.
A função do analista na transferência com autistas não é a de interpretar as angústias.
Segundo Maleval (2021), o autista não busca nem um hermeneuta nem um educador; ele busca,
80

através da construção de sua borda, obter uma defesa maior contra o desejo do Outro. O analista
deve se integrar a essa construção, sustentando-a. O estabelecimento e a permanência da relação
transferencial dependem dessas condições.
Por isso, conclui-se este segundo ponto da formalização da neoborda reiterando que o
duplo funciona como “uma borda do corpo do sujeito autista, o qual, por sua vez, não tem corpo
— a função desse duplo, sendo, portanto, a de fazer suplência a essa ausência de borda”
(Laurent, 2012/2014, p. 99).

2.5.3 O Interesse Específico

O terceiro e último componente da neoborda que abordaremos é o interesse específico,


que diz respeito a certas obsessões de autistas em determinadas áreas do saber. O interesse
específico também possui níveis de apresentação, sendo inicialmente visualizado como
hiperfoco de interesses em determinados assuntos, objetos, áreas etc. e, em graus mais
complexos, em autistas de alto funcionamento, como uma capacidade intelectiva extraordinária.
Os autistas que desenvolvem interesses específicos foram historicamente classificados como
autistas savants, tendo sido incluídos na antiga síndrome de Asperger.
Segundo Asperger ([1943]/2015), o interesse específico normalmente se volta para uma
área de conhecimento muito estreita e isolada, cujo desenvolvimento chega a ser hipertrófico.
Para ele, o autista é um “cientista natural” que elabora questões praticamente científicas. Para
tanto, suas observações são realizadas através de um olhar que se volta de modo incomum para
o que há de essencial. O autista ordena suas observações de acordo com uma visão de mundo
e, a partir de então, constrói suas teorias, que, às vezes, são um pouco abstrusas. A menor parte
disso tudo foi ouvida ou lida por ele mesmo: ele sempre se refere a suas próprias experiências.
Os interesses específicos, que podemos chamar também de ilhotas de competência,
surgem como uma proteção para o autista. Porém, podem vir a se tornar uma verdadeira
competência cognitiva, a qual torna possível o estabelecimento de um laço social. Por vezes,
essas competências chegam a ser extraordinárias. “A borda é uma fronteira protetora que pode
se tornar o lugar de ostentação de uma ilhota de competência” (Maleval, 2010, p. 134). Assim,
encontramos autistas que se dedicam a interesses específicos, como as tecnociências, as artes,
a música, a computação, a física e a matemática.
Pimenta (2018) pondera que o interesse específico é um dos elementos que configura o
Outro de síntese do autista. Em suas palavras,
81

Esse conceito referencia a organização que o autista alcança por meio da composição de um
Outro de signos, que ordena alguns campos da realidade e localiza o gozo do sujeito.
Acoplando-se ao seu Outro de síntese, o sujeito autista liga-se a ele e desliga-se,
voluntariamente. Ele se configura sobre duas modalidades: fechada e aberta. Fechada ao laço
social, mas como um recurso orientador para o autista, ou aberta ao mundo e a interação. Um
enquadramento do gozo só se faz possível pela aquisição de algum dos dois mundos. (p. 124)

Introduziremos aqui o autismo de Daniel Tammet, uma grande referência de autista que
desenvolveu um interesse específico. Como conta Laurent (2012/2014), Tammet granjeou uma
reputação mundial por ter recitado em um teatro, em 2004, os algarismos que constituem o
número π até a 22.514ª casa decimal. Ele também quebrou a banca de um cassino em Las Vegas,
ganhando no Black Jack, um jogo essencialmente baseado em cálculo. Seu caso mostra como
é possível dominar, com uma facilidade que beira à simbiose, dois campos considerados
extremamente complexos pela maioria das pessoas: a matemática e a sintaxe, aprendendo, por
exemplo, o islandês em uma semana. Em conformidade com o pensamento de Asperger
([1943]/2015),

É possível que uma criança desse tipo, que surpreende o seu meio circundante através da
resolução de complexos problemas matemáticos, tenha graves dificuldades de assimilar os
métodos a serem aprendidos na escola, isto é, aqueles apresentados pelo meio externo. Outra
criança, por sua vez, tem principalmente interesses técnicos, possui um saber incrível a respeito
da estrutura de máquinas complexas — adquiriu esse conhecimento através de perguntas
minuciosas das quais não era possível esquivar-se e, principalmente, através de sua própria
observação. Ela se dedica a invenções fantásticas como naves espaciais e coisas semelhantes.
Nessas horas, percebe-se o quão distantes da realidade por vezes estão os interesses autistas. (p.
706)

Pimenta (2018) retoma a proposta de Maleval (2009/2017) e afirma que o Outro de


síntese é característica dos autistas eruditos [autistes savants]. O Outro de síntese aberto tipifica
a defesa dos autistas de alto nível, os quais Laurent (2012) faz coincidir com os sujeitos com
síndrome de Asperger. Essa é uma equivalência que nos faz refletir sobre os autistas que
desenvolvem seu Outro de síntese. Por possuírem a mesma função — a de vincular o autista ao
mundo —, as duas modalidades de Outro de síntese se dão por meio de uma passagem que pode
ocorrer entre elas de maneira gradual. No entanto, é bastante incomum alcançar o modo aberto
do Outro de síntese. Essa transição pode ser constatada pelas narrativas dos autistas de alto
funcionamento, quando descrevem suas ilhas de competência na infância ou seus gostos por
brincadeiras com a linguagem, que distinguem o Outro de síntese fechado, prévio ao Outro de
síntese aberto, elaborado por eles posteriormente.
Tendo sido apresentados de modo inicial a neoborda e seus componentes, pretende-se,
na escrita desta tese, aprofundar e maturar tais conceitos por meio da raiz epistemológica do
pensamento lacaniano, especificamente do “ultimíssimo Lacan”, privilegiando a clínica do real
82

e a do corpo topológico. Com isso, vislumbra-se, nos termos de Laurent (2012/2014), “fundar
uma abordagem psicanalítica renovada do autismo” (p. 102).

2.6 Um Caso Paradigmático

Analisaremos, nesta seção, o testemunho de Temple Grandin, o qual consideramos rico


em detalhes sobre a angústia corporal de um sujeito autista. As publicações sobre a condição
clínica dessa autista são de fácil acesso, haja vista que ela é nossa contemporânea, estando viva
no momento presente. A peça que utilizaremos em nossa tese é sua autobiografia, Uma menina
estranha, publicada originalmente em 1999. A literatura testemunhal dos autistas, como destaca
pertinentemente Maleval (2009/2017), é constituída de trabalhos criativos e autorais. Neles,
encontramos soluções singulares e originais, que retratam a compensação à falha da
incorporação plena do significante, a qual favorece o estabelecimento de mudanças na
economia de gozo e permite a saída do isolamento autístico (Bialer, 2014).
A análise de testemunhos não é algo novo em psicanálise. Maleval (2010), ao investigar
autistas de alto funcionamento, defende a utilização de estudos de casos clínicos recorrendo a
grandes nomes da pesquisa psicanalítica:

Freud e Lacan fazem ao contrário, a hipótese de que é partindo de formas mais elaboradas da
defesa psicótica que podemos compreender as formas mais arcaicas. Freud e Lacan privilegiam
a paranoia e as Memórias do Presidente Schreber para apreender a psicose. (p. 2)

Maleval (2010) prossegue, em seu argumento, afirmando que essa metodologia


“consiste em partir das formas mais altas da defesa, a fim de esclarecer posteriormente as
formas mais simples, a de Freud e Lacan para o estudo da psicose” (p. 2). É se servindo dessa
linhagem metodológica da tradição psicanalítica que Maleval afirma que “é o autismo de alto
desempenho, e o de Asperger, que deve permitir iluminar novidades sobre o autismo de
Kanner” (p. 2). Os testemunhos de autistas de alto funcionamento que se engajaram no
tratamento individual nos ensinam muito: eles podem ser encarados como um tipo de
laboratório de estudo do funcionamento subjetivo (Maleval, 2009/2017).
Nesta tese, destacaremos um caso que podemos, arriscadamente, designar como um
caso paradigmático de autismo de alto funcionamento. Sobre a noção de paradigma, Miller
(2011) nos propõe a seguinte reflexão:

O singular como tal é o incomparável, não é o exemplo, pode ser o paradigma, palavra usada
uma vez por Lacan, da qual fizemos lugar-comum. Pode ser o paradigma quando o deslocamos
em uma classe particular, na classe dos casos ordenados pelo caso-guia, o caso-referência. Para
haver paradigma é preciso haver a singularidade de um caso apreendido como incomparável.
83

Em seguida, engancham-se vagões a essa locomotiva que parte sozinha, tal como o gato de
Kipling. (p. 102, tradução nossa23)

Em vista desse argumento, podemos definir que Grandin é nosso caso paradigmático de
referência. A singularidade desse caso nos permite identificar e analisar a presença dos
componentes da neoborda autística, a qual aponta para um elemento estrutural, que, por
tangenciar o real, revela o mais alto nível de elaboração do Outro.
Temple Grandin tem 73 anos24, é professora da Universidade do Colorado, na área de
zootecnia, e, além de famosa por ser uma autista de alto funcionamento, ganhou destaque por
revolucionar as práticas de tratamento de gado em abatedouros e fazendas, desenvolvendo
técnicas e fazendo um apelo por práticas humanizadas. A publicação científica de Temple é
ampla e varia desde textos técnicos, sobre veterinária, zootécnica e autismo, até concepções
gerais e testemunhos autobiográficos. É desses últimos que nos valeremos em nossa tese.
É de suma importância destacar que Grandin foi uma autista severa na infância, com
mutismo prevalente e defesa maciça ao contato físico. Ela, ao longo de suas soluções
autoterapêuticas, pôde sair de sua posição severa, abrindo-se mais para o Outro e para o laço
social. Como ela mesma explica,

Só comecei a falar com três anos e meio. Até então, gritos, assobios, e murmúrios de boca
fechada eram meus únicos meios de comunicação. Talvez fique mais fácil de entender se eu
disser logo que me puseram o rótulo de autista. (Grandin & Scariano, 1999, p. 17)

O percurso de vida e as soluções encontradas por Grandin são de uma riqueza que nos
faz elevar esse caso ao estatuto de um paradigma. Ela, ao longo de seu testemunho, detalha
inúmeras tentativas de construção de um aparelho25. É em seu depoimento que se encontra uma
elaborada forma de objeto autístico complexo.
Em seu testemunho, Grandin expõe seu corpo necessitado de bordas protetivas: “Desde
a segunda série, comecei a sonhar com um aparelho mágico que pudesse exercer um estímulo
de pressão intensa e prazerosa sobre todo o meu corpo” (Grandin & Scariano, 1999, p. 37).
Algo do gozo aparece, e a necessidade de uma borda autoprotetiva lhe surge como um “recurso
mágico”: “Não imaginei essa máquina maravilhosa como substituta para os abraços da minha

23
No original: Lo singular es como tal lo incomparable, no es el ejemplo, puede ser el paradigma-
palabra que Lacan usa una vez y que nosotros promovimos a la categoría de lugar común cuando lo
desplazamos em una clase particular, la de los casos que se ordenan con este caso-faro, el caso
referencia. Para que haya paradigma, se necesita que exista la singularidad de un caso tomado como
incomparable, como una locomotora a la que después le adosamos vagones y que se va sola como el
gato de Kipling.
24
Idade referente ao ano de 2021.
25
Esse aparelho é chamado, nas diferentes traduções, de máquina do abraço, máquina de pressão ou
brete. No original, em inglês, o termo empregado é squeeze machine.
84

mãe, mas como algo que estaria a minha disposição o tempo todo para me aliviar”. E
complementa: “quando eu era criança, porém, como não tinha nenhum recurso mágico que me
consolasse, costumava me enrolar em um cobertor, ou me cobrir com almofadas do sofá́ , para
satisfazer meu desejo de estímulo táctil” (p. 27). Em vista desse estímulo tátil, podemos inferir
que a angústia se apresenta nas superfícies corporais de Temple. É por meio dos objetos do
mundo exterior que ela realiza tentativas de solucionar seu caos sensorial. Diante dessas
tentativas, uma cena bem ilustrada por ela evidencia seu ritual antes de dormir: “À noite eu
esticava ao máximo os lençóis e cobertores antes de entrar debaixo das cobertas. Às vezes
pendurava cartazes de papelão à frente e atrás do meu corpo, como um homem sanduíche,
porque gostava da pressão contra meu corpo” (p. 37).
Parece-nos importante essa questão do controle sobre a pressão contra o próprio corpo,
pois, como Grandin (1999) afirma: “o que era o mais importante até mesmo em minha
imaginação, era eu quem controlava a intensidade da pressão exercida pelo forro plástico” (p.
40). Ao sonhar com uma roupa plástica que inflava em seu corpo, como uma roupa de
astronauta, essa roupa cumpria alguma função, mesmo que no campo da imaginação ou do
sonho. Era uma rotina simbólica seus projetos imaginários: “Meus projetos imaginários eram
uma fixação — uma obsessão que ia sendo refinada e aperfeiçoada a cada máquina mágica que
eu criava em minha mente” (p. 41).
A estimulação tátil merece destaque nas teorizações de Grandin sobre o autismo, sendo
impressionante a articulação que ela faz entre o estudo dos animais e a condição humana.
Mestra e doutora em ciência animal, ela utiliza seus saberes acadêmicos para demostrar a
importância de se estimular os animais e os bebês: “Estudos sobre animais mostraram que
mudanças neuroquímicas ocorrem de imediato, em resposta a caricias reconfortantes. A
incapacidade que a criança autista tem com estímulos tácteis reconfortantes pode ser uma das
causas de anormalidades neuroquímicas” (Grandin & Scariano, 1999, p. 187). Grandin vivia às
voltas com essa discussão, pois ela mesma foi uma criança que não suportava ser tocada. A
máquina do abraço talvez lhe servisse de suplência. Ela tanto reconhece isso, que ainda
desenvolve um argumento sobre a importância precoce dessas estimulações: “Nos bebês
autistas, a estimulação táctil, como caricias e abraços podem desenvolver um desenvolvimento
mais normal, mesmo que o bebê se mostre indiferente aos caminhos, tal prática ainda pode ser
benéfica. Se o bebê resistir ao toque, precisa se gradualmente “treinado” a tolerar o toque
reconfortante” (p. 187). Ela apoia seu argumento em estudos cerebrais, afirmando que,

Quanto mais um bebê viver sem experimentar o sentimento de ser reconfortado, maior é a
probabilidade de que os circuitos cerebrais envolvidos nos desenvolvimentos de contato
85

emocional com os outros sejam prejudicados. Vários estudos com animais demostram que os
cerebrais que estão em uso constante tornam-se maiores. Os circuitos que são usados serão
conservados, enquanto os circuitos ociosos tendem a encolher. Se o nenê não empregar seus
circuitos “de sentir”, eles podem encolher”. (Grandin & Scariano, 1999, p. 187)

Aqui convém introduzir o surgimento do duplo na vida de Grandin. Podemos deduzir


que ele surge no estabelecimento de seu laço com os animais: os equinos e, sobretudo, os
bovinos. O duplo aparece como um trabalho subjetivo viabilizado após a elaboração de
importantes compensações psíquicas. Seus vínculos com os animais se solidificaram em uma
escola para crianças especiais, na qual ela se aproximou dos cavalos que tinham distúrbio de
comportamento por terem sido abusados e maltratados anteriormente, ocasionando problemas
emocionais reativos. Ela ficava, durante seu tempo livre, junto aos cavalos, afirmando ter
estabelecido com eles uma relação de parceria. Podemos inferir que os equinos e os bovinos
serviram de duplo para Grandin, dada sua identificação especular com eles. Os comportamentos
dos animais a faziam refletir sobre seu próprio corpo, e, a partir disso, ela conseguia refletir
sobre seus sentimentos.
Enquanto tropeçava nas tentativas de construção de bordas simples para seu corpo,
Grandin pôde chegar à imagem de seu objeto autístico, por efeito da contingência. Ao passar
uma temporada na fazenda de sua tia Ann em contato intensivo com os animais, que eram suas
fixações, ela os viu presos no brete, uma máquina utilizada para imobilizá-los com vistas à
realização de algum procedimento, como a aplicação de vacina. O que chamou a atenção de
Grandin nessa situação foi o estado emocional dos animais: “assustados e nervosos, eram presos
no brete e, depois da pressão suave dos painéis, iam se acalmando” (Grandin & Scariano, 1999,
p. 93). Identificada aos animais, por eles exercerem a função de duplo, ela pediu à tia para ela
mesma ser posta no brete. Em seu testemunho, ela detalha a primeira vez que utilizou tal
máquina:

Primeiro ajustei a passagem para a cabeça de modo a acomodar a altura da minha cabeça quando
eu me pusesse de quatro, e depois entrei na passagem para a cabeça de modo a acomodar a
altura da minha cabeça quando eu me pusesse de quatro, e depois entrei na passagem. Ann
puxou a corda que fazia os painéis do brete me pressionarem. Logo senti a pressão firme dos
lados do corpo... O efeito era estimulante e relaxador. Porém, o que era mais importante para
uma pessoa autista, era eu quem exercia o controle. O brete me dava alívio de meus ataques de
nervos, como era de se esperar fiquei fixada naquilo. (Grandin & Scariano, 1999, p. 93)

A preciosidade desse relato encontra-se no nascimento de um objeto autístico,


aparentemente simples, que se tornou instantaneamente uma fixação. Essa situação ilustra a
descrição de Maleval (2012) de interesse específico, que, como aludimos, consiste em um dos
componentes da neoborda autística.
86

Grandin construiu seu próprio brete, e, na primeira versão de sua máquina, ela percebeu
que precisava ser presa e solta por outra pessoa. Diante disso, ela a reformou, de maneira que
pudesse fechá-la ou abri-la por conta própria. Já tendo construído sua máquina de contenção e
podendo se espelhar nas emoções dos bovinos, Grandin pôde entrar em contato com suas
emoções, vivenciando o sentimento de empatia por outros humanos e a vontade de cuidar,
afirmando que foi o cuidado com o gado no matadouro que a tornou mais humana, abrindo-a
para o laço social.
Grandin vivenciava a máquina por transitivismo, através do duplo-bovino. Nas páginas
finais de sua autobiografia, ela inclui um apêndice — Apêndice técnico C — com informações
técnicas para pais, professores e outros educadores que estejam lidando com pessoas com
autismo. Nesse apêndice, ela apresenta uma descrição mais completa da máquina de pressão.
Parece-nos que ela consegue, nesse momento, sintetizar seu objeto em um nível mais complexo.
“A máquina de pressão é toda forrada com uma espessa camada de espuma de borracha, coberta
com um material plástico de forração com avesso de tecido” (Grandin & Scariano, 1999, p.
187). Sobre a experiência de uso da máquina, ela ressalta: “Ela aperta o usuário com muita
firmeza, mas traz alívio e conforto. O acolchoamento é projetado para se ajustar ao corpo do
usuário, proporcionando uniformidades dos pontos de pressão” (p. 187). A preocupação com
os detalhes do aparelho está diretamente ligada ao fluxo de sensações:

O sentimento da pressão é dominante e cria um ambiente tranquilizador. Ao mesmo tempo, o


cérebro recebe muitos impulsos pela pressão. A pressão aplicada pela máquina ativa os
receptores de pressão de cada ramal nervoso da medula espinhal. (p. 187)

Nessa descrição, Grandin destaca aquilo que, ao longo de seu testemunho, ela
considerou importante sobre a máquina: “Depois que o usuário se prende a máquina, não tem
como se retirar ou enrijecer-se para evitar a sensação de estar envolvido. É muito importante
que o usuário tenha o controle do aparelho” (Grandin & Scariano, 1999, p. 188). Outro ponto
que merece ser destacado e parece ser uma conclusão de sua experiência sensorial ou, melhor
dizendo, da construção de sua borda autística é o que aparece como efeito da máquina:

Ele precisa ser capaz de operar os controles e reduzir a pressão a qualquer momento. Depois de
ter passado de dez a quinze minutos na máquina, a pressão constante, o efeito de alívio vai
diminuindo à medida que o sistema táctil se habitua a ela. Para conservar o efeito de alívio e
reconforto, o usuário precisa ir diminuindo a pressão bem devagar, e depois faze-la aumentar
lentamente de novo, até que torne a atingir um nível que produza a sensação de conforto. (p.
188)
87

Devido à facilidade que tem para construir “engenhocas” e à destreza com a qual
executa trabalhos manuais, como ela mesma relata em seu livro, podemos conjecturar a
engenhosidade de Grandin na construção de seu artefato:

A máquina é acionada por um compressor de ar, que opera um cilindro de ar ligado aos painéis
por meio de polias. Já que a máquina é movida a ar comprimido, ela produzirá uma pressão
constante, mesmo que o usuário mude de posição. [...] A abertura para o pescoço permite que
a pessoa possa apoiar os ombros nela. Quando a abertura se fecha em torno do pescoço, ela
reforça a sensação de ser envolvido pelo abraço da pressão. (Grandin & Scariano, 1999, p. 189)

Figura 5. Máquina do abraço.


Fonte: Grandin, 1999.

Ao longo dos anos, Grandin foi aperfeiçoando seu objeto, o qual se tornou um objeto
autístico complexo, fazendo função de borda em seu corpo e em todo seu ser. Até o momento
da escrita de sua autobiografia, percebemos como ela tenta significar o brete em sua vida. Seu
ato de escrita possivelmente tem a função de nominação26: “Muitas vezes, no brete, eu tinha
sensações prazerosas e pensava no amor” (Grandin & Scariano, 1999, p. 97). Pensar sobre o
brete fez com que ela se lembrasse de devaneios da infância:

Quando criança, costumava imaginar um esconderijo de mais ou menos um metro de largura


por um de altura. E o brete que acabei construindo era aquele esconderijo secreto, tão desejado
nos meus sonhos infantis. Às vezes eu me perguntava se aquele brete não iria tomar conta de
mim e me impedir de sobreviver sem ele. E então compreendi que o brete era apenas um
aparelho de imobilização feito de restos de compensado. Era um produto de minha mente. Os
mesmos sentimentos que eu tinha no brete podiam me ocorrer fora dele. Os pensamentos eram
criações da minha mente, e não do brete. Quando entrava no brete, sentia-me mais próxima de
pessoas como minha mãe, o sr. Peters, o sr. Brooks, o sr. Carlock e a tia Ann. Embora fosse
apenas um aparelho mecânico, o brete derrubou minha barreira de defensividade táctil, e eu
poderia sentir o afeto e a preocupação dessas pessoas, conseguindo exprimir meus sentimentos
por mim mesma e pelos outros. Era como se uma porta pantográfica tivesse sido aberta,
revelando minhas emoções. (Grandin & Scariano, 1999, p. 97)

26
Pretendemos desenvolver em nossa tese o tema da nominação no autismo.
88

Os dizeres de Grandin evidenciam como o aparelho construído por ela se tornou


complexo, quantas significações ela pôde dar a ele e quantos efeitos ele mesmo pôde produzir,
para além de derrubar a “barreira de defensividade táctil”. Tendo cumprido sua função inicial
de borda, o objeto autístico de Grandin lhe serviu como um recurso para aparelhar os afetos e
a linguagem e também como uma ferramenta para o laço social. “Não tenho a menor dúvida de
que o brete e a minha porta simbólica foram instrumentos para aperfeiçoar minha atividade
escolar e as relações com outras pessoas” (Grandin & Scariano, 1999, p. 108). À medida que
foi se distanciando da dependência do uso constante da máquina, ela pôde encontrar uma nova
solução: “só depois de ter tirado uma foto (que eu mandei ampliar e emoldurar) de mim mesma
no brete, pude encarar meus medos” (p. 108). Esse distanciamento sinaliza a estabilização da
borda protetiva, pois o objeto não precisa mais ser um órgão suplementar. “Estava chegando
finalmente ao ponto em que conseguir pensar no meu brete com prazer e afeição. E isso me
permitia ter uma atitude mais favorável em relação a outras pessoas” (p. 118).
Sobre a convergência do objeto com a linguagem, Grandin parece reflexiva
considerando a dinâmica e o poder de sua máquina. Dessa reflexão, ela parece extrair o
significado e a função do objeto em sua vida:

Às vezes eu me perguntava se aquele brete não iria tomar conta de mim e me impedir de
sobreviver sem ele. E então compreendi que o brete era apenas um aparelho de imobilização
feito de restos de compensado. Era um produto de minha mente. Os mesmos sentimentos que
eu tinha no brete podiam me ocorrer fora dele. Os pensamentos eram criações da minha mente,
e não do brete. Quando entrava no brete, sentia-me mais próxima de pessoas como minha mãe
[...] embora fosse apenas um aparelho mecânico, o brete derrubou minha barreira de
defensividade táctil, e eu podia sentir o afeto e a preocupação dessas pessoas, conseguindo
exprimir meus sentimentos por mim mesma e pelos outros. (Grandin & Scariano, 1999, p. 97)

O autista mantém com seu objeto uma relação de relocalização incessante, uma
tentativa de situar-se. Para uma provisória conclusão, podemos questionar se a máquina de
pressão de Grandin fez função sinthomática, enodando os registros. Diante de suas palavras,
parece-nos que ela chegou a esse nível de elaboração:

Vocês estarão provavelmente perguntando o que isso tudo tem a ver com o sentimento de
finalidade. Muito. Deus, seja o que for, e o acaso formaram a estrutura genética que me criou,
e alguma coisa aconteceu no processo que desconectou o “fio” do cérebro que faz uma criança
sentir-se atraída por sua mãe e por outros seres humanos que lhe oferecem afeto. Só quando
cresci o suficiente e adquiri o talento necessário para construir minha máquina de pressão foi
que essa conexão foi reparada. (Grandin & Scariano, 1999, p. 112)

Parece-nos que, nesse talento necessário, se inscreveu um savoir-y-faire, o qual permitiu


reparar uma conexão, um enodamento em sua estrutura. Sabemos que, nos casos clássicos, o
autista não se serve da linguagem para fazer discurso social: ele não assume uma voz
89

enunciativa, não cedendo ao outro sua voz. Muitos autistas fazem conexão com a linguagem,
embora não a usem para se comunicar, e sim para se deleitar fora do discurso do mestre, como
esclarece Lacan ([1953–1954]/1986) no Seminário I, ao dizer que Dick é mestre da linguagem.
Por vezes, o autista fala para não ser compreendido. Cifrar o controle e se proteger do Outro,
permanecendo fora do discurso do mestre, parecem ser uma constante em sua vida. Por vezes,
ele usa a palavra desabitada de seu uso comum, sem intenção de demanda ou endereçamento.
Seu isolamento condiz com sua exigência de imutabilidade.
Grandin, de certo modo, está longe da descrição feita acima, embora seja possível
verificar em sua autobiografia a presença de imutabilidade, estereotipias, gozo do Um,
mutismo, ecolalia e voz mecânica, sobretudo no início de sua vida. Os fenômenos de retorno
do gozo sobre a borda — os objetos autísticos, os duplos e os interesses específicos —,
definidos anteriormente como componentes da neoborda, surgem no decorrer de sua vida, em
momentos de uma construção mais elaborada de seu ser.
Sabemos que Grandin foi uma autista severa, em pleno mutismo, até os três anos e meio
de idade. Diante disso, para responder nosso questionamento, precisamos privilegiar momentos
da vida desse sujeito em que ele já fazia um bom uso da linguagem. Essa escolha não foi feita
sem propósito. Com Grandin, podemos constatar que o autista está em constante trabalho para
construir uma topologia própria que delimite os espaços, modulando o gozo e possibilitando-
lhe lidar com o Outro. Essa construção não se dá de forma pedagógica, e sim pelo encontro
contingente. Como a própria Grandin reflete: “Como é que um instrumento grosseiro, rude
quando usado com animais, também podia ser empregado para estimular a delicadeza e a
solitude?” (Grandin & Scariano, 1999, p. 120). Essa foi uma solução tão singular para ela, que
em determinado momento ela precisou ser impositiva: “é preciso enfatizar que a máquina de
pressão não é recomendada como panaceia para todas as crianças autistas” (p. 105).
Esse dizer nos leva a questionar se a invenção de Grandin tem o caráter de sinthoma.
Podemos falar de sinthome no autismo?27 A partir dessa invenção, podemos aferir os efeitos de
nominação, produção de furo e enlaçamento dos registros R.S.I. A experiência clínica e os
testemunhos nos ensinam que são os circuitos iterativos do autista que dão provas de sua
imersão no real. São circuitos que, como bordas, tentam inscrever o encontro traumático com
lalíngua.

27
Tal questionamento surgiu a partir de uma disciplina cursada no doutorado, sobre a clínica nodal com
adolescentes. Embora nada tenha sido teorizado antes sobre o sinthoma, o questionamento precisava ser
inserido na discussão inicial sobre nosso caso paradigmático. Elevar o conceito de neoborda ao estatuto
de sinthoma parece algo muito rudimentar ou inexato, que pode ser descartado ou assimilado após a
aquisição de novos dados da pesquisa.
90

Podemos pensar o sinthome como um modo de produzir uma neoborda corporal? O que
sabemos é que o sujeito autista nos ensina que essa é uma clínica da invenção, do savoir-y-
faire. Porém, isso pode ser elevado ao estatuto do sinthoma? Para concluir, vale resgatar os
dizeres de Grandin: “é simples: nas aulas de costura eu estava criando alguma coisa, e tinha um
talento especial para o bordado” (Grandin & Scariano, 1999, p. 44). Seu bordado serve de
metáfora para um savoir-y-faire, o qual a fez bordar sua estrutura.
91

3 CASO CLÍNICO

3.1 Apresentação e Descrição Metodológica

Datar uma história é importante, mas a temporalidade simbólica mostra que nem sempre
é possível apreender seu verdadeiro início. Quando nasce uma criança? Quando nasce um caso
clínico? A história que iremos contar enreda uma criança a sua família, duas analistas e duas
instituições. Para garantir o sigilo, preservamos o nome próprio da criança, elegendo o nome
fictício Tom Sawyer. A escolha por esse nome decorre do significante aventura, que surge da
própria criança ao intitular o livro sobre sua história — livro este que será relatado na conclusão
do caso. Tal significante me possibilitou um retorno às minhas memórias, especificamente à
leitura de um livro de minha infância: As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain
(1876/1984). Esse livro conta as aventuras e peripécias de Tom Sawyer, tendo exercido grande
influência na cultura norte-americana do século XX. Ter escolhido uma personagem de língua
estrangeira, e considerando que Tom Sawyer é também o nome de uma música da banda de
rock progressivo Rush, me parece estar em sintonia com as discussões presentes a posteriori.
No decorrer da escrita, utilizarei apenas o nome Tom.
Tom nasceu em um dia de Natal, em 25 de dezembro de 2015. Seus pais, estudantes da
UFMG, tinham como referência docente a professora Ângela Vorcaro, a qual era professora de
seu pai. Ângela foi eleita pelo casal, mais adiante, como analista de seu filho.
Em 2019, eu, recém-chegada de minha cidade natal, Recife, Pernambuco, iniciei meus
estudos de doutorado, tendo Ângela Vorcaro como minha orientadora. No curso do ano de
2019, Ângela me convidou a conhecer um de seus pacientes em seu consultório, de modo a
discutir questões clínicas suscitadas pelo caso. Nesse primeiro encontro, não houve uma
interação direta com a criança, pois me coloquei na cena como uma estrangeira, sem
compreender os códigos da linguagem que marcavam a cena do brincar com sua analista. Nesse
dia, conheci B., pai de Tom, e Ângela Vorcaro propôs a ele a ampliação dos atendimentos da
criança, com atendimentos domiciliares. Com o consentimento dos pais, S. e B., passei a ter
encontros com Tom em sua residência. Segundo Ângela, Tom demandava um espaço físico
maior, mais familiar, em que seus recursos próprios pudessem ser desdobrados, com menos
intervenção dos enquadres estabelecidos pelo Outro.
Fugimos à tradição do consultório nesse momento, com o propósito clínico de inverter
a ordem: em vez de a criança se submeter ao Outro-analista em seu consultório, longe de seus
objetos, o analista se submeteria, antes, ao campo experiencial que a própria criança já
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estabelecera, pedindo licença para entrar. Passei a frequentar a casa de Tom duas vezes por
semana, conhecendo suas rotinas, seus objetos e seus circuitos do brincar. Esse tempo do
tratamento durou por volta de seis meses, até o advento da pandemia de COVID-19, que
preconizou a medida sanitária de isolamento social. Tentando preservar o que já fora articulado
com minha presença, demos curso ao atendimento de modo on-line, o que perdurou algum
tempo, até um momento crítico de aumento da angústia de Tom, quando decidimos pelo
encaminhamento para uma instituição em que a criança, então apartada da vida social e escolar,
tivesse encontros com outras crianças.
Considerando as sugestões dos participantes de minha banca de qualificação de
doutorado, em setembro de 2022, solicitei gentilmente aos pais de Tom a permissão para
escrever o caso, objetivando inseri-lo em minha tese. Explicitei as razões, justificando a
importância de apresentar a direção de tratamento do caso clínico para o meio universitário. Por
seu caráter longitudinal, o caso nos permitiria discutir os conceitos atuais sobre o autismo que
me orientavam, possibilitando elucidar entraves teóricos e operacionalizar, a partir da prática,
os modos de abordagem referidos às hipóteses. O aceite se deu por uma fala muito bonita da
mãe: ela decidiu pelo tratamento psicanalítico por causa da leitura do livro O tratamento
psicanalítico de crianças autistas, das autoras Ângela Vorcaro e Tânia Ferreira; ela afirmou
que “se a entrada do tratamento psicanalítico se deu por um livro, nada mais justo que ele seja
escrito e publicado”. A mãe relatou que, ao mesmo tempo, leu um livro sobre a Análise do
Comportamento Aplicada28, mas foi o livro de psicanálise que, mesmo sem deixar clara muita
coisa, a emocionou. O pai concordou com o pedido feito, problematizando que o único que
ainda precisaria dar o aceite era o próprio Tom.
Em uma sessão no mesmo mês, em meio a uma brincadeira de criação de mapas de
tesouro, perguntei a Tom se ele gostaria de fazer um livro sobre nós e todos nossos encontros
brincantes. Ele consentiu dizendo ser uma “ótima ideia, você escreve, eu desenho”. Vale
advertir ao leitor que essa fala da criança, tangível e clara, é do ano de 2023, decorrente de um
longo tratamento que perdura até o momento, o qual teve início em 2018, quando sua fala
obedecia a outra modalidade de funcionamento.
O locus da pesquisa foi uma instituição clínica situada na cidade de Belo Horizonte,
Minas Gerais, recomendada por minha orientadora como atividade complementar da pesquisa,
à qual estava vinculada, atuando como psicóloga e psicanalista. O Espaço Nardin é uma

28Abordagem teórica que estrutura os protocolos comportamentais de aprendizagem, hoje tidos como
referência no tratamento de pessoas com autismo, tais como a ABA (Applied Behavior Analysis).
93

instituição especializada em diagnóstico e tratamento interdisciplinar integrado de crianças e


adolescentes com foco em transtornos do neurodesenvolvimento. A coleta de dados foi
realizada nas dependências da instituição, abrangendo desde a análise documental até as
entrevistas semiestruturadas, as quais eram agendadas com os pais, por se tratar de uma criança.
Para a construção desse caso clínico, baseamo-nos nos seguintes instrumentos: relatos de
sessão; transcrições de vídeos de sessões; transcrições de vídeos caseiros cedidos pela família;
e transcrições de entrevistas semiestruturadas com os pais da criança. A apresentação desses
dados oferece uma escrita distintiva, para localizar o leitor de onde partem as enunciações:
1. American Typewriter será a fonte utilizada para as falas do analisante;
2. Times New Roman, em itálico, para a fala dos pais;
3. Andale Mono, para a fala de professores e representantes da escola;
4. Arial, para as falas do estagiário, João;
5. Book Antiqua, para minhas falas.
Considera-se necessária essa diferenciação da grafia da escrita para que o leitor se
localize diante de cenas retratadas, em que, por vezes, se confunde o referente nos recortes
eleitos para ilustração. É necessário também advertir o leitor que todas as cenas transcritas e
colocadas nesta tese nunca tiveram como objetivo inicial servir de ilustração para um estudo
acadêmico. Os vídeos domésticos não eram filmagens demandadas durante o tratamento
psicanalítico, sendo exclusivamente frutos da espontaneidade familiar, os quais foram ofertados
pelos pais mediante o pedido de uso para construção do caso clínico. A princípio, não se
imaginava que esses vídeos ilustrariam, com riqueza de detalhes, cenas importantes para a
escrita do caso, dando a possibilidade de transcrição fonética da fala da criança.
Inesperadamente, esses vídeos tomaram um protagonismo na escrita inicial do caso, pois,
devido à reclusão social decorrente da pandemia de COVID-19 e à suspensão dos atendimentos
presenciais, foi possível capturar deles, em alguma medida, o que se passava com a criança e
sua família em um momento tão difícil. Os vídeos de fragmentos de sessões, em menor
frequência, foram selecionados após a decisão da escrita do caso; como também não tinham o
objetivo inicial de um estudo acadêmico, eles são apenas fragmentos que, no momento, foram
julgados que, pela presença do objeto câmera-celular, tinham um lugar na cena transferencial,
retratando apenas um pequeno recorte da sessão. Os relatos escritos reproduzem uma escrita
em outro tempo, já impregnada com a leitura simbólica da analista, a qual os destinava para o
prontuário clínico.
Em fevereiro de 2023, esta pesquisa foi aceita pelo Comitê de Ética em Pesquisa com
seres humanos da UFMG. Os materiais clínicos aqui utilizados ficarão em posse da
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pesquisadora na íntegra e serão armazenados por cinco anos, salvaguardando sua consulta,
assim como o termo de consentimento livre-esclarecido utilizado.

3.2 Primeiro Tempo de Atendimento: A Primeira Analista

Em setembro de 2018, a criança (com 2 anos e 8 meses) foi recebida, por demanda dos
pais, para avaliação e subsequente atendimento, contratado duas vezes por semana. Após o
retorno da avaliação para ambos os pais, o pai assumiu a condução da criança ao tratamento,
levando-a à clínica sistematicamente. Esse compromisso foi interrompido devido a uma grave
infecção que atingiu o coração e o cérebro do pai, tendo sido este internado e operado com
complexa recuperação.
A despeito de ter recebido anteriormente o diagnóstico médico de autismo, os seis meses
de atendimento clínico longitudinal e contínuo da criança confirmaram e desdobraram a
avaliação inicial. Não foi constatado o enquadramento da criança na tipologia de autismo. Isso
porque, justamente, o funcionamento subjetivo de Tom não é pertinente às duas condições
básicas para o diagnóstico do autismo, tal como distinguido por Kanner (1943) e sublinhado
por Maleval (2009a), a saber: a ocupação prévia e essencial da criança dirigida apenas para a
imutabilidade e para a busca de solidão. Um relato de Ângela Vorcaro, reproduzido a seguir,
esclarece o primeiro tempo do atendimento da criança:
“Efetivamente, Tom demonstra cotidianamente estar em interação com o outro, seu
semelhante. Não recusa olhar, assentir, protestar, reivindicar e convocar sua ajuda. Dispõe-se a
partilhar atividades com o outro e aceita, sem subserviência, imposições que delimitem sua
expansão desordenada (deslocar-se desacompanhado na rua) ou que impeçam a desagregação
da trama de seus jogos (ejetar objetos sem direção). Em outras vezes, manifesta-se e pode ser
imperativo em seus protestos (chegando a morder os braços daquele que tenta contê-lo), mas
sempre cede diante da intermediação falada de seu pai, que lhe aborda docemente, segurando-
o, falando e olhando nos olhos. Dessa forma, ele demonstra uma modalidade estabelecida de
laço social, seja esta por desafiar ou submeter-se à delimitação proposta pelo adulto.
Além disso, entra em sincronia com gestos do outro e com atividades propostas,
ensaiando pactos para jogos, chegando a montar cenas em que se conjuga ao outro. Exemplo
disso é o de articular ritmos (tanto com as próprias mãos como por meio de mediadores) em
instrumentos musicais (tambores, sinos e xilofones), de modo sinérgico ao outro (a analista e/ou
o pai). Interessa salientar que executa essa performance sobre uma mesa, estabelecendo ali um
cenário que, ao manifestar a finalização, torna-se palco para uma audiência que cumprimenta:
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curva seu corpo sobre uma das mãos depositada em seu ventre e a outra mão, entrelaçada à do
parceiro, aguarda aplausos da plateia (seu pai ou a analista) e comemora ativamente com seu
parceiro, com batidas manuais alternadas e expressão de satisfação.
A grande preocupação com a reversibilidade de seus atos lúdicos (o boneco que desce
a escada deve, em seguida, subi-la) e o frágil investimento motor nos brinquedos que pareciam
compor a hesitação e o cuidado para não errar foram substituídos por uma posição bem mais
desdobrada e firme, que lhe permite efeitos mais assertivos (bater tambor, tocar piano, segurar
e sustentar objetos, transpondo-os de lugares e de funções), atento aos efeitos de seus atos.
Assim, assume ritmos e sonorizações propostos pelo outro na execução de uma atividade, opera
seriações e concatena elementos com o uso de conectores (fita crepe ou velcro para manter dois
bonecos balançando em um cavalo), faz jogos corporais em que demonstra reconhecer a
diferenciação entre seu corpo e os objetos. Envelopa partes de seu corpo e objetos sugerindo
pesquisar relações entre continente e conteúdo, diferenciando dimensões, limites e modos de
controlá-los. Sincroniza força e ritmo de traços riscados no papel com sonoridades distintas,
sugerindo estar tomando posse de seu corpo, o que já era demonstrado no início do controle de
esfíncteres. Serve-se de objetos com boa adequação a sua função utilitária (lanterna, telefone,
chave, controle remoto para focalizar, sonorizar, abrir ou ligar), demonstra satisfação
compartilhada com o outro, suporta ensaios mal-sucedidos, mostra interesse e curiosidade
diversificados.
Entretanto, a criança não prescinde de um outro que sustente a montagem e os
desdobramentos das cenas em que se articula, a seu entorno. Com essa referência, que tanto o
enquadra quanto apresenta novos modos de abordagem do que lhe interessa, ele persevera em
certa determinação nas atividades a que se liga, sem conquistar facilmente uma ampla extensão,
destreza e labilidade. Assim, pode restringir-se demasiadamente no conforto cômodo de uma
atividade biunívoca ou persistir em uma deriva de seu corpo no espaço, como se procurasse, no
infinito, uma zona de interesse. Porém, mesmo aí, ele reencontra prazeirosamente o espelho da
motocicleta (em que manifesta querer dirigir e nela sobe com ajuda) ou o automóvel (cujo
paralamas e espelhos são focos preferenciais). É o que registra um vídeo enviado pelo pai, em
que, submetida a indicações verbais, a criança aguarda com um copo abaixo da torneira, até que
o pai a abra. Segurando o copo, aguarda que um pouco de água seja colhido, enquanto o pai
alerta:
— Aí, tá bom.
Fechando a torneira, o pai indica:
— Pode colocar lá agora.
96

A criança caminha rapidamente em direção ao carro e emite sons:


— Mum... pa... ha.
Enquanto isso, o pai orienta:
— Caaalma.
Ao colocar a água no furo do recipiente, a criança escuta do pai:
— Aí, isso! Parabéns! Mandou muito bem!
A criança olha para o pai e retorna à torneira, o que o pai interpreta:
— Mais um pouquinho, agora? Eu abro pra você, que aí a gente vai controlando... aí,
tá bom, pode pôr lá.
A criança conduz, bem devagar, o recipiente que segura, parecendo procurar a melhor
forma de segurá-lo, desviando seu olhar para o copo com água, o que a faz perder um pouco a
direção. Chegando a encostar seu corpo na parte lateral do carro, seu pai alerta:
— Opa... cuidado... cuidado.
Imediatamente, a criança reorienta seu deslocamento para o tanque de água do carro,
onde derrama perfeitamente o conteúdo. O pai emite:
— Ram.
E a criança:
— Hah.
Isso parece expressar satisfação.”
Tom jamais apresentou estereotipias ou isolamento típicos das manifestações autistas.
Afetuoso, alegre e bem-disposto ao encontro do outro, sua condição sugere estar mais próxima
de uma paralisação de seu desenvolvimento subjetivo — que vem cedendo gradualmente —
diante dos desafios de uma entrada ativa na função da fala, em que se mostra impotente para
alçar o domínio, do que de uma fixidez do quadro referencial do autismo, que se caracteriza
pela busca ativa de exclusão do campo da linguagem.
Devido à doença do pai (endocardite e consequente AVC isquêmico por embolia) e à
exigência de cuidados da esposa, a suspensão do tratamento da criança persistiu no período
entre abril e agosto de 2019.
No retorno, Tom demonstrava muitas dificuldades em restringir-se ao local do
atendimento, parecendo manter-se à deriva, sem qualquer condição de atenção à fala e às
propostas lúdicas anteriormente estabelecidas. Naquele momento, parecia difícil distinguir essa
situação, que poderia ser sua resposta à suspensão abrupta de seu laço com o pai e/ou a analista,
mas que também poderia ser relativa a uma necessidade de expandir as modalidades de laço
social pela saturação da modalidade anterior. Entretanto, mostrando um laço bem mais precário,
97

Tom detinha-se em objetos que pareciam funcionar como referentes imediatos, aos quais aderia
para logo abandonar, diante do encontro de outro objeto que funcionava como estímulo mais
instantâneo. Uma modalidade de atendimento mais amplo e mais contínuo foi então aventado.
Na medida em que, naquele momento, era economicamente impossível aos pais arcarem
com os custos do atendimento institucional interdisciplinar especializado, decidimos pelo
acompanhamento terapêutico domiciliar, isto é, no local em que a criança já estava
minimamente organizada em suas rotinas de funcionamento na ordem familiar, de modo a,
desse ponto, restabelecer laços com um outro menos personificado e daí desdobrar novas
possibilidades de a criança retomar o laço social.
A perspectiva era a de localizar seus trajetos em seu habitat, em casa, mesmo que estes
obedecessem a uma lógica mínima de circuitos fechados. Assim, esses trajetos poderiam ser
lidos e testemunhados, ao introduzir um agente cujos atos espelhassem as ações da criança
banhadas pela fala de quem as testemunhava, conduzindo-a a reconhecer-se no semelhante. A
partir de então, isso desdobraria deslocamentos não só de lugar, mas de posições e de tramas,
de modo a fazer incidir operações propriamente simbólicas. Trata-se, assim, de, por meio do
deslocamento do polo da ação, oferecer em ato o testemunho do dizer da criança para ela
mesma, lhe franqueando seu reconhecimento pela própria transposição para outro corpo, em
outro lugar. Ao partir do que o movimento do corpo da criança sugeria, reconhecendo seu
circuito mínimo ao perfazê-lo, poder-se-ia discernir e testemunhar um dizer transmitido nas
moções desse corpo infans. Assim, lida pelo corpo do outro, a criança poderia reconhecer-se
com o estatuto de presença passível de transposição de si para outros lugares. É o que lhe
franquearia a possibilidade de deslocamentos e distinções, ou seja, a complexidade simbólica
desses jogos. Supunha-se que, desse modo, a própria criança poderia localizar, discernir e lidar
com o que lhe seria efetivamente impossível desdobrar no laço social.

3.3 Segundo Tempo: Uma Nova Analista

Tom é acompanhado por mim desde agosto de 2019, quando tinha três anos e oito
meses. Seu primeiro acompanhamento psicanalítico durou um ano com Ângela Vorcaro,
psicanalista que me encaminhou o caso, permanecendo em acompanhamento duas vezes por
semana, até o início da pandemia, em março de 2020.
Tom é filho único de um casal que teve uma gravidez planejada e desejada. Seu
desenvolvimento foi sem intercorrências, mas sua mãe começou a notar um certo atraso na
linguagem, por volta de um ano e meio, após uma queda da cama. Esse episódio a marcou
98

profundamente, pois a intensidade do choro do bebê e a dificuldade de consolá-lo promoveram


sentimentos de culpa, levando-a a atribuir a seu sono profundo a responsabilidade do
acontecido. À medida que os sinais de atraso de linguagem foram surgindo, consultas ao
neuropediatra trouxeram o diagnóstico de autismo e indicação de terapia farmacológica.
Taciturnos com o diagnóstico, os pais experimentaram a medicação recomendada, a qual
abandonaram após pouco tempo de uso devido a uma piora dos sintomas na época, com o
menino apresentando agitação psicomotora e agressividade. Diante disso, os pais buscaram uma
psicanalista de confiança, por apostarem na rigorosidade psicanalítica em tratar o diagnóstico.
No início do tratamento, Tom era uma criança que pouco falava, mas que permitia que
entrassem em sua cena do brincar. Quando lhe era importante estruturar uma demanda, lançava
uma troca de olhares. Gostava de fazer engenhocas, amarrar cordões em bonecos e pendurá-
los. Com o tempo, fui percebendo que suas tentativas tratavam de reproduzir cenas de desenhos
de super-heróis que ele assistia na televisão, no celular ou no computador. Suas demandas
consistiam, exclusivamente, em executar um fragmento de seu plano: amarrar cordas em
lugares que não conseguia alcançar, pegar brinquedos e pôr força em alguma ação
mecânica. Diante de tentativas não bem-sucedidas, refugiava-se em brincadeiras solitárias, sem
consentir com minha presença. Gritava e me tirava da cena, fechando a porta. Seu pai, que
sempre acompanhava os atendimentos, operava como um mediador. Diante de uma irrupção de
agressividade, seu pai era agente de sua calma e alguém que traduzia seus sentimentos. Com o
tempo, seu pai deixou de ser apenas um anteparo e passou a funcionar como um duplo
pacificador. As traduções do pai davam nome aos brinquedos de Tom:
— Ah! Ele está tentando montar as teias do Homem Aranha entre os prédios.
Quando o pai acertava em sua leitura, Tom me descartava da cena, elegendo-o como
seu novo ajudante em sua construção. A senha para entrar em seus jogos era ser algum tradutor
de seu brincar.
Na medida em que avançávamos nesse tempo do tratamento, eu tentava encontrar meu
lugar nessa cena a três. Tom passou a sussurrar no ouvido do pai seus planos do brincar,
mantendo-me longe de seus roteiros. Com o tempo, foi consentindo com minha inclusão, sem
necessitar da presença física do pai. Entretanto, sempre que algum equívoco surgia, ele, sem
pestanejar, me retirava de cena. Em pequenas concessões, fui conquistando um lugar na
transferência, não com a função de um tradutor como o pai, mas exercendo um papel similar ao
de um ajudante de pedreiro em um canto de obras. O lugar de tradutor era um lugar a ser
conquistado, e, até aquele momento, só os pais pareciam ocupá-lo.
99

3.4 Terceiro Tempo: A Instituição

No período crítico da pandemia, interrompemos os atendimentos presenciais e fizemos


tentativas de atendimentos on-line, mas, diante de um aumento do retraimento e do surgimento
de sintomas de estereotipia motora, realizei o encaminhamento de Tom para uma instituição
com vários profissionais, da qual faço parte enquanto psicanalista e pesquisadora. Por se tratar
de um espaço clínico amplo, que permite atendimentos com livre trânsito e em diversas práticas,
apostamos que a continuidade do tratamento pudesse se dar por essa via institucional.
O Espaço Nardin — Atividades Terapêuticas de Atendimento em Rede para a Infância
e a Adolescência — é uma instituição especializada em diagnóstico e tratamento interdisciplinar
integrado aos procedimentos psíquicos de crianças e adolescentes com foco em transtornos do
neurodesenvolvimento. Orientada pela psicanálise, é composta por psicanalistas, psicólogos,
psiquiatra, pediatra, psicomotricista, fonoaudiólogo, musicoterapeuta, artistas cênicos,
terapeutas ocupacionais e psicopedagogos. A equipe passa por supervisão de orientação
psicanalítica, em que a direção dos tratamentos é construída.
Ao ser admitido na instituição, Tom aceitou tranquilamente o espaço, permanecendo
nas atividades sem demandar a presença de seus pais. Passando por uma nova avaliação
realizada pela equipe, foi sugerida a ampliação da abordagem, sendo ele incluído, além do
tratamento psicanalítico, no acompanhamento em fonoaudiologia, musicoterapia e
psicomotricidade em seu projeto terapêutico. Inicialmente, Tom frequentava a instituição no
período da tarde, mas, posteriormente, consolidou sua rotina nas segundas e quintas-feiras, das
9h às 11h, conjugando atendimentos psicanalítico e musicoterapêutico nas segundas e
fonoaudiologia e psicomotricidade nas quintas.

3.5 Entre Tempos: A Escola

O primeiro encontro de Tom com a escola foi difícil: diante da inabilidade com o Outro,
ele era retirado do grupo social e permanecia fora de sala, com uma acompanhante, quase por
todo o tempo. A direção da escola o designava como uma criança agressiva e sem interesse
pelas atividades pedagógicas. Seus pais decidiram retirá-lo da escola, aguardar o ano letivo
finalizar e inseri-lo, no ano seguinte, em uma nova escola.
Em fevereiro de 2020, no início do ano letivo, Tom iniciou a vida escolar em uma nova
instituição, porém, com o advento da pandemia, ele precisou, logo em seguida, se adaptar à
modalidade on-line de ensino. A respeito desse momento, sua família cedeu alguns vídeos de
100

suas aulas virtuais: dois datados de 21 de maio de 2020 e um de 27 de maio de 2020. As duas
primeiras aulas tratavam sobre alimentos e a última era de inglês.
No primeiro vídeo, Tom aparece sentado diante do computador, sendo possível ouvir
sua professora perguntar aos alunos o que eles comiam, se o prato deles era colorido etc. O
menino não parece muito interessado e continua mexendo na mesa de vidro em sua frente ou
brincando com as mãos. Quando outras crianças falam, Tom se vira e olha um pouco para a
tela, mas sem prender o olhar. Continua brincando com a mesa, até que parece ter um tique, em
que começa a movimentar as mãos. O movimento de flapping29 então tem início: “Auã”, diz
ele, enquanto bate as mãos no ar.
Presta atenção na aula novamente, mas o fluxo se interrompe com outro movimento,
que parece involuntário, pois bate com as palmas de suas mãos, completamente abertas, nos
joelhos e nas pernas. Apoia o queixo sobre a mesa de vidro, ainda mexendo nas pernas. É
perceptível que não está prestando atenção. Seu pai pergunta:
— Tomzinho, você gosta de verdinho no seu prato?
O menino não responde, nem parece se atentar para o fato de ter uma pergunta dirigida
a ele. Balança a cabeça para os lados, o que poderia ser uma resposta, mas parece mais um
movimento involuntário. Quando sua professora pergunta: “E o Tom, também gosta
de prato colorido?”, os movimentos da cabeça e de flapping das mãos aparecem com
muito mais intensidade, todos juntos com outras estereotipias motoras. Ele ri sozinho enquanto
sua professora continua perguntando: “E o Tom? Gosta de tudo o Tom?”.
Mesmo com as intervenções da professora, Tom não se volta para a aula. Virando-se
para o pai, para a parede do lado do quarto, parece procurar outras coisas para mirar.
— O que você gosta, Tom? Responde pra ela — interrompe o pai.
Nesse momento, Tom diz, olhando para B. e levantando sua blusa na altura da barriga:
— Oh oh hô, bóp nêm bôp nêm nanhãm.
— Hm? — pergunta o pai.
— Num, bu bu bu bu bu — conclui o menino.
Na segunda aula sobre a temática de alimentos, Tom aparece escrevendo com um lápis
de cor vermelha em uma folha branca. É possível escutar sua professora da tela:
— É uma palavra que só tem três letras, o P...
Tom leva suas mãos aos olhos, como se estivesse cansado, apoiando a cabeça sobre o
braço. Ele vira a folha e desenha círculos, enquanto sua professora continua a soletrar pão e

29 Estereotipia motora de caráter repetitivo e ritualístico.


101

atender outras crianças. Olhando para a tela, começam as estereotipias motoras de Tom,
especialmente com o piscar de olhos e a emissão de um som que parece o estalo dos lábios. Ele
vira a folha novamente, e seu pai lhe oferece outra:
— Você quer escrever de novo? — pergunta.
— Não — responde Tom, de forma clara, e segue: Uou! Uou uou uou.
Ele grita, levantando a folha e jogando-a para trás.
— Senta aí de novo — pede o pai, entregando-lhe outra folha para que possa continuar
a escrever. Porém, Tom a joga no chão, e o vídeo é encerrado.
Na aula de inglês do dia 27 de maio de 2020, Tom está sentado em frente ao computador,
brincando de estender o braço e bater a mão esquerda, dizendo: “Ú bú!”, em tom agudo, como
se imitasse um pássaro voando. Por alguns segundos, para e presta atenção na aula de inglês
que acontecia na tela, sem deixar de entoar o “Uuuu bu bu bu”.
Em determinado momento, Tom se vira para a câmera que o gravava, respira fundo e
assopra. Ele continua sentado, olhando para o computador, para a tela em que está sendo
transmitida sua aula de inglês. É possível ouvir a professora falando outra língua. Tom a
acompanha com longas emissões sonoras de sons vogais: “Oooooo”, “Uuuuu” e “Iiiiiii”,
alterando a entonação em alguns momentos.
Seu olhar, Tom passa por vários espaços na sala, circulando o território e procurando
pontos para se fixar. Volta a olhar para a tela e fala, rindo:
— Ó di di di di di.
Continua rindo e entoando as vogais, procurando por outros acontecimentos no espaço,
com seu olhar, e se ajustando, em posições diferentes, na cadeira. Começa a gargalhar, tornando
sua atenção para seu pai, alternando entre as risadas e os sons produzidos com os lábios, que se
assemelham ao som de um pum. Seu pai o repreende:
— Não, Tom.
Tom para, enxuga o rosto com a manga da blusa e se ajeita na cadeira. Retorna a
produzir seus sons, dessa vez olhando para a tela do computador. Não demora muito para que
comece a agitação motora novamente. Suas mãos abrem e fecham em sua frente, agarrando o
vento e levando-o até sua boca. Para finalizar, ele exclama:
— Ma!
Esse movimento se repete várias vezes, até que Tom termina com a mão cerrada em
frente à boca:
— Ma ma ma ma...
102

Em outro vídeo cedido pela família, datado de 21 de junho do mesmo ano, Tom está
vestindo uma fantasia da personagem Woody dos filmes Toy story, sentado no espaço que
utiliza em outros vídeos para ter suas aulas virtuais, recortando um papel com algum tipo de
desenho impresso. Seu pai o adverte:
— Na linha, hein?
Tom não responde, parecendo perceber a interferência sonora. O menino termina de
cortar, e seu pai o instrui:
— Agora, ó, Tomzinho, filho...
Mas o menino não dá atenção para as falas do pai, que prossegue:
— Isso, isso mesmo. Pode cortar.
Tom continua suas tarefas. Seu pai indica:
— Agora, ficou esse pedacinho aqui, cê vai cortar esse aqui?
O menino assim o faz e B. o parabeniza e filma o caderno de caligrafia da criança, no
qual se pode ler: “S, A, 8, R, I, E”.
Nesse período, solidificaram-se, tanto nos atendimentos on-line quanto nas aulas
virtuais, as estereotipias motoras (flapping), fenômenos estereotipados no corpo que não eram
apresentados anteriormente, demonstrando a angústia de Tom diante do radical efeito da
pandemia: a reclusão doméstica e a intensa demanda do Outro virtual. Cabe, na escrita atual do
caso, questionar se, na época, os balbucios que ele emitia durante as aulas poderiam ser lidos
como tentativas de aderir ao outro, na medida do não acolhimento dos balbucios, considerados
infrutíferos? A constatação desse fracasso se manifestou por meio das estereotipias? A
consequência das tentativas de Tom em direção ao outro, sem encontrar uma função de tradutor
de seus balbucios, parece ter sido a intensificação de demandas impossíveis de responder. Seria
isso o que explicaria atribuir ao flapping uma manifestação de angústia? Na medida em que não
tinha um professor capaz de reconhecer seu balbucio e traduzi-lo, ele precisou recorrer a
autorregulações estereotipadas com seu corpo.
Em setembro de 2020, após a entrada na instituição e tendo iniciado o tratamento em
equipe, Tom pôde diminuir a intensidade de seu isolamento social pelas imposições da
pandemia. A demanda do outro escolar já apresentava discretas aberturas, sem uma resposta
motora de angústia como antes. Em um vídeo caseiro, podemos observar Tom sentado em frente
ao computador, tendo uma aula no formato on-line, segurando um lápis e escrevendo a “palavra
do dia”, que era ditada pela professora. A mulher diz:
— Agora a próxima, hein?! Procura aí. O.
O menino repete e escreve a letra.
103

— Letra O. O — fala a professora.


Tom repete:
— O. O.
— Vamos lá, hein?! Vamos pra próxima letra. Letra R — diz a
professora.
Tom, por sua vez, fala, tentando repetir:
— Éiii.
A professora continua a aula:
— Quem está sem as letras, pode ir escrevendo, tem problema
nenhum.
Tom solta o lápis. Parece distraído, quando fala: “Oi?”, por causa da demora da próxima
letra ditada.
— Coração, nós vamos escrever coração, tá bom? — incrementa
pausadamente a professora.
Apesar de ainda olhar para a tela, a criança começa a se ajeitar na cadeira, brincando
com o balanço desta.
— A... Cora... — continua a mulher.
Tom não repete nem escreve, apenas levanta as mãos com os punhos cerrados.
— E a letra A, não vai escrever não? — pergunta seu pai.
— Não — responde o menino prontamente.
— Por que não? — indaga o adulto.
Tom levanta a folha, mas ainda não escreve a outra letra.
— A letra A, Tom, vamo.
Após essa fala do pai, o menino volta a riscar a folha — não parece que está fazendo
aquela letra —, repetindo “A...”. A professora já estava passando o Ç e o Ã. O pai apressa Tom:
— Agora, ó.
O menino põe-se a escrever as letras que estavam atrasadas. A professora finaliza:
— ... e para terminar, co-ra-ção.
Tom repete:
— Au.
Nesses relatos iniciais, podemos observar a distinção entre a fala de consentimento para
a escrita do caso — “Ótima ideia, você escreve, eu desenho!”, em 2023, e as falas dessa
época, que eram caracterizadas por sonoridades silábicas que, com dificuldades, tentavam
reproduzir onomatopeias dos animais. Também podemos observar o distanciamento entre a
104

palavra coração, demandada pela professora, de au, como Tom parece absorvê-la. As discretas
aberturas para o outro escolar pareciam servir para apreender uma lógica de transposição de
registros (oral-escrito) que, futuramente, passariam a se servir das legendas que usaria para
traduzir sua língua30.
Em junho de 2021, em outro vídeo familiar, temos como ilustração da linguagem de
Tom em processo de mudança a realização do dever de casa, com a supervisão e a orientação
de seu pai. Na folha, pode-se observar figuras de dinossauros coloridas pelo menino e uma
atividade à qual se dedicam pai e filho no momento. Lê-se “Escreva os números de 1 a 10 e
leve a bruxa até o caldeirão” sobre uma figura, toda colorida, de uma bruxa em cima de uma
vassoura e dez quadradinhos em branco. Tom está escrevendo os números, e seu pai o orienta:
— Um, dois, três, quatro, cinco... vai lá.
O menino completa: “Nove”, e escreve os números a sua maneira, empacando no
número três.
— Qual que é agora? — o pai o questiona.
— Hm... um, dois, tês — diz Tom, escrevendo espelhado.
— Uhum, e depois? Vai lá — encoraja o adulto.
Tom continua a escrever, mas, a partir do número cinco, seus grafismos se assemelham
a rabiscos que pouco remetem aos números:
— Nove — descreve o menino o que está fazendo, registrando o número nove, mas
tendo pulado os números cinco e sete.
— E o dez? Você sabe fazer o dez? — pergunta o pai.
— Téis não — responde Tom.
— E o 11? — insiste o pai.
— Não — diz o menino.
— Tá bom, eu entendi. Agora, olha só, com o amarelo, com esse aqui ó, o amarelo.
Qual é o maior que você escreveu? — continua o adulto.
Tom aponta o número nove com o lápis de cor amarela e afirma:
— Maió.
— Risca ele de amarelo pra mim, o maior — pede o pai.
Tom começa a fazer xis nos quadradinhos vazios e repetir: “Xis”.

30 Isso será detalhado mais adiante.


105

— Esses são os em branco. Eu entendi. Mas qual desses números aqui... qual que é o
maior? Qual que é o mais grandão? Qual é o mais grandão de todos esses? — insiste o pai na
questão.
Tom aponta para outros números, algumas vezes dizendo: “Maió”, e faz uma sequência
crescente, arrastando seu dedo sobre os registros.
— Isso, daqui pra cá é do menor pro maior, mas qual deles é o maior? — pergunta o
pai.
O menino faz silêncio diante da pergunta do pai.
— E qual desses aqui é o pequenininho?
Dessa vez, o menino responde com: “Pinhi nhi nhi nhi”.
— É, qual que é? — pergunta ainda o pai.
Tom aponta para o quadradinho vazio:
— Êsse pinhinhinho.
— Hm... tá certo... — comenta B. — E qual que vem depois do oito?
Tom aponta para o nove e diz: “Hm!”.
— Ah... tá certo... E qual que tá entre o três e o cinco? Qual que vem depois do 3?
Tom pega sucrilhos e não responde. Seu pai insiste na pergunta. Tom aponta para um
quadradinho vazio e diz:
— Tlês!
Nesse relato, nota-se a dissonância entre a exigência da tarefa e a possibilidade de Tom
de acertar. Ele responde com o que pode, com o que tem; consequentemente responde, mas não
o esperado. A modalidade on-line de ensino e as privações sociais decorrentes do isolamento
social tiveram peso na impossibilidade perante a demanda que o menino recebia de forma
diretiva, não diluída no laço social escolar.
No segundo semestre de 2021, Tom retoma a modalidade presencial, após um ano de
ensino remoto. Seu retorno à escola, já com cinco anos e nove meses, lhe trouxe sofrimento,
incompreensão das regras, distanciamento pedagógico e rejeição pelos pares.
Desejoso por interagir com outras crianças, mas sem o refinamento do manejo que o
laço social exige, ele recebe da escola imediatamente um auxiliar, que é colocado em sua cola
para “impedir que ele seja violento com outras crianças”, conforme a
coordenadora pedagógica dessa época.
Tom, diante dos sentimentos de frustração, puxava os cabelos daqueles que lhe
colocavam barra e empurrava outras crianças, dentre outras irrupções que, em minha leitura,
eram sinais de manifestações de protesto diante da reação do outro.
106

Tom foi retirado da escola por decisão dos pais, ao retornar para casa com marcas de
violência em seu corpo, as quais não foram explicadas pelos responsáveis pela instituição. Além
disso, estes atribuíam à própria criança a autoria de tais marcas.
Hoje, Tom está em uma escola pública, após sua vaga ter sido recusada em diversas
escolas da cidade. Em reunião com os pais, Tom tem retornado para casa sem verbalizar
descontentamentos com a escola, e suas atividades pedagógicas para casa são adaptadas a suas
possibilidades, o que o faz se sentir incluído.
Em 16 de março de 2023, ao chegar na clínica, deitamo-nos na almofada e observamos
as nuvens, adivinhando formas. Tom disse que adora férias, mas está “de aula”, e não “de
férias”. Segundo ele, sua escola está legal, as aulas são chatas, a professora é “um pouco
legal”, e ele brinca com seus colegas. Depois disso, ele montou um hotel em que havia agente
de segurança, fazia-se massagens e trazia-se lanche e água para as crianças. Esse hotel era
frequentado por terapeutas. Montou os quartos e disse ser a hora de dormir.
Até o momento atual do caso, Tom parece finalmente se orientar diante do Outro
institucional, adjetivando seu gostar e não gostar, tributando as funções da escola e os lugares
do mestre e do brincar. O desafio atual se dá pela demanda pedagógica da escrita, como veremos
no decorrer das apresentações dos elementos clínicos.

3.6 Do Mutismo a Lalíngua a Céu Aberto

Tom era uma criança que apresentava mutismo e lalações e fazia uso ocasional de
pequenas palavras. Para Maleval (2021), o silêncio dos autistas é a forma mais radical de recusa
na troca, sendo bastante comum até os primeiros anos de vida. O autor afirma que o silêncio se
trata da linguagem em repouso, pois o que está em jogo para o autista é ligar as palavras à voz.
Na medida em que isso ocorre, há o risco de entregar ao outro um objeto muito precioso, cuja
perda poderia ser vivida como uma dor insuportável.
É a partir do desenvolvimento teórico apoiado no Seminário VI de Lacan ([1958–
1959]/2016) que lanço a hipótese de que Tom não conseguia localizar o que o Outro queria
dele, e isso o impedia de fazer o movimento de ligar palavra e voz. Não se trata de cair nas
querelas infundadas de pais ausentes, e sim de uma impossibilidade da criança de ler e se
localizar no desejo do Outro, o que traz como consequência a impossibilidade de distinguir o
que se perde ao ceder ao outro seu objeto voz. Não saber o que se entrega ao outro retorna como
dor e angústia de perder algo no próprio corpo. O risco talvez seja o de se dissolver, perder-se
107

no outro, por não encontrar suporte simbólico que o susteria em movimento simbólico. Resistir
a ceder-se torna-se, então, o único anteparo em que se distingue.
Como aponta Lacan ([1962–1963]/2005) no Seminário X, a relação essencial da
angústia com o desejo do Outro — isto é, che voui? [que quer ele de mim?] — representa a
verdadeira orografia da angústia. A hipótese com a qual trabalho é a de que a defesa em jogo é
a de inibição, que, segundo o autor, “está na dimensão do movimento” (p. 18); é da “paralisação
do movimento que se trata”, ou seja, da inibição como restrição do movimento simbólico de
concatenação da voz do corpo com a linguagem articulada, engajando o corpo no discurso. O
autor afirma que “estar impedido é um sintoma. Ser impedido é um sintoma posto no museu”
(p. 19). Tal impedimento restrito é, a priori, uma solução que potencializa imaginariamente a
ilusão de ter consistência, sem colocá-la à prova no confronto com o Outro, o que se observa
no caso abordado: para a criança, só era possível ensaiar a fala como sussurro.
Nem sempre o mutismo é permanente. Segundo Maleval (2021), há relatos de muitos
pais que observaram seus filhos sussurrando para si mesmos, antes que se desmutizassem. Tom
apresentava sussurros endereçados a seus pais e a mim, colocando em jogo a impossibilidade
de amplificar o som de sua voz e, consequentemente, de não oferecer uma resposta insuficiente
para o outro e se perder, resultando em fazer-se ouvir o mínimo possível.
Foi possível perceber que a linguagem oral surgia em momentos em que predominavam
sentimentos de frustração e raiva. No campo da linguagem, Tom verbalizava algumas palavras,
repetia alguns números, mas também fazia uso de sonoridades quando demonstrava o desejo de
pegar algum brinquedo. Foneticamente, representava um som enquanto operava em atos de
contagem e seriação. Sua fala, quando surgia, era bem compreendida pela família. Verbalizava
alguns números e o não com clareza. A fala na relação com as pessoas surgia, na maioria das
vezes, como última alternativa, colocando o corpo e os gestos como prioridade na eleição
comunicativa, o que produzia um contato minimamente assertivo.
À época, a posição de Tom na linguagem obedecia ao binário do silêncio e do som, do
mutismo e de pequenos fonemas que se correlacionavam, dentro do contexto, a algumas
palavras. Com a experimentação, em que pôde vivenciar o acolhimento do outro, algumas
palavras passaram a ser frequentes: “não”, “bai”, “bae”; “um”, “doi”, “oito” e “boba”.
Diversas vezes, Tom respondia bem ao endereçamento verbal do outro, sem linguagem corporal
associada, demonstrando estar na linguagem, embora sem assumir uma enunciação.
Vale considerar que, ao adentrar a instituição, Tom se encontrava nesse tempo da
linguagem. Para ilustrar, valemo-nos de alguns fragmentos de sessão, filmados, e de vídeos
cedidos pela família. Optamos pela ordem cronológica dos vídeos caseiros, datados do período
108

de 29 de novembro de 2019 a dezembro de 2020, e dos fragmentos das sessões presenciais, a


partir de agosto de 2020. Nesse momento, optamos por não trazer relatos do atendimento
psicanalítico on-line, realizado no período de isolamento decorrente da pandemia de COVID-
19, pois não foi possível recuperar uma descrição fonética da fala de Tom, considerando que a
interação com ele pelas chamadas era muito espaçada. Na época, diante dos limites dessa
modalidade de tratamento, os atendimentos on-line não pretendiam alçar intervenções efetivas,
mas tinham como objetivo assegurá-lo da continuidade de minha presença, além de oferecer
suporte e dar elementos para que os limites da situação de confinamento encontrassem modos
de deslocamento pela família.
A seguir, apresentamos, por meio de recortes que registram vídeos caseiros, como Tom
e seus pais brincavam nos meses iniciais de isolamento social. Objetivamos demonstrar que,
mesmo brincando, servindo-se dos detritos de sua lalíngua, Tom se inseria na cena lúdica e
sincronizava o brincar roteirizado por seus pais.
Notadamente, na descrição a seguir, observamos o recolhimento de Tom em sua
atividade, enquanto seu pai tenta se inserir em seu brincar. A câmera filma pai e filho, lado a
lado. A mudança de foco faz com que a imagem dos dois escureça, para captar mais iluminação
do ambiente. O pai diz:
— Ó... Ih... A luz é que não tá boa. O quê que cê acha? Pera aí... vamos tentar fazer
assim?
O pai muda a posição da câmera, para gravar na horizontal, e as figuras ficam mais
visíveis. Enquanto isso, Tom brinca com um slime verde.
— Agora melhorou... O quê que cê acha?
A criança não responde.
— Ah lá! — convida o pai. — Olha o slime, Tomzinho. Mostra o slime lá pra gente ver.
O menino levanta o brinquedo em suas mãos e respira audivelmente, como se se
preparasse para falar.
— É... slime! E é muito legal, olha só! Nossa, é muito maneiro esse slime, muito — diz
o pai.
Enquanto isso, a criança brinca com a geleia em suas mãos. Seu pai acompanha seus
movimentos com exclamações:
— Oh! Nossa... — diz o pai, que finaliza a gravação com uma última palavra. — Pronto.
109

3.6.1 Março de 2020: Fritando Ovo

Pai e filho estão na cozinha para fritar um ovo, tentando encontrar a posição e o ângulo
correto para o celular. O pai filma Tom sentado em uma cadeira. Coloca de cabeça para baixo
o celular e pede para que Tom se levante para “ver uma coisa”. O menino parece cansado, como
quem acordou há pouco tempo. Seu pai ri da cara que ele faz para a luz que o ilumina.
— Pronto... Oh, primeira coisa: escolhendo... frigideira.
Traz a panela para mostrar ao filho.
— Vamos ver se o ovinho tá bom, hein?!
É registrado muito barulho, o que parece incomodar o menino.
— O ovo tá legal, vamos, então, fazer assim [assobia] na câmera. Como é que faz assim
[assobia] na câmera? Vamos acender a luz.
Segue-se um barulho de interruptor e aumenta-se a iluminação. O menino permanece
com cara de sono.
— Melhorou? — pergunta seu pai. — Levanta, para você me ajudar, igual você sempre
me ajuda.
Tom se levanta da cadeira e ajuda o pai a colocar óleo na frigideira.
— Nu!31 — exclama a criança.
Enquanto isso, seu pai afirma:
— Tá bom, agora vamos colocar sal.
Nesse momento, a imagem gravada é apenas a da roupa do pai, mas este fala: “Mais um
pouquinho”, três vezes, até se dar por satisfeito e anunciar: “Tá bom de sal”. Afasta-se e liga o
fogão.
— Agora o ovo, pré-escolhido, porque a gente viu que ele tá bom... ó...
Bate o ovo na pia três vezes, para quebrar sua casca, e coloca seu conteúdo na frigideira,
comemorando: “Uhuuul!”.
Tom solta:
— Auóliiiii!
Seu pai diz que agora é só mexer.
Tom interroga:
— Uê? Uêis?

31É necessário contextualizar que a exclamação “Nu!” provém de uma expressão costumeira em Minas
Gerais, a qual manifesta a ideia de algo bom, saboroso, bonito etc. É possível que, nessa época, a criança
tenha se servido desse dizer contextualizado às normas culturais da língua de sua região.
110

O pai mostra seu desentendimento:


— O quê? Você quer mais? Um só tá bom, você só come um.
Tom protesta:
— Wuno...
Seu pai retorna:
— Um só.
E Tom responde com:
— Tois.
Eles discutem:
— Um.
— Tois.
— Um.
— Tois.
Tom, por fim, consente:
— Um.
Seu pai concorda.
— Então vamo pegar, aqui, ó. Seu pratinho já tá até aqui, a postos.
Desliga o fogo e convida o menino, que havia se distraído, de volta:
— Vem, vá, ei, psiu! Obaaa, ovinho frito!
Terminando de preparar os ovos, pergunta para o filho:
— Aonde você vai agora? Cadê você?
Vira-se para trás:
— Ah, tá colocando a manteiguinha... Vamo pegar a manteiguinha, vem cá, sobe aqui.
Tom fica de pé na cadeira novamente, dizendo: “óoo, óoo...”, e seu pai aponta para a
manteiga:
— Agora pode mexer na frigideira, eu seguro pra você. Pode mexer.
O menino não se move.
— Não quer mexer? Não?
O menino responde:
— Uô!
Seu pai serve o ovo no prato:
— Pronto, um só, só um. Aí, mais tarde, você come outro, certo?
111

3.6.2 Março de 2020: Soletrando

No mesmo mês, março de 2020, pai e filho estão sentados no chão da sala. O pai segura
a câmera com a mão direita, filmando os dois. Eles começam o vídeo vocalizando, juntos:
— Ôooo.
O pai engata:
— Ôoo rapaz... olha aqui ó.
Estoura o ar com os lábios, produzindo um som. Tom tenta repetir.
O pai diz: “Mi”, e o filho repete: “Mi”.
— ... Go — continua o pai.
E Tom:
— ... Do.
Seu pai finaliza: “Migo”. Este é o nome do cachorro da família. E Tom repete: “Adu”.
Seu pai tenta de novo:
— Ba... Olha aqui pra mim, vem cá... Ba...
O menino repete:
— Ta... Ta... Ta... Ta.
Seu pai conclui:
— Batata.
Tom tira sua própria conclusão:
— Anhan.
O pai questiona o menino e ri:
— Aí ó... Papai.
Retornam ao jogo de imitação: “Papai”, “Papai”, “Mamãe”, “Mamãe”, “Tchau” e
“Taú”, finaliza a criança. Eles acenam para a câmera, dizendo “tchauuu”, finalizando o vídeo.

3.6.3 8 de Março de 2020: Apresentação Musical com a Mamãe

A câmera filma mãe e filho na cama, mirando um livro apoiado no travesseiro e na


parede. Tom está tocando a cama como se fosse as teclas de um piano, e sua mãe está cantando
o ritmo da Nona Sinfonia de Beethoven. Ele percebe que está sendo filmado e diz:
— Tchau! Ni.
112

Gesticula um aceno de despedida em direção a alguém que está por trás da câmera. Fica
em pé, mas continua acenando. Olha em direção à câmera e se curva, como um musicista
agradecendo os aplausos no final de um concerto. Sua mãe bate palma e comemora:
— Foi linda essa apresentação! Foi linda!
Tom manda beijos. A mãe continua:
— Falta mais uma.
Tom desequilibra um pouco, enquanto volta a acenar e dizer “Oi” algumas vezes, logo
antes de retomar ao assento. Ele pega um travesseiro para se sentar.
— Vamos lá? Você é um grande musicista, sente e escolha a música... [inaudível] Vai
lá, Tom — diz a mãe, enquanto a criança se ajeita, vocalizando:
— ô, ô.
Ela continua:
— Isso, aí, muito bem. Escolhe a música.
Ele volta a “tocar” a cama, e sua mãe canta a mesma música. Tom se levanta e muda a
página do livro em sua frente.
— Isso, muda o repertório.
Por causa de sua posição de apoio, o livro volta à página que estava antes. Sua mãe,
enquanto cantava “Tân, tân, tân”, ri e diz: “Não quer ficar, né? Quando muda”, levantando-se
para ajudar o filho a mudar de página.
— Ah, vai ficar aqui agora.
Os dois conseguem juntos. Tom retorna ao assento e diz:
— Dois, ú, lhi já!
Começa a tocar o piano de fantasia. Sua mãe continua cantando a mesma melodia. Tom
se levanta, porque as páginas do livro estavam se movimentando, e ajeita a posição: “Um”.
Volta a tocar, brevemente, até parar. Diz: “Ah”, e sua mãe interrompe a melodia.
O menino volta sua atenção para suas mãos na cama e passa algumas páginas do livro
que está em sua frente, até que este chega ao fim. Percebendo que já havia passado todas as
páginas, Tom fecha o livro, virando-o para a capa e sentindo sua textura.
— Êeee! Parabéns pro Tom! Viva! — comemoram pai e mãe, que batem palmas.
— Vi é é — fala a criança, em tom baixo, enquanto abre o livro novamente e começa a
folheá-lo, apontando para algumas figuras.
— Com esse livro bonito... fala se esse livro não é maravilhoso — diz a mãe, ao fim.
— Ãim — termina Tom, rapidamente.
113

3.6.4 Viva a Quarentena!

Em outro vídeo, Tom está desenrolando um rolo de papel higiênico, enquanto fica de
pé em um colchão virado, dobrado na fresta de encontro entre o chão e a parede. Seu pai
continua narrando:
— Bom, quarentena, parte dois. O que o Tom tá fazendo agora, ó. Depois de toda
bagunça que ele já fez...
A câmera mostra o quarto revirado.
— Ele agora tá mexendo no papel higiênico. Tomzinho...
O pai chama o menino mais de oito vezes pelo nome, e a criança não responde,
parecendo nem escutar.
— Ei, Tom! Oooi! Fala “oi”! Dá tchauzinho pra câmera, fala “oi”!
Quando o pai menciona o “tchauzinho”, Tom escolhe responder com: “Tchaau!”,
continuando seu trabalho de desenrolar o papel higiênico e passá-lo pelos móveis.
— É, você tá muito concentrado, né? Eu sei... Isso é tudo que o Tom fez, isso porque eu
já desmontei aquela hora que ele tinha feito na porta.
O pai filma o restante do quarto novamente, mostrando a porta, onde, antes, encontrava-
se uma pilha de roupas.
— Ele já jantou e agora, aqui, está compenetradíssimo, mexendo com seu rolinho de
papel higiênico. Ê, beleza! Viva a quarentena!
Finaliza o vídeo ironicamente.

3.6.5 14 de Maio de 2020: Pique-Esconde

A filmagem começa mostrando o quintal da casa, com vários brinquedos, uma piscina,
o primo de Tom, o cachorro Migo, árvores e outras plantas. O pai pergunta:
— Aonde será que eles tão, hein? Eu não consigo ver eles em lugar nenhum... Aonde
será que eles foram?
O pai é interrompido por um grito de Tom, que nesse momento não está visível:
— Ob nádi!
A câmera mostra Tom escondido atrás das folhas verdes de uma árvore de tamanho
pequeno. Ele está rindo. Trata-se da clássica brincadeira de esconde-esconde, em que as
crianças mais novas se revelam antes e os adultos fingem procurá-las mesmo assim.
114

— Eu vou procurar... Eu acho que eu escutei uma voz — emenda o pai, emaranhando-
se por trás das plantas, onde estavam as crianças. — Será que eu escutei uma voz? Deixa eu
passar aqui atrás, deixa eu ver uma coisa... Pera aí...
O vídeo mostra as crianças deixando esse esconderijo, para irem para trás de outras
plantas.
— Pera aí... Deixa eu ver... Eu vou achar, hein?! Gente, mas aonde será que esses
meninos... Ah!
A câmera volta-se para Tom correndo, saindo do esconderijo, rindo.
— Achei o Tomzinho! Você aí, ó! — exclama o pai, enquanto o menino grita, em tom
extremamente agudo, tentando escapar.
— Ai dai dai dai dai! Aaaaai!
O pai continua:
— Achei o Tom. Cadê o seu primo?
Tom responde rindo:
— Atas...
A câmera volta a filmar uma árvore.
— Cadê? Eu acho que o primo tá aqui... Cadê? Você quer achar o primo? Então,
vamos, acha o primo.
O menino responde:
— Iêo.
Seguindo em direção à dita árvore, Tom logo trata de afastar as folhas, revelando seu
primo mais velho, Augusto.
— Ah! Achamos! — comemora B.
— Vamos brincar de novo? Porque eu achei muito legal! — exclama o primo.
— Achamos o primo... — comenta o pai.
Tom, que está tocando nos braços de seu primo, grita em tom agudo:
— Aaaa!
Novamente sai corrento.
— Dessa vez outro conta, e nós dois... — fala o primo, sendo cortado devido ao
encerramento do vídeo.
115

3.6.6 19 de Maio de 2020: Tom e a Grade que Tranca Migo

— Fuais! — exclama Tom, tirando chaves de brinquedo coloridas de sua mochila


vermelha e azul, enquanto mexe no portão que separa o cachorro Migo das outras áreas da casa.
— Ah, você tem a chave? — pergunta B.
O menino está com uma fantasia de Homem Aranha. Fecha o zíper de sua mochila
usando uma mão livre, com dificuldade. Percebe que não consegue concluir essa tarefa, pois
está usando apenas uma mão, e entrega a mochila para o pai.
— Hum, você quer ajuda? — volta o pai, segurando a mochila para que a criança
pudesse fechar o zíper. — Puxa! — instrui o homem para o menino terminar de fechar a
mochila.
Quando consegue, Tom parece exasperado, ao mesmo tempo que diz:
— Hum, é, pá.
— E agora? — pergunta o pai.
Tom encosta a chave no portão:
— Pô dêa.
— Abriu? — questiona o adulto.
Tom está guardando as chaves de volta na mochila.
— Abriu, guarda as chaves, muito bem — congratula o pai.
O menino deixa as chaves cair.
— Ih, caiu! Ai, meu Deus — nota o pai.
O menino retorna e tenta novamente realizar a tarefa, após pegar as chaves de brinquedo
do chão. Ele se direciona ao portão e o abre. Este comporta uma fechadura que não necessita
de chaves, e sim de empurrar uma tranca.
Tom, na verdade, não estava liberando o cachorro, mas entrando no território demarcado
para o animal.
— Uai, achei que você ia sair, você entrou! — comenta o pai.
— Uachu — diz Tom, fechando o portão.
— Você foi dar um alô pro au-au? — pergunta o pai.
Tom se distancia, junto a Migo:
— Uuuu, mão mão mão mão — vocaliza, sem olhar para o adulto que gravava o
vídeo, e começa a fazer carinho no cachorro.
116

3.6.7 19 de Maio de 2020: Tom Médico

— Onde que tá dodói? Mostra pro papai — indaga o pai, que grava a criança, enquanto
ela arregaça sua manga e se distrai com o que se passa na televisão. — Aí, ó, caiu no chão, Tom,
caiu no chão — o pai tenta chamar a atenção do menino.
Tom se vira para pegar o que havia caído e colocar no braço do pai. Era uma espécie de
curativo de brinquedo. Ao lado, escuta-se a voz da mãe dele:
— Aí, pessoal, meu braço tá com dodói, alguém me ajuda. Alguém ajuda a mamãe.
Ao escutar esse pedido, Tom exclama: “Ai!”, partindo em direção à mãe.
— Eu tô com dodói aqui no braço. Tô precisando muito de um médico, médico... —
prossegue a mãe.
Tom sobe no sofá em que estavam sentados seus pais gritando:
— Ua ua ua ua ua uau!
Ao mesmo tempo, ele gira sua mão esquerda em sentido anti-horário.
— Isso, me ajuda, doutor. É pra eu fazer assim que melhora? — pergunta a mãe,
imitando o movimento da mão de seu filho.
A criança volta para o lado de seu pai, mirando uma caixa de brinquedos que estava
próxima.
— Isso aqui é seus apetrechos? De medicina? — questiona o pai.
Tom vocaliza:
— Au uau ua ua au uau.
Seu rosto denota desespero.
— É só mexer que passa, né? Cura dodói se fizer assim? Ai doutor... — fala sua mãe,
enquanto Tom pega um de seus brinquedos para usar de remédio para a dor de S.
— Ai dau au au — fala a criança, movimentando a mão da mesma forma, ao passo
que sua mãe a imita.
— É isso aqui que você vai pôr pra curar? Eu estou fazendo — responde S.
O menino continua:
— Au uau au au!
Tom indica para a mãe o movimento que ela deveria fazer, em um tom mais
repreendedor. Sua mãe o segue com as mãos e imita o barulho de uma ambulância, que se
parece com o som que ele entoava antes. O pai oferece um rolo de fita a ele:
— É isso que você queria?
O menino logo começa a enrolar o braço da mãe com essa fita.
117

— Ah, você tem um rolo de cura-dodói... — percebe a mãe. — Ah, nossa, essa fita custa
uma bolada de dinheiro. Quem deu isso pra você brincar?
Os adultos riem.
— Quem deu foi ele mesmo, que ele foi lá e buscou — ri o pai, enquanto parte um pedaço
de fita para entregar ao menino.
— Da da da da da. Da da! — Tom intervém, quando termina seu trabalho de curativo.
— Oh, vai melhorar meu dodói? É doutor, eu tô com febre? Nossa, já nem tá doendo
mais — continua a mãe.
Tom levanta levemente o braço da mãe com o curativo, para mostrar para a câmera,
sorrindo. Ele coloca outro curativo de brinquedo, dessa vez no dedo mindinho dela.
— Obrigada, doutor. Na hora de arrancar isso, vou ver estrela — brinca a mãe.
— Isso, examina a mamãe.
— Dôi, dôi — responde Tom.
Tom remexe sua maleta de brinquedos e tira outro.
— Ah — diz o menino abrindo a boca, sinalizando para que sua mãe faça o mesmo.
Ela acata e diz, com a boca aberta, simulando um exame:
— Aaa.
— Ô ôu — fala o menino, já pegando outro brinquedo para continuar o exame bucal.
— E aí, doutor, eu vou ficar bem? Você precisa fazer mais exames? Você já me deu
uma injeção, doutor? Você me auscultou, pra ver se tá tudo bem comigo? — pergunta S.
Tom arranca o curativo que havia feito no braço da mãe e diz:
— Áaa, buéu buéu.
O curativo arrancado ele coloca na perna de seu pai. Sua mãe acha engraçado:
— É... Põe na perna do papai, com esse montão de pelo, isso vai ser emocionante.
A criança ri. Sua mãe a acompanha:
— É, agora vai lá e puxa de uma vez, assim: tch!
Tom levanta sua perna, aponta para seu tornozelo e exclama:
— Au ai ai!
Sua mãe, entendendo que agora ele era o paciente com dores, adverte:
— Não, nós não vamos desperdiçar essa fita, não.
O menino, entretanto, continua:
— Ai, ai, ai dai, dai, dai...
A mãe explica:
118

— Filho, essa fita é muito cara, é para os aniversários de vocês. Mamãe vai pôr só um
pedacinho.
Ela faz o curativo em Tom, que parece satisfeito, sorrindo e dizendo:
— Ai, í sô!
Ela sorri para ele e começa a examiná-lo, do mesmo jeito que ele havia feito
anteriormente.

3.6.8 28 de Maio de 2020: Tatuagem na Mamãe

S. está deitada de lado, enquanto mexe em seu celular. Tom se aproxima dela com um
sorriso no rosto e uma canetinha preta na mão. Ele abaixa a calça da mãe, para expor a pele
dela. Ela ri e percebe a brincadeira que ele está querendo fazer:
— Cê tá querendo desenhar na mamãe?
Ele continua a tentar abaixar a calça dela, até que ela o ajuda:
— Vai ser meu tatuador, hein?! Tomzinho fazendo tattoo na mamãe. Vai lá. Fazendo
tatuagem... Faz uma tattoo bem bonita, hein?!
Ele responde:
— Uôoooooooi.
Ele ainda não desenha, tentando abaixar mais a calça de sua mãe, até que dá um leve
tapa na bunda de S.
— Assim tá bom, filho. Até aí, ó. Não, assim não vai dar. Assim. Já dá pra fazer um
desenho legal — ela o repreende.
Ele começa a desenhar na pele da mãe, sem nenhuma figura aparente, apenas algumas
linhas soltas. A mãe, intrigada, pergunta:
— O que que cê vai tatuar na mamãe, hoje, moço? Cê já sabe? Hein, Tom?! Que que
cê tá tatuando na mamãe?

3.6.9 10 de Junho de 2020: Montando Carrinho de Bombeiros

Nesse vídeo, Tom está sentado no chão, encaixando peças coloridas em um caminhão
vermelho de brinquedo. É mais outro registro de sua hiperfixação nas atividades que realiza:
não olha para a câmera ou para o pai em nenhum momento, não responde ao que lhe é dirigido,
nem vocaliza nada. Seu pai filma, após alguns segundos, a frente do brinquedo, a qual mostra
um rosto sorrindo.
119

— Olha o carrinho... Ah! — exclama o homem.


O menino puxa uma chave de fenda de brinquedo e continua a montagem.
— Vai conseguir com a sua chavinha de fenda? — pergunta o pai. — Tem que apertar
bem firme, hein?! — continua, após o filho encaixar a peça com a chave de fenda.
O processo se repete, agora do outro lado. Ao fim, Tom solta:
— Úuu, u.
Ele deixa cair a chave de fenda, mas a recupera do chão e termina de apertar a peça e
montar o brinquedo.

3.6.10 15 de Junho de 2020: Banho de Mangueira

No quintal, a mãe de Tom está apontando a mangueira, ligada, para a criança, que está
de cueca e tomando um banho de mangueira. Ele pula na frente do jato e solta um grito,
correndo, logo em seguida, com um sorriso no rosto.
— Olha o chuveirão! Uhuul! — diz a mãe, enquanto Tom ri, dando voltas na piscina e
aproveitando a água que sai da mangueira.
Ele quase escorrega, e seus pais o advertem:
— Cuidado...
Continua a dar voltas e rir, e sua mãe fala:
— Ó...

3.6.11 19 de Junho de 2020: Almoço com Pelúcias

Na mesa de jantar posta, com tigelas e descansos de prato, estão sentados dois cachorros
de pelúcia. Tom está em pé, andando ao redor da mesa, quando fala:
— A mia fãe, dia pé, se mé.
— Os dois au-aus tão aí? Agora falta o Tom, né? — acrescenta o pai, que filma a cena.
A mãe, do outro lado da mesa, pede ao menino:
— Cuide bem direitinho deles.
Ela está almoçando e dá uma ideia para a criança:
— Você pode dar eles um pouquinho e comer um pouquinho, entendeu?
Tom pega a colher na tigela de um dos cachorros de pelúcia e diz:
— Nã, nã, nã, não.
Ele volta a andar ao redor da mesa. Sua mãe insiste:
120

— Você dá a eles um pouquinho e come um pouquinho, aí todo mundo termina a


brincadeira de barriga cheia.
O menino pega um pouco da comida que está em uma das tigelas e come.

3.6.12 26 de Junho de 2020: O Ataque do Dinossauro

Tom está segurando uma cadeira com a mão esquerda e um boneco do Optimus Prime,
personagem da franquia Transformers, com a mão direita, tentando carregar ambos, quando
exclama:
— Woo! Woo! Dol dul.
Ele apaga a luz do quarto no interruptor. Seu pai, forçando uma voz grossa, como uma
personagem preocupada e com medo, no escuro, diz:
— Onde está o dinossauro? Optimus Prime, salve-nos do dinossauro, Optimus Prime!
Nos ajude!
Tom responde rapidamente:
— Ta!
Ele pega o dinossauro de brinquedo, entoando:
— Uuuuu!
Tom continua:
— Aooooou uooooo gugu.
Ele entrega o dinossauro a seu pai, que imita um som ameaçador na brincadeira. O
menino solta um grito agudo, sinalizando seu medo:
— Aaaaah! Boi papapa!
— Eu sou o dinossauro! — afirma o pai.
Tom continua. Dessa vez, dá um tapa no dinossauro com o Optimus Prime nas mãos:
— Ah!
O pai leva adiante a brincadeira, dizendo:
— O Optimus Prime é muito forte para mim. Oh, não!
O menino continua golpeando o dinossauro com a personagem dos Transformers,
falando:
— Ai pu pa pu pa puuuuu.
O pai larga o animal no chão e diz:
— Oh, não! Não aguentei, o Optimus Prime é muito forte para mim.
Tom busca o outro brinquedo do chão e solta:
121

— Oié pa.

3.6.13 27 de Junho de 2020: Pesca no Brinquedo

A criança está sentada no chão de pernas cruzadas, brincando de pescaria, em que teria
que colocar e tirar peixes de papelão colorido em encartes específicos. Em vez de usar a vara
normalmente, ele pega o anzol pelas mãos, retira um peixe e diz, em tom agudo:
— Pi.
O pai exclama:
— Você tirou o peixe! E com a varinha assim?!
Ele sugere ao garoto usar a vara de pescar de brinquedo tal como se usa em uma pescaria
normal. O menino ignora e retira outro peixe da mesma forma.
— Vamos com a varinha? — insiste o pai.
Tom tira outro peixe, segurando o anzol pela mão. Seu pai desiste e continua filmando
a criança tirando os peixes, um a um, segurando a vara de pescar pelo anzol.

3.6.14 28 de Junho de 2020: Trocando Pilhas

Tom e seu pai estão trocando as pilhas de um controle remoto que dirige um carrinho
de brinquedo vermelho. O menino coloca uma pilha no lugar correto e o pai o parabeniza. Ele
tenta colocar outra e o pai pergunta se ele conseguiu.
— Deixa eu ver... Hum...
O filho entrega o controle, mostrando as pilhas não encaixadas. O pai diz:
— Tá quase, deixa eu te ajudar. Olha só, Tom.
O pai encosta no braço do menino para chamar sua atenção, repete seu nome três vezes,
mas a criança continua a mexer no outro controle de brinquedo. Aponta para o pai, brincando
com os botões desse controle, dizendo:
— Ã, ã, auahãaaa.
O pai responde:
— É? Tá bom, então pera aí. Deixa eu só fazer uma coisa aqui.
O pai encaixa as pilhas no controle. Tom começa a apertar os botões, apontando para o
carro de brinquedo, e seu pai logo percebe:
— Cê tá testando pra ver se funciona?
122

Porém, nada acontece com o veículo. O pai toma o controle em mãos, pedindo para o
menino checar se o brinquedo está ligado. Ao que parece, ambas as partes estão ligadas. O pai
entrega o controle ao menino e pede:
— Vai, mexe.
Ainda assim, nada acontece com o veículo.
— Então pode pôr de volta...
O pai entrega ao menino um parafuso para fechar o controle. Tom tenta colocar o
pequeno parafuso com a mão, mas percebe que precisa do apoio de uma ferramenta. Embora
alcance a chave de fenda a seu lado, não consegue usá-la.
— Haaa, do! — exclama, frustrado.
O pai o ajuda:
— Tá muito pequenininho?
O pai coloca o parafuso na posição correta.
— Aí, ó, tenta agora.
Tom, no entanto, se distrai com o outro controle do brinquedo e começa a mexer nas
rodas do carro.

3.6.15 29 de Junho de 2020: Montando LEGO

Nesse vídeo de três minutos, Tom está sentado no chão, montando uma torre com peças
coloridas de LEGO. A torre possui dois prolongamentos na horizontal, o que leva o pai a
identificá-la como um avião.
Em determinado momento, Tom coloca peças de LEGO que representam um cachorro
e um gato. A torre cai diversas vezes e precisa ser refeita. Entretanto, ele não se desvia de sua
tarefa nunca, continuando a montar o avião enquanto é preciso. Isso significa que ele também
não troca olhares com a câmera ou com o pai, que o grava, nem muda o foco de sua construção.
Além disso, o menino não emite nenhuma vocalização, nem mesmo altera sua posição no chão.
Está imerso e superfocado na construção do avião de LEGO.
Por causa disso, segue a transcrição das falas do pai, que nem ao menos pode-se dizer
que são “recebidas” pelo menino. Contudo, faz-se notar a insistência das demandas linguageiras
do pai.
— E esse avião aí, Tom? Ele tá grande, hein?! Cê vai pôr o cachorro e o gato? Iiih...
Soltou. Ah, meu Deus, e agora? Olha o gatinho, vai, também, que legal! Ih! Tenta ao contrário,
ao contrário. Vou te ajudar, pode?
123

O menino não responde, mas permite que o pai o ajude na construção.


— Foi assim que cê fez, ó, lembrou? — diz o pai, finalizando o vídeo.

3.6.16 4 de Julho de 2020: Números

Tom brinca com um tabuleiro na forma de porco-espinho, com dez espaços de encaixe
circulares que estão vazios. Ao lado, estão números em formato circular, feitos para completar
esse encarte. Ele coloca o número um e diz, em um microfone:
— Doiii oôoôoô.
O pai entrega a ele o número dois, dizendo:
— Agora o número dois, vai lá, põe o número dois.
Tom pega o número e o encaixa no tabuleiro, enquanto continua vocalizando o som da
vogal O no microfone.
— Dois dois dois dois — diz Tom.
— Agora o três — diz o pai, entregando-o o número, o qual ele encaixa na sequência.
— Agora aqui, ó, o quatro, toma o quatro.
Tom coloca o número na posição correta e continua sua lalação, mas seu pai é mais
rápido.
— E o número cinco? Onde que é o número cinco?
Tom coloca a peça na sexta posição. Seu pai o questiona:
— Esse é o número cinco?
O menino responde:
— Ié.
O adulto aceita.
— Hum, então vai pondo, aí, vamo ver.
Tom prossegue, posicionando o número oito corretamente e o número nove virado de
cabeça para baixo, assemelhando-o ao número seis. Depois, posiciona o cinco, mas o troca para
a sétima posição. Coloca o décimo número corretamente em seu encaixe e, em seguida,
posiciona o número sete antes do cinco. Seu pai questiona novamente:
— Ih! Trocou um?
— Um? — pergunta Tom.
Seu pai responde:
— Um.
Nesse passo, Tom pega o microfone e continua verbalizando:
124

— Aô aô aô.
O vídeo termina.

3.6.17 6 de Julho de 2020: Lavando o Carro

A criança está no quintal, brincando com um carrinho para crianças, que pode ser
empurrado por trás por alguém. Esse brinquedo está todo coberto por espumas. Tom o está
esfregando com a mão esquerda e apertando a esponja com a mão direita. Seu pai aparece:
— E aí, Tom? Seu carro tá ficando limpinho?
Tom não responde e continua a lavar o brinquedo, empurrando-o levemente com sua
força na hora da esfregação. Ele segura o carrinho pela haste e continua a esfregá-lo, dessa vez
com a esponja.
— Cê lavou direitinho a parte vermelha? — pergunta o pai.
Tom está lavando a parte de trás do carro, quando seu cão entra em cena e começa a
farejar o brinquedo que está sendo lavado. Tom se levanta.
— Eu acho que o Migo tá querendo te ajudar — comenta o pai. — Cê quer a ajuda do
Migo?
Tom responde:
— Ahh!
Ele começa a lavar outras áreas do carrinho de brinquedo.
— Há há! — exclama Tom, esfregando a parte da frente.
Seu pai insiste na pergunta:
— Quer?
O menino, entretanto, não responde e continua sua tarefa.
O pai pede:
— Dá tchau, Tomzinho.
Dessa vez, Tom olha para a câmera e diz:
— Táu!

3.6.18 8 de Julho de 2020: Cuidando do Migo

O cachorro está deitado no quintal e Tom, apoiado a seu lado, com instrumentos
médicos de brinquedo e um cotonete na mão. Uma maleta se encontra do lado dos dois.
125

— E aí, Tom, o Migo tá dodói? O quê que ele tem? — pergunta o pai, no início da
filmagem.
Tom, exasperado, arfa e responde:
— Ô nô, ô ou. Ô nô, aí!
Seu pai intui:
— Ele tá com febre?
O menino garante:
— Ié.
Seu pai mostra preocupação e indaga qual remédio seria administrado para Migo, ao
passo que Tom segura o cotonete e engrossa a voz para afirmar:
— Oi, iói, ió.
Entendendo o tratamento prescrito, o pai confirma:
— Vai ter que passar o cotonetinho?
O filho afirma, positivamente:
— Ié.
O cachorro começa a se debater no chão, levantando-se. Nesse momento, B. apoia sua
mão em Migo, tentando acalmá-lo com carícias, dizendo:
— Hum, pera aí. Vamo lá, Migo. Eita, pera, vamo ver. Aí, Tom.
O menino, então, prossegue:
— Uau-au, a uai.
Ele passa o cotonete pela pelugem do cachorro.
— Aí o Migo tá melhor? Passa aqui, ó, o cotonete aqui — diz o pai, apontando para o
dorso do cachorro.
— Ô ué — diz Tom, enquanto o faz e é parabenizado pelo pai.
— Isso... Muito bem, veterinário!
O menino abre a maleta e pega outro cotonete, repetindo o procedimento.
— Mais uma vez. Depois tem que jogar todos fora, hein?! — adverte B., que continua
parabenizando o filho enquanto médico veterinário.
— Ó lhá — fala o menino, passando o cotonete sobre o corpo do cachorro.
— Muito bem, cara — comenta o pai. — E agora, qual outro remédio que tem que dar
a ele?
Revirando a maleta, Tom guarda um estetoscópio e alcança uma armação de óculos de
brinquedo na cor vermelha, colocando-a sobre os olhos.
— Você quer enxergar bem de perto o que tá acontecendo? É, Tom?
126

O menino não responde, e o vídeo acaba.

3.6.19 18 de Julho de 2020: Escondendo a Mamãe

Tom está andando, segurando um travesseiro.


— Mama! Mama! — diz ele, em tom alto, e ri, no momento em que joga o travesseiro
em sua mãe, que está deitada em um colchão, recoberta por outros travesseiros, colchas,
pelúcias e almofadas. — Uau.
— Não tá bom, não? Já tampou sua mãe toda — pergunta o pai.
Tom alcança uma tampa grossa e grande de plástico preto e parece se preparar para
jogá-la também no amontoado de coisas, em cima de sua mãe.
— Essa tampa não — diz o pai.
— Não, Tom — diz a mãe, rindo.
Tom coloca a tampa preta no lugar do qual a tirou e assente:
— Tá.
O menino começa a pular animadamente na frente da mãe, gargalhando:
— Bobô e bubu!
— Olha só, a mamãe já tá toda... — começa o pai, mas é interrompido pelos gritos de
Tom, quando a mãe está completamente soterrada, fugindo à vista.
— O na mamãe! Mãe! Mamãe! — diz Tom, aos berros.
Sua mãe pede baixinho:
— Você precisa me salvar, estou aqui, estou aqui!
Tom, percebendo que a mãe está onde ele a deixou, vira-se com um sorriso no rosto e
vai pegar alguns objetos em cima da cômoda.
— Salva a mamãe, Tom. Não, não, não, pode deixar esses aí — pede o pai.
O menino sai com os objetos em mãos, entoando risadas:
— Ué.
Ele os devolve para o lugar.

3.6.20 30 de Julho de 2020: Cozinhando

Tom está em cima de um banquinho na frente do fogão, cujas bocas estão ocupadas por
diversas panelas. Na pia, a seu lado, é possível ver sal, azeite, óleo, pó e filtro de café, outros
temperos e alguns utensílios de cozinha.
127

— O que tá faltando aí, Tom? — pergunta o pai.


O menino destampa o vidro de azeite e coloca um pouco do conteúdo deste na panela
mais funda.
— Tá bom... Ei... Muito bem — conclui o pai.
A criança coloca o vidro de azeite na pia e o fecha com a tampa.

3.6.21 Atendimentos Psicanalíticos

Essas cenas ilustram o funcionamento da relação de Tom com o Outro, com a linguagem
e com a delicada insistência de seus pais em inseri-lo em um brincar simbólico. Mesmo com
ele se servindo de uma comunicação caracterizada como lalíngua, seus pais a tomam como um
dizer, inserindo-o em uma cadeia discursiva mínima. Em um único momento, seu pai demanda
um trabalho de pronúncia, ao ensiná-lo a pronúncia do cachorro da família, Migo, o qual
demonstra a dificuldade de Tom em juntar a palavra completa, mesmo conseguindo reproduzir
suas divisões silábicas, entregando “Adu”, em vez de “Migo”, “Anhan”, em vez de “batata”.
É interessante notar que não se trata de incompreensão da demanda paterna. Ora, Tom
entrega uma palavra, ainda que com entraves de apreensão fonética, sendo-lhe apenas possível
materializar um dizer por via de lalíngua.
Com esses recortes, podemos observar o modo como Tom interage e evita os pais,
destacando como estes se estabelecem nas cenas e a doce insistência convocativa deles pela
presença do filho. Tom demonstra a dificuldade de pôr em movimento concatenado a voz com
o corpo, explicitando sua defesa inibitória. Desse modo, apenas lhe é possível responder a
demanda com lalíngua, na maior parte do tempo.
O trabalho cauteloso dos pais repercute em um duplo movimento: respeito a lalíngua do
filho e, concomitantemente, o nascimento de palavras de contagem (“um, dois”), de resposta
afirmativa (“ié”) e de nomeação (“mamãe”, “tchau”), em meio à lalação dele.
Embora Tom tenha entrado na instituição em junho, os atendimentos psicanalíticos
permaneceram on-line até o final de julho, retornando à modalidade presencial em agosto de
2020. Os atendimentos psicanalíticos permaneceram on-line por decisão minha, vetorizada
pelas inseguranças do retorno aos atendimentos presenciais devido à pandemia. Nessa época,
os atendimentos on-line eram pouco produtivos, restando preservar a continuidade da presença
da analista. Nos atendimentos, era costumeiro ligar para o celular de seu pai ou de sua mãe e
tentar adentrar virtualmente sua rotina.
128

O horário das sessões do menino coincidia com o regime de trabalho da mãe. Na maioria
das vezes, Tom era acompanhado por seu pai. Além disso, muitas vezes, Tom me dizia um
“oi” e saía de cena; outras vezes, ele me cumprimentava e tomava o celular consigo, para me
inserir em seu brincar.
Em 24 de julho de 2020, Tom brinca em seu quarto com seus bonecos, jogando-os
repetidamente na parede e rindo, ao vê-los cair. Não me dava abertura para participar de seu
jogo, e, em minha insistência, por vezes encerrava a chamada. A escolha pela retomada dos
atendimentos presenciais se deu quando sua abertura a minha observação on-line diminuiu
drasticamente, com ele fazendo uma recusa verbal:
— Xu não.
Compreendi sua fala como “Ju, não”. Foi nesse momento que refleti sobre a importância
da retomada dos atendimentos presenciais, tendo em vista que Tom sinalizou um não às telas
como modalidade de olhar do outro. Era necessário o corpo do analista em cena, diluindo a
demanda do objeto olhar intensificado que os atendimentos on-line destacam.
Os atendimentos presenciais retornaram no dia 24 de agosto de 2020. Ao reencontrá-lo,
demonstrei minha alegria em revê-lo. Ele, sem reagir a minha recepção, adentrou a clínica de
óculos escuros e mochila nas costas, recusando-se a tirá-los. Tirou os sapatos e iniciamos uma
brincadeira de pega-pega. Na iminência de ser pego, adentrou a sala de artes e teve seu interesse
despertado por se inserir no atendimento que lá estava sendo realizado. Suspendi por um tempo
as demandas, mas a terapeuta que já utilizava a sala solicitou a Tom que pedisse ao menino que
estava sendo atendido autorização para brincar junto a ele. Diante da resposta negativa, a
terapeuta solicitou sua saída do espaço, e mediei a situação. Tom, insistentemente, bateu na
porta, chorando, querendo retornar à sala. Sem sucesso em suas solicitações, desistiu e se
recolheu em um brincar solitário no parquinho de areia.
Nesse período inicial, foi realizada uma mudança de turno, e os atendimentos de Tom
passaram para o turno da manhã. O atendimento psicanalítico passou a ser após seu atendimento
de musicoterapia, que era experienciado com engajamento e sem fuga das propostas
terapêuticas.
Tom passou a ter um encontro frequente com outra criança que compartilhava o mesmo
turno na instituição. Por vezes, eles entravam em conflito — na maioria das vezes, por disputa
de espaço ou brinquedos. Por vezes, Tom batia nessa outra criança, como único modo de
expressar seus descontentamentos.
Em setembro de 2020, Tom passou a consentir melhor minha presença. Ele insistiu em
um jogo que repete indefinidamente: bater seu boneco de brinquedo (personagem dos
129

Transformers) em uma casinha de madeira. Transpus esse gesto, estabelecendo um contexto


em que o li como uma cena de um Transformer marceneiro com seu martelo, construindo sua
casa. Tom aceitou minha narrativa, diminuindo a intensidade das marteladas, mas sem me olhar
e sem me endereçar nenhum dizer. Ao perder o interesse pelo brincar, saiu da sala e foi ao
encontro de outra criança, que tentava abrir uma porta que estava trancada. Sugeri a eles
procurar a chave que abria essa porta, e eles se engajaram na busca. Tom passou a observar a
outra criança realizando demandas verbais sobre a localização da chave, prestando atenção no
movimento da boca dela.
Em outra sessão, nesse mesmo mês, Tom se empenou, durante todo o atendimento, em
amarrar barbantes nas pilastras do espaço externo, sem emitir nenhuma palavra e sem realizar
nenhuma demanda. No decorrer das semanas, a outra criança, sempre presente, passou a
funcionar como um suporte em seu brincar. Notei seu interesse pelo circuito do brincar dela, a
qual, munida de um mapa de Hot Wheels, realizava uma busca por um carro dessa série,
representado no mapa. Tom e a outra criança saíam em busca desse carro pela clínica,
verbalizando:
— Weeeeeels zuuuuuu.
Avançando em relação a seu modo de funcionamento, Tom passa a se engajar nas
brincadeiras dessa outra criança e passa a inserir sua voz no brincar interativo com ela. Quando
parecia se sentir invadido, recorria ao contato corporal com um traço lido, a priori, como
agressivo, mas que se trata, na verdade, de um exercício de domínio ou de resgate de uma
posição de controle, tendo encontrado passividade na outra criança.
Ao iniciarmos uma sessão em outubro de 2020, encontro Tom brincando na areia junto
a mais duas crianças, uma menina, ao fundo, e outro menino, a seu lado. Esses momentos eram
respeitados e precediam à convocação para se conduzir até a sala de atendimento. Nesse tempo
do tratamento, não havia tanta demarcação do início da sessão, pois, para Tom, o início do
trabalho se dava quando ele chegava ao Espaço Nardin. Devido ao isolamento social decorrente
da pandemia, era oportuno que o encontro e a interação com outras crianças, na clínica, fossem
respeitados. Afinal, mesmo que a dinâmica não evidenciasse qualquer colaboração e até mesmo
sugerisse confronto, a situação poderia provocar o tratamento de uma nova experiência com o
campo social para todos os envolvidos.
Nesse encontro, nenhuma das três crianças parecia compartilhar elementos no brincar,
pois cada uma delas desenvolvia sua atividade em paralelo. Tom tinha uma pá de brinquedo em
mãos e cavava um buraco no tanque de areia. Enquanto cavava, ele soltou:
— Uhum, uhum.
130

A menina, ao fundo, tentava encaixar seus pés nos espaços vazados do balanço com
assento feito de cordas, o que chamou a atenção de Tom, que exclamou, na medida em que
começou a usar a pá para balançar o pé da menina:
— Na bê bá tlê blé!
Ela grita:
— Ai!
Tom pede:
— Xai, xai, xai, xai!
A menina responde, entristecida:
— Tom, eu tô com o pé agora aqui.
No circuito social, o endereçamento de Tom ao Outro era restrito. Sua fala era composta
de pura lalação, com pontuais equivalências fonéticas que possibilitavam ao Outro alguma
compreensão, por exemplo o “xai, xai, xai, xai”, que, dentro do contexto observado, equivalia
a um “sai, sai, sai daí”.
Em caráter de sessão individual, pela particularidade da transferência em jogo, Tom
realizava endereçamentos mais abrangentes. Em trecho filmado de uma sessão, Tom e eu
estamos de frente para a câmera. Ele apoia sua cabeça em meu braço e diz, colocando a língua
para fora:
— Ele tá blé blé blé!
Pergunto:
— O que é isso “blé blé blé”?
Diante disso, ambos rimos. O menino exclama:
— Chama megazóguis!
Traduzo para a câmera:
— Megazord, pessoal!
Torno a perguntar a ele:
— Quem é o Megazord?
Tom fala:
— Nanord blé blé bli.
Continuando o diálogo, eu falo:
— Eu prefiro o Ben 10 com a bola de fogo!
Tom, então, grita, em tom agudo:
— Bola de canhão!
131

Tom retorna com o grito da bola de canhão, mas acaba derrubando a câmera que nos
gravava com um brinquedo que estava em suas mãos. Exclamo:
— Ah, não!
Reposiciono o objeto para dar sequência à gravação. Digo para Tom:
— Sabe do que eu também gosto? De... menino gato!
A criança parece não entender. Explico:
— O menino gato... Tu gosta do menino gato?
Tom nega e começa a esfregar o rosto em minha perna. Eu respondo:
— Não? Mas ele é... como é que é?
Tom não me permite concluir a pergunta, intervindo:
— Chama... — diz ele.
Não entendo sua fala de início e pergunto:
— Como é? Eles são grandes?
Ele me corrige, soltando seu nome com um grito agudo novamente. Compreendo o que
estava sendo dito e exclamo o nome dele, junto a ele, lançando outra pergunta:
— Ah, você não gosta do menino gato, você gosta do Tom que é você?
Tom responde apenas com um “É...” baixinho. Nesse momento, dirijo-me à câmera e
me apresento:
— Olá, pessoal, eu sou a Julianne, e você é o... — digo eu, indicando com a mão para
que o menino siga minha fala.
Ele se apresenta. Pergunto sua idade, e ele diz:
— Cinco horas!
Prossigo, revelando que tenho 35 anos. Nisso, o alarme de segurança da clínica dispara.
O som consternador e estridente faz Tom intervir na apresentação com um: “Opa!”. A gravação
termina. Eu digo, em tom de brincadeira:
— Meu Deus! O alarme está tocando!
O trecho acima resume a temática do brincar na sessão. Tom surgia na clínica com
camisas, brinquedos ou acessórios pessoais das temáticas de seus desenhos preferidos. Nessa
época, era frequente o uso de um relógio do Ben 10, que, em seu brincar, tinha o poder de lançar
poderes sobre mim. O ensaio simbólico do brincar ainda não permitia fazer deslizamentos e
consistia em uma repetição de cenas provavelmente extraídas de desenhos animados. “Bola de
canhão” se tornou um dizer compreensível no meio de sua lalação.
132

Cabe ressaltar a percepção sobre o esforço de Tom em modular a própria voz para emitir
essas palavras, havendo uma disparidade na voz natural enquanto “lalava” e enquanto “falava”.
Observamos que, em um primeiro momento, Tom se servia de pequenas palavras, como “não”
e “xai”, para barrar o outro; com o tratamento, passou a ampliar seu repertório para comunicar
seus interesses no brincar. A partir da inclusão de seus murmúrios no sentido do texto que
bordejava seu brincar, passou a estruturar pequenas demandas diante de seus incômodos.
Certa vez, sem conseguir transmitir as razões de seu incômodo, Tom, sentado em uma
cadeira giratória de escritório posicionada junto a uma mesa na sala de espera da clínica, aperta
os botões do telefone fixo que está em suas mãos e diz:
— Tá... Defaê, eu eu eu ligo.
Pergunto a ele:
— Você vai ligar para quem?
Ele responde:
— A Xu vai, vai!
Entendendo o que ele disse, eu o interrogo:
— Você quer que eu ligue?
Ele responde:
— É.
Ele pega minha mão e a conduz ao telefone, para que eu ligue para sua mãe para buscá-
lo. Ocasionalmente, me nomeava como “Xu”, homofônico a “Ju”.
Na continuidade da estruturação de pequenas demandas, Tom verbalizava ações
motoras constantemente de duas formas: “Niu niu niu” e “Lhul Lhul Lhul”, como ilustra o
fragmento a seguir:
“Tom e eu estávamos em uma sala de portas fechadas, enquanto na área externa ocorria
uma sessão de psicomotricidade. Interessado em sair da sala, gritou para mim, de frente a uma
janela:
— Lhul lhul lhul!
Supus que sua demanda era a de se inserir no brincar realizado pela psicomotricista e
outra criança. Nesse momento, eu o orientei:
— Fala assim: Aline [nome da psicomotricista], eu quero brincar!
Tom repete, olhando para mim:
— Line, báh!
Ao mesmo tempo, ele gesticula com a mão direita. Digo:
133

— Tem que falar para ela, não é para mim.


A criança, ouvindo isso, vira-se de costas e finge sair escondida, transparecendo que a
demanda de fala e de olhar sincronizados era excessiva para ela.”
Em novembro de 2020, Tom chega à clínica e procura por Heitor, criança com que
compartilha o mesmo turno, o qual já brincava de futebol com seu terapeuta. Com as
dificuldades de Tom de se adequar às regras da partida já definidas pela outra criança e por seu
terapeuta, entro no time e me ofereço a compor a cena com duas traves de futebol no gramado
e a delimitação do local do gol. Tom apresenta dificuldades em aderir à dinâmica do jogo, não
suportando perder o domínio da bola. Como isso, os passes para outro jogador não são
possíveis. O juiz (o estagiário) interrompe a partida, e, juntos, nós modificamos as regras do
jogo e partimos apenas para a regra de chutes a gol, nomeadas como pênaltis. Desse modo,
conseguimos estruturar um circuito do brincar, mas quando Tom é convocado a ser o goleiro,
ele se recusa e abandona o jogo. Os enquadres do jogo coletivo o convocam a flexibilizar sua
posição, a se submeter a demandas encarnadas como regras, que, para ele, podem ser tomadas,
inicialmente, como regras pedagógicas desconfortáveis.
No dia 18 de novembro, Tom chega à clínica, e, nesse momento, sou informada por seus
pais do falecimento de sua avó materna. Advertida da presença de Tom na cerimônia do enterro,
observo sua introspecção e sua total recusa a demandas. Ficamos em silêncio no parquinho de
areia. Ele passa a destruir meus castelinhos de areia. Passa a lançar muita terra fora do tanque,
o que me leva a intervir sobre as regras da clínica e da impossibilidade de ele continuar com
seu ato. Ele grita e me bate. Vou em busca de duas vassouras para recolocar a areia em seu
lugar. Ele se recolhe no meio da areia e passa a jogá-la em si mesmo, enterrando seus pés.
Durante toda sessão, respeitei seu movimento, mantendo-me como uma presença não invasiva.
Vale pontuar que esse movimento de enterrar partes de seu corpo na areia perdurou por alguns
meses, e apenas as sessões de musicoterapia pareciam animá-lo a buscar outra modalidade de
expressão.
Na semana seguinte, encontro Tom na sala de musicoterapia finalizando sua sessão. Ele
realizava, junto ao musicoterapeuta, uma cena com músicas da banda Queen, tocando
instrumentos e simulando cantar. Na transição entre os atendimentos, continuamos a cantar as
músicas da banda. Tom vai até a sala de terapia ocupacional e procura as malhas sensoriais,
para envelopar seu corpo. Fica dentro de uma malha que engloba todo seu corpo e, cantarolando
a música “We will, we will rock you”, ritmado a cantoria, diz:
— Niu niu niu ni niuuuuuuu.
134

Foneticamente, em sua voz, esforça-se para parecer com “We will, we will rock you”,
que pode ser traduzida para o português como “Nós vamos sacudir você”.
No início de dezembro desse ano, Tom chega à clínica e se dirige à sala de atendimentos
em grupo, abrindo um dos armários. Aponta para uma caixa de fichas, demonstrando que a
queria, embora não a alcançasse. Digo para que ele me peça para pegá-las, e ele diz:
— Mamãe, ua ua ua xi.
Diante disso, afirmo:
— Tom, meu nome é Ju, não mamãe.
Ele responde:
— Xu, mua mi xiiiiiii.
Tom parece suportar melhor a distinção a que foi convocado e se esforça para corrigir
o referente no endereçamento de sua fala. É importante pontuar que essas trocas de referentes
não eram comuns e, ao que parece, explicitavam a urgência em ter suas demandas atendidas,
ciente de que, na estrutura do discurso, era necessário definir um referente para demandar algo
a ele. O significante mamãe não é qualquer referente, o que me levou a ler esses movimentos
como um sinal de transferência, ao receber da criança um deslocamento de seus agentes de
cuidado. A distinção do referente é importante e imediata para que se possa delinear as nuances
de seus agentes de cuidados.
Na última semana de atendimentos, antes do recesso de final de ano, Tom chega à
clínica com uma cesta de Natal para presentear a equipe. Na cozinha da clínica, em cima da
mesa, estão diversas barras de chocolate dentro de plásticos vermelhos, que as embrulhavam.
Tom distribui barras de chocolate para os adultos presentes, tanto para os terapeutas quanto
para os familiares de outros pacientes da instituição. Enquanto o faz, ele exclama:
— Ta tê.
Ele recebe os agradecimentos dos presenteados. Tom segura algumas barras na mão e
grita:
— Agora é tu tá tuto! É xenxe é du rock’n’roll!
Ele leva os chocolates que segura na direção de outro menino, de sua idade. Leva as
mãos para cima e diz:
— Cabiel é dêia!
A terapeuta, em sua frente, grita:
— Uhuul!
Retomamos mais oito vídeos caseiros que encerram o ano de 2020, os quais nos
permitem observar o brincar de Tom emparelhado com sua linguagem e o acréscimo do sim
135

como mais uma posição afirmativa, o que demonstra seu consentimento às demandas mais
complexas que surgem no brincar.

3.6.22 16 de Agosto de 2020: Pista de Carrinho

Tom está sentado em seu quarto, montando uma pista laranja de carrinhos da Hot
Wheels sustentada por uma cadeira de plástico, um balde colocado de cabeça para baixo e uma
mochila de rodinha. O menino está ajeitando a pista sobre os objetos.
— E aí, Tom, como é que tá a sua pista? — pergunta o pai, que não obtém nenhuma
resposta do menino, que posicionava a mochila. — Hum... Olha, a pista do Tom tá ficando uma
pista gigante! Uaaau, olha só! A pista dele! Uuuu, olha só. Olha a pista gigante.
O homem filma toda a extensão da pista, de parede a parede, no quarto da criança.
— Tom, vamos pôr o carrinho lá para ver se a pista funciona? — pergunta o pai.
Nesse momento, o garoto se levanta e toma um carrinho em mãos, exclamando:
— Não!
O pai se surpreende:
— Não? Você não quer pôr o carrinho na pista, não?
O menino começa a fazer um barulho de motor pela vibração dos lábios, passeando com
o carrinho em suas mãos pelos móveis do quarto. O pai continua sua proposta:
— Ó, Tom, eu vou pôr o carrinho na pista, pode?
O menino intervém:
— Não! Não!
— É só você? — indaga o pai.
Tom sobe na cama para alcançar a altura do ponto inicial de sua pista, na janela, e
responde:
— Ié.
— Então põe na pista, vamo ver. Tom pôs o carrinho na pista — narra o pai.
É possível ouvir o barulho do brinquedo batendo e caindo. O adulto grunhe e exclama
que havia batido.
— Ui — comenta Tom.
— Toma, Tom, tenta este — diz o homem, entregando um carrinho laranja para o menino
colocar na pista. — Vamos ver se este vai bater.
O menino assim o faz, e acontece a mesma coisa.
— Bateu! Bateu de novo! Oh, não! — reclama o pai.
136

Tom vai buscar mais carrinhos. Desce da cama, enquanto fala, com frustração:
— Ui, ú, úuuu.
— E agora, Tom, o quê que você vai fazer? — questiona B.
A criança não responde e vai engatinhando, passando por debaixo de sua construção,
até outros carrinhos Hot Wheels, colocando um deles na pista, mas sem soltá-lo, guiando-o com
as mãos. O pai diz:
— Pode soltar o carrinho.
Porém, Tom continua guiando. Vendo-o passar pela parte em que havia dado problema
anteriormente, B. começa a fazer sons simulando o barulho de um carro em alta velocidade.
Tom tenta mover o carrinho não mais o segurando, mas ajustando a altura da pista para fazer o
brinquedo ganhar impulso e se mover.
— Empurra, empurra o carrinho — sugere o pai — com a mão assim, ó.
O homem demonstra, contudo o menino intervém:
— Não oai! Uai! Não, uai!
O adulto percebe a ideia da criança e pergunta:
— O quê que cê quer que faz? Assim? Levantar assim?
Ele levanta a pista, como fazia Tom.
— Sim — responde o filho.
O pai segue:
— Ó, lá vai o carrinho... Ih, bateu!
O brinquedo se encontra com a haste da mochila, enquanto o pai narra.
— Pera aí, tem que levantar assim — conserta o pai.
A jornada do carrinho continua até o final. Tom o pega, levanta-o para a câmera e diz:
— Dôi dôi uuuu ió dé dé dei!

3.6.23 18 de Agosto de 2020: Carrinhos, Números e Troca

Estão agrupados alguns carrinhos da Hot Wheels na frente de numerais recortados em


círculos de papelão, indicando a quantidade de brinquedos em cada grupo.
— Esses aqui são os carrinhos do papai — diz o homem.
Tom vai pegar os dois que estão no grupo do numeral dois.
— Você quer esses carrinhos? Então me dá dois do outro, vamos trocar.
Tom pega os carrinhos e vai em direção a outro amontoado de vários carrinhos
organizados em fileiras.
137

— Duuu — diz Tom.


O pai insiste:
— Então vamos trocar, eu quero dois agora. Dois
O pai faz o sinal do número com os dedos indicador e medial.
— Eéeeel, hm hm hm — fala Tom, enquanto ajeita um novo carrinho nas fileiras.
— Ué, mas cadê os dois que você ia me dar? — pergunta o pai.
O garoto brinca, apontando para vários lados do quarto.
— Uuu á!
O homem estende a mão aberta e pergunta:
— Qual que cê vai me dar? Pó me dar dois aí.
Tom sorri e encosta sua mão na de seu pai.
— Não, não é tocar, não. Dois, cadê? Eu quero. Pode me dar aí dois.
O pai estende a outra mão. Tom exclama: “Aaah”, sorrindo, e toca usando sua outra
mão.
— Não, senhor, pode me dar dois carrinhos. Psiu — chama a atenção o pai, apontando
o dedo indicador.
Tom vai segurar o dedo do pai, que fica desviando e aponta:
— Dois carrinhos lá atrás, ó, tem dois carrinhos atrás de você.
Tom vira-se, com pouca vontade.
— Despista não — repreende B.
Tom mostra um carrinho para o pai, que afirma que é isso que quer. Tom joga para ele
o que estava em sua mão.
— Não, não joga não. Um. Agora quero o outro. Dois. Mais um.
O homem levanta o dedo, sinalizando o número um. O menino, em resposta, alcança
um carrinho mais afastado de si e o joga para o pai. Segurando os dois brinquedos em uma mão,
o pai chama a atenção de Tom:
— Ó dois, tá vendo?
— Ummm... — responde o filho.
— E agora, quer mais algum?
O menino chega perto dos carrinhos do pai.
— Iêee... tê da u tau.
O menino aponta para os brinquedos agrupados numericamente pelo homem e faz
alguns sinais com a mão, batendo palma, cerrando os punhos e socando uma mão na outra,
dizendo:
138

— Tô tê a um tô uaaaai uá.
O pai intui:
— Cê quer o McQueen?
O menino acena com a cabeça.
— Então fala: Katchau — continua B.
Tom o imita:
— Táu!
Isso se repete, mas a criança responde da mesma forma.
— Então tá bom. Me dá um aí, que eu te dou o Katchau de ferro.
Tom larga o brinquedo que segura e vai em direção ao carrinho desejado. O pai o faz
esperar:
— Ãh, ãh, ãh... Primeiro você me dá um. Vamos fazer uma troca.
Tom se estende e pega um carrinho.
— Vai me dar o da polícia? — pergunta o pai.
O menino desiste de entregar, e B. insiste:
— Qual que você vai me dar pra ter esse aqui?
Tom tenta ir para a pilha de carrinhos do pai, mas este o repreende e afirma que aqueles
já eram seus.
— Ãh, ãh, ãh... Esses já são meus, não pode. Ali ó, ali tem vários carrinhos. Qual que
você vai trocar? — pergunta o pai.
Tom começa a mexer nos carrinhos que estavam guardados atrás de si e alcança um.
— Outro Katchau?
O menino responde:
— Ié.
— Tá, mas aí vai ser Katchau por Katchau, tem certeza? — adverte o pai.
— Ié — confirma Tom.
A troca é realizada e B. segura seu novo carrinho.
— Ah, mas esse aqui é de plástico, né? Muito bem.

3.6.24 22 de Setembro de 2020: Pisca de Carrinhos

Tom está lançando um carrinho Hot Wheels em uma longa pista, no formato de L,
apoiada sobre a cama, colchões dobrados e a cadeira.
— Capotou! — exclama seu pai, quando o brinquedo não consegue fazer a curva.
139

— Que? — indigna-se o menino.


Ele desce da cadeira, busca o carrinho e começa a mexer na pista.
— Pega o outro, então. Joga lá de novo pra gente ver como é que vai ser. Qual que vai
agora? — continua o homem.
Tom alcança outros dois carrinhos e fala animadamente:
— Um!
O pai pergunta se vão ser “esses dois aí”, e o filho, já caminhando para o ponto inicial
da pista, repete afirmativamente:
— Tois!
— Como é que você vai fazer, então... Vamo lá. Um, dois, três e... vai solta!
O menino não parece se importar com a marcação do pai. Depois de alguns segundos,
solta os carrinhos simultaneamente. Um deles consegue chegar até o final da pista, enquanto o
outro é jogado para a fora do brinquedo.
— Uaau! Um conseguiu e outro não! — narra o pai.
— Nhão — comenta o menino, indo buscar o carrinho que caiu da pista.
— Não conseguiu? — assegura-se o adulto.
O garoto responde:
— É lháu.
— Tenta lá de novo, então. Vamos lá.
O menino decide lançar outro carrinho, dessa vez da metade da pista, após a curva. O
carrinho chega ao final.
— Ié! — exclama Tom, abrindo os braços em comemoração, abraçando seus carrinhos.

3.6.25 16 de Outubro de 2020: Dinossauro e Menino Gato

Tom está brincando no chão com uma torre montada, um boneco azul no topo desta e
um dinossauro de plástico em sua base. Ele imita o barulho de um dinossauro:
— Ruér ruér ruér!
Ele o faz várias vezes, sendo que, antes de fazê-lo, olha para a câmera. Ele aperta o
boneco de dinossauro, que emite um som. Tom repete suas imitações. Ele olha para a câmera
novamente e diz:
— Ô dá.
Tom retorna com o barulho do dinossauro, ameaçando o boneco do menino gato em
cima da torre. Mais uma vez, o menino olha para a câmera. Seu pai pergunta:
140

— E o quê que o menino gato vai fazer, Tom?


O filho continua a imitar o som do dinossauro, terminando com: “ga ga”. Assim, Tom
empurra o dinossauro da torre.
— Oh, não! Caiu... — narra o homem.
O menino continua interpretando o dinossauro, até que se levanta, com o boneco do
menino gato em mãos, e diz:
— Uooou oou.
Ajeita a torre e coloca o boneco onde estava.
— Ah, o menino gato vai ficar lá em cima. Ah, muito bem — comenta o pai.
Tom responde, já sentado:
— Ruér.

3.6.26 23 de Outubro de 2020: Cortando a Unha

Tom está sentado na cadeira e sua mãe está em sua frente. Ela puxa o pé do menino, que
logo o puxa de volta, usando as mãos, para perto de si. Ele ri:
— Ahh meu bé.
— Tá soltando a pelinha, filho, deixa eu ver — pede a mãe.
— Não não, não, não, não, não nãaaao! — nega o menino.
Ela ri e passa a mão na testa de Tom, levantando a franja dele.
— E eu acho que nós vamos ali também cortar esse cabelo. Me dá o pé, agora eu vou
cortar, Tom.
Nesse tempo todo, Tom balança a cabeça, negativamente, e repete:
— Não.
Eles ficam puxando o pé de um lado para o outro.
— Não vai doer, eu só tava soltando a pele — assegura a mãe.
Tom começa:
— Aaai, ai, ãaa ãa.
Demonstra medo, mas ri. Ele aceita, mas continua soltando:
— Ai.
— Não vai doer, mamãe só tava soltando sua pele — diz a mãe, até que o menino
empurra o cortador usando o outro pé.
O vídeo é cortado quando a mãe fala:
— Não.
141

3.6.27 30 de Outubro de 2020: Assistindo ao Jogo

Tom está assistindo a um jogo de futebol na televisão. A luz da câmera liga, e ele volta
sua atenção, rapidamente, para a filmagem.
— Foi foii... — fala o menino, gesticulando com a mão.
Começa a apontar para a TV.
— Foi! Foi!
Ele se levanta, pulando na cama, animado.
— Foi quase — diz a mãe, ao fundo.
— Vai! Vai! Vai! Vai! — encoraja a criança. — Iiii.... foi!
Tom continua a falar:
— Gol! Gooool lô lá lá lá.
Ele se vira e diz:
— É... papai.
Ele vai em direção ao pai, que o filmava.
— Oi, filho — responde o homem.
— Dé tis dóu pi — fala o menino, antes de o vídeo acabar.

3.6.28 25 de Dezembro de 2020: Manhã de Natal

Tom está sendo filmado logo após acordar. No quarto de seus pais, sua mãe ainda está
dormindo. Ele pega um brinquedo na cama e sai em direção à sala:
— Tei tiui — diz, enquanto sai desse cômodo.
Seu pai, filmando, vai atrás dele e comemora:
— Feliz natal, mamãe!
Ao ver os presentes debaixo da árvore de Natal, o menino exclama, com surpresa:
— Ó, tóo!
— É natal, filho, pra você — explica seu pai.
Tom pede:
— Ai.
Ele pede para abrir os presentes.
— Tal é a tor, um tlem um tlem — fala Tom, apontando para os presentes usando
o brinquedo em suas mãos.
— É... são três — traduz o pai.
142

— Pai ô é, tois um tlês — responde a criança.


Tom pega um dos pacotes embrulhados.
— Ahn? Tá ta ta ta... mim... — pergunta, sacudindo o presente para tentar adivinhar,
a partir das pistas sonoras.
— O que será que é esse daí? — pergunta B.
— Tabli pla mim.
É possível entender o dizer de Tom. Nesse momento, a criança parece falar algumas
palavras mais compreensíveis, abandonando sua língua privada. Além disso, ele está
visivelmente mais crescido.
— Tábi.
Ele coloca o presente no chão.
— É pra abrir... — traduz o pai.
O menino começa a rasgar o papel de embrulho, cantarolando, sentado no chão.
— O quê que será que é esse daí? — pergunta o pai, contribuindo para a atmosfera de
ansiedade.
O menino consegue abrir e revela um brinquedo de espada e escudo. Ao longo desse
processo, ele vocaliza alguns sons intransponíveis.

Nosso objetivo com a descrição minuciosa dos vídeos e os relatos de sessão, além de
demonstrar a posição da criança, do mutismo a lalíngua a céu aberto, é mostrar um trabalho
intenso por parte da família de Tom e no tratamento, mesmo com as dificuldades geradas pela
pandemia. Começamos a perceber como o brincar faz borda simbólica, resultando em um
percurso que só em outubro de 2020 passamos a observar: um brincar de faz-de-conta, que foi
se estruturando com mais clareza. O ano de 2020 foi um ano de saída do mutismo. Na medida
em que ia consentindo com o Outro, Tom pôde por sua lalíngua para operar nos circuitos do
brincar, possibilitando o surgimento de algumas palavras. O consentimento com o Outro é fruto
de uma paulatina diminuição da inibição do movimento de concatenação da voz com o corpo,
na medida em que se localiza minimamente um lugar na cena familiar.

3.7 A Língua Verbosa e Privada

Lacan correlacionou o balbucio da criança com lalíngua. Lalação é o que estaria mais
próximo da palavra balbuciar. Sendo uma bateria de significante pura, a lalação não tem
gramática e é feita de S1. Na Conferência de Genebra sobre o sintoma, Lacan ([1975]/1998)
143

afirmou que lalíngua está correlacionada ao gozo fálico, sendo correlativa ao corpo, ao gozo do
corpo, embora esteja além do corpo, fora dele. Lalíngua articula um além do conteúdo do
enunciado; ela enoda os afetos e anima o gozo do corpo. Tom já pronunciava algumas palavras,
porém estas não apresentavam descontinuidade de sua lalação, denunciando que há muito mais
em jogo do que um mero tratamento da pronúncia.
O caso apresentado nos mostra que há um sujeito em jogo que se esforça para conectar
voz, corpo e intelecto, isto é, que se esforça por uma ordenação simbólica e pelos efeitos desta.
O trabalho de lalíngua realizado por Tom faz corpo ao atá-lo com a voz que o afeta. Esse
trabalho de imprimir lalíngua vai de encontro ao que evoca a teoria dos Lefort (2003/2017),
segundo a qual no autismo não haveria uma mutação do real para o significante, por não existir
um S1 incorporado.
Valer-nos-emos da hipótese de Maleval (2021) segundo a qual vocalizações
involuntárias e a linguagem verborrágica atestariam que o autista está imerso em lalíngua, pois
não há como um ser humano não ser afetado de alguma maneira pela linguagem. O autor retoma
uma pista de Lacan ([1972–1973]/2008) contida no Seminário XX, sobre a ligação de lalíngua
com os afetos:

O inconsciente é o testemunho de um saber, no que em grade parte ele escapa ao ser falante.
Este ser da oportunidade de perceber até onde vão os efeitos da alíngua, pelo seguinte, que ele
apresenta toda sorte de afetos que restam enigmáticos. Estes afetos são o que resulta da presença
de alíngua no que, de saber, ela articula coisas que vão muito mais longe do que aquilo que o
ser falante suporta de saber enunciado (p. 149)

Lacan distingue afeto de emoção. Enquanto os afetos respondem desde o corpo,


ressaltando resíduos fragmentários da língua, a emoção surge da tomada do ser falante de um
discurso, modelado pelo significante. Como destaca Lacan ([1972–1973]/2008),

[...] alíngua nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos. Se pode
dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de alíngua, que
já estão lá como saber, vão bem além de tudo o que ser que fala é suscetível de enunciar. (p.
149)

Por isso, a angústia, o afeto que não engana, não está ligada a nenhuma representação,
sendo não quantificada pelo significante; ela é puro advento do real. No autismo, lalíngua não
se apaga; ela vigora por não ser suplantada pela substituição que opera ordenando a junção ao
discurso estabelecido.
Maleval (2021) tece comentários sobre momentos de vocalização involuntária, quando
o autista sai da posição de mutismo, ou de verborragia, quando expressa uma enunciação clara
e compreensível. O autor adverte que a enunciação se dá pelo contato com o gozo do corpo
144

(gozo Outro, distinto do gozo fálico) e não pelo enunciado vindo do espelho do Outro. Ele
afirma que a vocalização involuntária não é uma construção intelectual trabalhosa, que ela sai
das entranhas, resultando em uma experiência desoladora para a criança autista. É apenas no
auge da angústia que o autista pode soltar uma vocalização. A linguagem verbosa, insistente
em autistas, tem uma função exploratória que a impede de ser equiparada à linguagem sem
sentido: suas variações, por vezes, participam de uma busca pelo aprendizado da língua e de
suas regras.
Em tempos de corte com o laço social generalizado, exacerbado em decorrência da
pandemia, o único lugar de abertura para o mundo era a instituição, que Tom frequentava duas
vezes por semana, encontrando adultos e outras crianças. Progressivamente, diante da chance
de inscrever novos circuitos com o Outro, Tom abandonava o silêncio, em troca de uma fala
monocórdica e incompreensível. Em sua tentativa de tratar o objeto voz, consolidou essa
modalidade comunicativa como uma língua verbosa e privada. Quando seu nome era indagado,
respondia conforme a convenção fonética, acrescentada de “piu-piu”, som que atribuía a sua
nomeação. A fonoaudióloga constatou que, em sua língua privada, havia expressões da língua
alemã, e a família confirmou que Tom consumia alguns vídeos de famílias alemãs explorando
brinquedos em canais no YouTube.
Segundo Maleval (2021), uma língua privada é uma invenção mais ou menos
estruturada que emerge da linguagem prolixa. Os S1 que a compõem não possuem
características próprias de lalíngua, como ser uma multiplicidade inconsistente: são distribuídos
pelo sujeito em oposições reguladas. O autista busca, através de sua língua particular, pôr em
ordem seu mundo solitário e encontra satisfação em manipular a invenção, a qual dificilmente
é forjada para a comunicação. A língua privada obedece a uma estrutura que ordena e neutraliza
a polissemia dos equívocos; é uma língua que ninguém fala, uma língua sem Outro, o que
possibilita ao autista uma borda transitória entre o sujeito e o outro.
No caso, nosso marcador temporal para a consolidação da língua verbosa e para a
tentativa de consolidá-la como uma língua privada é o ano de 2021. Com o objetivo de tratar
os dados clínicos dessa época, continuaremos com as apresentações de fragmentos de sessão e
descrições de vídeos caseiros, que possibilitam ilustrar o trabalho de Tom com a língua.
Nas primeiras sessões do ano de 2021, entre janeiro e fevereiro, Tom retorna, de modo
deferido, a seu anterior interesse por cordas: em silêncio, ele tentava unir, por suas amarrações,
móveis da sala conectados ao trinco das portas e grades. Inseria-me nesse movimento buscando
auxiliá-lo, já que ele se mostrava compenetrado em pôr força nos nós. Sua força não era
suficiente para a fixação. Ficava muito frustrado ao constatar que os móveis não tinham força
145

o suficiente para proporcionar uma estabilidade a suas amarrações, pois eles deslizavam ou se
desprendiam quando o efeito da pressão gravitacional agia. Buscando ampliar suas produções
de amarração, na sessão seguinte, separei, previamente, uma lona de circo e as cordas com que
brincava na sessão anterior. A área externa, o pátio de brincar da clínica, possui quatro
estruturas que servem de sustentação para um toldo, e nelas sugeri esticar a lona e amarrar as
pontas desta. Tom se animou com a proposta. Pela necessidade de suporte para realizar a
montagem, passou a se comunicar verbalmente. Consolidou em sua linguagem verbosa um
código privado para solicitar toda e qualquer ação verbal que demandava o outro: “niu niu niu”,
associado ao gesto de dar um nó. Da mesma maneira, ele se utilizou do código “niu niu niu”
somado ao gesto de apontar para cima para subir a altura da lona, e assim por diante. Embora
eu desse a nomeação verbal contextualizada — “amarrar”, “levantar” — não era de interesse
de Tom se servir dessa modalidade expressiva da língua. Após a conclusão da montagem, Tom
proibiu que outras crianças e adultos que transitavam na clínica adentrassem por baixo da lona
de circo, permanecendo o resto da sessão embaixo dela, observando as cores e os movimentos
que o vento proporcionava.
Na sessão seguinte, em fevereiro de 2021, encontro Tom se opondo ao musicoterapeuta
a recolher umas fichas de brinquedo que ele tinha espalhado durante a sessão. Insiro-me nesse
contexto, e, na medida em que dois adultos lhe demandavam a mesma coisa, Tom inicia um
movimento de fuga da sala. Cesso as demandas e deixo que ele esvazie seus afetos, antes de
estruturar alguma outra demanda para a sessão. Ele prefere se isolar e procura brincar sozinho
na sala de grupo. Quando seu pai chega para buscá-lo, recusa-se a ir embora; passa a jogar
brinquedos da estante no chão e tenta se trancar na sala, tudo isso com choros intensos. Peço a
seu pai para entrar e me ajudar a mediar a situação. Tento explicar o que tinha acontecido desde
a finalização do atendimento de musicoterapia, e Tom passa a deferir golpes no pai, que
intervém de forma mais firme, conseguindo tirá-lo da cena.
Após esse episódio, nas sessões seguintes, Tom recorre a malha sensorial suspensa da
sala de terapia ocupacional e, dentro dela, se endereça a mim, dizendo:
— Niu niu niu.
Ele pede, juntamente a um gesto com a mão, para que eu rodasse a malha até que ele
ficasse comprimido dentro dela.
146

Figura 6. Malha sensorial suspensa.

É neste período que Tom passa a demonstrar modificações em sua língua, diminuindo
a intensidade verborrágica, e ser mais preciso com seu dizer, servindo-se de “não”, “é”,
contagens numéricas até três, nomeação de si mesmo e “Tom piu piu”. Não obstante, algumas
palavras em inglês e alemão surgem com mais frequência em seu brincar. Ao que parece, ele
esboça a construção de uma língua privada, com códigos fixos e estabelecidos, sugerindo,
talvez, que trabalhava em torno da transposição de línguas em busca de mecanismos que
franqueassem a tradutibilidade de seus afetos em uma língua compartilhada.
Na mesma época em que Tom passou a se nomear de “Tom piu piu”, seu pai, em vídeo
caseiro, insistia na escrita de seu nome. Em uma folha branca separada em sete faixas
horizontais, Tom escreve com o lápis preto. Na primeira faixa, seu nome está escrito com letras
em caixa alta. Na segunda, estão rabiscos em paralelo às letras, sem formar um registro gráfico
que se assemelhe a estas. O menino se dedica ao terceiro e ao quarto. Nenhuma dessas tentativas
registra muito bem as letras, apenas o A. Seu pai o auxilia:
— Vamo repetir as letrinhas? T... O... M... O T tem outra perninha, aqui ó. A perninha
do T. Agora O... Agora M...
— O... — repete o menino.
— Agora M... M... O ! Agora cê vai copiar igual tá aqui em cima, vamo lá. A última
vez — diz o pai, mas a atividade se interrompe.
Tom larga o lápis e fica fazendo o som de “bê” repetidas vezes.
— Cê cansou? — pergunta B.
O menino diz:
— Olhe.
A demanda pela escrita ainda se mostrava difícil para Tom, embora ele conseguisse se
nomear com mais facilidade na relação com o outro. Em outro vídeo caseiro, Tom tenta explicar
sua vontade, mas parece não ser compreendido satisfatoriamente por seus pais.
147

— Quê que cê quer que eu faça? — pergunta o pai filmando o filho, que está usando
uma camisa de Star Wars e falando diretamente para a câmera.
— Rêee... Ré cá gom guê las — responde, dessa vez distraído.
— Não... o que é pra fazer? — insiste B. em sua pergunta.
— Rêi, tal dom veloz, tá lum corrêgo — responde Tom novamente.
Os sons vogais parecem se repetir, combinando-se com outras consoantes, mais
compreensíveis por sua vez.
— Ah, então eu não vou fazer. Eu vou dormir aqui então. Tá bom?
O adulto completa, fazendo como se fosse desistir de entender.
— Tá bom — fala Tom de forma perfeitamente compreensível.
— O que é pra fazer? — torna a perguntar o pai, recalculando sua estratégia.
— Piu pleso mão... ê coum plesubo... Tá bom.
Tom, perceptivelmente, está tentando formar vocalizações mais complexas, mas, ao
final, se incomoda e tampa a lente da câmera com a mão.
— Tá bom, sô.
O pai tira a câmera da mão de Tom:
— O que é pra fazer?
O menino volta a falar:
— Ou piu péu... meu mãe.
Ao entender essa última palavra, o pai já intervém com uma questão:
— Quê que tem a sua mãe?
É possível perceber que Tom já está pouco interessado, saindo com seu corpo de onde
estava. Sua voz, ao responder o pai, fica em um tom baixo, incompreensível, em murmúrios. O
menino sai de cena, e o vídeo acaba.
Talvez essa cena mostre que o “Piu pleso mão” possa se referir a Piu (Tom), ilustrando
alguma cena em que suas mãos estivessem presas. Sem a compreensão lógica de ser captado
pelo outro, ele desiste da comunicação.
Em março desse mesmo ano, Tom, chega à clínica com muitos bonecos que trouxe de
casa, montando a seguinte cena: cada um dos brinquedos em uma cadeira, enquanto ele lê uma
revista em frente a um quadro branco. Parecia uma cena professoral, e sua leitura do texto
obedecia à seguinte estrutura:
— Ua blé tiu, ua ble tiu, aurro niu.
148

Nesse momento, ele aponta para uma figura, presente na revista, de um carro. Na
sequência, vira a página e se depara com uma figura de uma mulher sentada em uma mesa de
escritório. Ele então diz:
— Oooooi luuu, mitugti tabeli amavu.
Sento-me em uma das cadeiras, tal qual seus bonecos, e fico atenta a suas explicações.
Ele abandona a revista e passa a desenhar na lousa branca. Coloca na parte superior do quadro
alguns números, o que me leva a indagá-lo se é a data daquele dia, o que ele responde:
— Ié.
Com a chegada da onda roxa32, decorrente de um agravamento da pandemia de COVID-
19, Tom passa um período sem frequentar a clínica, mas, cerca de um mês depois, retorna. Em
seu retorno, notamos, em sua fala, o surgimento de alguns dizeres: “tá bem”, “tô bem” e “tá
bom”. Ele se mostra mais aberto a trocas com os adultos e com outras crianças e apresenta um
brincar mais variado. A malha sensorial da terapia ocupacional se torna para ele um objeto
apaziguador, o qual sempre procura. Quando não se ocupa de sua busca, por perceber que outra
criança faz uso da malha, Tom não suporta e agride quem for necessário como imperativo para
obtê-la. Conforme a ilustração a seguir, essa malha funciona como um envelope total do corpo.

Figura 7. Macacão malha sensorial.


Fonte: Imagens do Google.

Na medida em que sua linguagem verborrágica e alguns elementos privados de sua


língua passavam a ceder à língua partilhada com o Outro, mais medidas corporais de

32Medida implementada pelo Governo de Minas Gerais, publicada no Diário Oficial do dia 4 de março
de 2021, como forma de conter a evolução da pandemia e reestabelecer com velocidade a capacidade
de assistência médica na rede hospitalar de todo o estado.
149

apaziguamento Tom procurava: tanto a malha supracitada quanto o ato de adentrar túneis dos
recursos que são utilizados nas sessões de psicomotricidade. Em dias com menores aberturas
ao Outro, brincava de enterrar bonecos na areia ou partes do próprio corpo. Caso seus circuitos
fossem interrompidos, apresentava intensa agressividade, seguida de choros intensos. Durante
alguns meses de atendimento, de março a abril, eram essas as dinâmicas de atendimento.
Quanto mais a demanda do Outro aumentava, mais era necessário bordejar o próprio corpo.
Progressivamente, passamos a delimitar a sala dos atendimentos, estabelecendo a sala de grupo,
dentro da casa onde funciona a clínica. Isolamos esse espaço devido a uma criança que muito
chorava na área externa deixando Tom bastante incomodado. Nessa sala, ele passou a montar
muros com os pequenos espumados em forma de tijolos. Neles, ele se inseria para brincar com
os bonecos trazidos de casa: quando tinha seu brincar interrompido, arremessava seus
brinquedos, e, ao ser questionado de suas razões, passou a responder: “sei lá”.
Em conversa com os pais nesse período, pontuamos que, na medida em que Tom se
abria mais para a linguagem compreendida pelo Outro, sua língua verborrágica diminuía em
intensidade. Consequentemente, ele passou a necessitar de envelopamentos corporais. Na
mesma época, constatamos que, em casa, Tom sistematizava circuitos do brincar semelhantes
aos que apresentava na clínica.
Em outro vídeo cedido pela família, Tom está sentado no chão em frente a um monte
de brinquedos: carrinhos, bonecos de soldados e potes. Os bonecos estão organizados em três
fileiras na horizontal.
— Fê... ful! — avisa Tom, ao passo que se levanta, fica do lado de uma fileira, agacha-
se novamente e solta disparos. — Pul! Pul! Pul!
Ele simula o barulho dos tiros. Levanta-se e vai em direção a outra fileira de bonecos,
posicionada do lado oposto ao da primeira, em que disparava.
— Tom, os soldados estão brigando com os índios? — pergunta o pai.
Tom responde negativamente:
— Não!
O homem adulto, surpreso, pergunta:
— Não?! Mas não é isso que tá rolando ali não? Os soldados brigando com os índios?
Tom recusa novamente:
— Não...
O som da televisão é audível, e o menino, diversas vezes durante a brincadeira, para e
volta seu olhar para o filme que passava.
— Hein, Tom?! Explica pra mim o que é que tá acontecendo aí — insiste o pai.
150

— Não soi — responde a criança.


— Cê não sabe? Mas eles não tão brigando aqui não? Não é uma guerrinha? —
surpreende-se o adulto.
Tom não responde mais e fica só movendo os bonecos para cima e para baixo.
— Mas ficou muito legal o que você fez aqui — completa o pai.
O movimento de delimitar uma borda protetiva também surge nos vídeos caseiros, e
Tom passa a se esconder dentro do guarda-roupas em um brincar que incluía delimitações. O
pai filma um armário com cinco portas, ao lado de uma televisão em que um desenho animado
é transmitido.
— Cadê o Tom, meu Deus? Aonde que esse menino foi? Toooom, cadê você? —
pergunta o adulto.
A porta do guarda-roupas se move. B. continua:
— Ó meu Deus, o Tom sumiu. Aonde está o Tom?
De dentro do móvel, pode-se ouvir a criança respondendo:
— Da táquiiio.
— Uai, tá aqui aonde? — questiona o pai ainda assim.
A porta volta a se mexer, fica entreaberta e se fecha rapidamente de novo.
— Aonde que foi o Tom? Cadê esse menino, meu Deus... — o pai do menino insiste.
— Quii — fala Tom de dentro do armário, abrindo lentamente a porta.
— Eu não tô ouvindo, cadê? — pergunta o homem.
Tom abre a porta, revelando seu rosto e colocando uma mão para a fora, sorrindo. Ele
responde:
— Quii.
Fecha novamente a porta.
— Pera aí, que eu não tô vendo. Cadê? Aonde que cê tá?
B.se levanta e filma mais próximo do esconderijo de seu filho.
— Quiii.
O menino repete o processo. Surpreso, o pai retorna à brincadeira:
— De dentro da porta? Caramba, olha onde que o Tom escondeu, gente! Meu Deus do
céu, Tom!
O menino abre as portas completamente, revelando-se e saindo de seu esconderijo. O
pai exclama:
— Uaaau! Olha o Tom ali!
151

Os pais nos informaram o quão difícil era o cotidiano na escola e que Tom não conseguia
comunicar como tinha sido seu dia, embora sempre voltasse agitado para casa, além de muito
triste. Nesse período, reuni-me com a escola algumas vezes, e, na maioria das vezes, esta fazia
queixas dos comportamentos impulsivos da criança, com dificuldades de mediação social.
Algumas recusas de ida à escola começaram a surgir nesse período. Em abril de 2021, em vídeo
familiar, Tom está deitado, agarrando-se à colcha. Ele faz uma careta por causa da iluminação
vinda da lanterna do celular de seu pai, que o filma.
— Vamo pra aula? — pergunta o pai.
O menino responde prontamente:
— Não!
Seu pai o questiona:
— Por quê que você não quer ir pra aula? Por que você não quer ir pra aula, Tom?
O menino rola na cama, coça os olhos e responde:
— Não.
— Vamos para a aula.
— Não...
— Você não quer ir na aula por quê? Por que tá dodói? — questiona o pai.
— Xim — diz Tom.
— Aonde que tá dodói? — continua o adulto.
O menino diz:
— Eu.
— Eu sei que é você, mas aonde que tá dodói? — continua o pai a questionar.
Dessa vez, no entanto, o menino diz:
— Parriga.
— Ahhh é? E tá com muita dor de barriga? — pergunta o pai, sem acreditar muito.
Tom se levanta da cama falando:
— Fala, mamãe.
Ele sai andando. B. continua questionando:
— Cê vai falar com a mamãe? Então conta pra mamãe o que é que tá acontecendo.
O menino está saindo de seu quarto, quando encontra sua mãe na soleira da porta e diz:
— Dublu, dé bola. Barriga, bola.
Tom encosta em sua barriga, fazendo um som que simula uma explosão, e abre os
braços, indicando o que estava sentindo.
— Bula! — ele insiste.
152

Sua mãe tenta traduzir:


— Ixi, a barriga está dura?
Tom nega, passando por ela e indo em direção a outro cômodo.
É curioso que, nesse período, Tom passa a dizer o pronome “eu” de forma ocasional e
nomear algumas partes de seu corpo, como a “parriga”. Esse corpo que chegava ao limite do
insuportável na escola, após a reclusão da pandemia, o convocou a demandar mais bordas
protetivas e nomeá-las aos pares. Era necessário, nesse momento, abandonar sua língua própria
para ter suas demandas atendidas; era necessário se alienar à língua do outro para poder tratar
sua angústia.
De todos os vídeos cedidos pela família, é no datado de 31 de maio de 2021 que surge
um diálogo inteligível.
— Tá muito triste? — pergunta B., que filmava Tom cabisbaixo.
Tom responde afirmativamente:
— É.
— Por que você tá triste? — inquire o pai.
— Te dê assa.
O menino parece não responder a pergunta e se volta para brinquedos espalhados no
chão.
— Por quê que cê tá triste, sô? Fala pra mim — B. insiste. — O quê que cê quer?
Dessa vez, o menino responde. Olha para a câmera, depois abaixa o olhar, enquanto
gesticula com as mãos, explicando-se:
— Quelo ver tevê, vê blablau é, ver tevê, ver taplu.
Seu pai interrompe a explicação.
— E se eu não deixar você ver TV, como cê vai ficar? Hein?! Olha pra mim, como cê
vai ficar?
Tom torna a ficar cabisbaixo e se levanta. Nesse meio tempo, seu pai continua a
perguntar:
— Cê vai ficar feliz?
O filho repete:
— Feliz!
Em seguida, sai andando do quarto, lentamente, com uma bola de tênis na mão.
— ... se eu deixar cê ver. E se eu não deixar? Como você vai ficar?
O pai completa a resposta do menino, insistindo em sua pergunta:
— Hein?! Conta pra mim.
153

Tom continua seus passos até a soleira da porta do quarto em que está. Ele leva o dedo
indicador à boca e faz: “Ahmm...”, como se estivesse elaborando uma resposta.
O menino começa a sair do quarto, olhando diretamente para a câmera. O dedo continua
na boca, que esboça um sorriso. Ele sai do quarto e exclama surpreso:
— Oh! Êssi.
Voltando-se para seu pai, mostra-se de novo para a câmera e informa:
— Mamãe vê tevê.
— Mamãe tá vendo TV? — pergunta B.
Tom responde:
— Xim!
Ele sai do quarto imediatamente.
Ao que parece, a linguagem passa a descongelar.

3.8 Da Língua Privada à Língua Partilhada: O Analista como um Duplo Tradutor

Durante os anos de 2020 e 2021, Tom passou a empregar algumas palavras de uso
comum e legendar sua língua privada. Com habilidade de se comunicar com sua língua privada,
falava com muita velocidade, obedecendo a uma entonação de pergunta, endereçando, em
seguida, a pergunta em português pausadamente. No ano de 2022, diminuiu consideravelmente
a intensidade do uso do artifício de legendas da fala, passando a utilizar a língua convencional
para se comunicar.
Corpo e linguagem passam a explicitar as fraturas de seu enodamento: enquanto seu
corpo demonstrava sua demanda pela velocidade gestual, sua voz, pausadamente, tentava
articular os fonemas, no esforço de montagem de palavras. Isso o cansava, levando-a a desistir
de sustentar um endereçamento ao Outro. Seu esforço de legendar sua língua privada me
oportunizou tentar, mais uma vez, ocupar o lugar de tradutor, já estabelecido por seu duplo
paterno. Seu consentimento foi dado de forma progressiva, e passei a anotar em um caderninho
as equivalências de sua língua privada com a “língua de todos”.
Nesse período, Tom se incomodava com uma criança da instituição que tinha um choro
intenso, o que o fazia se desorganizar bastante. Passa a sugerir uma brincadeira de roubar a
voz, sendo ele o ladrão de voz. A brincadeira consistia em uma espécie de pega-pega, na qual,
ao ser capturado pelo ladrão, você teria sua voz arrancada pela garganta. Segundo as regras de
seu jogo, aquele que tinha a voz roubada não podia gritar. Essa brincadeira se repetiu por meses,
e, na minha posição de duplo, fui delicadamente inserindo tentativas vetorizantes a essas vozes.
154

Brincávamos de esconder as vozes nas plantas do jardim, nos armários, nos objetos, e esse
simples fort-da tomou algumas complexidades.
— Esse ladrão vai fazer o que com a voz roubada?
Esse questionamento sempre surgia, até que, certo dia, Tom determina: o ladrão tinha
uma banda de rock, em que podia usar as vozes de todos para cantar. Passaram-se meses, e Tom
sempre repetia a brincadeira. Progressivamente, ele vai abrindo mão da figura do ladrão de
vozes e se ocupa apenas de montar a banda, dedicando-se a convidar “todo mundo” para assistir
a suas apresentações. Na época, escutávamos muito os Beatles e Queen, pela universalidade
destes no cenário musical mundial. São bandas que ocupam um certo lugar para falantes de
todas as línguas. Sua música preferida era Bicycle do Queen, que ele mesmo relacionava à
palavra bicicleta, em português. Tom passou a alavancar a linguagem, e suas traduções da
língua lhe permitiram alcançar uma nova relação com o Outro. Certa vez, durante esse período,
seu pai, emocionado, disse: “Ele descongelou a linguagem”. Tal qual faziam seus pais, traduzir
sua língua era uma função conferida àquele que ocupava um lugar privilegiado de duplo. Por
todo o tratamento, trabalhei para conquistá-lo, secretariando seu brincar delimitado pelos
contornos de suas bordas. Enquanto um duplo, operava como uma memória auxiliar das
construções que ele havia deixado inacabadas em sessões anteriores, como suporte para traduzir
sua língua e auxiliá-lo a estruturar suas demandas para terceiros e como uma companhia
silenciosa nos momentos em que isso se fazia necessário.
Nesse período, embora seus avanços na linguagem fossem significativos, as queixas
escolares eram cada vez mais frequentes. A escola já o considerava como uma criança que,
“apesar de autista, sabia muito bem o que estava fazendo” — fala
esta proferida pela coordenadora pedagógica — e que o diagnóstico não justificava o uso da
força corporal ou a recusa em obedecer às regras, tendo em vista a conquista da compreensão e
do uso da linguagem. Em reuniões com a equipe pedagógica, eram-me demandadas
intervenções clínicas reaplicáveis no contexto educacional, para modulação comportamental.
Tom passou a falar sobre seu tempo na escola, dizendo:
— Na escola, triste, no Nardin, feliz.
Suas lamentações derivavam do fato de ninguém brincar com ele, fazendo com que
sempre comparasse as instituições (clínica e escola).
Com o mal-estar vivido com o outro escolar, Tom passou a apresentar um intenso
sofrimento, uma agitação corporal e uma recusa em retornar à escola. A família decidiu,
155

juntamente com a médica psiquiatra do Espaço Nardin, se valer do uso de Risperidona33 para
ajudá-lo a controlar o comportamento impulsivo, que, embora fosse uma resposta ao Outro, o
fazia sofrer. O ponto determinante para a família não foi apenas o mal-estar escolar, mas
também a desatenção ao correr na rua sem olhar os carros e, com isso, se colocar em risco, o
que não era um comportamento anteriormente presente. A resposta do tratamento
medicamentoso foi satisfatória, e, juntamente com a troca de escola, Tom voltou a apresentar
serenidade e apaziguamento da angústia corporal.

3.9 Tratamento da Alienação Retida

Como vimos anteriormente, Maleval (2021) apresenta uma nova tese do autismo,
considerando que o autista entraria na alienação, ainda que de forma parcial, isto é, de maneira
retida. As vocalizações involuntárias, a língua verbosa da língua privada e factual e,
consequentemente, a retenção do objeto voz são consideradas indicativos de que os autistas
sofrem o impacto da linguagem. Para o autor, a alienação, no autista, estaria inicialmente
inacabada, caracterizando-se, em primeiro lugar, pelo fato de dar lugar a duas entradas na
linguagem: uma pelo significante e outra pelo signo. Ambas encontrariam sua origem na
retenção do objeto voz. No entanto, alguns autistas falam de bom grado, sugerindo eles
operarem, em sua alienação retida, de duas maneiras: através de uma linguagem verbosa e
através de uma linguagem factual (com a condição de não falarem demais). A alienação contida
do sujeito autista ocorre em conjunto com um congelamento do significante-mestre, o que
justifica, segundo o autor, os comportamentos de imutabilidade e os interesses específicos, os
quais seriam estratégias remediadoras para organizar tal significante, controlando a cadeia
significante, dando ao sujeito meios de ser representado nela. O autista vive a experiência de
expressar afetos pela língua, por meio da linguagem verbosa, mas ele não procura transmiti-los,
pois o S sozinho não está ligado à linguagem do Outro, tendo em vista que a função do
significante existe parcialmente, contida, fixa e congelada.
Para Maleval (2021), no autismo dito de alto funcionamento, percebe-se um
relaxamento dessa retenção, permitindo atrelar a linguagem ao corpo. Quando os afetos
descongelam, o autista de alto funcionamento não apenas começa a habitar seu corpo, mas

33Esse medicamento foi o primeiro fármaco aprovado nos Estados Unidos para tratamento de sintomas
do transtorno do espectro autista, especialmente dos casos que envolvem agitação e impulsividade.
156

também a falar com mais espontaneidade e ser capaz de tomar decisões importantes; sua
capacidade de compreender o humor e a ambiguidade aumentam.
O registro do caso nos convoca a ler os movimentos lógicos do tratamento que Tom dá
ao Outro, à língua e ao corpo, sem precisar nos valer de etiquetas classificatórias. Autismo de
alto funcionamento é uma categoria didática na literatura para demarcar aqueles que, de alguma
maneira, conseguiram tratar sua posição subjetiva e avançar nos marcadores graves do espectro
autista. Não tomamos o termo alto funcionamento como equivalente a autista savant, Asperger
etc., embora estes sejam autistas de alto funcionamento; tomamos como qualquer sujeito que
percorreu um árduo percurso rumo ao tratamento do Outro, da língua e do corpo, afinal, este é
um trabalho incansável a todo parlêtre: estabelecer laços e inventar um modo de estar no
mundo.
A alienação retida requer operar com os matemas lacanianos e pressupõe que S (sujeito),
está desarticulado parcialmente de A (Outro), que existe, na maioria das vezes, presentificado
de forma invasiva e angustiante, quando se materializa em demandas. O objeto causa de desejo
(a) representa as sintomatologias clássicas do autismo, no que se refere a (objeto) olhar, (objeto)
voz, (objeto) excrementos e seio (não interação nas mamadas, presente em relatos de sinais de
autismos muito precoce). Esses objetos, em seu funcionamento “disfuncional”, como nomeia a
medicina de nossa época, evidenciam que S1, o significante unário que representa o sujeito e
seu gozo, não está articulado ao significante binário S2, representante do saber A.
O caso que abordamos nos revela que não se trata de afirmar desgastadas premissas:
que há inexistência do Outro (A), radicais sintomatologias com o objeto olhar, com os
excrementos, ou história de amamentação e vínculo com os pais comprometidos. O que nos
convoca é colocar o objeto voz em destaque, como o objeto da pulsão em jogo no trâmite dessa
criança. Se tomarmos a teoria lacaniana, o advento do inconsciente implica o processo de
alienação, possibilitando as cadeias de S1 a S2. A bússola clínica de leitura desse caso nos leva
a ler que o tratamento do objeto voz foi a direção clínica para trabalhar os entraves da alienação
retida de Tom, possibilitando um reposicionamento de A (Outro), que, consequentemente,
passa a se apresentar sob outras modalidades, admitindo um furo, onde a criança pode se alocar
em uma separação. O autista resiste à escolha forçada da alienação, e seu retraimento defensivo
demonstra que, em algum tempo, esse processo ficou retido, sem ser inexistente. Consideramos
que o caso de Tom elucida o tratamento do objeto voz, isto é, de lalíngua a céu aberto, que não
sofreu um apagamento, o que resultou em uma língua verbosa que predominou nos anos iniciais
de sua vida, denunciando inúmeros entraves com o Outro (A), e do saber fazer com seu corpo.
É à medida que sua linguagem “descongela”, permitindo o uso dinâmico pelo qual seus furos
157

se mostram, que podemos supor que o tratamento possibilitou delicadas e progressivas escolhas
para consentir com o Outro, localizando as fendas nas quais pode comparecer que a criança se
aliena à sua maneira.
Em diversos relatos dessa época, vemos Tom em contundente trabalho com a
linguagem, oscilando entre sua língua verbosa e a incorporação da língua de todos, para
estruturar pequenas demandas lúdicas e interativas. O nascimento do Outro, nesse caso, é o
nascimento do simbólico, que se apresenta no encantamento do menino pelo brincar, que, para
se complexificar, necessitava do suporte do outro em diferentes graduações ao longo do tempo.
Em julho de 2021, em vídeos caseiros, pai, mãe e filho estão dentro de um carro. O pai
faz a filmagem, gravando a si mesmo no banco do motorista e os outros dois, sentados no branco
de trás. Tom come um saquinho de pipoca.
— Pessoal, nós já tamo pra mais de um ano de pandemia... — narra o pai.
O filho completa, com a boca cheia de pipoca:
— É!
— ... aí o programa da família agora foi ver aviões pousando no aeroporto. Olha só,
que barato! O que a gente não faz pra não ficar grudado dentro de casa o tempo inteiro —
continua o pai.
— Xim! — intervém o menino.
— Mas valeu a pena, né Tom?! O quê que cê acha? Foi legal? — pergunta o adulto.
— Xiiim — confirma o filho do casal.
— E aí, mamãe, foi legal? — o pai se volta para a mulher.
Ela faz um sinal de “joia” com a mão, e Tom responde por ela, sorrindo para a câmera:
— Xim!
— Ai que bom, pessoal. Vou mostrar onde a gente tá, ó — diz o homem, virando a
câmera para filmar a pista de pouso dos aviões. — Tem um avião ali, e a gente tá vendo ele
pousar, né Tom?
A câmera volta a filmar B. Do seu lado, Tom está passando do banco de trás para o
banco do passageiro, na frente, usando a fresta em que se localiza o freio de mão.
— Dá tchau, tchaaaau! — indica o pai, acenando para a câmera.
Tom começa a se despedir, mas se corrige:
— Nãaaao!
— Não?! Não é pra desligar, não? — pergunta o adulto.
Tom começa a falar e toma a câmera para si:
— Nós tavi veno vião!
158

Notamos como Tom estava inserido na narrativa de seus pais nesse belo recorte, que
retrata a criatividade de uma família em meio a um ano de isolamento social decorrente da
pandemia. “Nós tavi veno vião!” anuncia sua inclusão na lógica discursiva, de pertencimento
familiar, e sua aparente sensação de conforto com as filmagens direcionadas há tanto tempo por
seu pai.
A câmera passa a tomar outro lugar para Tom. No dia 1º de agosto de 2021, ele assume
a direção de seu primeiro vídeo. Tom está com a câmera parada, apoiada em alguma coisa,
filmando-se em um quarto. Ele ri e começa a falar para seu espectador:
— Oi, sou eu! Tomzinho, inscleva, inscleva no canal gecê. Béum video.
Ele gesticula, apontando com os polegares para si, sem conseguir ficar parado em pé no
mesmo local. Ele acena:
— Talvez... os...
Faz um som tremendo os lábios, fechados.
— Abelha chamão nos zizi.
Fica um tempo pensando, até que chama o pai:
— Béno!
O homem responde:
— Sim?
Tom contextualiza:
— Abelhas, sim... abelhas tlás de mim — diz ele, apontando para algo que está
atrás de si.
— Hum... e cê pôs armadilha pras abelhas? — pergunta o pai.
O menino chega perto da câmera, grita e começa a correr, mas ainda se mantém no
vídeo. Ele pega a câmera, ainda se filmando, gritando por socorro para seu espectador, dizendo
que está sendo atacado por abelhas e correndo pela casa. Seu pai aparece atrás dele e pede para
que o menino devolva o celular que estava usando.
O brincar de Tom se mostra cada vez mais simbólico. Passou a brincar de dinossauros
devoradores nas sessões e, ao chegar à clínica, ia em busca de dois dinossauros que ficavam em
salas separadas. Ele sempre me entregava o tiranossauro-rex e ficava com o estegossauro.
Atribuiu o nome George a meu dinossauro e preferiu nomear o seu de “dinossálo clandão”.
Em nossas sessões, os dinossauros se inseriram em um faz-de-conta no parque dos
dinossauros, subindo no pé de laranja ou na casinha de madeira em suas aventuras. Tom parece
descobrir o brincar de faz-de-conta, e a construção de uma história parece algo fundamental.
159

Por vezes, assistimos a trechos de Jurassic Park, o filme, para apoiar as aventuras. Sempre que
surgiam pessoas próximas, Tom gritava:
— Heeeelp.
Eu dizia:
— Quem é ele, Tom?
E ele respondia:
— O pledador.
O interesse pelo brincar de dinossauros também aparece nos vídeos caseiros, quando
Tom está sentado no chão, apresentando seu trabalho ao pai, que filma e pergunta: “o que nós
fizemos?”. Ao lado do menino, dinossauros de plástico estão bordejados por peças de madeira.
Ele apresenta:
— É o parque dos dinossálos!
— É mesmo? E como é o nome desse dinossauro aqui? — pergunta o homem.
Tom aponta e repete três vezes:
— Dinossálo.
Os outros são nomeados como: “dinossálo clandão”, “elifante”, “dólo” e
“patatavalo”. O pai continua:
— Tem um cavalo também?
Tom, no entanto, não responde. Segura um boneco e conta até três. B. o interrompe e
pede para que espere. O pai repete a pergunta sobre o nome dos dinossauros. Tom entrega a
mesma resposta, os mesmos nomes, na mesma ordem. Quando a filmagem se aproxima das
jaulas, vê-se soldados de brinquedo em volta dos cercamentos. B. pergunta quem são eles. O
menino diz que são “sôdados”. A câmera se aproxima novamente, revelando um boneco
Batman de LEGO. B. pergunta o nome desse boneco “pretinho”. A criança responde:
— Bátimen!
Tom segura o dinossauro com a mão esquerda, novamente faz sua contagem até três e
leva o boneco, com rapidez, até a borda de peças de madeira, derrubando a “jaula”. B. oferece
a narração da cena:
— O dinossauro escapou! Oh, não! Ele está atacando todo mundo!
Na medida em que a pandemia cessava seus momentos agudos, Tom e sua família
estruturaram saídas de casa, e, em uma trilha realizada na Universidade Federal de Minas
Gerais, seu pai anuncia:
— Tá filmando!
160

Ele está em pé, atrás de Tom, que usa uma máscara de tecido preto e segura o celular
que o grava.
— Oi, gente, nós vamos, nós vamos... eu tô andando... — o menino fala para a
câmera.
— Cê tá andando com quem? — pergunta o pai, mais distante.
Eles estão em meio a uma trilha. É possível ver muitas árvores ao redor e ouvir cantos
de pássaros.
— A gente tá andando, não é? — pergunta o menino, que continua se dirigindo à
câmera. — Tolos temos... a gente sumiu, e tuvêu, na tola... dotô balaquemel... isso
aqui chama, chama zequidades.
O pai traduz, ao fundo:
— Então cê tá falando dos heróis do Ben 10?
O menino responde:
— É.
Ele continua a nomear algumas dessas personagens. O pai fala para Tom:
— Conta que nós vimos um bicho no mato. Nós vimos mosquitos...
O menino confirma tudo com seu “é!” e acrescenta:
— ... e fômiguelo.
O homem afirma que sim.
— E formigas também!
A criança continua contando sobre as atividades que fizeram:
— A gente rodou corrida, ouviu?
Depois de alguns segundos, Tom pede ao telespectador:
— Inscleva nosso canal.
O pai pede por “uma curtida no nosso canal”. O menino continua com a finalização do
vídeo:
— Eu sou Tom, esse é Bléno, inscleva nosso canél. Ablaços todos vocês.
O pai se despede. Tom manda beijo:
— Beijinho! Todos vocês... valeu!
Se o canal existe ou não no YouTube, é um mero detalhe. O que extraímos desse
momento da vida de Tom é que ele convoca o Outro a segui-lo, a se inscrever em seu canal de
comunicação.
Em outubro de 2021, Tom aparece em um dos vídeos familiares usando apenas um short
azul, sentado em meio a várias almofadas de diversos tamanhos, em cima de um pano azul, que
161

cobre a grama do quintal. A criança está virada de costas, mirando uma planta florida em
vermelho, quando seu pai tenta chamar sua atenção:
— Tom... Ô Tom ...
O menino se vira para a câmera e diz:
— É.
— O que você fez aqui fora? — pergunta o homem.
O menino responde:
— Canfamento.
— É mesmo? E essas coisas aqui todas, são pra quê?
O filho responde:
— A gosas.
— É pra você terminar o seu acampamento? — questiona o pai.
— É — diz Tom.
O pai pergunta se o acampamento ficou legal, mas Tom só responde novamente com
“é”.
— Como ficou seu acampamento, conta pra mim.
O pai pede, mas o menino não responde. O vídeo é cortado. Em seguida, Tom é filmado
de frente, gritando:
— Uhuuul, xiz!
Ele se deita nas almofadas. Seu pai não desiste e continua perguntando:
— Tom, o quê que são essas coisas? Conta pra mim. O que é isso aqui?
O pai aponta para um objeto que não aparece no vídeo.
— A bola — diz o menino.
— Não, mas o que é isso que cê fez? — insiste o adulto.
— Campamento — responde o filho.
— Não, mas o que é isso aqui? — pergunta B.
— É lá fôlha, olha — responde a criança, começando a fungar, fazendo uma careta.
O vídeo é cortado novamente. Volta na mesma posição. O pai começa perguntando:
— Tom, o quê que é isso aqui?
— Uma bola.
Na pergunta seguinte, Tom olha para a câmera, mais impaciente, e diz:
— É tefê, tefê tóli o plimo.
— Hum... Muito legal... Sim... E aí você trouxe essas coisas todas pro seu
acampamento? — questiona o pai.
162

Tom responde novamente:


— É.
Essa cena do brincar ilustra a demanda do Outro (A) paterno para que a criança entre
no discurso. Ela, no entanto, resiste, respondendo em caráter pontual a demanda. Só a nomeação
“campamento” não é suficiente, e, mesmo com a descontinuidade de explicações narrativas
sobre seu ato, o pai insiste na retomada do vídeo, demandando maiores articulações sobre o
brincar. O pai demandava o saber (S1–S2), o que ainda Tom só podia responder com sua
lalíngua: “é tefê, tefê tóli o plimo”.

3.10 A Elocubração de Saber sobre Lalíngua

É no último ensino de Lacan que temos a formulação do inconsciente como resultado


de uma elucubração de saber sobre lalíngua, sendo esta a fibra daquele, a primeira língua. É no
apagamento de lalíngua que o parlêtre constrói um saber, um discurso sobre si e sobre o Outro,
e passa a vida a recobrir as marcas opacas que o gozo de lalíngua deixa como restos no
inconsciente. Para as crianças que não falam, no que se convencionou nomear de autismo,
lalíngua não sofre um apagamento precoce; ela se transmuta como uma língua privada que se
apresenta diante de um outro inassimilável. Isso não é sem impacto em um corpo vivo, e vale
questionar os efeitos que surgem disso nos casos clínicos de pessoas com autismo. Como é um
corpo afetado por tanto tempo pelo real?
A linguagem é resultante de uma elucubração de saber sobre lalíngua, que indica que
há um aparelho de gozo que se articula com um inconsciente estruturado como uma linguagem.
Para que um sujeito autista possa sucumbir a uma elucubração de saber sobre lalíngua, é
necessária a extração de uma letra diferenciada do enxame de sua massa sonora
incompreensível. Diferentemente da neurose, no qual a letra carrega uma polissemia
significante presente nas repetições diferidas que a modalizam, a letra no autismo tem caráter
iterativo, isto é, protegido dos perigos da equivocidade. Na clínica, observamos a política do
esvaziamento abraçada pelos autistas em seus circuitos interativos, estes compostos dos
elementos da borda autística: objetos, duplos e interesses específicos. Ouso dizer que cada
autista pode elucubrar um saber sobre lalíngua a sua maneira, construindo um nó singular de
linguagem. Porém, é por via da neoborda própria que ele pode regular e, assim, esvaziar seu
gozo desmedido, iterar sua letra protegida dos equívocos e se conectar ao Outro, em sua medida.
Através desse percurso, podemos considerar como trabalho possível do simbólico, em alguma
medida, amarrar o imaginário e o real.
163

No caso clínico apresentado, é na virada do ano de 2021 para 2022 que observamos um
brincar cada vez mais simbólico. Em um atendimento realizado em fevereiro de 2022, Tom se
equipou como médico e fechou a porta de seu consultório. Chamava:
— Ei, vouuxê!
Esse era um modo de se referir a quem estava na clínica para ser consultado. Munido
de óculos e estetoscópio de brinquedo, examinava o corpo de cada um que se deitava, dando
um diagnóstico após apalpar cada pedacinho da barriga. Todos os casos clínicos por ele
atendidos tinham como proposta terapêutica vacina ou cirurgia.
Em minha vez de ser atendida, entrei em seu consultório e me atentei à organização do
setting: colchonete azul no chão, maleta de artefatos médicos e ele, vestido com um paletó de
marinheiro branco, que, no enquadre estabelecido, fazia função de um jaleco. Recebo a ordem:
— Deitáá.
Atendo a demanda, enquanto o médico observa meu corpo, minuciosamente, com uma
lupa, representada por uma varinha com uma estrela na ponta. Eis que ele, para conferir minha
barriga, olha para dentro de meu umbigo e diz:
— Glááávida!
Não houve tempo de processar a notícia dada pelo médico; já me encontrava na sala de
parto, na qual o médico, com uma varinha mágica, abria minha barriga. Nesse momento, ele
interrompe a cena e busca um bebê de brinquedo que estava na estante. Ao retornar à cena,
retira o bebê de minha barriga. No parto, após o nascimento, o médico sugere que o bebê não
chora, precisando, logo, de um transplante de coração:
— Não tem colação! Help! Tlanspante.
Logo ali, de imediato, realizou o transplante de coração do bebê e me cobrou mil reais
pelo trabalho.

Figura 8. Tom examinando o bebê.


164

É pelo delineamento da transferência com a analista que observamos o aparecimento de


algo da construção de um corpo, desse Real, da libra de carne, como diz Lacan ([1962–
1963]/2005) no Seminário X, na medida em que Tom se Outrifica. A literalidade da extração
do bebê anuncia que é possível deixar cair algo na relação com o Outro, assim como sua relação
como modalidade principal de comunicação.
Nesse processo oscilante de ceder totalmente à linguagem, em outro atendimento, na
garagem da clínica onde eram realizadas brincadeiras com os materiais espumados e as sessões
de psicomotricidade, começamos a brincar de “teatro mudo”, esboçando reações com nossos
corpos e rostos, mas sem emitir sons. Tom puxa essa brincadeira e finge estar gritando. Ficamos
nesse movimento por alguns minutos, juntos, até que, em meu turno de soltar gritos silenciosos,
ele parece se incomodar. Começando a se desesperar, ele me abraça pelas costas, entrelaçando
as mãos em minha barriga. Começa a apertar, tal qual a manobra de Heimlich34 para desentupir
as vias aéreas. Ele me pergunta, elevando o tom de voz: “cadê o seu barulho!”. Quando volto
a falar, ele se acalma.
O brincar simbólico evidencia para Tom que o mundo em silêncio já não lhe confere
segurança; é necessário que o barulho de cada um esteja presente. Com essa passagem, recordo-
me dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, em que Freud (1905/2016), em nota de
rodapé, apresenta o famoso diálogo: “Titia, fale comigo! Estou com medo porque está muito
escuro”, e a tia responde: “De que lhe adianta isso? Você não pode mesmo me ver”. “Não faz
mal”, responde o menino, “quando alguém fala fica mais claro”.
Tom se inscreve no mundo dos falantes, do qual não é possível mais recuar. O farol da
voz é sua ponte com o mundo, mas seu caminho elucubrativo é árduo, atropelado por dimensões
do Outro que estruturam demandas complexas.
Tom brinca de treinar e lutar boxe com sua psicomotricista. Perde uma luta, o que o
frustra e o lança em tentativas de criar armadilhas para a terapeuta. Mais tarde, encontro-me
com ele, que está visivelmente irritado por causa das frustrações. Pergunto-lhe sobre seu estado
emocional, e, para me explicar o motivo de sua irritação, ele diz, de modo interrogativo:
— Você não lembra quando você era criança e ela machucou seu olho?

34
Técnica de primeiros socorros inventada pelo médico estadunidense Henry Heimlich, em 1974,
utilizada em casos de emergência por asfixia relacionada a engasgos por corpos estranhos e/ou alimentos
nas vias respiratórias, paralisando as vias aéreas. A manobra consiste em utilizar as mãos para fazer
pressão sobre o diafragma da pessoa engasgada, provocando uma tosse expulsiva do responsável pela
obstrução.
165

Embora se localize melhor em sua posição subjetiva, em momentos conflitantes, sua


posição diante do Outro se mostra embaçada, misturada no entre eu–outro, situando-me na
fragilidade transitivista e na travessia do esquema especular frágil.
Esse período marca a entrada de uma nova fonoaudióloga no caso de Tom. No início,
eu acompanhava as sessões e desempenhava a função de tradução da voz e da língua singular
do menino para sua nova terapeuta. Contudo, percebo que ele encontra novas estratégias para
se fazer entender para sua nova companheira de brincadeiras, como falar mais lento, mais alto,
com mais pausas — eventualmente, recorre, assim como ainda o faz, mesmo com outros que o
compreendem normalmente, a encostar sua boca no rosto e nas orelhas dela, enquanto fala, para
que a outra pessoa entenda o que está dizendo. Percebo que essas invenções de Tom dão conta
de possibilitar o laço da criança com pessoas novas, o que me estimula a sair de cena e dar
espaço para que os dois se encontrem nessas soluções.
Observamos com esse relato que, embora esteja submetido ao campo da linguagem, isso
não garante apaziguamento, sendo necessário modular a própria voz para um Outro e inventar
modalidades de se fazer ser compreendido.
Em maio de 2022, devido a um grave acontecimento de saúde familiar, ausento-me do
trabalho por três meses, apenas retornando em agosto de 2022. Devido a esse acontecimento,
fiquei em minha cidade natal, Recife, e minha ausência foi explicada a Tom por todos os
terapeutas. Em situação episódica, ele chegou a me enviar áudios e pequenos vídeos nos quais
me dava um “oi”. Segundo relatos da psicomotricista, certo dia, Tom enfrentando sucessivas
frustrações, parecia estar angustiado e pediu para voltar mais cedo para casa. Diante do portão
de saída, ele disse:
— Quero ir para Recife!
É nesse dado de transferência que Tom, em um breve momento, parece dizer que nesse
dia precisava da presença de sua analista, que operava como um duplo apaziguante. É nesse
hiato de atendimentos psicanalíticos que, em um dos vídeos caseiros familiares, surge uma cena
preciosa, na qual ele simula ser um jornalista apresentando jornal.
— Bem vindo à cidade do... Básil — apresenta Tom, segurando papéis cortados na
mão.
Ele fala diretamente para a câmera, apresentando um jornal de notícias.
— Hoje tem ploblemas — continua, mudando os cartões em mão. — O vento tá
chegando... o vento tá chegando! Depois, cai diquili todas cidades. Cai diquili
toda a cidade. Depois, água tá enchendo muito... a chuva tá dirtluindo a cidade
intêla... Água giganle e qué dirtili todos países do Estados Unidos Amélica,
166

Flança, Pocugal, Argentina... e clalo Básil. Todos países folam acacados do... do
raio! Depois eles plecisam... o sinal vermelho de finte quatlo holas... e ês doblás...
eles plecisam arranham helóis novos pala lutar com vilões! E eles... eles
plecisam lutar todos exércitos... vou chamar o helói chamado Hulk Esmaga, ele
ploteje todas cidades! E fim.
As fronteiras geográficas se delimitam em seu universo simbólico, pontuando uma
relativa construção de perspectiva topológica de seu lugar no mundo. Em outro vídeo caseiro,
com personagens de capitão e marujo, Tom está de pé em cima de um banco, com sua mãe
sentada ao lado. Ela finge remar, fazendo tal movimento com os braços e simulando o som da
água:
— Shua!
O menino anuncia:
— Ei! Meu chapéu!
Coloca um gorro de lã preta na cabeça, ajeitando-o, enquanto a mãe continua a fazer o
som da água.
— Eu faço os efeitos sonoros — diz a mulher.
— Não! Usa esse bambu para pode balhança — instrui Tom, plantando um pé
no encosto de braço e levando outro bambu, menor, ao olho, como uma luneta.
A mãe segue a instrução da criança.
— Yahow! Já tamo chegando! — exclama Tom, enquanto olha por sua luneta de
brinquedo.
Sua mãe está balançando o pedaço de madeira, como Tom pediu. O pai, filmando,
comenta:
— Eu acho que isso é um remo, S.
— Ah, tá! — responde a mulher, que corrige o movimento que fazia.
— É... é... avalanche, aaaaah! — Tom exclama.
Os dois se juntam nos gritos de desespero. O menino se senta e, logo em seguida, apoia
suas costas no braço da mãe, tirando o gorro da cabeça.
— Onde... acho que nós tamo na ilha pequena — diz ele, indicando que havia
acontecido um acidente no trajeto da embarcação.
Sua mãe continua em outra cena:
— Estou remando! — exclama ela, enquanto usa seu remo.
— Malujo! Ajuda! Ajuda! Ajuda!
167

Tom grita, usando sua luneta na boca, para amplificar o som de sua voz. Sua mãe
continua remando, até que o menino chama sua atenção:
— Malujo, seu bobalhão!
A mãe, então, responde:
— Fala, capitão, o que você precisa?
Tom se senta novamente, aponta para seu pai e corrige:
— Não, ele lá. Você é malujo.
— Eu sou marujo? — pergunta o homem.
— É — confirma Tom. — Não tá filmando você — constata.
— Não tá filmando eu — reafirma o pai.
— Filma você!
Tom se levanta, indo em direção à câmera. O pai pede:
— Pera aí.
A mãe assegura:
— Isso... filma aí um pouco.

3.11 A Não-Toda Foraclusão do Furo

O furo é o ponto de descontinuidade simbólica demarcado por bordas que o distinguem,


delimitando dois campos incomensuráveis (furo real na continuidade simbólica). Lacan recorre
à metáfora do litoral, distinto da fronteira, para articular as duas dimensões heterogêneas: mar
e terra, cuja borda alude à escrita da letra, como sentido (direção) e gozo (afeto). É só na
existência de um furo que um sujeito pode se implantar para emitir um dizer para além dos
significantes de partida, ampliando seu laço social, considerando que a produção desse furo
implica uma superfície imagética corporal mínima, referenciada às zonas erógenas. Discernir o
furo supõe uma identificação especular em que ele é transmutado como falta (processo de
castração), possibilitando, assim, uma unidade corporal.
Conforme foi detalhado anteriormente, Lacan esquematizou o circuito da pulsão como
um trajeto que parte do próprio corpo e retorna a este, após ter contornado um objeto no campo
do Outro. A pulsão busca apenas se realizar, fazendo um círculo completo que permite ao corpo
gozar de si mesmo. Em termos freudianos, inicialmente esses circuitos estão caracterizados
pelas zonas erógenas corporais (oral, anal, objeto escópico). Lacan ([1969–1970]/1992) avança
nesse sentido, afirmando que eles são substituíveis por semblantes, em particular por aqueles
aparelhos da ciência que chama de latusas. No entanto, no autismo, é importante retomar a tese
168

de Laznik (2013) sobre a não instauração do circuito pulsional completo, tendo este sua
trajetória interrompida no terceiro tempo, no qual a criança busca no outro um olhar que lhe
assegura o testemunho: “ser visto” lhe dá a conferência do Outro sobre seu circuito. Em termos
topológicos, esse trajeto que circunda o objeto a é, no autismo, um circuito curto (Vorcaro,
2019) devido à supressão do recurso ao testemunho do outro, em um trajeto em que o objeto
não é apenas um referente inatingível, sendo apropriado como tampão, apontando indícios de
uma borda corporal que não cai, não se renova nas trocas libidinais com o Outro.
É nesse ponto-chave que o autista se apega a esses objetos ditos autísticos, pois a
satisfação investida neles não retorna para o próprio corpo, permanecendo fixada neles,
operando como uma parte de si mesmo. A consequência disso é um gozo excessivo que é
atrelado como equivalente desses objetos, demonstrando o deslocamento em que os afetos do
próprio corpo são desviados para um objeto concreto. Esta dinâmica foi formalizada por
Laurent (1992) como retorno do gozo sobre uma borda. O que há nessa borda é o que
particularmente as evidências clínicas nos mostram: apegos “irracionais” a objetos aleatórios,
desvio do uso esperado das funções simbólicas dos brinquedos convencionais, duplos
protetivos (encarnados em personagens ou pessoas) e, em uma maior complexidade, ilhas de
interesses hiperfocados.
Maleval (2021) afirma que “a borda é basicamente uma catedral do objeto a” (p. 254),
o que faz com que a função da imagem corporal seja vestir esse objeto, fazendo uma moldura.
No entanto, para o autista isso não se estabelece desse modo, tendo em vista o
comprometimento de seu circuito e a própria dimensão do objeto a não extraído, não sendo
possível para esse sujeito imaginá-lo nos furos do corpo. A dimensão do furo objetiva um corpo
para além da superfície, um corpo em que as zonas erógenas são dinamizadas. Conforme diz
Vieira (1999), “eles podem ser muitas coisas, pintas, covinhas, umbigo etc. O que importa é
que, uma vez a articulação com o infinito estando dada, eles funcionarão como ponto de
atravessamento entre a morte e a vida e serão lugar de gozo” (p. 5). Como lembra o autor,

[...] o furo não é definido pela superfície, ele a define, e nestes furos concentra-se o gozo. [...]
Podemos dizer até que o corpo é o que existe em torno do objeto, desde que se entenda aí por
objeto o objeto a de Lacan, que só se situa no infinito da metonímia do desejo, busca eterna de
um mais-além de gozo. (p. 5)

A tese de Laurent sobre a foraclusão do furo no autismo aponta para o rechaço da


alienação e para a não extração do objeto a. Consequentemente, o circuito pulsional não
circunda esse objeto demarcado na superfície corporal. Para este autor, no lugar do furo, cria-
se um encapsulamento, uma carapaça, que funciona como borda protetora. Essa teoria aponta
169

para uma radicalidade da relação do autista com o Outro, com a linguagem e com seu corpo,
que comumente encontramos em autistas de suporte nível 3 (os antigos autistas severos) ou
naqueles que ainda não se submeteram a tratamentos.
Para o caso clínico em questão, consideramos uma não-toda foraclusão do furo,
conjugando-a à tese de Maleval da alienação retida. Desde o início do tratamento, Tom não
apresenta uma radicalidade extrema com o corpo, sem grandes sintomatologias na recusa do
olhar, nem grandes desordens da sensorialidade da superfície corporal. No que se refere à
retenção dos objetos, o objeto voz se sobressai como retido, como atesta seu mutismo nos
tempos iniciais de sua vida e o recurso ao estabelecimento da língua verbosa como um modo
de se direcionar ao Outro, a partir do tratamento clínico. Conforme observamos, na medida em
que sua língua verbosa foi cedendo à “língua de todos”, Tom precisou conter mais seu corpo
com malhas sensoriais ou amarrar-se com cordas, denunciando que ceder seu objeto voz para
o Outro implica deixar-se afetar por perdas sentidas na literalidade do corpo próprio. O
asseguramento desse corpo como uma unidade não desmontável lhe permitia modular seu
enquadre imagético, na medida em que esse asseguramento do não desmembramento fosse
solidificado.
Ao forjar uma língua verbosa e privada, Tom encontrou uma solução temporária, que
promoveu uma borda transitória, a qual, embora precisasse de recursos sensoriais para se
sustentar, tinha uma função protetiva que não excluía totalmente o Outro da cena. Por vezes,
Tom me pedia as malhas sensoriais, seja o macacão para se encapsular e deitar, seja a malha
sensorial suspensa que funcionava como um balanço gravitacional. Seu uso implicava
constantes solicitações de “niuniuniu” (rodar) a malha suspensa para se satisfazer com
movimentos circulares. Na impossibilidade de seu corpo completar o circuito pulsional ao redor
do objeto a, Tom artificializava na superfície de seu corpo movimentos vestibulares para se
apaziguar, após alguma demanda verbal intensa. Ficava dividido entre a angústia de não
conseguir ser entendido e a angústia de ser compreendido, quando sua voz saía do seu corpo.
A primeira angústia desencadeava uma crise de agressividade e a segunda, uma intensa
necessidade de receber estímulos vestibulares e sensoriais na malha fria da terapia ocupacional.
Vale retomar o período em que brincávamos de “ladrão de voz”, em que, ao
desempenhar quase todas as vezes o papel de ladrão das vozes, Tom escondia nossas vozes pela
clínica, entre brinquedos e caixas, enquanto a sua ficava sempre guardada em si próprio, na
periferia de seu corpo, ou dentro de seus relógios, roupas e, raramente, em sua lancheira. Certa
vez, arrisquei ameaçar roubar sua voz, que estava guardada em seu relógio de pulso do Ben 10,
e, prontamente, Tom reagiu com intensa sensação de ameaça, o que me fez rapidamente
170

modular minha estratégia, nomeando-me como a “heroína da cosquinha”, modo pelo qual
abordei seu corpo com cócegas em sua barriga e pelo qual ele recebeu alegremente o
deslocamento do brincar.
O objeto voz não encarnava o objeto perdido, que, na verdade, é impossível ser perdido
ou totalmente incorporado. É nesse congelamento do objeto voz que girou seu tratamento, que
vacilava nessa indecisão. Seu recurso defensivo conjugava-se ao que Laurent (1992) apresenta
como retorno do gozo sobre uma borda, que, mesmo que incipiente, lhe proporcionava uma
dupla função: protetiva e dinâmica com o Outro (sob medida).
Considera-se, nessa lógica, que a não-toda foraclusão do furo se apresenta nesse caso,
pois, no decorrer do tratamento, tivemos a comprovação de que, ao ceder completamente sua
língua verbosa para uma língua de todos, algum neofuro foi possível operar. Mesmo apropriado
da “língua de todos” atualmente, ele experimenta os tropeços fonêmicos da articulação de sua
voz.
Em uma sessão recente, em março de 2023, mesmo tendo abandonado sua língua
verbosa e incorporado totalmente a “língua de todos”, seu objeto voz ainda apresentava restos.
Para Tom, por mais que seja um falante da língua compartilhada, ainda restava uma
diferenciação. Nesse dia, Tom chega ao Espaço e é recepcionado por uma das crianças, que
aguardava sua chegada com muito entusiasmo. Tom propõe brincadeiras de “herói e vilão” e
“batalha”, mas ninguém procura assumir o lugar de seu opositor na cena do brincar. Então, ele
se propõe a ser o ator do “episódio 14 do ‘herói formiga’”. Começa a representar, após fazer a
cenografia, pedindo para que o outro menino, que ficava invadindo a cena, fosse retirado,
porque “ele é louco”. A brincadeira, após a encenação, se transforma em um assalto ao banco,
que o estagiário João e ele ficaram incumbidos de defender dos bandidos. Erigimos defesas
com espumados, mas precisávamos fazer as placas, o que envolveria a escrita em uma folha
branca. Tom, de início, não aceita, e sua raiva fica evidente, pois começa a tentar destruir as
folhas que os outros usavam. Depois, conseguimos que ele participasse dessa atividade, após
ele desamassar as folhas que havia tentado destruir. No entanto, no momento em que o auxilio
na escrita, usando o método fonético, isto é, priorizando a reprodução do som da letra para que
ele faça a representação escrita, ele se volta novamente com muita raiva. Pede a João:
— Fale na língua dele.
Diz isso repetidas vezes, porque não quer inglês, nem português; ele pede pela “língua
dele” ou pela “língua do Brasil”. Esse jogo de confeccionar e enviar placas e cartas continua.
Enviamos algumas para os bandidos, e estes enviavam outras para a gente, as quais
precisávamos ler. Ele consegue identificar as letras e formar alguns fonemas e palavras, com
171

alguma ajuda. A brincadeira precisa passar pelo contorno da perseguição aos assaltantes para
que as atividades cognitivas possam entrar. Em uma conversa, afirma que só conseguia usar
das letras se fosse “na minha língua”, como nomeia. Depois, fizemos uma prisão para os
assaltantes, e a criança se interessa por estar dentro desta: uma lycra verde neon para integração
sensorial. Ele diz: “a brincadeira acabou” e cria turnos para uso do recurso. Logo, associa
a malha cheia com um fantasma verde, e essa fantasia toma conta. O fantasma “assume o
controle do Tom” e tenta devorar os outros. Outros podem assumir a posição de fantasma,
tanto que ele insiste:
— Agora é a vez do João.
No que tange a estes restos de lalíngua, nomeados por Tom de “língua própria”, em uma
sessão de grupo datada de 16 de janeiro de 2023, a brincadeira entre outra criança e ele fica no
limiar entre frustração que leva a alterações físicas e diversão. Decidimos por intervir, retirando
o jacaré que ambos os meninos disputavam, escondendo-o. Dissemos, João e eu, que ele foi
visitar o médico veterinário, pois esse momento anterior, em que era objeto de disputa, havia
deixado feridas no corpo dele. Os meninos, então, precisaram construir seus carros para poder
procurar o jacaré. No entanto, a outra criança encara como brincadeira destruir as construções
de Tom ou tomar seu espaço, ao ponto que precisamos intervir diversas vezes, inclusive para
impedir que Tom tentasse usar de sua força física para retirar ou punir a outra criança. Chega a
um momento em que o trabalho se torna impossível: ambos os meninos não suportavam a
brincadeira e a convivência. Retiro-me de cena com a outra criança, e Tom confessa a João que
“aquele menino” o havia irritado. Voltamos a construir o carro, mas, dessa vez, eu o dirijo. No
meio de nossa viagem, batemos o carro e chegamos ao México. A preocupação em estar no
México era se esconder dos “seguranças”, porque não conseguíamos falar espanhol. Ele diz
saber algumas coisas nessa língua nova:
— Blip blip blip.
Segundo Tom, isso significava “oi, tudo bem?”. Decidimos pesquisar a língua, e ele
pediu para aprender:
— Olá, palmadinha...
Finalizamos a brincadeira e a sessão.
Com Tom, aprendemos que, mesmo ao elucubrar um saber sobre lalíngua, mesmo com
o descongelamento da retenção do objeto voz, os restos de estrangeiridade da língua permeiam
a demanda da escrita. Falar e escrever são processos distintos para uma criança, mas que têm o
potencial de reposicionar o pensar sobre a língua, tendo em vista as exigências ortográficas que
enquadram o falar livre. A escrita demanda que Tom se submeta a novas subtrações, que
172

parecem ameaçar os resquícios de sua lalíngua, que, discretamente, se mantém, mesmo com ele
falando a “língua de todos”, presente em sua fonética própria.
Convém pensar que o neofuro talvez não se estabeleça da mesma maneira. O resultado
deste pode não ser sinônimo de metonímia do desejo. Resta-nos pensar, mais adiante, se o
neofuro permite a construção de uma neoborda complexa.

3.12 O Corpo como Superfície de Inscrição

Advertimos que, para a psicanálise, o corpo não se reduz à matéria biológica,


considerando que a linguagem tem papel fundamental na construção topológica e libidinal dele.
A superfície corporal sofre o impacto da linguagem, e o que fica inscrito nela depende de
processos complexos, os quais já foram apresentados anteriormente: alienação e separação,
estádio do espelho, estabelecimento de circuitos pulsionais e, por fim, a extração do objeto a.
O caso em questão nos mostra que o sequenciamento lógico necessário para a construção do
corpo pode sofrer entraves e congelamentos, que necessitam de uma invenção do sujeito, no
sentido de encontrar atalhos constitutivos que possibilitem adentrar a linguagem e tratar o
objeto voz, de maneira a autorizar a fazer laço com o mundo dos seres falantes. Testemunhamos
que esse objeto voz pode conservar restos, e sua topologia particular ainda pode trazer atropelos.
Não se pode falar do futuro, até porque considera-se que o trabalho psíquico é um trabalho de
muitos anos, na medida em que as incalculáveis contingências se reapresentam com novas
demandas complexas de linguagem e laço social. O que cabe nesse momento do caso de Tom
é refletir em que momento ele pôde construir e conectar o vínculo entre o sensorium da voz e
os signos.
Conforme colocado, objeto voz e corpo estão intrinsecamente conectados e seus pontos
de descontinuidade. Eles denunciam o sofrimento psíquico de Tom, quando este apresenta
comportamentos impulsivos que mobilizam o mal-estar vivido nas escolas, onde adquire o
estatuto de agressivo para com os colegas. A direção do tratamento buscou considerar que, na
medida em que buscava saídas com sua língua verbosa, ele fez uma tentativa não consolidada
de construir uma língua privada, cedendo à demanda iniciada por seus pais de consentir com
um Outro capaz de traduzir sua língua. Aos poucos, a criança foi dando confirmações — “Ié”
— de leitura que seus pais faziam. Nessa lógica de consentimento, minha preocupação era a de
ocupar um lugar semelhante na transferência e buscar, por alguns anos, esse lugar de tradutora
de sua fala. O tratamento da alienação retida, ao menos nesse caso, perdurou por, no mínimo,
três anos, e isso não garante que a construção do corpo está dada. Não ansiamos por uma
173

automática passagem pelo espelho e uma definição imagética sólida do corpo, por considerar
que o enodamento entre corpo e linguagem para crianças que apresentam uma importante
retenção do objeto voz é um trabalho complexo que requer a invenção de caminhos
“alternativos”. A particularidade de se reter o objeto voz exige o trabalho de distinguir as
modalidades pelas quais essa retenção é vivida: como interior e exterior ao corpo, podendo a
voz ser imaginariamente localizada como uma voz artificial.
Na entrada de Tom na instituição, a musicoterapia teve um papel fundamental, sendo
sempre recebida por ele com muito agrado. Embora tenha sido adotada uma descrição em
ordem cronológica, vale retomar alguns apontamentos sobre a importância inicial do tratamento
de musicoterapia. É na superfície do corpo que a curiosidade de Tom emerge, quando o
musicoterapeuta inicia um brincar no qual era comum gritar alto e baixo, repousando a mão na
garganta, e sentir a diferença da vibração. Esse brincar, inicial no tratamento, parecia localizar,
na superfície dos corpos, o lugar da voz. Progressivamente, o uso de microfones e
amplificadores foram introduzidos, até que eles puderam construir, progressivamente,
apresentações de rock.
Em um vídeo familiar de junho de 2020, Tom está sentado no chão, brincando com uma
versão infanto-juvenil de um teclado musical, que conta com algumas ferramentas de controle,
acima das teclas. Ele aperta toda a fileira de teclas pretas, depois começa a brincar com as
funções de controle do brinquedo, as quais reproduziam melodias específicas, previamente
gravadas. Ele pega um conector, e seu pai o ajuda a encontrar onde colocar o fio, ligado a um
microfone.
— Aqui ó, tá aqui na pontinha.
Eles conectam, e Tom pega o microfone, levando-o à boca e começando a gritar:
— Uôooo... Áaaauauaaaa.
Ele olha para todos os lados na sala, o que é incomum. Tom normalmente brincava e
conduzia o olhar apenas para seu brinquedo, segundo outros vídeos da época.
— Uáaa uá uá uê iê ié — continua a cantar no microfone e começa a tocar o teclado
usando os pés.
A musicoterapia teve um papel fundamental em seu tempo de língua verbosa, pois
parecia dar lugar criativo a ela, na medida em que era possível cantar coisas incompreensíveis.
Talvez por coincidência, Tom ia à clínica, nos dias de musicoterapia, vestido com uma camiseta
da banda de punk rock Ramones. Certo dia, apresento-lhe a música Blitzkrieg bop, que parece
já ser conhecida por ele. A melodia o alegra, e ele passa a reproduzir com facilidade o “Hey ho,
lets go”, seguido de um preenchimento aleatório, com sua língua verbosa, do restante da letra,
174

que, por ser cantada em inglês rápido, também parece não ter nenhum sentido familiar. Esse
brincar se repetiu em várias sessões, o que me levou a perceber que sua língua tinha utilidade
para se divertir. Progressivamente, ele passou a se preocupar com a montagem da cena de uma
banda de rock e com o jeito de segurar o microfone. A composição dessa cena permitiu a entrada
de adultos e outras crianças para manusear instrumentos musicais. A cena da banda de punk
rock estava estabelecida. É nesse período que observamos as primeiras construções de um laço
coletivo, obedecendo às exigências de posicionar corpo e voz em uma cena. Nos dias de
apresentação, ele perambulava pela clínica dizendo: “uoto mudo” (“todo mundo”),
convidando uma plateia para assistir a sua apresentação. Ficava bastante triste por não ter
muitas pessoas para lhe assistir. Quando algo dava errado na cena musical, seja por falha de
algum instrumento, seja por interferências externas ou até mesmo pelo estabelecimento do
tempo da sessão, Tom se frustrava e batia no terapeuta e/ou despejava sua agressividade nos
instrumentos musicais. Ainda que frágil a composição da cena, esta foi um marco inicial para
aquilo que gostaria de localizar como o início de uma construção de uma borda dinâmica de
gozo, que inclui o Outro. Nessa época, não se tratava do asseguramento da superfície corporal,
intensamente vivido mediante o uso de malhas sensoriais, mas de uma cena que inclui o Outro,
a voz, a língua verbosa, os objetos musicais e um espectador. A musicoterapia proporcionou o
início de uma série de efeitos, a partir dos quais constatamos um certo apaziguamento da
agitação de seu corpo e do modo de se dirigir ao Outro.
Tom pareceu construir uma borda corporal que tangenciava uma cena dinâmica e
interativa. Porém, na maioria dos atendimentos, principalmente quando a proposta era uma
construção do Outro, seu corpo-superfície apresentava sinais de angústia. Embora nunca tenha
apresentado questões com o controle dos esfíncteres, em situações muito específicas, revelava
algum descontrole, que chamava a atenção.
Certo dia, estavam sendo realizadas as comemorações do Dia das Crianças. O Espaço,
então, estava todo enfeitado e decorado, com brincadeiras com água, balões, tinta, sabão e
outros materiais. Tom brincava de guerra de balão de água, pedindo-me para que enchesse sua
munição para travar a batalha com a psicomotricista, que o atendia no momento. Além disso,
ele se interessou por brincar de fazer bolhas de sabão para outras crianças estourarem. Depois
desse momento, ele foi para seu atendimento individual, e, de início, só quis brincar de bater,
de batalhas e guerras. Conseguiu, depois de algum tempo, estabelecer uma brincadeira que
contava com uma narrativa, em que ele era um ladrão invasor. Comigo, brincou de toureiro e
touro por um tempo, até querer mexer na água, fazendo bolhas de sabão. Derramou o líquido
em si mesmo e ficou incomodado com a roupa molhada. Urinou em si mesmo, avisando o que
175

estava fazendo. Levamos a criança ao banheiro, para limpar sua cueca e sua calça. Falamos para
ele que, na clínica, ele teria que usar a roupa do jeito que estava, pois ele queria se despir e ficar
nu, por não gostar da sensação da roupa molhada. Ele tentou negociar, argumentando que a
cueca, da forma como se encontrava, molharia os brinquedos do espaço. Por fim, aceitou usar
a cueca, após o secarmos e o enrolarmos na toalha. Pediu para brincar no balanço e para colocar
músicas. Dançamos, até ele ir embora.
Essa cena ilustra a sensibilidade da superfície do corpo, que oscila entre demandar o
duro da força física no brincar de luta e o maleável do brincar com bolas de água e as delicadas
bolas de sabão. O corpo parece perder o controle esfincteriano diante da ausência de dureza,
sendo esta garantidora de sua suportabilidade pela carapaça autística, apontando que outros
estímulos sensoriais são, para ele, sem delimitação. Nessa época, Tom teve um breve
atendimento em terapia ocupacional, com foco na integração sensorial. Diversos estímulos lhe
foram apresentados, tais como: areia, feijões na canjica, trabalho com água, argila etc. Esses
estímulos não lhe agradaram da mesma maneira que os balanços sensoriais, que lhe davam um
prazer proprioceptivo vestibular, ocasionando uma resposta opositora à terapeuta ocupacional,
que veio a mim se queixar repetidamente de que as “demandas comportamentais” interferiam
no trabalho sensorial. Na época, sugeri à terapeuta que ele precisava ter o controle desses
estímulos, os quais não podiam ser apresentados em uma lógica de regulação da terapeuta; era
preciso que Tom tivesse a autonomia de dosar a medida deles. Nessa época, Tom saía da sessão
da terapia ocupacional e ia para o tanque de areia, onde começava a jogar areia em si mesmo.
Sempre que eu interferia nesse processo, ele passava a lançar areia para fora do tanque. Era
difícil para mim pôr uma barra nesse momento e lançar a regra da clínica, segundo a qual a
areia não pode ser lançada para fora do tanque, por eu fazer uma leitura de que o banho de areia
tinha a função de regular a angústia talvez provocada pelas demandas da terapia ocupacional,
que ele recebia como intensas.
Esse tratamento não durou muito tempo, tendo sido avaliado que Tom teria mais
benefícios, na época, com grupos terapêuticos.

3.13 A Construção Imagética do Corpo

Por toda trajetória desta tese, consideramos que a construção de um corpo requer uma
sequência imprevisível de fatores lógicos que enodam o psíquico e o corporal, só localizáveis
caso seus efeitos sejam lidos a posteriori. A dimensão do corpo envolve aspectos sensoriais,
emocionais, sensações internas e externas, o sistema perceptivo e o desenvolvimento sensório-
176

motor da motricidade. Todos esses fatores desempenham um papel fundamental na construção


da imagem do corpo. Ter um corpo e ter uma imagem de corpo não são sinônimos; é possível
ter um corpo desamparado de uma imagem que o represente. A imagem consolidada do corpo
torna viável a relação consigo mesmo e com o outro, na medida em que corpo, estrutura psíquica
e de linguagem são processos que exigem um enodamento mínimo com essa imagem. A
percepção da imagem própria proporciona uma função mediadora com o mundo, possibilitando
representar imaginariamente a si e o outro, o que situa o corpo no seio da dialética da interação
com o outro. É sabido que o bebê leva um tempo, após seu nascimento, para se constatar como
um ser separado de sua mãe, e, nesse momento, experimenta a descontinuidade de si mesmo
diante do outro requerendo, desse agente de cuidados, novas modalidades de asseguramento
dessa sensação de desamparo. Esse processo é bem explicitado na teorização lacaniana da fase
do espelho (Lacan, 1966/1996), em que, em um primeiro tempo, há uma fusão entre si mesmo
e o outro, seguida de um segundo tempo em que a criança constata que a imagem do espelho
não é real, distinta da imagem do outro; por fim, em um terceiro momento, o infans adquire a
convicção de que se trata da própria imagem refletida no espelho, abrindo a possibilidade para
que essa representação imagética do eu, de margem para a constituição narcísica.
A dimensão da imagem no caso clínico em curso é particularmente atravessada por
contingências que podem ou não estar correlacionadas à construção e à apropriação da própria
imagem. No início do tratamento, Tom parecia não se importar com a própria imagem refletida
no espelho, assim como não fazia referência pronominal ao eu, nem ao próprio nome próprio.
Com o advento da pandemia, os atendimentos on-line exigiram uma frequência maior da
visualização de sua imagem refletida na tela do telefone celular, o que parecia lhe causar um
certo desconforto nesse encontro enquadrado de rostos tela a tela. Embora parecesse reconhecer
o outro, quando chamado pelo nome, Tom não nomeava a si mesmo nesse intervalo entre 2019
e 2020.
Em sua língua verbosa, consegui decifrar, no retorno dos atendimentos presenciais, que
ele nomeava a si mesmo como “piu piu”, o que atribuo à personagem da série Looney Tunes.
Chama a atenção o fato de ele equiparar a imagem de si a um desenho animado, cuja
personagem sequer corresponde a uma figura humana. Essa nomeação não se sustentou por
muito tempo, talvez apenas por alguns meses, pois logo ele atribuiu a si o nome “Tom, piu piu”,
antecipando uma parte de seu nome ao da personagem. O apoio imagético em personagens
parece ocupar uma função inicial na referência de formas humanas e de personagens animadas.
Tom teve sua fase do Homem Aranha, tida como importante, pois, além de se apoiar
constantemente em roupas e fantasias que referenciavam essa personagem, por vezes fazia
177

duras oposições em se vestir com outras peças de roupa. As personagens pareciam ocupar essa
função de suporte de uma imagem corporal, pela característica de perdurarem no investimento
feito pela criança. Além do Homem Aranha, o Woody de Toy story e o Ben 10 eram as
personagens que se destacavam nessa época.
Em um dos vídeos caseiros35, datado de 5 de maio de 2020, percebemos uma de suas
brincadeiras na qual encarnava a personagem do Homem Aranha:
— Pois é, ó... — começa o pai, atrás das câmeras, filmando um quarto. — O Homem
Aranha que tá aqui...
A câmera mostra Tom ajoelhado do lado de uma cama de casal.
— Oi, Homem Aranha. Fala “oi”!
Tom responde:
— Oii!
Seu pai continua mostrando o quarto, focando nas roupas empilhadas em frente à porta.
— O Homem Aranha fez um bunker, para que ninguém possa atravessar a porta, e
agora o Homem Aranha está se escondendo.
Filma Tom se escondendo em um colchão dobrado. O pai continua narrando:
— Hoje, já devem ser 45 dias de isolamento, ou mais. Eu nem sei quanto tempo já tem.
Quanto tempo já tem?
Um barulho pode ser ouvido através da porta. A voz de uma mulher aparece. O pai
engata:
— A-lá, a mamãe ficou presa, ó... Ela não consegue entrar no bunker do Tom.
As roupas começam a cair, e a porta vai se abrindo. Tom percebe isso e sai de seu
esconderijo, em direção à porta. Começa a gritar:
— Não, não!
Seu pai responde:
— Sim, sim.
O vídeo termina com Tom rindo, tentando reconstruir sua muralha de roupas. Nesse
brincar, ao que parece, a personagem e o bunker parecem operar como bordas protetivas de sua
imagem.

35 Mesmo adorando uma lógica descritiva em ordem cronológica, retomamos esse vídeo nesta etapa para
ilustrar os aspectos iniciais da construção imagética do corpo durante o tratamento.
178

Na continuidade de fragmentos da imagem do corpo em cena, em um vídeo caseiro de


2020, pai e filho estão montando a estrutura, em madeira, de uma cama, carregando eles a
mesma peça, um em cada ponta. Tom diz:
— Eu quéo.
Seu pai responde:
— Então vamo.
Tom levanta a haste de madeira sobre seu ombro e sai carregando. Seu pai finge
cansaço:
— Nossa, muito pesado... Ainda bem que você tá ajudando, Tom, tá pesado demais.
Tom começa a vocalizar:
— Uá, tá ué i ué.
Ele o faz em um tom parecido com o de seu pai, como se estivesse fazendo muito esforço
para carregar a madeira. Olha para a câmera, e a pessoa que está gravando ri.
— Ei, manda vê, todo mundo ajudando.
Os meninos começam a andar com a peça, seguidos por um cachorro. Quem está
gravando reforça positivamente os dois e chama a atenção do cachorro agitado:
— Isso... Migo, sem morder!
O pai continua:
— Nossa, Tom, você é muito forte, cara.
Enquanto isso, quem grava repreende o cachorro. No final do trabalho, seu pai fala:
— Pera aí, pode deixar que levo o resto.
Tom protesta:
— Ãaaao.
Ele se recusa a soltar a peça. Seu pai reafirma:
— Pode soltar.
A criança solta e para de andar no trajeto esperado, voltando para onde começou,
gritando ritmicamente:
— Lê, lê, lê, lê.
Tom solta um grunhido no final. Seu pai o segue, dizendo:
— Ó lá, esse agora é pesadão, hein?! Aqui ó, vamos lá, eu vou levantar aqui. Calma,
do outro lado, segura do outro lado.
Tom se distrai da estrutura de madeira e começa a mexer em objetos que estão em cima
da penteadeira, falando:
— Uno, óoooi.
179

Seu pai pede para ele os deixar e tenta resgatar a concentração dele à tarefa de transporte.
— Psiu, você pode ajudar de lá.
O pai aponta para o outro lado. Tom, prontamente, segue a instrução e ajuda seu pai a
carregar. No instante em que carrega, tomba seu corpo nas paredes e na porta, dizendo:
— Au, au.
Ele repete:
— Pai, pai, pai, pai...
O adulto exclama:
— Meu Deus, como você é forte! Nossa! Com uma mão só! Olha o cachorro.
Tom enxota o cachorro de seu caminho dizendo:
— Xu, xu!
Na saída, o adulto interrompe:
— Tá, Tomzinho, agora deixa o papai arrumar na porta.
O menino solta a peça.
— Aí... muito obrigado, viu? Sem você, eu jamais conseguiria.
O pai encosta a peça na parede, do lado de fora da casa, e diz:
— Só vou encostar assim... Pronto... Toca aqui!
Tom levanta a mão e é parabenizado por quem está gravando o vídeo. O menino diz:
— Pé, pé, péu.
Tom cumprimenta o pai e sai exclamando:
— Uá!
Pega seu cobertor e vai em direção a outro quarto.
— Agora, descansar um pouquinho — diz sua mãe, que filmava, atenta, a cena.
A mãe finaliza a gravação rindo.
O brincar de Tom nessa idade, em meio a pandemia, se caracterizava pelos suportes
imagéticos das personagens, mas não se limitava a eles. Como observamos na descrição do
vídeo acima, seu pai se preocupou, em uma atividade de vida prática, a contornar com palavras
o desempenho corporal do filho, qualificando-o como forte e indispensável para a construção
daquele trabalho manual. Tom, orientado pela fala do pai, sincroniza os movimentos com a
vetorização paterna. Ao ter a atividade encerrada, conclui “pé, pé, péu”, cumprimentando o pai
e saindo da cena. Embora só pudesse oferecer seu objeto voz enquanto lalíngua, seu corpo
estava submetido à construção simbólica da cena familiar, possibilitando-lhe, paulatinamente,
dar a esse corpo uma imagem.
180

Quando Tom passa a abandonar sua língua verbosa, temos mais indicativos da
construção imagética de seu corpo. Certa vez, seu pai, como de costume, deixa-o na clínica, e
João o recebe no portão. A criança já vai entrando na casa, quando percebe que esqueceu sua
lancheira nas mãos de seu pai, murmurando que “está muito burro”. Seu pai o corrige, dizendo
que ele é muito inteligente, que está apenas distraído.
Suponhamos que a frase “está muito burro” seja uma atribuição qualitativa a si mesmo.
Pela retificação do pai, ele alcança uma nomeação oposta àquela que ele afirma. Na
continuidade desse mesmo dia, Tom se dirige a mim pedindo pela ajuda de João, para dar início
a alguma construção. Respondo que estou trabalhando com outra criança naquele momento.
João o deixou sozinho, esperando a fonoaudióloga. Posso ouvi-lo chamando, pedindo ajuda
para alguém. Algum tempo depois, Tom encontra João pela instituição e lhe indaga, com um
senso de urgência transparecido em sua voz:
— Você não ouviu o meu barulho?
João pede desculpas por ter demorado a ir ajudá-lo a buscar a terapeuta que ia atendê-
lo na cozinha. Ele reclama que ela demorou muito. Terminada a sessão com a terapeuta, João
vai a seu encontro, e Tom o cumprimenta:
— E aí, meu chapa?
João solta algumas risadas pela forma como Tom falava, e este o retruca:
— Por que está rindo eu?
Tom demonstra sua não-compreensão perante o humor. Faço companhia para que ele
coma seu lanchinho. Seu pai chega no Espaço para buscá-lo, e Tom parece surpreso, pois sua
presença na clínica havia sido interrompida mais cedo. Pede para comer seu lanchinho, o que o
pai concede. Enquanto lancha, interroga-me sobre a identidade de um menino que havia visto,
sem localizar se era um adulto ou uma criança. Apenas caracteriza esse menino, afirmando:
— Usa pés, usa mãos, usa dedos, usa cara, usa cabelo, usa popozão e usa
piru.
Reconhece, depois, ser uma criança mais nova que também frequenta a clínica. Tom diz
a João que precisa crescer até chegar ao espaço, que precisa ficar adulto e grande “igual a ele”.
João responde que ele vai crescer com o tempo, e ele se pergunta:
— Tempo?!
João fala que, com o passar dos anos, ele vai crescer mais, até certo ponto. Tom se diz
uma criança gigante, que já foi pequena, assim como o menino que havia apontado mais cedo.
Parece que, nesse momento, Tom, embora tenha clareza sobre as partes do corpo da
outra criança, apresenta uma dúvida se se tratava de um adulto ou uma criança, ainda que se
181

defina com uma criança gigante, refletindo já ter sido uma criança pequena. A dimensão do
tempo dada pelo estagiário João parece funcionar para ele como a variável definidora das
mudanças corporais.
A variável do tempo, passa a demarcar uma medida simbólica que enoda o imaginário
do corpo. Fazemos um salto temporal para os dias atuais: em fevereiro de 2023, Tom chega à
clínica e se depara com várias crianças no mesmo espaço. De início, não consegue engatar uma
brincadeira, invadindo as construções e o corpo dessas outras pacientes. Com uma criança nova
na clínica, uma menina de 8 anos, Tom consegue brincar de máquina do tempo. Fazemos
brincadeiras em que o estagiário vira um “vovô” e Aline, a psicomotricista, um bebê, ambos
precisando de cuidado. Eles assumem esse papel com dificuldade. Ao final, Tom diz ser
adolescente. Perguntamos se ele sabe ler e escrever e se sabe matemática. Isso aciona as defesas
do menino, que vai direto ao pescoço do estagiário.
Na semana seguinte, ao reencontrar a mesma menina com quem partilhou a brincadeira
de máquina do tempo, sugere reprisá-la, mas esta não engata. Depois, começamos a montar
pistas para o skate de dedo e fazemos, com água, espumados, bacias, fita adesiva etc. Tom, no
início, é relutante. Diz que a garota é péssima no skate, mas aceita estar no grupo dos
desclassificados, com João, por ter tomado o skate de minhas mãos quando era minha vez. Até
simula estar chorando por causa disso. Ele grava os vídeos em meu celular, explicando ao canal
do YouTube a partida de skate.
Quando outra criança entra nesta sala — uma menina de 6 anos —, Tom aponta o dedo
na posição de uma arma na testa dela. Intervenho, e Tom se esconde a meu lado, dizendo que
estava com medo dos olhos da outra criança, que ela era o Chucky, o boneco assassino. Isso
retorna quando saímos para fazer um lanche, e o menino se sente ameaçado pelo olhar dessa
mesma criança, ao vê-la no parquinho. Tom localiza essa ameaça do Chucky, o boneco
assassino, especificamente no olhar da garota, uma criança com severas defesas autísticas. É
importante frisar que essa reação de Tom ao olhar do outro nunca foi percebida anteriormente.
Diante da angústia do olhar do outro, Tom localiza e refere o olhar a uma personagem
assustadora, Chucky, e se aninha em meu corpo. Afirmo para ele que não se tratava do Chucky,
e sim de uma garotinha nova na clínica, a qual só estava curiosa com nossa brincadeira.
Mediado pelas minhas palavras, consegue se acalmar, mas fica tenso com a presença dela, até
ela sair da sala. Em outro momento, mais adiante, pergunto se ele continuava assustado, e ele
diz:
— Muito medo de Chucky.
182

Mesmo que a imagem do outro perturbe Tom, a função simbólica ofertada faz borda em
seu medo, sem precisar lançar seu corpo em uma agressividade de aniquilação da ameaça.
Em outra sessão, após esse episódio, a agressividade se apresenta por outra via, pelo
não acolhimento de outra criança a sua sugestão de brincadeira. Quando Tom chega à clínica,
procura o espaço da garagem, que já estava sendo ocupado por outra criança em uma sessão. A
criança em questão afirma não querer brincar de “batalha de rap”, sugestão de Tom. Isso o
frustra, fazendo com que ele se lance em tentativas de remover fisicamente a outra criança da
garagem, afirmando propriedade daquele espaço. Intervimos, pedindo para que Tom não usasse
a força de seu corpo para isso, mas, sim, a palavra. Alguns bons minutos são gastos para que as
crianças se resolvessem, competindo pelo espaço e pelo uso dos espumados. Começam a correr
em círculos, em uma brincadeira que tensiona os limites da raiva e da diversão, até que a
frustração toma conta de Tom — e o cansaço também. Ele pede para poder usar o espumado
que a outra criança tinha em mãos para construir uma personagem de algum jogo, que era um
carro. O outro menino aceita, relutante, após esvaziarem a energia que tomava conta de seus
corpos. Na sessão de psicopedagogia, cozinha um cookie e oferece para as pessoas presentes
no espaço. Pede para que eu tire uma foto dele cozinhando, para mostrar para seu pai.
A modulação da agressividade é um ponto que se destaca nesse momento do caso, por
oscilar entre uma modalidade impulsiva e outra capaz de ser controlada, com a mediação e a
palavra dos clínicos. Ao chegar à clínica, Tom se diz com sono. Convido-o a se deitar e dormir
um pouco no lugar de sua escolha, e ele elege o gramado da área externa, dizendo:
— Como vou dormir meus olhos sem a lua chegar?
Respondo que às vezes é difícil para algumas pessoas dormir com a luz do sol. Ele,
então, desiste de ficar deitado e se levanta, à procura de alguma atividade para fazer. Estrutura
um brincar de esconder objetos para que João e eu os procurássemos. Ao final, perde o controle
de esfíncteres, urinando, por causa de uma frustração durante a brincadeira: eu encontrei algo
que ele havia escondido. Ele, depois, explica:
— Ficou muito nervoso e fez xixi.
Tom não se importa de ser visto com a roupa molhada de xixi, mas já demonstra
incômodo com o fato de perder o controle, seja pela via dos esfíncteres, seja pela agressividade
dirigida ao outro.
No relato a seguir, nota-se a vivência do limiar da frustração, a expressão da
agressividade e o pedido de desculpas pela falta de controle sobre ela. No momento em que
chega, Tom propõe fazer uma batalha. A psicomotricista que o atendia subverte a ideia, pedindo
por uma batalha de dança e outra de rap, que eram já atividades que ele gostava de fazer na
183

instituição. Convida outros terapeutas e crianças para participarem, e alguns aceitam. É válido
notar que a batalha de rap era marcada pela alternância de turnos entre os participantes, que
lançavam rimas para tentar “vencer” e agradar a plateia. Tom, no entanto, não renuncia a sua
língua privada. Suas rimas são compostas por um embolado fonético pouco inteligível, em que
era possível discernir apenas as últimas palavras, que ficavam como algo do tipo “bom”,
“melhor”, “maior” e “legal”. A batalha é interrompida quando a frustração de Tom chega em
um limiar insuportável para ele mesmo, pois percebe que não consegue formular frases e
enunciar as palavras tão bem quanto sua adversária. Isso se traduz em raiva, que imediatamente
o faz encerrar brincadeira, na medida em que ele necessita de um intervalo de tempo para se
acalmar e se apaziguar. Retorna querendo construir um túnel do tempo, no qual começa a
interpretar a si mesmo no futuro (um idoso, que precisa de apoio de um andador para se
locomover), no passado (um bebê que não fala) e no presente (uma marcação do lugar: ele
afirma “estou no Nardin!”). Entretanto, a máquina de viagens no tempo estraga e transforma
Tom em um vilão de videogame. Por causa disso, a criança começa a nos atacar no brincar,
mas, mesmo assim, utilizando a força desmedida do corpo. Em resposta a isso, consertamos a
máquina, colocamos a criança dentro dela, e ela retornou enquanto Tom, pedindo desculpas
pela agressividade.
O anteparo simbólico dado pelos terapeutas em cena ajuda Tom a se desviar da cena
frustrante decorrente da constatação de que retomar o uso de sua língua privada, mesmo em
uma “batalha de rap”, não parece mais lhe satisfazer. Ele a percebe como diferente da
modulação da voz utilizada pelos outros na batalha de rap. A retomada simbólica do brincar da
máquina do tempo parece lhe oferecer uma borda protetiva, na medida em que o salto temporal,
de alguma maneira, o distancia da frustração iminente. Seu pedido de desculpas é decorrente
da possibilidade de enfim assumir uma posição dialética no discurso, reconhecendo seus
excessos. Outro ponto importante surge na sessão a seguir, em que, ao ter sua agressividade
barrada pela lei, Tom se submete às regras e assume uma posição de queixa, revoltado com as
regras em todos os lugares que vai.
Tom chega ao espaço relatando sentir um odor muito forte, tampando as narinas com os
dedos. Diz também que o olho de João está “branco”. João explica que são suas olheiras,
“porque não dormi direito”. Ademais, Tom completa que ele mesmo não dormiu direito,
porque teve sonhos assustadores, enquanto seus pais tiveram sonhos bons. Para Tom, todas as
crianças têm sonhos assustadores, enquanto seus pais não têm, pois dormem bem. Ele quis
brincar de Copa do Mundo, de futebol, de ping pong e de guerra de bolinhas. Depois, enquanto
lanchava, conta que estava chateado, posto que queria que o Brasil ganhasse a Copa do Mundo
184

“de verdade”. Peço para guardarmos o que usamos para brincar, o que o chateia profundamente.
Começa a gritar, dizendo que nunca iria guardar nada, que não queria brincar com sua
psicopedagoga, nem com João. Intervenho, dizendo que, no espaço, é preciso seguir regras. Ele
continua estressado, mas parece se apaziguar com o tempo. Ele afirma:
— Toda criança não gosta de regras.
Diz ainda:
— Não pode dormir aqui, não pode brincar disso, não pode... não pode...
não pode...
Sugiro que ele faça as “regras do pode”, em vez de focar no que estava impedido de
fazer no espaço. Embora ele não as produza, isso provoca um efeito de esvaziamento.
Durante outro dia, estava planejada uma sessão de atendimento em grupo com um
garoto da mesma faixa etária. Esse atendimento foi realizado com João, Aline e as crianças. A
brincadeira era construir castelos e destruí-los em seguida, havendo dois times: adultos contra
crianças. A primeira desavença se deu pela posição dos espumados no “castelo”, o que levou a
uma altercação física entre Tom e o outro garoto, iniciada por Tom. Foi preciso que Aline
intervisse, separando as crianças e pedindo para Tom se organizar em um espaço separado,
usando sua fala para expressar suas vontades. Até que isso acontecesse, a brincadeira na
psicomotricidade ficaria suspensa. Só poderiam retornar quando ambos os meninos pedissem
para voltar para “o jogo”. Em outro momento, Tom se estressou profundamente com o fato de
perder. A outra criança pediu para que ele se acalmasse e parasse de brigar, chegando a dizer
que Tom era “mau”, porque estava tentando bater nos outros. Tom precisou de um momento
apartado dessa brincadeira, em que chorou e conversou, expressando estar com raiva várias
vezes. No momento em que esvaziou sua raiva, Tom não recorreu à agressividade. Afastei-me
com a outra criança, que estava angustiada com a cena presenciada, até que Tom me convidou
para outra brincadeira: queria me contratar para a “empresa” dele, que vendia álcool em gel.
Ele já estava na sessão de fonoaudiologia. Ele desenvolveu um contrato e pediu para que eu o
assinasse, mas não me deixou trabalhar e acabou me demitindo, o que aconteceu anteriormente
com a outra profissional. Tom anteriormente havia contado que não queria trabalhar com sua
fonoaudióloga, dizendo que ela era feia e tinha cara de idosa, relatando que a havia encontrado
no supermercado. Depois, percebeu que a empresa não podia funcionar sem o trabalho dos
empregados e aceitou nos contratar novamente, mas seu tempo no Espaço já havia acabado.
Na quarta-feira da mesma semana, Tom chegara no Espaço com uma agitação
psicomotora significativa, baixo limiar à frustração e sem conseguir se fixar em nenhuma
atividade. Ele pedia para brincar de luta, mas eu sabia que a ideia poderia desencadear uma
185

desorganização generalizada e um envolvimento corporal que localizaria essa agressividade no


corpo de outros, transbordando. Proponho de fazermos a luta no dia seguinte, na sessão de
psicomotricidade. Fizemos o treinamento. Coloco a música Eye of the tiger, que ele
frequentemente associa ao treino para a luta, como no filme Rocky, e montamos estações de
treino que envolviam saltos, chutes, levantamento de peso, socos e corrida, mas também
descanso e alimentação. Essa sequência de treino permite um enquadre simbólico para aplacar
a agressividade que chegava no corpo dele na forma de uma energia livre, sem destino, em
busca de saídas.
No dia seguinte, ele chega me chamando para a luta. Nomeia-me como “juiz”.
Montamos um ringue e pegamos as fantasias. Nos rounds da luta, ele se nomeia como Dr. Raiva
e consegue modular sua força e aceitar suas derrotas. Além disso, ele aceita que as lutas tenham
pausas para assistência médica e massagem relaxante. Também aceita pausas por rompimento
de regras. Déborah, professora de teatro, e outra criança entram na cena, como plateia,
assistentes e, depois, lutadores: o “Brutus” e a “Senhora Tristeza”. Tom torce por Heitor,
invadindo o ringue no primeiro momento. Depois, após a aplicação de advertência e multa, ele
demonstra não querer perder os “milhões” que ganhou com suas vitórias e apenas torce pela
plateia, dando dicas. Em seguida, ele luta contra a Tristeza, começando — enquanto Raiva —
gritando. Por fim, usa a técnica do riso e ganha a luta.
A construção imagética do corpo envolve enodamentos com o real e o simbólico, e, ao
que parece, Tom está nesse processo, consolidando, com o suporte de sua borda autística,
especificamente os duplos que foi acionando e construindo com o passar dos anos, sobre os
quais nos debruçaremos a seguir.

3.14 O Nascimento do Duplo

Após todo percurso realizado em torno dos elementos do caso, trataremos dos
componentes da neoborda autística: o duplo, os objetos autísticos e os interesses específicos,
que o caso de Tom nos transmite. Iniciarei pelos duplos, por estes se destacarem como
elementos preponderantes da borda autística, que por sua influência, arrastou sua modalidade
de objeto autístico e consequentemente, formatando seus interesses específicos. É necessário
pontuar que os duplos são estratégias autísticas para compensar as fraturas nas construções
imaginárias que um sujeito autista atravessa. O duplo no autismo se mantém distinto do duplo
na psicose, que pode assumir uma presença persecutória. O duplo autístico tem uma função
apaziguante, “da qual o sujeito se vale, de bom grado, para tratar o gozo pulsional” (Maleval,
186

2017, p. 129). Como complementa Laurent (2014), cabe ao duplo autístico “fazer suplência a
essa ausência de borda” (p. 100). Esses duplos podem ser variados, desde pequenas personagens
transitórias no decorrer da vida a pessoas e animais que perduram por mais tempo. Todos eles
têm a função de alicerce na construção de uma imagem que possa servir à identificação e à
construção de um estofo imaginário. É necessário pontuar que todos os elementos da borda
autística têm como função a regulação da economia de gozo, conforme pontuamos
anteriormente. O duplo pode ser a via pela qual o autista trata de sua alienação retida, conforme
pontua Maleval (2021), possibilitando uma relação dialética com o outro, na medida em que
uma construção de si mesmo estabelece.
Elencamos que, no caso em questão, Tom fez uma trajetória com pequenos duplos
transitórios, encarnados em personagens virtuais. Em um primeiro momento, supomos que seu
pai, B., tenha ocupado esse lugar de duplo não transitório, perdurando até os dias atuais. É
interessante pontuar que, desde pequeno, Tom nomeia corretamente o parentesco materno,
enquanto ao pai ele se refere pelo nome próprio, B., embora não lhe reste dúvidas de que este
seja seu pai. B. operou inicialmente uma função de tradutor ativo da fala de Tom e tornou-se o
grande cinegrafista de seus vídeos caseiros, em um momento delicado como a quarentena da
pandemia de COVID-19. De tradutor e cinegrafista, tornou-se um companheiro de aventuras,
em um período marcado pela ruptura radical do laço social. Em meados de 2021, João, o
estagiário de psicologia do Espaço Nardin, iniciou sua trajetória na clínica, passando a constituir
um novo duplo em cena. Embora não tenha sido este ponto , é interessante pontuar que o nome
completo do estagiário, João , carrega como sobrenomes, os nomes originais da criança e do
seu pai.
Quando João começa a acompanhar os atendimentos de Tom na clínica, tendo este na
época seis anos, a primeira observação que faz é em torno de sua fala: palavras pronunciadas
com muita velocidade, em apenas um tom, sem intervalos que sustentam um diálogo. Tom,
apesar de sua dificuldade motora com a fala, se interessa pela participação do outro em suas
brincadeiras, dirigindo-se o tempo todo a adultos e crianças e fazendo convites para entrar em
suas cenas. Fazer-se entender nem sempre era sua preocupação, desde que conseguisse acessar
o outro usando de brincadeiras mais corporais.
Em determinado momento, quando a flexibilização das regras impostas pela pandemia
de COVID-19 começou a entrar em voga, paramos de usar máscaras na instituição. Tom
começou a ver, então, partes das faces dos outros, o que não estava acostumado a enxergar.
Quando vê a boca de João, percebe que ele tem um piercing em sua língua, e isso o perturba
levemente. Começa a procurar algum piercing em sua língua, pedindo, também, para que outros
187

adultos expusessem sua língua, com o intuito de investigá-las. Tom percebe que tem algo na
língua de João, que tem algo n’alíngua de todo mundo, assim como na dele.
As cenas que Tom trazia para as brincadeiras eram majoritariamente tiradas de desenhos
animados e videogames. Sem tempo para planejar ou organizar ou até contextualizar o terapeuta
que o estava o atendendo em sua brincadeira, Tom já o puxava pelas mãos e saía correndo,
dando início às cenas que vinham “em bloco”. Nesse tempo, o fazer com o corpo estava sempre
em evidência em seus atendimentos. Não demorava para que a brincadeira, em diferentes cenas,
requisitasse que Tom pulasse, corresse, gritasse e, frequentemente, criasse batalhas com o outro,
usando brinquedos como armas. Esse regime do brincar, muitas vezes, implicava em frustrações
incontornáveis do lado de Tom. Se eu não entendesse de onde vinha a referência daquela cena,
a resposta de Tom era desmedida: ele começava a se irritar, elevar o tom de voz e pegar no
rosto de João. Ele se assegurava que estavam prestando atenção em seu rosto quando
falava. Em uma sessão, ele tenta começar um jogo cujas regras João não conhecia muito bem.
Apesar disso, lança-se na tentativa. Contudo, encontra a impossibilidade de organizar as peças
do jogo de forma a solucionar o problema proposto, pois sua maneira de fazer ia em desencontro
com a proposta do jogo. Diante desse ponto de falha, Tom começa a desferir golpes contra mim
e puxar meus cabelos. Embora não estivesse participando diretamente, eu observava a cena,
tentando sugerir a Tom outra maneira de jogar. Consigo escapar de suas agressões e tento
apaziguá-lo. Entretanto, o próximo movimento de Tom é dar início a autoagressões, batendo
em seu rosto e puxando seu próprio cabelo. Diante do não-saber, Tom dava vazão à angústia na
forma de agressividade, partindo em direção ao outro sem maneiras de medir, controlar e inibir
sua força corporal nesses rompantes, o que o colocava em situações dificultosas na relação com
outras crianças e rendia diversos impasses em relação a sua presença no contexto escolar.
Ao longo desses meses, Tom começa a trazer para a brincadeira fantasias mais autorais,
com narrativas mais densas. As cenas ainda se inspiram em videogames e desenhos animados,
mas ele aceita preencher seus lapsos com outros conteúdos, inclusive aceita a sugestão e a
intervenção do outro na brincadeira. Tom gosta de criar, roteirizar e gravar essas cenas para
exibi-las na TV da clínica, enquanto come pipoca, realizando sessões de “cimema”, as quais
outros profissionais, crianças e familiares que estão presentes no espaço são convidados a
assistir.
Além disso, duas narrativas em específico aparecem: na primeira, Tom é um rei, mas
está tendo seu reino invadido e tomado pelo “rei Augusto”. Vale citar que Augusto é o nome
de seu primo de primeiro grau do lado materno que mora na mesma casa que ele. Diante disso,
Tom precisa formular estratégias, armadilhas e emboscadas para retomar sua posição como rei.
188

Na segunda, Tom é um detetive que precisa encontrar algum vilão que se esconde no espaço da
clínica. Para tanto, precisa recolher pistas, desenhar mapas e se encontrar com outras
personagens no caminho, que poderão ajudá-lo, criando uma verdadeira jornada do herói.
Nessas brincadeiras, Tom se encontra sempre como o protagonista que resolve tudo nas
histórias. É o mais forte, o mais corajoso e o mais inteligente. Em determinado momento, na
brincadeira de detetive, ele localiza o vilão em outra criança da clínica, uma menina de dois
anos. A terapeuta que estava com essa menininha sinaliza que, pela ausência de resposta dela,
talvez Tom tenha se equivocado. Isso o lança em um movimento de pedir desculpas
generalizado, afirmando:
— Fez tudo errado.
Ele acrescenta, no entanto:
— Vai consertar tudo.
Tom escreve um pedido de desculpas em um quadro branco que fica na sala de espera,
para que todos pudessem lê-lo. Era comum que essa posição de causalidade de todos os
acontecimentos da brincadeira fosse assumida por Tom., sem deixar lugar para o Outro, mesmo
que prezasse pela participação deste na brincadeira.
No atual momento do caso, o encontro com Tom já é ordenado de maneira diferente. A
criança separa o primeiro tempo do atendimento para organizar e planejar a brincadeira, de
forma a contextualizar a entrada do outro, valendo-se de processos simbólicos. Sobre sua
questão com a fala e a linguagem, Tom começa a organizar seu discurso com um narrar mais
rico e denso. No entanto, em momentos de frustração, com o persistente não-entendimento do
outro, ou de extrema alegria, seu tom de voz se eleva, e ele começa a falar “embolado”, como
ele mesmo diz. Agora, porém, a criança percebe que essa invasão afetiva aumenta ainda mais
sua não-compreensão e se explica:
— É que eu fico muito animado.
Não saber-fazer com algum objeto e com a brincadeira deixou de ser motivo para lançar
Tom nas crises de angústia em que aparecia a agressividade. Hoje, ele fala:
— Eu não sabo.
Nessa tentativa de nomear o outro e lhe delinear uma função, Tom coloca seus esforços
para se localizar em uma realidade discursiva, especialmente na rede de parentesco. É
importante notar que ele dificilmente usava os significantes “mãe” e “pai”, chamando-os pelo
nome próprio, em vez disso. A forma como ele me nomeia, também, é curiosa. De início, não
assimila meu nome, começando a me chamar de “amigo”. Conforme nosso vínculo foi se
estabelecendo, ele encontra novas formas de nomear minha presença: “amigão”, “João”, “João,
189

meu amigo”, “meu irmão” e, ultimamente, tem usado “meu João”. Essa orientação que me
aproxima dele em uma série de relações denotadas pelo termo classificatórios de parentesco
mostra a relação própria de Tom com os significantes, tentando preenchê-los com sua
experiência afetiva para, assim, entrar nas “regras do jogo” da comunicação.
Certa vez, Tom chega ao espaço procurando:
— Quem ele vai atender?
João estava no momento com outra criança. A criança que estava com ele,
anteriormente, havia despertado a curiosidade em Tom, pois eles apresentavam algumas
similaridades físicas. Ele diz que o menino tem “o cabelo dele, o olho dele, o nariz dele, a boca
dele...”, sendo apenas menor.
Começamos a brincar de caubói robô, que roubou meu cartão de ônibus. Ele sai
correndo de trem e a cavalo para fugir. Chegam um garotinho e outra terapeuta na cena, e o
caubói rouba a passagem de trem da terapeuta. O garotinho tenta tomar à força o cartão
dependurado no pescoço de Tom. Os meninos começam suas competições pelo comando do
brincar, levando até o início de interações agressivas. Tom precisa cuspir (diz que vomita)
porque a brincadeira no balanço havia sido muito intensa e ele estava com dor de barriga.
Quando voltamos a brincar, foi preciso interditá-lo várias vezes. Ele parecia se sentir invadido
por tudo que a outra criança falava, necessitando de contenções físicas em diversas situações.
A outra criança chega a pedir a Tom para não “tocar no seu corpo”. Em conversa, João propõe
parar de brincar naquele espaço e ir para outro lugar, mas Tom promete que vai “se acalmar”.
Diz que João o “convenci” a ficar calmo. Começamos a montar uma brincadeira de treinamento
kung-fu para ninja, com setores de treinamento, cumprimentos, vestuário e cenários. Tom
aguenta todos os desafios propostos, inclusive os de esperar, meditar, não se dirigir ao corpo da
outra criança — o que não aconteceu em nenhum momento desde que João “o convenceu”.
Depois, ele quis procurar vilões ou armas secretas pelo espaço, e, nessa brincadeira, pediu para
que João não falasse e negasse toda intervenção minha. Disse que desse jeito não é possível
brincar com outro, porque uma brincadeira a dois requer participação a dois. Ele se frustra, cede
e diz que João “o convenceu pela segunda vez”, aceitando minha participação.
O consentimento dado a João como um duplo pacificador surge, e este tem uma função
importante, pois ele encontra Tom todos os dias na clínica, sendo uma referência permanente,
diferentemente de mim, que só me encontro com ele, atualmente, no dia de seu atendimento
psicanalítico.
190

João passa a dividir esse lugar já consentido a mim de ser um Outro apaziguador, e essa
similaridade de lugares se mostra em outro episódio possível, quando mostro a Tom um registro
fotográfico da infância dele, e ele, perplexo, pergunta:
— Você é minha mãe?
Por fim, recentemente, ele se frustrou com um jogo de bola que estávamos jogando,
por não conseguir ganhar, dirigindo-se a mim e a João dizendo:
— Vocês são os piores irmãos do mundo.
Essas cenas ilustram o momento atual de Tom, tentando encontrar um lugar que o caiba
no mundo da linguagem, mesmo que isso implique tensionar os limites significantes a fim de
trazer consigo sua versão do fora do sentido. Essa é a mesma lógica que ele está vivenciando
no processo de alfabetização. Ele só escreve algumas letras: X, C, O, U e G, notadamente. No
entanto, com essas letras, é capaz de compor a escrita de todas as palavras. Em determinada
brincadeira, assina seu nome próprio em um papel, usando essas letras; volta-se para mim,
entrega o lápis colorido e diz: “coloca suas letras aí”.

3.15 Os Primeiros Objetos Autísticos

Conforme foi apresentado na subseção anterior, dentre os elementos da neoborda, o


duplo influenciou os contornos dos objetos autísticos e dos interesses específicos. O duplo-
cinegrafista terminou por provocar, mesmo de forma indireta, um anteparo do olhar exercido
pelas lentes do telefone, objeto que progressivamente foi tomando um lugar na cena familiar
durante um período tão atípico quanto o das primeiras quarentenas, diante da pandemia em
2020. As telas tomaram uma configuração para além do lazer televisivo, sendo um meio para
ter contato com a escola e realizar as sessões de psicanálise. Por vezes, o excesso de sua
presença o incomodava, o que o fazia desligar as ligações em nossas sessões on-line. Algumas
vezes, desviava-se da chamada e buscava no telefone outras atividades, enquanto permanecia
ali, na linha, tentando estabelecer um laço. Nessa fase do tratamento, seus objetos de interesses
eram seus brinquedos, que o alegravam. Com eles, fazia um bom uso do brincar. Os bonecos
de personagens tinham um lugar privilegiado, assim como os carrinhos Hot Wheels e o
McQueen.
191

3.15.1 Março de 2020: Relâmpago McQueen

Em março de 2020, a câmera grava um brinquedo, uma personagem do filme Carros, o


Relâmpago McQueen.
— Tô tao! Tô tao! — diz Tom, levando suas mãos em direção ao celular que o filma,
tampando a lente.
Depois de alguns segundos, seu pai adverte que nada apareceria no vídeo, pois a criança
estava com a mão cobrindo a lente:
— Assim, ó, deixa eu te mostrar, segura assim ó.
A câmera volta a filmar o brinquedo, de cabeça para baixo.
— Tê dau — fala o menino. — Ta dao, ta dao.
Seu pai responde:
— Hum.
— Taooo — fala Tom.
Seu pai o ignora.
— Aí, ó, agora você faz a sua filmagem...
O menino coloca novamente os dedos na frente da câmera, e, rindo, o pai o corrige.
— Segura assim, ó, pode segurar, você vai querer segurar com a mão direita... Aí, ó,
pronto!
A câmera filma na posição horizontal o brinquedo.
— Aí, ó, agora já tá filmando o Kachaw.
— Ta dau! — diz Tom, em tom mais alto. — A tao...
Tom começa a mostrar o brinquedo para a câmera.
— Aí, ó. Esse aí é você que tá fazendo... — encoraja o adulto.
A câmera dá voltas e se fixa para filmar a traseira do carro de brinquedo.
— Agora filmar atrás, isso mesmo.
Tom continua a expor seu brinquedo no vídeo, aproximando-se dos detalhes. Seu pai
pergunta:
— Filmou a roda do Kachaw também?
Após uma pausa, Tom responde:
— Tadau!
— Você pode falar também McQueen.
O filho retorna, ainda mostrando os detalhes do carro:
— Têdau...
192

Tom eleva a altura da voz:


— Ta dau!
O menino sai com o celular, filmando sua casa.
— O quê que você tá filmando agora? A geladeira?
Tom abre a porta do eletrodoméstico, expondo os mantimentos guardados.
— O quê que tem lá dentro da geladeira? Uaaaau, tem várias coisas... O quê que você
quer comer agora?
A criança aponta para o ovo.
— Um ovo, deixa eu ver se tá na validade. Deixa eu fechar aqui.
O pai pega o alimento, fecha a porta da geladeira e finaliza a gravação.

3.15.2 16 de Maio de 2020: Pista Hot Wheels

— Úuuuuu — vocaliza Tom, com um carrinho na mão.


O quarto está, de parede a parede, ocupado pela pista laranja da marca Hot Wheels, que
está apoiada na parede, na cama e em uma cadeira cinza. É possível ver também vários
brinquedos espalhados pelo chão.
— Tom, esta é sua pista quarentena. Esta você fez do começo ao fim — diz o pai, que
filma o filho.
O menino está no início da pista, segurando um carrinho perto da parede, movendo-o
pela longa pista.
— Uhuéhuu — ri Tom.
Seu pai mira o brinquedo com a câmera.
— Olha esta pista, pessoal, que pista maneira, oh! Caramba... Ih, mas o carrinho parou
no meio. E agora, Tom, como você vai fazer?”
A pista tem segmentos com altitudes diferenciadas. Tom tinha acabado de passar o
carrinho por um monte, mas ele para no meio de uma declividade no meio da pista.
— Vamos tentar arrumar esta pista para o Tom, foi uma pista muito legal que ele fez.
Sozinho do começo ao fim, parabéns — enfatiza o pai, enquanto o menino segura o carrinho
novamente, fazendo-o subir outra vez, finalizando a volta na pista.
Enquanto move o carrinho de brinquedo, Tom vocaliza:
— Úuu uu úuu.
193

Nesse período, em que sua linguagem acompanhava, por via de onomatopeias, os sons
dos carros, Tom apresentava muita satisfação nessa forma do brincar. Eram discretas suas
aberturas a mim em sua cena do brincar. Quando se sentia cansado ou com seu brincar
atrapalhado, colocava todos os brinquedos em um lençol, recolhendo-se com sua trouxa de
brinquedos para outro lugar da casa. O McQueen (“Têdau”) tinha um lugar privilegiado em seu
apego na época. Ele insistia que essa personagem estivesse incluída em outras modalidades de
brincadeiras. Sentia-se frustrado por ela não se encaixar na pista laranja dos Hot Wheels, que
era muito curta. As peças da pista Hot Wheels se encaixavam umas nas outras, e Tom passava,
às vezes, toda a sessão tentando criar pontes nessa pista com os móveis de seu quarto, para se
satisfazer com o efeito dos carros rodopiando nelas. Era uma construção minuciosa que, quando
dava errado, gerava frustração, fazendo-o derrubar tudo no chão ou jogar na parede. Inseri-me
em silêncio para ajudá-lo nas reconstruções. Ele passou a criar pontes suspensas na pista Hot
Wheels, ficando embaixo delas, olhando para cima, observando lançar os carros. A pista
delimitava um espaço satisfatório, que lhe deixava protegido, bordejado por ela. Minha entrada
na cena foi apenas para pôr os carros em movimento.
Na fase inicial do tratamento, aquilo que podemos depreender como objetos autísticos
pareciam desempenhar uma dupla função: de anteparo e de circuitos do brincar. Tom dedicava
muito tempo na construção de suas engenhocas, e meu papel era similar ao de um ajudante de
pedreiro, que recebe algumas ordens para realizar alguma ação mecânica que o outro não
consegue. Ele me expulsava do quarto, onde era realizada a maior parte dos atendimentos nessa
época, diante da minha incompreensão de seus pedidos.
Certos dias, ele gostava de amarrar uma colcha na grade da janela de seu quarto,
tentando encaixar a outra ponta em algum lugar, mas se deu conta de que nenhum móvel
conseguia dar uma sustentação eficaz. Ao compreender sua vontade, passei a segurar a outra
ponta com força, e ele demonstrou qual era seu objetivo: jogar inúmeros brinquedos naquela
rede inventada e entrar nela, junto a eles. Gostava de ficar totalmente envolto nessa “rede” e
me pedia para que fechasse todas as aberturas.
194

Figura 9. Rede de brinquedos.

Não parecia se incomodar com a dureza dos objetos que envolviam seu corpo; ao
contrário, deitar-se sobre eles no envoltório do cobertor parecia lhe trazer serenidade. Por essas
construções iniciais, considerei importante respeitar as modalidades de investimentos nesse
circuito do brincar, que pareciam representar investimentos em bordas através de objetos
autísticos simples. As necessidades de controle de um objeto-borda permitiam uma certa
relação de controle de sua própria economia de gozo. Na medida em que o tratamento avança,
Tom torna sua borda autística mais maleável, com o suporte do macacão sensorial e com objetos
mais selecionados em seu interior, diminuindo o aspecto de sua rigidez.

Figura 10. Macacão sensorial com bolinhas dentro.


195

O deslocamento dos objetos de interesse prossegue mediante a influência das


personagens televisivas, operando na conjuntura duplo-borda-objeto. É nessa tríade que Tom
complexifica sua borda autística ao longo do tratamento. Os objetos não mantiveram um caráter
único e longitudinal, e sim metonimicamente variado, pela regência dos duplos em cena.
Nos dias atuais, o telefone celular ganhou um lugar privilegiado. Tom pede para ser
filmado em suas produções e afirma, no início desses vídeos: “se inscrevam no meu canal, dê
o seu like”.
O telefone celular vai além de um objeto em si; ele representa uma continuidade direta
com o YouTube, no qual Tom, ao ser filmado, supõe que o vídeo está inserido, com o apelo do
like de quem estiver assistindo. Os objetos dão suporte concreto para uma personagem própria:
um garoto que, com seu canal no YouTube, reproduz “trollagens”, pegadinhas e desafios
psicomotores. A complexidade do objeto autístico — celular — se deu da entrada tímida de seu
pai, como cinegrafista das brincadeiras de Tom, ao momento atual, em que Tom nos demanda
filmá-lo em suas sessões. Há pouco tempo, ele faz uso do tripé de mão, onde acopla nossos
celulares e sai, pela clínica, filmando e introduzindo o espectador aos desafios do dia. Em
determinada sessão, propõe, para seu canal, que seus amigos (João e eu) e ele estão presos por
24h na escola Nardin, da qual precisam escapar da diretora. Concomitantemente a essas
elaborações mais simbólicas de uso do objeto, ainda recai em uma resposta mais primária, como
no dia em que percebeu que se esqueceu de seu relógio Omnitrix, do Ben 10, e passou a desferir
golpes em seu pai. Vale ressaltar que esse relógio exerce uma função importante nas “lutas”
travadas por Tom, servindo como um modulador de sua força, demonstrando que objetos
autísticos simples ou complexos funcionam sempre como moduladores de gozo.

3.16 Os Interesses Específicos

Com o nascimento da borda, as primeiras modalidades de defesas, apoiadas nos objetos


e nos duplos simples, fazem função de delimitação do furo, circunscrevendo o autista,
protegendo-o minimamente dessa falta inquietante. Essa delimitação possibilita a esse sujeito,
por meio de sua borda protetora, localizar seu gozo em um objeto externo, que o auxilia a
ordenar minimamente seu próprio corpo. Entretanto, segundo Maleval (2018), “por não dispor
da função do significante unário, ele não a codifica em um índice do objeto perdido: ele se
separa dela pela produção de um objeto concreto” (p. 28).
Os interesses específicos surgem ancorados aos objetos e duplos. Embora muitas vezes
estejam intrincados, é comum que os interesses específicos tomem um caráter progressivo, que,
196

por vezes, exige a realização de trocas sociais para complexificá-los, obrigando o sujeito a sair
um pouco de seu isolamento, exigindo dele um certo consentimento para que o Outro transite
em sua borda dinâmica. Para Maleval (2018), esse processo de consentimento para que o Outro
ocupe um certo lugar na borda autística possibilita um esvaziamento da borda, permitindo aos
autistas remediar o problema inicial da comunicação, que se origina da retenção dos objetos
pulsionais.
Como foi pontuado anteriormente, Tom apresentava majoritariamente a retenção do
objeto voz. Como se observa no momento atual do caso, são seus interesses específicos que o
motivam a realizar trocas com o outro pela linguagem, desafiando-o diariamente a tratar dos
resíduos fonéticos de sua língua verbosa. O interesse específico que localizamos nesse caso
clínico é o YouTube, somado à abertura para o mundo do saber que este promove. O advento
do YouTube como um interesse específico tem sua linhagem na introdução do objeto celular-
câmera-duplo, que seu pai sustentava, filmando suas brincadeiras, contribuindo para que ele se
vinculasse ao Outro nos vídeos, dizendo:
— Tomzinho, dá um oi para o pessoal.
As primeiras frases inteligíveis de Tom, em seus vídeos caseiros, foram:
— Eu sou o Tom, esse é B., inscleva nosso canél. Ablaços todos vocês.
Tais palavras convocam o Outro à cena, exigindo uma Outrificação diante dele, ainda
que majoritariamente virtual. O YouTube possibilitou a Tom se interessar pelos jogos de
videogame, devido à proliferação intensa de canais de streamers, os quais filmam a própria
partida de maneira divertida, engajando o espectador a acompanhar sua trajetória.
A família informa que Tom ganhou um Xbox e que ele mesmo podia jogar seus jogos,
tornando essa narrativa predominante em seu brincar. Nos anos de 2022 e 2023, Tom faz laço
com todos na clínica, de terapeutas a crianças, sugerindo brincadeiras que retratam os desafios
dos jogos de videogame e “trollagens” e pegadinhas que vê no YouTube, o que exige dele se
deparar com o não saber do Outro, necessitando ocupar um lugar de agente de explicações, ser
compreendido e ter seu plano aderido. Muitas vezes, essas etapas o frustram intensamente,
porque nem todas as crianças conseguem acompanhar seu raciocínio. Ele me convoca, ainda
que agora de outra maneira, a traduzir suas explicações, que, por vezes, precisam de contexto e
referências para suas propostas. Embora seja uma continuidade de minha função de analista, a
de traduzir sua linguagem, nesse momento do caso, sua tradução tinha uma volta a mais no laço
social.
197

Alguns relatos de sessão nos possibilitam testemunhar essa dinâmica. Em 31 de outubro


de 2022, dia de comemoração do Dia das Bruxas no Espaço, a clínica foi totalmente adornada
com enfeites temáticos. Tom fica animado quando a vê e começa a torcer, com animação:
— Halloween! Halloween!
Uma criança de sobrenome homófono a um de seus jogos de videogame favoritos,
Minecraft, convida-o para assistir a um filme que havia produzido no espaço. Tom,
prontamente, aceita o convite e o estende para assumir a posição de segurança da sala de
cinema, controlando o fluxo de pessoas que entram e saem do espaço. Assistir a esse filminho
desperta o interesse de produzir um de sua autoria, o que ele faz junto de outra criança, usando
espumados para compor o cenário. É um filme de “trollagens”. Em uma dessas cenas de
“trollagens”, Tom junta a lycra verde, usada como recurso de suspensão na terapia ocupacional,
e a coloca debaixo de sua blusa, no abdômen, fingindo ter uma barriga “grávida”. Ao fim, Tom
relata querer um tempo para si, dizendo:
— Tô cansado de conversar, blábláblá...
A função de tradução de sua linguagem realizada por mim, sua analista, agora toma uma
especificidade para além da “tradução à língua de todos”: essa função me exige também
aprender a língua dos desenhos, videogames e streamers de seu apreço. O esforço para
composição desse laço complexo com o Outro, embora esteja fluindo, ainda é cansativo para
Tom, que agora, enfim, pode responder com a sentença: “Tô cansado de conversar,
blábláblá...”, abandonando o corpo como via exclusiva de demonstrar seus limites. Esse
enodamento da linguagem como borda da agressividade está em curso, mas, como pudemos
observar na sessão seguinte, esta ainda surge, embora, diante da mediação da analista, ela exerça
uma função delimitadora.
No dia 6 de fevereiro de 2023, no portão da clínica, o pai de Tom me traduz as perguntas
do filho sobre uma personalidade do Youtube que havia acompanhado ultimamente. O menino
vai me contando as histórias sobre ela, enquanto entra no espaço. Em um quadro branco em que
estavam escritos os nomes Augusto e Ana Paula, ele diz “reconhecer essa letra”, o A. Leio para
ele e explico o que está colocado ali: um placar e os nomes. Quando escuta “Augusto”, Tom já
identifica o primo e diz estar com raiva, porque ele sempre fica “dedurando”. Tom chega, e
outra criança já está percorrendo um circuito montado, o que logo o anima a fazer “mapas” de
um videogame. No entanto, ele não quer continuar a brincadeira sem propor a organização dos
mapas, pedindo para que o outro menino se retirasse dos recursos da terapia ocupacional para
que ele pudesse montar as fases do jogo. Isso fez com que Tom se valesse do uso da força física
e de seu corpo para tentar retirar o outro menino, que lhe pedia:
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— Tom, vamos parar de brigar?


Eu acrescento:
— Você tem uma escolha. Quer continuar a brincadeira?
Tom decide “controlar a raiva” para continuar a brincadeira. Entretanto, para os dois
meninos, não é difícil que uma brincadeira “escorregue” e vire uma disputa ou uma briga física.
É preciso separar os dois, porque o conflito estava tomando proporções que superavam o
brincar. Depois, Tom decide que vai me ensinar como ser um ninja e me mostra técnicas para
que eu as reproduza.
É comum, quando esses rompantes agressivos surgem, que eu apenas me dirija a ele
desta forma:
— Tom, desta forma não tem como continuar na clínica, vou precisar ligar para seus
pais lhe buscarem.
Às vezes, digo apenas:
— Tom, precisaremos interromper esta brincadeira.
Na maioria das vezes, mesmo que demore a ceder, Tom termina por fazê-lo. Noto que
é mais difícil quando seus interesses específicos estão em jogo, devido à alta carga excitatória
em reproduzir as cenas dos jogos ou desenhos. Nem sempre ele tem êxito em operar seus
interesses específicos para o enlaçamento com o outro. Por diversas vezes, apresenta um intenso
desejo de brincar de treinamento ninja com outras crianças, mas nem sempre entende que elas
não estão envolvidas na brincadeira.
Certo dia, Tom avistou outras crianças pelo espaço que seguravam um boneco de um
de seus jogos de videogame favoritos. Tentou convidá-las para brincar, mas elas, que são irmãs,
deram as costas e se retiraram de perto. Nesses momentos, fica evidente o desejo que Tom
sustenta pelo outro, mas ainda lhe falta traquejo para manejar o laço social, especialmente no
que diz respeito a uma leitura da linguagem do outro, corporal e verbal.
Certo dia, quando chegou à clínica, Tom me indagou sobre uma batalha de rap entre “o
muçulmano e o purple”. Percebendo meu não entendimento, seu pai retornou ao espaço,
explicando:
— É de um vídeo no YouTube que ele anda vendo.
Disse que ainda não havia assistido a esse vídeo, e nós o buscamos na plataforma, para
podermos vê-lo juntos. A posição de tradutor do pai foi essencial, pois Tom pouco reconhece
o fato de que nossas lembranças não são as mesmas dos outros. Para ele, conhecemos as mesmas
séries, vídeos e jogos, tanto que sempre me pergunta:
199

— Você lembra desse vídeo?


Respondo que não, e ele logo complementa:
— Eu lembro, sim.
É pelos interesses específicos que Tom pode, delicadamente, perceber que é possível o
desafio de se conectar através deles ao Outro. Cabe ao analista delimitar que isso não implica
um total funcionamento, que cada um de nós tem suas lembranças próprias. Seus interesses
específicos são motores de conexão com o Outro, e a função do analista, nesse momento, é
delinear as nuances desse laço.
Em outra sessão, Tom não topa as demandas que estão sendo colocadas a ele, mas
encontra uma brincadeira que agrada todas as partes: ensinar sobre seu jogo favorito e
reconstruir o cenário.
A construção do humor é um processo em andamento, marcado pelas “pegadinhas” que
assiste no YouTube, mas Tom ainda encontra muitas dificuldades no que tange aos equívocos
da língua. Por vezes, as pegadinhas o colocam em um lugar de difícil manejo social. Certo dia,
quando chegou na clínica, Tom já encontrou outras crianças, algumas aguardando os terapeutas
e outras já em trabalho nas sessões. Ele carregava sua usual lancheira e algumas roupas soltas.
Ele disse que queria fazer “pegadinhas”, mas seu pai o advertiu no portão sobre o que havia lhe
dito anteriormente. Perguntei a ele sobre o que seu pai estava falando, e ele deu de ombros:
— Não é nada — disse enquanto sorria.
Os planos dessas pegadinhas envolvem, em geral, fingir que está batendo no bumbum
de alguém, o que lança Tom em muitas risadas. Na clínica, Tom encontrou outra criança, de
quatro anos, com quem já havia brincado e se desentendido na semana anterior. Ela estava à
espera de sua psicóloga. Tom e ela conversaram, quase competindo por minha atenção, sobre
o álbum de figurinhas da Copa do Mundo. Ele decidiu, então, armar uma de suas pegadinhas
para cima desse menino. A lógica da brincadeira foi a mesma citada. Tom se armou com um
longo bastão colorido, usado na musicoterapia, e bateu levemente no colega, o que irritou este
profundamente, levando a uma intervenção de minha parte para separá-los.
Após o ocorrido, Tom sugeriu brincar de pique-esconde, mas a outra criança ainda
estava abalada por ser alvo das brincadeiras zombeteiras. É importante mencionar que, perante
a Tom, a postura da outra criança parece assumir tons competitivos, agressivos e aviltantes, de
forma a firmar seu espaço de dominação na relação. Em consequência, essas interações
consistem nessa competição, que são respondidas com escárnio, frequentemente ocasionando
desentendimentos e frustrações para ambos, ativando ciclos de agressividade em Tom.
200

A criança se escondeu, e Tom e eu nos ocupamos de procurá-lo na brincadeira. Passados


alguns minutos, o menino mais novo armou uma surpresa para Tom, revelando-se com um
grito. Isso o assustou e o enfureceu. Procurando maneiras de tratar esse afeto que o invadiu,
Tom propôs brincadeiras de ataque e guerra, que envolviam um certo nível de agressividade
velada contra a outra criança. A outra criança prontamente se recusou, com certo medo. A raiva
de Tom, por não conseguir sua revanche em nenhum plano e por não encontrar formas de lidar
com a agressividade, fez com que ele começasse a gritar e grunhir. As crianças começaram a
desferir insultos uma contra a outra. Notei que a outra criança disse que Tom “nem sabe falar”
— por causa das modulações na voz de Tom, nem todas as palavras que ele usa são entendidas
—, e isso pareceu entristecê-lo.
Para tentar se apaziguar, Tom puxou minha mão e me levou para a cozinha, onde fechou
todas as portas, trancando-nos lá dentro com outra criança, de sua idade, que também estava
em atendimento. Esta desejou, após alguns minutos, deixar o ambiente. Tom mostrou-se
irritado com a necessidade de abrir a porta novamente, gritando que “essa criança me irrita
muito!”.
Essa outra criança, por sua vez, estava na porta, convidando Tom para outra brincadeira
de guerra. Ao se deparar com as duas outras crianças, presentes em sua frente, Tom não
conseguiu identificar qual delas lhe chateou, mostrando a fenda existente em sua relação com
o Outro da linguagem, especialmente no que toca à circunscrição deste em uma função e uma
nomeação, colocando em jogo sua participação nos enredamentos simbólicos atrelados ao trato
do Outro. O afeto, em sua intensidade, escoou em agressividade, que destacava as fragilidades
no trato de Tom.
Nesse momento, as analistas da outra criança, Tom e eu, respectivamente, entramos em
cena e optamos por continuar o atendimento em grupo, pois entendemos que a interação entre
os dois mobilizava questões importantes na construção de ambos os casos. Mesmo que
aparentemente caótica e agressiva, essa interação era guiada pelo desejo das crianças de brincar
juntas. As duas bolaram planos para a próxima brincadeira, optando por continuar uma guerra,
após Tom desenhar na parede, com giz, seu plano para a próxima pegadinha.
Inicialmente, Tom e a outra criança construíram armas, constituídas de espumados, para
se atacarem. Eles tentavam atrapalhar e roubar a construção do outro. Gritavam e desferiam
golpes com espaguetes de piscina. A outra criança afirmou, com voz grossa, ser um “super vilão
do mal”. Essa brincadeira, porém, pareceu acirrar ainda mais as tensões, destinando a
agressividade de Tom diretamente para o corpo de sua contraparte. Diante dos problemas aí
colocados, foi necessário intervir para que pudessem encontrar outra forma, que não
201

ameaçadora, de brincar em conjunto. Dessa vez, contudo, era preciso balizar limites para o
aparecimento dessa agressividade. A estratégia de sustentação da brincadeira foi a delimitação
de territórios, em que cada uma das crianças, em conjunto com suas analistas, poderia construir
uma base de defesa e armazenar suas armas, as quais poderiam variar entre cordas, bolinhas de
plástico colorido, bolas de estofado, espaguetes de piscina e espumados. A função de João era
a de arbitragem, cabendo a ele dar partida e fim à “guerra”. Mesmo assim, os meninos tentavam,
a todo tempo, invadir um o espaço do outro, o que lhes rendia advertências por parte do árbitro
e de suas parceiras analistas.
Iniciada a guerra, brinquedos voaram de um lado para o outro. Gritos, ameaças e risadas
eram ouvidos ao mesmo tempo. As crianças pareciam se divertir, até que não mais: as
frustrações acumuladas na brincadeira resultaram em novos episódios de braveza por parte de
Tom, que precisou ser impedido de usar a força física contra o corpo da outra criança. O menino
mais novo se escondeu de medo, acovardado. As intervenções da equipe pareceram apaziguar
a situação. Tom se disse com raiva. Perguntei a ele o que queria fazer, e ele respondeu, chateado:
“ninguém”. Tom disse que estava apenas fazendo suas “pegadinhas”, jogando um saco de
bolinhas de plástico na analista da outra criança, enquanto a assustava com sons altos. Disse
que não estávamos entendendo suas pegadinhas, o que ele rebate com a fala de que vai ter “mil
inscritos no YouTube”. Afirmei que, para as pessoas do vídeo entenderem a pegadinha que ele
bolou, ele precisava se explicar e contextualizá-la à platéia. Passado um tempo dessa
interrupção forçada na brincadeira, os meninos se separaram. A outra criança e sua analista
apareceram, minutos depois, propondo outro jogo, no qual a criança que deu a ideia esconderia
uma bolinha verde, e nós teríamos que procurá-la. Tom pareceu topar e pediu, fechando os
olhos, para que o fizéssemos também. Depois de alguns minutos, fomos autorizados a começar
a busca pela bolinha escondida.
Por algum tempo, encarregamo-nos dessa missão, recebendo dicas do esconderijo da
bola. Todavia, a não-resolução dessa tarefa em tempo hábil começou a envenenar a brincadeira
para Tom, que se mostrou com raiva diante da dificuldade de encontrar a bolinha. Pediu para
que eu e ele não brincássemos mais com aquela criança, pois ela escondeu “muito difícil”, e
resolveu parar para lanchar. Enquanto comia, pregou mais “pegadinhas”, dizendo para mim que
foi a um hotel no final de semana. Diante de meu interesse pelo assunto, ele cochichou para
João que não foi a lugar nenhum, rindo-se. Percebemos que estava tentando criar operações de
humor que simulassem os vídeos que assistia regularmente na plataforma YouTube, o que
indicava um trabalho para aprimorar o trabalho da língua e do laço social que seu componente
da borda autística, o interesse específico, possibilitava.
202

3.17 A Neoborda de Tom

O nascimento de uma borda em um sujeito para o qual ela não foi dada implica um
trabalho de produção de uma cadeia singular que agrega componentes iniciais de objetos
autísticos, duplos e interesses específicos, “de modo a constituir um circuito que faça a função
de borda e de circuito pulsional” (Laurent, 2012/2014, p. 83). O tratamento psicanalítico, nesse
circuito, objetiva auxiliar o sujeito a ceder um pouco do gozo que excede em seu corpo,
levando-o a se servir da borda como uma espécie de anteparo. É pela direção do tratamento
analítico que a borda inicial pode assumir o estatuto de neoborda, à medida que o sujeito em
trabalho passa a complexificar seus componentes, fazendo com que a “neoborda se relaxe, se
desloque, constituindo um espaço — que não é nem do sujeito e nem do Outro — onde possa
haver trocas de um tipo novo, articuladas com um Outro menos ameaçador” (Laurent,
2012/2014, p. 82). O analista se insere justamente nessas trocas, a partir do consentimento do
sujeito, assumindo ou não, mediante o manejo da transferência, a mesma função de um duplo
que possibilita ao autista lidar com seu gozo excessivo.
A neoborda pressupõe a delimitação de uma borda simbólica compensatória ao furo
não-todo posto no autismo, borda esta que possibilita o retorno do gozo excessivo do corpo
para si mesma, enquanto zona fronteiriça, isolando o quadro autístico da paranoia e da
esquizofrenia, em que o gozo se aloja no Outro. É nessa zona fronteiriça que as trocas com a
realidade podem ocorrer, sendo relativamente comum ao autista ceder à interação com o Outro
por meio de seus interesses próprios, mantendo-se expressiva, no entanto, a não-resposta à
demanda do outro. A neoborda possibilita ao sujeito a compensação de algumas operações
constitutivas, como a construção de uma imagem que contorne seu corpo, fortemente
desenlaçado entre o real e o imaginário. Ela opera como uma cápsula protetora que,
concomitantemente, permite o aparelhamento de uma imagem, na medida em que um corpo
pode ser construído. Essa cápsula protetiva assume uma posição dinâmica em relação ao Outro
devido a seus componentes principais — o objeto autístico, o duplo e os interesses específicos
—, estes capazes de complexificá-la para uma condição de conexão e laço.
A foraclusão do furo impossibilita o enodamento entre corpo e linguagem. Nesse
seguimento, a neoborda funciona como suplência a esses campos distintos. Na medida em que
seus componentes são complexificados, mediante o desejo do autista, este se vê em uma
“escolha forçada” de servir-se do Outro, buscando atender seus interesses.
Considerando que no autismo os trajetos pulsionais parecem estar ausentes devido à
forclusão do furo, Laurent (2012/2014) supõe que, no lugar deles, aparecem circuitos do objeto
203

articulados ao corpo por bordas de gozo, o que implica uma topologia particular do espaço
próprio do sujeito autista. Como afirma, os objetos autísticos têm como característica uma
cadeia heterogênea feita de coisas descontínuas (letras, pedaços de corpo, objeto tirados do
mundo etc.), organizada como um circuito, munida de uma topologia de borda e articulada ao
corpo. Esse circuito possibilita o surgimento de duplos e interesses específicos, promovendo a
autodefesa e a autoconstrução do sujeito autista. Tomar a neoborda como direção do tratamento
do autismo consiste em acolher esse trabalho psíquico e inserir-se nele, na medida em que o
sujeito consente com isso, secretariando-o em suas invenções.

Acolher esse trabalho, esforçar-se para entrar no mundo do autista a partir de uma posição ética
psicanalítica, supõe um consentimento às invenções sob medida para cada um. “A invenção é o
único 'remédio' do sujeito autista e deve incluir, a cada vez, o resto, ou seja, o que permanece
no limite de sua relação como o Outro: seus objetos autistas, suas estereotipias, seus duplos”.
(Laurent, 2012/2014, p. 78)

Ao longo da apresentação do caso de Tom, foi de fundamental importância a tentativa


de localizar alguns percursos lógicos necessários para que ele pudesse complexificar sua borda
autística simples. Cabe pontuar que não consideramos esses tempos lógicos como etapas
completadas, pelo contrário: o surgimento dos restos denuncia que há inúmeras exigências de
trabalho psíquico em construção. O enodamento entre corpo e linguagem nunca é totalmente
encerrado para um parlêtre, e, especialmente nas crianças, detritos de lalíngua estão aí para
seus tropeços e brincadeiras.
Consideramos que Tom ainda não tem uma neoborda construída, mas que esta está em
pleno processo de produção. Para ilustrar esse precioso momento do caso clínico, servir-nos-
emos dos últimos fragmentos que garimpamos ao longo desses anos, principalmente no último
ano e no ano presente. Tom realiza inúmeras tentativas de um brincar coletivo, composto por
João, as crianças com as quais ele cruza pela clínica e eu. Entendemos a importância desse
circuito, tendo em vista as dificuldades enfrentadas por ele no laço social escolar. No espaço,
ele tem uma mediação garantida, protegendo-o e modulando os entraves do laço social.
Os vídeos caseiros demonstram sintonia com o enriquecimento do brincar estruturado
na clínica.

Em um vídeo em que faz de conta que é um youtuber, Tom estrutura um brincar de


guerreiro versus zumbis.
— Oi — Tom cumprimenta a câmera que filma tanto ele quanto o pai.
O menino continua:
— Desse canal! Nós somos dessas crianças e o... zumbi.
204

Tom se levanta e mostra o boneco do Sully.


— E depois... e matá esse zumbi!
Tom segura um machado de plástico de brinquedo e começa a desferir golpes no
boneco.
— E mata voxê, monsto... depois aquele monsto... Eu sou guerreio de
monstos! Depois, a gente... derroto muitos zumbis! Depois... nossas pessoas,
todas as pessoas vilalam zumbis.
Ele imita o andar de um morto-vivo, com a língua para fora da boca.
— E machado... eu joguei esse machado, olha — diz ele, arremessando o
brinquedo, fazendo um estrondo. — Depois, eu conxigui! Pera aí, eu vou pegar
machado, me xigam!
Tom convida a câmera a ir atrás dele. No entanto, pega o instrumento com as mãos e o
posiciona, parado em algum apoio.
— E fica aqui, licença, B.
Ele sai de cena para buscar suas armas de brinquedo. Na volta, entrega uma espada de
bambu para o pai e pede para que a use.
— Nós somos guerreiros e vamo matá todos zumbis! Nossas pessoas
transfoaram zumbis e depois... e eu matei os zumbis e matei esse monsto, o
Sonic. Esse é jogo. Aqui vai chamar jogo. O zumbi! Me carrega, B.!
A brincadeira continua. Tom fica no colo do pai por um tempo e arruma um boneco,
colocando-o em cima de um móvel. Ele fala, imitando um zumbi:
— Célebo... célebo...
— Usa seu bambu pala derrotar! — instrui o pai, aqui assumindo a voz de Tom.
O pai não faz como Tom quer, derrubando a cadeira que apoiava o boneco. Tom tenta
lhe mostrar, mas ele o impede, por medo de quebrar a cadeira.
— Sai aqui, cê tá atrapalhando — pede o menino, empurrando o pai para fora da
cena capturada.
Tom diz que vai acertar e empurra a cadeira, que cai no chão, fazendo barulho. Ele tapa
o rosto com as mãos, antecipando o estrondo.
— Funcionou! Eu sou bem guerreiro — comemora.
Tom logo monta outra cena no “planeta Terra mortal”, anunciando quais armas vai usar.
— E depois... são nós dois — diz ao pai. — Essa é minha casa de ávile —
apresenta o cenário. — E depois... vou pular, e acho eu queblei a cadeira.
205

— Você quebrou a cadeira?


— É, olha...
— Ixi...
— E depois... eu matei esse zumbi... eu matei esse monsto... e depois, esse
é meu chapéu.
Tom pega um chapéu de praia e o coloca na cabeça, imitando um caubói. Ele levanta a
cadeira, dizendo:
— Ufa... eu rumei a cadeila... E depois, eu uso meu... essa é minha epada...
B.
Ele puxa o pai para a cena, que mostra os dedos em V para a câmera.
— E depois, vamo matá esses zumbis, tá B.?
Pai e filho começam a desferir golpes contra a cadeira. O menino volta a narrar:
— Os guerreilam... os guerreilam... lutaram! Os guerreilos lutaram muitas
vez e... missão cumprida! Eu sou caubói, irra! E depois, eu uso a minha espada!
E depois, me sigam, eu vou segulá...
Após essas contações, Tom se aproxima e pega a câmera, passando o chapéu para o pai,
dizendo:
— Voxê é caubói.
O homem aceita.
— Você... eu sou humano, tá?
Tom define os papéis a serem cumpridos na brincadeira.
— Tenção, xelife Woody, eu sou o seu mestle — diz o menino, que pega o chapéu
de volta e o veste. — Eu sou seu mestle, tá B.? E voxê é minha quiança...
Tom dá umas leves cotoveladas na barriga do pai, que estava em pé, ao seu lado. Apesar
de B. responder que “tá bom”, o menino volta atrás, tira o chapéu e o entrega a ele.
— Tá bom... voxê é o xelife Woody agola.
— Então agora eu sou o Woody?
— É.
— Então tá bom. E você é quem? Você é minha criança?
— É — responde o menino. — E depois, são dois guerreilos! E depois... segula,
B.
Tom entrega o bambu ao pai e pega um machado.
— E depois, eu vou mostlá meu machado. Nós vamos matá os zumbis, me
sigam!
206

Tom pega a câmera de novo, e B. diz:


— Tá bom, eu te sigo.
No entanto, não é isso que o menino tem em mente.
— Não! Essa missão é sélia, pega seu telefone.

É em uma trama simbólica mais complexa que as personagens se inserem agora no


brincar não só narrado pelos pais, mas também pela própria criança, que também assume a
autoria das filmagens de si, preocupando-se em delimitar os enquadres da gravação.

Em outro vídeo, Tom posiciona a câmera que o filma na horizontal, afastando-se dela,
ficando de pé e aparecendo apenas da cintura para cima. Seu primo está sentado no sofá, logo
atrás. Tom canta e dança, fazendo alguns movimentos.
— Tlês poquinhos... poquinhos na fáfi... poquinhos na cidade... tlês
poquinhos.
Ele repete esses versos algumas vezes. Seu primo anda de um lado para o outro,
alternando entre permanecer dentro ou ficar fora da cena. A música se repete, até que Tom solta
um urro e mostra sua camisa com uma personagem de Minecraft, rodando os dedos indicadores
no mesmo eixo da estampa. Ele fala:
— Olha... eu sou...
Seu primo interrompe a filmagem, colocando a mão suja de chocolate na frente. Tom o
repreende:
— Ei!
Tom continua:
— Eu visto... Olha a roupa de Maicreft.
O rosto de Tom não está sendo gravado, mas ele continua mostrando a estampa de sua
camisa.
— Sou eu, olha — diz, apontando para a camisa. — Olha... minha blusa de
Maicreft... ilado, meu...
Tom aparece com metade de seu rosto próximo da câmera.
— Fidioqueime iladoooo — fala para a gravação, estendendo o som da última vogal
e mexendo a mandíbula, enquanto o faz.
Tom pega a câmera que o filma e sai andando pela casa:
— Vou conseguí... vê... aí... ué, me dá o microfone?
O vídeo é cortado.
207

Nesse momento, pode-se perceber que Tom preocupa-se em mostrar que agora é
possível vestir-se com roupas que representam seus videogames favoritos, mostrando a seu
primo que essa é sua identidade, o que difere da colagem às personagens observada no início
do tratamento, em que essas figuras pareciam dar um suporte adesivo, que ainda não lhe
autorizava a anunciar seu eu.
A neoborda potencializa a capacidade de anunciação de si para o outro, em uma
modalidade identitária singular. Nesse momento do caso, ela parece permitir a Tom pôr sua
agressividade, simbolicamente delimitada, nos enquadres dos vídeos que ele deseja que sejam
assistidos pelos membros de seu canal.

Em outra filmagem, Tom segura uma arma de brinquedo apontada contra seu primo,
enquanto usa uma máscara que cobre a totalidade de seu rosto.
— Mãos ao céu — diz o primo, simulando um assalto.
— Aí, tá bom! — responde Tom, colocando suas duas mãos para o alto, exasperado,
andando pela casa. Ele chama o assaltante para segui-lo. — Anda!
Os dois saem passeando pelo corredor.
— Marcha! — ordena o primo.
Os meninos entram em um cômodo cheio de brinquedos, no qual duas cadeiras foram
colocadas, uma de costas para a outra, com um pedaço de pano estampado de folhas verdes
juntando os dois móveis.
— Volta aí... pra dentro da cela — pede Augusto, primo de Tom, apontando para o
espaço sob os assentos.
Tom entra em sua prisão e pergunta:
— Onde fui, primo Augusto?
O primo identifica o lugar:
— Aí é sua cela. Você cometeu crimes...
Tom suspira, com raiva, e comenta:
— Irado.
Ele abana as mãos e complementa:
— Anda, anda! Foge!
O primo sai andando.
— Pronto, ele está preso, agora ele não vai fugir — narra o pai de Tom, que filma o
brincar dos dois primos.
208

O filho interrompe:
— Filma eu! — diz ele duas vezes.
Tom começa a se explicar para a câmera:
— Eu fui pleso, dento da plisão. Ei, vou ma... eu vou pegá a áma dele, eu
vou vi... abli a casa dele e fazê picadele... eu vou matá ele.
O menino sai da cela agachado e narra:
— Consegui fugi.
Ele começa a dar passos curtos e lentos. Suas mãos estão próximas ao peito. Ele sussurra
para a câmera, escondendo-se atrás dos móveis.
Durante sua fuga, Tom é encontrado por Augusto atrás de uma poltrona. Ele percebe
sua falha e levanta um boneco de ação em sua frente:
— O Venom!
Tom apresenta sua defesa perante o primo e começa a simular os ataques da personagem
com o som, afugentando Augusto, que atira com a arma de brinquedo.
— Eu vou matá você! — Tom fala, modulando sua voz para um tom mais
monstruoso.
Depois da intensa batalha, Augusto vai ao chão, derrotado.
— Minha jêgada foi conculida!
Tom se dirige à câmera, deixando o boneco do Venom de lado. Ele finaliza o vídeo,
fazendo um sinal de “joia” com a mão.
— Nesse vídeo, quem ganhou não foi o plimo Augusto, foi eu!

O brincar de Tom amalgama uma criação espontânea, a qual toma elementos dos jogos
que ele joga. Essa criação é projetada no enquadre do objeto câmera-celular para seu canal no
YouTube.
É nesse período que os interesses por jogos, desafios e pegadinhas se intensificam,
sendo estes comumente exibidos em canais de streamers no YouTube. Referenciado por eles,
Tom estrutura com mais complexidade seu brincar.

Em outro vídeo, em uma cama, em meio a vários cobertores, travesseiros e almofadas,


sentam-se Tom e sua mãe, ambos virados para uma câmera que os filma de longe. Uma TV está
ligada ao fundo, e a voz da jornalista é audível. O pai do menino ajeita a câmera em uma posição
fixa e se dirige para entrar no frame da gravação. Tom se levanta, animado, pulando na cama,
e diz:
209

— Atenção! Um xogo chamado desafios!


Ele entrega um boneco para cada um de seus genitores, os quais estão deitados na cama.
O menino continua:
— Beêza, pessoal, vocês têm dois desafios... Passa pontes, quem cair,
morra.
— Uaau! O Sully começa, que eu tô doido pra começar — replica a mãe.
— E... minha vez de escolher, um duni tê, escolho você... O Sully vai
rapidinho... um duni tê, eu vô escolhê o B.!
Tom passa o boneco de seu pai na frente. É importante ressaltar que não é uma figura
de nenhuma personagem, mas apenas um boneco.
— Ah, valeu! Eu vou pular lá no banquinho, é isso? — interroga o pai, mexendo o
boneco.
— Não! Voxê vai! — corrige o filho, tomando o boneco na mão.
— Ah, eu, pessoa? — o pai tenta entender.
— É — informa Tom, tomando o boneco de sua mãe
— E você...
Tom entrega o boneco de Sully na mão de seu pai, mas se distrai com a televisão.
— Ou vai ser o Sully? — pergunta B.
O menino se explica novamente:
— Joga fez e cói, e você vai jogá!
Pai e filho parecem se entender e começam uma contagem até três. No “já”, o homem
joga o boneco.
— O Sully... foi fola! — Tom confirma o erro.
— O Sully perdeu — assegura a mãe.
— Agola, sua fêz — diz o menino, apontando para seu pai de novo, que protesta, junto
da mãe.
— Agora é a vez do macaco — dizem os adultos.
Tom se senta na cama, apoiando suas mãos sobre o peito de seu pai. A mãe começa a
brincar com o boneco do macaco.
— Abaixe a ponte — pede Tom, levantando-se. — Tuto tá errado.
— Tudo tá errado? — pergunta o pai, traduzindo-o.
— Plecisa regas.
O menino sai de cena e começa a alterar o circuito de brinquedos que havia construído,
o que não é mostrado à câmera.
210

— Tem luta xunto e passá ponte, mas como? Tive uma ideia... Fazê ponte
aqui e a ponte aqui. Pontinho, a ponte ta ponta.
Após esse monólogo, Tom volta a ser capturado pela câmera. Sua mãe sugere deixar
uma caixa de papelão para que os bonecos caiam dentro dela, mas ele recusa a sugestão e
continua a arrumar sua pista de desafios. Depois de alguns segundos da reconstrução, ele volta
e diz:
— Plontinha a ponte. Tá legal, passa essa ponte, senão... um pôtei, tá?
Agola... vô escolê... O xili!
Tom aponta para a enorme girafa de pelúcia que sua mãe segura. Ele tira o Sully da mão
de seu pai novamente, retornando:
— E vou escolê o Sully, e vou escolê o B.
Tom elenca o pai novamente.
— Então ponto, vocês tão plonto? Coguem as mãos aqui, juntas — diz ele,
juntando as mãos de seus pais com as dele. — O cavalo equipe — continua, parecendo
nomear.
Tom faz outra contagem regressiva, do três ao um. Sua mãe joga o Sully, dizendo que
ele vai primeiro. Tom grita:
— Não! Vocês são muitos errados! Tila suas rôpas, vão virar cobêtoles.
A mãe, percebendo que não se encaixava na proposta do filho, deita na cama e diz que
já está “boa de competição”. O pai se levanta, perguntando:
— Tem que ser assim?
Tom coloca o Sully em uma posição específica, não capturada pela câmera.
— Assim? — pergunta o pai.
Tom bate palmas com as mãos e diz:
— Tá bem melhor.
Sua mãe comemora.
A brincadeira continua. Tom anuncia a vez do macaco, mas, no meio da jogada,
interrompe, berrando:
— Sully, preciso a sua axuda!
Ele repete o pedido. O pai entende sua entrada e conserta.
— Não! Quando eu quecê, eu vô passá eu mesmo, Tom, eu tenho passá esse
coisa — diz o menino, colocando-se a postos.
Sua mãe deixa a brincadeira para ir dormir. Tom puxa o pai pela a mão e o coloca ao
seu lado, no começo do circuito.
211

— E... ô mãe — chama o menino.


Ela explica que está em pausa “pros remédios”. Ele aceita a pausa de sua mãe.
— Tá!
Tom continua os desafios com o pai, puxando-o pelos braços e instruindo:
— E voxê vai caí.
— Vou cair aonde? — certifica-se o pai.
O adulto parece errar da primeira vez, pois Tom diz:
— Não!
Porém, logo depois, Tom muda o cenário e ri:
— Há, ha! Voxê pêdeu! Voxê picisa axuda?
— Preciso — responde o pai.
— Voxê tus ligado olhá... ô mãe, olha!
Tom convida a mãe novamente, apontando para B.
— Eu salvei o B.! — explica.
— Isso! — ela comemora.
— Mandei bem! — ele fala e o pai repete. — Foi cabalho... tlabalho equipe!
— Trabalho em equipe, nós dois juntos — afirma o pai.
Alguns segundos se passam. Não se vê nem Tom nem B. na cena, até que o menino
solta:
— Ué, voxê qué pulá, também?
— Vai, que eu te ajudo — promete o pai. — Primeiro você, depois eu.
— Rápido, B., senão... vai morrê! — Tom apressa o pai. — E o vencedor é o B.,
e o vencedor é eu! — anuncia. — Desafio foi feito — continua Tom, entrando novamente
na cena —, agola é o desafio chamado... eu vô plesentá... tilá roupas...
Ele parece se distrair e para de falar abruptamente.
— Agora eu vou deitar pra descansar — encerra B., dando tchau para a câmera.
A mãe o segue. Tom, pulando na cama e fazendo sinais de “joia” com as mãos, diz:
— Táuu! Voma mil likes de voxês... Dá like nosso vídeo... Vem mãe, famo
dá o seu like, tá?
Ele dá um beijo na bochecha dela.

As demarcações de início e fim das filmagens dadas por Tom têm o caráter de apresentar
ao espectador do YouTube suas engenhocas desafiantes. Em sua jornada lúdica, ele precisa
212

derrotar o oponente, sendo o grande vencedor da trama. É bonito como seus pais se inserem na
cena. Mesmo com os momentos de descontinuidade da criança, eles buscam recuperar a linha
condutora do brincar.

No vídeo caseiro a seguir, Tom afirma que ficou preso dentro da Netflix ao tentar
resgatar seu cachorro, que ficou preso em um dos filmes da plataforma. No quintal de sua casa,
Tom apresenta:
— Oi, pessoal, fiquei pleso dentlo da Netflix... Vou passá todos filmes, salvá
meu amigo Migo tá pleso no filme chamado Inleiguiman.
Tom levanta os braços, fingindo ser o Slenderman. Ele anda um pouco, e o cachorro
Migo entra em cena.
— Onde estamos? Eu estou pleso no filme chamado batatinha flita um,
dois, tlês — diz ele, modulando sua voz para produzir um som mais grosso. — Voxê plecisa
xogá batatinha flita um, dois, tlês.
O menino sai andando para frente. Ele começa a jogar. Sua referência é a série sul-
coreana Round 6. O jogo consiste em poder se movimentar apenas enquanto um narrador entoa
as palavras “batatinha frita, um, dois, três”; é eliminado quem der um passo em falso. Alguns
turnos ocorrem com Tom sendo o próprio narrador, modulando sua voz. Ele indica que, ao final
de cada turno, alguém ao seu lado vai ser eliminado, até que comemora:
— Ganheeei! Onde estamos? Onde estou?
Modulando sua voz novamente para que esta fique mais grossa, responde:
— Voxê está no jogo... no jogo... xogo pega-pega.
Tom anda em círculos no espaço, alterando a voz entre a sua própria e a da personagem
que indica “onde ele está”, mais grossa. No entanto, suas palavras são ininteligíveis e baixas,
até que ele se volta para a câmera e pede:
— Faz um cículo!
Ele repete, correndo em círculos junto ao cachorro Migo. Ele volta com a voz grossa e
pouco inteligível, até que o pai o interrompe:
— Tom, e a experiência aqui? Vamo aproveitar o sol? Vem cá.
Usando da mesma voz grossa, ele se dá o desafio:
— E hoxe, voxê pecisa queimar essa folha, pra sair esse filme.
Na mesa, estão uma lupa e um pedaço de folha de papel branco. O pai pega a lupa e
diz:
— Dá aqui, ó. Vamos ver se com sol vai dar.
213

— Não, elaxe — fala o menino, pegando o instrumento para si.


Eles estão tentando arrumar um jeito de queimar o papel usando os feixes de luz solar
direcionados pela lupa. Com alguns ajustes, acham a posição correta para produzir um feixe
concentrado.
— Ih, eu acho que o sol tá fraco — diagnostica B. — Deixa eu tentar, então. Filma
você, e eu tento.
Tom recusa a proposta.
— Vô embora, beijo — complementa o menino, levantando-se da mesa e do assento
de pedra no quintal. — Não pode, eu vô fazê isso... derrubar dez folhas — anuncia o
novo desafio, segurando os galhos de uma árvore ao seu lado. — Derruba tlês folhas —
repete duas vezes e, na última, faz questão de entonar de maneira grave.
Ele mesmo responde:
— Tá bom.
Começa a balançar a planta. Ele se parabeniza com a voz grossa da outra personagem
com quem está contracenando.

Na medida em que o brincar de Tom vai se fechando em uma voz inteligível, o pai o
interrompe e o convoca para uma experiência em que ambos poderiam observar a força que a
luz do sol exerce em uma folha com o auxílio de uma lupa, resgatando o filho de seu próprio
isolamento. As camadas simbólicas de estar preso em uma plataforma de streaming,
especificamente dentro de um filme, fazem com que ele se perca nessas dimensões. O outro em
cena agencia seu retorno para o laço.

Em dezembro de 2022, Tom chega à clínica e, juntamente com outra criança, encontra
uma pedra grande, lançando a hipótese de tratar-se de um meteoro que caiu durante a noite.
Começam os dois a buscar pistas do ocorrido misterioso pelo espaço. No meio dessa busca,
Tom encontra um papel com recados escritos, pedindo para que tudo que fosse usado, fosse
guardado. Nesse momento, não saber ler surge como um entrave para o menino. Ao ser
interrogado se sabe ler as letras que estão no papel, Tom encontra uma saída, começando a ler
as estrelas desenhadas no papel, que enfeitam os cantos:
— Uma estrela amarela, uma estrela azul, uma estrela rosa e uma estrela
branca!
Tom e seu colega vão assistir a um vídeo que fala sobre chuvas de meteoro e o sistema
solar. Na sessão de psicopedagogia de Tom, realizada em seguida, ele organiza uma brincadeira
214

de sala de aula, em que ele é o professor malvado. Se seus alunos errassem a lição sobre
meteoros, ele os mandaria para o orfanato, onde teriam que “limpar o chão com pano”.
Copiamos o que estava sendo desenhado pelo menino no quadro negro. Depois, ele
assume o papel de aluno, meu colega, e a psicopedagoga, o de uma professora boazinha, apesar
dos protestos de Tom, que demanda “uma professora malvada”.
Fazemos as lições que a nova professora pede. Tom pede por um “dever de palavras”.
Copiamos as palavras escritas no quadro. Peço a Tom ajuda, para que ele dite as letras que está
vendo. Ele o faz, com alguns erros que ele mesmo percebe e corrige.

O brincar de Tom, cada vez mais simbólico, na medida em que se torna mais complexo,
apresenta novas exigências, conforme observamos. A exigência da leitura é um meteoro de
demanda, pelo qual ainda se vê ameaçado. Ele demonstra interesse em ler, até para acompanhar
com mais refinamento os canais no YouTube que consome, assim como os jogos “menos
bobinhos” que despertam seu interesse. Ele já domina algumas letras e palavrinhas, mas se vê
novamente dividido entre ignorar esse desafio e ultrapassar mais uma barreira da língua.

Em 22 de dezembro de 2022, comemorou-se o aniversário de Tom no Espaço Nardin


— alguns dias antes de seu aniversário de fato e no último dia antes das atividades serem
interrompidas devido às festas de fim de ano. Tom já havia comemorado seu aniversário na
escola, e isso havia marcado sua experiência. Ele queria reproduzir algumas brincadeiras. Seus
pais, no entanto, não trouxeram as sacolinhas de lembrancinhas que fizeram tanto sucesso entre
as crianças da escola. Tom precisou criar convites para sua festa e convidar cada pessoa que
estava na clínica, implicitamente sendo dada importância à escrita no laço social. A falta das
sacolas de lembrancinhas frustrou profundamente Tom, que ficou pedindo para que seu pai as
buscasse em casa. Foi preciso muito manejo para que ele pudesse consentir com a falta desses
itens, pois ele dizia:
— Crianças querem brinquedos.
Ele tinha trazido “brinquedos irados” para elas.
Em sua festa, Tom se pôs a trabalho. Decidiu brincadeiras, convidou jogadores, partiu
o bolo e alimentou os convidados no estilo “aviãozinho”.

Ainda sob a temática de aniversários, em outro dia, outra criança acompanhada na


instituição estava comemorando seu aniversário de dois anos, e, como já era de costume, a mãe
de um dos pacientes da clínica, que era confeiteira, fez o bolo para o aniversário. Tom chega ao
215

espaço quando estamos mobilizados para a organização dessa comemoração. Ao perceber a


situação, ele fica animado com a perspectiva de uma festa de aniversário e começa a participar
da organização das decorações, movendo a mesa de um lado para o outro, levando pratos e
talheres de plástico, convidando adultos e crianças presentes na instituição para participar
também.
Os “parabéns” se iniciam, e Tom canta com animação ímpar, mostrando-se muito feliz.
Ajuda a distribuir os pratos de bolo para os convidados, mas não quer comer o bolo, pois a pasta
americana, artificialmente tingida de azul, parece não lhe apetecer. Chegando ao fim das
comemorações, o menino tenta impedir os convidados de irem embora, argumentando que não
queria que a festa acabasse, mas esse movimento, composto por gritos, barras corporais e
agitação psicomotora, é cessado quando explico para ele, em palavras, que a festa está
acabando. Durante a comemoração, no entanto, outra criança de sua idade inicia um choro
muito violento por motivos que não cabem ser citados. Observando essa cena, Tom me
pergunta:
— Por que ele não gosta de festas?
Sua sessão continua e, nesse dia, ele busca brincadeiras de caráter mais sensorial,
experimentando se sujar de areia, se molhar e misturar areia com água e espalhar por seu corpo.
Ao final, vamos deixá-lo no portão, entregando-o para o cuidado de seu pai. Tom narra para
este a ocorrência da festa de aniversário, ressaltando que ajudou a entregar os pedaços de bolo
para os convidados. Seu pai responde, transparecendo surpresa no tom de sua voz:
— Uai, mas você não tinha dito que não gostava de festas?

Esse encontro parece apontar para a transferência de Tom com o espaço, uma vez que,
nesse lugar, os adultos que toma como referenciais ocupam o lugar de “tradutores” de sua fala,
facilitando o brincar e o laço social.

Tom passa a criar com mais frequência hipóteses sobre os afetos de outras crianças,
conforme vimos no aniversário, e, na semana seguinte, ele encontra uma criança de nove anos,
com a qual já havia compartilhado espaços de brincar muitas vezes nos últimos meses. Essa
criança estava esperando a chegada de seu pai, para poder deixar o espaço. Tom tenta convidá-
la para alguma brincadeira, acompanhando-a em suas andanças e perguntando com que ela
gosta de brincar. A resposta é “nada”. Tom começa a hipotetizar possíveis respostas para sua
pergunta, não admitindo o que o outro havia colocado. A criança questionada não se implica
no diálogo, apenas nega e diz que não gosta de fazer nada. Esgotadas as tentativas, Tom se
216

frustra com o inesperado, mas ainda tenta sustentar as interações com sua contraparte, que, no
momento, não estava confortável com a voz dele.

Ler a intenção do outro e ler um texto escrito parecem ocupar os novos interesses de
Tom. Porém, ele experimenta as barreiras simbólicas que se impõe. Certo dia, ele chega ao
espaço em um ritmo acelerado, cantando músicas de natal. Pede para compartilhar o espaço que
outra criança usava no momento e fica brincando com os recursos de terapia ocupacional. Cria
uma cena em que João, ele e eu estamos sentados ao redor de uma mesa, e ele é o chefe (uma
referência ao filme O poderoso chefinho). Pede para que a gente escreva e resolva contas
matemáticas, enquanto dita o que devemos escrever. Diz que é um trabalho muito importante.
Na passagem para sua sessão de psicopedagogia, Tom se frustra, dizendo para a
terapeuta que consegue ler outra coisa diferente do que havíamos escrito. Percebo que, no dia,
sua dicção está mais confusa, soando mais como sua língua privada. Porém, ele encontra formas
de contornar o não entendimento do outro. Por exemplo: não sabia se ele estava dizendo “gata”
ou “carta”, e, após várias tentativas, ele imita um gato para confirmar sobre o que estava
falando. Ele copia palavras escritas e as reproduz num emaranhado sem sentido, mas as letras
que emprega já são diversificadas. Na psicopedagogia, trabalha a questão da leitura e da escrita.
Depois, diz querer cavar um túnel na areia para que pudéssemos escapar do Espaço Nardin e ir
para a liberdade. Brincamos primeiro dizendo que a escrita oferece liberdade, depois dissemos
que é para a Praça da Liberdade, e ele responde:
— Depois vamos para a Pampulha.

Na volta das férias, em janeiro de 2023, quando chega ao Espaço, Tom se depara com
uma brincadeira de construção de casas, com panos e cadeiras, que estava sendo feita por outras
duas crianças. Ele entra com o objetivo de construir sua própria casa, mas uma dessas crianças
começa a invadir sua construção. Foi preciso barrar Tom diversas vezes para que ele não se
valesse do corpo e da força física. Entretanto, isso não significa que ele esteja lançado em uma
crise ou em uma agressividade descomedida. Quando avisado sobre seu comportamento, ele
pede para que não liguem para seu pai e decide tirar um intervalo da atividade para fazer seu
“lanchinho”. Reconta um pouco de sua viagem para a praia, apenas qualificando como legal e
dizendo que foi em Cabo Frio.
Percebemos que, em seu retorno, apresentou intensamente uma agitação corporal,
parecendo necessário estabelecermos o ritmo apaziguante que ele havia conquistado. Em um
dia incomum para sua rotina de terapias, Tom faz uma reposição de atendimentos. Quando
217

chega, ele encontra sua psicomotricista finalizando o atendimento com outra criança, não-
verbal e alguns anos mais nova, e entra na brincadeira (o outro menino estava com uma cabeça
de dinossauro de borracha calçada na mão, correndo atrás dos outros, fingindo morder e
simulando o barulho do animal), invertendo os papéis: toma o brinquedo em suas mãos e sai
correndo. A brincadeira é atentamente vigiada, porque Tom comete excessos quando
convocado ao uso de seu corpo. Começamos com a brincadeira que captura crianças, que deixa
Tom agitado precisando acalmar o corpo. Após isso, fazemos um “julgamento” do monstro, em
que ele precisa argumentar e mostrar provas da acusação em favor da prisão daquele. Ele
consegue fazê-lo e prende-o em uma prisão de segurança máxima, que constrói, mas digo que
precisamos dar uma chance de o monstro se arrepender, e ele aceita a condição (nessa
brincadeira, ele aceitava e respeitava integralmente intervenções dos outros que iam contra a
vontade dele, se estas fossem explicadas a ele). Depois, fazemos brincadeiras de jogar bolas e
espumados nos outros. Em uma dessas, a terapeuta começa a imitar um bebê, e Tom fica
pedindo para que ela “voltasse”. Pergunto o que aconteceu, e ele me explica sua hipótese sobre
o ocorrido: havia jogado uma bola na cabeça da mulher com força e, por isso, ela se tornou um
bebê. Tenta bolar, em seguida, estratégias para fazer com que Aline “voltasse”, abandonando a
persona de bebê: grita alto, a assusta, a acorda enquanto ainda é noite na brincadeira. Entretanto,
o bebê chora, e Tom leva as mãos nas orelhas, mostrando sensibilidade auditiva. Para apaziguar,
precisa “dar mamadeira” para esse bebê. Ele sai do espaço e vai buscar biscoitos “do amor”,
para tentar fazer com que sua amiga “volte”. Antes, tentamos fazer com que ele formule seu
pedido na fala, mas essa não parece ser uma estratégia viável. Posteriormente, ele reverte a
situação e se encontra na posição de quem precisa da ajuda. No entanto, ele não é um bebê que
chora, mas reverte sua fala para a lalação — é sua forma de retorno.
Esse atendimento possibilita um esvaziamento de sua agitação e a introdução
progressiva do simbólico como mediador do imaginário. Restos de agitação corporal e de
lalíngua ressurgem de forma ocasional, mostrando que a neoborda, embora esteja se
complexificando, ainda não possibilita um total apagamento.

Em fevereiro de 2023, Tom chega ao espaço e corre para dar um abraço em João. Com
ele, busca estabelecer na sala de reunião uma brincadeira de procurar pistas (objetos que
estavam fora do lugar). Uma criança chega procurando alguma forma de entrar nessa
brincadeira, e Tom repete diversas vezes:
— Agora sai, por favor.
218

Depois, na garagem, fizemos uma brincadeira de construção de casas. A outra criança


deseja entrar na casa de Tom, e o segundo menino presente na cena do brincar decide construir
uma mansão para o outro garoto, a fim de proteger sua própria construção. Ao fim, a mansão
da outra criança vira um “Hotel 5 Estrelas”, e Tom se aproveita do SPA, da piscina e do
restaurante do lugar. No entanto, Heitor ficava o tempo todo invadindo, como forma de brincar,
os espaços e atividades de Tom. Em determinado momento, ele se retira, e o encontro comendo
seu lanche. Ele diz que ficou “meio nervoso” com “a brincadeira, sabe?”.
Pergunto o que, na brincadeira, o havia deixado nervoso e ele diz que “outras
crianças são diferentes” porque elas têm “outras famílias”.
Depois de um tempo, Tom lança desafios para essa outra criança quebrar os “recordes”
do Espaço Nardin, enquanto a filma para o “canal do YouTube”. A brincadeira se encerra após
muito tempo, quando a outra criança parece não querer mais brincar junto, mesmo que tentemos
fazer aparecer uma brincadeira de pique-esconde. Depois, ele assume o papel de “professor
ninja” e continua na mesma tarefa de lançar desafios e congratular a pessoa por cumpri-los.

É nesse vai e vem de encontros e desencontros com o outro que Tom encontra uma
estratégia de se regular: pausa o brincar conflitivo para fazer seu lanche, que lhe possibilita
esvaziar, pela linguagem, seu incômodo e retornar ao encontro do outro.

Em março de 2023, Tom chega ao espaço e encontra duas crianças, João e eu fazendo
uma brincadeira de construção de casa com panos, bancos, vassouras, entre outros. Ele fica
incomodado com as provocações zombeteiras de uma das crianças que tentava o instigar,
porque Tom havia reclamado de sua casa construída:
— A mais feia que já vi.
Nessas provocações, ele se incomoda com as nomeações “neném” e “cocô”. Os dois
começam uma brincadeira tensionada, o que me convoca a esvaziar um pouco a agressividade;
tento encaixar enquanto um pega-pega, mas nem sempre com sucesso. Opero uma separação
de espaço, para Tom poder se acalmar, e ele facilmente engata, contando-me a história de um
“filme animado”, que percebo logo ser uma invenção fantasística dele. Rio e digo que caí na
piada dele. Ele ri. Depois, voltamos a construir casas somente com a outra criança que não
realizou as provocações. Decidimos fazer uma festa de “rock’n’roll muito barulhento”, e ele
convida a mãe para participar. Dançamos e destruímos as construções, fazendo bagunça junto
da música. Quando pauso a música, ele se deita, cansado, dizendo que a festa foi “irada”, “a
mais divertida da vida”.
219

Começamos, depois, a construir esculturas com peças soltas, tecidos e bancos. Tom as
nomeia como “artes-prima”. Fazemos uma competição de arte-primas entre as crianças. Tom
quer sugerir sua mãe como juíza, mas aceita que seja Marlene, funcionária da limpeza da
clínica. Sua escultura acaba ganhando.
Passa a chamar a outra criança de “noob36”, e no início, o menino não aguentava ser
zombado, mas com a intervenção de sua psicóloga, ele consegue dar ares de piada para a
situação, optando pelo humor que suplanta a frustração e a agressividade que antes o invadiam.

É comum observar que, após esses episódios, recorre ao brincar relacionado a seus
interesses específicos ou a conversas esvaziantes com seus duplos, João e eu, atestando haver
aí uma neoborda em construção, da qual ele pôde se servir para conseguir controlar a própria
força e agressividade, dando enquadres simbólicos. É pela natureza de nosso encontro que Tom
estende, amplia e transforma sua borda defensiva e dinâmica em direção ao aprimoramento do
laço social e contra o excesso que o invade. É pelo ato analítico que me deixo incluir no modo
singular de Tom operar no mundo, modulando seu objeto voz, mediante sua neoborda protetora.

36Noob é uma gíria que faz homofonia a palavra inglesa Newbie que significa “novato” muito utilizada nos
jogos de internet e vídeos correlacionados.
220

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos, nesta tese, fazer jus à singularidade dos sujeitos autistas, objetando as
tendências mercadológicas que dominam a política e a clínica do autismo hoje. O caso clínico
apresentado vai de encontro aos protocolos de tratamento padronizados, que operam segundo a
lógica de checklists, aferindo a frequência de apresentação comportamental da criança sob
distintas demandas de aprendizagem voltadas à eficiência. A posição ética adotada aqui foi
pautada em outro regime discursivo, devido ao qual dispensamos o uso genérico do termo
autismo, vigente na lógica capitalista atual, que define como autistas todas as crianças que
tropeçam no exercício da função da fala e que se defendem do laço social.
Para tanto, partimos de pressupostos epistemológicos que direcionaram não só a escrita
deste trabalho, como também o tratamento clínico de uma criança. As teses sobre a foraclusão
do furo (Laurent, 2012), a neoborda autística (Laurent, 2012) e a alienação retida (Maleval,
2021) orientaram a condução do caso em inúmeras supervisões, resultando em um projeto
terapêutico cujo encadeamento lógico vetoriza a intervenção clínica.
O caso relatado teve seu tratamento iniciado em 2019, sendo conduzido a princípio por
Ângela Vorcaro. Na época, a criança tinha apenas dois anos e oito meses. De seus três anos até
o momento de escrita desta tese, em que tem sete anos, ela vem sendo analisada por mim em
uma instituição em Belo Horizonte. O relato permite acompanhar a temporalidade da
construção da linguagem, do corpo e do Outro e observar como esta possibilita ao sujeito tratar
de sua alienação retida, bem como da não-toda foraclusão de seu furo, e, consequentemente,
construir uma neoborda.
As teses de Laurent e Maleval demonstram que o ensino de Lacan oferece subsídios
para nortear o que podemos chamar de uma clínica de lalíngua, isto é, uma clínica voltada a
privilegiar o que comparece na criança como detritos da linguagem, os quais fundamentam a
junção de seu organismo à linguagem na tentativa de fazer corpo, mesmo que este persevere
incipiente para o laço social. A despeito de lalíngua subsistir em todos, é especialmente a clínica
dos sujeitos ditos autistas que demonstra que ela não é extirpável, podendo ser tratada pelos
próprios sujeitos rumo ao encontro de um modo de dizer-se, desde que ela ressoe no outro.
Consideramos que essa clínica é uma grande escola sobre a práxis psicanalítica. Ao interrogar
como os sujeitos imersos no real freiam seu gozo e enunciam sua voz, extraímos um modo de
formalizar uma prática clínica que inclui o real na construção do simbólico, distinguindo uma
neoborda entre gozo e saber em crianças que não falam.
221

O método de construção de um caso clínico viabilizou considerar o caráter verboso do


sujeito e sua posição em relação ao discurso do mestre na complexa construção de sua borda
autística promotora de interação social. Como percebemos na escrita inicial do caso, a criança
condizia com a afirmação lacanianana de que “algo na linguagem é interrompido, ao nível da
palavra” (Lacan, [1953–1954]/1986, p. 102), o que resultava em um sujeito que, até certo nível,
era mestre da linguagem, embora não falasse. É nos comentários sobre o caso Robert que Lacan
demarca que crianças como essa só vivem no real e que a repetição iterativa de palavras ou
expressões denuncia a “palavra reduzida ao seu caroço” (p. 125), alertando que “o estado nodal
da palavra” (p. 125) é a via através da qual o sujeito pode encontrar uma saída para se constituir,
descongelando a passagem de S1 (caroço) para S2 (saber).
As modalizações de resíduos da estrutura da linguagem produzem uma dimensão da voz
monocórdica e ecolálica em caráter iterativo, por vezes observada como prazerosa. É na
Conferência em Genebra sobre o sintoma ([1975]/1998) que Lacan afirma que existe na criança
“uma peneira que se atravessa, através da qual a água da linguagem chega a deixar algo para
trás, alguns detritos com os quais brincará, com os quais necessariamente ela terá que
desembaraçar-se” (p. 11). A criança do caso clínico apresentado, como afirmamos, está desde
o início inserida na linguagem, embora se protegesse do verbo, situando-se, por isso, fora do
discurso. É na década de 1970 que Lacan supõe que todo ser falante filtra da estrutura da
linguagem algo sem fins interativos e que isso se distingue da língua partilhada, como lalíngua.
Portanto, Lacan acredita que o autista está submetido à linguagem, embora se sirva dela de um
modo singular, não facilmente audível e que, por vezes, não serve como endereçamento, ou
seja, para se comunicar. A criança de nosso caso se servia de lalíngua para se comunicar, o que
muitas vezes era inócuo para o laço social. O tratamento clínico viabilizou a estruturação de
uma língua verbosa, abastecida pelo enxame de lalíngua.
Diante da posição subjetiva da criança, exigiu-se uma posição analítica específica,
considerando que a presença de S1 (caroço da palavra) ocorria desencadeada de S2 (saber),
situando o sujeito fora do discurso. Para tanto, o caso foi subdividido em percursos lógicos da
constituição psíquica, separados por uma questão didática, não correspondendo a etapas ou
sequências desenvolvimentistas. Esse percurso orientou especificamente a direção do
tratamento da criança, que tinha como demandas clínicas o estabelecimento da linguagem
diante do tratamento do objeto voz e, consequentemente, uma montagem de corpo e imagem
por meio da neoborda autística. É no início do tratamento que a linguagem em repouso
(Maleval, 2021), isto é, o mutismo intercalado de lalações, demonstra que ligar as palavras à
voz requer do sujeito dissolver-se, entregando para o Outro o mais íntimo de seu ser.
222

Sentindo-se intimada a falar, a criança sussurrava nos ouvidos dos pais, ou mesmo nos
meus, pequenas palavras emaranhadas em suas lalações, demonstrando o encontro de um
mediador exterior para se fazer ouvir, ainda que de modo protegido. Ouvir-se, além da entrega
de seu objeto voz ao Outro, retornava como insuportável para si mesma. O uso da palavra não,
relativamente frequente nesse caso, não franquia outras palavras, que só surgem como última
alternativa: a criança privilegiava gestos corporais para balizar as demandas que a afetavam. É
nesse tempo da linguagem, obedecendo ao binarismo do silêncio e dos pequenos sons, que se
inicia o tratamento psicanalítico.
Tanto a primeira analista quanto eu consideramos, na época, que Tom, a criança do caso
em questão, estava na linguagem, embora se recusasse a assumir uma posição subjetiva de
enunciação discursiva. Apesar de nossa consideração, o início do tratamento teve como objetivo
mapear seus circuitos do brincar e conquistar um lugar na transferência, sem realizar demandas
que envolvessem ceder de seu objeto voz. Em Qual o tratamento para o sujeito autista?,
Maleval (2009a) adverte que “dar vida à linguagem é, para o autista, pôr-se a escutar o objeto
angustiante do gozo vocal” (p. 2). Para ele, nada poderia ser mais angustiante para o autista do
que a ameaça de ser mortificado pelo significante. É necessário situar que, nesse tempo de
mutismo e de lalíngua a céu aberto, o sujeito ainda não se serve de um aparelho psíquico capaz
de mortificar o significante, o que exige que o analista não demande insistentemente que ele
assuma uma posição de enunciação.
Ao filmar a criança, os pais tornaram as demandas de linguagem acrescidas de um
anteparo: o objeto câmera-celular, que capturava os interesses expressos no brincar e adicionava
ao que ela produzia uma narrativa testemunhal. Foi minha decisão deixar a descrição desses
vídeos caseiros para que o leitor assumisse uma posição de telespectador estrangeiro dessas
cenas em que todo e qualquer outro era desautorizado a penetrar. No decorrer das descrições
das filmagens, observa-se que Tom passa a atender a poucas demandas diante da narrativa de
suas ações, com pequenas lalações e pedaços de palavras, na maioria das vezes inteligíveis.
Quando, ocasionalmente, seu pai realizava uma demanda verbal mais direta, como no vídeo de
março de 2020, Tom suportava atendê-la, mesmo mostrando disparidade sonora entre o pedido
de “batata” para “aham”.
O enquadre do objeto câmera-celular conseguiu entreter Tom, que olhava para a câmera
e se divertia observando sua boca em movimento, diluindo a demanda de colocar seu objeto
voz em cena, em um brincar com os detritos de sua lalíngua. É nesse ponto que se constata que
ele pôde suportar ceder às demandas, atendendo a cenas lúdicas do brincar narrado junto aos
pais, onde havia respeito e lugar para responder com sua lalíngua. Os pais de Tom nos ensinam
223

que é necessário colocar o desejo de que a criança fale em cena, mas sem que isso seja
incessante, sendo necessário respeitar os anteparos e o uso feito pela criança de sua lalíngua
como uma modalidade parcial de responder à demanda.
Entre tantas passagens do caso, destacamos um vídeo de 19 de maio de 2020. Neste, o
pai pergunta: “Você foi dar um alô pro au-au?”. Tom se distancia junto a Migo, o “au-au”
mencionado pelo pai, pronuncia “Uuuu, mão, mão, mão, mão”, sem olhar para o adulto que
grava o vídeo, e começa a fazer carinho no cachorro. Nesse mesmo dia, durante o que parece
uma cena de brincadeira de médico já estabelecida, a mãe simula uma dor, e Tom, aos poucos,
vai incorporando a personagem, ajudando-a, com uma fita, a tratar do machucado. Percebemos
que os pais de Tom não poupam palavras para narrar a cena do brincar de faz-de-conta, e Tom
não parece se incomodar com o excesso de presença da voz do outro, apresentada como
narração do roteiro. Isso sutilmente nos ensina que há uma distinção entre a presença da voz
enquanto demanda e enquanto narrativa do brincar.
Vale dizer que nesse período, marcado pelo angustiante início da pandemia de COVID-
19, Tom teve seu lazer, seu convívio com a escola e os atendimentos presenciais interrompidos,
restando-lhe a família como anteparo para criar saídas para suportar a angústia.
Progressivamente, ele teve avanços em sua modalidade do brincar, o que, obedecendo à
formulação de anteparos do objeto-câmera somada à presença do objeto voz do outro na
modalidade narrativa, possibilitou-lhe um jogo com características mais simbólicas. Na medida
em que essa dinâmica permitia ir consentindo com o Outro, formulamos:

Anteparo do objeto autístico (câmera-celular)


+
Consentimento do duplo cinegrafista (voz e olhar)
=
Nascimento da borda autística

Diante dessa borda autística inicial, Tom conseguiu operar mais trocas com o Outro e
abandonar o mutismo e os sussurros: ele ampliou sua lalíngua em uma língua verbosa, ao passo
que ensaiava uma língua privada. Com sua entrada na instituição, essa língua pôde ter mais
espaço para seu exercício, sendo o único lugar em que ele pôde, diante da situação da pandemia
de COVID-19, experimentar trocas mais amplas com outras crianças e adultos. Sua língua
verbosa tentava pôr ordem em seu mundo interior, solitário, mesmo sendo uma língua só falada
por ele. Essa língua sem outro tinha a função de estabelecer uma borda transitória entre ele e o
224

Outro, caracterizando uma invenção singular. É pela borda autística que se torna possível o
início do trabalho de tratamento do Outro, representante dos elementos da língua que não foram
mortificados como significantes pelo aparelho psíquico do sujeito.
No ano de 2021, percebemos a consolidação dessa borda transitória, com a língua
verbosa de Tom passando a adotar algumas sonoridades fixas para nomear a si mesmo ou
algumas pequenas demandas ao Outro. Vale frisar que essa borda transitória que sua língua
verbosa promoveu não foi sem o corpo. Foi nesse momento que Tom passou a se interessar
pelos túneis de espumado, pelo macacão sensorial e pela malha suspensa sensorial como
recursos periféricos de envelopamento corporal, nos quais ele adentrava com seu corpo
buscando assegurar uma borda sustentadora para as perdas sutis do objeto voz cedido.

Figura 11. Túnel de espumado.

A clínica e a casa de Tom garantiram a ele o asseguramento de suas bordas corporais,


seja pelos recursos da terapia ocupacional e da psicomotricidade, seja pelos cobertores e redes
que envolviam seu corpo. Tais espaços diferem do espaço escolar, onde nada parece operar
como borda, fazendo explodir a sensação de insuportabilidade do sujeito, lida como
“agressividade impulsiva” pela escola.
Embora tenhamos considerado sua tentativa de invenção de uma língua privada, Tom
pareceu optar por traduzi-la, submetendo-se à língua falada por todos. No ano de 2021, ele
passou, efetivamente, a utilizar algumas palavras de uso comum, enquanto, no ano de 2022, ele
progressivamente abandonou o artifício de legendar sua língua privada, passando a estruturar
mais frases na língua convencional. Pelas dificuldades que surgiram nesse processo, os duplos
225

tiveram um papel fundamental: todos que exerciam, em certa medida, a função de tradutor de
sua língua operavam para ele como um duplo. A dinâmica dessa linguagem não pode ser
esquecida: os pais iniciaram essa jornada como narradores cinegrafistas que traduziam o
brincar, estendendo e desdobrando a função de tradutores da língua.
Diante da exigência de um trabalho mais profundo com o objeto voz em cena, a criança
passou a estruturar o brincar do “ladrão de voz”, protegendo-se das angústias sonoras que
surgiram na clínica diante do choro de outras crianças. Ao mesmo tempo, esse brincar pareceu
operar um tratamento para si mesmo. Os destinos que o ladrão de voz dava às vozes roubadas
mostravam a utilidade da voz, sendo necessária alguma articulação, alguma direção. Tom
passou a constatar que a voz pertence a um corpo vivo, precisando fazer cadeia. Dentre os
destinos, a banda de rock foi eleita como o mais privilegiado. A voz podia ter função social
desde que, ao mesmo tempo, preservasse os gritos e barulhos incompreensíveis, característicos
do som dessa natureza musical. Foi nessa época que o pai de Tom me deu um retorno no portão
da clínica: “Ele descongelou a linguagem”. Embora isso tenha sido motivo de comemoração
por um lado, por outro, considerando o cenário escolar, sem bordas, tivemos que nos valer da
borda química medicamentosa, com vistas a mantê-lo nesse espaço sem tanto sofrimento.
O relaxamento da retenção da linguagem iniciou um novo tempo para o caso, em que a
direção clínica passou a ser tratar da alienação retida de Tom, por consequência de sua
linguagem em repouso. O objeto voz e o enodamento com o corpo foram os caminhos
escolhidos para trabalhar os entraves de sua alienação retida, o que, progressivamente,
possibilitou um reposicionamento do Outro (A). Embora Tom resista à escolha forçada da
alienação, o que se torna evidente em sua sintomatologia autística, seu retraimento defensivo
demonstra que, em algum tempo, esse processo ficou retido, mas não inexistente. Para tanto,
esquematizamos:

Mutismo → Lalíngua a céu aberto → Língua verbosa → Borda autística → Objeto voz→
Descongelamento da linguagem → Processo de desretenção da alienação

Conforme foi relatado, esses processos não assumiram uma sequência, como etapas
estanques, mas, a posteriori, pudemos constatar que seu encadeamento lógico foi fundamental
para que Tom tratasse seu esforço de produzir um saber (S1–S2) que delimitasse e enodasse em
seu corpo as dimensões do eu e do Outro.
Tom passou a se inscrever no mundo dos falantes, e recuar não parecia mais uma opção.
Ele iniciou um intenso trabalho elucubrativo de sua língua, que se estende, podemos dizer, até
226

os dias atuais. Hoje ele percebe que não basta falar a língua de todos; é necessário modular sua
voz, falar mais pausadamente para que o Outro o entenda, refinando a sinergia de seu corpo
com a voz e o saber. A unidade corporal depende da construção do furo, que requer uma
identificação especular seguida de uma transmutação do furo como falta, isto é, um processo
de castração que possibilita uma unidade corporal.
Uma das teses discutidas neste trabalho foi a proposição de Laurent (2012) de que no
autismo ocorre a foraclusão do furo. Propomos, entretanto, que no caso de Tom não houve uma
total foraclusão, e sim uma foraclusão não-toda. Para esse sujeito, consideramos ter havido um
furo mínimo, que, mesmo de forma não toda-operante, lhe deu a possibilidade de reavê-lo e
dinamizá-lo por meio da construção de um neofuro e de uma neoborda. Os caráteres de
superfície de inscrição e de construção imagética do corpo são fatores lógicos necessários para
o aperfeiçoamento desse neofuro. É o que possibilita dinamizá-lo no circuito da pulsão e do
retorno do gozo. Com sua borda, Tom pôde tangenciar com os significantes os processos
sensoriais que lhe surgiram, na medida em que se apresentavam sinais de angústia em seu
corpo-superfície. Estereotipias motoras, mesmo que superficiais, e descontroles esfincterianos
pontuais sinalizaram que as novas demandas psíquicas requeriam um corpo mais estruturado.
Ceder do objeto voz não franquearia cessão de todos os objetos pulsionais atrelados a seu corpo,
sendo necessário garantir sua sustentação através de uma neoborda imagética unificante.
As primeiras imagens do corpo de Tom tiveram como sustentação o uso intenso de
artifícios das personagens, incluindo a eleição de Piu-Piu, que atribuo à franquia Looney Tunes,
para representar a si mesmo, assim como a intensa predileção pelos super-heróis, em especial
o Homem Aranha. A substituição progressiva das personagens pelo uso do pronome eu
aconteceu na medida em que sua alienação foi se derretendo. Todavia, nesse movimento, ele
passou a atribuir a si mesmo autoafirmações pejorativas. Somente com o surgimento e a
fortificação de seus duplos que Tom pôde pensar sobre si mesmo por outras modalidades
perceptivas e aderir a características positivas das personagens e do Outro como partes
integradoras de si mesmo.
O percurso de Tom demonstra a possibilidade de compensar parcialmente, no campo
imaginário, as consequências da alienação retida ao significante primordial. O estofo
imaginário promovido pelos duplos de sua borda autística deu a ele a possibilidade de construir
um eu, ao mesmo tempo que se apropriava do corpo próprio, e, consequentemente, de uma
imagem de si mesmo mais condizente com a realidade, para, por fim, habitar o laço com o outro
com mais liberdade e espontaneidade.
227

As bordas autísticas iniciais de sua rede de brinquedos em casa (Figura 9) foram


progressivamente diminuindo o grau de dureza e aumentando a adesão à maior maleabilidade.
O número de brinquedos dentro de seus envelopes corporais passou a diminuir (Figura 8), até
o momento em que ele só precisava da malha, sem a dureza desses objetos ali inseridos. É nesse
circuito que observamos a queda da carapaça para a borda autística simples (Figura 7), a borda
autística complexa (Figuras 8, 9 e 10) e a neoborda (a palavra faz borda simbólica). Essa
neoborda, firmada em componentes dinâmicos, opera com os objetos autísticos, os duplos e os
interesses específicos, estes encarnados no objeto câmera-celular, nos duplos familiares, em
mim, em João, o estagiário, e no YouTube, respectivamente.
Na introdução desta tese, objetivamos colocar em questão teses atuais que têm orientado
o tratamento de crianças que chegam à clínica excluídas da função da fala, mesmo que estas
não tenham sido circunscritas pelo diagnóstico de autismo infantil. Para além da apresentação
teórica, esta tese girou em torno de um caso clínico, que gentilmente foi liberado pela família
para escrita e publicação. No atendimento em que os pais deram o consentimento, o pai de Tom
disse: “Só falta o Tom autorizar”. Deixo para o momento de concluir o percurso sobre a
autorização da criança. Não se tratou de uma entrevista formal; seu consentimento foi, como
dizem Chico Buarque e Cristóvão Bastos (1987) em sua canção Todo o sentimento, “talvez num
tempo da delicadeza”. Em um primeiro momento, ele topou que escrevêssemos um livro sobre
nossas aventuras, fazendo-me um desenho de um mapa do tesouro.

Figura 12. Mapa do tesouro.

Sutilmente, ao longo das sessões, Tom fez referência a certas produções que deveriam
ser colocadas em nosso livro. Ele, no entanto, tributava essa responsabilidade a mim: “Coloca
no arquivo”, dizia ele. Foi na sessão do dia 10 de outubro de 2022 que Tom elegeu um nome
228

para o livro. Terminado seu lanchinho, ele se vestiu com as roupas que trouxe, de maneira a
caracterizar uma personagem: um “explorador de aventuras”, em suas definições. Ele tirou a
camisa e vestiu o casaco, colocando um chapéu colorido com as cores da bandeira do Brasil,
usando suas meias como luvas e pendurando sua camisa na cintura. Tendo feito as devidas
caracterizações, ele quis iniciar as aventuras. Perguntei se ele queria escrever sobre elas em
nosso livro, dizendo ainda que este precisaria de um título. Tom o intitulou como A aventura
está lá fora, apregoando ainda, para mim e para João, o seguinte: “Chega de deveres! A
liberdade começou”. Ao fim do dia na instituição, começamos a arrumar o espaço e juntar seus
pertences, esperando a chegada de seus pais. Nesse meio tempo, Tom falou sobre ter que
trabalhar para poder ir a um hotel no fim de semana. Quando seus pais chegaram de carro, ele
os reconheceu na hora e soltou: “Táxi! Tenho que ir para o meu trabalho”.
Por essa sessão, concluo que sua autorização para a escrita foi dada em sua completude:
A aventura está lá fora pode sucumbir a inúmeras interpretações, mas me restringirei a apenas
dizer que Tom agora está se aventurando lá fora, no mundo dos falantes. Conforme explanado,
o corpo no autismo, topologicamente, põe em xeque as dimensões de “dentro” e “fora”, devido
à precariedade de uma borda delimitadora. Tom já opera com sua neoborda, já permite que o
Outro escreva sobre ela, conjugando a nomeação de aventura. Tom demanda aventuras em seu
tratamento. Para ele, não há distinção na borda divisória entre tratamento e aventura. A
delimitação do imaginário e do simbólico circunda a invasão do real, que insiste agitando o
corpo e causando sofrimento. Foi pensando nisso que a instituição, os demais terapeutas que o
acompanham e eu, enquanto analista, “pausamos” seu brincar para balizar seu sofrimento
iminente, lembrando que a “aventura lá fora” tem seus riscos e momentos de tensão.
Na esteira do pensamento lacaniano, e a partir de um caso clínico, propusemos, nesta
tese, investigar a neoborda como uma possível direção do tratamento dos autismos e de crianças
que não falam. Ainda que artificial, superficial e frágil, uma borda autística pode tomar uma
dimensão de neoborda, na medida em que o analista advertido alimenta seus componentes
iniciais em cada sujeito de sua clínica, possibilitando que ela seja concomitantemente um lugar
de proteção e de gozo. A combinatória de fenômenos do duplo, dos interesses específicos e dos
objetos possibilita uma conexão com o Outro, franqueando a dura inserção no laço social.
O caso de Tom nos ensina sobre as engenhosidades de uma criança que faz muitas
passagens por outras coisas e, também, que a experiência e a repetição podem modular
progressões contínuas. De maneira inventiva, a criança desenvolve continuamente seus
interesses ancorados nos objetos e duplos, mesmo que estes ainda estejam em formação. Por se
tratar de um caso em tratamento, e não de um caso concluído, consideramos que foi possível
229

uma evolução clínica dentro de sua estrutura específica. A sintomatologia autística dos anos
iniciais da vida de Tom foram cedendo, mas, quando se depara com novas demandas
complexas, ele expõe alguns atropelos do enodamento entre língua e corpo. Para todo ser
falante, corpo e língua não se caracterizam por um processo estático; inclusive, é nesse ponto
que gira todos os percursos de análise. O final de uma análise se caracteriza, de modo geral, por
dar um tratamento inventivo à própria lalíngua. O autista nos ensina que esse tratamento se
inclui desde o início, e não no fim, e que, embora perdure por toda a vida, é possível encontrar
em seu decorrer “aventuras lá fora”.
230

PÓS-ESCRITO

Após a leitura do caso pelos pais, condicionada a autorização destes para a publicação
nesta tese, convidei-os a dar seu testemunho sobre o que leram. Este pós-escrito não tem como
objetivo um caráter de análise, mas de registrar os efeitos de leitura de uma família sobre sua
história parental. Se um dia Tom tiver o interesse de ler esta tese, fica para ele, o testemunho
de seus pais.

Entrevista em 05/06/2023.

[Julianne]: Então, gente, queria ouvir um pouquinho de vocês sobre o que vocês leram. A mãe
já me deu uma devolutiva que me deixou muito feliz pelo retorno, mas foram páginas e páginas,
intercalando a discussão do material que vocês me forneceram com a escrita que comentava,
mas era uma escrita que ia direto em alguns termos teóricos. Esses termos foram antecipados
em capítulos anteriores, então não sei em que medida eles ficaram muito apressados. Então,
tem essa amarração temporal da lógica do caso e tem esses pontos teóricos que fazem parte do
percurso da tese. Assim, tem esses aspectos que eu queria ouvir de vocês, e também o fator de
ter alguém escrevendo sobre o Tom, que são processos que vocês devem ter sentido ao mesmo
tempo, mas queria que vocês pudessem me falar um pouquinho desse efeito. Tanto dessa
tentativa teórica de dar corpo a um caso que é um trabalho muito arriscado, mas é isso que a
gente passa ao tentar trazer algo pra academia, a gente precisa sistematizar isso de alguma
forma, que na clínica não funciona tão amarrado. Na clínica, a gente funciona em outro sentido:
de supervisão, de direção, de apostas… A gente recolhe amarrações teóricas só no depois. A
direção tem umas hipóteses. Ângela não atende mais o Tom, mas ela que me supervisionou esse
tempo inteiro. Ela tava ali sempre junta nesse processo. Querendo ou não, nós estávamos ali
conduzindo. Têm muitas questões em aberto, o tratamento não acabou, mas a tese, sim. É isso,
esse preâmbulo todo para dizer que são de registros diferentes, essa escrita. A transmutação
para a academia necessita de um corpo teórico, de uma tentativa de localizar o desenvolvimento
psíquico de uma criança com conceitos, então às vezes isso tira um pouco da fluidez, mas é
necessário. Queria ouvir vocês um pouco desse registro.

[Pai]: Assim, eu não sei… Eu penso muito que, primeiro essa parte teórica, é uma linha
totalmente diferente, eu estudei na faculdade Lacan… e eu não entendi. (risos) Mas, do jeito
que ela foi organizada, eu achei muito legal, dá para perceber a amarração do caso com o
231

conceito. Isso eu consigo perceber e intuir. Não saberia reproduzir e não saberia explicar, mas
do quê eu já estudei, até de orientações, eu acho que ficou muito bem amarrado. Ficou muito
bacana. Tanto é que eu não vejo nada que deveria sair ou tirar. Eu achei muito bacana e muito
respeitoso. Mostrou muito mesmo do que é o Tom, sabe? Mostrou o que é esse menino que até
quatro anos de idade não dizia palavra, mesmo, falava um “papá” e "mamá" e hoje eu consigo
conversar com ele. Ele conversa, ele explica, ele pergunta as coisas. Pra mim, isso é fantástico.
Pensando um pouco na história dele, quando a gente chega para a Ângela, a gente estava em
uma preocupação muito grande, em uma tristeza muito grande, porque tudo aquilo que a gente
tentava fazer não dava certo. Tinham sido recepções, tinham sido tratamentos… parciais,
equivocados, sem lógica, sem estrutura. Uma coisa basicamente horrível, todos os profissionais.
Não fazia sentido. Eu lembro que nos chocou muito, quando a gente levou ele em uma médica
e a médica bateu o olho nele e disse “ele é autista”. Ela disse que ia dar uma vitamina para ele,
quando a gente voltou para casa e foi conferir, ela tinha dado um remédio tarja-preta para ele,
dizendo para a gente que era vitamina.

[Mãe]: Na farmácia eles pediram para gente a receita, aí a gente se tocou e ficou “pera, quê
que tem aí?”. Essa mesma profissional, nós fomos a três neuropediatras, ela nos disse que a
situação era urgente, pois a janela da fala se fechava aos quatro anos. E um dia eu comentei isso
com você Julianne, e nunca me esqueci, você ficou espantada, indignada e muito séria me disse:
– As janelas da linguagem estão abertas! As janelas da linguagem estão es-can-ca-ra-das! É só
olhar para o Tom e ver. Então essa aposta nessa abertura dessa janela escancarada pelo Tom,
esse olhar dirigido para as possibilidades de desenvolvimento, fez toda a diferença.

[Pai]: Então, a gente nota que o calvário, que a gente escuta falando dos pais de autistas, é
verdadeiro. É uma falta de compromisso de alguns profissionais que é impressionante. Quando
a gente chega na Ângela, porque a mãe leu muito sobre a situação e lembrou “nossa, tem a
Ângela, ela é ótima”. A gente chegou e ela disse “sim, vamos marcar tal hora” e ela foi
extremamente acessível e recebeu a gente com carinho e abertura, que a gente não tinha
recebido antes. Foi emocionante, assim. A partir daí, a gente conseguiu perceber como a forma
que o tratamento mudou, a forma de enxergar o Tom mudou, isso foi muito importante. Depois,
você veio, veio o Nardin… o que eu particularmente tenho a dizer é só: obrigado. Eu acho que,
aonde o Tom chega hoje, sabe, ele não teria chegado sem vocês.
232

[Julianne]: Sem vocês, né. Vocês sabem disso? O fio condutor foi vocês, a gente teve
sensibilidade de ouvir esse fio e continuá-lo, fortificá-lo. Eu entendo essa gratidão, mas eu
queria recolocar que esse fio foi de vocês. Eu acho que isso tá bem escrito.

[Pai]: Isso tá o tempo inteiro, inclusive a gente ficou muito feliz. A gente se sentiu abraçado
com a tese. É diferente, a gente já escreveu, nesse mesmo percurso, sobre outras pessoas. E hoje
a gente tá em outro lugar e a forma como a gente se sentiu respeitado é muito legal. Não tem
nada para modificar. Ficou bem claro mesmo a nossa participação. Eu acho que no final das
contas é um conjunto, e o próprio Tom, né. Ele sempre tentou, ele sempre buscou, ele tinha
momentos em que a gente andando no carro e ele ficava em silêncio o tempo inteiro, mas a
gente percebia que ele estava atento, que ele via as coisas, que ele entendia. Ele sempre foi
muito ligado ao desenho [desenho animado], ao visual. É engraçado, quando tocava uma música
no rádio, ele associava diretamente ao filme. “Ah, esse tocou não-sei-aonde”, essa capacidade
de inteligência e de memória dele sempre foi muito fascinante. A gente sempre apostou e
sempre soube que ele vai conseguir. Esse menino vai conseguir. A gente sempre estava ali,
“olha, Tom, vamos. Tom, e aquilo? Olha aquilo outro”, a gente sempre conversando com ele.
Eu acho que isso também ajudou muito, mas enfim, eu acho que o quê está na tese é bem o
retrato dele, o retrato de como foi o processo. É bem da forma como a gente vê como foi esse
processo. Foi até legal para a gente rememorar. “Ah, é foi esse período que ele desenvolveu, o
período que ele começou a falar”, para a gente, ter esse registro é muito importante. A gente
quer guardar isso para a vida. Para um dia, caso ele queira ver, para ele ver como a história dele
foi uma história bonita, de muita superação. Nós estávamos ajudando ao máximo, mas ele foi
o agente principal. A abertura que ele deu para acessar o mundo dele foi fundamental. Apesar
de todas as dificuldades que a gente teve com escola, que a gente teve com recusas… Hoje,
também, a gente encontrou uma escola que o acolhe, que ele gosta de ir. Ele reclama dos
deveres, mas ele gosta de ir. Ele quer sossego, né. (risos)

[Julianne]: Quem não, né? (risos)


[Pai]: Mas, eu acho que, hoje, ele se sente bem na escola, de modo geral. A gente teve um
episódio na natação. Era um dia que ia ter medalha… era um eventozinho. Estava extremamente
lotado e era muita gente. Ele sentou, esperou, tranquilo…

[Mãe]: Música alta…


233

[Pai]: Música alta. A gente achou que ele não ia suportar a música alta. Ele suportou a música
alta. Esperou, perguntou que horas seria. Entrou na piscina, fez os exercícios igualzinho a turma
toda, saiu. Quem olhava de fora, não olhava para ele e dizia “esse menino está dentro do
espectro autista”. Foi algo muito fascinante, a forma como ele agiu, como ele fez… Eu acho
que é isso, o que eu queria dizer é obrigado.

[Julianne]: Eu que agradeço. Esse relato, esse percurso… sem obviamente negar esses
desafios. Você falou da escola, dessas recusas, mas também teve a pandemia e era em um
momento muito importante. Vocês conseguiram fazer desse momento insuportável, um
momento crucial para ele. Esse fio condutor começou ali a se fortificar, vamos dizer assim. Isso
que vocês já percebiam sutilmente, dos interesses dele, das associações com desenhos. Mesmo
ele em silêncio, ele estava fazendo essas associações e ele foi podendo compartilhar isso. Não
foram poucos desafios, foram muitos. E você, mãe?

[Mãe]: Eu fico pensando que entre a nossa história, a história do Tom com a gente, a história
do Tom no Nardin e os conceitos… (risos). Não tem como a gente teorizar a própria vida. Eu
acho que isso também dificulta a gente entender do quê os conceitos tratam, mas tem uma coisa
que me chamou muita atenção, que estava no livro do Laurent, que estava no livro da Ângela…
que é a questão da borda. A sua tese discute a neoborda, né, que é um conceito que eu não
entendo. No entanto, o que eu entendo é que isso esteve sempre em questão para o Tom, porque
ele ia para os atendimentos da Unimed, tentava abrir o armário para pegar os brinquedos, ele
aprendeu rápido onde estavam as possibilidades de brincadeira, subia na cadeira, olhava as
cortinas, a janela, para ele tudo era uma possibilidade de brincar, tudo despertava a sua
curiosidade, mas as profissionais não se interessavam por isso, porquê elas tinham um protocolo
pra seguir. E a imposição desse protocolo silenciava o Tom. Então o feed back pra gente era
muito negativo do que ele não conseguia fazer, e o que ele estava apresentando como
possibilidade não era significado por elas. Então em todas as salas tinham aquelas mesas com
um furo para passar cabeamento de computador e eu me lembro que o Tom brincava na sala
inteira, mas mediante a recusa das atendentes, por fim, ele ficava mesmo intrigado era naquele
negócio, era o que sobrava. Ele passava brinquedos ali, e se distraia com aquilo ali. Eu reparava
as profissionais que atendiam ele, às vezes angustiadas com a gente, sabe? Falavam “ele precisa
disso, ele precisa daquilo. Não consegui atender…”. “Ele precisa de remédio”. O movimentar
espontâneo na sala era o que se queria apagar com o remédio. Teve gente que deu o contato
234

para levarmos no consultório particular, mas ele estava ali fazendo uma brincadeira e ela só viu
que tinha pouco de simbólico. Eu ficava intrigada, ficava olhando aquilo e pensava nesses
livros… Pensava que aquilo ali que eu via muito no concreto, um fort-da, poderia ser
complexificado. Isso me encorajou muito para ir até a Ângela, porque eu sabia… eu não sabia
o que era, mas eu sabia que tinha quem olhasse para aquela brincadeira e visse ali um sujeito,
não só por aquilo que ele ainda precisava, pelo negativo do desenvolvimento, mas pelas
potencialidades. Tinha ali potencialidades de significação que não eram enxergadas por aquelas
pessoas. O Tom também nunca se dobrou a nenhuma tentativa da cognitiva-comportamental de
controle, ele resistiu bravamente, ele chorava. Elas queixavam com a gente, também. Então a
mudança, quando começa com a Ângela, quando ela te indica, quando você traz ele ao Espaço
Nardin, foi uma mudança disso, porque aqui ele é uma pessoa florescendo, com um futuro pela
frente, com possibilidades… que tava dizendo coisas. Eu acho que é isso que a gente se
converge, no sentido que o Tom falava do jeito dele, ele estava falando, ele estava dizendo. Eu
acho que nossa aposta sempre foi essa: assegurar para ele que ele estava sendo compreendido,
mesmo quando a gente precisava perguntar de novo ou tentar explicar. Sempre sinalizar para
ele que a gente estava lá, a gente fazia perguntas, né? (risos)

[Pai]: Uhum.

[Mãe]: “Quê que você acha?” e tal (risos). Sempre tentar participar, mas sem forçar, mas eu
acho que sua tese também vai falar um pouco disso. Foram poucas vezes que tentamos soletrar
uma palavra ou algo assim, pois víamos que ele tinha potencial para fazer isso no tempo dele,
mas não é fácil. Igual eu te falei na mensagem. Eu sigo muitas páginas de associação de autistas,
aí tem uma mãe que o filho é autista severo e ela fala “nós, pais de autistas, precisamos de
políticas públicas, porque nós não somos eternos”. Eu acho que esse impasse com essa realidade
não é fácil de lidar. A expectativa de que “e se não falar mesmo?”, a autonomia, né. Embora
seja também igual o que a Ãngela falou na live que fez no Nardin, que a nossa sociedade vive
na ilusão da saúde, porque, ao mesmo tempo, essas coisas podem desmoronar depois de hoje,
a gente não sabe o dia de amanhã. Então é complicado se localizar no meio disso tudo, mas eu
acho que, sobretudo, o Tom queria muito. Ele queria brincar com a gente. Ele queria se colocar.
Ele queria mostrar como era o plano para que a brincadeira fosse feita. Ele queria que a gente
fosse parceiro da brincadeira. Ele queria estar com a gente. Queria brincar com a gente… Esse
querer é sempre muito bonito, né. Foi isso que toda essa conjuntura de coisas permitiu ele vir a
dizer, como ele nomeia o livro da história de vocês, “A Aventura Está Lá Fora”. Eu chorei…
235

(risos) porque é engraçado como é que o Tomzinho conseguiu pegar coisas tão complexas que
você está discutindo.

[Julianne]: Tem aquela palavrinha importante: o inconsciente traduz. Nunca usei esses termos
com ele, mas o inconsciente traduz. Eu acho que isso é um modo de se comunicar… tá no não-
dito.

[Mãe]: É. (risos)

[Julianne]: Aparece de algum jeito.

[Mãe]: Aparece. Muito emocionante, porque é isso: a aventura está lá fora. Como nós queremos
que ele vá, que siga o amor, o trabalho. É isso… não é fácil, eu me lembro muito de quando a
gente recebeu essa palavra “autismo”, quando se colocou para a gente pela primeira vez. Como
o Tom era uma criança que sempre brincou, sempre procurou a gente, sempre deu negativas,
dizia o quê queria e o quê não queria, sorria, pedia colo, brincava… o autismo nunca se colocou
para nós. A gente começou a achar que talvez ele não estivesse ouvindo bem, foi a nossa
hipótese. As palavrinhas não estão vindo, então conversamos na pediatra e fomos a otorrino.
Aí foi ela a primeira pessoa quem falou dessa possibilidade. Na verdade ela já deu esse
diagnóstico na primeira consulta, mesmo, o que eu acho bem difícil. Isso é um pouco da
experiência de todos os pais, que a gente vai passando com profissionais que não são muito
éticos. Ele ainda não tinha completado dois anos e ela disse “pelos traços dele, eu acho que ele
é autista”. Nós saímos dali perguntando como é que ela tinha tanta certeza, com uma vida inteira
por vir. Nesse sentido, eu acho que tem a ver com a pandemia, porque é quando começa a
aparecer umas coisas que nunca tinham aparecido… O andar na ponta dos pés… né, pai? O
flapping…

[Julianne]: Eu só frisei isso, porque era a única coisa que eu me recordava. Eu já não estava
vendo ele.

[Mãe]: Mas junto com isso, também, ele estava construindo um bunker. Teve um dia que ele
entrou no lavabo, pôs todos os brinquedos de pelúcia, levou todas para o lavabo, deixou tudo
direitinho e chamou a gente para se trancar lá. (risos). Para ficarmos protegidos ali, um menino
236

muito criativo, muito inteligente, tipo assim “o mundo vai acabar, vamos ficar protegidos”.
(risos)

[Julianne]: Juntos, né?

[Mãe]: Juntos.

Nesse momento, é possível ouvir a voz da criança no lado de fora da sala onde estava
acontecendo a entrevista. Ele pergunta por seus pais para outros profissionais e é indicado. Tom
decide espionar esse encontro, pedindo para que coloquem uma cadeira na área externa da
instituição, a fim de poder observar pela janela.

[Mãe]: A gente lê o texto, sabe? Foi reviver momentos muito felizes, alegres e engraçados do
Tomzinho… e as partes difíceis também, como foi por exemplo com a escola. Igual o pai falou,
encontramos uma escola incrível que fez a gente ressignificar tudo isso. Faz a gente acreditar
que a inclusão é possível.

Os adultos dentro da sala percebem que o menino está assistindo a entrevista. Ele arfa em
sobressalto, pois percebe que já notaram a sua presença espionando. A entrevistadora comenta
“que gracinha” e os pais sorriem para ele.

[Mãe]: Oi!
Os profissionais que o acompanhavam nomeiam que ele foi “descoberto”, por causa de sua
brincadeira de faz de conta.

[Tom]: Ninguém sabe…

E todos riem da brincadeira do menino.

[Pai]: Foi realmente muito bacana ler isso, foi muito legal.

[Mãe]: Fica um registro para ele e para a gente fica os marcos.


237

[Pai]: Teve uma parte triste mesmo, que foi a questão da escola. Porém a escola de hoje é
diferente, né.

[Julianne]: A escola arco-íris, como ele fala.

[Mãe]: É.

[Julianne]: Acho que isso diz muito.

[Mãe]: Exatamente.

[Pai]: Agora tão arrumando e tiraram o arco-íris. E aí, cara?

O pai volta-se para Tom, que continua na janela, assistindo a conversa.

[Julianne]: No início, eu deixei as transcrições com a fonética, para dar essa sensação para o
leitor…

O ranger da porta denuncia a entrada de Tom na sala.

[Julianne]: Oi! Você quer ficar aqui? Você pode ficar. Estou conversando com seus pais sobre
você, mas tem que fechar a porta. Até porque o João já vai embora, Maria Helena vai almoçar…
Só vai ficar a gente aqui. Que tal?

[Tom]: Boa ideia.

[Mãe]: Senta aí.


[Julianne]: Estamos falando sobre quando você era muito pequenininho.

[Tom]: É?

[Julianne]: Você se lembra de quando era muito pequenininho? Que você construía bunker em
casa?
238

[Tom]: Bunker? Não, eu não fazia isso. (rindo)

[Julianne]: Mas você brincava com isso (rindo), seus pais me disseram.

[Tom]: O que é bunker?

[Julianne]: Sua mãe estava me contando que você fez um bunker.

[Tom]: (vira para sua mãe e pergunta) Por que contou isso?

[Julianne]: Porque é uma coisa muito legal que você fez. Quando estávamos em uma
pandemia, você pegou todas as pelúcias, levou para o lavabo e chamou a gente para ficarmos
protegidos.

[Pai]: Você fez uma sala com as almofadas…

Tom pega uma folha de papel e anuncia

[Tom]: Eu vou escrever o [INAUDÍVEL] do prefeito.

[Julianne]: O quê do prefeito?

[Tom]: Assinado…

[Julianne]: Você quer assinar?

[Tom]: Então, como eu escrevo “o prefeito vai demolir o Espaço Nardin para construir um
parquinho”?
Sua analista está o auxiliando com as palavras enquanto ele fala.

[Julianne]: O que?! O prefeito vai destruir aqui e construir um parquinho?

[Tom]: Sim!
239

[Julianne]: Que tristeza, eu não vou assinar esse documento não.

[Tom]: Como eu escrevo?

[Mãe]: Eu também não vou assinar, porque a gente precisa do Nardin…

[Tom]: Como que eu escrevo?

[Julianne]: A gente pode procurar se tem um terreno baldio nessa rua…

Tom fica intrigado com a proposta.

[Tom]: Hm…

[Julianne]: Que tal? Um parque ao lado do Nardin…

[Tom]: Hm… quantas regras o Espaço Nardin quebrou? Uma. Você lembra? Qual regra que
quebrou no Espaço Nardin do planeta Terra?

[Julianne]: Aqui no Espaço Nardin, a gente só tem três regras. Você sabe. Um, não pode se
machucar…

[Tom]: Não, pare.

[Julianne]: Tá bom.

[Tom]: Ano passado você quebrou uma regra…

[Julianne]: Ano passado… não lembro… Eu acho que quebrei um vidro, um jarro!

[Tom]: Então, ano passado você quebrou dez, trezentos!

[Julianne]: Não, eu quebrei uma regra, não foi dez ou trezentos.


[Tom]: Foi sim!
240

[Julianne]: Eu quebrei um jarro da mãe da Maria Helena, eu fiquei arrasada.

[Tom]: Agora, você quebrou trezentos jarros!

[Julianne]: E aí, vou fazer o quê? Foi ano passado, já prescreveu.

[Tom]: Então, no ano passado, quais leis você quebrou?

[Julianne]: Uma só.

[Tom]: E depois?

[Julianne]: Não me lembro…

[Tom]: Você quebrou a TV, sim ou não?

[Julianne]: Não, a TV não.

[Tom]: Você mexeu muito no seu computador?

[Julianne]: Não, eu trago pouco meu computador para cá.


O menino pega um frasco de álcool em gel que fica na mesa da sala de reunião.

[Tom]: Me deixa ver o álcool.

[Julianne]: Eu gastei pouco álcool em gel, tem pouco aí dentro?

[Tom]: Não, tá na metade.

[Julianne]: Porque olha, no Espaço Nardin tem apenas três regras: a gente não pode se
machucar, não pode machucar o outro e não pode destruir o material do Espaço. Eu quebrei só
uma das três regras.
241

[Tom]: E você quebrou um, um, um…


Ele registra no papel o numeral um, três vezes.

[Julianne]: Um vaso só.


[Tom]: Não, você quebrou um e onze.

[Julianne]: Nada disso. Você está inventando coisas que eu fiz.

[Tom]: E depois, você deixou a garrafa cair? Por que o pote está na metade?

[Julianne]: Não, não deixei a garrafa cair. O pote está na metade porque beberam o café.

[Tom]: Você bebeu os baldes de café?

[Julianne]: Não… tô nem tomando café.

[Tom]: Você tem uma máquina de café, né? (risos)

[Julianne]: Eu não, isso é do Espaço Nardin.

[Tom]: Você roubou ou não?

[Julianne]: O que?! Você está me acusando de roubos!

[Tom]: Você roubou ou não?

[Julianne]: Não, não roubei. Eu não roubo.

[Tom]: E esse negócio aí, você roubou?

[Julianne]: Também não.


O menino começa a perguntar sobre outros objetos na sala.

[Tom]: E essa fita? Alguém jogou esse lixo aqui, né? Você quebrou uma regra!
242

[Julianne]: Não fui eu, quando cheguei já estava aqui.

[Tom]: Mas você jogou.

[Julianne]: Agora me diga, quem é você? Você é o prefeito por acaso?

[Tom]: Não, eu sou o segurança do prefeito.

[Julianne]: Você é o segurança do prefeito…

[Tom]: Sim!

[Julianne]: Qual o seu nome, segurança?

[Tom]: Tom de doze anos.

[Julianne]: E doze anos pode trabalhar?

[Tom]: Pode!

A criança pede para ler papéis que estavam na mão de sua analista. Ela recusa, dizendo que
eram “regras” dela. Ele insiste. Pergunta sobre uma garrafinha de água que está na mesa, ao
lado dela.

[Tom]: Essa água está horrível ou não?

[Julianne]: Essa água é minha.

[Tom]: Me deixa provar.

O menino toma a água e finge que está ruim.

[Julianne]: Tá ruim?
243

[Tom]: Eca… vou vomitar. (risos)

[Julianne]: Você fez uma pegadinha, foi?


Todos riem.

[Julianne]: Senhor segurança, um minutinho aqui… Daqui a pouco a gente vai embora e eu
preciso de só fazer mais uma pergunta a seus pais, pode ser, Tom Sawyer de sete anos?

[Tom]: Doze anos!

[Julianne]: Não, doze não. Quero conversar com o de sete. Pode ser?

[Tom]: Pode.

[Julianne]: Eu tenho uma pergunta para os seus pais…


O menino se interessa pelos papéis novamente.

[Tom]: Por que tá bagunçado? Você quebrou mais uma regrinha!

[Julianne]: Não, bagunça a gente pode fazer, contanto que a gente arrume depois.

[Tom]: E essa máscara aqui, você quebrou mais uma regra!


Sua analista, nesse momento, estava usando uma máscara de proteção no rosto.

[Tom]: Me deixa ler seu arquivo secreto.

[Julianne]: Não, esse arquivo é mega-secreto.

[Tom]: Mega?

Tratava-se da tese impressa e encadernada.


244

[Julianne]: Eu tenho uma pergunta para fazer a seus pais antes da gente ir embora. Com essa
participação especial… A minha última pergunta depois dessas palavras gentis… Eu queria
agradecer a vocês, eu nunca atendi o Tom com essa pretensão, jamais. Só que com o tempo a
coisa foi acontecendo. Encorajados pela Ângela a gente tomou esse passo. Eu fico feliz com o
resultado disso, é muito bonito. Acho que os efeitos disso não se concluem agora, porque é um
escrito que fica. Tom está no momento que não tem mais tantos embaraços com a língua verbal,
mas tem muitos embaraços com a língua escrita. Da mesma forma que ele tinha uma língua
própria e se submeteu, com muito esforço, à língua que a gente fala. Tom agora está nesse
momento de entender que ele tem uma língua da escrita e entender que tem uma outra língua…
Isso não está no momento de ser escrito agora, mas ele está no momento de pedir “escreva na
minha língua”. Ele está nessa transição e se angustiando muito, porque ele sabe que há uma
tradução a ser feita. E vai ser feita. Ele está no momento… muito desejante para isso, isso que
importa. Eu fico feliz com esse resultado. A última coisa que pediria a vocês é: o quê vocês
gostariam de dizer ao Tom de doze anos? De dezessete anos? Já que ele começa a pensar no
futuro dele, embora diga que não quer crescer, mas ele brinca com isso. Então, o que diriam a
ele? Já que está aqui com a gente. Não só no dizer, mas isso também está escrito.

Tom está em silêncio, depois de muito brincar com sua analista. Nem tudo foi transcrito, mas
precisou que sua mãe interviesse para que ele pudesse deixar a entrevista seguir. O menino está
desenhando.

[Mãe]: Tom, meu filho, você é muito inteligente, muito competente, capaz, muito bom, que
tem um coração grande, que se preocupa com as pessoas. Você tem um mundo inteiro te
esperando para curtir muito, fazer as coisas que gostar e se interessar. A escola é importante,
vai te ajudar a passar e realizar seus sonhos. Eu amo você demais, a mamãe vai estar sempre
aqui. Se você precisar voltar, eu vou estar sempre no seu coração.
[Pai]: Bom, Tom. Acho que primeira coisa: eu amo você demais. Você foi a melhor coisa,
junto da mamãe, que aconteceu na minha vida. Você é uma criança muito inteligente, muito
esperto, muito curioso e carinhoso, também. Eu acho que você vai conseguir fazer tudo o que
quer. Sua escola vai te ajudar muito. O Nardin vai continuar te ajudando. Nós vamos estar
sempre ao seu lado, mas eu acho, cara, que a aventura está lá fora mesmo, pequeno ninja.

Depois de algum tempo em silêncio, a analista pergunta para Tom.


245

[Julianne]: O que é isso que está fazendo?

[Tom]: Um parque de diversões.

[Julianne]: Posso colocar no nosso livro? Quando você terminar, claro. Pode entrar seu
desenho do parque de diversões, pode entrar o que seus pais acabaram de dizer a você…

[Tom]: Agora, olha.


O menino mostra seu desenho pronto.

[Tom]: Vou destruir o Espaço Nardin para construir um parque aquático em alto mar.

[Julianne]: Acho que está muito divertido, agora a gente precisa mandar para o prefeito, o que
você acha?

[Tom]: Boa ideia.

Ele pede para sua analista assinar o desenho do parque.

[Tom]: Assina até seu nome!

[Julianne]: Nome completo?

[Tom]: É.

[Julianne]: E quem vai assinar na outra linha?

[Tom]: Você?

[Julianne]: De novo?

[Tom]: Sim!

Ele pede para o pai ler o nome de sua analista que está escrito no papel.
246

[Tom]: Falta o seu nome. Escreve.

[Julianne]: O meu já está aí. Escreve o seu.

[Tom]: Com a sua letra!

[Julianne]: De novo? Tá bom. Vou botar.

[Tom]: Que nome é esse?

[Julianne]: É o meu. O nome que meus pais me deram.


A analista explica que um de seus sobrenomes vem da linhagem materna e o outro da linhagem
paterna .

[Tom]: E o seu nome é esse?

[Julianne]: É, Julianne. O nome que meus pais pensaram para mim.

[Tom]: Obrigado. Vou enviar para o meu pai. Meu pai é o prefeito.
247

Figura 13. Espaço Nardin e o parque aquático (carta ao Prefeito).


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Estilos da Clínica, 16(1), 52–65. https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v16i1p52-65

Suskind, R. (2017). Vida animada: uma história sobre autismo, heróis e amizade (A. Ban,
Trad.). Objetiva.

Tammet, D. (2007). Nascido em um dia azul: por dentro da mente de um autista extraordinário
(I. Korytowski, Trad.). Intrínseca.

Tendlarz, S. E. (2017). Lacan e o autismo em nossa época (I. A. Dourado, Trad.). Opção
Lacaniana Online, (23). http://opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero23/texto5.html

Tustin, F. (1975). Autismo e psicose infantil. Imago.

Tustin, F. (1984). Estados autísticos em crianças. Imago. (Trabalho original publicado em


1981).

Valas, P. (2001). As dimensões do gozo. Zahar.

Vieira, M. A. Cogitações sobre o furo. Ágora, 2(2), 43–52.

2, jul-dez 1999 (ISSN 1516-1498) pp. 43-52.

Vorcaro, A. (2019). Uma articulação preliminar da diferenciação estrutural autismo/psicose.


Manuscrito não publicado.

Vorcaro, A. (2021). Des-composições do corpo em psicanálise: a inscrição do corpo nos


registros da experiência humana. Manuscrito não publicado.
255

Wagner, C. (2014). Zeitgeist, o espírito do tempo: experiências estéticas. Revista de Cultura e


Extensão USP, 12, 21–29. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9060.v12i0p21-29

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade (J. O. A. Abreu & V. Nobre, Trads.). Imago.
(Trabalho original publicado em 1971).
256

APÊNDICE A — TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você̂̂̂ está sendo convidado(a) a participar, como voluntario(a), da pesquisa intitulada


“Neoborda: uma direção do tratamento de crianças que não falam”. Meu nome é Ângela
Maria Resende Vorcaro, sou a pesquisadora responsável e minha área de atuação é a
Psicanálise. Após receber os esclarecimentos e as informações a seguir, se você aceitar fazer
parte do estudo, assine ao final deste documento, que está impresso em duas vias, sendo que
uma delas é sua e a outra pertencente à pesquisadora responsável. Esclareço que em caso de
recusa na participação você não será penalizado(a) de forma alguma. Mas se aceitar participar,
as dúvidas sobre a pesquisa poderão ser esclarecidas pela pesquisadora responsável,
pessoalmente, via e-mail [email protected] e, inclusive, sob forma de ligação a cobrar,
através do seguinte contato telefônico: (31) 988074159. Ao persistirem as dúvidas sobre os seus
direitos como participante desta pesquisa, você também poderá fazer contato com o Comitê de
Ética em Pesquisa(COEP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), localizada
na AV. Presidente Antônio Carlos, 6627, Pampulha - Belo Horizonte- MG - CEP 31270-
901Unidade Administrativa II - 2o Andar - Sala: 2005
Telefone:(031)3409-4592. E- mail:[email protected]/ Horário de atendimento: 09:00 às
11:00 / 14:00 às 16:00.

1. Informações Importantes sobre a Pesquisa: 1. Título, justificativa, objetivos.


Esta pesquisa intitulada “Neoborda: uma direção do tratamento de crianças que não falam”
é vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Doutorado na linha de pesquisa:
Conceitos fundamentais em psicanálise e investigações no campo clínico e cultural. A presente
pesquisa de doutorado tem como objetivo formalizar, na perspectiva psicanalítica lacaniana, a
construção de um assento metodológico que viabilize a intervenção clínica no tratamento de
crianças que, a despeito de estarem suficientemente balizadas pelo contexto familiar e sem
apresentarem comprometimentos orgânicos, não estabelecem trocas sociais por meio da função
da fala.
Acreditamos que nosso empreendimento poderá́ lançar novas luzes em diversas discussões
importantes sobre o tratamento psicanalítico de crianças que não falam e que comumente
recebem o diagnostico de Transtorno do Espectro Autista (TEA). Logo, a intenção ao propor
esta pesquisa é que ela contribua para a compreensão e reflexão acerca do tratamento
psicanalítico destas crianças que apresentam uma sintomatologia autística desde pequenas.
Tendo isso como base, acredita-se que a relevância deste estudo esteja associada também às
257

contribuições que ele possa dar às instituições no que tange ao tratamento psicanalítico de
crianças diagnosticadas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA).
2. Procedimentos utilizados da pesquisa ou descrição detalhada dos métodos.
Obs.: A coleta de dados com os participantes ocorrerá por meio de entrevista a ser realizada
nas dependências uma instituição especializada em diagnóstico e tratamento interdisciplinar
integrado para procedimentos psíquicos de crianças e adolescentes com foco em transtornos do
neurodesenvolvimento. Instituicao de nome: Espaço Nardin Atividades Terapêuticas de
Atendimento em Rede para a Infância e a Adolescência, inscrita no CNPJ 31.466.404/0001-07
Em caso de aceite, essas entrevistas serão previamente agendadas entre pesquisadora e
participante. Caso autorize, a entrevista deverá ser gravada, e solicita-se a concessão do uso de
sua voz e registro de opinião. Para tanto, rubrique dentro do parêntese da opção escolhida:
( ) Permito a divulgação da minha imagem/voz/opinião nos resultados publicados da
pesquisa;
( ) Não permito a publicação da minha imagem/voz/opinião nos resultados publicados da
pesquisa.
3. Durante a realização da pesquisa, você̂̂̂ poderá́ sentir desconforto ao responder as
perguntas propostas durante a entrevista, risco este que a pesquisadora buscará
minimizar por meio da escolha criteriosa do local de realização do local de entrevista,
que deverá ser um local seguro, sem ruídos e sem exposição ao público. Caso sinta-se
intimidado, constrangido ou insatisfeito em responder as perguntas propostas no todo
ou em parte, é facultado o direito de deixar de respondê-las. No caso de incompreensão
do que estiver sendo perguntado, a pesquisadora se compromete a esclarecer
verbalmente ao participante, sem, contudo, interf̂̂erir ou manipular de qualquer modo as
respostas. Ao participar desta pesquisa você estará́ contribuindo para o avanço de
pesquisas relacionadas ao tratamento psicanalítico de crianças que não falam e
apresentam uma sintomatologia do tipo clinico autístico, favorecendo reflexões e
discussões acerca desta temática no ambiente acadêmico e comunitário.
4. O participante da pesquisa não arcará com nenhuma despesa para a realização da
pesquisa, sendo o deslocamento à instituição custeado pela pesquisadora em data e
horário a ser previamente agendada, preferencialmente em momentos em que o
participante já esteja na instituição em função das atividades ali desenvolvidas.
5. É assegurado ao participante o sigilo, a privacidade e o anonimato, não sendo divulgado
o nome dos participantes.
258

6. É assegurado ao participante o direito de se recusar a participar ou retirar o seu


consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma.
7. É assegurado ao participante a liberdade de se recusar a responder questões que lhe
causem desconforto emocional e/ou constrangimento durante as entrevistas.
8. Os resultados da pesquisa serão tornados públicos, sejam eles favoráveis ou não.
9. Os resultados da pesquisa serão publicitados mediante participação em eventos
científicos e doação pela pesquisadora de cópia do artigo publicado sobre a pesquisa
assim como o relatório final da pesquisa em formato digital para os
interessados.
10. Ao participante é assegurada assistência imediata e/ou contínua, que será prestada
por esta pesquisadora responsável de forma integral e gratuita, no que se refere as complicações
e/ou possíveis danos decorrentes desta pesquisa, sejam eles diretos/indiretos e
imediatos/tardios.
11. Ao participante é assegurado o direito de pleitear indenização (reparação e danos
imediatos ou futuros), garantia em lei, decorrente da sua participação na pesquisa.
12. Os dados clínicos utilizados nesta pesquisa serão guardados por cinco anos (5) para
consulta, quando solicitada.
2. Consentimento da Participação na Pesquisa:
Eu, ........................................................................., inscrito(a) sob o RG ..................., CPF
.................., abaixo assinado, concordo em participar do estudo intitulado “Neoborda: uma
direção do tratamento de crianças que não falam”. Informo ter mais que 18 aos de idade e
destaco que minha participação nesta pesquisa é de caráter voluntário. Fui devidamente
informado(a) pela pesquisadora responsável, Ângela Maria Resende Vorcaro, sobre a pesquisa,
os procedimentos e métodos nela envolvidos, assim como os possíveis riscos e benefícios
decorrentes de minha participação no estudo. Foi-me garantido que posso retirar meu
consentimento a qualquer momento, sem que isto leve a qualquer penalidade. Declaro, portanto,
que concordo com a minha participação no projeto de pesquisa acima descrito.
Belo Horizonte, ....... de....................... de 2023
___________________________________________________________________
Assinatura por extenso do(a) participante
259

APÊNDICE B — TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você̂̂̂ está sendo convidado(a) a participar, como voluntario(a), da pesquisa intitulada


“Neoborda: uma direção do tratamento de crianças que não falam”. Meu nome é Ângela
Maria Resende Vorcaro, sou a pesquisadora responsável e minha área de atuação é a
Psicanálise. Após receber os esclarecimentos e as informações a seguir, se você aceitar fazer
parte do estudo, assine ao final deste documento, que está impresso em duas vias, sendo que
uma delas é sua e a outra pertencente à pesquisadora responsável. Esclareço que em caso de
recusa na participação você não será penalizado(a) de forma alguma. Mas se aceitar participar,
as dúvidas sobre a pesquisa poderão ser esclarecidas pela pesquisadora responsável,
pessoalmente, via e-mail [email protected] e, inclusive, sob forma de ligação a cobrar,
através do seguinte contato telefônico: (31) 988074159. Ao persistirem as dúvidas sobre os seus
direitos como participante desta pesquisa, você também poderá fazer contato com o Comitê de
Ética em Pesquisa(COEP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), localizada
na AV. Presidente Antônio Carlos, 6627, Pampulha - Belo Horizonte- MG - CEP 31270-
901Unidade Administrativa II - 2o Andar - Sala: 2005
Telefone:(031)3409-4592. E- mail:[email protected]/ Horário de atendimento: 09:00 às
11:00 / 14:00 às 16:00.

1. Informações Importantes sobre a Pesquisa: 1. Título, justificativa, objetivos.


Esta pesquisa intitulada “Neoborda: uma direção do tratamento de crianças que não falam”
é vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Doutorado na linha de pesquisa:
Conceitos fundamentais em psicanálise e investigações no campo clínico e cultural. A presente
pesquisa de doutorado tem como objetivo formalizar, na perspectiva psicanalítica lacaniana, a
construção de um assento metodológico que viabilize a intervenção clínica no tratamento de
crianças que, a despeito de estarem suficientemente balizadas pelo contexto familiar e sem
apresentarem comprometimentos orgânicos, não estabelecem trocas sociais por meio da função
da fala.
Acreditamos que nosso empreendimento poderá́ lançar novas luzes em diversas discussões
importantes sobre o tratamento psicanalítico de crianças que não falam e que comumente
recebem o diagnostico de Transtorno do Espectro Autista (TEA). Logo, a intenção ao propor
esta pesquisa é que ela contribua para a compreensão e reflexão acerca do tratamento
psicanalítico destas crianças que apresentam uma sintomatologia autística desde pequenas.
Tendo isso como base, acredita-se que a relevância deste estudo esteja associada também às
260

contribuições que ele possa dar às instituições no que tange ao tratamento psicanalítico de
crianças diagnosticadas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA).
2. Procedimentos utilizados da pesquisa ou descrição detalhada dos métodos.
Obs.: A coleta de dados com os participantes ocorrerá por meio de entrevista a ser realizada
nas dependências uma instituição especializada em diagnóstico e tratamento interdisciplinar
integrado para procedimentos psíquicos de crianças e adolescentes com foco em transtornos do
neurodesenvolvimento. Instituicao de nome: Espaço Nardin Atividades Terapêuticas de
Atendimento em Rede para a Infância e a Adolescência, inscrita no CNPJ 31.466.404/0001-07
Em caso de aceite, essas entrevistas serão previamente agendadas entre pesquisadora e
participante. Caso autorize, a entrevista deverá ser gravada, e solicita-se a concessão do uso de
sua voz e registro de opinião. Para tanto, rubrique dentro do parêntese da opção escolhida:
( ) Permito a divulgação da minha imagem/voz/opinião nos resultados publicados da pesquisa;
( ) Não permito a publicação da minha imagem/voz/opinião nos resultados publicados da
pesquisa.
3. Durante a realização da pesquisa, você̂̂̂ poderá́ sentir desconforto ao responder as
perguntas propostas durante a entrevista, risco este que a pesquisadora buscará
minimizar por meio da escolha criteriosa do local de realização do local de entrevista,
que deverá ser um local seguro, sem ruídos e sem exposição ao público. Caso sinta-se
intimidado, constrangido ou insatisfeito em responder as perguntas propostas no todo
ou em parte, é facultado o direito de deixar de respondê-las. No caso de incompreensão
do que estiver sendo perguntado, a pesquisadora se compromete a esclarecer
verbalmente ao participante, sem, contudo, interf̂̂erir ou manipular de qualquer modo as
respostas. Ao participar desta pesquisa você estará́ contribuindo para o avanço de
pesquisas relacionadas ao tratamento psicanalítico de crianças que não falam e
apresentam uma sintomatologia do tipo clinico autístico, favorecendo reflexões e
discussões acerca desta temática no ambiente acadêmico e comunitário.
4. O participante da pesquisa não arcará com nenhuma despesa para a realização da
pesquisa, sendo o deslocamento à instituição custeado pela pesquisadora em data e
horário a ser previamente agendada, preferencialmente em momentos em que o
participante já esteja na instituição em função das atividades ali desenvolvidas.
5. É assegurado ao participante o sigilo, a privacidade e o anonimato, não sendo divulgado
o nome dos participantes.
6. É assegurado ao participante o direito de se recusar a participar ou retirar o seu
consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma.
261

7. É assegurado ao participante a liberdade de se recusar a responder questões que lhe


causem desconforto emocional e/ou constrangimento durante as entrevistas.
8. Os resultados da pesquisa serão tornados públicos, sejam eles favoráveis ou não.
9. Os resultados da pesquisa serão publicitados mediante participação em eventos
científicos e doação pela pesquisadora de cópia do artigo publicado sobre a pesquisa
assim como o relatório final da pesquisa em formato digital para os
interessados.
10. Ao participante é assegurada assistência imediata e/ou contínua, que será prestada
por esta pesquisadora responsável de forma integral e gratuita, no que se refere as complicações
e/ou possíveis danos decorrentes desta pesquisa, sejam eles diretos/indiretos e
imediatos/tardios.
11. Ao participante é assegurado o direito de pleitear indenização (reparação e danos
imediatos ou futuros), garantia em lei, decorrente da sua participação na pesquisa.
12. Os dados clínicos utilizados nesta pesquisa serão guardados por cinco anos (5) para
consulta, quando solicitada.
2. Consentimento da Participação na Pesquisa:
Eu, ........................................................................., inscrito(a) sob o RG ...................,
CPF.................., abaixo assinado, concordo em participar do estudo intitulado “Neoborda: uma
direção do tratamento de crianças que não falam”. Informo ter mais que 18 aos de idade e
destaco que minha participação nesta pesquisa é de caráter voluntário. Fui devidamente
informado(a) pela pesquisadora responsável, Ângela Maria Resende Vorcaro, sobre a pesquisa,
os procedimentos e métodos nela envolvidos, assim como os possíveis riscos e benefícios
decorrentes de minha participação no estudo. Foi-me garantido que posso retirar meu
consentimento a qualquer momento, sem que isto leve a qualquer penalidade. Declaro, portanto,
que concordo com a minha participação no projeto de pesquisa acima descrito.
Belo Horizonte, ....... de....................... de 2023
___________________________________________________________________
Assinatura por extenso do(a) participante
262

APÊNDICE C — LINHA DO TEMPO DO CASO

25/12/2015 - Nascimento de Tom Arantes


09/2018 - Procura de Ângela Vorcaro para avaliação [início do tratamento psicanalítico]
04/2019–08/2019 - suspensão do acompanhamento devido adoecimento paterno
08/2019 - Julianne passa a acompanhá-lo em atendimento domiciliar 2x por semana
10/2019 - Visita à escola
10/2019 - Decisão familiar de retirá-lo da escola
01/2019 - Ida à escola em que Tom irá estudar
02/2020 - Início do ano letivo na nova escola
03/2020 – Pandemia: atendimentos on-line/escola on-line
06/2020 - Encaminhamento para o Espaço Nardin [atendimentos de psicologia, musicoterapia,
fonoaudiologia e psicomotricidade (4 horas semanais)]
07/2020 - Passou a contar até três.
08/2020 - Retorno aos atendimentos presenciais de psicologia no Espaço Nardin
09/2020 - Mudança de turno na instituição e encontro com Heitor Salomão
11/2020 - Falecimento da avó materna
03/2021 - Tom “começa a falar”; agravamento da pandemia; alguns atendimentos on-line com
a equipe do Espaço Nardin; tentativa de troca de horários na instituição para ele não ter contato
com outras crianças, tendo em vista que ele não suportava usar máscara
09/2021 - Retorno de Tom à escola presencial
01/2022 - Entrada do estagiário João
03/2022 - Retirada de Tom da escola/procura de uma nova escola
05/2022 - Ausento-me abruptamente dos atendimentos por três meses
08/2022 - Retorno aos atendimentos psicológicos
09/2022 - Duas semanas sem atendimento comigo; Tom: “quero ir a Recife”
09/2022 - Solicitação aos pais para a escrita do caso
263

APÊNDICE D — MAIS, AINDA... DUPLOS, DUPLAMENTE

Nos momentos finais da escrita desta tese, deparei-me com um fragmento do


testemunho de passe de Bruno de Halleux, presente no texto de Ana Martha Maia (2021)
Lalíngua e a interpretação na passagem de psicanalisante a psicanalista. Tocada pela emoção
inexplicável que um testemunho de passe provoca, tentei inscrevê-lo nas últimas páginas. A
autora faz um recorte do testemunho, iniciando por um sonho trazido pelo analista/analisante
que marca a conclusão de sua análise:

Ele vai de bicicleta para a casa de uma mulher baronesa. De repente, algo o freia e a bicicleta
para. Um homem bêbado, parecido com um primo barão com quem brincava na infância, surge
em um carro Twingo e para em seu lado. Ele se esquiva para não ser atingido, tenta fugir, mas,
inexplicavelmente, a bicicleta o impede de seguir. O homem o alcança e, no momento em que
vai atingi-lo, Halleaux grita forte “não!”, acordando a mulher e os filhos.

Destaca-se o significante Twingo, que condensa importantes significações elencadas no


processo analítico: a empresa automobilística em que o pai de Bruno trabalhava, a língua
inglesa que a mãe dele usava para guardar segredos, ser gêmeo e uma brincadeira infantil,
adotada por seus filhos, de contar Twingos na rua, após o episódio do sonho. A autora
acrescenta que Bruno é a criança do milagre, que foi salva por uma enfermeira no parto, ao se
deparar não apenas com uma criança no parto, e sim duas. Eram gêmeos.
A autora lê que o analisante fez sua elucubração de saber de lalíngua, possibilitando que
sua construção fantasmática fosse esvaziada. Em sua análise, surge o sintoma de crises de
choro, e seu analista afirma: “os choros são muito misteriosos!”, acentuando a dimensão do
acontecimento de corpo, não em busca da causa do que o faz chorar, mas do mistério do corpo
que chora. O choro enquanto real possibilita, nesse percurso de análise, a produção de um
significante que faz borda ao gozo, tendo a interpretação do analista como produtora de um
furo.

O analista esvazia a significação com uma interpretação aparentemente simples que introduz a
dimensão fora do sentido e o empuxa a nomear, sob a forma do S1, ao invés de dar significação
e o lançar numa cadeia associativa infinita. Essa interpretação abre um lugar na cadeia
significante e faz surgir um significante sozinho que vem nomear o sem sentido do sintoma do
lado do S1, e não do sentido, do S2.

Para concluir, o significante Twingo permite a Bruno de Halleux abandonar a relação


imaginária com o irmão gêmeo e o significante paterno automobilístico, esvaziando-os,
operando uma redução de gozo que lhe permite uma mudança de sua posição subjetiva. Ele
termina seu testemunho com o sonho que teve em inglês: “Vá em frente, gêmeo! Twin-go!”.
264

É na escrita desta tese que percebo como o caso de Tom me ensinou sobre os duplos e
que minha posição de analista, enquanto um duplo, é um lugar de estranha delicadeza e fascínio.
Tomada pelos significantes duplo e Twingo, dedico esta tese a meus filhos, ainda no ventre, que
me mostrarão as particularidades da gemelaridade, possibilitando-me ocupar um novo lugar
diante dos fenômenos de duplo.
Para Marco Aurélio e Paulo Henrique, com amor, duplamente.

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