UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES
TAINÁ MACÊDO VASCONCELOS
O traje de cena do ator popular
São Paulo
2021
TAINÁ MACÊDO VASCONCELOS
O traje de cena do ator popular
Versão original
Tese apresentada à Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de
São Paulo para obtenção do grau de
Doutora em Artes Cênicas. Programa de
Pós-graduação em Artes Cênicas.
Área de Concentração: Teoria e Prática do
Teatro.
Linha de Pesquisa: História do Teatro.
Orientador: Prof. Dr. Fausto Roberto Poço
Viana
São Paulo
2021
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
Dados inseridos pela autora
Vasconcelos, Tainá Macêdo
O Traje de cena do ator popular / Tainá Macêdo
Vasconcelos; orientador, Fausto Roberto Poço Viana. – São
Paulo, 2021.
234 p.: il.
Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas / Escola de Comunicações e Artes / Universidade
de São Paulo.
Bibliografia
Versão original
1. Traje de cena. 2. Teatro popular. 3. História do
teatro. I. Viana, Fausto Roberto Poço. II. Título.
CDD 21.ed. - 792
Elaborado por Alessandra Vieira Canholi Maldonado - CRB-8/6194
Nome: VASCONCELOS, Tainá Macêdo
Título: O traje de cena do ator popular
Tese apresentada à Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
para obtenção do grau de Doutora em Artes Cênicas.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. _____________________________________________________
Instituição: ___________________________________________________
Julgamento: __________________________________________________
Prof. Dr. _____________________________________________________
Instituição: ___________________________________________________
Julgamento: __________________________________________________
Profa. Dra. ___________________________________________________
Instituição: ___________________________________________________
Julgamento: __________________________________________________
Prof. Dr. _____________________________________________________
Instituição: ___________________________________________________
Julgamento: __________________________________________________
Prof. Dr. _____________________________________________________
Instituição: ___________________________________________________
Julgamento: __________________________________________________
Ao meu tio, Werdy (in memorian),
e a todos os artistas populares.
AGRADECIMENTOS
Essa pesquisa existe e resultou no texto aqui escrito, graças ao apoio, ao carinho, e
a colaboração dos meus pais, Mônica Macêdo e Everaldo Vasconcelos, do meu
orientador, Fausto Viana, do meu parceiro de jornada, Andrés Morales, do ator José
Maciel e demais integrantes da Cia Oxente.
Agradeço a todos que, de maneira direta ou indireta, contribuíram para a realização
deste trabalho, representados aqui por Carol Strapação, Fabiana D’Praga, Maria
Celina Gil, Maria Eduarda Borges e Tina Medeiros.
Especialmente, a Universidade Federal do Amapá, e principalmente, ao Colegiado de
Teatro, minha gratidão.
Todas as sociedades humanas são espetaculares no
seu cotidiano, e produzem espetáculos em momentos
especiais.
Mesmo quando inconscientes, as relações humanas
são estruturadas em forma teatral: o uso do espaço,
a linguagem do corpo, a escolha das palavras e a
modulação das vozes, o confronto de ideias e
paixões, tudo que fazemos no palco fazemos sempre
em nossas vidas: nós somos teatro!
Vendo o mundo além das aparências, vemos
opressores e oprimidos em todas as sociedades,
etnias, gêneros, classes e castas, vemos o mundo
injusto e cruel. Temos a obrigação de inventar outro
mundo porque sabemos que outro mundo é possível.
Mas cabe a nós construí-lo com nossas mãos
entrando em cena, no palco e na vida.
Augusto Boal (2009)
RESUMO
VASCONCELOS, T. M. O traje de cena do ator popular. 2021. Tese (Doutorado em
Artes Cênicas – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo), São
Paulo, 2021.
Esta pesquisa examina os trajes de cena do teatro popular e seus entrelaçamentos
com a cultura onde se desenvolve. A partir dos estudos históricos sobre o teatro,
analisamos a trajetória de diferentes iniciativas populares com o objetivo de
representar visualmente o teatro popular por meio dos trajes utilizados.
Compreendemos o traje de cena do ator popular como uma construção baseada nas
condições culturais que cercam esse ator. Desta forma, observamos o percurso do
ator e brincante paraibano, José Maciel, e as relações do mesmo com os trajes de
folguedo e das artes cênicas, por meio da história oral e análise documental dos
espetáculos que participou. O traje de cena do teatro popular identificado neste
estudo, auxilia a compreensão do figurino teatral enquanto elemento cênico permeado
por aspectos sociais, políticos e estéticos.
Palavras-chave: Traje de cena. Teatro Popular. História do Teatro. Cultura Popular.
Teatro Nordestino Brasileiro.
ABSTRACT
VASCONCELOS, T. M. Costume design of folk actor. 2021. Tese (Doutorado em
Artes Cênicas – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo), São
Paulo, 2021.
This research investigates the costumes of popular theater and its relation with the
surrounding culture. According to historical studies on theater, we analyze the course
of different popular expressions aiming to represent visually the popular theater
through the costumes. We understand the costume of popular actor as a construction
based on the cultural conditions that surrounds it. Thus, we observe the path of José
Maciel, actor from Paraíba, and his relations with folk and performing arts, through oral
history and documentary analysis of the plays he has taken part. The costume of
popular theater identified in this study helps to understand the costume as a scenic
element sewed by social, political and aesthetic aspects.
Keywords: Costume Design. Popular Theater. Theater History. Popular culture.
Brazilian Northeast Theater.
RESUMEN
VASCONCELOS, T. M. El vestuario escénico del actor popular. 2021. Tese
(Doutorado em Artes Cênicas – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de
São Paulo), São Paulo, 2021.
Esta investigación examina el vestuario del teatro popular y su interrelación con la
cultura en que se desarrolla. A partir de estudios históricos sobre el teatro, analizamos
la trayectoria de diferentes iniciativas populares con el objetivo de representar
visualmente el teatro popular a través del vestuario utilizado. Entendemos el traje
escénico del actor popular como una construcción realizada a partir de las condiciones
culturales que rodean a este actor. De esta manera, observamos la trayectoria del
actor paraibano José Maciel, y sus relaciones con el vestuario de las tradiciones
populares y las artes escénicas, a través de la história oral y el análisis documental de
los espectáculos en los que participó. El traje de teatro popular identificado en este
estudio ayuda a entender el vestuário escénico como un elemento impregnado de
aspectos sociales, políticos y estéticos.
Palabras-llave: Vestuario escénico. Teatro Popular. Historia del teatro. Cultura
popular. Teatro del Noreste Brasilero.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................12
2 DEFINIÇÕES..................................................................................................18
2.1 Traje de cena ..............................................................................................18
2.2 Cultura ........................................................................................................26
2.3 Teatro Popular ...........................................................................................31
3 UMA BREVE TRAJETÓRIA DOS TRAJES DE CENA AO REDOR DO
MUNDO.............................................................................................................40
3.1 Raízes do traje de cena .............................................................................41
3.1.1 Índia ..........................................................................................................41
3.1.2 China ........................................................................................................46
3.1.3 Indonésia ..................................................................................................48
3.1.4 Japão ........................................................................................................50
3.2 Grécia..........................................................................................................53
3.3 Roma ...........................................................................................................63
3.4 Idade Média ................................................................................................67
3.5 Festivais da Corte no Renascimento .......................................................73
3.6 Shakespeare e o teatro elizabetano .........................................................79
3.7 Commedia dell’Arte ...................................................................................84
3.8 Molière e a Comédie-Française ................................................................92
3.9 O Iluminismo e o teatro popular...............................................................97
3.9.1 Jean-Jacques Rousseau e as festas públicas........................................103
3.10 O teatro para os operários nos séculos XIX e XX ..............................107
3.10.1 Firmin Gémier e o Théâtre National Ambulant .....................................110
3.10.2 Jean Vilar e o Théâtre National Populaire ............................................112
3.11 Meyerhold ...............................................................................................116
3.12 Brecht .....................................................................................................128
3.13Théâtre du Soleil .....................................................................................134
4 TRAJES DE CENA NA AMÉRICA LATINA – E NO BRASIL......................143
4.1 Teatro popular originário na América Latina ........................................143
4.2 Arena, Oficina, CPC .................................................................................155
4.3 Cenário Nordestino .................................................................................160
4.3.1 Teatro Popular do Nordeste-TPN ...........................................................162
4.3.2 O melhor juiz, o rei..................................................................................165
4.3.3 Ariano Suassuna e o Movimento Armorial .............................................167
4.3.4 Altimar Pimentel e o cenário paraibano ..................................................173
5 JOSÉ MACIEL E CIA OXENTE....................................................................179
5.1 Trajes de cena da Cia Oxente/José Maciel............................................182
5.1.1 Início no Agreste paraibano ....................................................................182
5.1.2 Jogos das máscaras ...............................................................................187
5.1.3 Redemunho ............................................................................................195
5.1.4 Quem quiser que conte outra .................................................................199
5.1.5 O dia em que a Morte bateu das botas ..................................................207
5.1.6 O Bode....................................................................................................216
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................223
REFERÊNCIAS...............................................................................................229
12
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa é fruto da investigação sobre os trajes do teatro popular: o teatro
do povo, o teatro das ruas e... o teatro que um dia foi das ruas e se institucionalizou;
do teatro que nasceu dentro do teatro, mas que tem seu alcance popular; do teatro
que nasceu dentro da igreja, foi para o adro e alcançou as ruas e do teatro popular
definido por vários autores utilizados nesta pesquisa, entre eles Patrice Pavis (1999;
2017), José Jorge de Carvalho (2000) e Brooks McNamara (2003 In: SCHECHTER,
2003).
Uma pesquisa que evoca as características do teatro popular, notadamente
destacando os seus trajes, não poderia deixar de ter uma contação de histórias, ainda
que pese o fato de que quem conta um conto aumenta um ponto. Assim, aproveitamos
essa introdução, à guisa de prólogo, para contar um pouco da origem desse trabalho
partindo, em seguida, para a parte metodológica da pesquisa, já que nesta já não será
possível dizer: “Não sei, só sei que foi assim!”.
A ideia da tese surge do meu encontro no 12º Colóquio Internacional de Moda,
em 2016, na cidade de João Pessoa-PB, com o Prof. Dr. Fausto Viana e o pesquisador
San Pestana. A ideia original, a celula mater (já viu que o teatro popular adora um
latim...) era destacar a trajetória do ator José Maciel (Cia Oxente – PB), sua relação
com os trajes de cena e os trajes de folguedo que permeiam a história dele. O
interesse sobre o tema já vinha expresso em meu trabalho de conclusão do curso de
Bacharelado em Teatro, concluído em 2012 na Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), com o título Vestindo o SerTão: A influência da brincadeira do cavalo marinho
no espetáculo Flor de Macambira, onde foram levantadas questões de semelhanças
entre os aspectos do folguedo pernambucano e o espetáculo teatral, que manteve o
foco na brincadeira do cavalo marinho.
José Maciel é filho de feirantes e cresceu no meio da cultura popular nordestina
no interior da Paraíba. Aos poucos, o interesse pela brincadeira foi se transformando
em responsabilidade artística e profissional, quando resolveu se dedicar mais às
produções teatrais. Ele já integrou grupos de cultura popular (danças folclóricas) e é
fundador da Cia Oxente de Atividades Culturais, onde atua e dirige espetáculos
teatrais com temática nordestina. A escolha de estudar José Maciel como exemplo
para as interseções entre cultura popular e teatro, aconteceu pela experiência de vida
13
diversificada, pela disponibilidade e facilidade para acessar as informações
necessárias à pesquisa.
Assim, Maciel vai ao encontro de tudo aquilo que acreditamos ser a melhor
definição de um ator popular e de origem popular.
Quando um manto de boas ideias se alevanta, sempre surge por baixo algum
trapo de dúvida e, muitas vezes, desesperança a ser vencida.
Pois bem.
Não bastava simplesmente apresentar a trajetória de Maciel e seus trajes. Era
necessário investigar as origens desses trajes, do tipo de espetáculo que eu estava
classificando como popular... Foram necessárias diversas reflexões e caminhadas
pelo corpus (o conjunto de documentos que servem de base para a descrição ou o
estudo de um fenômeno) da pesquisa.
Desde os primórdios da história do teatro, quando o povo subia aos palcos,
eles representavam questões inerentes a sua gente e carregavam signos de sua
cultura, seja buscando uma representação realista daquilo ou uma paródia. O teatro
das feiras e a commedia dell’arte são exemplos disso. Augusto Boal (1979), teatrólogo
brasileiro, afirma que existem quatro categorias de teatro popular: a primeira é
realizada sobre o povo e tem o próprio povo como espectadores; a segunda é feita
sobre o povo, mas para outros públicos que não o povo; a terceira apresenta uma
perspectiva burguesa direcionada para o povo como plateia, e a quarta e última
categoria é onde o povo assume o papel do artista e representa para o povo. A última
categoria é um dos fundamentos da metodologia do Teatro do Oprimido, desenvolvida
por Boal, como ferramenta de crítica e reflexão sobre a sociedade.
Boal, no entanto, e até onde se sabe, não escreveu textos sobre o que é o traje
destas manifestações populares. Sobre os trajes do teatro popular, Donatella Barbieri
(2017), professora do London College of Fashion, faz uma abordagem a partir dos
estudos do grotesco e da carnavalização de Mikhail Bakhtin (1987), linguista que
estudou obras de François Rabelais. Relacionando o realismo grotesco com a
construção dos trajes cênicos, Barbieri traça um panorama desde a comédia grega,
passando pelo grotesco da idade média, a commedia dell’arte e os cômicos atuais.
Não há nada que seja fundamentalmente novo nestes estudos – bem-feitos,
metrificados como manda a “boa pesquisa” acadêmica - sobre temas de pesquisa já
consagrados: o teatro grego, o teatro da idade média, a commedia dell’arte...
14
Na excelente obra de Barbieri, Costume in performance, vencedora do prêmio
de melhor publicação do ano na Quadrienal de Design e Espaço Cênico de Praga de
2019, parece-nos faltar exatamente a proximidade com quem faz o trabalho: o
figurinista, seja ele o próprio ator como em tantas vezes no teatro popular, ou não. Por
trás de todo o discurso da materialidade, da cultura e do corpo (subtítulo do livro:
Materiality, culture and the body), há um olhar que é externo e não integrado ao fazer
teatral. Talvez seja este o ponto que causa mais estranheza na publicação.
A área de conhecimento em que se insere esta pesquisa envolve a teoria e
prática, dois aspectos fundamentais que norteiam os estudos teatrais. Ao longo da
história, o teatro se constituiu entre essas duas bases. Essa pesquisa está voltada
especificamente sobre os estudos de traje de cena, significante cênico que está sendo
pesquisado cada vez mais, pois o número de estudos têm aparentemente aumentado,
assim como a presença do figurinista tem sido cada vez mais frequente nos processos
de montagens teatrais em todos os lugares. Eu mesma, como pesquisadora
acadêmica, trago em mim as agruras e benesses do aprendizado da criação e
confecção do figurino teatral e suas práticas. Sou figurinista, o que faz com que meu
corpo seja transpassado por este processo criativo.
É importante dizer, dado o tema da pesquisa, que o conceito de traje de cena
se confunde com o termo figurino. Para o professor Fausto Viana (2017), em
classificação de trajes por ele proposta, o traje de cena e o traje de folguedo são
subdivisões do traje civil. Neste trabalho, o traje de cena será considerado “como a
indumentária das artes cênicas, [...] que pode abranger os trajes de teatro, dança,
circo, mímica, performance, shows, espetáculos” (VIANA; BASSI, 2014, p.11). Por
outro lado, considera-se o traje de folguedo como “indumentária usada nas festas, nos
divertimentos, nas brincadeiras populares”1.
Dentre as inúmeras questões levantadas para a pesquisa, uma se destaca
como hipótese ou pergunta principal:
A trajetória dos trajes de cena do teatro popular, enquanto
expressão artística de uma comunidade, seja
marginalizada ou fomentada por quem possui poder,
representa visualmente a história das artes cênicas, sendo
1
Ibid., p. 11.
15
estes trajes constituídos por características culturais do
contexto em que estão envolvidos?
Com base na hipótese, busco alcançar uma reflexão teórica diretamente
relacionada à prática teatral e à experiência cultural dos artistas populares.
O recorte temático principal partiu do teatro contemporâneo popular brasileiro (com
foco nas tradições nordestinas), recaindo sobre a experiência do ator paraibano José
Maciel e sua formação como brincante popular, seu trabalho com trajes e
posteriormente, o trabalho com a Cia Oxente de Atividades Culturais (daqui em diante
identificada apenas por Cia Oxente). Maciel representa, nesta pesquisa, uma longa
linha de tradição na criação de personagens populares do Nordeste e a Cia Oxente
simbolicamente retrata muitas outras companhias e modos de produção brasileiros.
Os objetivos específicos envolviam discutir os trajes de cena e de folguedo,
suas particularidades e interseções; relacionar os trajes de cena do teatro popular com
os trajes de folguedo e analisar os figurinos do ator José Maciel e as associações com
trajes de folguedo.
A justificativa principal deste estudo era a lacuna existente na área dos trajes
de cena no que se refere ao teatro popular – em verdade, ainda são poucas as
pesquisas nesta área no país e no mundo, de forma geral, como tem sido percebido
nas apresentações do Critical Costume, um evento que reúne pesquisadores de traje
do mundo todo. Ainda que as pesquisas estejam se expandindo, há um longo e
oportuno caminho a percorrer.
Há alguns anos, as discussões sobre traje de cena passaram a ser mais
frequentes no Brasil. Utilizando o conceito de traje de cena, o prof. Fausto Viana no
livro Figurino teatral e as renovações do século XX, publicado em 2010, demonstra
que o traje de cena influenciou o trabalho de grandes encenadores, assim como foi
influenciado pelas novas práticas teatrais do século XX. Em nosso país, posso dizer
que não existem mais de 50 livros publicados sobre figurino teatral especificamente.
Entretanto, esse número está crescendo, pois estamos falando de um campo de
pesquisa em expansão. Teses, dissertações, monografias e artigos têm se dedicado
a essa temática, que está cada vez mais presente nos eventos acadêmicos. Ao refletir
sobre a cultura popular, poucos estudos investigaram com profundidade os trajes dos
folguedos. É comum ler apenas uma descrição do que está sendo apresentado, as
formas, materiais e efeitos obtidos com os trajes.
16
A metodologia aplicada nesta pesquisa é qualitativa, realizada através de
estudo teórico sobre o traje de cena e de folguedo, e análise de exemplo a partir de
história oral. A experiência de vida dos participantes é o foco dessa pesquisa. De
acordo com Miriam Goldemberg (2004), a pesquisa qualitativa tem como base a
interpretação das experiências dentro do contexto em que foram realizadas, com isso
a compreensão da perspectiva dos sujeitos é de fundamental importância, a partir da
expressão espontânea de cada um deles.
Como metodologia de trabalho, foram feitos levantamentos e estudos
bibliográficos e de campo, observando o trabalho de companhias populares de teatro
e sua criação de trajes. Foram também realizadas entrevistas e levantamento
iconográfico de todos os temas ligados à pesquisa, principalmente nos acervos
pessoais de José Maciel e da Cia Oxente. Inicialmente, já estava previsto a redação
de um documento síntese, com fortes elementos visuais entrelaçados ao texto e
fazendo parte dele como o urdume e a trama se sustentam em um tecido plano. Não
há imagens ilustrativas: elas compõem o texto - mais que isso, elas são texto.
O documento síntese, a tese propriamente dita e que está em suas mãos, está
dividido da seguinte maneira:
- A primeira seção é esta introdução;
- A segunda seção apresenta as definições de traje de cena, cultura e teatro
popular;
- A terceira seção traça uma breve trajetória dos trajes de cena ao redor do
mundo;
- A quarta seção traça um painel do que vestiu o teatro popular na América
Latina e no Brasil;
- A quinta seção trata de José Maciel e a Cia Oxente, evidenciando a escolha
pelo estudo de caso, mediante suas características particulares de envolvimento do
grupo com a comunidade. É o momento de apresentar José Maciel e a Cia Oxente,
expor os trajes de cena de alguns momentos do grupo e suas relações com os trajes
de folguedo e outras referências. Para isso foram escolhidos cinco espetáculos, dos
quais Maciel participou efetivamente e possuem um vínculo maior com a cultura
popular nordestina e suas tradições.
- Conclusão, em que aponto as principais descobertas feitas ao longo da
pesquisa.
Maciel e a sua Cia Oxente são exemplos da interseção entre a cultura popular
17
nordestina e o teatro. Ao longo de mais de 30 anos de atividades artísticas, Maciel e
a Cia Oxente sempre representaram o contexto social, político e estético do Nordeste.
Os espetáculos da Cia Oxente são recheados de referências da cultura popular, de
onde os próprios atores e integrantes do grupo são participantes. Mesmo sem
alcançar grande visibilidade, o grupo de jovens atores saiu da cidade de Alagoa
Grande no Agreste paraibano, e hoje tem sede na capital permanecendo em plena
atividade, o que me permitiu ter fácil acesso às montagens, documentos e relatos,
fator crucial para o desenvolvimento dessa pesquisa que agora é entregue para
avaliação.
Toda pesquisa tem uma trajetória. Esta, cuja introdução aqui se encerra, vem
de uma longa jornada que passa por caminhos que não só o acadêmico per se (olha
o latim...), mas sim um conjunto de vivências de dor, alegria, ansiedades, encontros e
despedidas que – esperamos - possa ter longa vida e abrir espaço para outras
pesquisas. Por isso, do bardo, em sua origem popular, dizemos: Não nos repreendam!
Deem-nos suas mãos e tudo ficará bem!
Mas pelo lado do paraibano, clamamos: “Valha-nos, Compadecida!”
Boa leitura.
18
2 DEFINIÇÕES
Para dar início a essa trajetória apresentamos as definições fundamentais para
esta pesquisa: traje de cena, cultura e teatro popular. O conceito de traje de cena,
definido pelos pesquisadores Fausto Viana (2017), Donatella Barbieri e Sofia
Pantouvaki (2016), está acompanhado de uma proposta de metodologia de estudo
sobre estes trajes, baseado nas teorias de Susan Pearce (2003), Edward McClung
Fleming (apud PEARCE, 2003) e James Laver. A cultura é abordada através dos
teóricos Zygmunt Bauman (2012) e Néstor García Canclini (2015). Para concluir esta
seção, trazemos o teatro popular sobre a ótica de Patrice Pavis (1999; 2017), Brooks
McNamara (2003) e Augusto Boal (1979).
2.1 Traje de cena
“O traje de cena é definido como a indumentária das artes cênicas. O termo,
mais amplo que traje teatral, pode abranger trajes de teatro, dança, circo, mímica,
performance (no sentido mais contemporâneo do termo), shows, espetáculos...”
(VIANA; BASSI, 2014, p. 11). Também é comum observar a utilização da palavra
figurino, para designar traje de cena, todavia, segundo o professor Fausto Viana
(2015), o uso deste termo gera um conflito, pois as figuras de moda nas revistas do
século XIX eram denominadas de figurinos.
No editorial da primeira edição da revista Studies in Costume and Performance,
as pesquisadoras Donatella Barbieri e Sofia Pantouvaki compartilham a definição de
traje de cena apresentada por Elizabeth Goepp, em 1926, como “material teatral, a
matéria de que é feito o drama. O figurino tem, ou deveria ter, uma filosofia própria,
tão certamente quanto a arquitetura; e o traje teatral, mais particularmente do que o
traje social, embora as tendências sociais influenciem ambos” (GOEPP, 1926, apud
BARBIERI, PANTOUVAKI, 2016, p. 3, tradução nossa). O traje de cena é aquilo que
veste o personagem e por isso pode ser considerado material teatral. Ademais,
observamos desde já que os trajes sociais influenciam os trajes de cena, sendo o
teatro um reflexo da sociedade.
Para além desse conceito, Barbieri e Pantouvaki (2016) propõem analisar o
traje de cena como campo expandido, indo além da representação histórica precisa,
compreendendo o traje no contexto das artes cênicas, como a preparação do
19
ator/performer para a cena/performance. Para realizar esse estudo é necessário
considerar as referências “socioculturais e políticas implícitas em seus vários
contextos geográficos e históricos” (BARBIERI, PANTOUVAKI, 2016, p. 4).
Entretanto, pouco se tem refletido sobre as condições de criação e produção
de trajes do teatro ou das manifestações populares: a maior parte dos trabalhos se
relaciona a períodos históricos específicos, grandes espetáculos ou artistas
proeminentes. De certo modo, a investigação sobre trajes das manifestações
populares reflete as pesquisas feitas em história da indumentária e da moda, que até
muito recentemente se basearam muito fortemente nos trajes de classes sociais mais
elevadas, como os nobres e burgueses. Em princípio, pode-se pensar que o olhar
direcionado aos trajes das classes menos privilegiadas teria sido enviesado, julgando
os trajes pelos critérios de sua valorização financeira. É bem verdade que não se deve
desprezar essa possibilidade, mas há outras questões que permeiam o estudo dos
trajes sociais e de como eles foram parar, literalmente, em cena.
Um traje é um objeto, ou como define Susan Pearce2, um artefato, “objeto feito
pelo homem através da aplicação de processos tecnológicos” (PEARCE, 2003, p. 125,
tradução nossa). O traje pode ser constituído por diferentes materiais, orgânicos como
o linho, a seda e o algodão, ou sintéticos como o poliéster e o elastano, por exemplo.
Com o passar do tempo, o desenvolvimento técnico de novas matérias e modos de
produção, facilitaram o acesso à aquisição de novos trajes para a população. Todavia,
os museus possuem em seus acervos mais antigos, trajes de pessoas nobres,
burguesas ou de alta patente (religiosa ou militar), devido as melhores condições de
produção e manutenção desses artefatos ao longo dos anos.
Um bom exemplo é o vestido à l’anglaise, de 1780, estudado pelos professores
Fausto Viana e Isabel Italiano em visita à reserva técnica do Victoria and Albert
Museum, descrito no livro Para vestir a cena contemporânea: Moldes e moda no Brasil
do século XVIII (2018). Esse traje, conforme a imagem 01, foi originalmente
confeccionado em algodão estampado com flores. A escolha por esse tecido e a falta
de adornos indicam que o traje poderia ser usado em dias quentes para reuniões de
chá ou jogo de cartas (VIANA; ITALIANO, 2018).
2
Susan Pearce é professora emérita de Estudos Museológicos da Universidade de Leicester, no Reino
Unido. Seu principal foco de estudo são as relações humanas com o mundo dos artefatos e a natureza
e o processo de colecionar. Susan estudou história e arqueologia na Universidade de Oxford.
20
Imagem 01 – Vestido à l’anglaise, estudo realizado pelos professores Fausto Viana e Isabel
Italiano na Reserva Técnica do V&A Museum.
Fonte: VIANA; ITALIANO, 2018, p. 227-228.
Como é possível observar, o traje carrega em si “informações únicas sobre a
natureza do homem na sociedade” (PEARCE, 2003, p. 125, tradução nossa). O
estudo dos trajes e a preservação dos acervos são fundamentais para acessar tais
informações sobre a humanidade em outros períodos. Esse conteúdo pode ser
encontrado a partir da resposta de simples perguntas, como em um roteiro jornalístico:
● O quê? Define o traje.
● Quem? A pessoa que utilizou e/ou confeccionou.
● Quando? O período que foi feito.
● Onde? O lugar.
● Como? O processo de confecção.
● Por quê? O motivo (PEARCE, 2003).
Tais respostas evidenciam aspectos importantes sobre o traje, as pessoas
envolvidas, o período e o lugar, além de esclarecer sobre o modo de produção e sua
razão.
Pearce define quatro áreas principais para o estudo de um traje (artefato):
21
“material, que inclui matéria-prima, design, construção e tecnologia; história,
que inclui um relato descritivo de sua função e uso; contexto, envolvendo
todas as suas relações espaciais; e significado, que abrange suas
mensagens emocionais ou psicológicas” (PEARCE, 2003, p. 126, tradução
nossa).
A interpretação do traje será obtida por meio do entendimento e análise dessas
características. Uma condição importante para os estudos comparativos de trajes é a
maneira de abordar a qualidade do objeto, sem julgar apenas os valores relacionados,
mas, principalmente, avaliando as particularidades e justificativas.
Através de um modelo para estudo de artefatos proposto por Edward McClung
Fleming, em 1974, que utilizava a classificação do artefato a partir de sua história,
material, construção, design e função, relacionados a informações suplementares,
com base na identificação e posterior interpretação, Pearce3 desenvolveu o modelo a
seguir, observando que todo artefato pode ser definido pelo material utilizado, história,
contexto e significado. A professora emérita de Leicester estabeleceu oito etapas. As
três primeiras etapas estão relacionadas ao material do artefato, a quarta etapa é
dedicada ao contexto histórico, as etapas cinco e seis abordam o contexto do artefato,
a etapa sete analisa o significado e a última etapa é dedicada à interpretação.
1. Definindo sua construção e ornamentação por meio de descrição
detalhada do artefato;
2. Comparando o design e outras características com outros objetos, com
o intuito de identificar tipologias;
3. Caracterizando esse artefato por sua proveniência e técnicas utilizadas
em relação a outros objetos;
4. Considerando a sua própria história e as subsequentes que se
desenvolveram a partir dele, e sua função prática, reconhecendo essas
informações em pesquisas relevantes sobre o período e técnicas
utilizadas;
5. Analisando o contexto micro e o macro através da pesquisa;
6. Estudando a localização espacial e relacionando com os modelos
próximos;
7. Analisando o significado por meio de sistemas filosóficos e psicológicos;
8. Identificando o papel do artefato na organização social, os estudos
anteriores, o saber cultural e as técnicas relacionadas (PEARCE, 2003,
p. 129, tradução nossa).
3
Ibid.
22
Imagem 02 – Modelo de proposta para estudos de artefatos desenvolvido por Susan Pearce
(2003), a partir de versão de E. McClung Fleming de 1974.
Fonte: PEARCE, 2003, p. 129, tradução nossa.
Dentro desse estudo, o ponto inicial é a descrição física do objeto, seguido pela
análise comparada de vários aspectos com outros artefatos, reconhecendo a história
e função prática, dentro do contexto micro e macro, a localização e relações dentro
do campo envolvido, além da compreensão do significado pelos sistemas disponíveis
e, por fim, a interpretação baseada nos estudos da tradição cultural e das técnicas
aplicadas.
23
Com base no modelo proposto por Pearce (2003), é possível desenvolver
pesquisa com diferentes objetos, desde obras de arte, esculturas, pinturas, gravuras,
máscaras, objetos arqueológicos, utilitários, inclusive têxteis e trajes. As informações
contidas nesses artefatos apresentam de maneira entrelaçada diferentes aspectos,
sendo eles: sociais, culturais, políticos e de desenvolvimento humano.
James Laver (1899-1975), historiador inglês e curador do Departamento de
Gravura, Ilustração e Design do Victoria and Albert Museum (1922-1959), foi um
teórico importante para os estudos do traje e da moda, embora esse não fosse o
objetivo dele inicialmente. Segundo o professor Fausto Viana, “foi por razões técnicas
que ele fez um levantamento preciso, um arquivo de trajes que pudessem ajudá-lo na
identificação de peças e pinturas” (VIANA, 2017, p. 221). Para compreender melhor o
acervo iconográfico do museu, Laver começou a identificar pelos trajes os períodos
retratados nas pinturas e gravuras. O material desenvolvido por Laver apresenta
reflexão apurada sobre contexto histórico e temporalidade, devido ao estudo
minucioso de cada obra. As fontes de pesquisa utilizadas por ele foram os acervos
dos museus e coleções particulares, através de manuscritos iluminados, túmulos
esculpidos, catedrais, esculturas, monumentos, desenhos, gravuras, pinturas,
bonecas da moda (as pandoras) e as fashion plates (desenhos de moda)4.
Compreendendo que o traje das artes cênicas pode ser considerado um
artefato, seguindo os estudos de James Laver e a metodologia proposta por Susan
Pearce, propomos o seguinte roteiro para estudar trajes de cena:
4
Ibid.
24
Tabela 01 – Proposta de roteiro para estudar Trajes de Cena
Área Etapas Informações
Material Descrição física Traje em si
Materiais utilizados Fotografia
Modelagem Descrições
Método de confecção Croqui
Desenho técnico
História História do traje Datação
Dramaturgia Pesquisa bibliográfica,
documental e iconográfica
Artefatos do mesmo período
Contexto Micro Análise dramatúrgica
Macro Pesquisa documental
Significado Conceito Aspectos filosóficos,
psicológicos e estéticos
Forma, cor e conteúdo
Interpretação O papel do traje na cena Aspectos culturais e sociais
Comparação com outros
artefatos
Fonte: Desenvolvido pela autora.
A tabela apresenta uma proposta de roteiro para estudo de trajes de cena,
observando o maior número de informações contidas nele ou em outros suportes que
se relacionem com ele. A primeira área de estudo é a material, onde deve ser feita
uma descrição detalhada do traje, incluindo os materiais que foram utilizados, a
modelagem e o método de confecção, levando em consideração que os trajes de
cena, às vezes, utilizam técnicas e materiais não convencionais na sua elaboração.
Essa primeira etapa tem como referências importantes o próprio traje de cena,
fotografias do espetáculo, descrições em material gráfico ou publicitário (como folders,
programas, entrevistas e notícias de jornal), também é possível obter informações no
croqui e desenho técnico do traje.
É importante destacar que nem sempre será possível aplicar esta proposta em
sua totalidade, porque muitas informações se perdem ou são omitidas ao longo do
tempo.
Para Viana (2017), o traje pode mostrar características de mobilidade, postura,
estrutura, movimento, peso, volume, assim como a provável data de criação do traje
pelo estudo da modelagem. O traje pode ser visto como documento social e
econômico. O croqui também é um documento, pois pode conter identificação da
produção, proposta para o corte, descrição do traje, assinatura do figurinista e amostra
de tecido. Da mesma forma o desenho técnico, as fotografias e os materiais impressos
também são documentos suplementares ao traje.
25
A história é a segunda área de estudo do traje de cena, englobando a história
do traje e sua função inserida na dramaturgia. Para tanto, é necessário desenvolver
pesquisa bibliográfica, documental e iconográfica, objetivando alcançar mais
informações sobre o período histórico do traje, assim como sua função social e
especificidades. Naturalmente, o estudo do traje na história da indumentária não se
limita ao objeto em si, mas também às suas representações, que podem ser obtidas
em esculturas, pinturas, desenhos, croquis, baixos-relevos, gravuras, fotografias,
tomando como exemplo o trabalho de James Laver, em meados do século XX, no
Victoria and Albert Museum.
A terceira área de estudo está relacionada ao contexto que envolve o traje de
cena, em aspecto micro, observando as relações diretas e mais próximas ao traje e
também macro, englobando questões sociais, culturais e políticas mais abrangentes.
Essas etapas devem ser estudadas através da análise da dramaturgia em questão,
observando o espaço e o tempo onde se localizam a encenação, e pode ser
complementado por outras fontes documentais disponíveis.
A quarta área aborda o significado do traje de cena, através da conceituação
do mesmo, analisando aspectos filosóficos, psicológicos e estéticos relacionados à
encenação. O conceito abordado tem relação com os resultados desejados pela
produção do espetáculo, que pode envolver o encenador, o dramaturgo, o cenógrafo
e até mesmo os patrocinadores. Essa abordagem pode ser realizada pelo ponto de
vista do personagem e suas características essenciais e também pelo sistema em que
está inserido.
A última área de estudo é a interpretação, que coroa todo o processo de
pesquisa e análise do traje de cena, identificando o papel do traje, por meio do
intercruzamento de todas as informações obtidas nas etapas anteriores, resultando
em uma reflexão aprofundada sobre a função do traje de cena relacionando as
características físicas e todos os outros aspectos, que aparentemente são invisíveis,
porém estão descritos de alguma forma no traje e na encenação. A comparação com
outros artefatos expande e potencializa a compreensão do traje de cena.
De forma resumida, um possível passo a passo para estudar trajes de cena
seria:
1) Descrever detalhadamente o traje, materiais utilizados, modelagem e
confecção;
26
2) Apresentar a história do traje e sua relação com a dramaturgia;
3) Expor o contexto micro e o macro que envolvem o traje e a encenação;
4) Conceituar o traje dentro de parâmetros filosóficos, psicológicos e
estéticos do personagem e da encenação;
5) Interpretar o traje de cena a partir de todas as informações anteriores.
Os estudos de traje de cena, assim como da indumentária, se confundiram por
muito tempo com relatos descritivos, com o surgimento de historiadoras mulheres -
que lançaram um novo olhar para esta área de estudos que era anteriormente
dominada pelo olhar masculino academicista e, não raro, machista - e o
desenvolvimento constante de novas teorias, esse campo de estudo tem crescido
bastante. Porém, ainda existem lacunas no acesso às informações e condições
favoráveis à pesquisa. Como disse Pearce: “nem todo o material agora em nossas
coleções é capaz de responder a essas abordagens, nem podemos esperar estudar
todo o nosso material com a mesma profundidade” (PEARCE, 2003, p. 131, tradução
nossa).
Não se pode negar que o traje da cena, seja ele popular ou não, é parte dos
estudos da indumentária humana. Assim sendo, o traje de cena e o traje de uso social
vivem em permanente intercâmbio no que se refere à moda e construções artísticas.
Há uma ligação entre o ser humano – primitivo, ancestral, moderno, contemporâneo -
e aquilo que ele veste. Há uma permanente permuta entre os trajes do cotidiano e os
trajes dos rituais, dentre eles os que levam ao espetáculo teatral.
2.2 Cultura
Entendemos cultura como um conjunto de fatores que identificam e distinguem
determinados grupos das sociedades. Esses fatores estão relacionados a
comportamentos, crenças religiosas, morais e intelectuais. Dessa forma, grupos são
formados e povos identificados por essas características. Naturalmente, os trajes –
sociais, profissionais, de cena... - que compõem estes grupos e povos são elementos
integrados ao todo.
O mundo é composto por grupos sociais heterogêneos e não devem ser
observados pelos mesmos padrões. Sobre isso, Zygmunt Bauman (1925-2017),
filósofo polonês, coloca que: “a cultura, tal como a vemos em termos universais, opera
27
no ponto de encontro do indivíduo humano com o mundo que ele percebe como real”
(BAUMAN, 2012, p. 227). A cultura está diretamente relacionada à experiência de vida
do indivíduo e às relações que o cercam, e está vinculada à materialidade assim como
a aspectos subjetivos.
O conceito de cultura é a subjetividade objetificada: é um esforço para
compreender o modo como uma ação individual é capaz de possuir uma
validade supraindividual; e como a realidade dura e consistente existe por
meio de uma multiplicidade de interações individuais (BAUMAN, 2012, p.
227).
A cultura, para Bauman, conecta experiência individual a história social, de
forma que todos os conceitos de cultura estão relacionados ao comportamento
humano. A riqueza cultural de determinada comunidade, na maioria das vezes, é
exposta como produto, quando na verdade os ideais basilares dessa cultura são mais
profundos e são a essência subjetiva do objeto/resultado. Não devemos tropeçar no
senso comum, ao encarar uma expressão cultural como algo universal. Para que isso
não aconteça, é preciso estar atento às particularidades de cada cultura, levando em
consideração os valores imateriais, além dos produtos apresentados.
Outro ponto que queremos ressaltar é a dualidade presente na explanação de
Bauman sobre cultura, que compreende e conserva algo já existente, mas também
está disponível para o novo. “Criatividade e dependência são dois aspectos
indispensáveis da existência humana, não apenas condicionando-se, mas
sustentando-se mutuamente”5. Os indivíduos e suas culturas estão permanentemente
nessa dinâmica entre a manutenção do que está posto e a capacidade criadora.
Existem diferentes culturas, para o professor e historiador Alfredo Bosi (1936-
2021):
a cultura erudita cresce principalmente nas classes altas e nos segmentos
mais protegidos da classe média, ela cresce com o sistema escolar. A cultura
de massa, ou indústria cultural corta verticalmente todos os extratos da
sociedade, crescendo mais significativamente no interior das classes médias,
e a cultura popular pertence, tradicionalmente, aos extratos mais pobres, o
que não impede o fato de seu aproveitamento pela cultura de massa e pela
cultura erudita (BOSI, 1992, p. 326).
Essa classificação traz uma categorização possível para os fenômenos
culturais. Neste trabalho, nos aproximamos da cultura popular como manifestação das
5
Ibid., p. 154.
28
características de uma comunidade, de um povo, seja no nível nacional ou regional.
Não nos interessa fazer nenhum juízo de valor, mas destacar que as tradições
populares acontecem comumente em lugares periféricos e com alto nível de
desigualdade social.
Para além de uma relação dicotômica, o antropólogo argentino Néstor García
Canclini (1939-1978), no livro Culturas Híbridas (2015), apresenta o hibridismo como
uma característica da contemporaneidade, onde os limites das culturas de massa,
erudita e popular estão cada vez mais invisíveis, o que percebemos são as influências
de uma sobre a outra. O Brasil, por exemplo, possui uma vastidão de manifestações
populares e expressões, como rituais, festas e artesanato, descritos em textos do final
do século XIX. Algumas dessas tradições populares estão – na atualidade – inserindo
elementos modernos por influência das tecnologias digitais e principalmente para
atrair mais público. Os desfiles carnavalescos no Brasil, por exemplo, a cada ano
apresentam novas fantasias com elementos tecnológicos surpreendentes. Em 2015,
a Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel vestiu uma porta-
bandeira6 com um traje que tinha um efeito de fogo durante o desfile. Este traje foi
criado pelo carnavalesco Paulo Barros (1962 -) que é reconhecido pelas inovações
que insere nos desfiles que ele assina.
Imagem 03 – Traje com fogo da porta-bandeira, Lucinha Nobre, da Escola de Samba
Mocidade Independente de Padre Miguel, Rio de Janeiro, 2015.
Fonte: Disponível em: http://s2.glbimg.com/mS-ysSb_Ge_F4gJ5stklXFF-
E9c=/620x0/s.glbimg.com/jo/eg/f/original/2015/02/16/img_2976.jpg Acesso em: 16 set. 2021.
6
A porta-bandeira de uma escola de samba está sempre acompanhada do mestre-sala, ambos são
responsáveis por desfilar apresentando a bandeira da escola que representam.
29
As formas híbridas de cultura são uma mistura das tradições populares e
manifestações modernas e estão se tornando cada vez mais comuns. A autenticidade
e a renovação da atividade popular e sua adaptação à modernidade abrem o caminho
para a transformação das tradições.
Seguindo o nosso raciocínio, a arte pode ser vista como elemento essencial
para cultura, como expressão da voz, do corpo, do olhar e da consciência de um povo.
Para o professor Durval Muniz Albuquerque Júnior (2011, p. 215), “a arte deve não só
representar o real, mas explicá-lo, descobrindo o processo social que o determina”.
Do ponto de vista da representação do real, existem muitos questionamentos, pois a
arte nem sempre está preocupada com questões literais e materiais, porém, se
olharmos com atenção, o que nos interessa do ponto de vista cultural é o processo
social determinante que envolve a obra de arte. A arte irá apresentar, mesmo que
subjetivamente, as características do povo que a produziu, através dos materiais
utilizados, das formas trabalhadas e da estética produzida - e é neste contexto que,
mais uma vez, incluímos os trajes, principalmente os das artes cênicas (teatro, circo,
dança, performance e outras).
Dessa forma, entendemos que existem culturas populares, pois cada grupo se
diferencia do outro, com características estéticas, comportamentais e ideológicas
peculiares. Assim, não é possível falar de processo de evolução, o que reafirmaria o
caráter supostamente menor das culturas populares. O mais adequado é lidar com as
transformações que aconteceram na história e as mudanças de cada época. No nosso
caso, o traje é um registro precioso de como essas transformações são registradas
visualmente.
Viana (2018) propõe três categorias para trajes: traje eclesiástico (utilizado
pelos sacerdotes e sacerdotisas em seus rituais), traje militar (utilizado pelos
profissionais das forças armadas e especiais em serviço) e traje civil (utilizado pelo
cidadão em geral). O traje civil, por sua vez, está subdividido em traje social (“são as
roupas dos eventos sociais”7), traje de cena (“a indumentária das artes cênicas”8),
traje regional (“é o característico da região”9), traje profissional (“usado nas atividades
profissionais exercidas pelos civis”10), traje interior (“ou roupa interior, ou íntima [...],
7
Ibid, p. 65.
8
Ibid, p. 65.
9
Ibid, p. 65.
10
Ibid, p. 65.
30
tudo aquilo que vai por dentro ou por baixo do traje externo”11), traje de folguedo
(“indumentária usada nas festas, nos divertimentos, nas brincadeiras de caráter
popular”12), traje fúnebre (“é aquele com o qual o morto está vestido na hora do
sepultamento”13), traje esportivo (utilizado para a prática de atividades físicas e
esportes), traje associacionista (“trajes que distinguem sociedades especiais
formadas para fins particulares dentro de grupos sociais maiores”14) e traje etnográfico
(indumentária exclusiva de comunidades específicas que demonstram aspectos
sociais e culturais da mesma).
Imagem 04 – Indígenas da tribo Ticuna, Amazonas, c. 1865.
Fonte: Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ticunas#/media/Ficheiro:Indios_amazonas_1865_00.jpg Acesso
em: 16 set. 2021.
Os trajes dos indígenas brasileiros podem ser considerados trajes etnográficos
e englobam os trajes e adornos corporais utilizados por eles. Esses trajes são tecidos
manualmente com fibras naturais, os adornos confeccionados com os materiais
disponíveis na natureza e os pigmentos são de origem vegetal e mineral. Após a
colonização no Brasil, algumas tribos foram perdendo características desse traje
11
Ibid, p. 66.
12
Ibid, p. 66.
13
Ibid, p. 66.
14
Ibid, p. 66.
31
etnográfico. Observamos a utilização de trajes sociais por parte de muitos indígenas
atualmente e compreendemos essa mudança como consequência do contato com
outras culturas, devido à invasão das Américas pelos europeus, podendo ser
considerado um exemplo de hibridismo cultural.
A noção de cultura é flexível, e está refletida nas mudanças sociais que
acontecem ao longo do tempo. Na América Latina, isso está cada vez mais nítido,
estamos imersos em muitas culturas que se distinguem e ao mesmo tempo se
conectam por diferentes motivos. Essa relação pode ser observada desde as origens
ritualísticas do que viria a ser o teatro popular latino-americano, ao qual nos
dedicaremos adiante neste trabalho. O traje de cena e o traje de folguedo, neste
sentido, são importantes objetos que revelam como essa mistura dos mais diferentes
elementos e pessoas que interagiram no ambiente latino-americano, o Brasil aqui
incluído, e deixaram suas marcas e influências vestimentares.
2.3 Teatro Popular
O teatro popular é uma vertente dentro das artes cênicas e pode ser definido
de diferentes formas, com múltiplos sentidos. Para Patrice Pavis, professor da
Universidade Paris VIII, “a sociologia da cultura define assim uma arte que se dirige
e/ou provém das camadas populares. A ambiguidade está em seu auge quando nos
perguntamos se se trata de um teatro originário do povo ou destinado ao povo”
(PAVIS, 1999, p. 393). Essa condição multifacetada acontece devido às diversas
interpretações do termo “popular”. Muitos teóricos se dividem em conceituações, o
que gera muitos significados.
José Jorge de Carvalho, professor de antropologia na Universidade de Brasília,
diz que a pluralidade do popular existe porque está imersa na “diversidade de
interesses, dada pela heterogeneidade dos segmentos que o compõe” (CARVALHO,
2000, p. 37). Esses interesses envolvem questões sociais e políticas, de manutenção
e valorização dos hábitos e costumes de uma comunidade.
Uma definição oferecida por Patrice Pavis no Dicionário de Teatro, publicado
pela primeira vez em francês em 1996, apresenta a ideia de que o teatro popular
atualmente está vinculado a uma noção mais sociológica do que estética do termo,
sendo constituído como uma forma artística que provém do povo. Para esclarecer
essa ideia, Pavis recorre às noções que se opõem ao teatro popular, sendo elas:
32
- o teatro elitista, erudito, o dos doutos que ditam as regras;
- o teatro literário que se baseia num texto inalienável;
- o teatro de corte cujo repertório se dirige, no século XVII, por exemplo, aos
altos funcionários, aos notáveis, às elites aristocráticas financeiras;
-o teatro burguês (boulevard, ópera, setor de teatro privado, do melodrama e
do gênero sério);
-o teatro italiano, de arquitetura hierarquizada e imutável que situa o público
à distância;
-o teatro político que, mesmo sem ser vinculado a uma ideologia ou um
partido, visa transmitir uma mensagem política precisa e unívoca PAVIS,
1999, p. 393.
Essas expressões teatrais possuem alguns pontos de interseção entre si. São
eles: condição de superioridade e consequente destaque ou separação de grupos
sociais; obedece a cânones rígidos e hierarquias e, por fim, visam o lucro ou a
aceitação social. Todavia, essa definição por oposições apresenta um caráter
generalizador do teatro popular, tendo em vista que constitui um verbete de dicionário
e se exige rapidez e facilidade para compreensão do conceito apresentado nesse
formato.
Existem outros aspectos que identificam o teatro popular e não apenas a sua
vinculação ao povo. O próprio Pavis15 segue dizendo que a identidade do teatro
popular não está muito bem definida, ainda mais na contemporaneidade, onde a
cultura de massa tem afetado as tradições populares, com a inserção de elementos
alheios a localidade, consequência do avanço tecnológico e da globalização.
Atualmente, a ideia de popular tem se aproximado das tradições de um povo.
“A cultura popular é a cultura que provém do povo, no artesanato, nas artes e nas
técnicas. [...] Trata-se de uma cultura feita pelo povo e para o povo. As festas, as
cerimônias, as danças folclóricas, as dramatizações pertencem a esse teatro popular”
(PAVIS, 2017, p. 248).
Seguindo esse pensamento, Pavis16 acrescenta que o espetáculo popular
assumiu novas formas desde a década de 1990, com a influência da globalização,
trazendo espetáculos globalizados para as grandes massas. Peças rentáveis, que
apresentam referências da cultura popular ressignificadas juntamente com elementos
de outras culturas e de diferentes linguagens, para o público com interesses
globalizados. Suscitam assim mais um questionamento sobre a relação arte, arte
15
Ibid.
16
Ibid.
33
popular e consumo de massa; todavia, essa discussão exige aprofundamento que não
será contemplado aqui, tendo em vista o panorama histórico que define este trabalho
e o foco sobre os trajes de cena.
Outra definição sobre teatro popular observada, parte da cenografia. Brooks
McNamarra, historiador e professor norte-americano, no texto A cenografia do
espetáculo popular17, publicado no Manual do Teatro Popular de Joel Schechter,
afirma que o teatro popular pode ser dividido em 7 categorias, sendo elas:
1. Estandes e outras organizações espaciais para artistas de rua;
2. Teatros improvisados;
3. A cenografia do teatro de variedades;
4. A cenografia do teatro popular;
5. Espaços de performance dedicados ao espetáculo ou efeitos
especiais;
6. Formas processuais;
7. Ambientes de entretenimento como o desfile de carnaval e o parque
de diversões, onde o próprio espectador organiza o evento (MCNAMARA In:
SCHECHTER, 2003, p.12, tradução nossa).
Imagem 05 – Os charlatões italianos, de Karel Dujardins, 1657.
Fonte: Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Karel_Dujardin_-
_Les_Charlatans_italiens.jpg Acesso em: 06 abr. 2021.
17
Esse texto foi inicialmente publicado em The Drama Review, vol 18, nº. 1, 1974. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/i247915 Acesso em: 11 jun. 2021.
34
O primeiro ponto está destinado aos artistas de rua (imagem 05), comumente
nomeados como charlatões, vendedores de produtos milagrosos ou serviços de
qualidade duvidosa. Esses trabalhadores autônomos se apresentavam de forma
itinerante nas feiras e praças públicas, com uma plataforma simples e alta, para que
se destacassem no meio da multidão, poderia ser um tablado, uma caixa ou até uma
carroça, ornamentada no tema da apresentação (MCNAMARA In: SCHECHTER,
2003). Nessa categoria também estão inseridos os espetáculos teatrais da Commedia
dell’Arte, tema que abordaremos na próxima seção.
O segundo ponto demonstra uma característica fundamental do teatro, o
desejo por um ambiente adequado à representação. Os teatros improvisados surgem
com a vontade de organização e também de controle do público e dos ingressos
vendidos. A estrutura poderia até ser simples, mas sempre enfeitada para atrair mais
espectadores, alguns desses espaços possuíam uma varanda na parte frontal, onde
os performers convidavam o público a adentrar na sala. McNamara18 apresenta o peny
gaff - teatro improvisado em galpões, estábulos ou salas para a classe trabalhadora
inglesa, no século XIX - como um exemplo dessa categoria.
Imagem 06 – Penny Gaff, de Gustave Doré, ilustração do livro London, a pilgrimage, em
parceria com Blanchard Lerrold, 1872.
Fonte: Disponível em:
https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:Bpt6k10470488_f386.jpg#mw-jump-to-license
Acesso em: 06 abr. 2021.
18
Ibid.
35
O terceiro ponto aborda a especificidade do teatro de variedades, também
conhecido como vaudeville, movimento artístico do final do século XIX que se
estendeu pelo século XX, com apresentação de quadros diversos, de dança, música
e comédia. A cenografia no teatro de variedades era fixa, sem modificação entre
quadros, e as apresentações ocorriam em edifícios teatrais convencionais. O artista
mudava a visualidade do palco com seus figurinos e adereços (MCNAMARA In:
SCHECHTER, 2003). Josephine Baker, atriz e cantora, foi ícone dessa expressão
artística.
Imagem 07 – Josephine Baker, dançando Charleston, fotografia de Stanislau Julian Walery,
1926.
Fonte: Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Baker_Charleston.jpg?uselang=pt Acesso em: 06
abr. 2021
O quarto ponto traz as companhias de repertório, que viajavam pelas áreas
rurais com esquetes de melodrama, e geralmente carregavam quatro configurações
de cenário. Os painéis pintados eram a solução para a mudança de ambiente no
espetáculo. Os espaços mais utilizados eram uma cena de rua convencional, uma
floresta, uma sala simples ou cozinha, e uma sala de estar mais arrojada
36
(MCNAMARA In: SCHECHTER, 2003). Esse artefato cenográfico (o painel pintado)
perdurou por muito tempo na história do teatro e na ópera.
O quinto ponto trata de espaços construídos especificamente para os
espetáculos visando os efeitos desejados, como foi o caso das arenas e dos palcos
modificados para desfiles equestres e para os dramas aquáticos, comuns na Europa
e na América do Norte do século XIX, herança da naumachia romana19.
Imagem 08 – Performance no Sadler's Wells Theatre, gravura de Thomas Rowlandson,
publicada como Prancha 69 no Microcosm of London, 1810.
Fonte: Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sadlers_Wells_Theatre_edited.jpg Acesso em: 06
abr. 2021
O sexto ponto está relacionado aos cortejos, desfiles e procissões. Essa
experiência pode ter dois objetivos, convidar o público para assistir os espetáculos,
ou ser a apresentação em si, como é o caso dos desfiles circenses ou das paradas.
Para gerar destaque entre a arquitetura das cidades, os carros precisam ser grandes
e ricamente adereçados, para atrair os olhares e segurar a atenção do transeunte20.
19
Ibid.
20
Ibid.
37
O sétimo e último ponto apresentado por McNamara (In: SCHECHTER, 2003)
é destinado aos ambientes de entretenimento, como o desfile de carnaval e o parque
de diversões, que trabalham na lógica dos eventos fixos, e o espectador é responsável
por escolher o que quer ver ou experimentar. Os ambientes podem ser definidos em
uma área já existente, mas modificada para o evento, como é o caso das ruas e
praças, ou o ambiente autônomo, espaço dedicado exclusivamente para essa
atividade.
Essa classificação apresentada por McNamara21, assim como o verbete de
Pavis (1999), apresenta uma visão universal, com exemplos culturais dominantes.
Nessa categorização falta apresentar os espaços dos antigos festivais chineses, das
intervenções acrobáticas na Índia, do teatro de formas animadas nos salões das Ilhas
de Java, e muitos outros espaços ocupados por expressões cênicas populares há
milhares de anos. Ainda assim, existem características que coincidem em algumas
dessas ocasiões, como a presença de pessoas comuns na plateia, a abordagem de
temas/situações/crenças do imaginário popular e visualidade atrativa. De forma que
podemos afirmar que o teatro popular é uma expressão artística essencialmente do
povo, seja como temática representada, como destinatário ou como parte integrante
do processo criativo.
Nesse sentido, finalizamos este tópico destacando a definição de teatro popular
de Augusto Boal22, idealizador do Teatro do Oprimido, gênero teatral baseado na
crítica e reflexão social e caracterizado pela presença de atores e não atores em cena:
Temos assim três categorias de teatro no qual o povo se envolve; nas duas
primeiras a perspectiva do espetáculo é a perspectiva do povo; na terceira é
a dos senhores. [...]
a) Primeira categoria: do povo e para o povo.
Essa é a categoria eminentemente popular: o espetáculo é
apresentado segundo a perspectiva transformadora do povo, que também é
seu destinatário. [...]
b) Teatro de perspectiva popular para outro destinatário que não o
povo. [...]
c) Teatro de perspectiva antipovo e cujo destinatário infelizmente é o
povo. [...]
d) A nova categoria
21
Ibid.
22
Augusto Boal (1931-2009) foi diretor de teatro e dramaturgo, um dos fundadores do Teatro Arena,
foi nomeado embaixador do teatro pela Organização da Nações Unidas em 2009. O Teatro do
Oprimido, conjunto de técnicas desenvolvidas por Boal, é estudado até hoje em muitas escolas de
teatro no mundo inteiro, os livros dele já foram traduzidos para vários idiomas. Com o objetivo de
conscientização social, o Teatro do Oprimido se caracteriza pela sistematização de jogos e técnicas
para transformar o espectador em sujeito ativo da ação dramática.
38
Estas são três categorias possíveis do teatro popular, sendo que a 3ª
é definitivamente antipovo. Em todas, no entanto, existe uma característica
comum: o teatro é feito pelos artistas, o espetáculo é uma obra de arte
acabada, e este produto final é oferecido ao povo. Nós, os artistas, fazemos
arte – e o povo a consome.
Estamos agora criando uma nova categoria de teatro popular,
fundamentalmente diferente das três anteriores. Nela, o próprio povo faz o
espetáculo. Não produzimos, como artistas, um espetáculo: como técnicos,
produzimos as ferramentas a serem utilizadas pelo povo na fabricação de seu
próprio teatro. (BOAL, 1979, p.25-42)
O teatro popular proposto pela estética do Teatro do Oprimido deveria envolver
o povo em sua linha de base, ou seja, as pessoas comuns, operários e camponeses,
deveriam assumir seus papéis como atores na encenação. Essa seria a principal
função do teatro popular, levar o espectador a atuar e refletir sobre as questões sociais
que o cercam. Boal criticava a presença massiva de artistas que representavam ideais
burgueses para o povo, assim como os espetáculos sobre o povo, mas destinados à
burguesia.
Levando em consideração o cenário político de meados do século XX, no
Brasil, e o cerceamento de direitos, compreendemos o interesse em aquecer a
atividade teatral como meio de dialogar com as pessoas que não tinham acesso à
informação e seguiam o fluxo ditado pelos meios de comunicação. Assim, as
comunidades mais pobres eram capazes de discutir e se posicionar diante do
bombardeio oriundo das classes dominantes, pois Boal23 acreditava que era “através
do teatro, do cinema e da TV, que as classes dominantes inculcam no povo a sua
própria ideologia”.
O teatro popular, neste sentido, foi insistente em suas questões e os trajes de
cena colaboravam com essa criação do povo, sobre o povo e para o povo. Em um
registro da técnica de teatro jornal24, pertencente ao Teatro do Oprimido e realizada
por Augusto Boal no Areninha25 em 1970, percebemos que os trajes de cena eram
literalmente trajes sociais. Não havia preocupação em representar algo, as próprias
pessoas - atores e não atores - da forma como estavam vestidas, participavam das
cenas realizadas. A imagem 09 apresenta pessoas em cena vestindo calça, camiseta
e blusa de malha, traje social comum nos anos 1970 e ainda hoje. O traje de cena é
23
Ibid., p. 37.
24
Teatro jornal é uma técnica do Teatro do Oprimido que tem por objetivo transformar em cena teatral
uma matéria de jornal ou outro material que não tem propósito de encenação.
25
O Areninha foi um grupo experimental de teatro que, na segunda metade do século XX, funcionava
no segundo pavimento do Teatro Arena em São Paulo.
39
um elemento colaborativo no processo do Teatro do Oprimido, de forma que não
exclui ninguém da cena pela roupa que está vestindo.
Imagem 09 – Matéria da Folha de São Paulo em 24 de set. de 1970, sobre apresentação de Teatro
Jornal no Areninha.
Fonte: Disponível em:
https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=3791&keyword=TEATRO%2CTeatro%2CJornal%2Ce
sta%2CArena&anchor=4366741&origem=busca&originURL=&pd=3868a0d52fa9fa528a48980f2bae
0559 Acesso em: 09 set. 2021.
A seguir, na terceira seção, iniciaremos uma breve trajetória dos trajes de cena
no cenário mundial. Sob uma perspectiva ampliada, seguiremos refletindo sobre os
trajes em diversos modos de atuação do teatro popular, a partir de diferentes
conceitos e períodos históricos, considerando suas relações com o traje social.
40
3 UMA BREVE TRAJETÓRIA DOS TRAJES DE CENA AO REDOR DO MUNDO
Nesta seção vamos ver como diferentes culturas utilizaram o traje de cena
dialogando com o teatro popular. Os exemplos apresentados aqui formam um
panorama do traje de cena no mundo e destacamos que se tratam de alguns
exemplos aos quais obtivemos acesso durante esta pesquisa.
Iniciamos essa breve trajetória com as formas ancestrais de teatro localizadas
nas pantomimas ritualísticas das tribos indígenas isoladas, nas pinturas das cavernas
pré-históricas e nas danças mímicas que sobreviveram ao passar dos tempos, através
da representação
dos impulsos vitais primários, retirando deles seus misteriosos poderes de
magia, conjuração, metamorfose – dos encantamentos de caça dos nômades
da Idade da Pedra, das danças de fertilidade e colheita dos primeiros
lavradores dos campos, dos ritos de iniciação, totemismo e xamanismo e dos
vários cultos divinos. (BERTHOLD, 2000, p.2).
Dessas relações com as práticas ritualísticas da representação cênica, se
desenvolve também o que conhecemos hoje por teatro popular.
Donatella Barbieri (2017), professora da London College, expôs no livro
Costume in Performance, a ideia de que o artista é antes de tudo um xamã, apontando
como exemplo pinturas pré-históricas em cavernas. Barbieri identifica os xamãs
vestidos como animais, como os primórdios do traje de cena. Considera que a pintura
na caverna Trois-Frères, na região do Rio Volp, ao sul da França, representa uma
ação performativa dentro de um ritual, onde, nitidamente, uma figura humana está por
baixo da pele de um animal, entre outras representações de bisões, mamutes, cavalos
e cervos.
As pinturas na caverna Trois-Frères datam do período paleolítico superior, ou
seja, 10.000 a.C. Outras representações são citadas por Oscar G. Brockett (1991),
historiador norte americano, como as danças dramáticas egípcias para eventos
sacerdotais, que podem ser observadas em escultura em relevo nas tumbas do Egito
há cerca de 2500 anos a.C; e até um exemplo mais recente, a dança de touros, na
cerimônia Mandan O-Kee-Pa, retratada em uma pintura do artista norte americano
George Catlin, de 1832, quando o mesmo visitou essa tribo e registrou com ilustrações
cenas do ritual. Nessa pintura, especificamente, os participantes se vestem com
cabeças e peles de búfalos, e aparentam estar dançando como animais.
41
Imagem 10 - O xamã (ou um homem Imagem 11 - Desenho de Abbé H. Breuil,
disfarçado de animal). Desenho na 1920.
caverna Trois-Frères, no sul da França.
Fonte: Disponível em: Fonte: Disponível em:
http://64.130.23.120/prehistoric/trois- https://en.wikipedia.org/wiki/Cave_of_the_Troi
freres-cave.htm>. Acesso em: 18 abr. s-Frères#/media/File:Pintura_Trois_Freres.jpg.
2021. Acesso em: 18 abr. 2021.
3.1 Raízes do traje de cena
3.1.1 Índia
O Oriente é rico de representações cênicas que também podem ser
consideradas raízes do teatro popular. Não se sabe ao certo quando começou a ser
feito teatro na Índia, por exemplo: alguns historiadores estipulam que foi antes da era
cristã (BROCKETT, 1991). Para Margot Berthold (2000), a origem do teatro hindu está
relacionada à presença da dança nos templos, isso pode ser observado em mais de
3500 anos de esculturas hindus, conforme podemos observar no friso das ruínas do
Templo do Sol, no vilarejo de Konarak, Índia.
O Templo do Sol foi construído no século XIII e constitui um marco na
arquitetura indiana, pois representa literalmente a carruagem do deus Sol com cavalos
e rodas, além de ser decorada com diferentes motivos, entre eles músicos e
dançarinas. Na imagem 12 observamos as dançarinas com o busto nu, vestindo
apenas uma peça inferior que pode ser um paridhana (tecido enrolado na parte inferior
do corpo com dobras) preso por um cinto chamado mekhala. Outro aspecto é a
presença de vários adornos na cabeça, nos braços e tornozelos, além de longas
42
tranças. Características muito semelhantes a essas são reconhecidas no traje social
presente no relevo do século I a. C., que apresenta duas figuras da família real da
Dinastia Sunga em trajes tradicionais.
Imagem 12 – Dançarinas, detalhe de friso em relevo, no Templo do Sol, século XIII.
Fonte: Disponível em: http://voltaindia.blogspot.com/2010/03/konarak-o-templo-do-sol.html.
Acesso em: 07 mai. 2020.
Imagem 13 – Família real da Dinastia Sunga, relevo do século I a. C.
Fonte: Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_clothing_in_the_Indian_subcontinent#/media/File:Royal_fa
mily_Sunga_West_Bengal_1st_century_BCE.jpg
Acesso em: 11 ago. 2021.
A maior fonte de informações sobre as expressões cênicas indianas é o
Natyasastra, atribuído ao sábio Bharata, que constitui um manual com todos os
elementos da encenação indiana. O texto apresenta um conjunto de regras e técnicas
43
para atuação, dança, música e visualidade de um espetáculo. Os trajes e a
maquiagem estavam descritos também.
A maquiagem indicava a casta, a posição social, o lugar de nascimento,
assim como o período histórico. As cores eram usadas simbolicamente: o Sol
e Brahma eram dourados, deuses menores laranja, personagens de castas
altas vermelho, casta menor azul, em diante. Ornamentos como brincos,
braceletes, cintos, colares e acessórios de cabeça, diferenciavam os
personagens (BROCKETT, 1991, p. 242, tradução nossa).
Historiadores relatam que a produção teatral em sânscrito parou no século XIII,
entretanto, sabe-se que as performances continuaram no sudoeste indiano, na região
de Kerala, por atores e músicos que integravam a casta de servos de um templo, essa
performance era conhecida como Kutiyattam26. O Kathakali, forma contemporânea do
Kutiyattam, é uma dança dramática executada por homens rigidamente treinados
desde a juventude, que usam maquiagem forte e trajes volumosos que ganham
destaque com as movimentações controladas (BERTHOLD, 2000).
Os adornos utilizados no Kathakali rememoram aqueles utilizados pelas
dançarinas citadas anteriormente, porém com maior volume e intensidade. Cada
elemento visual possui um significado, localizando os pontos de energia do corpo,
também conhecidos como chacras. De acordo com o professor Fausto Viana, o
adereço de cabeça no Kathakali indica relação com a espiritualidade enfatizando a
área do chacra coronário (em cima da cabeça).
26
Ibid.
44
Imagem 14 – Kutiyattam, forma ancestral do Kathakali.
Fonte: Disponível em: https://www.thebetterindia.com/72088/traditional-folk-theatre-india/.
Acesso em: 07 mai. 2020.
O traje do Kathakali exige um procedimento rigoroso ao vestir. A professora
Laura Crow fez o registro do passo a passo que organizamos na imagem 15.
O dançarino/performer inicia o processo de montagem do traje com a
maquiagem pronta; ele usa uma calça interior, provavelmente para que fique mais
confortável com as amarrações, assim como ajuda a retenção do suor e protege as
partes íntimas. A segunda camada é responsável por dar volume aos quadris, com
uma espécie de hip pads27, e uma saia de armação construída no corpo do dançarino
com pedaços de tecido engomados, que receberá por cima uma saia plissada e
ornamentos. Para sustentar os adereços da parte superior do corpo, o dançarino veste
uma camisa e posteriormente coloca os adornos, do peitoral, ombros e braços. Em
seguida, ele irá colocar o adereço de cabeça. Esse traje permanece desde o início da
tradição até os dias atuais.
27
Hip Pads são enchimentos para o quadril comuns no século XVIII.
45
Imagem 15 – Processo de vestir um dançarino de Kathakali. Fotos de Laura Crow.
Fonte: VIANA, 2020.
46
3.1.2 China
Assim como na Índia, as danças rituais também estão na origem do teatro
chinês. Conhecidas como Wu, foram descritas pelo filósofo Mo Ti, e segundo Berthold
(2000), as dançarinas se apresentavam em estado de euforia contra desastres
naturais. Essas danças foram descritas por volta de 1000 a.C. até cerca de 400 a.C.
No século VII, surgem representações de dançarinas ritualísticas em
estatuetas de terracota. Os trajes dessas figuras são aparentemente fluidos e longos,
algumas delas apresentam mangas muito compridas que estendem os movimentos
sinuosos dos braços pelo ar. Esse elemento vai ser abordado posteriormente pela
Ópera de Pequim, forma contemporânea de teatro na China28, e será reconhecido
como mangas d’água.
O traje da dançarina se aproxima da túnica utilizada pela mulher chinesa no
mesmo período (imagem 17). Esse traje é o hanfu, indumentária tradicional chinesa,
e segundo o Site do Instituto Sociocultural Brasil-China, “o hanfu é composto por uma
túnica esvoaçante com mangas soltas e uma faixa na cintura, geralmente adornada”.
Imagem 16 - Dançarina chinesa, escultura em terracota da dinastia T’ang (618-906).
Fonte: Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/File:Tonfigur_Tänzerin_Liebieghaus_885.jpg. Acesso em: 18
abr. 2021.
28
Ibid.
47
Imagem 17 – Mulher chinesa, século VIII d.C.
Fonte: Disponível em: https://www.worldhistory.org/image/6061/chinese-female-
figurine/ Acesso em: 10 ago. 2021.
Outra tradição do teatro chinês são os elementos cômicos presentes nas
representações.
Numa descrição de um banquete imperial no início do século XI, encontramos
listados no programa dezenove números, incluindo dois “shows de
variedades”. Cada um deles geralmente tinha três personagens: um
venerável homem barbado, um robusto e determinado “cara pintada” - um
tipo clownesco - e uma figura de imperioso comandante. Esses “shows de
variedades” eram representados no palácio ou no parque imperial, nas salas
de recepção e cerimoniais dos senhores feudais, e nas feiras, por ocasião
dos grandes festivais populares (BERTHOLD, 2000, p. 60).
Sobre os festivais públicos que aconteciam na China, existe um rolo de seda
pintado, que retrata o festival Ch’ing-Ming em Kaifeng, que aconteceu no século XII,
onde é possível observar a grandeza do evento que acontecia às margens de um rio,
assim como o número grande de participantes. Na imagem 18, existe um palco
cercado por espectadores onde acontece uma representação cênica. As
representações populares estão presentes no dia a dia da humanidade há muito
tempo e essa imagem comprova isso.
48
Imagem 18 – Detalhe do rolo de seda pintado, retratando o festival Ch’ing-Ming em Kaifeng,
a capital da dinastia Sung do Norte (960-1126). Cópia do original de Chang Tse-tuan, feita
em 1736 por cinco pintores da corte do imperador Ch’ien Lung.
Fonte: Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/orientadicta/12686426385/in/photostream/. Acesso em: 19 abr.
2021.
3.1.3 Indonésia
Na Indonésia, a tradição do teatro de formas animadas, wayang, é a mais
popular, ela existe desde a época pré-hindu, com influência dos rituais ancestrais
javaneses (BERTHOLD, 2000). As peças se baseiam nos poemas dramáticos
Mahabharata29 ou Ramayana30. As três formas cênicas mais comuns são teatro de
sombras, com figuras recortadas em couro; bonecos de vara, esculpidos em madeira;
e dança dramática. A imagem 19 mostra quatro bufões, personagens recorrentes no
teatro na Indonésia, são eles: Semar, Gareng, Petruk e Bagong. O conjunto de bufões
é conhecido também por panakawan.
Imagem 19 - Semar, Gareng, Petruk e Bagong, bufões do teatro wayang, figuras em couro.
Fonte: Disponível em:
https://disk.mediaindonesia.com/thumbs/1800x1200/news/2019/09/a36f920c4d1e5d5bdadb2
0cb61e638fd.jpg Acesso em: 19 abr. 2021.
29
Mahabharata é um poema épico indiano, atribuído a Krishna Dvapayana Vyasa.
30
Ramayana é um poema épico indiano, de autoria de Valmiki.
49
Na sequência, a imagem 20 traz uma fotografia do projeto Tobong, que data
de 1936 e apresenta um momento de dança dramática onde estão presentes os
mesmos bufões do teatro de sombras, Gareng, Petruk e Bagong, ao centro e com o
rosto branco, eles tentam retirar Mamangmurka do corpo de javali.
Imagem 20 –Semar, Petruk e Gareng tentam retirar Mamangmurka do corpo de javali.
Projeto Tobong, 1936-1937.
Fonte: Disponível em: https://projecttobong.com/project/javanese-traditional-theatre/. Acesso
em: 07 mai. 2020.
Ao compararmos as imagens 19 e 20, observamos que os trajes de cena
utilizados são semelhantes ao sarong, peça fundamental na indumentária cotidiana
javanesa, constituído por um tecido estampado que envolve a parte inferior do corpo
e pode ser preso com dobras nas laterais ou na parte frontal. Os adereços de cabeça
e os adornos pelo corpo complementam esse traje de cena.
O traje de cena está diretamente relacionado ao traje social, como nos mostra
a imagem 21, onde um grupo de homens javaneses vestem sarong, camisas de batik31
ou koko32, e o tradicional chapéu Peci, utilizado pelos muçulmanos nesta região. O
sarong utilizado pelos bufões se assemelha ao utilizado pelos homens no dia a dia, a
diferença está nos outros elementos que fazem parte da caracterização dos
personagens, como adornos e adereços.
31
O batik é uma técnica artesanal de tingimento de tecidos, que utiliza cera para criar desenhos e
padrões.
32
A camisa koko, também conhecida por Baju Koko, é uma peça fundamental no guarda roupa
masculino javanês, utilizada em cerimônias mulçumanas ou no cotidiano.
50
Imagem 21 – Homens javaneses, com trajes sociais.
Fonte: Disponível em: https://www.wikiwand.com/en/National_costume_of_Indonesia Acesso
em: 10 ago. 2021.
3.1.4 Japão
O Japão também possui tradição teatral milenar. Para Berthold:
as danças kagura do primeiro milênio testemunham o poder de exorcismo
dos ritos mágicos primordiais. Os gigaku e bugaku, peças de máscaras,
refletem a influência dos conceitos religiosos budistas, emprestados da China
nos séculos VII e VIII. As peças nô do século XIV e XV glorificam o ethos do
samurai. As farsas kyogen, apresentadas como interlúdios grotescos e
cômicos entre as peças nô, anunciam a crítica social popular. O kabuki do
início do século XVII foi encorajado pelo poder crescente dos mercadores.
(2000, p. 75-76).
Todas essas expressões artísticas permanecem até os dias de hoje, ocupando
espaços específicos e atraindo público cativo. Entre tantas formas diferentes,
escolhemos trazer o Nô, que deriva das formas mais tradicionais do Sarugaku e
conquista um papel importante dentro da sociedade japonesa, após o xógum
Yoshimitsu, em 1734, assistir e contratar o ator Kwanami e seu filho Zeami, para
trabalharem na corte. Zeami, posteriormente, foi conhecido como o Aristóteles do
teatro japonês, pois escreveu três grandes tratados sobre o teatro Nô, além de
escrever o texto e a música para mais de cem peças33.
33
Ibid.
51
Imagem 22 – Sanemori, espetáculo de Teatro Nô.
Fonte: VIANA, 2020.
Imagem 23 – Kimonos tradicionais japoneses, ilustração de Glimja.
Fonte: Disponível em: https://www.deviantart.com/glimja/art/Men-s-Japanese-Clothes-682557966
Acesso em: 11 ago. 2021.
Em um espetáculo Nô, os personagens utilizam máscara e trajes suntuosos,
ricamente bordados. O ator necessita ter concentração para executar os movimentos
de maneira calculada em uma área muito pequena (BERTHOLD, 2000). Na imagem
52
22, o fantasma do guerreiro Sanemori aparece para contar que seu corpo foi
decepado há 200 anos no lago onde a cena acontece. O personagem está vestindo
um kimono estampado. Esse traje é reconhecido como a indumentária tradicional
japonesa, utilizada socialmente por homens e mulheres. No palco do teatro Nô, o
kimono ganha volume, estrutura e cores, além de ser associado a outros elementos
para a caracterização do personagem.
No período intermediário entre atos do teatro Nô, são apresentadas farsas
curtas, de caráter cômico, que contrastam com a formalidade do Nô, apresentando
temas sociais cotidianos, conhecidas como Kyogen.
O kyogen possui sua hierarquia tradicional de atores, ou seja, um
protagonista e líder (omo), e um segundo ator (ado). O kyogen reagrupou os
vestígios esparsos de formas teatrais populares que foram rejeitadas, da
mesma forma que o sarugaku foi aprimorado no Nô. (BERTHOLD, 2000, p.
87),
Imagem 24 - Cena com um macaco executando passos de dança, que lembra a peça ainda
hoje popular de Kyogen, Utsubozaru, levada pelo elenco do Kwanze-kai-nô de Tóquio, em
1966, em sua turnê pela Europa. Gravura colorida, c. 1900.
Fonte: Disponível em:
https://i.pinimg.com/236x/53/c8/d2/53c8d2624580cb2b2722f96bce5fd36f--quiver-japanese-
prints.jpg. Acesso em: 19 abr. 2021.
Os trajes utilizados no Kyogen seguem a mesma influência do traje social visto
no Teatro Nô, acrescido de adereços cômicos como bastões, por exemplo. Em uma
apresentação contemporânea de kyogen (imagem 25), notamos a utilização de
máscaras da Commedia dell’Arte, movimento de teatro popular que falaremos mais
adiante. Assim, observamos um caso de hibridismo cultural, pois tais máscaras não
pertencem à tradição do teatro japonês.
53
Imagem 25 – Remontagem de Kyogen atual. Mundo Nipo website. 2015.
Fonte: Disponível em: https://mundo-nipo.com/cultura-japonesa/artes/07/10/2015/a-arte-do-
teatro-tradicional-japones-no-kyogen-kabuki-e-bunraku/. Acesso em: 18 abr. 2021.
3.2 Grécia
A civilização grega antiga é reconhecida como a fundadora do teatro ocidental,
por tamanha contribuição à formalização e registro do fazer teatral. Todavia, haviam
expressões cênicas anteriores a esse período, como já observamos. O período que
antecede o início da Era Comum (ou Era Cristã), é marcado diretamente pelos gregos,
especificamente entre os séculos VI e IV a.C.
Para Margot Berthold (2000), as origens do teatro grego estão vinculadas aos
rituais, às danças e representações. Os rituais em honra a Dioniso, deus do vinho e
dos ciclos da vida, se desenvolveram com cânticos, coros de sátiros (ditirambos34),
orgias e danças e resultaram, com o passar do tempo, na tragédia e na comédia.
Portanto, corroboramos com Berthold35 quando se refere ao teatro grego como “obra
de arte social e comunal”, pois desde o princípio, o teatro sempre foi uma atividade
coletiva e de compartilhamento.
34
Os Ditirambos faziam parte do coro dos sátiros, uma expressão que se originou na poesia, e
incorporou o canto e a dança em forma de cortejo.
35
Ibid., p. 103.
54
As grandes dionisíacas eram festivais que aconteciam em toda Grécia. Porém,
em Atenas, essa festividade assumiu um caráter maior, com duração de vários dias e
uma das atividades era o concurso dramático, onde escritores apresentavam um
conjunto de três tragédias e uma peça satírica para conclusão, esse conjunto de obras
era conhecido como teatrologia (BERTHOLD, 2000). Ésquilo, Sófocles e Eurípedes
são três dramaturgos precursores da tragédia, enquanto na comédia se destacaram
Aristófanes e, posteriormente, Menandro. Outro marco no campo das artes é o tratado
sobre estética, escrito pelo filósofo Aristóteles, em meados do século IV a.C. Ainda
que não esteja terminado, a Arte Poética foi fundamental para o pensamento das artes
e principalmente do teatro.
Durante o festival em honra a Dioniso de 534 a.C., Téspis, ator contratado por
Psístrato para a Dionisíaca daquele ano, resolveu se destacar do meio do coro de
sátiros, representando o papel do próprio deus Dioniso, assim foi criada a função do
respondedor, o primeiro ator36. Téspis ficou conhecido por ser retratado, em pinturas
e esculturas, representando Dioniso em carro naval, essa imagem faz referência aos
cortejos e à utilização de carros para o desfile dos deuses.
A iconografia da Grécia Antiga está repleta de túnicas com drapeados e
amarrações, característica deste período. A imagem 26 apresenta Téspis vestido
dessa forma. O traje grego clássico tinha a túnica como peça fundamental, tanto para
indumentária feminina, como para a masculina e era chamada de quíton. O traje
masculino era incrementado com um manto curto, preso sobre o ombro direito,
clâmide, ou com o himation, manto retangular que enrolava o corpo sem fivelas ou
amarrações. As mulheres vestiam quíton com himation, e uma variação de bata,
chamada peplo, em forma retangular dobrada, era presa em cada ombro e aberta em
uma lateral, ficando uma parte do tecido mais curta na frente e atrás, proporcionando
a utilização como véu (BOUCHER, 2010). A imagem 27 traz uma variação de trajes
gregos com comprimentos, amarrações e dobras diversas.
36
Ibid.
55
Imagem 26 – O carro de Téspis, relevo na torre do sino de Giotto, em Florença, atribuído a
Nino Pisano, 1334-1336.
Fonte: Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Formella_15,_il_carro_di_Tespi_(Theatrica),_nino_pi
sano,_1334-1336.JPG Acesso em: 28 abr. 2021.
Imagem 27 – Trajes gregos.
Fonte: Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/462322717969414350/ Acesso em: 13
ago. 2021.
56
O historiador François Boucher (2010) identificou nos drapeados dos trajes
sociais gregos, o espírito arquitetônico, assim como a influência de outras culturas,
inclusive as asiáticas, por meio da assimilação de tecidos e jeitos de vestir. A lã era a
principal matéria prima para os trajes, as pessoas do campo tosquiavam e teciam suas
próprias roupas; talvez seja pela falta de acesso aos processos de tingimento que as
cores cruas tenham sido mais utilizadas nesse período.
Todavia, o gosto pelas cores vivas nem sempre foi excluído do vestuário
grego, e sabemos por Plínio que o pintor Polignoto foi o primeiro a aplicar no
vestuário feminino as cores exuberantes que os contemporâneos chamavam
de cores floridas. Uma estátua pintada conservou os vestígios de uma túnica
verde (BOUCHER, 2010, p. 104).
Imagem 28 – Pequena mulher herculana, reconstrução experimental de cores de estátua
grega a partir de vestígios de tinta originais, Gods in Color, 2019.
Fonte: Disponível em: https://buntegoetter.liebieghaus.de/en/ Acesso em: 21 abr. 2021.
Não se sabe se a imagem 28 é a mesma a que se refere Boucher, porém, com
o estudo dos vestígios de tinta nas esculturas gregas, é possível hoje ter acesso ao
que poderia ter sido um traje grego colorido. Essa restauração foi apresentada no
projeto Gods in color, organizado pelo arqueólogo Vinzenz Brinkmann em parceria
com Ulrike Koch Brinkmann. Segundo os arqueólogos, a escultura da pequena mulher
herculana foi encontrada em 1894, por Louis Couve, na ilha grega de Delos.
57
Brinkmann relatou na época ter encontrado vestígios de tons de azul, ocre, amarelo e
rosa, porém, durante a reconstrução atual, os pesquisadores descobriram que o
manto tinha tonalidade predominante de verde e que havia um efeito de transparência
na pintura, onde algumas partes em que o manto não estava franzido, permitiam ver
a cor da túnica por baixo.
No teatro, os trajes eram estilizados de acordo com as características da
encenação. Boucher (2010, p. 109) afirmou que “os atores trágicos usavam, sobre
suas roupas, enchimentos apropriados e também perucas altas, ou pelo menos
cachos e cabelos postiços colados nas máscaras”. A peruca ou os apliques de cabelo
eram presos a uma tiara larga, chamada de onkos, que era utilizada, assim como as
máscaras, com o intuito de ampliar a estatura da cabeça do personagem. Essa
ampliação acontecia em todos os elementos do traje de cena grego. Os calçados eram
bem altos, chamados de cothurno, uma espécie de sandália com salto plataforma,
fazendo com que a personagem fosse vista à longa distância como uma figura alta e
destacada.
Imagem 29 – Tânagra. Ator do século V a.C.
Fonte: Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/248775 Acesso em:
28 abr. 2021.
As tânagras são pequenas estatuetas de terracota, geralmente encontradas
em túmulos, que representam personagens, e através delas é possível identificar
elementos do traje de cena grego citado acima. O Metropolitan Museum, de Nova
58
York, possui uma coleção de tânagras. Na imagem 29, um ator do século V a.C. está
vestindo quíton, himation, máscara e onkos.
Imagem 30 – Vaso Pronomos, 410-400 a.C.
Disponível em:
https://www.beazley.ox.ac.uk/tools/pottery/painters/keypieces/redfigure/pronomos.htm
Acesso em 28 abr. 2021.
O vaso Pronomos, para alguns historiadores, é um registro de comemorações
após um festival grego. Ariadne e Dioniso estão acompanhados por um ser alado,
coreutas, atores com suas máscaras e um tocador de flauta. Demétrios, o dramaturgo
no vaso, está segurando um rolo no canto inferior esquerdo. Acima, à direita, estão
Heracles e Papposilenos, descritos por Donatella Barbieri (2017), como exemplos de
trajes de cena que não se associam à ideia comum de que os gregos só vestiam
túnicas drapeadas, pelo contrário, havia uma grande variedade de materiais e
modelagens nesses figurinos. No caso deste vaso, percebe-se a presença das
túnicas, mas também de mangas justas, leggings, macacões de pele e peitorais, que
59
podem ter sido confeccionados em tecido com padronagem pintada, linho, seda, lã,
couro, feltro, pele de animal e metal.
Todavia, existia uma predominância das túnicas. As túnicas da realeza eram
adornadas e utilizavam “faixas de uma cor bem viva para os personagens felizes e de
tom cinza, verde ou azul para os fugitivos e infelizes; os personagens de luto vestiam-
se de preto” (BOUCHER, 2010, p. 110). Os reis e as rainhas usavam mangas muito
compridas, e às vezes, as mulheres usavam caudas. Os deuses usavam insígnias; os
oráculos tinham uma peça de lã sobre o quíton; os que caçavam, levavam um manto
púrpura no braço esquerdo; e o coro vestia um quíton mais curto, com um xale
quadrado e sem cothurno37.
Imagem 31 – Fragmento do vaso Tarentum. Ator trágico segura sua máscara. IV a. C.
Fonte: Disponível em: https://www.didaskalia.net/issues/vol7no1/coldiron/image05.html
Acesso em: 28 abr. 2021.
A máscara é um elemento essencial na caracterização no teatro grego: era feita
de linho ou couro prensado com uma mistura de gesso, água e cal, moldada de
maneira que o orifício da boca atuasse como um amplificador da voz do ator. A troca
de máscara e figurinos tornava possível que um grupo pequeno de atores
interpretasse vários personagens (BERTHOLD, 2000).
37
Ibid.
60
A comédia grega, por sua vez, também surge das cerimônias e das canções,
porém, daquelas que eram fálicas e se confundiam com as orgias e as sátiras. “A
palavra ‘comédia’ é derivada dos komos, orgias noturnas nas quais os cavalheiros da
sociedade ática se despojavam de toda a sua dignidade por alguns dias, em nome de
Dioniso, e saciavam toda a sua sede de bebida, dança e amor” (BERTHOLD, 2000,
p. 120). No século V a.C., os comediantes atuavam com base na farsa improvisada,
fazendo sátiras, vestindo barrigas falsas e falos aparentes. Epicarmo de Mégara, na
Sícilia, escreveu para esses cômicos uma escala de personagens “os fanfarrões e
aduladores, parasitas e alcoviteiras, bêbados e maridos enganados”38, os famosos
tipos, que chegaram até a Commedia dell’Arte e ainda sobrevivem. O professor Cyro
Del Nero (2009) nomeou esse teatro cômico e de rua, feito por gregos, de Phlyakes.
O vaso da imagem 32 representa uma cena da comédia grega antiga, o palco,
à esquerda, representa o templo de Asclépio, e Xanthias é o servo que está recebendo
no alto da escada o idoso Quíron, empurrado pelo escravo. É possível perceber que
os trajes da comédia cobrem menos o corpo do ator, deixando muitas vezes o peitoral
nu. As máscaras possuem traços histriônicos e caricaturais, representando até
cabeças de animais39. Nessas figuras é muito comum a presença de falos aparentes
e postiços.
Desde os tempos imemoriais, bandos de saltimbancos vagavam pelas terras
da Grécia e do Oriente. Dançarinos, acrobatas e malabaristas, flautistas e
contadores de histórias apresentavam-se em mercados e cortes, diante de
camponeses e príncipes, entre acampamentos de guerra e mesas de
banquete. À arte pura unia-se o grotesco, a imitação de tipos e a caricatura
de homens e animais, de seus movimentos e gestos (DEL NERO, 2009, p.
136).
38
Ibid., p. 120.
39
Ibid.
61
Imagem 32 – Vaso Phlyakes, século V a.C.
Fonte: Disponível em: https://www.britishmuseum.org/collection/object/G_1849-0620-13
Acesso em: 01 mai. 2021.
Na imagem 33, o vaso grego, que tinha a função de guardar água, traz em sua
pintura a imagem de dançarinas e acrobatas do século V a.C. Ao centro um jovem em
posição de inversão, numa ponte, tenta alcançar uma taça com os pés. Ao lado direito,
uma pessoa vestida em túnica, dança entre facas no chão, demonstrando a variedade
de ações artísticas e acrobáticas da época.
Imagem 33 – Dançarinas e acrobatas, detalhe de vaso hídria, 430 a.C. Museo di Napoli.
Fonte: Disponível em: http://acrobatic-dance.raftis.org/italy/ Acesso em: 01 mai. 2021.
62
Dentre esses artistas populares se desenvolveu o Mimo grego, forma teatral
onde atores e atrizes (primeiro momento em que as mulheres aparecem em cena)
representavam pequenas cenas em locais públicos. Essas cenas se baseavam na
sátira social permeada de duplo sentido em tom jocoso.
O mimo apareceu primeiro na região da Sicília, “era uma farsa burlesca rústica,
à qual Sófron deu forma literária pela primeira vez por volta de 430 a. C. Suas
personagens são pessoas comuns e, no sentido mais amplo da mimese, animais
antropomórficos” (BERTHOLD, 2000, p. 136). Essas personagens assumiam
características animalescas que se relacionavam com aspectos de cada uma delas,
por exemplo, a astúcia do gato e sua movimentação desconfiada. O “alvo era a
imitação fiel ‘à natureza’ de tipos autenticamente vivos, ou num sentido mais amplo,
a arte da autotransformação, da mímesis”40. Tais características seguirão norteando
algumas práticas de encenação popular, como a Commedia dell’Arte. Na imagem 34
é possível observar participantes de um culto vestindo cabeças de asno.
Imagem 34 – Afresco de Micenas.
Fonte: Disponível em: http://antiquatedantiquarian.blogspot.com/2015/04/the-mycenaeans-
frescoes.html Acesso em: 01 mai. 2021.
Os Mimos gregos são uma das primeiras grandes referências de teatro popular.
Segundo o professor Joel Schechter (2003), os mimos gregos eram considerados
atores populares porque não recebiam subvenção estatal, e por isso não seguiam
40
Ibid., p.136.
63
regras ou normas sociais em suas apresentações, pelo contrário, o fazer artístico
desses atores era baseado na improvisação e nas características do lugar onde
estavam. As condições econômicas vão circundar o teatro popular até hoje, e umas
das discussões mais recorrentes é a necessidade de que a linha central deste teatro
seja a perspectiva do povo.
3.3 Roma
O período helenístico, que compreende os séculos IV, III e II a.C., marcou a
sociedade da época culminando com a dominação romana sobre os gregos. Sobre o
teatro, Berthold (2000, p. 137) afirma que “a Grécia nunca concedeu a ele a
importância que ganharia sob os imperadores em Roma e Bizâncio”. Roma ficou
conhecida por usar o teatro grego como referência, principalmente do ponto de vista
dramatúrgico, e acrescentar novos aspectos para o entretenimento, a partir do desejo
do Imperador. Para Del Nero (2009), o período helenístico leva esse nome
exatamente porque a cultura dessa época vinha da Grécia.
Os trajes de cena do teatro romano tinham praticamente as mesmas
características dos gregos (BROCKETT, 1991). A estátua de marfim de Clitemnestra,
na imagem 33, dá parâmetros para compreender melhor esse traje, composto por
uma máscara, provavelmente confeccionada em linho com uma argamassa feita de
pó de mármore; onkos, tiara triangular que dilatava a dimensão do rosto do ator,
devido o alargamento da fronte; o traje também tinha a linha da cintura alterada para
a linha inferior ao busto, dando a ilusão de corpo alongado para o espectador que via
a personagem à longa distância; e o mesmo cothurno grego, que também contribuía
para esse efeito de amplificação (BERTHOLD, 2000). O traje seguia a mesma
estrutura com uma túnica, quíton, e manto, que poderia ser mais curto, clâmide, ou
mais longo, himation. A identificação das personagens poderia contar com a ajuda de
um adereço: um cetro para o rei, ou uma lança para o soldado.
64
Imagem 35 - Intérprete de tragédia no papel de Clitemnestra. Estatueta de marfim romana
do período tardio, proveniente de Rieti. Museu do Louvre, Paris.
Fonte: Disponível em:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/31/Statuette_actor_Petit_Palais_ADUT00
192.jpg Acesso em: 08 mai. 2020.
Imagem 36 – Ator segurando sua máscara, século I a.C. Louvre.
Fonte: Disponível em: https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl010250519 Acesso em: 02
mai. 2021.
Na imagem 36, é possível observar outra estatueta de um ator no período
helenístico. Essa escultura tem quase 16 centímetros de altura e é rica em detalhes
65
sobre a caracterização da época. O ator veste um quíton, com amarração abaixo da
linha da cintura. Como já vimos, esse deslocamento da cintura mais para cima tinha
o objetivo de alongar e harmonizar a personagem quando assistida pelos
espectadores muito distantes. Ele carrega a máscara com um braço, que possui uma
expressão forte, e o onkos, diadema com os cabelos, também utilizados para
aumentar a proporção do ator. Provavelmente ele está calçando um cothurno, que
está escondido pela túnica.
Com o tempo, o interesse pela tragédia e pela comédia foi diminuindo e a Farsa
Atelana alcançou maior notoriedade, abrindo espaço para outras formas de
entretenimento como as corridas e os esportes. No século II a.C., os atores populares
da cidade de Atela, na Câmpania, saíram para Roma e levaram a sua tradição de
representar com máscaras caricaturescas e diálogos improvisados. A Farsa Atelana
se baseava na história de tipos sociais:
como o malicioso Maccus, que compensava seu desajeitamento com uma
afiada argúcia; o roliço e simplório Bucco, sempre derrotado; o bondoso Velho
Pappus, cuja senilidade era objeto das mais cruéis mordacidades; e o filósofo
glutão e corcunda Dossenus, alvo favorito das gozações dos camponeses
iletrados (BERTHOLD, 2000, p. 161).
Tais tipos vão reaparecer na Commedia dell’Arte, inclusive com o uso de
máscaras para representar cada personagem. As máscaras da Farsa Atelana
possuem traços exagerados, expressões marcadas, muito volume e protuberâncias,
e podem ser consideradas o início das máscaras da Commedia dell’Arte.
Imagem 37 – Máscaras de Maccus, Pappus e Dossenus, da Farsa Atelana.
Fonte: Disponível em: https://fabulafabulae.wordpress.com/origini/atellane/ Acesso em: 02
mai. 2021.
A Farsa Atelana também abriu espaço para o Mimo romano, com bufonarias
fálicas e grotescas. A diferença entre eles era o uso das máscaras, presente na
atuação atelana, enquanto que os romanos se ocupavam com o trabalho corporal, a
66
mimesis, e não ocultavam mais o rosto do ator (BERTHOLD, 2000). É importante
lembrar que o Mimo era a única representação cênica que permitia a participação de
mulheres na cena.
O traje de cena do Mimo era semelhante às roupas mais simples do cotidiano
da época, na maior parte das vezes eram bastante gastas. O uso da seda e de
pedrarias acontecia apenas quando havia interesse de algum patrocinador.
O bobo vestia uma roupa de retalhos coloridos (centunculus), como a usada
ainda hoje pelo Arlequim, e um chapéu pontudo (apex; daí a expressão
posterior, apiciosus). O mimo usava apenas uma sandália leve nos pés, que
diferia do cothurnus do ator trágico e do soccus do comediante; essa sandália
lhe valeu em Roma, a alcunha de planipedes (BERTHOLD, 2000, p. 162-
163).
O traje de retalhos deve ter surgido pela necessidade de construir algo cômico
com os materiais disponíveis ao ator na época. Essa referência vai se tornar a
identidade visual de uma das figuras mais importantes da comédia, o Arlecchino,
figura que abordaremos mais adiante. Outra característica dos Mimos era o sapato
que eles usavam, indicando diretamente a simplicidade do ofício, diferentemente do
sucesso e da aceitação das grandes tragédias e comédias. A imagem 38 apresenta
um grupo de saltimbancos, também considerados Mimos, trajando túnicas sem
adereços.
Imagem 38 - Cena de rua com saltimbancos. Columbário (destruído) da Villa Doria Pamphili,
Roma.
Fonte: Disponível em: https://encrypted-
tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcTSS_enzLhGeT_bJvfkWydHzFyPOvzQLpeNrsO9G
2KNtLbKlOfVLQm02JqmwYdyG2A8Nw&usqp=CAU Acesso em: 02 mai. 2021.
No século V d.C., o Império romano já em plena queda foi invadido por Alarico,
um visigodo, e um dos atos dele foi encerrar as atividades teatrais, para alegria dos
cristãos. Todavia, a proibição não foi motivo para que os artistas desaparecessem,
segundo Del Nero (2009), eles se tornaram nômades, percorrendo cidades, vilarejos
67
e povoados, apresentando-se em mercados, feiras, tavernas, onde houvesse espaço
e alguém interessado.
3.4 Idade Média
Os ocidentais denominam Império Bizantino a parte oriental do Império
Romano. O nome refere-se à cidade de Bizâncio, posteriormente nomeada
Constantinopla, em 330 d.C., por Constantino. O Império Bizantino agrega o período
que convencionou-se chamar de Idade Média. A extinção do Império Bizantino ocorre
com a tomada de Constantinopla pelos otomanos, em 1453 (DEL NERO, 2009).
Durante esses dez séculos, houve a preservação da cultura greco-romana, nas
competições esportivas, nas iluminuras, porém os teatros seguiram fechados41. Por
volta do século X, a liturgia da igreja oriental possuía um caráter espetacular, com
recitações e coros ensaiados e a celebração da Páscoa “se tornou o embrião do
drama cristão da igreja” (BERTHOLD, 2000, p. 178). No século XIII, Cristo passou a
ser representado, assim como outras cenas bíblicas.
Na Idade Média, a igreja dominou as produções cênicas, definindo clérigos para
representarem personagens santos e contratando atores para os personagens
demoníacos. A representação do inferno conquistou fascínio nos ciclos da Paixão de
Cristo encenados nos séculos XV e XVI e se tornou cada vez mais provocativo e
explícito42. Em 1547 o Mistério da Paixão foi um espetáculo que durava vinte e cinco
dias e contava com uma estrutura de várias plataformas, onde cada uma representava
um cenário, simultaneamente. Na lateral direita da imagem 39, é possível observar a
boca de um monstro em chamas, de onde saem figuras humanas, essa era uma
convenção da época para representar o inferno.
41
Ibid.
42
Ibid.
68
Imagem 39 – Cenário do Mistério da Paixão, Valenciennes, 1547.
Fonte: Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:HLLF-T2-d450-
451_Th%C3%A9%C3%A2tre_Valenciennes_-_1547.png Acesso em: 10 mai. 2021.
Outra estrutura desenvolvida para as cenas na Idade Média foi o carro-palco.
Enquanto os cenários simultâneos se tornavam comuns, um palco “processional” -
como denomina Berthold (2000) - surgiu nas procissões e aparecia mais adornado a
cada nova apresentação.
Os trajes de cena da Idade Média eram acervo “cuidadosamente guardado
durante duzentos anos pelas igrejas e monastérios”43. Esses trajes também se
assemelhavam à indumentária da época e eram utilizados nas encenações das
Paixões. É importante ressaltar que a igreja agiu com o intuito de moralizar a
sociedade da época, inclusive sobre o ponto de vista da vestimenta. A historiadora
Aileen Ribeiro, no livro Dress and Morality (1986, p. 37, tradução nossa) afirmou que:
Os sermões da Igreja ditos em sua maior parte como tentativas de mudar
maneiras e roupas, parte de um movimento geral de ortodoxia conservadora
e obediência as autoridades, que era a regra predominante de uma igreja
estável em suas tentativas de combater heresias.
Boucher (2010, p. 146) define o traje europeu dos séculos XII a XIV como
sendo, para as classes mais populares, “para os homens, calções, uma jaqueta
grosseira, perneiras de tecido, sapatos grossos com amarrações e às vezes uma
43
Ibid., p. 200.
69
camisa; para as mulheres, uma blusa, um vestido e meias altas. A pelerine com capuz,
de burel44, complementa para os dois sexos”. Os mais nobres utilizavam o traje
cerimonial, uma dalmática45 com mangas até o cotovelo e o manto real. Outra peça
comum à época para ambos os sexos é a cota, uma túnica ajustada ao corpo e suas
variações, como por exemplo a sourquenie, que era um tipo de cota feminina com o
busto muito justo.
Ao descrever os trajes de cena, Brockett afirma que:
Os soldados romanos usavam armaduras medievais, e os sumos sacerdotes
judeus usavam as túnicas de prelados católicos. [...] Deus estava vestido
como um imperador ou papa, e os anjos usavam mantos de igreja com asas.
[...] Os demônios foram concebidos com muita imaginação, pois foram feitos
para se parecerem com grandes aves de rapina, monstros com cabeças de
animais ou criaturas com escamas, caudas, chifres ou garras (BROCKETT,
1991, p. 101, tradução nossa).
Os atores na Idade Média tinham que arcar com as despesas dos trajes de
cena, exceto se os trajes fossem fantasiosos e não seguissem a indumentária social
da época. Neste caso, os custos seriam pagos pelo produtor do espetáculo. Os ricos
também podiam financiar os trajes e adereços de atores mais pobres46.
O mimo foi introduzido no drama religioso (BERTHOLD, 2000), trazendo a
estética do grotesco, com carecas, enchimentos (barriga) e próteses (barbas). Na
imagem 40, é possível observar um afresco na Igreja de São Jorge, na aldeia Staro
Nagoricino, República da Macedônia, que data do século XIV, onde mimos dançam e
blasfemam aos pés de Cristo. “Dois deles usam um traje com as características
mangas longas e largas, que lhes cobrem as mãos, e que desempenham papel
importante na linguagem gestual de tantas civilizações – sublinhando expressão da
dor e parodiando-a”47.
44
Burel era um tipo de lã portuguesa.
45
Dalmática é um traje litúrgico da Igreja Católica.
46
Ibid.
47
Ibid., p. 200.
70
Imagem 40 – Detalhe de afresco na Igreja de São Jorge, na aldeia Staro Nagoricino,
República da Macedônia, que data do século XIV, com mimos aos pés de Cristo.
Fonte: Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/File:Church_of_Saint_George_in_Staro_Nagorichino,_northern_
wall,_Mocking,_Road_to_Golgotha,_George_destroying_idols,_George_slaying_the_dragon.
jpg . Acesso em: 21 jun. 2020.
Essas mangas longas já apareceram em estatueta de terracota de origem
chinesa, que data do período T’ang (618-906), conforme imagem 16 (página 46).
Posteriormente, irão reaparecer na Commedia dell’Arte com o personagem Pulccinela
e em figuras femininas da Ópera de Pequim. Esse efeito ficará conhecido como
mangas d’água. Berthold (2000, p. 175) também falou sobre esse aspecto do traje de
cena:
por trás da manga “dramática” do trágico bizantino vislumbramos imagens
remotas, mas sem dúvida com ela aparentadas: a dançarina sassânida, a
aristocrática dama chinesa do período T’ang, as jovens estudantes do Jardim
das Peras e, no âmbito da arte cristã, a bailarina Salomé, epítome de todos
os vícios. Todas essas imagens tinham o seu “jogo” baseado no poder
expressivo das longas mangas que pendiam sobre as mãos hábeis do ator.
A imagem 41 apresenta um mosaico bizantino com a figura de Salomé, filha de
Herodíades que, segundo a Bíblia, pede a cabeça de João Batista em troca de uma
dança a Herodes. Nessa imagem, Salomé está vestindo uma túnica ajustada ao corpo
e mangas longas adornadas, enquanto ela dança com uma cabeça de João Batista
em uma bandeja.
71
Imagem 41 – Salomé, fragmento de mosaico bizantino, catedral de São Marcos, Veneza,
séc. XIV.
Fonte: Disponível em: http://deedellaterra.blogspot.com/2016/08/historia-medieval-
historia-da.html?m=1 Acesso em: 10 mai. 2021.
A medida em que o teatro ia tomando o espaço público das ruas, tais
representações deram lugar às farsas, alcançando maior interação com o povo. A
sottie, sátira que supõe que a sociedade é feita por loucos, também surgiu neste
período. Berthold (2000) diferencia a farsa da sottie pelo traje, a primeira utiliza trajes
comuns e a segunda usa vestimentas de bobos. Ambos eram divertimentos para o
público, tendo a crítica social como eixo central, usufruindo do texto falado e
improvisações. Essas apresentações populares foram fundamentais para o
fortalecimento do teatro popular.
O príncipe dos bobos e a mãe dos bobos eram figuras recorrentes das sotties,
eles se tornaram os protagonistas da peça escrita por Pierre Gringoire, que estreou
em 1512 em Paris, com uma sátira à igreja48. Na imagem 42, essas personagens
aparecerem usando orelhas de asno, enfatizando seu caráter animalesco e a ideia de
que são bobos; os trajes, no entanto, seguem a indumentária da época.
48
Ibid.
72
Imagem 42 – Príncipe e mãe dos bobos, frontispício de Jeu du Prince des Sots et de la
Mere Sotte, de Pierre Gringoire, 1512.
Fonte: Disponível em:
https://i.pinimg.com/originals/80/49/bb/8049bba65fad8621ebdd52fc87f1523e.png
Acesso em: 10 mai. 2021.
Imagem 43 – Sebastianskirmes em frente à casa da cidade de Oudenaarde. c. século
XVII, David Vinckboons, mostrando em um palco de rua, aparentemente, uma sottie (dir.
sup.).
Fonte: Disponível em:
https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:David_Vinckboons_Die_Bauernkirmes.jpg
Acesso em: 10 mai. 2021.
73
Os atores das farsas também vestiam trajes cotidianos, “quando intervêm anjos
ou diabos, acrescentam-se apenas asas para os primeiros, máscaras e um apêndice
caudal para os segundos” (BOUCHER, 2010, p. 151). Já nas danças e jograis, o traje
era colorido e as mãos e rosto eram pintados para causar o efeito de alegria. Através
da pintura de David Vinckboons (imagem 43) é possível observar os trajes da Idade
Média, com variedade e tons diversos. No centro da pintura à direita tem um palco
montado com atores em cena, demonstrando que o teatro voltou às ruas como
entretenimento popular.
Até o final da Idade Média, a roupa masculina e a roupa feminina estavam
baseadas em túnicas, sem grandes variações para homens ou mulheres. O teatro,
por sua vez, utilizava a roupa do cotidiano para vestir os personagens com as devidas
modificações conforme vimos até agora. É a partir do Renascimento que irão surgir
novas formas de vestir. Os manuais de alfaiataria e costura também aparecem neste
período e favorecem novas maneiras de cortar os trajes, novas modelagens. As
túnicas deixam de ser tão comuns e o gibão e a calça se tornam trajes masculinos
fundamentais. Já o traje feminino começa a ter volume e marca mais as curvas do
corpo da mulher.
3.5 Festivais da Corte no Renascimento
O Renascimento foi um período histórico compreendido entre os séculos XIV e
XVI, porém não há consenso sobre datas específicas. Com o enfraquecimento do
poder da Igreja Católica, essa época foi marcada pelo “despertar do individualismo”
(BERTHOLD, 2000, p. 269), pela ascensão da burguesia, pelas navegações e
exploração de outros continentes e também pelo avanço do protestantismo em parte
da Europa. Outro ponto importante foi a publicação dos escritos gregos e romanos,
que foram salvos por eruditos bizantinos em fuga.
Sobre esse aspecto, o tratado Da Arquitetura, escrito por Vitrúvio no século I
a.C., teve três edições, uma em 1486, outra em 1521 e uma edição comentada em
1556 e influenciou o trabalho dos arquitetos teatrais, assim como o estudo da
perspectiva, do ponto de vista da arquitetura e das artes, realizado por Filippo
Brunelleschi, Leon Battista Alberti e Donato Bramante no século XV.
Isso foi um grande marco na história do teatro e consequentemente influenciou
mudanças nos trajes de cena também. A cenografia teatral até então era ilustrativa e
74
apresentava locações achatadas, mas com a perspectiva ganhou outro status, pois
passou a contar com construções que indicavam ruas e construções em relevo.
Baldassare Peruzzi (1481-1536) foi o cenógrafo responsável pelo cenário do
espetáculo Calandra, apresentado para o papa Leão X, em Roma, no ano 1518, esse
cenário era verdadeiro e apresentava profundidade, utilizando módulos, chamados de
praticáveis e um telão em perspectiva plena no fundo. O teatro Olímpico de Vicenza
é um exemplo de teatro renascentista conservado até hoje na Itália, ele foi construído
entre 1580 e 1585 por Andrea Palladio e Vicenzo Scamozzi. Esse teatro possui um
ponto de fuga que vai além do espaço da cena, ampliando o efeito de profundidade.
(BERTHOLD, 2000).
Imagem 44 – Teatro Olímpico de Vicenza, século XVI
Fonte: Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/Teatro_Olimpico#/media/File:Interior_of_Teatro_Olimpico_(Vicen
za)_scena_.jpg Acesso em: 13 mai. 2021.
Outro aspecto importante que o teatro desenvolveu nesse período foi a
maquinaria. Inspirada nas embarcações, influenciada pelas grandes navegações, a
cenografia passou a utilizar cordas, carretilhas, contrapesos, varas, entre outras
75
ferramentas e técnicas, para facilitar a mudança de cenário, o transporte de algum
personagem pela parte superior do palco, desaparecer alguém pelo fosso e até
representar as ondas do mar no palco. Tais mecanismos foram descritos por Nicola
Sabbattini, no livro Pratica di fabricar scene e macchine ne’teatri, em 1637. (DEL
NERO, 2009).
Quanto à indumentária, “a grande novidade na evolução do vestuário na
Europa a partir de meados do século XIV é o abandono do traje longo e folgado
comum aos dois sexos” (BOUCHER, 2010, p. 153), o traje se tornou mais justo,
comprido para as mulheres e mais curto para os homens. Outra característica é a
diferença nos padrões dos trajes em relação às nacionalidades, pois o traje curto não
era o mesmo na Inglaterra, na França ou na Itália.
Imagem 45 – Trajes de cena para os entreatos do festival de teatro dos Medici, em 1589, no
salão de teatro da Uffizi, Florença (Londres, Victoria and Albert Museum).
Fonte: Disponível em: https://collections.vam.ac.uk/item/O1008817/costume-design-
buontalenti-bernardo/ . Acesso em: 21 jun. 2020.
Os trajes de cena começaram a sair do padrão social, acrescentando
elementos fantasiosos à caracterização, conforme vemos na ilustração de Bernardo
Buontalenti (imagem 45) dos trajes para o Festival dos Medici, em 1589. Buontalenti,
desenhou trajes para os planetas, para as virtudes, para ninfas e deuses;
delfins com rodas e tritões flutuantes – até mesmo barcos de gala, usados
76
quando os átrios ou praças eram inundados, para intensificar o efeito.
Idealizou também trajes para gênios alados, dragões que cuspiam fogo e
querubins dançarinos que mergulhavam em cornucópias douradas para
espalhar flores perfumadas entre os membros da sociedade da corte
(BERTHOLD, 2000, p. 296).
Donatella Barbieri afirma que, nesse período, os atores tinham que representar
personagens femininas, para isso os trajes contavam com próteses de seios
confeccionadas em papel machê. “Esses peitos de papier-maché fazem parte da
convenção cênica estabelecida, através da qual o gênero foi articulado no palco por
meio do figurino” (BARBIERI, 2017, p.38, tradução nossa). A utilização de próteses é
comum desde o teatro grego e romano, quando os atores cômicos usavam barrigas,
corcundas e, principalmente, falos. Mas é a partir do Renascimento que esse uso de
adereços alegóricos vai se tornar cada vez mais comum.
Imagem 46 – Salomé com a cabeça de João Batista, pintura renascentista de Andrea
Solario, século XVI.
Fonte: Disponível em: https://www.metmuseum.org/TOAH/hd/nirp/hd_nirp.htm Acesso em:
13 ago. 2021.
Através da pintura de Andrea Solario (imagem 46) percebemos no traje social
do renascimento o uso de muitos detalhes com volumes, cores e texturas diferentes.
Essa riqueza de elementos do traje social é observada nos trajes de cena de
Buontalenti (imagem 45), que acrescentou outros aspectos, como as próteses de
77
busto. Os trajes se tornam cada vez mais símbolos de poder e riqueza e todos os
detalhes nos trajes indicavam isso.
Os festivais ocupavam os espaços públicos em forma de procissões e cortejos.
As datas comemorativas e grandes atos públicos culminavam em manifestações
artísticas nas ruas e exigiam trajes apropriados para a cena. Em 1615, em Bruxelas,
acontecia um festival chamado Ommeganck, realizado em homenagem à Virgem
Maria, nesse ano houve uma sessão especial, homenageando a arquiduquesa
Isabella (HOLME, 1988). As imagens 47, 48, 49 e 50 retratam a pintura de Denys Van
Alsloot, de 1616, que ilustra esse cortejo.
Bryan Holme (1988), no livro Princely feasts and festivals, descreve a
espetacularidade do triunfo de Isabella, evento que aconteceu em Bruxelas dentro do
festival Ommeganck, realizado em homenagem à Virgem Maria, em 1615. A pintura
de Denys Van Alsloot demonstra trajes de cena e trajes sociais no mesmo quadro.
Imagem 47 – O Ommegang em Bruxelas em 31 de maio de 1615: O triunfo da arquiduquesa
Isabella – parte 1, 1616, Denys Van Alsloot, Bruxelas
Fonte: Disponível em: https://collections.vam.ac.uk/item/O18973/the-ommegang-in-brussels-
on-painting-alsloot-denys-van/ Acesso em: 13 mai. 2021.
No detalhe deste quadro, na imagem 47, podemos observar que “no fundo
estão quatro camelos brilhantemente adereçados, montados por crianças; o terceiro
foi transformado em unicórnio e o quarto em dragão” (HOLME, 1988, p. 45, tradução
nossa). Ao fundo, pessoas comuns se amontoam para assistir ao desfile.
O nível de construção dos trajes para essas celebrações públicas era altíssimo,
isso é perceptível por essa pintura, pela grandiosidade do evento e pela diversidade
78
de figuras fantásticas representadas. Na imagem 48, outro detalhe da mesma pintura
mostra:
Em primeiro plano, a carroça principal, à direita, carrega uma enorme gaiola
e um homem sentado em um trono cercado por atendentes vestidos de
penas; ele é o rei Psapho da Líbia, um sábio oriental que ensinou os pássaros
a falar seu nome (HOLME, 1988, p. 45, tradução nossa).
Imagem 48 – O Ommegang em Bruxelas em 31 de maio de 1615: O triunfo da arquiduquesa
Isabella – parte 2, 1616, Denys Van Alsloot, Bruxelas
Fonte: Disponível em: https://collections.vam.ac.uk/item/O18973/the-ommegang-in-brussels-
on-painting-alsloot-denys-van/ Acesso em: 13 mai. 2021.
A imagem 49 demonstra a grandiosidade desse evento e a grande quantidade
de carros alegóricos com diferentes temas representados.
Na parte de trás, primeiro vem uma carroça mostrando as virtudes de Isabella
e, em seguida, um navio elaborado carregando as figuras da Virgem e do
Menino - é rebocado por cavalos-marinhos e seguido por elefantes-marinhos
puxando os Pilares de Hércules. Na linha do meio, vemos a Anunciação; o
tronco de Jessé, com o rei Davi sob um dossel de onde cresce a Árvore que
termina na Virgem; e Apolo e as Nove Musas. As duas carroças em primeiro
plano representam a Corte de Isabella, com a Fama assentada em um pilar,
e Diana e suas ninfas (HOLME, 1988, p. 45, tradução nossa).
79
Imagem 49 – O Ommegang em Bruxelas em 31 de maio de 1615: O triunfo da arquiduquesa
Isabella – parte 3, 1616, Denys Van Alsloot, Bruxelas
Fonte: Disponível em: https://collections.vam.ac.uk/item/O18973/the-ommegang-in-brussels-
on-painting-alsloot-denys-van/ Acesso em: 13 mai. 2021.
Se aproximarmos ainda mais um pouco (imagem 50), veremos crianças do
povo correndo, assustadas por duas personagens monstruosas.
Imagem 50 – O Ommegang em Bruxelas em 31 de maio de 1615: O triunfo da arquiduquesa
Isabella – detalhe da parte 3, 1616, Denys Van Alsloot, Bruxelas
Fonte: Disponível em: https://collections.vam.ac.uk/item/O18973/the-ommegang-in-brussels-
on-painting-alsloot-denys-van/ Acesso em: 13 mai. 2021.
3.6 Shakespeare e o teatro elizabetano
80
Algumas décadas antes do Triunfo de Isabella, especificamente em 1590,
segundo Berthold (2000), William Shakespeare chegou a Londres e, nessa época, a
cidade possuía três teatros. Shakespeare foi ator e dramaturgo de grande
repercussão na história do teatro, atuando no grupo Chamberlain’s Men. Durante o
reinado de Elizabeth I, Shakespeare ficou conhecido por retratar o ser humano
consciente de si mesmo e de suas relações sociais. Ele é autor de 38 peças teatrais,
muitas delas se inspiram em outros textos, porém foram remodelados ao ponto de se
tornarem uma marca estilística (BROCKETT, 1991).
A ação [cênica] normalmente dura meses ou anos e ocorre em locais
amplamente separados. Esta amplidão cria uma sensação de que a vida
continua nos bastidores.
Os grandes elencos de Shakespeare são compostos de personagens bem
arredondados que variam do inepto e ridículo ao comandante e heroico, do
jovem e inocente ao velho e corrupto.
Seu diálogo poético e figurativo não apenas desperta emoções, estados de
espírito e ideias específicas, mas também cria uma rede de associações e
conotações complexas que transcende a situação dramática imediata.
(BROCKETT, 1991, p. 160, tradução nossa).
O teatro elisabetano também marcou a cenografia da época. O espaço cênico
elisabetano foi influenciado pelos currais espanhóis, aproximando o público da
encenação. O teatro se misturava com o cenário da cidade, cheirava mal e ainda que
possuísse condições precárias de higiene e saúde pública, durante o verão, os
espectadores se amontoavam ao redor do palco, todos em pé, para assistir ao
espetáculo.
Na imagem 51 vemos o interior do Teatro Swan, através de uma cópia feita por
Arend van Buchell, do desenho do visitante holandês Johannes de Witt, em 1596. O
desenho apresenta as três galerias e o teto inclinado para dentro citado por Berthold
(2000); também se nota o prolongamento do proscênio, área frontal do palco,
adentrando na plateia; as portas ao fundo, por onde os atores entram e saem de cena;
a galeria acima do palco; e na parte superior, ainda tem um espaço por onde um ator
pode se comunicar com os espectadores.
81
Imagem 51 – Esboço do teatro The Swan, em Londres, de Jean de Witt, 1596.
Fonte: Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/The_Swan_(theatre)#/media/File:The_Swan_cropped.png
Acesso em: 16 mai. 2021.
Imagem 52 – Detalhe do mapa de Londres em 1616, de J. C. Visscher.
Fonte: Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/Visscher_panorama#/media/File:London_panorama,_1616b.jpg
Acesso em: 16 mai. 2021.
A imagem 52, por sua vez, apresenta um mapa de Londres no início do século
XVII e na lateral do rio Tâmisa, na parte inferior da imagem e ao centro, estão os
teatros Globe e Bear Garden. A estrutura do teatro possuía um apelo visual muito
chamativo e não era possível fazer grandes alterações cenográficas, como utilizar
grandes telões, por exemplo; o prédio servia como cenário para os espetáculos.
82
Dessa forma, o cenário era construído através das falas das personagens, indicando
a hora, a posição do sol ou da lua, mesmo que a realidade fosse o céu nublado,
trovões ou o barulho intenso do rio do lado de fora. (BERTHOLD, 2000).
Os trajes de cena eram chamativos, pois era importante para destacar as
personagens diante do cenário fixo. A maior parte dos personagens vestiam trajes
contemporâneos, independente da época ou da origem de cada um deles. Para
Brockett (1991), havia cinco possibilidades de não usar trajes elisabetanos em cena:
1. roupas fora de moda, usadas para indicar falta de moda ou,
ocasionalmente, para sugerir outro período;
2. antigo, consistindo em cortinas adicionadas a vestimentas
contemporâneas, usadas para certas figuras clássicas;
3. vestimentas fantasiosas, usadas para fantasmas, bruxas, fadas, deuses
e personagens alegóricos;
4. trajes tradicionais, associados a alguns personagens específicos, como
Robin Hood, Henri V, Tamburlaine, Falstaff e Ricardo III;
5. trajes nacionais ou raciais, usados para destacar turcos, índios, judeus
e espanhóis.
Os trajes do período dos dois primeiros reis da dinastia Tudor, Henrique VII e
Henrique VIII, que compreende os anos entre 1485 e 1547, eram:
para as mulheres, o penteado mais baixo, o vestido com decote quadrado,
as mangas compridas e estreitas; para os homens, o gibão bem curto, a
camisa deixando o pescoço descoberto, os culotes estreitos e
frequentemente confeccionados em duas cores, depois bufantes e com
nesgas (BOUCHER, 2010, p. 198).
No reinado de Elizabeth I, a última Tudor, que durou de 1558 a 1603:
as mulheres [vestiam] corpetes bem apertados com mangas estreitas e saias
bem amplas; para os homens, um gibão colante com calções bufantes. [Nos
últimos anos]: os homens preferem a gola revirada ao rufo e adotam um gibão
mais simples; nas mulheres, o vestido cônico ganha uma forma cilíndrica que
valoriza um corpete ainda mais justo (BOUCHER, 2010, p. 202).
No desenho de Titus Andronicus - atribuído a Henry Peacham - do final do
século XVI (imagem 53), os personagens masculinos vestem uma mistura de
83
elementos dos trajes romanos, como o elmo e armaduras e trajes elisabetanos, como
os calções folgados e gibão. Esses trajes de cena representados na ilustração de
Peacham remetem diretamente ao traje social da época, conforme podemos observar
no quadro de Joris Hoefnagel (imagem 54) e no detalhe das figuras retratadas no
canto inferior à direita. Os homens vestem casaco, camisa, calção e meias; e as
mulheres vestem saias ou vestidos, com a parte superior ajustada ao corpo, como um
corpete.
Imagem 53 – Desenho de cena de Titus Andrônicus, atribuído a Henry Peacham, 1595.
Fonte: Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Titus_Andronicus_1595.jpg#/media/File:Titus_Andro
nicus_1595.jpg Acesso em: 16 mai. 2021.
Imagem 54 – Casamento em Bermondsey, de Joris Hoefnagel, c. 1569.
Fonte: Disponível em: http://www.sandragulland.com/eagles-red-kites-and-an-elizabethan-
wedding-a-round-about-way-to-come-up-with-an-idea-for-a-scene/ Acesso em: 16 ago. 2021.
Os trajes de cena eram adquiridos pelas companhias da época, doações dos
mais nobres eram bem recebidas, assim como da família real (BROCKETT, 1991). A
manutenção desses trajes exigia cuidado, tendo em vista que os figurinos eram fator
84
imprescindível à encenação. “Alguns registros do período referem-se a tiremen
(guarda-roupas), alguns deles aparentemente formados com alfaiates, embora haja
poucas informações específicas sobre o que faziam” (BROCKETT, 1991, p. 180,
tradução nossa). Ao que parece, havia na época uma preocupação com a
manutenção e aproveitamento dos trajes de cena e para isso era necessário a
presença de profissionais que auxiliassem com o guarda-roupa.
3.7 Commedia dell’Arte
Em meados do século XVI, se estabelece na Itália um marco importante para
o teatro popular, a Commedia dell’Arte. As raízes desse movimento artístico estão nos
Mimos da Grécia, nas Atelanas romanas, nos bufões, nos artistas de rua e vendedores
ambulantes da Idade Média. Inicialmente, a Commedia dell’Arte existia apenas como
contraponto ao teatro literário culto, chamado de Commedia erudite (BERTHOLD,
2000). Porém, se espalhou rapidamente pela Europa e se fortaleceu como expressão
teatral.
Esse movimento poderia ser denominado de “Commedia dell'Arte (comédia de
atores profissionais), Commedia all'improviso (comédia improvisada) e Commedia a
soggetto (comédia desenvolvida a partir de um enredo, tema ou assunto)”
(BROCKETT, 1991, p. 147, tradução nossa). Porém, o termo Commedia dell’Arte se
tornou mais conhecido e difundido até a atualidade. Não existe um consenso sobre a
data de início, mas Brockett49 afirma que, em 1568, foi encontrado um contrato que
parece ser de uma apresentação de Commedia dell’Arte do ano de 1545. Sobre a
origem da Commedia dell'Arte:
alguns teóricos buscam rastreá-la a partir das Atelanas, farsa romana,
preservada por mímicos errantes durante a Idade Média. A principal
evidência para essa visão é a semelhança dos personagens tradicionais nas
duas formas. Uma variação dessa teoria rastreia a comédia de trupes de
mímicos bizantinos que supostamente fugiram para o Ocidente quando
Constantinopla caiu em 1453. Outros estudiosos argumentaram que ela
evoluiu a partir da improvisação nas comédias de Plauto e Terêncio.
(BROCKETT, 1991, p. 147, tradução nossa).
A Commedia dell’Arte pode ser caracterizada como a arte do improviso. A
improvisação é a essência da interpretação na Commedia dell’Arte, onde os atores
49
Ibid.
85
estudam um personagem tipo e se dedicam a interpretá-lo por muito tempo. Cada
personagem tem uma postura e movimentações específicas. Há também as piadas e
truques cômicos que são recorrentes para cada um, chamados de lazzi. Mesmo
funcionando de maneira improvisada, os atores seguem o scenario, ou soggeto, que
é o roteiro sequenciado das cenas ou dos momentos da encenação (BERTHOLD,
2000).
Imagem 55 – Comediantes franceses e italianos, no Théâtre Royal em Paris, 1670. Pintura à
óleo anônima. Coleção da Commedie Française.
Fonte: Disponível em: https://www.comedie-francaise.fr/fr/expositions_virtuelles/il-etait-une-
fois-hellip-la-comedie-francaise. Acesso em: 22 jun. 2020.
Muitas pinturas e gravuras ilustram esse período nas artes cênicas, entre elas
as mais conhecidas são de Alessandro Scalzi e Antoine Watteau50. Porém, é em uma
ilustração anônima, de 1670, disponível atualmente no acervo da Comedie-Française,
que se pode observar vários atores representando seus tipos em um palco, sob o
olhar de Molière, ator, diretor e dramaturgo francês que abordaremos em seguida. A
Commedia dell’Arte foi um movimento iniciado na Itália no século XVI e durou bastante
50
Ibid.
86
tempo e, devido a seu caráter itinerante, alcançou outros países, a França foi um
deles.
Existem vários tipos de personagens na Commedia dell’Arte. Esses tipos estão
fixados pelos dialetos das regiões italianas: do Norte, vem Arlecchino e Brighella
(Bérgamo), Pantalone (Veneza), Il Dottore (Bolonha); do Sul, Pulcinella, Tartaglia e Il
Capitano (Nápoles ou Calábria); e da Toscana, provavelmente, vem os enamorados
e a Colombina (RUDLIN, 1994). Para cada tipo existe uma máscara específica, as
máscaras são confeccionadas em couro e se encaixam na metade superior do rosto
do ator, fazendo parte da caracterização. Apenas os enamorados e algumas versões
do Il Capitano não usam máscaras. Na imagem 55, da esquerda para direita, estão:
Molière, Jodelet, Poisson, Turlupin, Capitan Matamoros, Arlecchino, Guillot Gorju,
Gros Guillaume, o doutor Granan Balourd, Gaultier Garguille, Polichinelo, Pantaleone,
Phillipin (no balcão), Scaramuccia, Criquelle e Trivelino, conforme descrição na
própria imagem.
A maior parte dos personagens na imagem 55 vestem trajes sociais, exceto
pelos trajes multicoloridos do Arlecchino e do Trivelino, que usam tecido de losangos
coloridos nas calças e casacos. Arlecchino, Briguella, Pulcinella e Colombina são
Zannis, servos atrapalhados e espirituosos, mas cada um com características
próprias; e Trivelino assume o lugar do Arlecchino em algumas trupes de Commedia
dell’Arte.
O grande marco para os trajes de cena da Commedia dell’Arte é o resgate de
personagens populares comuns na Idade Média, e consequentemente sua forma de
vestir. O Arlecchino é um dos personagens mais famosos da Commedia dell’Arte e o
traje dele segue o padrão da indumentária masculina na Idade Média, calça comprida
e um camisão. Para acrescentar comicidade a esse personagem, a camisa está
ajustada por um cinto que amarra um porrete, como símbolo fálico, e outros objetos
que fazem barulho ao se movimentar. Ao longo da história variações foram feitas no
traje do Arlecchino, mas a característica que se manteve foram os retalhos coloridos.
Ele também usa sapatos pretos e rasteiros e uma boina ou chapéu de feltro com uma
pena ou rabo de coelho, costume de alguns camponeses de Bérgamo, região italiana
original dele51.
51
Ibid.
87
Imagem 56 – O ultimo julgamento, por volta do século XII. British Library.
Fonte: BARBIERI, Donatella. Costume in performance: Materiality, culture and the body.
Londres: Bloomsbury, 2017.
Uma das teorias sobre os retalhos neste traje é “uma história francesa sobre
um amigo de Arlequim dando-lhe os retalhos de sua fantasia de mardi gras, para o
pobre Arlequim fazer um traje para si” (RUDLIN, 1994, p. 77, tradução nossa). A
questão da utilização dos retalhos no traje do Arlecchino, pode ter relação com a falta
de condições para se comprar um tecido maior, todavia, se tornou uma escolha
estética, que ajuda a criar textura e aumentar o colorido do traje. Outra possível
relação com a origem do traje do Arlecchino é apresentada por Barbieri (2017),
aproximando-o da figura do diabo, a partir da imagem do último julgamento (imagem
56), onde aparecem demônios com trajes com recortes triangulares, essa imagem
também gera uma associação com o sátiro, pela animosidade apresentada. Essa
relação do Arlecchino com o diabo também é citada por outros autores, como Rudlin
(1994), que diz que o nome Arlecchino pode derivar de Hellecchino, significando
pequeno demônio.
88
Outra evidência que justifica essa comparação com uma figura demoníaca está
na máscara utilizada pelo Arlecchino, que é confeccionada em couro, possui abertura
redonda para os dois olhos e uma verruga na testa (RUDLIN, 1994). Essa verruga é
considerada por alguns autores, como Donato e Amleto Sartori, no livro A Arte Mágica
(2013), um vestígio de chifre cerrado, aproximando mais a ideia de sátiro ou demônio.
No início, a máscara do Arlecchino cobria toda a face do ator, e era feita em papelão
encerado, depois tornou-se meia máscara de couro com aberturas finas nos olhos e
arcos de sobrancelha proeminentes, fazendo com que o personagem estivesse
permanentemente curioso e nunca satisfeito (GRIGNOLA, 2000).
Imagem 57 – Máscara do Arlecchino, século XVI. Bibliotèque de l’Opéra, Paris.
Fonte: BARBIERI, Donatella. Costume in performance: Materiality, culture and the body.
Londres: Bloomsbury, 2017.
Todavia, a indumentária dos séculos XVI e XVII também influenciou os trajes
de cena da Commedia dell’Arte. A partir dos retratos nas imagens 58 e 59 é possível
traçar um paralelo entre alguns trajes da Commedia dell’Arte e os trajes sociais do
mesmo período. No Retrato de um jovem rapaz (imagem 58), obra do pintor italiano
Bronzino, da primeira metade do século XVI, o rapaz veste um casaco escuro com
textura de recortes no próprio tecido, que se parece com a parte superior do traje do
Scaramuccia, personagem localizado no canto direito inferior da imagem 55, e
representa um capitão.
89
Imagem 58 – Retrato de um jovem rapaz, de Bronzino, 1530.
Fonte: Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/435802 Acesso em:
16 ago. 2021.
Já o Retrato de um garoto (imagem 59), do pintor espanhol Francisco de
Zubarán, do século XVII, traz a capa como elemento do traje social masculino, comum
aos personagens Pantaleone, velho mercador avarento, que geralmente quer mostrar
sua virilidade, e o Dottore, renomado professor da Universidade de Bolonha, detentor
de todo o conhecimento.
A imagem 60 apresenta a silhueta feminina do final do século XVI e início do
século XVII: saia ampla com cintura marcada, blusa ajustada com mangas e decote
acentuado. O avental, segundo descrição da imagem no site do Victoria and Albert
Museum, era uma peça fundamental na indumentária feminina deste período, e sua
função era decorativa, tendo em vista os bordados e as aplicações feitos à mão. A
Colombina, versão feminina do Arlecchino na Commedia dell’Arte, é representada
com trajes semelhantes a esse.
90
Imagem 59 – Retrato de um garoto (O Duque de Medinaceli), de Francisco de Zurbarán, c.
séc. XVII.
Fonte: Disponível em: https://www.wikiart.org/en/francisco-de-zurbaran/portrait-of-a-boy-the-
duke-of-medinaceli Acesso em: 16 ago. 2021.
Imagem 60 – Traje feminino com avental feito à mão, c.1580-1600.
Fonte: Disponível em: https://collections.vam.ac.uk/item/O113936/apron-unknown/ Acesso
em: 20 ago. 2021.
91
As imagens 61 a 66 são ilustrações de Constantina Fiorini, para o livro de
Antonella Grignola (2000), de alguns personagens da Commedia Dell’Arte, com trajes,
adereços e máscaras específicas de cada um. Os trajes de cena dessas ilustrações
são os mesmos que apareceram na imagem 55 e se relacionam diretamente com a
indumentária dos séculos XVI e XVII. Alguns deles apresentam traços da indumentária
da Idade Média, como é o caso do Arlecchino e do Pantaleone.
Imagem 61 – Arlecchino Imagem 62 – Pulcinella Imagem 63 - Colombina
Fonte: GRIGNOLA, Antonella. Maschere italiane nella Commedia dell’arte. Colognola ai Colli:
Demetra, 2000.
Imagem 64 – Pantaleone Imagem 65 – Il Dottore Imagem 66 - Scaramuccia
Fonte: GRIGNOLA, Antonella. Maschere italiane nella Commedia dell’arte. Colognola ai Colli:
Demetra, 2000.
A Commedia dell’Arte teve seu auge entre 1550 e 1650, porém as piadas foram
decaindo e a improvisação perdeu prestígio. Um século depois, em 1746, o
92
dramaturgo Carlo Goldoni, se inspirou na Commedia dell’Arte e escreveu o texto
teatral “Arlequim, o servidor de dois patrões, para o grupo do famoso intérprete de
Truffaldino, o ator Antonio Sacchi. Com suas peças, Goldoni realizou a tão tardia
renovação do teatro italiano” (BERTHOLD, 2000, p. 367). A herança deste movimento
teatral influenciou a comédia nos anos seguintes.
3.8 Molière e a Comédie-Française
Na França, Jean Baptiste Poquelin, posteriormente conhecido como Molière,
se destacou. Em 1643, ele já atuava no teatro. Nessa época, Molière fundou a
companhia L’Illustre Théâtre, juntamente com a atriz Madeleine Béjart. Em 1658, eles
se apresentaram diante do rei, com o espetáculo Nicomède, de Pierre Corneille,
porém foi a farsa Le dépit amoureux (A Decepção Amorosa), escrita por Molière, que
encantou a plateia no intervalo. Em 1661, Molière e sua companhia já haviam sido
nomeados os comediantes do Rei e receberam o teatro do Palais Royal (antigo Palais
Cardinal Richelieu) para os serviços teatrais52. No Palais Royal, a companhia de
Molière atuou entre 1660 e 1673 (BROCKETT, 1991).
Molière foi responsável pela ascensão da comédia ao mesmo status da
tragédia. Os textos escritos por ele, alcançaram grande notoriedade na história do
teatro, alguns desses textos se baseavam na Commedia dell’Arte, às vezes inclusive,
utilizando os mesmos nomes dos personagens italianos. Molière escreveu farsas,
comédias-balé53 e foi reconhecido principalmente pelas comédias de caracteres54,
onde ele demonstrou sua especialidade em caracterizar os personagens através do
texto.
Molière fez da comédia um reflexo vital da vida e dos costumes de sua época.
Ainda assim, há pouca amargura em suas peças, pois embora ele
ridicularizasse os costumes e os tipos de personagem, ele não acreditava
que os humanos pudessem ser mudados; assim, ele mostra a natureza
humana sendo deformada por vários tipos de comportamentos desviantes,
mas não sugere que isso possa ser aperfeiçoado. Consequentemente, seus
personagens permanecem os mesmos no final das peças, assim como no
início. (BROCKETT, 1991, p. 228, tradução nossa).
52
Ibid.
53
A comédia-balé foi um gênero dramático que utilizava música e coreografias em sua composição,
criado em meados do século XVII por Jean-Baptiste Lully e Molière.
54
A comédia de caracteres é um estilo de comédia o personagem principal apresenta um estado cômico
alterado, seja na perspectiva moral ou psicológica, contrapondo os demais que são encarados como
“normais”.
93
Observa-se que a produção dramatúrgica e teatral de Molière e sua companhia,
nos anos em que estiveram no Palais Royal, foi intensa. Molière escrevia para a
companhia dele, já sabendo quem iria interpretar cada personagem. Ele dirigia os
espetáculos e interpretava o papel principal.
Segundo Berthold (2000), Molière atuou em mais de trinta personagens
escritos por ele mesmo, até o dia 17 de fevereiro de 1673, quando veio a falecer
enquanto interpretava O Doente Imaginário. A cadeira onde ele faleceu está exposta
no museu da Comédie-Française. Em 1680, Luís XIV criou a Comédie-Française
unindo a antiga companhia de Molière a outros atores, com o propósito de produzir
espetáculos cada vez melhores. Molière é considerado patrono da Comédie-
Française, até hoje a sede se chama Maison de Molière. A imagem 67 ilustra uma
apresentação de O Doente Imaginário, no Jardim de Versailles, onde é possível
observar o personagem principal, Argan, em sua cadeira.
Imagem 67 – O doente imaginário, em Versailles. Gravura de Le Pautre, 1676.
Fonte: Disponível em: https://cdn.radiofrance.fr/s3/cruiser-production/2018/07/331405ff-9819-
44f7-9a2b-82c924789ffc/054_bra00418.jpg Acesso em: 24 mai. 2021.
Os trajes dessa época possuíam características essenciais do Barroco, com
exageros e riqueza de detalhes. Em meados do século XVII, a França começou a usar
o rhingrave, uma saia-calça larga e com muitas pregas, que impossibilitava ver a
separação das pernas. Outra peça característica do traje masculino da época é o
sobretudo (justacorps), também utilizado pelos militares, porém, mais alongado e
largo na barra, era usado sobre calções bufantes ou na altura dos joelhos e mais
94
ajustadas ao corpo. O traje feminino tinha gola ampla, sobreposição de saias com
utilização de volume extra nos quadris (panniers), e o corpete de barbatanas era rígido
e alongado formando uma ponta na parte frontal. Ambos os trajes eram adornados
com fitas e passamanarias, formando volumes com amarrações nas mangas, nas
pernas e na sobressaia (BOUCHER, 2010).
Imagem 68 – Trajes de homens e mulheres da Corte Francesa, incluindo Cardeal, Soldado,
Duque, Rainha e Rei, c. 1600-1670.
Fonte: Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/6f/1600-
1670_French._-_088_-_Costumes_of_All_Nations_%281882%29.JPG
Acesso em: 21 ago. 2021.
Esses trajes são facilmente reconhecidos na cena teatral, inclusive nos
espetáculos de Molière. O traje de cena é uma variante do traje social, acrescido da
parte decorativa, da bufonaria, da troca de material, dos excessos, etc. Essa
aproximação do traje de cena com o traje social é uma forma de buscar identificação
do público com o espetáculo. As gravuras do século XVII que ilustram,
95
respectivamente, os espetáculos As Preciosas Rídiculas e O Burguês Fidalgo
demonstram essa relação com o traje social do Barroco francês.
Imagem 69 - As preciosas ridículas, gravura Imagem 70 – O burguês fidalgo, gravura de
de P. Brissart, primeira página de edição de P. Brissart, primeira página de publicação
1682. de 1688.
Fonte: Disponível em: Fonte: Disponível em:
https://fr.wikipedia.org/wiki/Les_Précieuses_rid https://pt.wikipedia.org/wiki/Le_Bourgeois_
icules#/media/Fichier:Les_Précieuses_ridicule gentilhomme#/media/Ficheiro:BourgeoisGe
s.jpg Acesso em: 24 mai. 2021. ntilhomme1688.jpg Acesso em: 24 mai.
2021.
Já as imagens 71 e 72 indicam, respectivamente, trajes de cena para o
personagem Monsieur Jourdain, protagonista da peça O burguês fidalgo, em dois
momentos diferentes - o primeiro é um registro do século XIX e o segundo do século
XX. Os trajes desse espetáculo são importantes pois Monsieur Jourdain deseja
ascender à classe dos nobres e investe em trajes opulentos para alcançar esse
desejo.
96
Imagem 71 – O burguês fidalgo, Monsieur Jourdain, digitalização de coleção do século XIX.
Fonte: Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Le-bourgeois-
gentilhomme.jpg#/media/File:Le-bourgeois-gentilhomme.jpg Acesso em: 25 mai. 2021.
Imagem 72 – O Burguês fidalgo, 1938, Monsieur Jourdain, desenho de Charles Bétout,
Comédie-Française.
Fonte: Disponível em: https://www.comedie-francaise.fr/fr/expositions_virtuelles/moliere-en-
couleurs Acesso em: 25 mai. 2021.
Nas duas interpretações é possível observar a presença do justacorps citado
por Boucher (2010) como característico do período, assim como o excesso de
97
babados e laços. Na imagem 72, Monsieur Jourdain usa um rhingrave por baixo do
sobretudo, o que não era comum, tendo em vista que os homens vestiam uma casaca
mais curta com essa calça-saia, para dar maior notoriedade ao volume da peça
inferior. Esse exagero na sobreposição de duas peças que não eram usadas dessa
forma socialmente, reforça a comicidade do personagem principal pela identificação
do traje excessivo.
Outra característica deste espetáculo pode ser vista na imagem 70, no canto
esquerdo, um personagem veste um traje inspirado nos turcos. Esse é o final do
espetáculo, quando Cleonte - homem da classe média - finge ser um príncipe turco
para casar com a filha do Monsieur Jourdain. E com essa cerimônia o burguês acaba
recebendo o título falso de fidalgo. Os trajes de cena do século XVII na França
sofreram influência de outros países, principalmente dos italianos e dos tipos da
Commedia dell’Arte.
3.9 O Iluminismo e o teatro popular
No século XVIII, a ordem social e os modos de pensar se modificaram, abrindo
espaço para o domínio total da razão. O Iluminismo foi um grande movimento
intelectual que caracterizou esse período. “O iluminismo tendia para a reflexão, o
sentimentalismo e argumentação, autorizadas e inspiradas pela nova deusa da razão”
(BERTHOLD, 2000, p. 382). Os ideais iluministas exaltavam a ciência e negavam
todos os dogmas e doutrinas tradicionais, fossem eles religiosos, políticos ou sociais.
A cidade se tornou tão importante quanto a corte e, de Londres e Paris, saíam
os modelos seguidos por toda Europa. A burguesia ascendeu enquanto classe social
devido ao comércio. A Inglaterra foi a grande potência marítima do século XVIII e
influenciou a distribuição de bens e mercadorias pela Europa com base no tráfico de
pessoas escravizadas. A indústria têxtil teve plena expansão na Europa devido a
essas pessoas em condições de trabalho precárias. A criação dos fios e dos tecidos
foi se tornando cada vez mais tecnológica com a criação do primeiro tear automático,
em 1747, e a estamparia sobre tecido foi autorizada em 1759 pelo Escritório do
Comércio francês, com objetivo de confeccionar roupas mais acessíveis à população,
favorecendo a abertura de muitas empresas têxteis (BOUCHER, 2010). E mesmo com
todos os problemas políticos e econômicos, que incluíam a isenção de impostos para
98
os nobres e a igreja e acarretaram na Revolução de 1789, a França se manteve como
grande potência.
O teatro francês no século XVIII era padrão para outros países. O teatro, na era
do iluminismo, “tornou-se uma plataforma do novo autoconhecimento do homem, um
púlpito de filosofia moral, uma escola ética, um tema de controvérsias eruditas e
também um patrimônio comum, conscientemente desfrutado” (BERTHOLD, 2000, p.
381). Os espetáculos passaram a apresentar temas mais próximos à realidade, com
o objetivo de levar o espectador a refletir sobre as relações humanas.
Novos edifícios teatrais foram construídos pela Europa e o teatro popular
resistia nos espaços públicos externos. Durante o século XVI, muitos artistas se
apresentavam nas feiras, eram acrobatas, vendedores, pessoas com animais
treinados; no século XVII, esses espaços foram ocupados por companhias teatrais
ambulantes que apresentavam esquetes improvisados de Commedia dell’Arte.
Porém, quando as encenações italianas começaram a perder seu prestígio, seja por
competição com a Comédie Française, ou por apresentar sátiras que desagradavam
os nobres, eles foram expulsos da França, em 1667, retornando apenas em 1716,
quando o duque d’Orleans convidou uma trupe de Commedia dell’Arte para se
apresentar na França. Eles se instalaram no Hotel Bourgogne e em 1723, esse teatro
foi transformado em teatro estatal com o título oficial de Comédiens Ordinaires du Roi.
(BROCKETT, 1991).
Nessa época na Alemanha, Johann Elia Schlegel - escritor alemão - defendeu
que o teatro nacional deveria ser sustentado pelos soberanos e deveria procurar uma
dramaturgia própria, fora dos padrões franceses. Ele era a favor de que o teatro
alcançasse o grande público e, para isso, precisava abordar temas populares e da
cultura local (BERTHOLD, 2000). Esse tom local pretendido por Schlegel, também foi
abordado pela Opéra Comique, companhia oficial de comédia na França, em 1751,
quando personagens comuns substituíram os tipos da Commedia dell’Arte
(BROCKETT, 1991). Enquanto isso, as companhias que se apresentavam nas feiras,
enfrentavam proibições de apresentações e utilização de música nos espetáculos,
tudo para não gerar competição com a companhia oficial. A imagem 73 mostra um
detalhe do quadro de Joseph Stefan, com um palco montado ao ar livre, na frente de
um estabelecimento, onde os atores se apresentam para espectadores em pé. A
silhueta dos trajes de cena utilizados nessa obra, também se aproxima dos trajes
99
sociais, como podemos observar no quadro de St. James's Charles Philips, também
do século XVIII.
Imagem 73 – Palco de trupe ambulante no Anger em Munique, c. 1750. Detalhe da pintura
de Joseph Stephan.
Fonte: Disponível em:http://joseff-goegler-taufkirchen.de/wp-
content/uploads/2019/08/DSC_0372_1_kl.jpg Acesso em: 01 jun. 2021.
Imagem 74 - Festa do chá na casa de Lord Harrington, óleo sobre tela de St. James's
Charles Philips, 1730.
Fonte: Disponível em: https://collections.britishart.yale.edu/catalog/tms:987 Acesso em: 21
ago. 2021.
Segundo Marvin Carlson55 (In: SCHECHTER, 2003), as grandes feiras
desapareceram na segunda metade do século XVIII devido às rápidas mudanças
políticas, ou sofreram incêndios e não foram reconstruídas, ou foram desencorajadas
55
Marvin Carlson (1935 - ) teatrólogo e professor da City University of New York.
100
pela polícia local. Com tantas condições contrárias às formas populares de expressão
cênica que aconteciam nos arredores da cidade, esses artistas:
se mudaram ousadamente para a própria Paris e, mais acessíveis ao público,
tornaram-se mais populares do que nunca. O líder nesse movimento foi Jean
Baptist Nicolet, e em 1759, estabeleceu um teatro permanente no norte de
Paris no Boulevard du Temple (CARLSON In: SCHECHTER, 2003, p. 22,
tradução nossa).
As peças de vaudevilles se mantiveram até meados do século XIX, assim como
os boulevards. A imagem 75 é o registro do Boulevard du Temple vazio no início do
século XIX e constitui um marco histórico, pois é uma das primeiras fotografias.
Imagem 75 – Boulevard du Temple, Paris, um dos primeiros daguerreótipos de Louis
Daguerre, 1838.
Fonte: Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Boulevard_du_Temple_by_Daguerre.jpg#/media/Ficheir
o:Boulevard_du_Temple_by_Daguerre.jpg Acesso em: 02 jun. 21.
Voltaire (1694-1778) foi um dramaturgo representante desse período, ele
“adulava o espírito de sua época sem se sujeitar a ele” (BERTHOLD, 2000, p. 386).
Ele escreveu 53 peças de teatro, com tramas complexas, relacionamentos intricados
e mudanças repentinas. Para Brockett (1991) Voltaire dominou a tragédia no século
XVIII.
A dramaturgia de Voltaire apresentava heróis de outras culturas, em vez de
seguir os personagens burgueses. Em L’Orphelin de la Chine (1755), Voltaire
apresenta um drama vivido por Gengis Khan, que se rende às virtudes da esposa,
101
Idamé, para se tornar um vencedor inteligente (BERTHOLD, 2000). Mlle. Clairon e
Henri-Louis Lekain, importantes atores da Comédie-Française neste período,
interpretaram, respectivamente, Idamé e Gengis Khan. Para esse espetáculo, Voltaire
convidou Joseph Vernet para desenhar os trajes de cena, baseados em trajes
chineses e sem apelo cômico, na prática ficaram semelhantes aos trajes turcos
(BROCKETT, 1991).
Uma ilustração da Mlle. Clairon, representando Idamé, foi publicada na 26ª
edição da Cahiers de Costumes Français, que podemos observar na imagem 76.
Nota-se que o traje de cena dela é uma mistura do traje francês com aquilo que
imaginavam ser o traje chinês. Mlle. Clairon vestia calças turcas, sob a base do
vestido francês, inclusive com pele de arminho56 no manto sobreposto. Segundo
Berthold (2000), esse é um indicativo de que a verossimilhança estava começando a
se apresentar nos trajes de cena. Embora hoje sabemos que se tratava de uma
maneira como o europeu via esses mundos que eles não tinham contato.
Da mesma forma, na imagem 77, observamos o ator Lekain vestido para
interpretar Gengis Khan. Ele e os outros atores vestiam trajes inspirados nos tártaros
e chineses. Porém, mesmo com toda essa mobilização em busca do verossímil, os
preconceitos da época não se extinguiram com essas experiências (BOUCHER,
2010). Por isso, ainda existem linhas e modelagens do vestuário francês misturado as
influências orientais.
A influência de Mlle. Clairon para a mudança no traje de cena foi enorme.
Segundo Boucher, ela incentivava outras atrizes:
a renunciar as modas “do momento”, sobretudo em matéria de penteados.
Qualificando de absurda a tradição que impunha, por exemplo, representar
Electra em trajes cor de rosa enfeitados com azeviche, ela queria que se
inspirassem no corte das roupas gregas e romanas, sem, todavia, copiá-las
exatamente. (BOUCHER, 2010, p. 286).
56
Arminho é um animal de pequeno porte comum no hemisfério norte. A pele desse animal é branca e
a ponta de sua calda é preta. No Renascimento, os nobres utilizavam a pele de arminho para decorar
mantos e trajes.
102
Imagem 76 - Mademoseille Clairon como Idamé, em L’Orphelin de la Chine de Voltaire.
Desenho do figurinista da corte, Sarrazin.
Fonte: Disponível em:
https://i.pinimg.com/474x/d2/67/9e/d2679e034d483a1476e3b571e2d9d55e.jpg . Acesso em:
22 jun. 2020.
Imagem 77 - Retrato de Lekain no papel de Gengis-Kan em L'Orphelin de la Chine de
Voltaire, representado para a estreia na Comédie-Française em 1755.
Fonte: Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Lekain#/media/File:Portrait_de_Le_Kain_dans_
le_rôle_de_Gengis-Kan_(L'Orphelin_de_la_Chine).png Acesso em: 01 jun. 2021.
Era o início de uma mudança significativa para os trajes de cena. Para Brockett
(1991), essa mudança se iniciou quando Adrienne Lecouvreur, também atriz da
103
Comédie-Française, ainda no início do século XVIII, passou a vestir trajes de corte
mais elaborados para a tragédia, pois até 1727, as roupas sociais podiam ser vistas
nos espetáculos de comédia e tragédia. Os figurinistas da época tinham experiência
com a pintura, os mais conhecidos foram François Boucher57 (1703-1770), ícone do
estilo Rococó, e seu aluno, Louis-René Boquet (1717-1814), que ficou conhecido
pelos trajes de balé.
Os trajes de cena desta época vinham do guarda-roupa da companhia ou eram
dos próprios atores, assim como acontecia também na Inglaterra. Esses trajes eram
reutilizados e até mesmo vendidos entre os atores (BROCKETT, 1991).
3.9.1 Jean-Jacques Rousseau e as festas públicas
Como podemos observar ao longo da história do teatro até aqui, as expressões
populares sempre existiram - dialogando ou não com o teatro formal,
institucionalizado. O teatro popular é uma manifestação artística milenar. Neste ponto
da história, em meados do século XVIII, o filósofo iluminista e dramaturgo Jean-
Jacques Rousseau (1712-1778) escreveu sobre o teatro popular como um desejo que
ele tinha para as artes cênicas em Genebra, cidade natal dele.
Através da Carta à D’Alembert de 1758, escrita em resposta à definição de
“Genebra” na Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des
métiers escrito em parceria por Jean le Rond D’Alembert - matemático e filósofo - e
Denis Diderot - dramaturgo e filósofo - que versava sobre a instalação de uma nova
casa de espetáculos e a efervescência da vida cultural da cidade, Rousseau se opôs
à ascendência do drama clássico francês nos espetáculos suíços e à má influência do
comportamento libertino dos atores. (ROUSSEAU, 2015). Como vimos há pouco
tempo, a França dominava o cenário cultural desse período na Europa.
Voltaire, quando esteve exilado de Paris e foi morar nos arredores de Genebra
na Maison des Délices em 1754, realizou espetáculos em sua residência e foi um dos
responsáveis por levar atores da Comedie-Française para Genebra, desafiando as
normas locais que proibiam espetáculos teatrais. Esse movimento ficou conhecido
como “guerra do teatro suíço” (BERTHOLD, 2000, p. 388). Voltaire recebia visitas de
57
François Boucher foi um pintor francês, do século XVIII, dedicado ao estilo Rococó, que também
atuou como figurinista (BROCKETT, 1991). Ao longo do texto citamos o livro História do vestuário no
Ocidente (2010), escrito pelo homônimo François Boucher (1885-1966), porém, nascido no final do
século XIX, e reconhecido pelo trabalho como curador e historiador.
104
D’Alembert e também tinha a simpatia de Diderot, o que favoreceu ainda mais o
estranhamento com Rousseau.
Genebra era uma cidade protestante e ainda estava seguindo as leis suntuárias
que proibiam qualquer luxo aos indivíduos. Nesse contexto, Rousseau também
retornou para Genebra e em defesa da cultura local, ele afirmou:
De resto, confesso que eu preferiria, de minha parte, que pudéssemos
dispensar completamente esses teatros de feira, e que, crianças e adultos,
soubéssemos tirar nossos prazeres e nossos deveres de nossa condição e
de nós mesmos; mas de que devêssemos expulsar os saltimbancos não se
segue que devamos chamar os comediantes. (ROUSSEAU, 2015, p. 156).
Rousseau estava preocupado com o comportamento dos atores e a revolução
que os mesmos poderiam causar nos costumes daquela comunidade. Os exageros
provocados por Voltaire e pelos atores com quem ele trabalhava não eram bons
exemplos para Rousseau. Além disso, as trupes que se apresentavam nas feiras
também contribuíam para essa visão de Rousseau, devido as sátiras excessivas.
Mas isso não significava que ele fosse contra o teatro, visto que também era
dramaturgo. A vontade de Rousseau era que as festas públicas substituíssem as
apresentações em salões fechados e escuros. E que a convivência saudável fosse
condutora das ações artísticas coletivas.
Como! Não deve haver nenhum espetáculo numa República? Pelo contrário,
deve haver muitos deles. Nas Repúblicas eles nasceram, nelas os vemos
brilhar com um real ar de festa. A que povos convém mais reunir muitas vezes
seus cidadãos e travar entre eles os doces laços do prazer e da alegria, do
que aos que têm tantas razões para se amarem e permanecerem unidos para
sempre? Já temos os prazeres dessas festas públicas; tenhamo-nas em
ainda maior número, e ficarei ainda mais encantado. Mas não adotemos
esses espetáculos exclusivos que encerram tristemente um pequeno número
de pessoas num antro escuro; que as mantêm temerosas e imóveis no
silêncio da inação; que só oferecem aos olhos biombos, pontas de ferro,
soldados, aflitivas imagens da servidão e da desigualdade. Não, povos
felizes, não são essas as vossas festas! É ao ar livre, é sob o céu que deveis
reunir-vos e entregar-vos ao doce sentimento de vossa felicidade!
(ROUSSEAU, 2015, p. 157).
Vale ressaltar que os atores da época, e por muito tempo, foram conhecidos
como libertinos, associados à promiscuidade, ainda hoje, esse preconceito é
defendido por algumas pessoas. Neste caso, a manutenção da moralidade era
fundamental para Rousseau. Outro aspecto a ser observado, segundo Aileen Ribeiro,
era que a forma de vestir feminina denunciava o exagero e as frivolidades do
105
comportamento social das mulheres, enquanto que “os homens, em geral, com
exceção de um último floreio na década de 1770, entraram em sua herança puritana,
com uma aparência cada vez mais sóbria na segunda metade do século” (RIBEIRO,
1986, p. 95, tradução nossa). Agora, se a população já sofria com investidas acerca
do vestir-se, imagine o preconceito que ocorria contra as atrizes e os atores por serem
caracterizados como libertinos e muitas vezes imorais - era enorme. Por isso,
Rousseau defendia a ideia de festividades públicas com os cidadãos felizes nas
praças, em detrimento das apresentações teatrais que traziam temas violentos e
desiguais.
Quais serão, porém, os objetivos desses espetáculos? Que se mostrará
neles? Nada, se quisermos. Com a liberdade, em todos os lugares onde reina
a abundância, o bem-estar reina também. Plantai no meio de uma praça uma
estaca coroada de flores, reuni o povo e tereis uma festa. Ou melhor ainda:
oferecei os próprios espectadores como espetáculo; tornai-os eles mesmos
atores; fazei com que cada um se veja e se ame nos outros, para que com
isso todos fiquem mais unidos (ROUSSEAU, 2015, p. 157).
A festa pública deveria ser o divertimento do povo, e o povo deveria ser autor
e participante de tais festividades. A partir dessa citação de Rousseau é possível
traçar um paralelo com o posicionamento futuro de Augusto Boal, citado na definição
de teatro popular na segunda seção desta tese, onde, na teoria do Teatro do Oprimido,
o espectador assume o seu lugar de fala como ator durante a encenação. Porém, a
proposta de Rousseau era unir o povo - não havia preocupação em conscientização,
apenas divertimento público. Tais eventos deveriam se apresentar de forma simples,
sem adereços ou anteparos.
Eu oferecia as festas da Lacedemônia como modelo das que gostaria de ver
em nossa cidade. Não é só por seu objetivo, mas também por sua
simplicidade que as acho recomendáveis: sem pompa, sem luxo, sem
aparato, tudo ali respirava, com um encanto secreto de patriotismo que as
tornava interessantes, certo espírito marcial que convém a certos homens
livres; sem negócios e sem prazeres (ROUSSEAU, 2015, p. 167).
Na Carta a D’Alembert, Rousseau58 também cita um espetáculo que viu na
juventude na pequena cidade Neuchâtel e as danças na praça Saint-Gervais, todos
esses eventos tinham em comum a manutenção dos bons costumes e das tradições
do povo suíço, sem exageros ou importações a nível cultural.
58
Ibid.
106
Renata Barreto de Freitas, em sua dissertação de mestrado em História Social,
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, escreveu que não se pode
provar se essas cidades ou eventos realmente existiram na época de Rousseau, “mas
sim a subjetividade imaginativa de onde extrai a moralidade cívica que acredita ser
essencial para a manutenção da virtude em uma sociedade” (FREITAS, 2006, p. 73).
A arte teatral não foi recomendada para Genebra com o objetivo de favorecer as
tradições locais59. A imagem 78 ilustra trajes de folguedos das regiões de Zug, Soleure
e Dappenzell, na Suíça, em um desenho feito por Demoraine, no século XVIII.
Imagem 78 – Trajes de folguedos das regiões de Zug, Soleure e Dappenzell, na Suíça, no
século XVIII. Desenho de Demoraine.
Fonte: Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Zentralbibliothek_Solothurn_-
_1_COSTUME_DU_CANTON_DE_ZUG_2_ET_3_id_DE_SOLEURE_4_id_DAPPENZELL_-
_a0114.tif Acesso em: 04 jun. 2021.
Para Boucher (2010), havia uma dificuldade de comunicação com algumas
regiões da Suíça, o que favoreceu que elas mantivessem seus trajes tradicionais,
enquanto Genebra sofreu maior interferência do vestuário francês, por conta dos
viajantes frequentes. O que nos leva a perceber que as inquietações de Rousseau na
época eram reais. Porém, as mudanças, interferências e transformações são
inerentes a longa história da humanidade, e os trajes de cena também estão revelando
esse aspecto.
59
Ibid.
107
3.10 O teatro para os operários nos séculos XIX e XX
Durante o século XIX, aconteceram mudanças significativas na sociedade. A
ordem social assumiu um forte aspecto revolucionário, diante das lutas dos operários,
o crescimento dos monopólios e acúmulo de riqueza nas classes mais altas. A
produção teatral desse período trouxe para o centro a figura do encenador, atribuindo
outras tarefas para aquele que até então era apenas diretor, permitindo que ele fosse
o responsável por distribuir todas as funções e controlar todos os aspectos criativos
do espetáculo. Outra perspectiva importante é a mudança de estilo em poucas
décadas, “sobrepondo-se: naturalismo, simbolismo, expressionismo, teatro
convencional e teatro liberado, tradição e experimentação, drama épico e do absurdo,
teatro mágico e teatro de massa” (BERTHOLD, 2000, p. 452). A experiência do
encenador russo Konstantin Stanislavski60, que propôs grandes mudanças na
interpretação teatral, assim como outros encenadores do mesmo período, gerou
novas dinâmicas criativas para o teatro e, consequentemente, para o traje de cena. O
ator se especializou e se aprofundou no estudo do personagem e o traje não podia
ser o mesmo do cotidiano, a encenação passou a exigir trajes de cena que
dialogassem com o que estava sendo representado.
Todavia, como estamos falando de teatro popular, nos aproximaremos agora
mais do teatro para as massas, do que as outras vanguardas citadas. Nesse período,
muitos grupos e instituições se formaram com o objetivo de criar espetáculos e difundi-
los nas comunidades menos favorecidas e principalmente entre os operários, que não
tinham oportunidade de ir ao teatro. A iniciativa na França foi de extrema importância,
pois fortaleceu esse movimento a longo prazo, sendo possível ver reflexos dessa
iniciativa até hoje.
Somente no final do século XIX ele [o teatro popular] tenta institucionalizar-
se: assim a Freie Volksbühne em Berlim (1889), o Teatro do Povo de Maurice
Pottecher em Bussang, o Volkstheater de Viena, os esforços de Romain
Rolland e de seu ensaio O Teatro do povo (1903) e suas peças: Danton, le
14 Juillet. Na França, o projeto popular ressurge após a Segunda Guerra
Mundial, sob o impulso dos altos funcionários da cultura como Jeanne
Laurent ou de encenadores como Jean Vilar e Roger Planchon, bem como
dos teóricos reunidos em torno da revista Théâtre Populaire (1953-1964). Os
criadores estão em busca de um estilo, de um público e de um repertório
acessível à grande maioria. A bem da verdade, tal público popular
60
Konstantin Stanislavski (1863-1938) diretor teatral russo, responsável pelo desenvolvimento do
método das ações físicas e outras técnicas de preparação do ator.
108
compreende apenas poucos operários ou camponeses; ele se recruta,
sobretudo, entre a pequena burguesia intelectual, executivos, professores
(PAVIS, 1999, p. 394).
É perceptível que essa iniciativa não é apenas francesa, Pavis (1999) também
registra ações importantes na Alemanha e na Áustria em teatros que se tornaram
lugares de influência cultural e política. Na Alemanha, o Freie Volksbühne (teatro do
povo, em alemão) foi criado em 1890, em Berlim, com o intuito de tornar o teatro
acessível para todos, principalmente os que não tinham condições financeiras, nem
alta educação. O Volkstheater de Viena, na Áustria, foi inaugurado em 1889,
construído pelos arquitetos Ferdinand Fellner e Hermann Helmer, e tinha os mesmos
ideais, favorecer que todas as classes sociais pudessem ir ao teatro. Os espetáculos
variavam entre textos clássicos, textos populares e principalmente austríacos, essa
tradição ainda é mantida hoje. Na França, ocorreram muitas movimentações nesse
mesmo sentido. Maurice Pottecher, escritor francês, construiu em 1895 em Bussang
o Théâtre du Peuple, primeiramente com um palco desmontável e um ano depois com
uma estrutura maior e fixa. O principal objetivo era oferecer arte a todas as pessoas,
de forma descentralizada, tendo em vista que Bussang está afastada do centro
Parisiense. Romain Rolland, escritor e professor francês, vencedor do Nobel de
Literatura em 1915, apresenta no livro Théâtre du Peuple (1918) um tratado sobre a
necessidade de produzir arte para o povo refletindo as lutas, preocupações,
esperanças do homem e da mulher simples, retirando-os do lugar do deboche e
colocando-os como protagonistas das próprias histórias. (ROLLAND, 1918).
Para Rolland61, existem três fundamentos para o teatro do povo: a alegria, a
energia e a inteligência; para ele, as pessoas vão para o teatro para sentirem uma
mistura de emoções que tenha alguma relação com o real ou algo para ser
compartilhado. E, portanto, esse teatro deve evitar “a pedagogia moral, que busca
extrair lições sem vida das obras vivas, e o mero diletantismo impessoal, cujo único
propósito é divertir o povo a qualquer custo”62. Os exageros e o prazer desprovido de
interesse não fazem parte deste teatro. Essas características podem ser observadas
na montagem realizada pelo encenador Max Reinhardt do espetáculo Danton, escrito
por Rolland, onde, segundo o professor de estudos teatrais Jean-Jacques Roubine,
61
Ibid.
62
Ibid., p. 106-107, tradução nossa.
109
“o espaço cênico transformava-se em tribunal, enquanto a multidão dos
revolucionários estava misturada ao público na plateia” (ROUBINE, 1998, p. 84).
Imagem 79 – Danton, de Romain Rolland, dirigida por Max Reinhardt, em 1920.
Fonte: Disponível em: https://books.openedition.org/pur/docannexe/image/79262/img-2.jpg
Acesso em: 10 jun. 2021.
A imagem 79 apresenta uma cena desse espetáculo de Reinhardt, apresentado
em Berlim, em 1920, no Grossen Schauspielhaus. Outra característica fundamental
que podemos observar nesta imagem é a construção do traje de cena com traços
estilísticos da indumentária masculina francesa do final do século XVIII, época em que
viveu o personagem principal desta peça, porém não é uma cópia daqueles trajes,
mas uma representação (vide imagem 80). Os trajes de cena deste espetáculo foram
desenhados por Ernst Stern, designer que colaborou em muitos espetáculos de
Reinhardt.
110
Imagem 80 – Danton na tribuna, gravura de 1849.
Fonte: Disponível em:
https://fr.vikidia.org/wiki/Georges_Danton#/media/File:Danton_à_la_tribune.jpg Acesso em:
21 ago. 2021.
3.10.1 Firmin Gémier e o Théâtre National Ambulant
Inspirado na experiência de Maurice Pottecher e nos escritos de Romain
Rolland, Firmin Gémier (1869-1933) - ator e diretor teatral francês - criou o Théâtre
National Ambulant. Também instigado pelo desejo de descentralizar as produções
teatrais, Gémier criou um salão de teatro desmontável com 1650 lugares, que
excursionou por toda França, levando espetáculos de qualidade para comunidades
fora de Paris. Essa experiência não demorou muito, pois os lucros eram insuficientes,
embora fosse um sucesso de público (VIANA, 2020).
Para o crítico Régis Messac, Firmin Gémier encontrou “a fórmula exata do
Teatro Popular. [...] Gémier”, ele escreve, “pensava em oferecer ao povo
espetáculos bonitos, comoventes, artísticos e aristocráticos. Ele apresenta as
antigas e novas obras de arte dramática, com os melhores atores. [...]
Excelentes orquestras tocam Beethoven ou Mozart. [...] As pessoas lotam
essas representações magníficas. As pessoas que têm bom gosto se
declaram encantadas. (VIANA, 2020).
111
Imagem 81 – Théâtre National Ambulant, de Imagem 82 – Ensaio no Théâtre National
Firmin Gémier, 1911-1912. Ambulant, de Firmin Gémier, 1911.
Fonte: VIANA, 2020. Fonte: Disponível em:
https://books.openedition.org/pur/docannexe/
image/2176/img-5.jpg Acesso em: 09 jun.
2021.
As imagens 81 e 82 mostram, respectivamente, a estrutura externa do Théâtre
National Ambulant, que se assemelhava a um circo, e a parte interior, durante um
ensaio, onde se vê a estrutura da plateia com poltronas e bancos, além do palco com
sua moldura, onde atores se encontram em frente ao cenário. Os trajes utilizados
refletem a moda da época, calça e casaca para homens e vestido ou saia e
casaquinho para as mulheres.
Após essa experiência, Firmin Gémier produziu em 1919, no Cirque d’Hiver em
Paris, uma versão de Édipo, Rei de Tebas, de Saint-Georges de Bouhélier. “O
cenógrafo Emile Bertin, no entanto, recorreu aos modelos romanos, em vez dos
gregos” (BERTHOLD, 2000, p. 488). Esse espetáculo envolvia muitos atores em cena,
característica que era fundamental para Gémier enquanto teatro popular. Gémier
“tenta alcançar através de grandes apresentações cênicas aquela comunhão popular
que encontramos na origem do teatro grego” (NIVIÈRE, 2019, on-line, tradução
nossa). A imagem 83 é uma fotografia deste espetáculo, onde atores vestem túnicas
compridas e adereços de cabeça cobrindo seus cabelos.
A partir dessa fotografia percebemos que havia uma intenção de situar os
personagens dentro do imaginário clássico em que Édipo está inserido. Os trajes de
cena remetem a esse período histórico, porém, utilizam-se de elementos modernos,
como o barrado na túnica em primeiro plano. Outro aspecto perceptível é a falta de
texturas e a aparência de roupa nova, recém confeccionada, nesses trajes de cena,
que podem transmitir a ideia de trajes simples.
112
Imagem 83 – Édipo, Rei de Tebas, de Firmin Gémier, 1919, no Cirque d’Hiver.
Fonte: Disponível em: https://i.ebayimg.com/images/g/rYQAAOxygj5Sf8NQ/s-l400.jpg
Acesso em: 09 jun. 2021.
A contribuição de Gémier ao teatro francês, rendeu a ele o convite de dirigir o
Théâtre National Populaire, criado em 1920 e instalado no Pallais de Chaillot, próximo
a Torre Eiffel, em Paris. O TNP cresceu e se tornou internacionalmente conhecido nas
décadas seguintes.
3.10.2 Jean Vilar e o Théâtre National Populaire
Em meados do século XX, após a experiência do Théâtre National Ambulant,
surgiu outro movimento que visava a valorização do público de teatro com acesso
amplo e em constante expansão. O responsável por essa nova ação em direção ao
teatro popular foi Jean Vilar (1912-1971), ator e encenador francês.
Em 1947, Vilar criou o Festival d’Avignon, que existe até hoje. Ele tentou
renovar o teatro francês, levando bons espetáculos para além da capital. Com o
Festival d’Avignon, Vilar tenta resolver vários problemas que, globalmente falando,
decorrem das limitações inerentes à estrutura italiana, sendo a maior delas a
desigualdade social. E o Palácio dos Papas, em Avignon, permitia esse rompimento.
Durante o festival, a cidade de Avignon se transformava em um ambiente teatral, pois
todos os presentes, sejam artistas estrangeiros ou moradores locais, se
confraternizavam pelas ruas e espaços da cidade. (ROUBINE, 1998).
113
Ao longo de toda a sua carreira, ele [Jean Vilar] não apenas defendeu o
conceito de teatro popular, mas também o colocou em prática. Ele estava
comprometido em colocar o público no centro da criação artística e
sustentava que o teatro deveria ser um serviço público (site Maison Jean
Vilar).
Neste sentido, Vilar foi indicado, em 1951, por Jeanne Laurent (1902-1989),
alta funcionária da Direção Geral de Artes e Letras da França, para assumir o Théâtre
National Populaire, no Pallais de Chaillot. Vilar manteve o TNP ativo por 12 anos,
obedecendo algumas regras como: horário acessível para trabalhadores; refeição
leve para os espectadores antes do espetáculo; folheto explicativo da obra; e debates
sobre o espetáculo com o público. Os espetáculos variavam entre clássicos e
dramaturgias mais modernas. O público se tornou numeroso com o tempo63.
Imagem 84 - Ruy Blas, com Gérard Philipe e Christiane Minazolli, encenação de Jean Vilar.
Foto de Agnes Varda, 1954.
Fonte: Disponível em: https://maisonjeanvilar.org/en/the-tnp/ . Acesso em: 21 jun. 2020.
Os trajes de cena desse período já haviam adquirido suas características
modernas, com as renovações que ocorreram no universo teatral e, principalmente, a
influência da figura do encenador, como já falamos anteriormente. Nas encenações
de Jean Vilar o foco estava nos atores e no trabalho de interpretação, a cenografia e
os trajes deveriam dialogar com a cena sem exageros, mas cumprindo a suas
63
Ibid.
114
funções. “Durante muitos anos, Jean Vilar foi a favor de um palco nu e revestido de
preto, que povoava com um elenco vestido de trajes coloridos, cativante pela perfeição
gestual e declamatória” (BERTHOLD, 2000, p. 533). A imagem 84 ilustra essa fala,
pois é possível observar a limpeza do espaço cênico atrás dos atores, com poucos
objetos cenográficos, e os trajes com modelagem referente ao período do texto. Esses
trajes de cena indicam uma releitura de trajes dos séculos XVII e XVIII, com panniers,
casaca e caleçon, porém com traços do século XX.
Imagem 85 - Croqui de Don Juan para o Théâtre National Populaire.
Fonte: Disponível em: https://maisonjeanvilar.org/en/catalogue-of-the-collection/ . Acesso
em: 21 jun. 2020.
No espetáculo Don Juan, de Molière, o próprio Jean Vilar representa o
protagonista na montagem de 1953. O traje de cena descrito no croqui com retalhos
dos tecidos coloridos e tons sóbrios misturados a um certo brilho, indica que havia o
interesse em resgatar a tradição histórica deste espetáculo, tentando fazer uma
reconstrução do que um dia foi o traje apresentado em cena por Molière. Ou seja, é
uma releitura do traje social do século XVII que foi utilizado pelos atores daquela
115
época. Alguns detalhes estão estilizados, como as aberturas na casaca na imagem
86, mas está resgatando trajes do período do Molière, feitos com base no traje social.
Imagem 86 - Don Juan, encenação de Jean Vilar, 1953.
Fonte: Disponível em: http://doc-plus.fr/DomJuan.htm . Acesso em: 21 jun. 2020.
De acordo com o Site da Maison Jean Vilar, cerca de 1600 trajes de cena foram
doados pela Mme. Andrée Vilar à Associação, assim como croquis e adereços que
são conservados pela instituição. Esse material reflete a diversidade estética dos
artistas, figurinistas e cenógrafos que trabalharam com Vilar, como por exemplo: Leon
Gischia (1903-1991), Mario Prassinos (1916-1985) e Edouard Pignon (1905-1993).
O século XX foi marcado pela figura do encenador. O surgimento dessa função
está situado no início do século XIX e se refere à “pessoa encarregada de montar uma
peça, assumindo a responsabilidade estética e organizacional do espetáculo,
escolhendo atores, interpretando o texto, utilizando as possibilidades cênicas à sua
disposição” (PAVIS, 1999, p. 128). No campo do teatro popular alguns deles se
destacaram, como por exemplo Jean Vilar na França, entre outros. Agora nos
dedicaremos apenas a três figuras importantes neste contexto: o russo Vsévolod
Meyerhold; o alemão Bertolt Brecht; e à atuação da companhia francesa Thèâtre du
Soleil, dirigida por Ariane Mnouchkine. Essa escolha foi feita, entre outras
possibilidades, pela importância do trabalho executado por esses encenadores dentro
da perspectiva do teatro popular, cada um em sua linha criativa, seja a abordagem
116
mais política (Brecht), social (Meyerhold) ou transcultural (Ariane Mnouchkine). Tal
caracterização dessas abordagens não é hermética e estão presentes nos
espetáculos destes encenadores em maior ou menor proporção. Por fim, os trajes dos
espetáculos deles, observados a seguir, encerram a linha temporal que foi construída
até aqui, nesta breve trajetória do traje de cena pelo mundo.
3.11 Meyerhold
Meyerhold (1874-1940) foi um importante encenador russo, que teve seu
primeiro contato com o teatro popular enquanto estudava na Faculdade de Direito de
Moscou. Durante as férias ele se unia aos atores amadores para organizar
espetáculos populares de verão. Essa experiência despertou nele a paixão pelo
teatro, e foi pelo teatro popular que ele se aproximou de exilados políticos no final do
século XIX, segundo ele mesmo escreveu em sua autobiografia, publicada na versão
em português do livro Do Teatro (MEYERHOLD, 2012). Ele abandonou o curso de
direito para ingressar no Colégio Dramático-Musical da Sociedade Filarmônica de
Moscou e com a conclusão em 1898, Meyerhold entrou para o elenco do Teatro de
Arte de Moscou64, onde permaneceu até 1902.
Vivendo esfomeado, é aqui que fortaleço os fundamentos do meu credo de
diretor. Define-se em mim o rosto do diretor-revolucionário, do diretor-
inventor, e isso me obriga a desenvolver um trabalho enormemente tenso no
campo da reforma do teatro (MEYERHOLD, 2012, p. 283-284).
Neste depoimento, Meyerhold se refere ao seu trabalho com a Confraria do
Novo Drama, grupo que foi criado por ele após sua saída do Teatro de Arte de
Moscou, em 1902. Porém, em 1905, após excursionar com o seu grupo por províncias
russas, Meyerhold retorna a Moscou para trabalhar com Stanislávski (1863-1938), no
Teatro Estúdio. Em 1906, Meyerhold é convidado para dirigir o grupo de Vera
Komissarjévskaia (1864-1910), em São Petersburgo, onde colaborou com
espetáculos por dois anos. Para Brockett (1991), as primeiras encenações russas não
realistas foram realizadas na empresa de Komissarjévskaia e por isso ela contratou
Meyerhold. Com esse grupo ele executa a primeira montagem de Balagánchik (A
Barraca da Feira de Atrações), de Aleksandr Blok (1880-1921) e com cenário de
64
Companhia de teatro fundada em 1897, por Konstantin Stanislavski e Niemiróvitch-Dântchenko.
117
Nikolai Sapúnov65 (1880-1912). Em 1908, Meyerhold remonta esse espetáculo com
um grupo organizado por ele mesmo.
Meyerhold foi influenciado pelos cenógrafos com quem trabalhou.
Dois nomes em especial nunca se apagarão de minha memória: Aleksandr
Golovin66 e o calmo Nikolai Sapúnov. Foi com eles que, para minha maior
alegria, trilhei os caminhos de pesquisa em A Barraca da Feira de Atrações,
Don Juan e O cachecol da Colombina (MEYERHOLD, 2012, p. 24).
O teatro popular sempre esteve presente no trabalho de Meyerhold, desde os
tempos estudantis e, nitidamente, isso vai se refletir na escolha estética pelo texto de
Blok, A Barraca da Feira de Atrações, para montagem junto ao grupo de
Komissarjévskaia, em 1906.
A Barraca da Feira de Atrações traz para o palco a realidade das feiras. A trama
principal está em torno da relação entre o Pierrot e a Colombina, que por sua vez é
conquistada pelo Arlecchino. A primeira cena é marcada por um grupo de místicos
que são surpreendidos pela Colombina. Os protagonistas são personagens literais da
Commedia dell’Arte, e com isso observamos a utilização de técnicas de teatro popular
na Rússia, contrariando o teatro realista. Meyerhold se entusiasma com os recursos
“balaganísticos”67, com as possibilidades cênicas advindas da prática teatral nas feiras
(MEYERHOLD, 2012, p. 206).
Meyerhold68 reconhece o histórico milenar do balagan, nos mimos e na farsa
romana, com personagens que se repetem, como Papus e Pantaleone. Ele continua,
“expulsos do teatro contemporâneo, os princípios do balagan acharam abrigo nos
cabarés franceses, nas uber-brettes69 alemãs, nos music-halls ingleses70 e nas
varietés71 do mundo inteiro”72, esses lugares eram preenchidos por informalidades,
65
Nikolai Sapúnov (1880-1912) foi um pintor russo, que também se dedicou à cenografia teatral.
66
Aleksandr Golovin (1863-1930) foi um artista russo, especializado em cenografia teatral. Ele
trabalhou nos teatros imperiais russos e em produções de espetáculos de Sergei Diaghilev, Konstantin
Stanislavski e Vsévolod Meyerhold.
67
Balagan, de acordo com Picon-Vallin (2013, p. 45,47), significa a barraca de feira onde são realizadas
apresentações com domadores de animais, mágicos, ginastas, acrobatas, marionetes e trupes de
teatro. Os recursos que entusiasmam Meyerhold, podem ser definidos como a ingenuidade inerente ao
Balagan, assim como a linguagem coloquial e literal, a capacidade de materialização de coisas
abstratas, e a insubmissão ao realismo imposto na cena teatral contemporânea.
68
Ibid.
69
Estilo alemão de cabaré teatro para poucos espectadores.
70
Expressão teatral de origem britânica, que mistura música popular e comédia com a participação de
atrações.
71
Teatro de variedades, ou Teatro de Revista no Brasil, gênero teatral que surgiu na França, e recebeu
influência do circo, da dança e música, organizado por quadros.
72
Ibid., p. 209.
118
barulhos e gritos. Com toda essa efusão de sentidos, em “31 de dezembro de 1906,
a estreia de A Barraca da Feira de Atrações é um escândalo” (PICON-VALLIN, 2013,
p. 45).
No primeiro quadro do Balagánchik de Blók, em cena se encontra uma mesa
longa, coberta até o chão com um pano negro e colocada paralelamente à
ribalta. Na mesa sentam-se os "místicos", de modo que o público enxerga
apenas a parte superior de suas figuras. Assustando-se com alguma fala, os
místicos abaixam suas cabeças de modo que, de repente, veem-se à mesa
apenas bustos sem mãos e sem cabeças. Acontece que os contornos das
figuras eram cortados em cartão e depois pintados com pincel e tinta as
roupas, as mangas, os punhos e as golas. As mãos dos atores se enfiavam
pelos buracos redondos cortados nos bustos de cartão, e as cabeças eram
apenas apoiadas nos pescoços falsos. (MEYERHOLD, 2012, p. 215)
Sapúnov, cenógrafo deste espetáculo, foi considerado co-autor da obra, pois
os efeitos visuais obtidos pela cenografia e trajes de cena integravam a ação cênica.
A pintura do cenário (imagem 87) ilustra a descrição citada acima, onde os atores
sentados atrás da mesa, representando os místicos, estão atrás das placas pintadas
como se fossem os trajes, apenas aparecem as mãos e as cabeças reais, mas que
se escondem (atrás das placas) para dar efeito durante a cena. E no canto direito está
o Pierrot. O traje de cena do Pierrot é composto por calça, camisa e gola, tudo branco
e amplo. Esse personagem era interpretado pelos atores mais jovens das trupes
itinerantes e era conhecido na Itália por Pedrolino.
Imagem 87 - A Barraca da Feira de Atrações, cena dos místicos, detalhe de pintura de
Sapunov, 1907.
Fonte: Disponível em: https://ru.wikipedia.org/wiki/Файл:Sapunov_Balaganchik.jpg Acesso
em: 26 jun. 2021.
119
Imagem 88 – Pierrot, personagem da Commedia dell’Arte, ilustração de Constantina Fiorini.
Fonte: GRIGNOLA, Antonella. Maschere italiane nella Commedia dell’arte. Colognola ai
Colli: Demetra, 2000.
O papel do Pierrot foi interpretado por Meyerhold e, segundo a pesquisadora
Béatrice Picon-Vallin (2013), ele não segue o padrão melodramático da figura da
Commedia dell’Arte.
É uma criatura ao mesmo tempo impertinente e terna, figura do povo e poeta
sonhador. É um homem e um títere: seus movimentos são angulosos, ele
sabe cair como uma tábua, estatelado, e seu coração de madeira, que
diríamos "montado como um mecanismo de relojoaria", deixa escapar alguns
gemidos. Sua dicção é artificial, combina vários registros sonoros, às vezes
muito altos. Mas suas mãos se animam por baixo de longas mangas, antes
de cair novamente inertes sobre a bata branca com pompons vermelhos. No
fim, ele dá vazão às suas penas numa ária de flauta e aparece em sua
condição de homem, artista sem auréola, capaz de metamorfosear em arte
toda a complexidade da vida: não é mais, então, a personagem Pierrô, mas
o ator Meyerhold que fixa a sala com olhar penetrante. E assim dá ao papel
"uma dose terrível de seriedade e autenticidade" (PICON-VALLIN, 2013, p.
49-50).
Podemos dizer que o Pierrot de Meyerhold atrai a identificação com a plateia
pela exposição de emoções e vontades próprias da vida cotidiana. O traje citado por
Picon-Vallin73 segue a mesma estrutura da Commedia dell’Arte, onde observamos o
mesmo efeito das longas mangas d’água citado anteriormente.
73
Ibid.
120
Houve uma segunda montagem deste mesmo espetáculo em 1914, no Estúdio
da Rua Borodin74, criado por Meyerhold em São Petersburgo, no ano de 1913, onde
ele pode desenvolver sua metodologia de trabalho. Iúri Bondi (1889-1926)75 foi o
responsável por recriar o espaço do Estúdio no Anfiteatro do Instituto Tenischévski,
para a segunda montagem de A Barraca da Feira de Atrações: “um estrado vazio,
estreito, porém elevado em relação ao público, escadas que dão acesso à plateia,
tapete azul que materializa o proscênio” (PICON-VALLIN, 2013, p. 82).
Os contrarregras apareciam vestindo uniforme cinza e usando meia-máscara,
deslocando-se “ritmicamente, trazendo os acessórios, ocupando-se dos atores”76. As
movimentações dos atores em cena eram circenses, parecendo atrações acrobáticas:
o Arlecchino, por exemplo, entrava em cena rompendo um quadro de papel.
Meyerhold afirma que:
No teatro, por mais simples e despojado que seja, tudo é arte, tudo é digno
de ser mostrado, mesmo a manipulação das cortinas na ponta de varas de
bambu e, sobretudo, o modo pelo qual um ator pode, com fogos de artifício,
"refazer o caminho de uma estrela". Nada de coxias; as cortinas são como
velas de navio. A independência do ator é reivindicada de modo radical: é ele
quem fabrica os acessórios, costura os figurinos e tinge os tecidos, é ele
quem traz seu "cenário" para a cena. (PICON-VALLIN, 2013, p. 82-83).
A imagem 89 é um desenho de Iúri Bondi para a segunda montagem de A
Barraca da Feira de Atrações e nela podemos observar a mesa dos místicos do
primeiro quadro, ao fundo do lado esquerdo, todos vestindo trajes escuros, e na frente
dois personagens, um deles se aproxima da visualidade característica do Pierrot, com
uma gola redonda ampla sobre uma camisa e calça. Para Meyerhold (2012, p. 197),
nas regras da feira pública, o “impressionar” vem antes do “instruir”, a ação é mais
importante do que o que é dito, e isso resume a essência de A Barraca da Feira de
Atrações.
74
Estúdio criado por Meyerhold, em 1913, para colocar em prática as práticas de encenação que ele
estava empreendendo, assim como formar atores. O estúdio teve uma revista, chamada O Amor das
Três Laranjas, que publicou textos dos professores do estúdio, planos de aula, peças de teatro, entre
outros documentos.
75
Iúri Bondi (1889-1926) foi aluno do Estúdio da Rua Borodin, e passou a atuar como cenógrafo
posteriormente.
76
Ibid., p. 82.
121
Imagem 89 – A Barraca da Feira de Atrações, cenário de Iúri Bondi, 1914.
Fonte: BRAUN, Edward. Meyerhold: A Revolution in theatre. Reino Unido: Methuen Drama,
1998. p. 132. Disponível em:
https://monoskop.org/images/8/88/Braun_Edward_Meyerhold_A_Revolution_in_Theatre.pdf
Acesso em: 26 jun. 2021.
Uma curiosidade sobre Meyerhold é que ele se tornou diretor dos Teatros
Imperiais (Aleksandrínski e Marínski) em São Petersburgo no ano de 1908, onde
trabalhou em conjunto com o cenógrafo Aleksandr Golovin. Na tentativa de integrar o
público e acabar com o ilusionismo no teatro, para a apresentação de Don Juan - de
Molière - em 1910, os trajes de cena procuravam a autenticidade da atmosfera de
Versailles, conforme é possível perceber na imagem 90. (PICON-VALLIN, 2013). E
como vimos também na montagem de Jean Vilar, o objetivo era reconstruir a estética
utilizada por Molière no espetáculo original e que, por sua vez, fazia referência ao traje
social da época.
122
Imagem 90 – Dois servos da plateia, em Don Juan, 1910.
Fonte: Disponível em: https://www.flickr.com/photos/24014403@N02/2282743908/in/album-
72157603955913526/ Acesso em: 26 jun. 2021.
A atividade artística e política de Meyerhold foi intensa. Mesmo como diretor
dos Teatros Imperiais com toda condição que essas instituições conferiam aos
espetáculos, Meyerhold não abandonou o teatro popular. Embora estivesse proibido
de exercer outras atividades artísticas, ele participou da organização da Casa de
Intermédios em 1910, um cabaré teatro, com “uma cena sem ribalta, ligada à plateia
por uma escada e com mesas para os espectadores” (PICON-VALLIN, 2013, p. 56).
Nesse espaço ele aparecia como Doutor Dappertutto, nome inspirado na literatura de
Ernst Hoffman (MEYERHOLD, 2012). Para a professora Maria Thaís (2009, p. 80-81)
o Doutor Dapertutto “mesmo sendo herdeiro do romantismo, distinguia-se deste pelo
seu aspecto diabólico e charlatanesco, e adquiria um caráter de herói moderno, de
um pobre diabo e um ser dotado de poderes ocultos, um palhaço e o mágico”.
Enquanto Doutor Dapertutto frequentava os cabarés teatros e salas menores com
espetáculos populares, Meyerhold dirigia grandes montagens nos Teatros Imperiais,
embora fossem a mesma pessoa. Enquanto “Doutor Dapertutto se faz acompanhar
123
dos experimentais e extravagantes cenógrafos Sapúnov e Sudéikin, Meierhold é
acompanhado pelo suntuoso Golóvin” (THAÍS, 2009, p. 82).
Imagem 91 – Doutor Dapertutto, retrato de Meyerhold, por Boris Grigoriev, 1916.
Fonte: Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=Всеволод+Эмильевич+Мейерхольд&uselang=p
t#/media/File:Grigoriev_Meyerkhold.jpg Acesso em: 26 jun. 2021.
O Doutor Dapertutto se apresentava com o traje masculino da época, calça,
camisa, colete e fraque. A estrutura desse traje é consequência das transformações
que a indumentária masculina sofreu ao longo dos séculos, pois se observarmos os
homens na Idade Média, eles vestiam calça e camisa alongada. Do Renascimento em
diante, houve uma elaboração maior dos trajes quanto às modelagens, aos volumes,
materiais e técnicas de confecção utilizadas. O gibão foi chamado de casaca
posteriormente e de paletó no século XX. Essa estrutura do traje social masculino é
explorada até hoje nos trajes de cena e trajes de folguedo, como veremos na próxima
seção.
Na Casa dos Intermédios, em 1910, Meyerhold montou o espetáculo A Echarpe
da Colombina, livre adaptação da pantomima Die Schleier der Pirrette (O véu de
pierrette), de Schnitzler.
Uma verdadeira tragicomédia de máscaras russas, denunciadora. Sem
palavras, a eterna história do Pierrô enganado se desenvolve contra um fundo
124
de valsa, galope, polca e mais salsa. Tudo está submetido a um ritual social
- o baile de casamento de Colombina com Arlequim, as danças dos alegres
companheiros de Pierrô - e ao ritmo nervoso da música de Dohnányi, como
se ação cênica não passasse de uma dança terrível e abrupta, pela qual o
mestre de cerimônia Gigolô, figura degradada do Destino, transformava o
drama do trio em tragédia, com ajuda do maestro e de seus músicos,
colocados sobre o pequeno estrado (PICON-VALLIN, 2013, p. 57).
Imagem 92 - A Echarpe da Colombina, desenho da cena do baile, de Nikolai Sapunov, 1910.
Fonte: Disponível em: https://beautifulrus.com/wp-content/uploads/2015/08/Scarf-of-
Columbine.jpg Acesso em: 26 jun. 2021.
Sapúnov assina a cenografia e aprofunda as questões estéticas que
apareceram em A Barraca da Feira de Atrações, acrescentando aspectos da realidade
russa. A cena do baile (imagem 92) ilustra a variedade de cores e texturas,
aproximando-se do exagero. Os trajes de cena misturam referências de épocas
distintas, dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. No lado esquerdo, uma personagem
feminina usa um vestido com panniers, ao lado de um personagem masculino com
caleçon e casaca. Ao centro um Arlecchino está com o porrete na mão e veste seu
traje com retalhos coloridos. À direita está o Gigolô e ao fundo o pianista, ambos com
casacas do século XIX.
“Para criar o grotesco, Sapúnov teve de transformar a figura de Gigolô num
papagaio, com o afiado recurso de pentear o cabelo de sua peruca de trás para frente
como se fosse um penacho e tendo alinhado as pregas do fraque em fileira”
(MEYERHOLD, 2012, p. 214). Essas tensões estão presentes em toda a visualidade
125
deste espetáculo. Pelos croquis do próprio Sapúnov, o Gigolô vestia uma meia telada
(como a meia arrastão contemporânea), caleçon estampado e casaca do século XIX
e se contrapunha, do ponto de vista das cores, ao pianista.
Imagem 93 - Gigolô, o mestre da dança, em A Imagem 94 - Kapellmeister/Pianista, em A
Echarpe da Colombina, desenho de Nikolai Echarpe da Colombina,
Sapunov, 1910. desenho de Nikolai Sapunov, 1910.
Fonte: Disponível em: Fonte: Disponível em:
https://www.fulcrum.org/concern/file_sets/v405s9 https://www.fulcrum.org/concern/file_sets/t722h
41w#permissions Acesso em: 26 jun. 2021. 880z?locale=en Acesso em: 26 jun. 2021.
Outro aspecto importantíssimo norteou a produção artística de Meyerhold, a
influência política e o contexto da Revolução Russa, que trouxe às ruas:
comícios gigantescos, com coros falados e canções, com proclamações
ribombantes de tanques e armas, eram teatralmente armados - meio festival
popular, meio representação de amadores. Grupos especialmente treinados
para a agitprop ("propaganda de agitação") e gente de teatro com experiência
assumiam a organização dos eventos de massa diretamente patrocinados
pelas autoridades do Partido Central nas capitais (BERTHOLD, 2000, p. 494).
O marco visual dessa época no trabalho de Meyerhold sofre influência direta
do construtivismo77. Com isso ele desenvolve a biomecânica para o trabalho do ator,
através da “execução analítica do movimento, máxima precisão, pausa para cada
movimento, geometrização em planos” (CARDOSO, 2018, p. 183). Os atores
77
Construtivismo foi um termo retirado das artes visuais, onde foi aplicado pela primeira vez por volta
de 1912 à escultura composta de planos e massas que se cruzam sem conteúdo representacional
(BROCKETT, 1991, p. 535, tradução nossa).
126
recebiam treinamento corporal exaustivo e em cena todo movimento era calculado e
executado com precisão. Esse movimento exigiu um novo traje de cena, que
colaborasse com os ideais defendidos e desse unidade ao grupo.
Em 1918, quando Meyerhold apresentou o seu método na encenação do
espetáculo O Mistério Bufo, de Vladímir Maiakóvski, os atores passaram a vestir
macacões de trabalho, com o objetivo de não “distrair a atenção, nem adornar a ação
‘biomecânica’ no austero cenário de plataformas giratórias, alçapões, guindastes e
cordames” (BERTHOLD, 2000, p. 495). Porém, é com a montagem de O Corno
Magnífico, de Fernand Crommelynck, em 1922, que ele ficará conhecido. Picon-Vallin
descreve os trajes desse espetáculo da seguinte forma:
Toda a equipe (dos comediantes aos maquinistas, passando pelo encenador
que aciona as rodas, atrás da construção) veste uma prozodiéjda, roupa de
trabalho em zuarte: ampla túnica decotada em v e acabada em uma gola que
fica aberta ou fechada, com mangas largas arregaçadas ou não, e calça ou
saia até a panturrilha. Mas o efeito do uniforme, muito nítido nas cenas de
grupo, é temperado pela introdução de detalhes singularizantes para cada
um: as botinas de Stella, as botas militares de Burgomestre, as grossas
"chancas" de clown com ponta revirada de Estrugo, ou então os dois
pompons vermelhos que se agitam em redor do pescoço de Bruno, os
aventais de tecido oleado das mulheres da aldeia, uma capa do mesmo
material para Stella, que no ato III desatará seus longos cabelos loiros.
(PICON-VALLIN, 2013, p. 128-129).
Ou seja, os macacões, uniformes de trabalho ganhavam algum elemento que
auxiliava na caracterização do personagem em questão. Essa diferença pode ser vista
também na modelagem dos macacões, desenhados por Lyubov Popova78, na imagem
95, alguns possuíam mais bolsos relembrando casacos militares, ou um tecido reto
na frente, que poderia ser um avental.
Em O Corno Magnífico, a cena é constituída como uma área de jogo onde os
atores interagem com movimentos precisos. A cenografia, por sua vez, integra o
espetáculo, se movimenta de acordo com a cena, e os sinais + e – em uma das rodas
afetam as emoções em cena quando está sendo girada79. Outros elementos
compõem o cenário, como um moinho de água estilizado, caixas empilhadas, uma
passarela há dois metros de altura e mais uma roda no fundo do palco com as iniciais
do autor do texto. Os trajes de cena traziam unidade ao grupo de atores, embora
78
Lyubov Popova (1889-1924) foi uma artista russa que trabalhou com a estética construtivista e
colaborou com figurinos para Meyerhold.
79
Ibid.
127
houvessem algumas diferenciações entre eles. Todos vestiam macacões que
pareciam ter saído das fábricas, o tecido era cinza e grosseiro e calçavam botinas. Os
atores eram operários da arte. Popova buscou nesses trajes, assim como Meyerhold
com a biomecânica, romper com a ideia clássica de arte, especificamente com a
representação, valorizando o procedimento e não apenas o produto final.
Imagem 95 – Trajes de O Corno Magnífico, desenhos de Lyubov Popova, 1922.
Fonte: Slides de Fausto Viana (2004).
Imagem 96 – O Corno Magnífico, 1922.
Fonte: Disponível em: https://www.sierz.co.uk/blog/meyerhold-on-audiences/ Acesso em: 26
jun. 2021.
128
O envolvimento político de Meyerhold era bastante claro, ele chegou a ser
fotografado vestindo uniforme do Exército Vermelho. Logo, ele foi associado a Leon
Trótski80, rival de Stalin81, que instaurou uma ditadura ideológica na Rússia
executando todos os que eram contra ele. Meyerhold foi preso em 20 de junho de
1939 e executado em 2 de fevereiro de 1940. Apenas em 1955, o processo de
Meyerhold foi revisto e ele foi reabilitado juridicamente (ABENSOUR, 2011). Em 1974,
Meyerhold foi homenageado pelo centenário de nascimento (BROCKETT, 1991).
Assim, aos poucos as pesquisas sobre ele foram iniciando e a experiência teatral de
Meyerhold se tornou referência mundial.
3.12 Brecht
Bertolt82 Brecht (1898-1956), dramaturgo e encenador alemão é reconhecido
mundialmente pelo teatro épico, pelas peças didáticas e principalmente, por trazer
para a reflexão artística os acontecimentos de sua época e isso se reflete também nos
trajes de cena dos espetáculos que ele criou. Brecht estava interessado em transmitir
conhecimento por meio da inteligência crítica do espectador (BERTHOLD, 2000). Ele
escreveu 48 peças: o primeiro sucesso foi Die Dreigroschenoper (A Ópera dos três
vinténs), que estreou em 1928 (BROCKETT, 1991).
Após o retorno a Berlim com o fim da Segunda Guerra Mundial, Brecht fundou
o grupo Berliner Ensemble, em 1949, onde desenvolveu seus espetáculos. Após a
morte de Brecht, em 1956, Helene Weigel (1900-1971), atriz e viúva dele, assumiu a
direção do grupo. Os métodos de trabalho aplicados por Brecht permaneceram com
os seus sucessores na companhia83.
As principais características do teatro épico84 de Brecht são: a mistura de
técnicas narrativas e dramáticas; a atribuição de papel ativo ao espectador, fazendo
com que o mesmo reflita e questione as ações cênicas; a visualização da maquinaria
80
Leon Trótski (1879-1940), foi um revolucionário russo, marxista, criador do exército vermelho, morto
no exílio no México.
81
Josef Stalin (1878-1953), foi um político soviético que governou a União Soviética por 30 anos,
cometendo perseguições e vários crimes em prol da sua ideologia, o Stalinismo.
82
Segundo o documentário Brecht - Die Kunst zu leben (A vida de Bertolt Brecht), dirigido por Joachim
Lang (2006), Brecht foi registrado como Berthold, porém, sob influência do dramaturgo austríaco Arnolt
Bronnen, ele passou a escrever o nome finalizando com a letra T.
83
Ibid.
84
O teatro épico é um gênero teatral baseado no aspecto narrativo do espetáculo: como a comunicação
direta com o espectador, o uso da música como comentário da cena e a exposição da maquinaria
teatral.
129
teatral e dos bastidores da cena; e a separação de episódios, com canções, legendas
ou narração. Segundo Brockett (1991), Brecht argumentava que cada elemento
deveria fazer um comentário diferente sobre a ação, de forma que o espectador
chegasse as suas próprias conclusões. Isso era consequência do efeito de
distanciamento de tudo o que provocasse ilusão para o espectador. Com o intuito de
destacar esse efeito, “Brecht recomendava três constelações de apoios: mudar as
falas do ator para terceira pessoa; transpô-las para um passado; e incluir, na leitura
das falas, as rubricas” (BERTHOLD, 2000, p. 505). Brecht, desejava que a plateia
assumisse o papel de parceiro especulativo da ação, e com frequência, ele recorria à
parábola como estratégia para escapar da fantasia85.
O teatro popular, para Brecht (1933-1947, p. 3), significava ser “inteligível para
as grandes massas, assumindo as suas próprias formas de expressão e enriquecendo
ou adotando e consolidando seu ponto de vista”. Brecht, no livro Estudos sobre teatro,
afirma que o teatro popular é rude e despretensioso, assemelhando-se a regimes
autoritários, constantemente ignorado pela estética erudita; apresenta situações
convencionais e figuras esquemáticas; e ele finaliza dizendo: “temos, na verdade,
necessidade de um teatro ingênuo, mas não primitivo; poético, mas não romântico;
próximo da realidade, mas não imbuído de politiquice corriqueira” (BRECHT, 1978, p.
88).
Na prática, Roubine ao mesmo tempo em que critica Brecht por conservar a
relação frontal cultivada até então nos teatros à italiana, elogia o investimento alto que
o encenador faz naquilo que é necessário para a cena. Ao manter a estrutura clássica
dos teatros, e ao revelar o seu interior, Brecht desnuda e ressignifica o palco teatral.
“Para Brecht não é necessário, no fundo, rejeitar a arquitetura à italiana. Basta fazê-
la trabalhar, por assim dizer, no sentido contrário” (ROUBINE, 1998, p. 82).
Brecht utiliza o termo arquiteto cênico, em vez de decorador, que era mais
comum na época, com o objetivo de destacar a função desse profissional responsável,
não apenas pela caixa cênica, mas por todo o teatro86. O cenógrafo Caspar Neher
(1897-1962), foi amigo de Brecht durante a juventude e se tornou seu parceiro nas
produções dos espetáculos. Segundo Viana (2010), Neher fazia desenhos durante os
ensaios, propondo soluções cênicas, cenografias e trajes, e Brecht o escutava e fazia
modificações no espetáculo a partir das propostas dele. Havia um movimento criativo
85
Ibid.
86
Ibid.
130
simbiótico entre Brecht e Neher. A parceria dos dois iniciou em 1922 e depois da
Segunda Guerra eles não trabalharam mais juntos. Durante esse período, Teo Otto
(1904-1968) passou a trabalhar com Brecht como cenógrafo (VIANA, 2010).
Brecht procurava levar à cena apenas o que fosse necessário. “Nada numa
montagem de Brecht é por acaso”87. Por isso, as encenações tinham o aspecto de
palco limpo, sem exageros ou coisas supérfluas. Ele desejava que todos os cenários,
trajes, adereços e figurinos tivessem uma história e demonstrassem isso através das
marcas de uso e da apropriação pelos atores em cena. Muitas vezes era o próprio
Brecht quem escolhia os trajes adequados e esses eram em sua maioria
confeccionados em tecidos naturais (linho, algodão e seda) e couro88.
Imagem 97 – O homem é o homem, com Peter Lorre, em 1931.
Fonte: Disponível em: https://s.ecrater.com/stores/386947/57ba30cc4ad9d_386947b.jpg
Acesso em: 17 jun. 2021.
Em Mann ist mann (O Homem é o homem), escrita entre 1924 e 1925, Brecht
apresenta um trabalhador que um dia sai de casa, é capturado por soldados e se torna
uma máquina assassina. Dentro desse contexto, os figurinos dos soldados
provavelmente são de tecidos naturais, como é perceptível na imagem 97, que traz o
famoso ator Peter Lorre, interpretando o protagonista Galy Gay, em 1931. Outra
87
Ibid., p. 201.
88
Ibid.
131
característica visível é a limpeza do espaço cênico, ocupado por poucos objetos, e a
figura ampliada de um soldado com pernas longas que pode simbolizar a autoridade,
assim como a condição desajeitada/desconfortante dessa máquina humana de
guerra.
Uma característica importante, e que deve ser observada aqui, é que os trajes
de cena dos espetáculos de Brecht eram contemporâneos, se aproximavam do traje
social europeu da primeira metade do século XX, período marcado pelas grandes
Guerras Mundiais, como veremos a seguir.
Die mutter (A mãe), de 1932, foi um marco visual nas produções brechtianas.
Esse texto foi inspirado no livro homônimo do autor russo Máximo Gorki e traz a luta
de uma mãe contra a opressão que se torna revolucionária junto ao filho, na Alemanha
entre 1905 e 1917. Sobre os trajes, Viana afirma que,
eles decidiram usar em primeiro lugar roupas velhas, usadas, que já trariam
em si uma história. Não deu certo. Assim, Neher mandou fazer as roupas e
elas passaram por um processo de envelhecimento: jogaram as roupas no
cloro, [...] os cerzidos eram deixados à mostra. Os macacões novos que eles
conseguiram precisaram ser desbotados (VIANA, 2010, p. 197-198).
Imagem 98 – Possível desenho de figurinos para A Mãe de Brecht, Caspar Neher, 1950.
Fonte: Disponível em: http://www.artnet.com/artists/caspar-neher/kostümentwürfe-zu-
brechts-mutter-GH9mA8tna2fAwizg8itN3g2 Acesso em: 17 jun. 2021.
132
Imagem 99 – A mãe, de Gorki / Brecht, dirigido por Caspar Neher no Berliner Ensemble
(1951).
Fonte: Disponível em: https://www.colleconline.com/en/items/96485/vieux-papier-affich-
spectacle-berliner-ensemble-die-mutter-1951 Acesso em: 17 jun. 2021.
Havia uma preocupação em dar vida aos trajes, como se eles estivessem
usados e desgastados pelo tempo. Os tons de cinza e a aparência de sujo vão se
tornar marcas dos trajes utilizados nos espetáculos de Brecht e, mesmo sendo
confeccionados para o espetáculo, eles passavam por esse processo manual de
tingimento, desgaste e acabamento para chegar no efeito esperado. Tudo isso refletia
o contexto turbulento que a sociedade vivia naquela época. As modelagens dos trajes
refletiam características do cotidiano.
Em 1941, esse processo vai ser revisitado por Teo Otto, para a estreia de
Mutter courage und ihre Kinder (Mãe coragem e seus filhos) (VIANA, 2010). Esse novo
espetáculo marcou a história do teatro e a trajetória de Brecht, com a maturidade do
teatro épico, das interpretações e da encenação em si.
Mãe coragem [...] é provavelmente o espetáculo brechtiano mais conhecido
no mundo todo. Mãe coragem é, sobretudo, um alerta sobre os malefícios do
mercantilismo selvagem e suas consequências, bem como dos resultados
destruidores de uma guerra (VIANA, 2010, p. 203).
Helene Weigel ficou conhecida por representar a protagonista deste
espetáculo. E ainda é comum ouvir comentários sobre o grito silencioso que a atriz dá
em uma das cenas deste espetáculo, revelando sua força como atriz.
133
Embora o texto indique que a história acontece no período da Guerra dos Trinta
Anos, entre 1618 e 1648, quando diferentes países europeus se enfrentaram por
questões territoriais, religiosas e comerciais, os trajes de cena são contemporâneos
ao início do século XX. Se compararmos as imagens 98, 99 e 100 é notável a
semelhança dos trajes nos espetáculos Die Mutter de 1932, desenhado por Neher, e
Mutter Courage de 1941, de Otto. De acordo com Viana, isso pode ter acontecido por
dois motivos:
foi uma imposição de Brecht - como diretor, ele impôs a Teo Otto que queria
manter a linha seguida por Neher, [ou] foi acomodação de Otto, [ele] pode ter
ido buscar num sucesso do passado uma forma de entrar no universo
brechtiano para depois liberar sua criatividade nos espetáculos seguintes
(VIANA, 2010, p. 208).
As linhas são praticamente as mesmas e o processo de envelhecimento é
muito semelhante. Karl von Appen89 foi o cenógrafo que substituiu Neher e Otto após
1954. Brecht e ele, juntos, marcaram a história da cenografia com a funcionalidade e
beleza de suas criações.
Imagem 100 – Mãe coragem e seus filhos, com Helene Weigel.
Fonte: Disponível em:
https://www.doppiozero.com/sites/default/files/9.helene_weigel_in_scena_di_mutter_courage.jpg
Acesso em: 17 jun. 2021.
89
Karl Von Appen (1900-1981) foi um cenógrafo alemão, reconhecido pelo trabalho no Berliner
Ensemble.
134
3.13 Théâtre du Soleil
O último tópico desta seção está dedicado ao Théâtre du Soleil, grupo
contemporâneo de teatro, comandado pela diretora Ariane Mnouchkine (1939), que
tem sua sede desde 1970 na Cartoucherie, antiga fábrica de cartuchos em Vincennes,
nos arredores de Paris. De acordo com Viana (2010) a célula inicial do grupo que
existe hoje, surgiu em 1959 com o encontro de Mnouchkine e Martine Franck que
formaram um coletivo denominado Associação Teatral dos Estudantes de Paris –
Atep. Em 1962, Mnouchkine abandonou o curso de psicologia na Sorbonne e foi viajar
por países asiáticos. “Em 1964, Ariane conseguiu mais uma vez se juntar com seus
antigos colaboradores e formaram o Théâtre du Soleil: ‘cooperativa de produção de
trabalhadores’” (VIANA, 2010, p. 218).
Segundo Picon-Vallin (2017), essa cooperativa tem como fundamento o
trabalho colaborativo, sem hierarquizações, onde todos trabalham e investem juntos
e, no final, recebem o mesmo salário. O início da trajetória do grupo não foi fácil: o
sucesso foi construído ao longo de todos esses anos. Para Brockett (1991), entre 1973
e 1975, o Soleil vivenciou uma crise e a maior parte de seus integrantes estava
desempregada. Foi a partir de 1980 que Mnouchkine reorganizou o grupo e iniciou o
ciclo de montagens shakespearianas que trouxeram mais uma vez notoriedade para
o Soleil.
O Théâtre du Soleil conta com integrantes de diferentes países do mundo. É
sabido que o Soleil também atuou no engajamento social, acolhendo imigrantes sem
documentação nas instalações da Cartoucherie, de acordo com Picon-Vallin (2017).
O cuidado com as pessoas, sejam os artistas componentes do grupo ou os
espectadores, é fundamental para a existência do Soleil e essa é uma das
características que inserem o Soleil dentro desta pesquisa sobre os trajes do teatro
popular.
Mnouchkine já declarou em entrevista à Viana (2010, p. 257), estar convencida
de que o teatro que eles (o Soleil) fazem é popular. Picon-Vallin (2017) cita outro
depoimento de Mnouchkine, realizado no documentário Les Clowns (1969), que
afirma que o que irá fazer com que o teatro não acabe é o reencontro com suas raízes.
Essas raízes, a que ela se refere, estão nas tradições culturais populares, em especial
as do Oriente. O movimento da descentralização é essencial nessa visão de teatro
135
popular e, ainda de acordo com Picon-Vallin (2017), o Soleil questiona o aspecto
doutrinário visto anteriormente na França, esquecendo as experiências precedentes
a estas. A definição dessa autora é o que melhor descreve a atuação do Soleil,
enquanto grupo de teatro popular:
O teatro popular praticado pelo Théâtre du Soleil não está ligado a uma
ideologia, mas mantém laços calorosos com público numeroso e muito
diversificado. [...] O que significa acessível a todos financeiramente, e
também intelectualmente, porém no mais alto nível. Um teatro que seja ao
mesmo tempo simples, daquela simplicidade adquirida ao termo de um longo
e complexo percurso, e não daquela da qual se partiria, e refinado, no qual
cada um, em função de sua idade e origem, encontre aquilo que lhe é
necessário. [...] Transgeracional, transocial, internacional, é com essas
características que o Soleil colore sua concepção de um teatro popular, sem
teorizá-la nem dogmatizá-la (PICON-VALLIN, 2017, p. 318).
Na prática, o primeiro contato do Soleil com as figuras da Commedia dell’Arte,
por exemplo, foi na montagem do espetáculo O Capitão Fracasse, em 1966, baseado
na obra de Théophile Gautier e com adaptação do texto de Philippe Léotard: o
espetáculo é diretamente inspirado nas companhias itinerantes e nos saltimbancos.
Segundo Picon-Vallin90, a cenografia desse espetáculo era desmontável. Os
adereços eram empilháveis, os figurinos eram de segunda mão. As máscaras
aproximavam-se da ideia de balagan defendida por Meyerhold, como vimos
anteriormente. Os trajes desse espetáculo foram refeitos por Françoise Tournafond91,
para a temporada no Théâtre Récamier, utilizando “cores mais brilhantes, fúcsia,
vermelho”92. Essa experiência estética e os aspectos irreverentes do teatro popular,
bem como a praticidade do cenário, são características que vão reaparecer nos
espetáculos futuros do grupo, como veremos em Os Palhaços.
No final da década de 1960, os jovens artistas do Soleil desejavam falar da
condição humana e dos artistas na sociedade, mesclando a arte por meio dos
palhaços e a experiência de vida de cada um deles. Resolveram, então, partir em
busca do palhaço e retomar algumas figuras conhecidas da Commedia dell’Arte
(VIANA, 2010). Um grupo de atores se reuniu para uma fotografia do espetáculo O
Capitão Fracassa (imagem 101), e ao observá-la percebemos imediatamente uma
mistura de elementos representativos nos trajes de cena. As longas golas brancas
nos trajes masculinos, eram comuns nos séculos XVI e XVII, com bordados e rendas;
90
Ibid.
91
Françoise Tournafond (1940-2011), foi fundadora do Théâtre du Soleil, se tornou figurinista do grupo,
e, posteriormente, assinou trajes para ópera e outros espetáculos.
92
Ibid., p. 27.
136
nessa fotografia elas aparecem lisas e sem decorações. Um dos atores está maquiado
como Pierrot, porém o traje é, aparentemente, contemporâneo. A única atriz usa uma
gola redonda com mangas curtas e parece estar com uma camiseta escura. Essa
composição contribui para o entendimento do traje de cena não apenas como
caracterizador do personagem, mas como significante cênico (PAVIS, 1999).
Imagem 101 – O Capitão Fracassa, 1966. Em primeiro plano: Henry Szarniak (Hérode),
Michel Barcet (o Marquês de Bruyères), Jean-Pierre Tailhade (Scapin), Josephine Derenne
(Zerbine). Atrás: Jean-Claude Penchenat / Thomas Leiclier. Martine Franck / Magnum Fotos.
Fonte: Disponível em: https://www.theatre-du-soleil.fr/fr/notre-theatre/les-spectacles/le-
capitaine-fracasse-1966-219
Acesso em: 28 jun. 2021.
O grupo decidiu “mergulhar num laboratório de pesquisa em tempo integral”
(PICON-VALLIN, 2017, p. 35), durante uma estadia em Arc-et-Senans, com o objetivo
de se envolverem na pesquisa de formas populares. Assim, o grupo montou um
espetáculo só sobre palhaços. A peça Os Palhaços (1969), teve mais de seis meses
de ensaio e durava duas horas e meia. Os atores falavam alto, utilizavam diferentes
sotaques e evoluíam fisicamente pelo palco, com saltos e acrobacias.
137
Roberto Moscoso93, foi o cenógrafo desse espetáculo, responsável por criar a
estrutura de uma barraca/ tenda circense com “um palco-passarela em L, inspirado
no Kabuki” (PICON-VALLIN, 2017, p. 39). A estreia deste espetáculo aconteceu no
Teatro de Aubervilliers, em 1969.
Imagem 102 - Desenho do cenário de Roberto Moscoso para Os Palhaços, em Avignon.
Fonte: Disponível em: https://www.theatre-du-soleil.fr/fr/la-galerie-multimedia/en-
images/scenographies/161
Acesso em: 28 jun. 2021.
Os trajes de cena foram desenvolvidos por Christiane Candries94, e as
maquiagens de Fabrice Herrero95 (na imagem 103, Herrero aparece maquiando Mario
Gonzalès). Segundo Picon-Vallin96, os narizes dos palhaços foram adquiridos em lojas
especializadas e o desenho das maquiagens foi realizado a partir de experiências com
luz, redesenhando a partir das linhas de expressão e volumes do rosto de cada ator.
93
Roberto Moscoso (1943-2011), foi um cenógrafo italiano que trabalhou com o Théâtre du Soleil desde
a criação.
94
Christiane Candries é uma artista visual que no final da década de 1960 integrou a equipe do Théâtre
du soleil como figurinista, porém nunca abandonou a pintura.
95
Fabrice Herrero maquiador, que trabalhou no espetáculo Os Palhaços do Théâtre du Soleil.
96
Ibid.
138
Imagem 103 - Fabrice Herrero maquiando Mario Gonzalès, para Os Palhaços, 1969. Martine
Franck/Magnum Photos.
Fonte: Disponível em: https://www.theatre-du-
soleil.fr/public_data/diapo/media/1546006998/800/par86927-w.jpg
Acesso em: 28 jun. 2021.
“Os trajes ainda não eram tão elaborados como resultado de processo criativo
dos artistas, interferindo diretamente nas opções estéticas do espetáculo” (VIANA,
2010, p. 223). O trabalho dos atores era minucioso e profundo e os trajes poderiam
ter acompanhado as nuances da interpretação.
Por outro lado, o espetáculo seguinte, 1789, encenado já na Cartoucherie em
1970, apresenta uma elaboração maior do ponto de vista estético e, para Viana,
constitui “um marco da encenação contemporânea”97. Esse foi o primeiro grande
sucesso do Soleil, sem dúvida. A ideia inicial de Mnouchkine foi falar da Revolução
Francesa através de artistas saltimbancos do ano de 1789, agregando a experiência
dos espetáculos anteriores.
A cena da Tomada da Bastilha é referência para os estudos de encenação e
cenografia (assinada por Moscoso). Os atores dispostos em cinco palcos, na altura
das cabeças dos espectadores, replicavam o relato pessoal de um anônimo,
descoberto em um documento histórico, conforme afirma Picon-Vallin (2017). A fala
dos atores saltimbancos vai crescendo em intensidade e contagiando o público, que
celebra a vitória do povo, embora aconteça apenas uma alternância de poder da
nobreza e do clero para a burguesia (VIANA, 2010). A cena acontece,
simultaneamente ou não, em cinco palcos construídos em madeira com alturas
diferentes. Esses palcos são conectados por passarelas. “A ação também se
97
Ibid., p. 218.
139
desenrolava entre o público que assistia ao espetáculo em pé, andando conforme os
atores se deslocavam” (VIANA, 2010, p. 224).
Imagem 104 - Louis Samier, Jean-François Labouverie em cena, no espetáculo 1789, na
Cartoucherie. Martine Franck/Magnum Photos.
Fonte: Disponível em: https://www.theatre-du-
soleil.fr/public_data/diapo/media/1574438029/800/par66481.jpg Acesso em: 28 jun. 2021.
Para Viana, “do espetáculo 1789 em diante, os figurinos do Soleil nunca mais
seriam os mesmos”98. Françoise Tournafond foi a responsável por esses trajes de
cena. O Soleil “contou ainda com uma orientadora do Museu Histórico de Figurinos,
do Louvre, Elizabeth Brisson, que veio para fornecer instruções mais específicas
sobre as funções dos trajes empregados”99 neste espetáculo.
Com a pesquisa, descobriu-se que a roupa do povo era a mesma dos
burgueses, porém sem os adereços e decorações, tendo em vista que os burgueses
vendiam seus trajes usados em brechós e as pessoas comuns os adquiriam. “Assim,
criou-se uma ideia do que era o traje do povo”100.
Nesse espetáculo, os nobres usam trajes com inspiração histórica, assim como
os bonecos que representam em destaque as relações de poder da época (VIANA,
2010). A imagem 105 traz duas marionetes em primeiro plano, onde o homem está
98
Ibid., p. 223.
99
Ibid., p. 228.
100
Ibid., p. 229.
140
vestindo meias, calça, colete e casaca e a mulher, um vestido com panniers,
característicos do século XVIII. O interessante dessa imagem é que as marionetes
estão sendo manipuladas por um ator que usa rufo101 gigante.
Imagem 105 - Marionetes, no espetáculo 1789. Gérard Taubman.
Fonte: Disponível em: https://www.theatre-du-
soleil.fr/public_data/diapo/media/1597831044/800/1789agarardtaubman_3.jpg Acesso em:
28 jun. 2021.
Uma das práticas do Soleil para criação dos trajes de cena é a utilização de
figurinos de espetáculos antigos, e para esse espetáculo “ase acrescentaram as
doações de uma produtora, [...] assim como um conjunto proveniente da Comédie-
Française comprado por Françoise Tournafond” (PICON-VALLIN, 2017, p. 87). Viana
(2010) comenta a percepção dessa miscelânea de peças de roupas na fotografia do
espetáculo 1789 (imagem 106), que alcança o objetivo de evidenciar os exageros e o
mau gosto da burguesia da época, mesclando elementos diversos nos trajes de cena
utilizados. Essas combinações de trajes do acervo com novas criações de diferentes
períodos históricos representados, podem refletir a heterogeneidade do próprio grupo
que é formado por atrizes e atores de diferentes nacionalidades e padrões – mas isso
é apenas uma possibilidade.
101
Os rufos eram golas plissadas e engomadas, comuns no século XVI, na Europa. O tamanho do rufo
indicava a posição social, quanto maior fosse a gola, mais importante era o nível daquele que a usava.
141
Imagem 106 - Cena do espetáculo 1789, a aristocracia assustada.
Fonte: Disponível em: https://www.theatre-du-
soleil.fr/public_data/diapo/media/1574438138/800/par66484.jpg Acesso em: 28 jun. 2021.
Sobre o processo de criação dos trajes do Soleil, Viana cita indiretamente o
relato de Nathalie Thomas, figurinista que trabalha com o grupo há alguns anos,
juntamente com Marie-Hélene Bouvet, em uma entrevista de 1992:
No Soleil, ela nunca está sozinha para decidir, e os figurinos não são criados
da forma tradicional: [...] ela não faz nem desenhos nem modelos. Dentro do
processo colaborativo, os figurinos estão sempre suscetíveis a mudanças. A
função do figurinista passa a ser a mais ampla: ele tem que assistir aos
ensaios, observar o que os atores estão propondo. [...] Os figurinos vão
mudando ao longo dos ensaios e até mesmo durante as apresentações.
Existe uma interação constante entre ela, os atores e Mnouchkine, que deixa,
no princípio dos trabalhos, uma cartela de cores definidas para cada
espetáculo. (VIANA, 2010, p. 238).
Essa característica colaborativa é fundamental para a existência do Théâtre du
Soleil, conforme vimos anteriormente. Todos os integrantes do grupo se envolvem de
alguma forma com o trabalho artístico que está sendo desenvolvido. Ao falarmos
sobre traje de cena, essa é uma experiência criativa de alto valor. Os atores são
coautores de seus próprios trajes, auxiliando na escolha de materiais e modelagens
que favoreçam a atuação. “Durante o processo de ensaio, eles têm a sua disposição
as costureiras e tecidos, muitos tecidos. De acordo com a necessidade do ator e da
encenação, eles pedem para que o traje seja feito” (VIANA, 2010, p. 256).
Essa simbiose criativa que acontece no Théâtre du Soleil é desejada por muitas
companhias teatrais. Atualmente, o Soleil está consolidado no campo das artes
142
cênicas. Fica o desejo de permanência dessa efervescência, que propague o teatro
popular como expressão artística de uma comunidade atravessada por outras
culturas.
Finalizamos aqui esse panorama a partir de aspectos do teatro popular
mundial, com o objetivo de apresentar alguns trajes de cena inseridos nesse contexto.
Todavia, essa terceira seção abordou experiências que fundamentam a prática do
teatro popular, ainda que se apoiando majoritariamente em exemplos europeus. É
preciso ressaltar que as práticas cênicas orientais são mais antigas do que essas e
por isso foi dedicado um espaço para as tradições teatrais da Índia, da Indonésia, da
China e do Japão neste texto. Por se tratar apenas de um panorama, não foi possível
aprofundar tanto nessas questões. Desejamos refletir futuramente sobre outras
tradições culturais populares distantes deste centro que por muito tempo foi
colonizador do pensamento humano.
Partimos agora para uma viagem à América Latina, incluindo o Brasil, para
observar como o teatro popular se desenvolveu por aqui. Nos aproximaremos ainda
mais do Nordeste brasileiro e suas culturas, trazendo para essa discussão grupos que
se destacaram no cenário popular.
143
4 TRAJES DE CENA NA AMÉRICA LATINA – E NO BRASIL
Esta tese está desenhada sobre uma linha do tempo da história do teatro,
partindo das origens das representações cênicas nas civilizações orientais,
percorrendo a vasta produção teatral europeia que atravessou séculos até a
modernidade. Para dar continuidade a essa trajetória, como já vimos as definições de
traje de cena, cultura e teatro popular na segunda seção, vamos voltar nossos olhares
para as Américas, para os países latinos, especificamente para o Brasil, com o
objetivo de nos aproximarmos mais da ideia de teatro popular e observar com maior
profundidade as relações que estão, literalmente, ao nosso redor. O traje de cena
continua sendo o condutor desta pesquisa, costurando os fatos e permitindo analisá-
los.
Assim sendo, daremos continuidade à linha do tempo que se iniciou na seção
anterior, continuando a trajetória do teatro popular brasileiro a partir de meados do
século XX. A definição de teatro popular como expressão artística do próprio povo
(BOAL, 1979) vai permear esse trabalho a partir deste ponto, costurando ações do
Teatro Arena, do Teatro Oficina, do Centro Popular de Cultura e as atuações de
Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna e Altimar Pimentel. Dessa forma, concluiremos
esse caminho que, como uma lente de aumento, nos fez viajar por contextos externos
até chegarmos ao Brasil que, por sua vez, nos levou à região nordeste e
consequentemente ao contexto local paraibano, tema da quinta seção.
4.1 Teatro popular originário na América Latina
Seria incoerente da nossa parte dedicar uma seção dessa pesquisa ao traje de
cena do teatro popular brasileiro e não reafirmar a origem ritualística dele. Existem
diferentes formas de teatro popular, com seus respectivos trajes, anteriores a chegada
dos colonizadores europeus às Américas. O professor Zeca Ligiéro (2019),
coordenador do Núcleo de Estudos das Performances Afroameríndias, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, defende que a origem do teatro não foi na
Grécia, mas em diversos lugares e em tempos diferentes. O teatro grego,
provavelmente, acabou se tornando o exemplo mais antigo de representação cênica
com registros que sobreviveram por muitas gerações no Ocidente. “Na Grécia, a
144
mitologia se tornou encenação e esta se tornou por sua vez teatro” (LIGIÉRO, 2019,
p. 24), mas essa não foi a primeira experiência teatral da humanidade.
Victor Turner102 (2015, p. 97) afirma que as raízes do teatro estão no drama
social e que este “se manifesta inicialmente como a ruptura com a norma, a infração
de uma regra de moralidade, lei, costume ou etiqueta em alguma arena pública”. Isso
acontece em todos os níveis da sociedade e é por meio da recitação, contação,
representação e celebração que os povos retratam, ainda hoje, as suas experiências
reais e ficcionais. Turner vai “pensar o ritual essencialmente como performance,
encenação, e não primordialmente como regras e rubricas”103.
Para aprofundar essa questão, Ligiéro (2019, p. 124) apresenta o termo Teatro
das Origens, “que é especificamente uma cena concebida, criada e performada por
sacerdotes e adeptos envolvendo os fundamentos de origem de determinada cultura”.
Sendo assim, essas cenas estão diretamente relacionadas aos ritos das comunidades
em que elas acontecem. A espetacularidade e o envolvimento do espectador nos
rituais públicos e nas celebrações são algumas das características deste teatro.
Por meio da utilização de uma narrativa mítica, de um repertório em que
conjuga as diversas expressões dança, música, canto, criação de figurinos
especialmente feitos pela comunidade. Tudo é construído coletivamente
em espetáculos de rara beleza, enaltecendo e cultuando as divindades da
natureza (LIGIÉRO, 2019, p.111).
Esses espetáculos fazem parte da humanidade em suas diversas etnias e
grupos sociais. Os agrupamentos indígenas na América Latina são exemplos disso.
Nesse contexto e de acordo com Ligiéro104, o traje de cena do Teatro das Origens
ameríndio pode ser a nudez ou as pinturas corporais e adornos utilizados
especificamente nos rituais. Esses trajes eram confeccionados pela própria
comunidade para essas ocasiões.
102
Victor Witter Turner (1920-1983), foi professor em universidades de Cornell, Chicago, e na
Universidade da Virginia. Coordenou uma pesquisa de campo com os Ndembu, população Bantu da
Zâmbia.
103
Ibid., p. 111.
104
Ibid.
145
Ligiéro (2019) aponta, no livro O Teatro das Origens, algumas representações
milenares das civilizações Maia105 e Inca106 - que são anteriores à colonização das
Américas - das quais iremos abordar aqui Rabinal Achí e Ollantay.
O Rabinal Achí é um drama pré-hispânico da civilização Maia, encenado na
Guatemala e é considerado patrimônio imaterial da humanidade pela UNESCO.
Segundo Ligiéro:
observa-se aqui um processo raro de preservação das formas épicas de
encenação conjugando texto, dança e música para contar uma história de
embate entre guerreiros; a peça tradicionalmente era encenada dentro de um
contexto ritualizado, feita para os deuses maias como testemunho da crença
e conhecimento de sua própria mitologia original. Entretanto, uma vez banida,
para voltar a ser encenada foi mudado o calendário, adequando-se ao da
Santa Madre Igreja Católica para obter a permissão do poder colonial. A partir
do século XVII, passa a ser representada no dia 25 de janeiro durante os
festejos católicos (LIGIÉRO, 2019, p. 107).
A partir dessa contextualização, percebemos que antes do século XVI esse
drama fazia parte de um aspecto ritualístico e com a invasão por parte dos espanhóis,
essa tradição sofreu adaptações. Entre os séculos XVI e XIX, o Rabinal Achí
sobreviveu clandestinamente e apenas em 1856, quando o padre francês Brasseur
de Bourbourg traduziu o manuscrito de Bartolo Sis (escrito em Achí107), é que o drama
foi inserido no rito católico, passando a fazer parte do calendário de festividades. Esse
ritual representava a saga de um prisioneiro de guerra até o sacrifício, era
acompanhado por música tradicional maia com grandes trombetas de madeira e
personagens locais dançando108.
O sítio arqueológico de Bonampak, ao sul do México, área da civilização Maia,
possui murais pintados que representam cenas de batalhas, sacrifícios e rituais com
música e dança e datam do século VIII. A partir de uma possível reconstrução de uma
parte do mural pintado na primeira sala deste sítio arqueológico, percebemos a
representação de músicos tocando instrumentos (imagem 107). Os murais de
Bonampak impressionam pela riqueza de cores e texturas utilizadas, e por meio deles
105
Os Maias foram uma civilização pré-colombiana, que surgiu há milhares de anos atrás e teve o seu
auge no período de 900 d.C. até a invasão dos espanhóis. Estava localizada na América Central,
atualmente no território da Guatemala e sul do México. São reconhecidos pelo desenvolvimento de
conceitos matemáticos e astronômicos.
106
O império Inca se desenvolveu no século XIII, na região dos Andes, que se vai da Colômbia até o
Chile. A cultura Inca se destaca pela arquitetura, pelas estradas que conectavam todo o território, pelos
tecidos e pelo método de registro de informações com cordas e nós (quipu).
107
Achí é uma língua da civilização Maia, encontrada na Guatemala.
108
Ibid. p. 109-110.
146
podemos observar o uso de grandes adereços de cabeça elaborados com penas,
além de colares e brincos. Além disso, temos uma ideia de um tipo de traje maia
antigo109, um tecido enrolado na parte inferior do corpo, como uma saia, e uma faixa
com amarração frontal na cintura.
Imagem 107 – Mural de Bonampak, século VIII.
Fonte: Disponível em: http://www.latinamericanstudies.org/bonampak/Room-1_6.jpgAcesso
em: 07 set. 2021.
109
A indumentária maia antiga é vasta, possui diferentes tipos diversificados para homens e mulheres
e de acordo com a função social (ex. guerreiro, sacerdote, agricultor). O traje social é, basicamente,
formado por tanga ou saia curta para homens e saia longa para mulheres, que por sua vez, podem
usar uma espécie de poncho cobrindo os seios. As representações maias indicam que esses trajes
eram acompanhados por muitos adornos, como braceletes, brincos, colares e tornozeleiras, e os
penteados eram volumosos decorados com tecidos e penas.
147
Imagem 108 – Trajes sociais tradicionais em San Pedro La Laguna, Guatemala.
Fonte: Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Tz'utujil#/media/File:Independence_Day_Guatemala.j
pg Acesso em: 07 set. 2021.
A imagem 108 apresenta um grupo de homens com trajes sociais tradicionais
em San Pedro La Laguna, na Guatemala, em 2005, durante um desfile de
comemoração da independência do país. Esse traje é constituído por uma camisa
estampada, uma calça mais clara com barrado colorido e uma faixa na cintura, que
nos faz remeter diretamente ao traje maia antigo representado nos murais de
Bonampak.
Uma fotografia contemporânea da representação anual do Rabinal Achí, na
Guatemala, também demonstra a relação intrínseca entre o traje de cena popular e o
traje social (imagem 109). Através dessa fotografia é possível traçar um paralelo com
o colorido e a utilização de penas nos adereços de cabeça dos murais de Bonampak.
Todavia, a maior parte do material utilizado hoje é sintético mas, ainda assim, utilizam
alguns tecidos com padronagens e bordados tradicionais para as mulheres. Os trajes
masculinos são calça e camisa, com detalhes nas barras, nos punhos e na gola e os
trajes femininos compostos por saia e blusa ampla, não são ilustrativos, eles ainda
são utilizados pelas mulheres hoje na Guatemala.
148
Imagem 109 – Rabinal Achí.
Fonte: Disponível em: https://salidasdeltiempo.blogspot.com/2017/01/en-busca-del-rabinal-
achi.html Acesso em: 14 jul. 2021.
Imagem 110 – Mulher maia sentada, Imagem 111 – Traje social feminino da
estatueta do período entre os séculos VI e IX cultura maia, da Guatemala.
d. C.
Fonte: Disponível em: Fonte: Disponível em:
https://www.metmuseum.org/art/collection/se https://commons.wikimedia.org/wiki/File:May
arch/312595?searchField=All&sortBy=R an_clothing_-
elevance&ft=maya&offset=0&r _Staatliches_Museum_für_Völkerkunde_Mün
pp=80&pos=60 Acesso em: 07 set. chen_-_DSC08524.JPG Acesso em: 07 set.
2021. 2021.
149
O traje feminino seguiu uma estrutura muito parecida desde o século VI d.C.
até a contemporaneidade. A saia longa e o quechquemitl, espécie de poncho, estão
presentes na representação da mulher sentada na cerâmica do século VI (imagem
110), no traje maia tradicional (imagem 111) e também são usados na representação
do Rabinal Achí (imagem 109), corroborando com a ideia que discutimos aqui de que
o traje de cena do teatro popular surge do traje social e suas representações. A
preservação da tradição do Rabinal Achí se mantém por meio da oralidade, onde os
mais velhos, que receberam as instruções de seus antepassados, replicam aos mais
novos, e assim, essa cultura sobreviveu. (LIGIÉRO, 2019, p. 110).
No Peru, encontramos outra representação secular, denominada Ollantay.
Durante uma viagem ao Peru, Ligiéro encontrou o texto dramático de Ollantay, como
uma referência de teatro antigo deste país. O texto era de autoria do padre Antônio
Valdez, e datava do século XVIII110.
O texto peruano, em resumo, retrata o drama de Ollantay, um homem comum
que com muito esforço alcançou alta patente no exército Inca. Mas, se apaixonou pela
filha do imperador e mesmo ocupando alto cargo, eles não poderiam se relacionar,
tendo em vista que Ollantay não era um nobre. Ao saber que sua amada havia sido
presa como castigo por estar apaixonada, ele decide sair da cidade e funda o povoado
de Ollantaytambo (próximo a região de Cusco), onde forma um exército para atacar o
império. Entretanto, anos depois, um soldado infiltrado consegue capturar Ollantay e
levá-lo até o Inca, que após condenar Ollantay à morte, muda de ideia e decide
perdoá-lo reposicionando-o no alto escalão do exército novamente. Ao final, Ollantay
reencontra a amada e descobre que os dois tiveram uma filha.
Ollantay foi incialmente escrito em Quéchua, língua oficial dos Incas, e a
hipótese de origem mais crível é a de que a peça possui estrutura pré-hispânica e era
apresentada nas feiras e celebrações públicas, sendo adaptada por escritores
seguindo a dinâmica do teatro espanhol. Uma das características que reforça essa
teoria é a influência da igreja na cena final onde o perdão é concedido. Ollantay é
representada até hoje, conforme podemos ver na imagem 112, nas datas
comemorativas do país, principalmente no mês de junho, na comemoração do dia do
camponês. (LIGIÉRO, 2019, p. 120-121).
110
Ibid., p. 116.
150
Imagem 112 – Ollantay.
Fonte: Disponível em: https://www.peru.travel/en/events/ollantay-raymi-a-story-of-forbidden-
love Acesso em: 14 jul. 2021.
Imagem 113 – Genealogia Inca, detalhe da obra do século XVIII.
Fonte: Disponível em: https://fr.wikipedia.org/wiki/Fichier:Cuzco_school_-
_Genealogy_of_the_Incas_-_18th_century.jpg Acesso em: 08 set. 2021.
Os trajes de cena utilizados na representação de Ollantay hoje, são
diretamente inspirados nos trajes sociais incas. No detalhe do quadro sobre a
genealogia inca (imagem 113), podemos observar a estrutura da indumentária desses
imperadores e das esposas. Os homens vestiam túnica curta e capa, além da coroa
e dos adornos em ouro. As mulheres usavam vestido longo com manto, esse manto
era chamado de lliclla e faz parte do atual traje social tradicional do Peru.
151
Judith Weiss, no livro Latin American Popular Theatre, apresenta uma lista de
critérios que justificam as relações entre o teatro popular e as formas pré-teatrais, que
ela vai denominar de dança dramática e teatro ritual. Sendo eles:
1. utilização especial ou generalizada dos espaços (mercados, praças);
2. movimento, muitas vezes com dança e música;
3. estrutura dramática (em muitas, senão em todas as obras);
4. diálogo, geralmente repetitivo e formulado (ritual / litúrgico);
5. natureza religiosa, comparando com o drama mediterrâneo inicial.
Frequentemente usa mimese (por meio de sacrifícios, personificação de
forças naturais);
6. culto à natureza: peças sobre e com os ritmos da natureza refletidos na
humanidade; rituais de fertilidade;
7. treinamento e ensaio: nas civilizações mais avançadas, escolas para
atores; posição social elevada dos artistas oficiais;
8. personagens específicos, incluindo espíritos dos mortos ou da natureza,
animais, guerreiros, bobos, e enfermos, etc. (WEISS, 1993, p. 13, tradução
nossa).
É possível perceber nos dois exemplos anteriores, Rabinal Achí e Ollantay, a
presença da maior parte desses critérios, como a apresentação em espaços públicos,
utilização de dança e música durante a representação, um roteiro dramatúrgico a ser
seguido, bem como o diálogo (primeiro na língua original, depois em espanhol),
relação com a natureza religiosa através dos sacrifícios, das forças naturais e dos
rituais e a presença de personagens característicos como o imperador, soldados, o
bobo, entre outros.
Observando esses exemplos e olhando também para as antigas tradições
orientais e europeias, percebemos que o ritual se desenvolveu e deu origem às artes
cênicas, através da representação de figuras míticas, forças da natureza e ações
humanas. No Brasil, mesmo sem referências escritas, ao observarmos as ações e os
rituais das tribos indígenas e das comunidades negras no território brasileiro é
possível afirmar que eles também fazem parte do Teatro das Origens (LIGIÉRO,
2019), com suas celebrações, rituais e jogos.
Ao longo de cinco séculos de opressão econômica, militar, religiosa e estética
exercida pela elite euro-brasileira, muitos foram os momentos em que as duas
tradições, ameríndias e africanas, se encontraram. [...] Catimbó, macumba e
umbanda reúnem manifestações religiosas comuns desses dois grupos. As
religiões dessas culturas adoram as forças da natureza, utilizam a medicina
natural encontrada a partir da manipulação de raízes e folhas, acreditam que
a alma dos mortos retorna à terra para ensinar ou para evoluir através da
reencarnação. Elas têm outro ponto em comum, que particularmente nos
interessa: suas performances espetaculares. Em ambas notamos o mesmo
cantar-dançar-batucar como um todo indivisível e inseparável. Ambas as
performances são interativas e dialogam com o ambiente onde acontecem.
152
O público permanece em roda, reagindo a tudo que os brincantes ou
"performers" fazem. (LIGIÉRO, 2011, p. 73).
Ligiéro111 reforça o caráter ritualístico de tradições que formaram a identidade
do povo brasileiro caracterizada, inicialmente, pela miscigenação entre indígenas,
africanos e europeus. Dos rituais de origem indígena e africana saíram grande parte
das tradições populares que utilizam a representação cênica na prática, podendo ser
classificadas como “puro teatro popular brasileiro”112, e também são denominadas de
folguedos. É possível dizer que os folguedos brasileiros estão vinculados a rituais de
origem indígena ou africana, tendo em vista que eles acontecem nas periferias dos
grandes centros urbanos e que as pessoas que participam dessas tradições, também
identificadas como brincantes, desenvolvem essa atividade hoje porque ouviram dos
seus pais e antepassados, por meio da história oral, como eles brincavam e assim
transmitem aos filhos mantendo a tradição viva. Outro aspecto importante de ser
ressaltado é que grande parte das representações populares estão baseadas no olhar
do trabalhador rural e não na ótica do colonizador e para serem inseridas no
calendário oficial de festividades, a maior parte desses folguedos se associam às
festas cristãs.
O Reisado é uma tradição popular vinculada ao rito natalino, por exemplo,
caracterizado por uma louvação dos Reis Magos que visitaram o menino Jesus. O
período mais comum para as apresentações é o natalino, que compreende de 24 de
dezembro a 6 de janeiro. Pelas ruas da cidade, os brincantes anunciam a chegada de
Jesus, encenam batalhas, dançam e cantam. Vários estados do Nordeste brincam o
Reisado, ou possuem tradições semelhantes, como é o caso do Bumba Meu Boi e do
Cavalo Marinho (tradições que serão analisadas na quinta seção desta tese).
Compilando diferentes formas antigas de Reisado, as figuras dos Guerreiros, de
Maceió - AL, são exemplo visual da riqueza estética e histórica dos folguedos
brasileiros. Essa tradição, que surgiu no início do século XX e está inserida no
ambiente rural, também tem seus trajes baseados nos trajes sociais, pois observamos
(na imagem 114) a utilização de calça, camisa, colete e saia, porém adereçados com
fitas de cetim coloridas, passamanarias e chapéus. Segundo a descrição da exposição
Festa Brasileira – Fantasia feita à mão, realizado no Centro de Referência do
Artesanato Brasileiro (CRAB/SEBRAE), no Rio de Janeiro em 2018, “o mestre e o
111
Ibid.
112
Ibid., p. 74.
153
contramestre usam chapéus monumentais, chamados de “igrejas”, instalações feitas
com espelhos, bolas de aljôfar e areia-prateada/purpurina e fitas multicoloridas”.
Imagem 114 – Guerreiros. Maceió – AL.
Fonte: Fotografia da autora, na exposição Festa Brasileira, no CRAB/Sebrae – RJ, 2018.
Algumas características estão presentes na maior parte dos trajes de
folguedos, sendo elas: a simplicidade na execução; a utilização de materiais
acessíveis, tecidos baratos, mas com muito colorido, brilho e, às vezes, estampas; os
aviamentos, como fitas de cetim e passamanarias, são utilizados para obter maior
destaque nas peças; a confecção do traje e dos adereços é realizada pelo próprio
brincante ou familiares, como destacamos na definição de Teatro das Origens de
Ligiéro (2019). O cuidado com essas peças é fundamental, para não prejudicar as
próximas apresentações, e alguns grupos mantém um acervo possível para novos
integrantes.
154
O teatro popular tem nas tradições populares um referencial estético para suas
produções. Além do aspecto visual, o teatro vai ser influenciado pelas figuras
representadas, como é o caso de Mateus, Bastião e Catirina do Reisado, os servos
ou representantes dos trabalhadores rurais. Essas figuras concentram o espírito
cômico que também está presente no Arlecchino da Commedia dell’Arte.
Com isso estabelecido, podemos retomar a nossa linha do tempo na história
do teatro popular latino-americano, especificamente no Brasil no século XX. Seguimos
com outra categoria de teatro popular, definida por Weiss (1993) como Nuevo Teatro
Popular, que surgiu na metade do século XX e se estendeu até a década de 1980 na
América Latina, e é caracterizado por processos de criação coletiva e relações não
hierárquicas, mantendo conexão com o contexto social circundante e suas tradições.
Esse movimento cultural fortaleceu redes de contato e intercâmbio através de turnês
e festivais.
Existem duas tendências principais e relativamente autônomas dentro do
Nuevo Teatro Popular: o teatro de base, que às vezes é conhecido como
"teatro de participação popular" ou "teatro comunitário", e o teatro artístico,
que é composto principalmente por artistas profissionais. As duas tendências
sempre se cruzaram e interagiram, com intercâmbios de artistas entre os dois
tipos (WEISS, 1993, p. 136, tradução nossa).
No Brasil, o teatro comunitário foi categorizado como teatro amador, e teve uma
forte representação nas décadas de 1970 e 1980, com a criação de Federações de
Teatro Amador em cada estado brasileiro, que se encontravam nos Festivais
Nacionais. Como notou Weiss (1993), o intercâmbio de artistas profissionais e
amadores foi frequente, artistas profissionais assinaram a direção de projetos
amadores, mestres da cultura popular serviam de consultores para espetáculos
profissionais, assim como ambos trocavam experiência em oficinas e treinamentos.
A igreja, o circo e o quintal, assim como os sindicatos e centros comunitários
são lugares de referência que aqueceram o teatro popular no Brasil. O teatro popular
brasileiro ganhou força política em meados do século XX, com a atuação de Augusto
Boal e outros militantes de teatro que não se conformaram com a situação social do
país naquele período e através da arte teatral buscavam refletir sobre essas questões.
Erotilde Silva (1992, p. 33) cita o trabalho de três grupos de teatro que alcançaram
notoriedade pelo trabalho popular: “o Teatro de Arena (1953), mais tarde o Oficina
(1958) e o CPC (1961), que questionaram exatamente a teatrologia burguesa”.
155
4.2 Arena, Oficina, CPC
O Teatro de Arena foi inaugurado em 1955, com o espetáculo A Rosa dos
Ventos, dirigido por José Renato113 e contou com integrantes como Augusto Boal e
Gianfrancesco Guarnieri114. Juntos, construíram um repertório popular baseado na
crítica e consciência social. Sem falar que o Arena foi o espaço de experimentação
das técnicas do Teatro do Oprimido, desenvolvido por Boal. O espaço do Teatro Arena
está em funcionamento até hoje no centro de São Paulo, na rua Teodoro Baima, nº
94. Esse teatro tem capacidade para 150 lugares e possui uma área administrativa no
piso superior, que já abrigou o núcleo experimental, Areninha.
O espetáculo Arena Canta Zumbi foi um musical, escrito por Boal e Guarnieri
em 1965, e marcou a história com a utilização do método coringa, desenvolvido por
Boal. Nesta metodologia, os atores não tinham personagens estabelecidos, havia um
rodízio entre eles a cada apresentação e um deles, o ator-coringa, fazia a ligação de
uma cena a outra, comentando os acontecimentos.
Outra questão importante para destacar aqui são os trajes de cena,
desenvolvidos pelo reconhecido cenógrafo e arquiteto brasileiro Flávio Império (1935-
1985), que possuíam o mesmo tom de crítica social integrando o espetáculo como um
todo. Segundo Izaías Almada115, a década de 1960 estava marcada pela luta anti-
imperialista e anti-americana e esse espírito estava latente nas produções do Arena.
Ao representar a história de Zumbi dos Palmares, o grupo estava refletindo sobre a
liberdade e criticando o regime militar, assim como as questões inerentes a exploração
humana. Nesse contexto, Flávio Império sugeriu que os atores vestissem calça jeans,
camiseta e bota: o estereótipo importado da cultura americana. Esse visual implicava
na identificação com os mais jovens que admiravam o rock’n roll e a jovem guarda,
mas ao mesmo tempo denunciava o imperialismo e a falta de liberdade, um dos temas
do espetáculo. (ALMADA, 2004, p. 115). Em uma das fotografias desse espetáculo é
possível observar que as atrizes e os atores vestem esses trajes sociais em tom de
crítica.
113
José Renato (1926-2011) foi diretor de teatro paulista, com forte atuação no teatro popular e político,
e foi um dos fundadores do Teatro de Arena.
114
Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), ator, diretor e dramaturgo italiano, naturalizado brasileiro, é
reconhecido pela autoria do texto Eles não usam black-tie.
115
Izaías Almada é dramaturgo e jornalista brasileiro que atuou no Teatro de Arena entre os anos de
1964 e 1968.
156
Imagem 115 – As atrizes e os atores Marília Medalha, Anthero de Oliveira, Chant Dessian,
Vanya Sant’Anna, Gianfrancesco Guarnieri, Dina Staf e Lima Duarte (de costas), no
espetáculo Arena canta Zumbi, Teatro de Arena, 1965. Fotografia de Derly Marques.
Fonte: Disponível em: http://augustoboal.com.br/2017/11/06/arena-conta-zumbi/ Acesso em:
21 jul. 2021.
Outro grupo teatral que trabalhava aliado à crítica social no mesmo período é
o Teatro Oficina, atualmente comandado por José Celso Martinez Correa116, ainda em
atividade criativa e política. Sobre o grupo, Eroltilde Silva falou:
[...] não houve uma preocupação maior com a cultura popular, nem a
perspectiva de devolver a produção teatral ao povo. Na realidade, o Oficina
desenvolveu e contribuiu para o crescimento do teatro nacional, inovando em
termos de cenário e de criatividade no palco, mexendo com o público e com
a crítica (SILVA, 1992, p. 37).
Em 1961, o Teatro Oficina nasceu juridicamente do encontro de universitários
em São Paulo, entre eles Zé Celso, Renato Borghi, Paulo de Tarso, Célia Helena,
Eugênio Kusnet e Fauzi Arap. O grupo procurou em meados da década de 1960
ampliar o número de lugares na plateia buscando a popularização do teatro. Nesse
sentido, foram implantadas medidas de cobrança da metade do valor do ingresso para
uma quantidade de estudantes por apresentação (TAVARES, 2006). Todavia, o
116
José Celso Martinez é uma das personalidades mais conhecidas do teatro brasileiro, ele é ator,
diretor e fundador do Teatro Oficina, com sede na Rua Jaceguai, no bairro Bixiga, em São Paulo-SP.
Atualmente, esteve envolvido na luta política pela aprovação do Parque do Bixiga a ser construído no
espaço lateral ao teatro, vencendo contra a proposta de construção de mais um prédio comercial do
grupo Silvio Santos.
157
trabalho do Oficina se desenvolveu muito mais dentro da estética ritualística com
aproximações as festividades dionisíacas da Grécia, do que de forma panfletária. Foi
a partir do contato com o texto O Rei da Vela, de Oswald de Andrade117, que o grupo
mudou a forma de trabalho, que até então procurava ilustrar a realidade brasileira
através da dramaturgia estrangeira. “A realidade sociocultural da década de 1960
obrigou o teatro a veicular sua rebeldia, por meio de uma linguagem que foi chamada
de ‘tropicalista’118” (TAVARES, 2006, p. 69).
A estética tropicalista foi uma das referências para criação dos trajes do
espetáculo O Rei da Vela, que estreou em 1967 e teve Hélio Eichbauer119 como
figurinista. De acordo com o pesquisador San Pestana (2010), os figurinos deste
espetáculo, que misturavam elementos do vestuário da década de 1930 (momento da
escrita do texto por Oswald de Andrade), da década de 1960 (momento atual da
montagem do espetáculo) e alguns aspectos anteriores à década de 1930,
demonstravam que o espetáculo ainda era atual.
Outra característica apresentada por Pestana (2010), é a referência a figuras
públicas e seus trajes. Personalidades da alta sociedade e políticos como Getúlio
Vargas, João Goulart, Luiz Carlos Prestes e Adhemar de Barros, além do artista
Abelardo Barbosa (Chacrinha), são exemplos de inspiração para os personagens
Aberlado I e II. Recentemente, o Teatro Oficina remontou esse espetáculo e além das
referências da primeira montagem, também procuraram estabelecer alguma relação
com figuras atuais, como Aécio Neves e outros políticos. Quanto ao traje de cena, ele
mantém a mesma estrutura de terno, colete e gravata, além da coroa de latão com
adesivos de logotipos de empresas. Tudo isso é traje social. Os trajes de cena desse
espetáculo resgatam as vestimentas dos anos 1930, de Getúlio Vargas e de outras
autoridades do período, para caracterizar a autoridade do personagem Aberlardo.
117
Oswald de Andrade (1890-1954), escritor e dramaturgo brasileiro, foi um dos organizadores da
Semana de Arte Moderna de 1922, marco para o Modernismo no Brasil. As obras dele se destacaram
pela inovação estética e pela crítica à tradição literária.
118
O tropicalismo foi um movimento cultural brasileiro que aconteceu na década de 1960, e tinha como
objetivo produzir uma nova arte brasileira, transgredindo os valores impostos na cultura e no
comportamento. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Hélio Oiticica, Zé Celso e Glauber Rocha são artistas
deste período.
119
Hélio Eichbauer (1941-2018), cenógrafo brasileiro, vencedor da Triga de Ouro na 2ª Quadrienal de
Praga, em 1971.
158
Imagem 116 – Renato Borghi interpretando Imagem 117 – Renato Borghi interpretando
Abelardo I, em O Rei da Vela, Teatro Oficina, Abelardo I, em O Rei da Vela, Teatro Oficina,
1967. 2017.
Fonte: Disponível em: Fonte: Disponível em:
https://enciclopedia.itaucultural.o https://redeglobo.globo.com/globoteatro/noticia/em-
rg.br/pessoa109281/renato-borghi Acesso curta-temporada-o-rei-da-vela-chega-ao-rio-de-
em: 21 jul. 2021. janeiro.ghtml Acesso em: 21 jul. 2021.
No mesmo período de consolidação do Teatro Oficina, alguns intelectuais,
artistas e estudantes, se mobilizaram na construção dos Centros Populares de
Cultura, que ficaram conhecidos como CPC. O marco desta iniciativa foi o espetáculo
A Mais-valia vai acabar, Seu Edgar (1960), dirigido por Vianinha120, que estava se
desligando do Arena. Esse espetáculo ficou conhecido por inserir, tanto na
dramaturgia como na encenação, aspectos do teatro épico, colocando em discussão
temas como lucro e exploração do trabalho. (BETTI, 2013).
O CPC nasce no Rio de Janeiro em 1961 e inicialmente passa a mobilizar
diversas modalidades culturais (teatro, cinema, música, literatura, etc.) com
a perspectiva de aproximação com o povo. No entanto, o movimento
cepecista “valoriza” a cultura apenas como veículo dos conteúdos
ideológicos. (SILVA, 1992, p. 38)
Com diversas áreas de atuação, o CPC definiu em suas diretrizes que a cultura
popular deveria ser valorizada e inspirar as suas ações artísticas. Porém, o discurso
político e ideológico estava acima de qualquer coisa. Em 1962, o CPC se integrou a
União Nacional dos Estudantes (UNE), como responsável pela atuação cultural deste
120
Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), foi ator, diretor, dramaturgo e militante político.
159
órgão (BETTI, 2013). A maior parte dos envolvidos no CPC pertenciam ou
simpatizavam com o Partido Comunista Brasileiro.
De acordo com Julián Boal (2000, p. 20), pesquisador e filho de Augusto Boal,
o teatro produzido pelo CPC tinha o objetivo de difusão de “peças nacionalistas em
escala industrial”. Na prática, alguns espetáculos eram ensaiados em cima da hora
das apresentações, realizadas na rua ou em pequenas salas dos sindicatos e
grupamentos sociais. Porém, ao deslocar a produção artística para a periferia, na
tentativa de aproximação com as camadas mais populares da sociedade, o discurso
CPCista foi visto “como a transmissão de uma consciência justa, esclarecida, que é
explicada, por um grupo que a conhece e detém, a um outro grupo que não a possui,
ou que só a possui parcialmente” (BOAL, 2000, p. 52)121.
A solicitação de apresentações constante e a diversidade de espaços cênicos
ocupados trouxe para os espetáculos do CPC a incorporação de elementos que
auxiliavam as produções, como o uso de personagens tipo, elementos cômicos,
circenses e improvisação (BETTI, 2013). Entretanto, essa rapidez implicava na
qualidade estética dos espetáculos, como é possível observar na simplicidade dos
elementos cenográficos e figurinos do espetáculo Auto dos 99% ou Como a
Universidade capricha no subdesenvolvimento (imagem 118).
Imagem 118 – O Auto dos 99% ou Como a Universidade capricha no subdesenvolvimento,
representado por atores do CPC, da UNE.
Fonte: Disponível em: http://memorialdademocracia.com.br/card/a-mais-valia-vai-acabar-
seu-edgar Acesso em: 22 jul. 2021.
121
Esse discurso é muito criticado atualmente, tendo em vista que os grupos sociais estão lutando
cada vez mais pelos seus lugares de fala.
160
O Auto dos 99% tratava de uma crítica à reforma universitária e através de uma
paródia da colonização do Brasil, abordava os aspectos conservadores da academia,
sob a ótica dos 99% da população que não tinham acesso a ela. Em cena (imagem
118) observamos a presença de dois barcos e seus marinheiros, fazendo alusão às
caravelas portuguesas no período da colonização. Todos os atores estão vestindo
trajes sociais atuais, calça ou bermuda e camiseta, exceto por um ator no centro que
parece estar vestido de marinheiro – uma versão idealizada deste traje e que não
condiz com o que a tripulação portuguesa vestia no século XVI. Outro artifício utilizado
como forma de caracterizar os marinheiros são chapéus, porém todos são diferentes
e alguns dos atores nem utilizam esse adereço. A precariedade visual dessa
encenação indica a rapidez com que os espetáculos eram montados pelo CPC, assim
como a falta de recursos para maior elaboração dos trajes e dos cenários. O objetivo
das encenações do CPC era bastante claro, comunicar a crítica social de forma rápida
e acessível, os outros aspectos que compõem o fazer teatral eram negligenciados.
O Auto dos 99% foi publicado como texto teatral em 1962, na Revista Tempo
Brasileiro, e as músicas foram gravadas em 1964, antes do golpe militar que encerrou
os CPCs em todo o Brasil.
4.3 Cenário Nordestino
O teatro popular sempre esteve ligado aos espaços públicos. “No entanto,
antes do CPC, o MCP [Movimento de Cultura Popular] de Pernambuco já vinha
realizando experiências muito semelhantes nos subúrbios recifenses” (ARAÚJO,
2018, p. 19). Recife, a capital de Pernambuco, é considerada um centro de
efervescência cultural para a região Nordeste. O Movimento de Cultura Popular foi
fundado em 1960, pelo então prefeito de Recife, Miguel Arraes122, com o apoio de
artistas como Ariano Suassuna123, Hermilo Borba Filho124, além contar com a forte
122
Miguel Arraes (1916-2005) foi prefeito da cidade de Recife e governador do Estado de Pernambuco,
personalidade importante na luta em favor dos mais pobres e da valorização da cultura.
123
Ariano Suassuna (1927-2014) foi dramaturgo e escritor brasileiro, autor do célebre Auto da
Compadecida, criador do Movimento Armorial e defensor da cultura nordestina.
124
Hermilo Borba Filho (1917-1976) foi uma personalidade do teatro pernambucano, diretor e
dramaturgo, se destacou pela valorização da cultura popular e por iniciativas como o Teatro do
Estudante de Pernambuco, o Movimento de Cultura Popular e o Teatro Popular do Nordeste. Segundo
Carvalheira (2011), na década de 1950, enquanto esteve em São Paulo, ele também participou da
criação da Associação Paulista de Críticos Teatrais (APCA).
161
atuação de Paulo Freire125 no âmbito da educação popular. Esse movimento tinha
como objetivo a valorização e difusão da cultura e educação, e se inspirou na
experiência do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP), fundado em 1940 por
alunos da Faculdade de Direito do Recife.
O MCP atuava em diferentes áreas e para as artes cênicas foi criado o Teatro
de Cultura Popular, que atuou entre os anos de 1960 e 1964. Essa iniciativa foi
importante porque uniu o teatro ao processo de educação e conscientização social.
Existem poucos registros visuais disponíveis desse período, no entanto, encontramos
material do espetáculo A derradeira ceia, de 1962, dirigido por Luiz Mendonça126, que
abordava a vida de Lampião e seu bando. Os trajes de cena deste espetáculo foram
criados por Moema Cavalcanti127 e eram inspirados diretamente nos trajes sociais do
interior do Nordeste, no início do século XX - calça e camisa para os personagens
masculinos e saia e blusa para as mulheres.
Imagem 119 – A derradeira ceia, do Teatro de Cultura Popular, 1962.
Fonte: Disponível em: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/viver/2017/12/livro-
sobre-o-teatro-de-cultura-popular-e-lancado-no-sesc-santo-amaro.html Acesso em: 09 set.
2021.
125
Paulo Freire (1921-1997) foi um dos mais notáveis educadores da história mundial. Destacou-se
pela educação popular e foi nomeado o patrono da educação brasileira.
126
Luiz Mendonça (1931-1995) foi ator e diretor, responsável por 368 montagens do Teatro de Cultura
Popular de Pernambuco.
127
Moema Cavalcanti (1942- ) é figurinista pernambucana, mas, atualmente é reconhecida por seu
trabalho como designer gráfica, e já recebeu diversas vezes o Prêmio Jabuti.
162
No Nordeste brasileiro, o teatro popular conseguiu de certa forma unir o apelo
político e as influências das tradições populares dessa região, com o intuito de
aproximar a arte teatral do povo. No século XX, destacaram-se iniciativas importantes
para a arte brasileira, como o Movimento Armorial de Ariano Suassuna e a atuação
de diversos grupos teatrais nos diferentes estados, que se fortaleceram com o
movimento nacional de teatro amador (apresentado anteriormente). No cenário atual,
muitos grupos surgiram com iniciativas parecidas, buscando referências na cultura
popular. Os folguedos se tornaram fonte de pesquisa para muitos grupos, do ponto de
vista dramatúrgico, visual e corporal.
4.3.1 Teatro Popular do Nordeste-TPN
Nesse sentido, destacamos a atuação de Hermilo Borba Filho e Ariano
Suassuna, que atuaram na criação do TEP, consequentemente do MCP e,
posteriormente, criaram o Teatro Popular do Nordeste (TPN).
Sediado no Recife, o Teatro Popular do Nordeste (TPN) foi um dos
acontecimentos mais expressivos do período de amadurecimento da
modernidade teatral no Brasil. Uma experiência cujo legado, ético e estético,
segue vivo, fecundo, há décadas, sobretudo nos palcos nordestinos. Mais do
que um grupo de teatro, o TPN foi uma espécie de escola. [...] O TPN não
teria acontecido sem a liderança de Hermilo Borba Filho (REIS, 2018, p. 15).
Hermilo Borba Filho era advogado e se tornou professor da Universidade
Federal de Pernambuco, o seu prazer pelo teatro preencheu a sua vida, assim como
o trabalho de militância pelo teatro nordestino. O TPN foi onde Borba Filho pôde atuar
como encenador e dramaturgo a sua maneira. Ele também participou de outros grupos
de teatro como Arena de Pernambuco e outros movimentos já citados.
O TPN nasceu com objetivos muito claros. Em outubro de 1961, Borba Filho e
Suassuna assinam juntos o Manifesto do Teatro Popular do Nordeste que
resumidamente afirmava:
1) a importância da literatura dramática, reverenciando as obras clássicas,
considerando a dramaturgia como o elemento capaz de eternizar o teatro –
daí a relevância de valorizar os (novos) autores da região; 2) a necessidade
de a arte teatral se implicar com as questões próprias de cada tempo e de
cada lugar, mas isso de modo amplo e libertário, soberanamente artístico,
longe de sectarismos e de partidarismos, privilegiando sempre a beleza e a
dignidade humanas; 3) o rechaço tanto ao teatro de mero entretenimento
burguês (“frívolo”), quanto ao teatro de prioritária instrumentalização política
(“dirigido”); opondo a esses extremos, um teatro realmente ligado aos anseios
do povo, um teatro fiel às tradições, às raízes populares, de cada cultura; 4)
a valorização, um tanto idealizada, do espírito do povo brasileiro, sobretudo
163
do nordestino, vendo-o em seus aspectos mais positivos: “vivo, vigoroso,
amante da paz, religioso, irreverente e chocarreiro com o pomposo, o falso,
o grandiloquente, mas respeitoso diante da verdade dos heróis, do grandioso,
do trágico”; e 5) a identificação do projeto com os valores cristãos, ratificando
a aproximação entre a arte e a religião, ao afirmar que “toda a tradição da
arte popular é religiosa”, e também alinhando-se às correntes mais
progressistas do catolicismo, ao elogiar a “corajosa” encíclica Mater et
Magistra, do papa João XXIII, publicada havia pouco meses (REIS, 2018, p.
18).
A valorização de autores pernambucanos e nordestinos estava em primeiro
lugar, mas não extinguiu a possibilidade de montar clássicos da literatura dramática,
como O Inspetor de Nikolai Gogol. A contextualização da produção artística dentro da
cultura onde está inserida era outro aspecto importante, assim como o compromisso
com a qualidade das montagens, recorrendo a incentivos públicos e privados para
manutenção e funcionamento do grupo e seus espetáculos. Havia também um
interesse em não apresentar discursos políticos e ideológicos com os espetáculos e
por trás disso estava um apelo religioso cristão.
Sobre a qualidade popular do grupo, Suassuna e Borba Filho afirmaram:
Nosso teatro é popular. Mas, popular para nós, não significa, de maneira
nenhuma, nem fácil nem meramente político. [...] Repelimos uma arte
puramente gratuita, formalística, sem comunicação com a realidade, uma arte
frívola, estéril, sem sangue e sem pensamento, covarde e indefinida diante
dos abusos dos privilégios, da fria e cega vida contemporânea, do mundo dos
privilegiados sem entranhas e das sanguinárias tiranias que finges combatê-
lo. Mas repelimos também a arte alistada, demagógica, que só quer ver um
lado do problema do homem, uma arte deturpada e dirigida por motivos
políticos, arte de propaganda, arte que agrega ao universo da obra o cerpo
estranho da tese, para fazer do espetáculo um libelo interessado.
Acreditamos que a arte não deve ser nem gratuita nem alistada; ela deve ser
comprometida, isto é, deve manter um fecundo intercâmbio com a realidade,
ser porta-voz da coletividade e do indivíduo, em consonância com o espírito
profundo do nosso povo. [...] Nosso teatro é do Nordeste. Isso não significa
que mantenhamos um exclusivismo regional. É mantendo-nos fiéis à nossa
comunidade nordestina que seremos fiéis à nossa grande pátria, unindo-nos
a todos aqueles que procuram a mesma coisa em suas diversas regiões; [...]
é natural que o povo nordestino queira se reconhecer em seu teatro
(SUASSUNA; BORBA FILHO apud REIS, 2018, p. 24-25).
Reconhecer-se no teatro foi a principal característica do TPN e sua maior
contribuição para o povo nordestino. O grupo dialogava permanentemente com a
comunidade e se apresentava em teatros por todo estado - e posteriormente pelo
país. Outros artistas importantes do cenário pernambucano trabalharam com o TPN,
Francisco Brennand, ceramista reconhecido, assinou a cenografia de muitos trabalhos
do Teatro do Estudante de Pernambuco e trabalhou em seguida com o TPN na
montagem da Farsa da boa preguiça (REIS, 2018).
164
Todavia, devemos ressaltar que existia uma enorme contradição no propósito
do TPN, que almejava fazer teatro popular brasileiro utilizando o modelo francês do
Théâtre National Populaire de Jean Vilar, principalmente nas questões visuais:
sua poética, centrada no trabalho do ator, preconizava um palco livre de
excessos da cenografia e os demais elementos visuais do espetáculo,
estavam de acordo com o impulso renovador e com a capacidade realizadora
de muitos artistas que lutavam por um fazer mais democrático para o teatro
nacional (REIS, 2018, p. 41).
O próprio Ariano Suassuna, posteriormente, levou adiante um movimento que
ele chamava de brasileiro, porém tratava de origens europeias. Essa contradição está
refletida na visualidade e nos trajes de cena, que se baseavam em modelagens dos
trajes europeus, conforme veremos no tópico a seguir.
Houve outras influências sobre o TPN, como o trabalho dos encenadores:
Jean-Jacques Copeau, com a estética livre de excessos e o comprometimento com a
comunidade que forma a plateia; Antonin Artaud, com o forte caráter improvisacional
e ritual; e Bertolt Brecht, com a ação anti-ilusionista dos atores (REIS, 2018).
Borba Filho fomentou um diálogo com a cultura em todos os níveis possíveis
com o TPN e com o tempo o interesse foi mudando a sua tônica, o conteúdo passou
a importar menos que a forma. “Falar do bumba meu boi era importante, porém, torna-
se mais importante observar elementos capazes de enriquecer os trabalhos do TPN,
não somente na dramaturgia, mas também, e sobretudo, na interpretação e na
encenação” (REIS, 2018, p. 88).
Um dos dilemas vividos por Borba Filho era conseguir aliar o trabalho dos
atores eruditos com o frescor dos artistas populares, que improvisavam e agiam
espontaneamente com o público, e ainda assim apresentar espetáculos clássicos e
com críticas sociais128. Uma possibilidade era trazer os brincantes para o palco do
teatro. Sobre essa problemática, existia:
essa inadequação, fortemente sentida na prática, [que] evidenciava a
complexidade da proposta. O ator popular mesmo não pertencia àquele
mundo. [...] A arte dele não tinha hora marcada, nem tinha texto a ser
memorizado, era uma brincadeira inerente à sua própria vida. Assim como
era improvável a presença de artistas autenticamente populares nas peças
do TPN, era também difícil encontrar na plateia pessoas pertencentes às
classes economicamente menos privilegiadas (REIS, 2018, p. 103).
128
Ibid.
165
Haviam dificuldades em manter a disciplina com os brincantes, que na maioria
das vezes chegavam atrasados e não se interessavam pelas leituras de texto, que
eram fundamentais no processo de montagem do TPN. Sem falar que muitos dos
brincantes são analfabetos ou possuem dificuldades com a leitura e escrita. Outra
questão era a cobrança de ingressos para a entrada nos teatros, que dificultavam a
presença de espectadores mais pobres.
4.3.2 O melhor juiz, o rei
No final da década de 1960, o TPN montou o espetáculo O melhor juiz, o rei,
de Lope de Vega129, traduzido e adaptado por Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri
e Paulo José. No texto original, o próprio Rei pune o aristocrata, dono das terras onde
trabalha a amada de Sancho, que aprisionou a moça com o intuito de casar-se com
ela no lugar do camponês. Todavia, a montagem realizada pelo TPN dialogava
diretamente com a realidade rural brasileira e com a visualidade de tradições
populares do Nordeste. Nesta versão, o próprio Sancho se veste de nobre e, em nome
do rei, mata o senhor, em seguida se casa com a amada, agora herdeira das terras.
Depois de se aproximar, cenicamente, do mamulengo e do bumba meu boi,
agora o TPN busca inspiração no reisado e no maracatu, manifestações
dramáticas populares encontradas, sobretudo em Alagoas e em
Pernambuco. A elaboração do conceito para a encenação do O melhor juiz,
o rei, porém, não foi concebida individualmente pelo diretor convidado: se deu
em conjunto, a partir do contato de Rubem Rocha Filho com o elenco e com
a equipe técnica (REIS, 2018, p. 126-127).
A equipe técnica contava com Janice Lobo130 e a direção era de Rubem Rocha
Filho131. Esse espetáculo ficou em cartaz até o final de novembro de 1968.
Ângelo de Agostini [crítico teatral] afirmando o seu apreço à modernidade da
linguagem teatral praticada pelo grupo, elogiando de forma enfática o
trabalho do encenador, a qualidade do elenco e, com especial atenção, os
“figurinos e a decoração de Janice Lobo, muito vivos, coloridos, brilhantes, e
que emprestam dimensão de relevo indiscutível” (REIS, 2018, p. 128).
129
Félix Lope de Vega (1562-1635), foi dramaturgo da Era de Ouro espanhola.
130
Janice Lobo professora de Indumentária Histórica, trabalhou em conjunto com Hermilo Borba Filho
em diversas montagens, desenhando cenários e figurinos. Ela recebeu o prêmio de melhor cenógrafo
em 1954, pela Associação dos Críticos Teatrais de Pernambuco.
131
Rubem Rocha Filho (1939-2008), carioca, foi diretor, ator, dramaturgo e professor de teatro.
166
Imagem 120 – Cena do espetáculo O melhor juiz, o rei.
Fonte: REIS, 2018.
Imagem 121 – Croqui de chapéu para soldados do espetáculo O melhor juiz, o rei, TPN.
Fonte: REIS, 2018.
Analisando as imagens do espetáculo, percebe-se que os figurinos de Janice
dialogavam de forma mais evidente com o Reisado e o Maracatu, principalmente pelo
167
chapéu em forma de casario antigo, característico do Reisado e dos Guerreiros
alagoanos (ver imagem 114). A imagem 121 apresenta o croqui dos chapéus dos
soldados e especificações para a confecção. A base deste adereço era um chapéu de
palha com uma aba triangular colocada na parte frontal, enfeitada com espelhos, e da
ponta superior do triangulo caíam fitas. Os trajes de cena remetem aos trajes sociais
do século XVI na Europa. São gibões e calções estilizados com aberturas nas mangas
e no calção, mostrando um tecido diferente por dentro.
O final da década de 1960 marca o distanciamento de Suassuna do TPN. Além
de desentendimentos pessoais, alguns espetáculos do grupo começaram a utilizar
elementos políticos que se aproximavam do teatro épico brechtiano e isso, na visão
de Suassuna, afastava o grupo de sua essência cultural. Por exemplo, a cenografia
do espetáculo Andorra, dirigido por Benjamim Santos132, tinha vários cartazes com
frases de protesto em cena. Essa divergência levou Suassuna a reafirmar o interesse
pela cultura nordestina, como autêntica representante do Brasil: nesse sentido, ele
fundou o Movimento Armorial. (REIS, 2018).
4.3.3 Ariano Suassuna e o Movimento Armorial
Ariano Suassuna é uma personalidade polêmica. A visão apresentada por ele
em seus trabalhos dentro desse movimento regionalista é oriunda de uma postura
oligárquica, patriarcal e que enaltece as referências europeias. Todavia, o que vamos
ressaltar aqui não envolve questões pessoais ou familiares desse dramaturgo, mesmo
sabendo que ele se inspirou em aspectos da experiência de vida dele, da formação
acadêmica, e principalmente do convívio sertanejo na fazenda de Acauã e na cidade
de Taperoá, no interior da Paraíba. Nos interessa a contribuição estética do artista e
literato que ele foi. O próprio Suassuna propõe a ideia de nobiliarquia, (estudo das
origens nobres de algo), para entender o teatro popular brasileiro:
… quem passou por tudo isso tem de compreender que o teatro popular
brasileiro - e o teatro erudito que começa a surgir ligado a ele - entronca
numa nobiliarquia: a mesma que, na realidade, marca nosso povo, ao mesmo
tempo fidalgo e popular, tradicional e peculiar, mediterrâneo e “exótico”,
religioso e satírico, sangrento e cheio de gargalhadas, uma harmonia de
contrários que pode exaltá-lo, do simplesmente risível ao mais profundo
cômico e humorístico, e do simplesmente dramático às fontes de violência do
ritmo trágico. (SUASSUNA, 2000, p. 105).
132
Benjamim Santos nasceu em 1939 no Piauí, é roteirista e atuou no teatro pernambucano na década
de 1960.
168
Outra referência marcante na vida do brasileiro, em especial os nordestinos, é
o circo. A prática circense se desenvolveu no Brasil e alcançou todas as regiões. “O
circo era sinônimo de vida e animação. Natural que assim fosse: os circos sertanejos
[da infância de Suassuna], mesmo sendo pobres, possuíam mais elementos de
encantação poética do que os circos de hoje em dia, mesmo os ricos” (NEWTON
JÚNIOR, 2014, p. 21). As crianças ficavam eufóricas e muitas vezes podiam participar
das apresentações. Nessa época, o circo apresentava pequenos espetáculos teatrais,
chamados de dramatizações e essa talvez tenha sido a primeira experiência com
teatro para Suassuna.
Desde os primeiros trabalhos, Suassuna já procurava relações com obras
clássicas.
Não é só do romanceiro popular que vem a força poética das peças de Ariano
Suassuna. Já em seu primeiro trabalho para teatro, o autor procura aliar o
elemento popular ao erudito, conseguindo atingir, a partir do local e nacional,
um patamar verdadeiramente universal (NEWTON JÚNIOR, 2014, p. 31).
A dualidade erudito-popular foi sendo construída, por meio de referências do
Século de Ouro espanhol133, misturadas aos acontecimentos da cultura popular
nordestina que o rodeava.
Colheu nas mais variadas manifestações da cultura popular, no Brasil ou não,
para semear a comédia moderna brasileira; afirmou o matiz de uma
"nacionalidade" sem negar as “influências" estrangeiras (sobre tudo a da
dramaturgia do “século de ouro”) (RABETTI, 2000, p. 98).
Nesse contexto, Ariano Suassuna criou o Movimento Armorial com o objetivo
de aproximar a arte popular do Nordeste ao universo erudito.
O movimento Armorial [foi] lançado no Recife, a 18 de outubro de 1970.
Idealizado por Suassuna com o objetivo de criar uma arte erudita brasileira a
partir das raízes populares da nossa cultura, e de combater, assim, o
processo de vulgarização cultural ao qual ainda hoje nos encontramos
submetidos (NEWTON JÚNIOR, 2008, p. 9).
Para Mariangela Alves de Lima (2009, p. 39), o Movimento Armorial foi
“nacionalista no intento e anti-ilusionista no que diz respeito aos recursos do
espetáculo, o estilo armorial se contrapõe ao naturalismo da corrente regionalista”.
Havia uma preocupação em levar em consideração os aspectos regionais, elevando
133
O período entre o século XVI e o século XVII é o auge da cultura espanhola, indo desde o
Renascimento até o Barroco, e por isso é chamado de Século de Ouro espanhol.
169
o valor do nordeste, do povo e da cultura. Por outro lado, o Movimento se opunha ao
naturalismo da mesma forma que buscava ser realista e lúdico.
Ariano Suassuna (2008, p. 46) acreditava no regionalismo e o defendeu como
“uma posição inicial: a daquele que quer criar a partir da realidade que o cerca. [...]
cada artista revela um mundo que é somente seu”. Seguindo essa linha de raciocínio,
Suassuna defendia que a cultura brasileira é fruto da mestiçagem das raças
indígenas, europeias e africanas e que as nossas tradições populares são fortemente
influenciadas pelas culturas ibéricas. “O lastro formado pelo barroco ibérico, desde o
século XVI, começou a ser recriado, reinterpretado e reinventado aqui, num sentido
brasileiro e original, com uma grosseria artesanal e mestiça”134.
As formas do espetáculo popular nordestino ora são mais ligadas a nossas
origens ibéricas – como o auto da “Nau Catarineta” e as “Cheganças” [...], ora
reinventadas pela “civilização do açúcar” do litoral, pela “do couro” do sertão,
como o Bumba-meu-boi; sem se falar no teatro popular de bonecos – o
Mamulengo -, que, com um lastro tradicional anônimo, se reinventa e se
reformula a cada instante, com características inteiramente nordestinas
(SUASSUNA, 2008, p.66).
As navegações, os cortejos, a relação com a propriedade rural, a agricultura e
as crenças populares são temas comuns aos folguedos brasileiros, reunindo assim
referências das diferentes culturas que formaram o país.
A visualidade do Movimento Armorial tem na ludicidade dos símbolos um fator
preponderante. As cores e as formas são fundamentais para atrair a atenção do
público e preencher de significados a ação artística. Do ponto de vista das artes
visuais, as iluminuras135 assumem as características do Armorial, valorizando a
xilogravura. Na música, o representante deste movimento foi o Quinteto Armorial,
formado por Antônio José Madureira (viola caipira), Egildo Vieira do Nascimento
(pífano e flauta), Antônio Nóbrega (rabeca e violino), Fernando Torres Barbosa
(percussão e berimbau) e Edison Eulálio Cabral (violão). Esse grupo foi responsável
por reunir a música erudita às raízes populares, é possível observar isso na mistura
dos instrumentos tocados, alternando entre clássicos e populares.
Sobre a produção teatral dentro do Movimento Armorial, é possível afirmar que
a dramaturgia de Suassuna, inspirada nos folhetos de Cordel, é sua principal
134
Ibid., p. 63.
135
As iluminuras eram o conjunto ilustrativo que acompanhavam os textos da Idade Média. Esse
conceito vai ser retomado por Ariano Suassuna para ilustrar o Movimento Armorial.
170
característica, mesmo sabendo que O Auto da Compadecida, obra prima de
Suassuna, foi escrita em 1955 e, portanto, é anterior ao movimento. Mesmo assim,
como vimos anteriormente, Suassuna já desenvolvia suas ideias de valorização da
cultura popular desde as experiências com o MCP e o TPN.
As principais obras de Suassuna são O auto da compadecida como
dramaturgia e O romance d’A pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta
como romance. Sobre a sua escrita, muito se conjectura a respeito da semelhança
com acontecimentos reais da vida dele, mas o mesmo não deixa clara essa relação.
O personagem Quaderna, do Romance d’A pedra do reino, traz semelhanças com o
autor como a morte do pai, a data de aniversário e algumas outras questões; ao
mesmo tempo se parece com o Dom Quixote, de Cervantes, ressaltando a
combinação de diferentes culturas como referências criativas. “No que se refere ao
Nordeste, porém, existe e sempre existiu a tradição de um espetáculo popular”
(SUASSUNA, 2000. p. 102), e Suassuna recriou essa tradição, baseando-se em
contos universais, para desenvolver a sua obra.
Dentro do Movimento Armorial, o teatro utilizou-se de formas sociais
estabelecidas para construções cênicas, assim como do imaginário popular para a
visualidade das cenas. O mesmo princípio de hibridização cultural, era o diferencial
da cena teatral criada por Suassuna, uma conjunção poética daquilo que é dito e do
que é visto. Todos os elementos cênicos, inclusive os trajes e os cenários, levavam
ao palco um Nordeste real e ao mesmo tempo imaginado.
Na verdade, o diálogo que se pode colocar na boca de dois personagens
vestidos de casaca é muito diferente daquele que podem proferir um Diabo
vestido de vermelho e negro e um Rei de teatro, com túnica, coroa, manto e
máscara e que fala ao som de tambores, pífanos e rabecas. (SUASSUNA,
2008, p. 68)
A força da caracterização dos personagens estava na utilização dos elementos
visuais pré estabelecidos na cultura ocidental, como por exemplo o código de cores,
onde a cor preta significa luto, morte, maldade e escuridão, ao mesmo tempo que
indica sobriedade e autoridade e é usada nos trajes de cena do diabo, dos vilões e
dos padres – neste último caso, a relação é direta com os trajes eclesiásticos reais.
Os adereços também colaboram com esse processo de rápida leitura visual por parte
do espectador, reconhecendo um rei pela utilização de uma coroa; ou Lampião, pelo
icônico chapéu de couro com aba revirada, formando uma meia lua. Essas
características dos trajes de cena podem ser observadas na imagem 122, onde um
171
dos elencos do Auto da Compadecida se reuniu para uma fotografia com o
dramaturgo.
Imagem 122 – Elenco do Auto da Compadecida, com Ariano Suassuna ao centro.
Fonte: Disponível em: https://g1.globo.com/pernambuco/ariano-suassuna/platb/ Acesso em:
09 set. 2021.
Romero de Andrade Lima (1957- ), diretor teatral, artista visual e sobrinho de
Ariano Suassuna, trabalhou com o tio no auge do Movimento Armorial, auxiliando nos
espetáculos teatrais. Romero foi responsável pelos trajes de cena e pela cenografia
do espetáculo As cochabranças de Quaderna, em 1989. Os croquis destes trajes
definem visualmente a cena teatral inserida no Movimento Armorial, tendo em vista
que utiliza o traje social do século XX no Nordeste brasileiro como base e acrescenta
grafismos, imagens e cores que remetem às iluminuras e à xilogravura. O personagem
Quaderna, à esquerda na imagem 123, veste calça e gibão aparentemente de couro,
enquanto os outros personagens são mais coloridos e possuem mais detalhes
gráficos nos trajes.
172
Imagem 123 – Croquis para os trajes de cena do espetáculo As cochabranças de Quaderna,
em 1989, de Romero de Andrade Lima.
Fonte: Disponível em: https://revistacontinente.com.br/secoes/arquivo/artes-cenicas--um-
modo-brasileiro-de-representar Acesso em: 09 set. 2021.
Outros personagens importantes da dramaturgia de Suassuna são João Grilo
e Chicó, dupla cômica do Auto da Compadecida. Essa dupla reflete características de
um arquétipo recorrente nas representações populares, o trabalhador. Na Commedia
dell’Arte eles eram conhecidos como Zanni, e o mais famoso é o Arlecchino. Suassuna
traça um paralelo entre essas figuras:
João Grilo, personagem do romanceiro, com seus companheiros Cancão,
Pedro Quengo ou Malazarte136, Arlequins nordestinos, astutos, maliciosos,
inventivos. Seguindo uma tradição do Bumba-meu-boi, dos camelôs e dos
palhaços, vão acompanhados de um outro personagem, meio bobo, que
serve de palhaço e de suporte a eles: no caso do Bumba-meu-boi, essa dupla
é de vaqueiros e leva os nomes de Mateus e Bastião. (SUASSUNA, 2008, p.
72).
Na Commedia dell’Arte, os Zanni também não apareciam sozinhos. Em muitas
representações populares é comum observar cenas em dupla, construindo um jogo,
onde um personagem dá o suporte para a piada do outro. No Circo isso acontece com
os palhaços, o branco e o augusto137.
136
Cancão, Pedro Quengo ou Malazarte são figuras recorrentes do imaginário popular nordestino, e
que possuem características arquetípicas semelhantes a Mateus e Bastião, dos folguedos do boi, e
consequentemente, com João Grilo e Chicó.
137
A relação entre os palhaços Branco e Augusto acontece através da interação entre um mais
provocador, o augusto, e outro mais clássico, o branco, que também pode ser chamado de escada,
pois é ele quem arma a cena para que o Augusto complete a piada.
173
Imagem 124 – O palhaço, Chicó e João Grilo, em O Auto da Compadecida, 1957.
Fonte: Disponível em: https://revistacontinente.com.br/secoes/arquivo/artes-cenicas--um-
modo-brasileiro-de-representar Acesso em: 10 set. 2021.
Outra semelhança entre essas figuras são os trajes, sempre amplos folgados,
muitas vezes costurados com retalhos de tecidos coloridos, como é o caso dos Zanni.
O rosto mascarado distancia o ator do personagem representado, mas nem sempre
esse artifício é utilizado, como podemos observar nas personagens João Grilo e
Chicó. O uso das máscaras ou maquiagens vai ser comum nos folguedos populares
e na Commedia dell’Arte.
Ariano Suassuna faleceu em 2014, porém ficaram suas obras e a contribuição
para a valorização da cultura nordestina. No início dos anos 2000, O Auto da
Compadecida foi adaptado para o cinema pelo diretor e roteirista Guel Arraes (1953-
) e também se tornou referência no cinema nacional.
4.3.4 Altimar Pimentel e o cenário paraibano
Na Paraíba, na segunda metade do século XX, o trabalho do pesquisador,
professor, dramaturgo e diretor teatral Altimar Pimentel138 se destacou pela utilização
138
Altimar Pimentel (1936-2008), alagoano, foi professor, dramaturgo e diretor de teatro. A obra de
Pimentel é de grande valor para a cultura nordestina, tendo em vista que ele registrou muitas tradições
populares desta região, e os textos teatrais dele refletiam diretamente essa cultura.
174
de elementos da cultura popular paraibana em peças teatrais. Ele é alagoano, porém,
sua carreira foi construída na Paraíba, onde ele fez parte do Conselho Estadual de
Cultura e foi Presidente da Comissão Paraibana de Folclore. Pimentel foi reconhecido
pelo trabalho como pesquisador da cultura popular nordestina e o teatro dele também
fez parte desse reconhecimento; quase toda obra dramatúrgica de Pimentel já foi
encenada. O teatro paraibano tem em Pimentel sua grande referência de cultura
popular, e foi em meados da década de 1960 que ele começou a utilizar referências
dos folguedos e das tradições na cena teatral. Todavia, essa influência não era
meramente ilustrativa, a dramaturgia de Pimentel abordava temas que colocavam as
classes populares e menos favorecidas como protagonistas da história. O ponto de
vista da obra de Pimentel é majoritariamente o olhar do povo sobre a sociedade.
(PIMENTEL, 2007b).
O professor Makarios Barbosa afirma que:
era uma questão de honra para Altimar Pimentel garantir sua identificação
com uma dramaturgia popular nordestina rica em elementos desta cultura,
especificamente sua religiosidade, usando figuras míticas, seus festejos
(coco praieiro), sua poesia oral (cordel), seus autos dançantes (nau-
catarineta, pastoril, bumba-meu-boi), seu Teatro de Bonecos (mamulengo,
João Redondo), etc. (BARBOSA, 2007, p. 148).
A cultura popular é o viés condutor da obra de Pimentel, que está permeada
por diferentes aspectos desta tradição, seja do ponto de vista religioso (rituais), festivo
(danças, brincadeiras e representações), comunicacional (oralidade) ou simbólico
(dentro do contexto circundante). Nesse sentido, Pimentel (2007b) reafirma o caráter
aparentemente anárquico do teatro nordestino, vinculando-o ao teatro popular e ao
circo, de maneira que reconhece que:
suas raízes encontram-se na commedia dell'arte e no drama litúrgico
medieval, numa transposição mágica do povo através, principalmente, do
bumba-meu-boi, onde as influências portuguesas e europeias mesclam-se à
contribuição negra. Nele, os João Grilo, os Benedito, os Cancão de Fogo, os
Mateus, todos heróis derivados de uma linha que vem desde a comédia nova,
passando pela commedia dell'arte, por Goldoni e Molière, armam intrigas e
conduzem a ação ou enredam-se nela; as cenas se sucedendo como
improvisadas. (PIMENTEL, 2007a, p.113)
As peças de Pimentel reverberam a cada encenação as características
culturais do povo nordestino e seus folguedos. Ele propôs “uma espécie de teatro-
total em que o canto e a dança constituem elementos essenciais de comunicação,
175
além do guarda-roupa e efeitos cênicos acessórios”139, apresentados em espaços
públicos, aproximando o teatro do transeunte e negando a estrutura monumental das
casas de espetáculo à italiana.
Sobre as tradições que são referenciadas nos textos teatrais de Pimentel,
podemos citar o Auto da cobiça (1967), que utilizava referências dos folguedos do boi
(Reisado, Boi de Reis, Bumba-meu-boi). Essa montagem foi realizada pelo grupo de
Teatro Experimental de Cabedelo, TECA, em 1986.
Imagem 125 – O Auto da Cobiça, de Altimar Pimentel, 1986.
Fonte: PALHANO, Romualdo. A Saga de Altimar Pimentel e o Teatro Experimental de
Cabedelo. João Pessoa: Sal da Terra, 2009.
Imagem 126 – Catirina, Mateus e Bastião, do Cavalo Marinho Infantil Sementes de João do
Boi, João Pessoa-PB, 2020.
Fonte: Fotografia da autora, 2020.
139
Ibid., p. 118.
176
O espetáculo “conta a história do latifúndio, ao mesmo tempo em que mostra
um elo com a presença estrangeira no país” (PALHANO, 2009, p. 68). O boi,
personagem retirado do folguedo, era objeto de desejo dos estrangeiros, que
tentavam, mas não conseguiam comprá-lo. Os trajes de cena são semelhantes aos
trajes dos folguedos do boi, conforme podemos observar na imagem 126, até mesmo
a maquiagem é a mesma para os personagens Mateus e Catirina, cuidadores do
animal. Tanto na tradição popular como no espetáculo, os personagens vestem trajes
com tecido de algodão estampado (chita) e têm o rosto pintado de preto.
Além das referências aos folguedos populares, Pimentel também se referia a
questões sociais do cotidiano do nordestino, como seu modo de viver e suas crenças.
No espetáculo O Cemitério das Juremas (1976), Pimentel retrata o ritual paraibano da
Jurema, que tem aspectos que podem ser confundidos com outras religiões de
matrizes afro-brasileiras, mas está baseado na experiência das comunidades negras
que viviam próximas a cidade de Alhandra-PB e que tinham o costume de plantar
Jurema140 sobre cada corpo negro enterrado após a morte, tendo em vista que não
poderiam ocupar os cemitérios da cidade.
Imagem 127 – O Cemitério das Juremas, de Altimar Pimentel, no Teatro Santa Catarina,
Cabedelo-PB.
Fonte: PALHANO, Romualdo. A Saga de Altimar Pimentel e o Teatro Experimental de Cabedelo.
João Pessoa: Sal da Terra, 2009.
140
Jurema é uma planta, comum no Nordeste do Brasil, que possui propriedades psicoativas, além de
anti-inflamatória e antiséptica.
177
Pela imagem 127, é possível dizer que Pimentel levou literalmente a cerimônia
da Jurema para a cena, pela presença do altar no fundo do palco, além dos atores
serem negros e estarem vestidos com o que poderíamos chamar de roupa de ração,
que é o traje utilizado no cotidiano dos centros de religiões afro-brasileiras como o
candomblé e a umbanda, seguindo a estrutura de camisa e calça ou saia. Os homens
aparecem vestindo calça e colares de contas e as mulheres estão de saia, camisu141
e turbante na cabeça. Esse espetáculo nos conecta à ideia de Teatro das Origens, de
Ligiéro (2019), por apresentar aspectos reais da cerimônia da Jurema, que é
característica de uma comunidade específica e, portanto, a representa.
Altimar Pimentel se destacou na história do teatro por sua vertente popular e
por abordar características específicas da cultura paraibana, enquanto discutia
questões políticas e sociais nos espetáculos. O objetivo de Pimentel (2007a, p. 116)
era fortalecer o teatro nordestino, em detrimento ao teatro sobre o Nordeste, inserindo-
se na definição de teatro popular de Boal (1979), que defendia que a comunidade
estivesse envolvida em todo o processo de criação artística e não fosse apenas o
conteúdo do espetáculo.
Para finalizar esta seção, gostaríamos de citar outras iniciativas de teatro
popular no Brasil, que não foram aprofundadas aqui, mas merecem este destaque. O
grupo paulista Teatro União e Olho Vivo, dirigido por César Vieira, existe desde a
década de 1960 como grupo não profissional, eles são considerados pioneiros no
teatro de rua brasileiro. O grupo possui uma sede no bairro do Bom Retiro, região
central de São Paulo e se dedica a montar e apresentar espetáculos para
comunidades carentes, assim como mantém oficinas regulares de iniciação ao teatro.
Não podemos deixar de citar a atuação de Antônio Nóbrega, multiartista que participou
do Quinteto Armorial de Ariano Suassuna como violinista e rabequeiro e é responsável
pelo Instituto Brincante, também em São Paulo, onde oferece cursos e vivências nas
mais distintas tradições populares brasileiras. O personagem Tonheta, representado
por Nóbrega, é uma versão do palhaço nordestino, do Mateus e também do
Arlecchino.
Muitas outras experiências poderiam ser contadas aqui, mas devemos seguir
o curso da nossa linha do tempo e adentrar um pouco mais no teatro paraibano
contemporâneo, para isso vamos focar nos trajes de cena de um artista popular que
141
Camisu é a parte superior que compõe a roupa de ração, a camisa.
178
não possui o apoio nem a visibilidade de um Antônio Nóbrega, mas segue a trajetória
do brincante que sai do terreiro e assume o seu lugar nos palcos. Na próxima seção,
contaremos a história de José Maciel, analisando alguns espetáculos que marcaram
a vida deste ator e como os trajes de cena se relacionam com a experiência de vida
dele junto às tradições culturais populares. Estamos falando de um período da história
do teatro paraibano de “significativo crescimento estético logo no início dos anos
noventa, não apenas na qualidade dos espetáculos produzidos, [...] mas ainda quanto
ao crescimento significativo do público que lotou as casas de espetáculos” (VIEIRA,
2006, p. 75). Muitos grupos desenvolveram espetáculos com referências à cultura
popular, seja na dramaturgia, na interpretação, ou na encenação como um todo,
destacamos José Maciel pela singular carreira e por todas as particularidades que
serão abordadas a seguir.
179
5 JOSÉ MACIEL E CIA OXENTE
Essa seção evidencia a escolha pelo estudo de caso, mediante suas
características particulares de envolvimento do grupo com a comunidade. É o
momento de apresentar José Maciel e a Cia Oxente de Atividades Culturais, expor os
trajes de cena de alguns momentos do grupo e suas relações com os trajes de
folguedo e outras referências. Para isso, foram escolhidos cinco espetáculos da Cia
Oxente, os quais Maciel participou efetivamente e possuem um vínculo maior com a
cultura popular nordestina e suas tradições.
Na fase inicial, a produção dos trajes de cena era muito precária e contava com
os materiais disponíveis em casa. O primeiro espetáculo profissional, Jogo das
Máscaras, ainda manteve algumas relações com a simplicidade dos figurinos
anteriores. Redemunho, foi um espetáculo apresentado em várias regiões brasileiras
e tem nas redes, objeto muito comum para descansar no Nordeste, a matéria prima
para confecção dos trajes. Quem quiser que conte outra é o espetáculo infantil que
tem a cultura popular como fundamento: as brincadeiras, histórias e danças populares
foram levadas ao palco e os trajes apresentam inspiração direta dos folguedos. O Dia
em que a morte bateu das botas contou com a participação de um figurinista
profissional convidado e talvez por isso tenha os trajes mais elaborados tecnicamente.
Por último, o solo de José Maciel, O Bode, que representa a história de um homem
transformado em bode pai de chiqueiro como castigo, esse personagem se assemelha
aos sátiros.
A Cia Oxente é um grupo teatral que tem início em meados da década de 1980
na cidade de Alagoa Grande – PB, e foi integrante do Movimento Paó142. O grupo é
inicialmente formado por atrizes e atores da cidade, de outras comunidades
circunvizinhas e de outras cidades como João Pessoa - PB. Com mais de três décadas
de atuação, a Cia Oxente mantém três atores de sua primeira formação: os irmãos
Jacinta de Lourdes e José Maciel, e o também diretor Misael Batista. Ao longo dos
anos fizeram parte do grupo artistas como Alberto Black, Ane Kelmi, Genário Dunas,
Gorete Araújo, Jailton Sousa, Jô Carvalho, Neide Melo e Nelson Alexandre. Outros
artistas contribuíram em algumas montagens como Edilson Alves, Everaldo
Vasconcelos, Fábio Asevedo, Lenita Cabral (in memoriam), Luciano Oliveira (in
142
Movimento cultural que aconteceu em Alagoa Grande-PB na década de 1980, onde os grupos de
teatro da cidade se reúnem para produzir seus espetáculos.
180
memoriam), Maronilton Henrique e Ronaldo Marçal. Hoje, a Cia Oxente também conta
com Emmanuel Macêdo, Jamil Richene, Margarida Santos, Mônica Macêdo e Palmira
Palhano em sua formação.
A produção da Cia Oxente é intensa desde o início, com repertório de seis
espetáculos em atividade: Quem quiser que conte outra (2003), Mulheres de Lourdes
(2005), O dia em que a morte bateu das botas (2006), Anáguas (2011), Girandei e O
Bode (2016). O grupo já recebeu fomento para montagens e circulações do governo
federal e municipal (de João Pessoa-PB), além de instituições como a Petrobrás. A
maior parte dos espetáculos da companhia são premiados em festivais regionais e
nacionais. Os destaques são para dramaturgia, direção, atuação, iluminação e
figurino.
A estética nordestina sempre esteve presente no trabalho da Cia Oxente. O
grupo e os diretores que passaram por ele, nunca deixaram de lado aspectos da
cultura do Nordeste. Pelo contrário, essa é uma das principais características da
companhia: assumir a cultura nordestina como selo da Cia Oxente. Essa característica
está em todos os âmbitos, da dramaturgia ao sotaque, e dos aspectos sonoros aos
visuais.
Imagem 128 - Logo da Cia Oxente
Fonte: Página da Cia Oxente no Facebook143.
A alma nordestina é o leitmotiv da Cia Oxente. A logo da companhia também
retrata esse aspecto cultural, ao utilizar o chapéu do cangaceiro, símbolo da estética
do cangaço, movimento nordestino formado por homens e mulheres que brigavam
143
Disponível em: <https://www.facebook.com/cia.oxente/>. Acesso em: 29 jan. 2019.
181
pela justiça social sob o comando de Virgulino Ferreira da Silva (Lampião), e as
máscaras do teatro retratadas dentro de um pandeiro, que é o instrumento que dá
nome a um dos artistas mais famosos de Alagoa Grande – PB, o cantor e compositor
Jackson do Pandeiro.
Corroborando com o conceito apresentado por Alfredo Bosi, que reapresenta
a cultura como “conjunto de modos de ser, viver, pensar e falar de uma dada formação
social” (BOSI, 1992, p. 319), observamos que o Nordeste brasileiro tem na sua cultura
um imenso potencial criativo ao olhar os elementos presentes na arte, no artesanato,
na gastronomia, na linguagem, no comércio e em tantos outros aspectos. O teatro
popular que nasce nas feiras livres, o cordelista, o tocador de viola e repentes, a
comida simples e com tempero forte, o sotaque seco e arrastado, as danças populares
(coco de roda, cavalo marinho, maracatu, etc.), o mamulengo144, o forró, e tantas
outras características marcam essa região brasileira.
Nesse sentido, falamos do Brasil enquanto país multicultural, que possui no
Nordeste uma expressão artística delineada e que no percurso histórico esteve
sempre associado pela mídia a uma região pobre, marginalizada e seca
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006). As manifestações da cultura nordestina são fonte
de inspiração para muitos artistas, em todas as expressões, retratando desde o
estereótipo do excluído até as belezas naturais e o modo de vida desse povo. No
teatro não é diferente - a Cia Oxente é exemplo dessa utilização da cultura nordestina
como referência para criação artística.
As escolhas criativas da Cia Oxente perpassam o imaginário nordestino. Na
dramaturgia, a opção sempre foi por temas regionais e dramaturgos como Lourdes
Ramalho, Saulo Queiroz e Tarcísio Pereira, todos paraibanos. Na encenação, a
sonoplastia se mistura com sons e ritmos desse imaginário, como as músicas
populares (ladainhas, aboios145 e repentes), o forró, a ciranda e o xaxado. Na
visualidade cênica, objetos do cotidiano da família do sertão são utilizados como
adereços de cena, como os potes de barro, os candeeiros, as redes e muitos outros.
Por isso, não houve a exigência de neutralizar o sotaque nas interpretações, mas
permanecer o mais próximo ao natural e as personagens seguiam referências de
pessoas reais, encontradas nas ruas da cidade.
144
Boneco de luva típico do nordeste brasileiro.
145
Canto dos vaqueiros nordestinos executado para conduzir os bois.
182
Essa busca por uma estética nordestina está presente em outros espetáculos
de grupos paraibanos como Piollin e SerTão Teatro. Essa estética é recorrente em
outros grupos de outros estados e regiões do Brasil, como no Clowns de Shakespeare
(RN), Garajal (CE) e Mundu Rodá (SP).
5.1 Trajes de cena da Cia Oxente/José Maciel
Nesse momento apresentamos um panorama do início da história de José
Maciel, sua relação com a família na cidade de Alagoa Grande, região do brejo
paraibano e o despertar para a cultura popular. O início da Cia Oxente com
brincadeiras de quintal e as principais montagens teatrais relacionadas à cultura
popular que se fortaleceram no âmbito profissional, também compõem esse tópico.
5.1.1 Início no Agreste paraibano146
O universo da feira esteve presente na vida de José Maciel desde a infância,
pois o pai dele era vendedor de mangaios147, conhecido como Ioiô das Cebolas. Os
pais dele vieram de um lugar chamado por Maciel de Guaribas, e de lá trouxeram a
influência de muitas tradições populares, como a moda de viola, os repentes e cordéis.
(SILVA, 2017).
Algo marcante na infância de Maciel é a presença da televisão, e o entusiasmo
da mãe dele com as novelas e artistas, o que desencadeou em Maciel uma admiração
pelas atrizes e por toda a produção televisiva, ao ponto de decorar as datas dos
acontecimentos. As novelas e os programas de audiência serviram de inspiração para
a brincadeira das crianças na rua, que sempre imitavam os artistas da TV, revivendo
as histórias das novelas no quintal das casas.
Essa brincadeira de faz de conta também acontecia com os circos que, ao
deixarem a cidade, davam lugar ao grupo de crianças, incluindo Maciel, que reuniam
objetos de casa, e montavam seu próprio circo no quintal. Reviviam as cenas e
organizavam o picadeiro improvisado e o puleiro148 para os espectadores. Este último
146
Partes da entrevista de José Maciel foram publicadas nos anais do13º Colóquio de Moda, disponível
em:http://www.coloquiomoda.com.br/anais/Coloquio%20de%20Moda%20-
%202017/GT/gt_11/gt_11_Alinhavando_trajes_de_cena.pdf
147
O mangaieiro é o vendedor de feira livre, que vende artigos diversos, entre comida, fumo, ervas,
utilidades para casa, para o vaqueiro, entre outras coisas.
148
Arquibancada.
183
era feito de sobras de madeira, ou com as tábuas das camas das próprias casas.
Nessas brincadeiras, Maciel, por ser o menor da turma, era deixado de lado e
colocado sempre como auxiliar nas representações, mas o desejo dele era estar no
palco, conforme relatou em entrevista. (SILVA, 2017).
Maciel fala de sua mãe, dona Gracinha, com muita inspiração. Fica claro no
discurso dele que ela foi, e ainda é, uma grande incentivadora de suas atividades
artísticas e culturais. A cidade de Alagoa Grande é berço de bons artistas, como
Jackson do Pandeiro e isso trouxe um despertar para as artes naquela região. O teatro
Santa Inês é um dos símbolos desse lugar. A mãe de Maciel frequentava e incentivava
as pessoas da cidade a irem ao teatro. Sobre a integração dele e dos irmãos com a
cultura popular e as artes, Maciel disse:
Ninguém lá em casa disse assim: ‘você tem essa tradição, você vai
participar disso’, como muitas vezes as pessoas acham que devem
acontecer nos grupos de manifestações culturais, pra forçar uma
identidade cultural. As pessoas acham que o filho tem que segurar o
bastão do cavalo marinho de fulano, do mestre, sem se perguntar se
de fato eles querem (SILVA, 2017, p. 10).
A relação familiar é inerente à cultura popular e essa imposição de
continuidade, na maior parte das vezes surge da sociedade, que espera que o filho
siga o caminho do pai, mas nas famílias isso se resolve de maneira diferente, sem
necessariamente ser uma obrigação, mas um desejo de permanecer com aquela
prática. Maciel tem seis irmãos: entre eles, alguns se interessavam por cultura, mas
apenas ele e a irmã mais velha, Jacinta de Lourdes, se tornaram artistas, o que
demonstra essa abertura na estrutura familiar, para que cada filho seguisse o caminho
que lhe conviesse.
A infância de Maciel foi marcada pelo desejo de ser artista. No início era apenas
uma vontade grande de participar das brincadeiras, do faz de conta, mas ao entrar na
escola, vieram os desfiles cívicos em comemoração à data 07 de setembro, as
quadrilhas juninas e as gincanas. Entretanto, por ser muito jovem, Maciel foi colocado
de lado durante muito tempo. A mãe dele tentou ajudar, falando com as pessoas para
que ele fosse incluído nas programações, mas nem sempre isso acontecia. Sobre o
desejo de participar, Maciel afirma:
Mas tinha aquilo dentro de mim, que o povo estava me vendo, eu lá
sabia se a bandeira era isso ou aquilo, eu nunca nem me interessei, eu
sabia que estava ali em pé. O povo passava, tirava foto, ficava olhando,
e era uma maneira que eu tinha de me exibir, e já era fazer um teatro,
184
já estava ali sem a menor noção, mas aquilo me dava muito prazer
(SILVA, 2017, p.10).
Ele já considerava estar fazendo teatro, eram os primeiros passos dessa
carreira. O ser observado causava prazer no menino, que no dia 07 de setembro fazia
questão de estar na frente, chamando atenção para o desfile cívico da sua escola, ou
para a bandeira que ele estava guardando.
Em Alagoa Grande-PB, assim como em muitas cidades do interior brasileiro,
Maciel e as outras crianças se impactavam com todas as visitas dos circos. Maciel se
lembra que se mudava para dentro dos circos e auxiliava nas atividades diárias, com
isso ele aprendeu muito. Circos como Gran Bartolo Circo, O circo mágico japonês e
O circo Garcia são referências desse período para Maciel. Para as crianças da
vizinhança a brincadeira começava quando o circo ia embora, eles construíam o
próprio circo no quintal e improvisavam tudo de acordo com o que assistiam nas
grandes produções. As apresentações contavam com o apresentador do circo, os
palhaços e as rumbeiras149. (SILVA, 2017).
Nessa época o primeiro encontro com utilização de figurino se dá de maneira
improvisada também, através de roupas das próprias crianças transformadas em
trajes para cena150. Era comum dobrar as barras dos shorts, para diminuir o
comprimento e usar calças como top, amarrando as pernas sobre os ombros. A
construção desses figurinos, tinham a função de quebrar com a ideia de roupas do
cotidiano, deslocando as crianças para o campo das artes.
No início da década de 1980 existiam alguns grupos de teatro em Alagoa
Grande. Eram o TEAG (Teatro do Estudante de Alagoa Grande), o GRUTAG (Grupo
de Teatro de Alagoa Grande) e o GTI (Grupo de Teatro Integral). Maciel não fazia
parte de nenhum deles, pois os amigos nunca o deixavam participar das cenas, e isso
fazia com que ele ajudasse todos os grupos, sempre procurando uma oportunidade
para aparecer em cena. Em 1983, acontece o Segundo Congresso da Federação de
Teatro Amador, o que impulsiona a produção artística e teatral em Alagoa Grande.
Esse congresso trouxe inúmeros artistas e espetáculos para a cidade de Maciel, além
de iniciar a campanha de restauração do Teatro Santa Inês151, que estava em ruínas,
149
Dançarinas de rumba, comuns nos circos mambembes.
150
Ibid.
151
O Teatro Santa Inês foi inaugurado em 1905 na cidade de Alagoa Grande – PB, é o terceiro teatro
mais antigo do Estado, e passou por muitos momentos difíceis, mas os artistas sempre se organizaram
para reativar esse espaço cultural.
185
assim o evento deixa uma marca na cidade, com a luta pela renovação da arte teatral.
Após esse congresso, os grupos GRUTAG e GTI decidem criar o movimento Teatro
Paó (citado anteriormente), onde os grupos se reuniam para ensaiar seus espetáculos
em uma sede alugada.
Sobre a sua atuação polivalente junto aos grupos da cidade, Maciel diz: “Isso
me deu um norte muito claro pro que eu queria. Sem perceber eu fui me formando em
produtor, em diretor, porque era eu que fazia tudo, os outros só fazia atuar, né?!”
(SILVA, 2017, p.14). O que indica que desde cedo ele aprendeu a se portar em
diferentes áreas da produção teatral, auxiliando com as necessidades do espetáculo.
A primeira vez que ele entra em cena é em 1985, quando Valdenis Brasil vai para
Alagoa Grande, dirigir o espetáculo O Psicanalista, de Lourdes Ramalho. Nessa
época, Maciel já viajava de carona para participar de festivais em Campina Grande,
outra cidade paraibana.
Os concursos de dublagem também fizeram parte do histórico artístico de
Maciel. Anterior a ida dele para a capital paraibana, João Pessoa, houve a realização
de uma gincana cultural em todo o estado, Descubra a Paraíba, que tinha como
prêmio a circulação de diferentes espetáculos por muitas cidades. Maciel conseguiu
entrar na competição com um grupo, que acabou perdendo para outro com atores
mais experientes.
Com o passar dos anos, ele acaba chegando na capital e essa mudança
provoca o amadurecimento de Maciel. A Cia Oxente começa a se estruturar com
atores advindos de Alagoa Grande e amigos de outras cidades (incluindo João
Pessoa). Em 1988, a Cia Oxente participa de um evento organizado pela Fundação
Municipal de Cultura de João Pessoa, que tinha como objetivo levar espetáculos
teatrais para circular nos bairros da cidade. O grupo monta a Caravana Cultural Nossa
Tribo, idealizada por Misael Batista com a contribuição de todos. O espetáculo era
montado a partir de quadros com as coisas que cada um sabia fazer, Maciel ficou com
a interpretação de uma das cenas da Valentina Durão, personagem do texto O
Psicanalista, de Lourdes Ramalho, que ele já conhecia de Campina Grande. Para
esse personagem, assim como para o espetáculo, o figurino foi arranjado a partir das
roupas e acessórios que os atores traziam de casa. Maciel deu a seguinte ideia:
Eu achei uns óculos bem grandão que tinha, peguei uma meia calça
branca, botei a parte daqui [da cintura] na cabeça, e as pernas da meia
calça eu enrolei assim. Puxei pra cá, botei pra cá e dava um nó, ficava
aquela senhora com o cabelo todo na touca, a touca ficava elegante, e
186
quando botava esse óculos, que ele botava a lanterna e ficava só o
meu rosto fazendo a Valentina Durão e era uma coisa linda (SILVA,
2017, p. 20).
Infelizmente não há registro fotográfico deste espetáculo. Mas é possível
observar que a produção do traje de cena da Valentina Durão se assemelha aos
processos criativos da adolescência de Maciel em Alagoa Grande-PB, quando o
mesmo utilizava materiais do cotidiano para suas produções.
Logo depois, Maciel fez o primeiro teste como ator para entrar em um
espetáculo dirigido por Eliézer Rolim, Pucumã. Essa experiência em 1989 marca a
entrada de Maciel no cenário teatral profissional na Paraíba, pois ele passa a ser visto
como ator. Sobre o figurino desse espetáculo, Maciel expõe sobre a beleza e
dependência do figurinista Nelson Alexandre, que assim como ele, também estava
vindo de Alagoa Grande para a capital:
O figurino desse espetáculo não tinha nada costurado. Nelson foi
pegando pedaço de tecido, de pano de colchão, de cobrir sofá, e ele
foi emendando. As sandálias eram pedaços de pano, tudo era. E se
Nelson não viajasse conosco era ruim, porque a gente não sabia como
se vestir (SILVA, 2017, p. 17).
Imagem 129 – O ator José Maciel em cena, na personagem Pereba do espetáculo Pucumã.
João Pessoa, 1989.
Fonte: Acervo de José Maciel
187
É possível perceber que a construção estética escolhida neste espetáculo
também trazia um pouco do improviso presente no fazer teatral de Alagoa Grande,
através da mistura de materiais e do caráter único apresentado pelas amarrações
feitas a cada espetáculo. O personagem que Maciel representava chamava-se
Pereba.
Maciel relembra que esse espetáculo foi apresentado na cidade de Alagoa
Grande, mas que logo na primeira cena a plateia começou a xingá-lo “olha o viado
filho de Ioiô, filho da puta” (SILVA, 2017, p. 18). A mãe dele interviu e mandou parar
com o espetáculo. Dona Gracinha assistiu durante toda a vida o filho ser, nas palavras
dela, enxotado do clube da cidade, receber cantadas das pessoas, mas ela nunca
desistiu, nem permitiu que o filho deixasse de fazer o que gostava, ela se preocupava
com o filho e não queria mais que eles se apresentassem na terra de Jackson do
Pandeiro.
5.1.2 Jogos das máscaras
Na década de 1990, a Cia Oxente estreou o primeiro espetáculo profissional,
Jogo das Máscaras. Os jovens atores da companhia estavam se estabilizando em
João Pessoa-PB. Todos haviam se mudado para a capital do estado da Paraíba com
o objetivo de realizarem os estudos universitários, em áreas bem diferentes. Por
exemplo, José Maciel estudou educação física, Genário Dunas fez geografia e Misael
Batista, comunicação social. Aos poucos começaram a trabalhar. Durante esse
processo não deixaram de trabalhar enquanto grupo de teatro e, assim, montaram
Jogo das Máscaras.
Eles não tinham espaço físico para ensaiar – e nem tempo! Os atores se
reuniam no final da noite, após o trabalho ou as aulas da universidade, nas calçadas
do centro da cidade, nas marquises das lojas, no centro de vivência da universidade,
e no trabalho de Maciel152. Maciel trabalhava os dois expedientes em uma empresa
de verificação de cheques bancários. Tendo em vista o local fechado da empresa,
sem barulho ou movimentações a noite, o grupo se reuniu algumas vezes lá sem a
anuência do patrão. Além disso, utilizavam o mobiliário do escritório como objetos de
cena. Pouco tempo depois, Maciel foi descoberto e demitido por isso. Porém, o
espetáculo não parou.
152
Ibid.
188
Com a estreia do Jogo das Máscaras, a Cia Oxente foi convidada para
participar do evento de reabertura do Teatro Santa Roza, em João Pessoa. Esse
teatro havia sido fechado um ano antes para reforma e para reabertura o governo do
Estado convidou os grupos da cidade para se apresentarem lá (SILVA, 2017). E foi
nesta ocasião e com esse espetáculo que o grupo ganhou espaço na capital
paraibana.
Conforme a segunda entrevista realizada com Maciel (SILVA, 2019), a Cia
Oxente começou a montar outro espetáculo em seguida, Paó de fogo, e depois Os
Mal Amados. Devido à sobrecarga de atividades, o grupo acabou se separando. A
companhia só retomou as atividades quando Jogo das Máscaras foi selecionado para
um festival importante, o festival de teatro de São Mateus (1994).
De acordo com o acervo da Cia Oxente, em meados da década de 1990, Jogo
das Máscaras participou de festivais, como o Festival Nordestino de Teatro de
Guaramiranga (1994), da Mostra Estadual de Teatro da Paraíba (1994), do Festival
de Teatro Universitário de Blumenau (1995) e do Festival Nacional de Arte (II
FENART, 1995) realizado na Paraíba também. Esse espetáculo viajou por todo o país,
participou de diversos festivais e recebeu vários prêmios. Uma das últimas
apresentações do Jogo das Máscaras aconteceu em 2003, em Cuiabá-MT, a convite
do Sesc Arsenal, junto com outros espetáculos da companhia, em uma apresentação
do repertório do grupo.
A construção dramatúrgica do espetáculo Jogo das Máscaras apresentava
trechos de dois textos, Halloween, Dia das bruxas, de Nery Gomide, e As Velhas,
Lourdes Ramalho. O diretor do espetáculo, Misael Batista, também foi o responsável
por adaptar os textos. Sobre o espetáculo, ele escreveu em um programa entregue
aos espectadores:
O Jogo das máscaras é o jogo dos signos, imagens e palavras. As regras são
estabelecidas pelos seres humanos numa guerra psicológica na sociedade
em transe. Daí, um misto de atmosferas criadas entre o real e o imaginário
como a atmosfera de terror da sociedade vampiresca. ‘Na natureza nada se
perde, nada se cria, tudo se transforma’. É a transformação que emite a
pulsação do espetáculo, que acaba o tempo e o espaço sendo transcendido
misturando vampiros, pessoas e mitos. É o cotidiano que se revela e se
resvala no jogo perigoso que praticamos a partir da dialética do viver. O texto
é composto de vários fragmentos de autores diversos: Misael Batista,
Lourdes Ramalho e Nery Gomide (BATISTA, 1994, p. 4).
O espetáculo apresentava um clima de terror e suspense. Era um olhar sobre
as relações humanas de maneira aterrorizante, visceral e poética. O ator José Maciel
189
em entrevista, falou um pouco sobre a relação do diretor e os textos, e o uso em Jogo
das Máscaras:
Ele [Misael] conseguiu identificar que apesar do texto Halloween, Dia das
bruxas ser uma situação urbana, e As Velhas numa situação rural, mas os
conflitos são os mesmos. Ele [Misael] juntou os dois e colocou o nome Jogo
das máscaras. Era bem interessante a montagem porque tinha vampiros,
como ele disse que a cidade era vampiresca, Misael começou o texto na
Transilvânia, ele fazia um personagem que falava inglês e ele começava
contando essa história, e quando ele ia terminando, Maronilton gritava:
‘parem, parem, parem os cavalos’, era como se ele fosse chegando numa
carruagem e vinha todo o espetáculo. Na segunda cena Jacinta, fazia o
corcunda, ela dizia ‘outra vez duas mulheres, Mariana e Ludovina’, e conta
que esse conflito se dá pelos dois filhos, aí ela tirava a roupa inteira, fazia a
personagem da Branca e Nelson fazia o José. E quando a Mariana chega, vê
os dois transando e vem todo o desenvolvimento da história (SILVA, 2019,
p.2).
É possível perceber, a partir da fala de Maciel, uma estrutura de cenas
recortadas e apresentadas em quadros. No primeiro quadro havia a apresentação
dessa cidade vampiresca, através da cena do texto Halloween, Dia das bruxas, que
era um diálogo entre uma governanta - Tereza - e uma paraplégica. No segundo
momento, havia uma interrupção pelo narrador corcunda, que anunciava o duelo entre
outras duas mulheres, Mariana e Ludovina, suas brigas familiares e o amor entre seus
filhos. Seguia-se com a cena do enlace amoroso entre os filhos dessas duas
mulheres, depois o duelo entre as mães e briga de sangue entre os homens. O
segundo quadro é baseado no texto As Velhas153.
Essa montagem tinha músicas originais de Genário Dunas, ator da Cia Oxente
que cantava e compunha profissionalmente. A iluminação de Edilson Alves,
complementava o ar soturno e denso do espetáculo. A cenografia de Nelson
Alexandre era composta apenas pela carcaça da cabeça de um boi, pendurada no
centro do palco.
O figurino também tinha a concepção de Nelson Alexandre, mas com a
contribuição do grupo. O espetáculo recebeu prêmios de melhor figurino na Mostra
Estadual de Teatro da Paraíba e em São Mateus. Sobre o processo de trabalho
enquanto figurinista, Nelson contou com a colaboração de todo o grupo e dos amigos
que queriam ajudar também.
Porque a partir do momento que uma obra vai para o corpo de uma pessoa
isso não quer dizer que é da minha autoria, sempre tem um pitaco, sempre
tem uma coisa de uma outra pessoa, até uma mudança proposta por quem
153
Ibid.
190
vai confeccionar e que fica melhor. Eu sei que a gente entende, mas tem
coisa que a gente tem que aprender com quem costura e sabe de corte
(ALEXANDRE, 2019, p. 3).
Nelson é um figurinista que se envolve em todo o processo de criação dos
trajes. Até no momento da costura, ele tem o costume de cortar os tecidos para as
costureiras, para não perder o traço dele na hora da confecção. Para analisar os trajes
de cena, as personagens do Jogo das Máscaras serão divididas em blocos:
governanta e paraplégica; narrador corcunda; jovens; Mariana e Ludovina.
A governanta e a paraplégica eram personagens femininas representadas por
atores. Maciel fazia Tereza, a governanta, e Maronilton fazia Alice, a paraplégica. Para
que os atores não precisassem usar perucas, Maciel sugeriu a utilização de toucas,
mesmo efeito utilizado na Caravana cultural nossa tribo, na personagem Valentina
Durão (citada anteriormente).
A principal referência para essas personagens eram as freiras. No início do
processo de montagem, quando Nelson foi convidado para elaborar o figurino, ele
idealizou uma roupa azul claro, próximo do convencional das noviças. O que ele
afirmou, em entrevista concedida, ter sido fruto de um erro, porque ele não poderia ter
criado o figurino sem ter ido a nenhum ensaio, e se ele tivesse assistido à marcação
das cenas ou à leitura do texto, teria percebido o clima denso que era propício ao
espetáculo. Nelson atribui esse erro à falta de experiência que ele tinha na época e
tudo foi resolvido a priori com tingimento de marrom154.
Com o passar do tempo, e com a necessidade de viajar para os festivais
competitivos, o grupo se organizou para reelaborar algumas coisas, entre elas o
figurino. Nelson foi buscar mais referências:
Eu saí pesquisando essa nova roupagem para essas personagens, que
tinham uma postura ereta, eram esguias, eram elegantes, e fui para uma linha
mais renascentista e com uma coisa medieval também. Isso eu busquei no
livro que tinha essa imagem do figurino. Eram duas saias, saia sobre saia, e
a que estava sobreposta eu puxava nas laterais e dava um pregueado, e tinha
um volume muito elegante, ficavam umas senhoras muito elegantes em cena.
E como se tratava de vida, de sangue, passei a usar uma tonalidade vinho, e
ficou uma coisa mais clássica. As toucas que estavam na cabeça faziam com
o público ficasse se perguntando se eram homens ou mulheres. Como o
biotipo do Maciel e do Maronilton era a mesma coisa, ficou parecendo que
eram irmãos gêmeos, porque um era o espelho do outro, em biotipo, em
estatura, em tudo (ALEXANDRE, 2019, p. 2-3).
154
Ibid.
191
Ao remeter às figuras medievais, traçamos um paralelo com a indumentária da
época, as túnicas e fechamento com cintos ou broches. Como já vimos, durante a
Idade Média a indumentária usual era uma túnica com uma sobretúnica ajustada à
cintura por cima. Também era comum a utilização de capuz e touca (COSGRAVE,
2012, p. 103), efeito observado na imagem 130.
O narrador corcunda era interpretado por Jacinta de Lourdes, e apresentava a
mesma questão da androginia. O traje era inspirado num terno preto com camisa
branca, mas a atriz utilizava seus cabelos louros soltos.
Imagem 130 – Os atores Maciel (à dir.) e Maronilton (à esq.) representam, respectivamente,
Tereza e Alice, no espetáculo Jogo das Máscaras. Cuiabá, 2003.
Fonte: Acervo do ator José Maciel
192
Imagem 131 – A atriz Jacinta representa o narrador corcunda, no espetáculo Jogo das
Máscaras. Cuiabá, 2003.
Fonte: Acervo de José Maciel
A gente queria trazer um lado contemporâneo, Jacinta era o corcunda que
costurava a história, e era a mesma coisa, ninguém sabia se era homem ou
mulher, mas na verdade era uma mulher que estava se fazendo de homem,
e devido a postura e a voz, ficava a dúvida em quem estava assistindo. A
mesma coisa acontecia com os figurinos do Maciel e do Maronilton, ficava a
pergunta ‘é homem ou mulher?’ (ALEXANDRE, 2019, p. 3).
A presença dos jovens nesse espetáculo é marcada pela nudez. O nu é usado
como simbolismo da liberdade juvenil, associado ao sexo e às paixões. Na primeira
cena dos jovens, um casal se encontra e representam o sexo com uma dança. No
segundo momento a moça não aparece mais, são apenas dois rapazes que brigam e
se banham de sangue. Essa tinta vermelha, uma mistura de mel com corante
(ALEXANDRE, 2019, p. 4), era também figurino, pois vestia aqueles dois jovens
193
durante a cena do combate entre eles. Aqui ficam marcados os elementos da
violência, do machismo e do patriarcado, todos eles comuns na sociedade nordestina.
Imagem 132 – Atores da Cia Oxente representam o banho de sangue, no espetáculo Jogo
das Máscaras. Cuiabá, 2003.
Fonte: Acervo de José Maciel
O último bloco a ser descrito é Mariana e Ludovina, duas senhoras, mães que
ao tentarem resolver o conflito de seus filhos descobrem que as duas já tinham contas
a pagar entre si, pois Ludovina havia sido a cigana que roubou o marido de Mariana
no passado. Para esse confronto, a companhia decidiu que elas deveriam ser
representadas por animais, Ludovina era uma cobra coral e Mariana era um urubu.
Esses animais foram escolhidos por serem comuns no Nordeste e por suas
características, sendo a cobra coral violenta e venenosa e o urubu, comedor de
carniça (SILVA, 2019, p.1).
194
Imagem 133 - Os atores Maciel (à dir.) e Misael (à esq.) representam, respectivamente,
Mariana e Ludovina, no espetáculo Jogo das Máscaras. Cuiabá, 2003.
Fonte: Acervo de José Maciel
Lá no final, vinha o Maronilton e o Misael no segundo quadro, um era a cobra
coral, a cobra coral no alto sertão, venenosa. Deixamos o ator todo na lycra,
todo no macacão. Os dedos não tinham abertura, porque o macacão era todo
fechado, não delineava os dedos e sim só a modelagem da mão, mesma
coisa com a questão da touca, que também prevalecia nesse outro figurino
do segundo quadro. E como indicaram que era uma cobra coral no calor do
sertão, eles sempre estão com a cabeça protegida, com um pano. às vezes,
tem mulher que põe uma calça embaixo da saia, quando vão para o roçado
para proteger de bicho, mosquito, para os gravetos não cortarem. Dessa
forma, criei um macacão total, e já que era uma cobra coral, nada mais nada
menos, vinha da área do cóccix do macacão um tecido em forma de arco, ou
seja, uma roda de tecido que estava costurado, que vinha e fazia o manto
dela quando ela precisava colocar na cabeça, que olhando assim era uma
transformação de peças de tecidos e ficava bonito também. E como era
sertão, um era a cobra e o outro era o carcará, o urubu, com figurino todo
preto, saia longa e uma capa preta. Nesse momento o personagem precisava
entrar de forma que não fosse visto em cena, e eu sugeri para os demais,
que como aquelas mulheres se protegiam do sol, ela viria de uma forma mais
clássica, com uma sombrinha, ela vinha com um guarda chuva e dentro do
guarda chuva colocamos uma lanterna, iluminando só o rosto da mesma, era
a única parte que o público via de tonalidade clara, o rosto dela
(ALEXANDRE, 2019, p. 3-4).
Ao analisar a imagem 133 e a descrição do processo de criação dos trajes de
Mariana e Ludovina, é perceptível a ênfase pelo escuro, obtendo efeito de tensão, o
que favorece o conflito entre as duas personagens e suas relações de poder. A
dualidade também é notada pela modelagem dos trajes, sendo o urubu extremamente
195
volumoso e a cobra com uma espessura reduzida, devido ao uso apenas da malha.
Essas mulheres fazem contraponto direto com vampiros, bruxas e esse universo
terrível.
Jogo das máscaras é um dos espetáculos mais premiados da Cia Oxente,
trazendo em seu currículo diversos festivais e apresentações em diferentes estados
brasileiros. Não podemos esquecer que essa é a primeira montagem profissional da
companhia e por isso é tão significativa em sua história. O sucesso do Jogo das
máscaras é atribuído ao trabalho em equipe:
Sempre fomos premiados em todas as categorias, e eu acho que é o conjunto
da equipe, ninguém preso a nada, todos querendo apostar e dar o melhor de
si, e olha que a gente veio do interior, e hoje, a nível de Paraíba já temos
nome no mercado com a Oxente, com a Arretado que tem 22 anos, e é isso
(ALEXANDRE, 2019, p. 4).
Nesse espetáculo também fica clara a relação intrínseca da Cia Oxente com o
universo nordestino e toda a sua herança ibérica. O simbolismo dos trajes medievais,
as relações violentas e comuns na região, além de animais característicos. Tudo isso
compõe o cartão de visita da companhia e seus atores ao teatro profissional da
Paraíba e do Brasil.
5.1.3 Redemunho155
O espetáculo Redemunho apresenta o cotidiano de uma família de retirantes
nordestinos, através de quadros corriqueiros, como descrevem os diretores Edilson
Alves e Misael Batista:
Redemunho é uma tragicomédia que mostra a dura realidade dos
retirantes e sua luta pela sobrevivência. Um espetáculo que retrata a
força da mulher nordestina “Maria de Lulu” e a originalidade presente
na linguagem de uma velha “Fuxiló”, os sonhos presentes nos olhos
de uma menina-moça “Soloiça”, a vitalidade de um mudo “Bastião”, a
sabedoria e espiritualidade de um cego “Ciço”, a dura jornada de um
camponês “Zé Ferreira”, a alegria de uma jovem negra “Rosinha” e a
prepotência dos latifundiários “Chico Valentão” e seu filho “Carlinhos”
(ALVES; BATISTA, 2004, p. 2, apud CIA OXENTE, 2004).
A dramaturgia do espetáculo é de Misael Batista e Genário Dunas, e segundo
Edilson Alves (apud CIA OXENTE, 2004, n.p), essa montagem traz referências de
155
Partes deste tópico foram publicadas no livro Dos bastidores eu vejo o mundo, vol 2, disponível em:
http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/167
196
obras literárias de José Lins do Rêgo, Machado de Assis, Guimarães Rosa e João
Cabral de Melo Neto. O processo de criação desse espetáculo teve início em meados
da década de 1990 e contou com a criatividade de Misael Batista como encenador;
após algum tempo de trabalho, Misael saiu e Edilson Alves assumiu a finalização
desse processo. Edilson também foi responsável pela iluminação e cenografia. Em
cena estavam os atores Alberto Black (Bastião), Genário Dunas (Fuxiló), Jacinta de
Lourdes (Maria de Lulu), Jailton Sousa (Ciço), Jô Carvalho (Soloiça), José Maciel (Zé
Ferreira), Neide Melo (Rosa) e Nelson Alexandre (Carlinhos). Os figurinos foram
assinados por Nelson Alexandre.
Imagem 134 – Neide Melo (sentada à esquerda), Alberto Black e Jailton Sousa (ao centro),
Jacinta de Lourdes, Genário dunas e Jô Carvalho (à direita). Atores da Cia Oxente em cena
do espetáculo Redemunho. João Pessoa, 1998.
Fonte: Acervo de José Maciel
A visualidade de Redemunho segue os princípios da estética nordestina, que
são fatores determinantes do trabalho da Cia Oxente. A cenografia, a iluminação, os
figurinos e a caracterização, trazem elementos do cotidiano da mulher e do homem
sertanejo.
197
Conforme as imagens 134, 135 e 136 do espetáculo, é perceptível que a
cenografia é simples e pontual, construindo com poucos objetos no espaço a
atmosfera desejada. As folhas secas espalhadas pelo chão trazem a ideia de seca e
estiagem, onde tudo parece estar sem vida; os potes de barro, a caneca de ágata, o
cachimbo, o fogaréu e os candeeiros aproximam a ficção da realidade do dia a dia; e
o fogo aparece como um membro atuante que interage com as relações humanas,
além de ser um elemento que contribui para a iluminação do espetáculo. A luz do
espetáculo é, em sua maior parte, derivações de âmbar, vermelho e azul, trabalhada
sempre em resistência baixa, o que ocasiona o efeito de penumbra.
Imagem 135 – Os atores Alberto Black, Nelson Alexandre e Genário Dunas interpretando as
respectivas personagens Bastião, Padre Cícero e Fuxiló, no espetáculo Redemunho. João
Pessoa, 2000.
Fonte: Acervo de José Maciel
198
Imagem 136 – As atrizes Jô Carvalho e Jacinta de Lourdes interpretando as respectivas
personagens Soloiça e Maria de Lulu, no espetáculo Redemunho. João Pessoa, 2000.
Fonte: Acervo de José Maciel.
Para confecção dos trajes de cena houve a preocupação de fugir do estereótipo
das roupas nordestinas com tecidos floridos (chita). José Maciel conta que durante os
ensaios desse espetáculo, ele e Genário Dunas foram ao mercado popular comprar
uma manta de rede e que ao perceberem o preço baixo e o tamanho da manta, se
deram conta que esse material poderia ser utilizado para a confecção dos figurinos
(MACIEL, 2017).
No processo de ‘Redemunho’ eu quis sair do convencional, para não ficar
com as roupas clichê que a gente vê geralmente em espetáculos onde mostra
uma saga na formatação de ‘Redemunho’. Então eu não quis pegar um tecido
e envelhecer como é convencional, não quis pegar a chita e envelhecer, o
tecido cru ou algodãozinho, não quis usar coisa desse tipo, porque isso é tão
visto. Eu sei que se torna bonito em cena, mas eu quis sair do convencional.
[...] Eu peguei as mantas que temos aqui na Paraíba, temos aqui uma gama
riquíssima dessas mantas, texturas. E aí saí buscando ver o que se adequava
com o perfil de cada personagem, ou seja, personagens mais alegres, as
mantas teriam uns tons mais berrantes, pessoas mais sombrias, mais
densas, como o chefe da casa, tinha mais um lado marrom, o padre de
Cícero, a gente buscou uma manta preta, mas como necessariamente a
gente não tinha uma manta da forma que queria, a gente teve que dar um
tingimento para alcançar a tonalidade que a gente queria para cena. Busquei
através das cores mostrar o lado que cada personagem tinha em sua
essência, e sendo assim, apesar de ser um tecido diferente, ficou de uma
forma homogênea e casou, fez um diferencial e chegamos a ser indicados a
prêmios (ALEXANDRE, 2017, p.1).
199
A partir dos dois relatos acima, observa-se a busca pela não obviedade na
construção dos trajes de cena e também a procura por matérias de baixo custo. Ao
imaginar uma visualidade cênica nordestina é comum associar à chita, ao algodão, às
cores terrosas e às modelagens simples. Em Redemunho, o sertão nordestino estava
retratado em cena na dramaturgia, na cenografia e na caracterização, mas os figurinos
não pertenciam ao imaginário convencional instituído e essa é a grande virtude desse
trabalho. O figurinista foi capaz de ousar na criação dos trajes, seguindo modelagens
simples e sem acabamentos (as barras são descosturadas), com um material
diferenciado, pouco utilizado.
Sobre a escolha das cores, a moça Soloiça usa um vestido curto em tons claros
(imagem 136), a Maria de Lulu usa tons de azul escuro e claro (imagem 136), a velha
Fuxiló tem o vestido um pouco mais longo com tons de marrom e laranja (imagem
135). A negra Rosa veste cores vibrantes em tons de amarelo e azul (imagem 134),
enquanto as personagens masculinas vestem cores mais claras, seguindo o padrão
de calça e camisa, exceto pelo Padre Cícero que usa uma batina preta (imagem 135).
5.1.4 Quem quiser que conte outra156
Em 2002, surge a necessidade de um espetáculo infantil como repertório para
a companhia. Essa foi a justificativa inicial do espetáculo Quem quiser que conte outra,
em função de um contrato fechado com uma produtora de Fortaleza – CE para levar
o espetáculo adulto Redemunho para o Centro Cultural Dragão do Mar. Assim, o
grupo teria mais uma opção de espetáculo para ser apresentado, vendido para escola
ou enviado para festivais. A primeira apresentação foi em junho de 2002, no teatro do
Dragão do Mar, mas a estreia oficial aconteceu em agosto do mesmo ano em João
Pessoa, no Teatro Ednaldo do Egypto.
156
Partes deste tópico foram publicadas na Revista Pitágoras 500, disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/pit500/article/view/8655507
200
Imagem 137 – Matéria de jornal da estreia de Quem quiser que conte outra. Fortaleza, 2002.
Fonte: Acervo de José Maciel
Quem quiser que conte outra foi montado em poucos dias antes da viagem
para Fortaleza – CE e segundo entrevistas com o ator José Maciel (2017) e com o
diretor Edilson Alves (2018), a estrutura principal era o folguedo do boi Estrela, com a
relação entre Mateus e Catirina. As cantigas e brincadeiras de roda vieram depois
para complementar o universo popular nordestino. O espetáculo é permeado pela
música executada e cantada pelos próprios atores em cena. A brincadeira Boca de
Forno interliga todas as cenas quando a Vó Gracinha, personagem inspirada na mãe
do ator José Maciel e que é quem comanda as brincadeiras no espetáculo, diz os
versos “boca de forno, tirando bolo, abacaxi, maracujá, quando eu mandar, se não for
apanha no bumbum da aranha, seu rei mandou dizer que...” acompanhados da ação
que deveria acontecer na cena seguinte, como por exemplo, “cantasse uma cantiga
de roda”. Assim todos os atores iriam tocar, cantar e dançar cantigas de roda. A
ludicidade é sinônimo desse espetáculo, onde os atores se chamavam pelos próprios
201
nomes (exceto Vó Gracinha) e em cena se divertiam com as histórias e brincadeiras
de suas próprias infâncias. O que sobrava era improviso.
O caráter improvisacional é tão presente nesse espetáculo que o texto da peça
só foi escrito anos depois, diante da exigência de um festival para que o grupo
apresentasse uma dramaturgia escrita. Todos os atores sabiam os textos dos outros,
o que facilitou o remanejamento das personagens, quando havia impossibilidade de
algum ator acompanhar as apresentações.
O espetáculo Quem quiser que conte outra é dividido em dois momentos, o
primeiro dedicado às cantigas de roda e o segundo à brincadeira do Boi Estrela. O
espetáculo se inicia com a Vó Gracinha, interpretada pela atriz Neide Melo, arrumando
um varal de colchas de retalhos, com cordéis pendurados. Enquanto ela canta, é
surpreendida por todos os atores que entram pela plateia como brincantes da cultura
popular e mambembes. Eles cantam o refrão da música homônima criada por Genário
Dunas (ex-integrante da Cia Oxente), gravada no disco Terrestrela, que diz “uma
história eu vou contar, quem quiser que conte outra”.
As atrizes Gorette Araújo, Jacinta de Lourdes e Jô Carvalho e os atores Alberto
Black, Fábio Azevedo e José Maciel se divertem em cena, sob o comando da Vó
Gracinha. As cantigas e brincadeiras utilizadas são: Pão duro, Boca de forno, Pai
Francisco, Escravos de Jó, O cravo brigou com a rosa, Terezinha de Jesus, Sou
leiteira, Cai cai balão, Fui na Espanha, Se essa rua fosse minha e encerra com Boca
de forno novamente. Durante as cantigas de roda, Alberto Black e Fábio Azevedo
tocam uma caixa, uma zabumba e um prato, localizados na lateral esquerda do palco.
Na próxima cena do espetáculo, os atores têm cada um uma mala e de dentro
dessas malas saem brinquedos populares, as bruxinhas157, o mamulengo, carrinhos
de madeira, bolas de gude, e o boneco trapezista. Ao final das brincadeiras todos
cantam Se essa rua fosse minha e guardam suas malas.
O segundo momento conta com a participação do ator Edilson Alves, que
integra o elenco da história do boi Estrela. Enquanto Vó Gracinha narra com a ajuda
de Gorete e Jô, Alberto e Fábio acompanham a cena com os instrumentos musicais
e os outros atores interpretam. Edilson faz o coronel, dono do boi Estrela e padrinho
de Mateus, Maciel faz Mateus e Jacinta faz a Catirina.
157
Bruxinha é o nome popular dado às bonecas confeccionadas normalmente à mão, com olhos e boca
bordados com linha. Não são representações de bruxas no sentido de magia.
202
Catirina está grávida e é conhecida por seus desejos anormais. Nesse dia ela
desejava comer a língua do boi Estrela, o boi de estimação da fazenda do Coronel.
Mateus, com medo de que o seu filho nascesse com cara de língua de boi, mata o boi
Estrela e dá a língua para Catirina, que sai para prepará-la e comê-la. Enquanto isso,
o Coronel chama Mateus e pede para que ele procure o boi Estrela, pois ele sente
saudades do seu boi. Mateus tenta de todas as formas enganar o Coronel, que acaba
descobrindo que o seu boi Estrela morreu por um desejo de Catirina. Vó Gracinha
interrompe a história e afirma que só com criatividade a história pode acabar. Dessa
forma, Mateus, Catirina e o Coronel começam a cantar Boi da cara preta e o boi
Estrela ressuscita.
O espetáculo encerra com todos cantando e dançando e, assim, eles saem
pela plateia.
Na cultura popular nordestina, o auto do boi é representado de diferentes
maneiras, como já vimos anteriormente, mas a história mais comum de se ouvir é a
que é representada no espetáculo Quem quiser que conte outra. O nome do folguedo
pode ser diferente em todas as regiões, pode ser conhecido como Bumba meu boi,
Bumba, Boi, Boi de Reis, mas sempre envolve a morte do boi predileto do dono da
terra, por culpa dos negros Mateus, Bastião e Catirina. Outros personagens podem
aparecer, mas esses são os mais comuns. (CASCUDO, 1954).
Nas brincadeiras de boi, os trajes desses personagens são simples: por vezes,
são roupas comuns customizadas, ou podem ser confeccionadas exclusivamente
para o folguedo. Por conta da disponibilidade de imagens, utilizaremos como exemplo
aqui, o Cavalo Marinho Estrela de Ouro, do mestre Biu Alexandre da cidade de
Condado – PE (Imagem 138).
No Cavalo Marinho, Mateus, Catirina e Bastião são empregados do Capitão e
estão presentes para tomar conta do terreiro do Capitão. Mateus e Bastião têm o
mesmo padrão nos trajes e por isso nosso foco será o Mateus, que veste uma calça
com estampa colorida e uma camisa de botão da mesma forma. O chapéu cônico com
fitas coloridas, o matulão (aglomerado de palha seca) nas costas e a bixiga de boi na
mão são os elementos que compõem esse personagem no Cavalo Marinho. A
Catirina, por sua vez, tem um vestido estampado e um lenço na cabeça; às vezes ela
aparece com algum adereço.
203
Imagem 138 – Brincantes de Mateus (acima e à esquerda), Catirina (abaixo e à esquerda) e
o Capitão (à direita), do Cavalo Marinho Estrela de ouro. Olinda, 2007.
Fonte: Acervo de Tainá Macêdo Vasconcelos
Ao continuar analisando as personagens de Mateus e Catirina, nos deparamos
com a maquiagem. Mateus e Catirina são negros e os brincantes realçam essa
condição pintando o rosto de negro158, mesmo sendo eles mesmos negros. Na
condição de homens negros e brincantes, esses homens pintam os rostos de preto e
amplificam essa condição, se empoderam e riem dos outros. A máscara de Mateus e
Catirina não é de couro, como das figuras do Cavalo Marinho. Apoiados pela máscara,
eles brincam. A humanidade sempre brincou nas ruas, nas feiras e nos terreiros e a
cultura popular sempre acompanhou essa história.
Os trajes do Capitão no Cavalo Marinho usam as mesmas peças: calça e
camisa. A camisa quase sempre é estampada, colorida e pode ter brilho. No meio da
158
A discussão em torno do blackface, em que atores brancos pintam o rosto de negro para realizar
personagens negras é outra questão que envolve princípios de racismo e que não cabe no âmbito
deste trabalho. Aqui, abordamos o lúdico envolvido na brincadeira popular transposta para o teatro.
204
brincadeira, o capitão coordena a dança dos Galantes159 e ele veste um colete
bordado com lantejoulas no modelo dos Galantes.
No espetáculo Quem quiser que conte outra existem outras personagens que
não se encontram no Cavalo Marinho, mas fazem parte do universo da cultura popular
nordestina. Sobre os figurinos, José Maciel disse em entrevista que “contou com o
apoio do Grupo Folclórico do SESC João Pessoa, que doou através do professor
Pedro Cândido parte do acervo de figurinos do grupo para a Cia Oxente” (SILVA,
2017, p.29). Pedro Cândido refez o guarda roupa do grupo de danças folclóricas do
SESC João Pessoa, e doou vestidos do coco de roda, golas de galantes, chapéus de
reisado e o boi para a Cia Oxente, que de pronto utilizou e ainda utiliza algumas peças
nesse espetáculo.
Assim que qualquer traje surge em cena, ele já passa a ser traje de cena. Uma
roupa de militar, ou de religiosos, por exemplo, respondem a classificação em
categorias específicas de traje, mas quando entram em cena, são trajes de cena com
origens distintas. No caso de Quem quiser que conte outra, seria possível dividir as
origens dos trajes de cena em duas categorias:
- a dos atores-brincantes, que portam trajes de folguedo
- a dos atores que desempenham outros papéis ao longo do espetáculo, e
usam trajes de origem social em cena.
O que torna essa mistura interessante é que o público tem o conhecimento
daqueles trajes de folguedo no contexto original em que foram empregados: eles são
familiares porque eles conhecem o folguedo por participarem dele ou por
conhecimento indireto - não é necessário ter visto ou vivenciado um auto do boi para
saber quais são os trajes que pertencem a ele. Já o traje de uso social traz
proximidade com o público, pois é de uso cotidiano da enorme maioria da população,
que usa ou conhece bem os vestidos, calças e camisas, por exemplo. A combinação
de ambos gera por si só uma espécie de “encantamento”: aquilo que eu conheço, mas
não uso, se mistura com aquilo que é meu de uso cotidiano. O traje de cena deste
espetáculo se torna especialmente festivo.
Em um primeiro momento, Vó Gracinha está em cena sozinha. Ela usa um
vestido azul folgado com enchimento nas nádegas e no peito; a cintura é amarrada,
as mangas fofas e na saia do vestido há dois bolsos grandes. Os atores, ao entrarem
159
Convidados para o baile do Capitão Marinho que executam a dança dos arcos.
205
como brincantes, estão usando as roupas coloridas que vieram como doação para o
grupo, de origem popular dos folguedos, como já visto. As atrizes têm vestidos na
altura do joelho em cores primárias; o busto dos vestidos tem detalhes com fuxicos e
patchwork160 e na barra das saias vieses coloridos. Os atores entram vestindo calça
e camisa e quando uma das peças é estampada a outra peça é monocromática. Todos
usam chapéus de galantes, com fitas nas laterais. Edilson Alves entra em cena com
um manto de retalhos estampados, um chapéu cônico e vem montado numa
burrinha161, confeccionada com papel machê (doada pelo grupo folclórico do SESC-
PB). E José Maciel provavelmente está levando o boi. Depois da entrada do cortejo,
todos retiram os adereços e ficam apenas com as peças em tecido.
No segundo momento do espetáculo, os atores que permanecem no palco,
ficam com os mesmos figurinos. José Maciel, Jacinta de Lourdes e Edilson Alves se
trocam e voltam ao palco como Mateus, Catirina e Coronel. Para aproveitar melhor o
tempo, os atores apenas colocam outras peças de figurino por cima do que já estão
usando. Mateus veste um casaco branco com retalhos e remendos. Catirina põe uma
barriga de grávida por baixo de uma camisa preta de mangas compridas. Assim como
na brincadeira popular, no espetáculo os dois usam uma máscara negra, Mateus pinta
o rosto e Catirina usa uma meia como máscara. O Coronel vem de botas, com chapéu
e chicote.
160
Tanto fuxicos como patchwork são técnicas muito artesanais, normalmente realizadas em grupo,
enquanto se conversa e trabalha. Trazem em si uma memória afetiva enorme para muitas pessoas,
ligadas à família e ao conforto que estas roupas proporcionavam na infância, na juventude e até mesmo
na velhice. Também se relacionam, pela mistura de padrões e cores, com uma casa animada, colorida,
de vibração quente e acolhedora.
161
Animal presente nas brincadeiras do boi, confeccionado com papel machê e utilizando um cesto
furado como base, para representar o ato de andar sobre um burro.
206
Imagem 139 – Alberto Black, Gorete Araújo, Ane Kelmi, Edilson Alves, Neide Melo, Jô
Carvalho e Jacinta de Lourdes (da esquerda para a direita). Atores da Cia Oxente em cena
do espetáculo Quem quiser que conte outra. João Pessoa, 2004.
Fonte: Acervo de José Maciel
Geóstenys Melo foi convidado como figurinista para organizar as ideias que o
grupo já tinha usado em cena. Algum tempo depois da estreia, ele foi chamado para
integrar a equipe do espetáculo. E sobre a relação com esse trabalho, ele afirma:
Bom, o Quem quiser que conte outra eu já conhecia como espetáculo, e
sempre fui encantado por toda cultura popular. O grupo, inclusive, sempre
defendeu essa coisa do regional, do pertencimento nordestino e a cultura
popular sempre foi mote para as montagens da Oxente. Isso sempre me
atraiu. Inclusive, eu tenho um grupo, e mantenho isso como herança da
Oxente, de valorizar sempre a nossa cultura popular nordestina. Fazer o
figurino foi baseado nisso: eles queriam cores primárias, para o figurino ficar
bem chamativo e que mesclasse um pouco dessa coisa do popular. Então a
escolha das cores se deu nesse sentido, buscando as cores primárias e
trazendo referências de alguns folguedos, do bumba meu boi, das quadrilhas.
Enfim, trazendo esses elementos decorativos para jogar no figurino,
trabalhando com fitas nessas cores, bicos e detalhes em algumas peças com
patchwork e colagem de tecidos, para lembrar bem o nordeste. E o figurino
seria de fato um vestidinho para que lembre uma coisa mais infantil, um
vestido curto, rodado, godê. Foi bem tranquilo de fazer porque o grupo foi
passando algumas informações que eles queriam e eu fui só usando essas
ideias, e foi simples, foi quase um processo coletivo, eles passavam as ideias
e eu as organizava (BARBOSA, 2018, p.1).
207
Imagem 140 –A atriz Jacinta de Lourdes e o ator José Maciel interpretando as respectivas
personagens Catirina e Mateus, no espetáculo Quem quiser que conte outra. João Pessoa,
2003.
Fonte: Acervo de José Maciel
Pela declaração do figurinista e por ele só ter sido chamado depois da estreia,
fica evidenciado que o espetáculo foi bastante apoiado na improvisação. Os primeiros
trajes, como visto, foram recebidos em doação e só depois novas peças foram
confeccionadas. Ainda hoje eles se apresentam com algumas peças doadas por
Pedro Cândido. O próprio Geóstenys Melo já restaurou alguns adereços.
O espetáculo está em cartaz há mais de 16 anos, e há a promessa de não
parar tão cedo. Sempre que houver oportunidade, a Cia Oxente continuará contando
a sua história. E quem quiser que conte outra.
5.1.5 O dia em que a Morte bateu das botas
No início dos anos 2000, a Cia Oxente estava em plena atividade, mantendo
os espetáculos do repertório e iniciando novos processos. O espetáculo infantil Quem
quiser que conte outra (analisado anteriormente) estava entre uma temporada e outra;
a companhia resolveu entrar em um novo desafio, uma comédia. Acostumados a
retratarem o drama nordestino, os atores e irmãos José Maciel e Jacinta de Lourdes
começaram a trabalhar em um novo espetáculo, com a direção de Edilson Alves e
208
adaptação do texto O Convite para a morte de Saulo Queiroz. A adaptação do texto
feita por Edilson gerou um novo título, O Dia em que a Morte bateu das botas.
Eu assisti O Convite para a morte que é o texto original, eu assisti na Mostra
Estadual aqui em João Pessoa. Saulo Queiroz (o autor) fazendo com Sérgio
Abajur. Depois eu fui para Campina Grande, assisti de novo e pedi à ele para
montar o texto. Engraçado que ele [Saulo Queiroz] tem a Cia Oxente como
um dos grupos mais afamados de João Pessoa. Ele sempre me perguntou ‘a
Cia Oxente vai querer montar um texto meu?’. Eu levava isso na brincadeira
e achava estranho. Daí eu mostrei o texto a Jacinta. Ela sempre quis fazer
uma comédia, gostou muito e resolveu fazer o investimento (SILVA, 2019,
p.4-5).
Maciel, em entrevista concedida, afirmou que seu primeiro contato com o texto
original foi em uma apresentação com o próprio autor, e logo em seguida ele solicitou
autorização para montagem. Jacinta, por sua vez, faria o investimento financeiro
necessário ao espetáculo. Conforme relatou Maciel, Edilson inscreveu, sem contar
aos atores, a montagem desse espetáculo no Prêmio Myriam Muniz da Fundação
Nacional de Arte (FUNARTE), no qual foi selecionado para ser realizado com um
cronograma estreito e com obrigação de estreia. O processo de montagem foi
apertado e contou com muitos acontecimentos paralelos e imprevistos162.
Só que esse período foi muito dramático. Eu tinha acabado a pós graduação,
a especialização em representação teatral, meu irmão tinha falecido e foi
quando a gente começou os ensaios. Nós só tínhamos um horário que era
de onze da manhã às duas da tarde. Depois o calendário saiu com as
obrigações das datas de estreia e temporada. Era nesse horário, porque nós
dois trabalhávamos e não podíamos a noite. Nesse período meu pai teve
câncer, Jacinta ficava com ele de manhã e eu ia à tarde, e voltava a noite
para trabalhar (SILVA, 2019, p.5).
Todos esses acontecimentos eram canalizados de alguma forma para a
montagem do espetáculo. Antes que o processo de montagem tivesse sido finalizado,
surgiu um convite para apresentar O Dia em que a Morte bateu das botas em Natal-
RN, no I Festival de Teatro da cidade de Natal, no lugar do espetáculo paraibano
Como nasce um cabra da peste, que por motivos desconhecidos recusou o convite.
E aí chega um convite para Edilson levar o Cabra da peste para um festival
em Natal. Não sei porque eles não foram, e Edilson disse a Judilson que era
o responsável pelo festival que ele tinha outro espetáculo que era O Dia em
que a Morte bateu das botas. Só que quando Edilson falou o figurino ainda
estava para terminar, não tinha estreado, não tinha nada. E a gente estreou
o espetáculo nesse festival em Natal, em agosto de 2006. Mas quando
estreou, que nós fizemos uma temporada aqui no [teatro] Santa Roza, eu
162
Ibid.
209
recebi o convite para ser diretor da Divisão de Programas Sociais [do SESC]
no Amapá (SILVA, 2019, p.5).
O espetáculo estreou, antecipando todas as datas, e nesse festival foram
premiados pela melhor direção, melhor ator, melhor atriz coadjuvante e melhor
maquiagem. Ao retornarem à João Pessoa, fizeram a temporada requerida pelo
projeto aprovado e foram selecionados para a Mostra Estadual de Teatro da Paraíba,
que aconteceria em 2006 também. O espetáculo tinha tomado forma e estava
começado a receber convites, quando Maciel foi chamado para trabalhar no SESC
Amapá, o que acarretou no distanciamento da equipe. Porém, Maciel sempre que
dava retornava a João Pessoa para ensaiar e fazer as apresentações necessárias163.
O Dia em que a Morte bateu das botas conta a história de um suicida que se
prepara para receber a Morte. Ele fez um chá e quando menos esperava a Morte
chegou para anunciar que aquele não era o dia para ele morrer. A Morte veio
acompanhada de seu escravo, Pereba, responsável pela trilha sonora dramática das
cenas que se sucedem. Durante o espetáculo, o suicida não desiste de morrer e
convoca a Morte para uma batalha, onde o vencedor terá o seu desejo concedido.
Depois de uma luta desigual, o suicida vence dando um tiro no corpo físico da Morte,
fazendo com que ela bata as botas164. O final é apoteótico e sombrio com a
redundante morte da Morte e a incerteza do suicídio.
Maciel representava o suicida, Jacinta a própria Morte e Ane Kelmi, o corcunda
Pereba165. Maciel contou que Jacinta utilizava o tempo no hospital de câncer, onde
acompanhava o pai, para observar a Morte diariamente e tentar aprender a conviver
com ela. Por outro lado, Maciel foi instigado por Edilson a tornar a sua personagem
mais cômica, trazendo referências do corpo, da voz e do espírito do Mateus, do Quem
quiser que conte outra, porém, mais afeminado e afetado. Maciel também recorreu à
corporeidade de Gilson Azevedo, ator cômico conhecido em João Pessoa-PB e que
havia falecido há um ano. Para Maciel, essa era uma forma de homenagear o amigo,
que havia obtido sucesso com o Pastoril profano166. Ane Kelmi, que assumiu o Pereba,
163
Ibid.
164
Bater as botas é um ditado popular que significa morrer. Essa ação pode estar vinculada ao
movimento executado pelos militares ao se retirarem da frente de um superior, porém não há certeza.
Sobre o título do espetáculo, a expressão ‘bater das botas’ constitui um erro de grafia.
165
O personagem Pereba do espetáculo O Dia em que a Morte bateu das botas não é o mesmo do
espetáculo Pucumã, porém evidencia de alguma forma o caráter cíclico das montagens deste grupo.
166
Espetáculo teatral cômico, que reconstrói com atores travestis a tradição popular do Pastoril, com o
duelo entre os grupos do cordão encarnado e do cordão azul.
210
um personagem inventado na adaptação do texto, foi logo inserida no elenco como
musicista. (SILVA, 2019).
A cenografia, figurinos e adereços são de Nelson Alexandre e Geóstenys Melo.
Nessa época, Nelson já havia saído da Cia Oxente para se dedicar a Arretado
Produções Artísticas, seu próprio grupo. Nelson foi ator da companhia e tem feito
figurinos para Cia Oxente desde o início da carreira. Geóstenys foi aluno de Nelson
na escola, começou a acompanhar os trabalhos de Nelson enquanto figurinista e se
tornou seu colega de profissão.
Ao analisar as fotografias do Dia em que a Morte bateu das botas (imagens
141, 142, 143 e 144), percebe-se que a visualidade do espetáculo tem uma harmonia
estética, mesclando elementos lúdicos com a atemporalidade. A maquiagem é de
Williams Muniz. A iluminação de Edilson Alves age como significante cênico,
realçando e imprimindo na visualidade o aspecto atemporal com a utilização da
tonalidade âmbar. Os trajes de cena apresentam várias tonalidades, que foram
tratadas com tingimento para favorecer essa mesma questão. Nada aparece muito
colorido ou vibrante, os trajes e adereços cênicos aparentam ter tempo de uso,
característica importante para esse trabalho, de acordo com Nelson (ALEXANDRE,
2019).
Quando o diretor nos pediu alguma coisa, nós fomos ver o espetáculo que se
tratava da morte e de um suicida. Mas só que esse suicida não era um suicida
qualquer, ele era um lorde da cidade e sendo um lorde a gente tinha que ver
algo dentro de uma linhagem, dentro de uma estirpe, que deixasse o mesmo
nesse patamar de vida social que tinha. Então, como a gente não quis
trabalhar o linho, o puro linho, a gente trabalhou com tecido de cortina que
tinha uma gramatura próxima ao linho. Esse próprio tecido tinha umas
ranhuras, umas tramas diferentes, onde no corte, a gente disse ‘que a listra
dessa trama aconteça nessa linha vertical, pois depois vai amarrar ponto a
ponto e vai fazendo uma fissura no tecido, e já que o tecido dá uma
transparência, ele vasa a parte interna’, e para não ver a questão do corpo
do ator, a gente colocou por baixo um tecido, acredito que Oxford. E a partir
do momento que a gente saiu amarrando de cima para baixo, dando os
detalhes, ia vazando sutilmente, bem delicado. Para que quem fosse apreciar
a obra, passasse a notar que há uma coisa diferente no tecido, uma textura
diferente no tecido. Sendo assim, deixamos ele impecável, com cartola, com
bengala, mas um pouco desgastado do tempo, porque anos e anos ele está
esperando a Morte chegar (ALEXANDRE, 2019, p. 1).
211
Imagem 141 – O ator José Maciel representando o suicida, no espetáculo O Dia em que a
Morte bateu das botas. João Pessoa, 2006.
Fonte: Acervo de José Maciel
O suicida é o dono da festa, ele recepciona o público na entrada do espetáculo
como se fossem convidados de uma festa, ele está preparado para morrer e, portanto,
vestiu a sua melhor roupa. De fraque, cartola e bengala, o suicida espera a Morte
chegar; com a demora, ele tira o fraque e o suspensório preto se destaca em seu
figurino. Observando a interpretação de Maciel, percebemos um suicida brincalhão,
que adora palavrões e com um desejo latente, morrer. O visagismo da personagem
corrobora com essa ideia, pois se assemelha a um palhaço sem nariz vermelho. O
traje remete diretamente a senhores de engenho ou da alta burguesia, ele se veste
como um nobre. Na imagem 141 percebe-se os detalhes da textura do material
escolhido por Nelson e Geóstenys, e o trabalho de amarração para criar textura com
sobreposição de tecidos.
Para Maciel, é possível identificar o trabalho de Nelson como figurinista pelas
muitas camadas que compõem o traje de cena (SILVA, 2019). O ator não se dá conta
do efeito visual causado pelas texturas criadas em cena. Isso retoma a importante
discussão sobre a importância da participação dos atores no processo de criação dos
212
trajes, pois o figurinista não deve criar uma obra visual distanciada do corpo vivo e
expressivo que irá vestir. O trabalho é conjunto e exige diálogo entre todos os
envolvidos no processo de criação.
A ideia é de Nelson, porque ele não consegue ser minimalista, ele bota uma
legging para Jacinta, e por cima da legging ele coloca outra meia, e a gente
se perguntava ‘para quê mulesta vai ter essa legging, se essa meia vai estar
cobrindo aqui?’. Ele me fez uma calça preta de oxford, e fez outra calça por
cima, só que a de cima ele desfiou, e a ideia era onde estava desfiado ele
amarrava feito um triângulo, para o povo ver o preto que tem dentro, e eu
ficava me perguntando se não tinha um outro jeito de fazer sem ter que ficar
usando duas calças (SILVA, 2019, p.6).
O traje cênico da Morte tem referências no imaginário grotesco da Idade Média.
Possui muito volume, com calça fofa e mangas bufantes, utilizando meias compridas
e uma capa enorme. Para Nelson, o traje da Morte é uma mistura do feminino com o
masculino, pois ninguém sabe qual é o sexo dela (ALEXANDRE, 2019). A própria
interpretação de Jacinta brinca com a questão de gênero, ora com movimentos fluidos
e femininos, ora com força e uma certa brutalidade.
O figurino da Morte puxa para o lado sacro, para o lado espiritual. A gente
remeteu a algumas iluminuras sacras, que foram customizadas no figurino da
atriz, no sobretudo. Uma capa enorme que não tem manga, a própria manga
bufante da blusa é que compõe a capa. É bem interessante a ideia. Essa
capa tem um lado neutro, que é a parte externa, já a parte interna tem uma
coloração meio vinho, roxo, customizado com umas iluminuras sacras, que
remetem a alguns santos e algumas coisas assim, que tem a ver com a
atmosfera espiritual. E sendo assim, depois disso tudo pronto, a gente foi dar
uma envelhecida com spray, com tinta, para mostrar que era uma coisa já
surrada do tempo. E não esquecendo que esse detalhes que foram
customizados, eles foram customizados de forma mais aparente, onde os
pespontos ficaram à vista. E a morte tem um lado de estilo meio medieval,
tem aquelas coisas, aqueles shorts bufantes dos senhores, e como a gente
não sabe se a morte é do sexo masculino ou feminino, fizemos a junção dos
dois, das duas sexualidades na mesma simbologia. Quando você olha para
parte inferior, vê que está o short bufante meio masculino, mas quando vai
subindo tem a sutileza da blusa mais feminina e vai por aí, e tem o
complemento da questão do cabelo, daqueles traços, daquelas linhas,
daquelas tramas de linhas de várias cores, que compõe toda simbologia junto
com a maquiagem (ALEXANDRE, 2019, p. 1).
213
Imagem 142 – A atriz Jacinta de Lourdes representa a Morte, no espetáculo O Dia em que a
Morte bateu das botas. João Pessoa, 2006.
Fonte: Acervo de José Maciel
Nota-se na imagem 142 a sobreposição de camadas que provocam texturas
diversificadas, características do trabalho de Nelson. Assim como o trabalho de
customização com as iluminuras na parte interior da capa, que remetem a figuras de
santos. As franjas e os franzidos acrescentam mais camadas a essas texturas. E
como o título do espetáculo diz, a Morte calça botas. O efeito de desgaste no traje
também remete a atemporalidade e ao caráter milenar da personagem. As fitas que
saem da cabeças aparentam um elmo em conjunto com a touca. Essa leitura do elmo
pode estar relacionada com uma das identificações da morte com o diabo, e do diabo
como o cavaleiro das trevas.
214
Imagem 143 – Os atores Jacinta de Lourdes (à esq.), Ane Kelmi (centro) e José Maciel (à
dir.) representam, respectivamente, a Morte, Pereba e o Suicida, no espetáculo O Dia em
que a Morte bateu das botas. João Pessoa, 2006.
Fonte: Acervo de José Maciel
O Pereba é o servo da Morte. É corcunda e nas suas costas carrega uma bola
de cristal usada pela Morte para ver acontecimentos do passado e do futuro. Ele
também é o responsável por executar a trilha sonora do espetáculo enfatizando o
clima de cada cena, assim como agir como contrarregra levando adereços de um lugar
para o outro.
A gente quis que o Pereba fosse meio corcunda, como se fosse aqueles
escravos. Na verdade, ele é um escravo da própria morte, é um serviçal da
morte, e sendo assim ele tem um lado meio ralé, meio descuidado, rasgado,
e a própria corcunda. Na corcunda tem uma bola de cristal que vai fazer parte
em alguns momentos da cena. Inicialmente essa bola de cristal tinha uns
efeitos de tinta fosforescente, que acendia através da luz negra. Quando batia
a luz azul, ou qualquer luz negra, para quem estava na plateia a coisa crescia,
e eles pensavam que tinha uma coisa acessa, mentira! Estava acessa sim,
só que com ilusão de ótica. E a questão da concepção do figurino dele, foi
uma malha de tom amarelado queimado e com uma touca, que não deixa de
fazer referência a um macaco que tinha na casa de Maciel. Isso aí a gente
remeteu a ideia do Chico, que hoje esse macaco ainda é vivo (ALEXANDRE,
2019, p. 2).
215
Imagem 144 – Os atores Jacinta de Lourdes (à esq.), Ane Kelmi (centro) e José Maciel (à
dir.) representam, respectivamente, a Morte, Pereba e o Suicida, no espetáculo O Dia em
que a Morte bateu das botas. João Pessoa, 2006.
Fonte: Acervo de José Maciel
O traje do Pereba é o mais escuro e possui uma aparência de sujo e velho. A
pereba que ele carrega é evidenciada mais ainda pela corcunda, e essa pereba é a
bola de cristal. A referência do macaco Chico, da casa de Maciel e Jacinta, é uma
característica de que os artistas se deixam afetar pelo seu entorno social e cultural. O
espetáculo, inicialmente realizado pelos irmãos Maciel e Jacinta e a sobrinha Ane
Kelmi, traz em sua corporeidade aspectos de um animal domesticado por essa mesma
família. Posteriormente, Ane Kelmi foi substituída por Fábio Azevedo. O Pereba tem
esse aspecto animalesco, assim como apresenta relações com a figura do Mateus da
cultura popular nordestina, pois ocupa a condição de servo da Morte, como Mateus é
do senhor de engenho; e a rebeldia, característica do mesmo. Na imagem 144 é
possível observar o detalhe da pereba, que acendia no momento em que a Morte iria
pesquisar sobre a causa da vontade de se matar do suicida.
Esse é um dos espetáculos da Cia Oxente de maior sucesso, fez
apresentações em várias cidades do país e ainda permanece ativo. Por onde passou,
216
recebeu prêmios e consegue manter a plateia sempre lotada. A última apresentação
foi em novembro de 2018, no Festival de Teatro de Mangabeira, organizado pelo
grupo Soluar, onde recebeu o prêmio de melhor figurino.
5.1.6 O Bode
O ator José Maciel, ao longo de sua vida, sempre esteve relacionado às artes
e à cultura popular, principalmente com o teatro e as danças populares. No entanto,
Maciel, assim como todos nós, também tem suas fraquezas, medos e anseios. A
trajetória dele foi permeada por problemas e conflitos pessoais, dele consigo mesmo,
e às vezes com os outros. Em alguns desses momentos de crise pessoal, Maciel
encontrou nas artes cênicas o alívio. O espetáculo O Bode é o resultado de um desses
processos de reestabelecimento. A partir de um encontro casual, desses típicos
compromissos de final de ano, Maciel encontrou com Everaldo Vasconcelos,
professor de teatro da Universidade Federal da Paraíba, dramaturgo e encenador.
Desse encontro, do qual eu fiz parte, junto a Cia Oxente e alguns amigos, eles saíram
com o objetivo de lerem o poema dramático Visões sertanejas, de Everaldo.
Em 2015, na confraternização da Cia Oxente, eu perguntei a Everaldo se ele
queria me dirigir, ele perguntou ‘e você quer fazer o quê?’, eu contei e ele
respondeu que tinha um texto. Não me disse o que era, mas que iria mandar
para mim. Ele me mandou em janeiro, na hora que eu li, respondi ‘a gente
começa a ensaiar quando?’(SILVA, 2019, p.7).
Após a leitura do texto, Maciel convidou o próprio Everaldo para dirigir o
espetáculo. Everaldo, conforme entrevista realizada, relata que se sentiu confortável
em aceitar o desafio, porque sabia que com Maciel eles teriam um belo espetáculo
(VASCONCELOS, 2019). E assim iniciaram o processo de montagem do monólogo,
até então, Visões Sertanejas.
O texto Visões Sertanejas, agora apelidado de O Bode, começou há muito
tempo com uma inquietação que surgiu dentro de mim e foi crescendo, era
uma energia muito forte, e eu não sabia como lidar com aquilo. Até que um
dia, andando por uma feira na cidade de Guarabira, no interior da Paraíba,
eu vi um bode pai de chiqueiro, e me vieram a mente uma série de ligações
internas. [...] Aquela energia toda que me trabalhava foi tomando forma na
história de um homem apaixonado por uma mulher chamada Margarida, mas
só que ele, na sua insolência, termina por agredir um mendigo, que era
exatamente um capeta, um demônio como na cultura popular. [...] O Bode
acabou tendo essas confluências todas, dessas figuras que vão desde o
Mefistófeles do Goethe, ao diabo da literatura de cordel nordestina, ao bode
de Mendes, ao Baphomet de Éliphas Lévi, e das histórias do imaginário
nordestino acerca dos amores e dos encontros das pessoas, e foi assim que
surgiu essa figura (VASCONCELOS, 2019, p.1).
217
O texto apresenta uma densidade muito forte, devido à motivação da escrita e
às referências utilizadas. Ao escrever o texto, Everaldo estava imbuído por emoções
fortes e acrescentou a isso imagens significativas. O homem ao agredir o mendigo,
que era o próprio diabo, acaba assumindo a forma de um bode como castigo. A figura
do bode está diretamente relacionada ao diabo, se observarmos a inspiração do autor
na figura do bode de Mendes e ao arquétipo do diabo na cultura popular nordestina,
pode-se dizer que o castigo do homem é viver como o diabo, assumindo uma de suas
formas.
Em consonância com esse estímulo que vem do texto, Maciel atribuiu a
personagem do bode toda a carga dramática necessária, influenciado pela
experiência de vida naquele momento. As relações foram se estabelecendo e O Bode
foi aparecendo no corpo do ator e na cena, saindo do imaginário do encenador que
acompanhava o processo.
A montagem de um espetáculo teatral exige comprometimento de todos os
envolvidos. Everaldo cita uma fala do David Mamet167 que ele utiliza como fundamento
para sua atividade enquanto encenador, onde Mamet diz que os diretores atrapalham
o processo de montagem de um espetáculo porque não acreditam na inteligência dos
atores (VASCONCELOS, 2019). Com isso ele queria dizer que os atores precisam
pensar e agir em suas funções, essa liberdade é elementar para a criação. Todos
cooperam para o espetáculo.
O teatro é uma arte inteligente, que depende integralmente do que os atores
são. Os atores não são marionetes, mas são a inteligência do teatro, os
atores são a inteligência do teatro, e as pessoas todas que se envolvem ao
redor do espetáculo são também a inteligência, e você tem que confiar nelas,
principalmente nos atores (VASCONCELOS, 2019, p.2).
Durante a leitura do texto, Maciel já trazia para o corpo a presença do
personagem. “A gente ia lendo o texto e o Maciel ia tendo espasmos de bode na leitura
do texto”168. Foi por meio desses espasmos, movimentos e posturas de bode, que
nasceu o espetáculo. Maciel se debruçou sobre o texto e fez todas as marcações
corporais em cima das falas da personagem.
167
David Mamet (1947 -) é um dramaturgo e escritor norte americano. Uma de suas últimas publicações
traduzidas para português é o livro Teatro, da editora Civilização Brasileira, 2004.
168
Ibid., p. 3.
218
Eu fui cifrando o texto, como quando ele diz assim ‘é claro que os mosquitos
e o fedor de merda são coisas que incomodam qualquer vivente’, então todo
esse movimento é para tirar os mosquitos que ficam pousando nele, conforme
o texto eu fui criando os movimentos, para não ficar vazio de emoção (SILVA,
2019, p.7).
O treinamento corporal que Maciel tem é um somatório de todas as suas
experiências de vida, que envolvem as tradições populares que o acompanham desde
a infância em Alagoa Grande-PB, e a relação com o ambiente da feira livre de rua,
onde seu pai era dono de uma barraca. Outra coisa fundamental para a construção
corporal dele é a formação como educador físico, que contribuiu muito para todo o
trabalho de ator que ele tem realizado. A preparação física é essencial tanto para o
brincante da cultura popular, como para o ator.
Uma outra coisa que foi muito importante é que o Maciel possui um corpo
treinado, um corpo completamente preparado para a dança, inclusive com
elementos das danças populares, do cavalo marinho, do maracatu, do frevo,
do xote e do baião, e muitas coisas do corpo do bode faziam referências
diretas as figuras da cultura popular. Tem uma cena na entrada do bode,
quando ele se encontra com o capeta no primeiro diálogo dele, que fazia
referência a algumas figuras do cavalo marinho como o Jaraguá, àquela
corporalidade do Jaraguá que é mais alto. Há uma referência do corpo em
que ele se esticava mais e tudo (VASCONCELOS, 2019, p.4).
Imagem 145 – O ator José Maciel no espetáculo O Bode. João Pessoa, 2016.
Fonte: Acervo de José Maciel
A cultura popular foi o berço de Maciel e essas figuras populares fazem parte
do seu imaginário. O Jaraguá, assim como o Mateus e outros arquétipos, podem ser
219
vistos em nuances do bode, enquanto construções corporais e psicológicas, no caso
do temperamento arredio do Mateus.
Porém, a figura mais importante nesse espetáculo é o bode, que inspirou o
autor ao passar por uma feira em uma cidade do interior da Paraíba, e que esteve
presente na vida do ator também. O bode desse espetáculo é um pai de chiqueiro169,
conhecido no Nordeste do Brasil por ser o animal dominante dentro do cercado onde
os bodes ficam. O bode pai de chiqueiro é maior que os demais, tem mais pêlos,
cheira mal e é raivoso. Os espasmos de bode, citados acima, que Maciel tinha nas
leituras, eram fruto de memórias de um bode pai de chiqueiro que ele conheceu e
estava trazendo para o seu corpo. Segundo o relato:
A gente ia muito para casa de dona Dorinha, só que todo mundo tinha medo
desse pai de chiqueiro. Era um pai de chiqueiro bonito e imponente. Mas esse
bode tinha um lado pervertido além do que já é normal no animal. O bode
conseguia entender quem era homem e quem era mulher, se passasse uma
mulher, esse bode avançava em cima, ele era amarrado, mas ele subia em
cima, babava. Ele só não fazia isso com quem ele conhecia, o bode vivia no
cio vinte e quatro horas. Eu tenho essas imagens muito presentes das
meninas. Aqui é o caminho, e ele estava aqui na corda, ele via as meninas e
ficava em pé de pau duro, e as meninas tinham que afastar. Era um bode
peludo, bonito. E eu comecei a trazer esses movimentos do bode, das
subidas, dos saltos (SILVA, 2019, p.7).
A animalização do corpo humano aconteceu magicamente na peça, no corpo
do ator essa animalização se deu através das memórias que foram sendo resgatadas.
Nesse trabalho de construção da personagem, Maciel tinha liberdade de criação e
contava com a orientação de Everaldo, indicando os textos para trabalhar a cada dia,
dando estímulos e cortando os excessos. Quando o traje de cena chegou para os
ensaios, Maciel sentiu dificuldade, talvez tenha perdido um pouco da sua liberdade
total.
Mas a maior dificuldade para fazer o Visões sertanejas, que hoje a gente
chama O Bode, do poema dramático Visões sertanejas, foi que eu ensaiei o
tempo todo só de cueca ou de calção de banho, quando o figurino chegou, e
que não é o figurino do bode, mas é o figurino de um fauno, quando teve essa
junção, me deu dificuldade. E olha que o figurino foi costurado praticamente
no meu corpo, eu disse a Yon, e ele respondeu ‘eu já sei’. Eu fui no outro dia
e ele tinha desenhado, e já desenhou o figurino com a maquiagem (SILVA,
2019, p.7-8).
Yon Pontes é o figurinista responsável por esse trabalho. Com o croqui pronto,
Yon já havia criado a imagem daquele bode. E para Maciel, qualquer traje que viesse
169
Macho da cabra, mais velho e de temperamento forte.
220
seria uma nova estrutura sobre o corpo, ambos (traje e corpo) precisaram se ajustar
para que o bode vivesse em cena. Sobre as referências do trabalho Yon afirmou:
Eu dei um teor bem grande desse classicão gregão, porque se você vê Maciel
trabalhando, ele lembra muito o sátiro. Mas na realidade eu trago o animal,
eu me visto na ideia antes dele, mas como ele se personifica, ele é uma
transformação, eu achei interessante trazer essa questão desse conjunto
todo. [...] Sempre nessa viagem que se faz pelas culturas saxônicas, pela
cultura grega. E quando a gente viaja para cá, para o nordeste, também se
encaixa dentro de uns perfis. O bode é a parte forte do demônio. Toda figura
demoníaca, na maioria das vezes se apresenta com esse clássico (PONTES,
2019, p. 1).
Com essa declaração de Yon, fica claro que as inspirações do autor do texto
estão nas entrelinhas para que a equipe se envolva e trabalhe em conjunto. As ideias
fluíram em um mesmo sentido, através da aproximação do bode com o diabo e com
a figura do sátiro grego também. Aqui, é possível traçar um paralelo com o traje de
Léon Bakst para o fauno representado por Vaslav Nijinski, em L’Après-midi d’un faune
(1912), obra importante para o balé moderno, que segundo a descrição feita pela
pesquisadora Donatela Barbieri (2017), foi inspirado nos sátiros gregos e misturava o
humano com o animal. O traje era basicamente um collant com bordados e
customizações, o bailarino estava praticamente nu do lado dos trajes das ninfas. Em
O Bode, o corpo de Maciel está visivelmente nu, ele é homem e bode ao mesmo
tempo.
Yon trabalha com figurino há 35 anos, ele é cuidadoso com todos os detalhes
do traje. Para Yon, o figurinista sempre irá buscar referências no passado, por mais
que o espetáculo seja contemporâneo, ficcional ou futurista, a história serve de
suporte para a criação artística hoje170.
Eu usei couro na parte da frente e crina de cavalo, porque eu trabalho com
crinas de cavalo. Eu gosto dessa textura, e também sou capaz de fazer com
outro tipo de textura, mas nesse caso de Maciel que é muito específico, eu
preferi trabalhar com pele, tem uma pele falsa, mas tem verdadeira também
(PONTES, 2019, p. 2).
O traje de cena do Bode é composto por uma calça vazada de couro com pelos,
por cima de um tapa-sexo, deixando parte do corpo do ator à mostra. Com ombreiras
peludas, luvas, barbicha e chifres.
Após ter ido assistir uma apresentação, Maciel conta que Yon decidiu tirar o
adereço das mãos e a barbicha, para melhorar a performance dele e compor melhor
170
Ibid.
221
a personagem. Isso demonstra o caráter flexível do figurinista que, com o intuito de
otimizar a encenação, faz mudanças no traje cênico para alcançar seu maior efeito.
Maciel também relata a necessidade de reparações no traje toda vez que é lavado. E
ele mesmo leva até Yon para os devidos ajustes. (SILVA, 2019).
Imagem 146 – Croqui do traje cênico, de Yon Pontes, para o espetáculo O Bode. João
Pessoa, 2016.
Fonte: Acervo de Yon Pontes
222
Imagem 147 – O ator José Maciel no espetáculo O Bode. João Pessoa, 2016.
Fonte: Acervo de José Maciel
Imagem 148 – O ator José Maciel em cena, detalhe das mãos sem as luvas e sem a barba,
no espetáculo O Bode. João Pessoa, 2016.
Fonte: Acervo de José Maciel
Esse é o último espetáculo em que Maciel atuou e tem feito circulações
nacionais e participado de festivais. Enfim, percebe-se a raiz nordestina muito forte no
trabalho desse ator que traz consigo a ancestralidade ibérica e medieval, mesmo que
de maneira inconsciente. Temos aqui o exemplo de um ator popular que representa
histórias do seu povo, com noções de sua própria cultura.
223
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa tese investigou os trajes de cena como elemento norteador para os
estudos do teatro popular. O principal objetivo foi investigar os possíveis
entrelaçamentos desses trajes com a cultura popular, destacando a experiência do
ator José Maciel e da Cia Oxente. Para alcançarmos nossa meta, traçamos uma linha
do tempo que culminou na análise dos trajes de cinco espetáculos de José Maciel.
Esse percurso demonstrou diferentes aspectos do teatro ao longo da história da
humanidade. E assim, discutimos particularidades e interseções entre os trajes de
cena, os sociais e os de folguedo.
Iniciamos com as principais definições que nortearam esta pesquisa,
principalmente com a compreensão de que o traje social influenciou e continua sendo
referência para o traje de cena. A partir da categorização realizada por Fausto Viana,
definimos a indumentária utilizada nas artes cênicas como traje de cena. Todavia, a
ideia de cena tem sido questionada pela performance e áreas afins, ampliando o
entendimento do traje de cena em campo expandido.
No percurso da história do teatro, os trajes de cena refletiam aspectos dos
trajes sociais de cada época e, com isso, foram sofrendo alterações, agregando novos
meios de confecção – na medida em que iam se desenvolvendo – assim como
alcançando novos meios criativos. Através dos estudos de Susan Pearce, propomos
estudar os trajes de cena da seguinte forma: primeiro realizando uma descrição
detalhada do traje; segundo, fazendo uma apresentação do traje; terceiro, a exposição
do contexto envolvido; quarto, conceituação do traje; e quinto, interpretação do traje
a partir de todas as informações anteriores. Essa metodologia não é hermética, pelo
contrário, essas etapas se modificam de acordo com as informações disponíveis –
nem sempre será possível aplicar todas as etapas propostas.
A segunda definição importante para o desenvolvimento desta pesquisa foi o
conceito de cultura. Nos fundamentamos nas ideias de Zygmunt Bauman, que
defende perspectiva da cultura a partir de padrões comportamentais. Também é
importante o aspecto de hibridismo apresentado por Nestor García Canclini, que
compreende interseções entre a cultura erudita (dos doutos e acadêmicos), a cultura
de massa (influenciada pelos meios de comunicação) e a cultura popular (vinculada
aos extratos sociais menos favorecidos).
224
No decorrer desta pesquisa e inseridos na cultura popular, observamos que os
trajes de folguedo também são influenciados pelos trajes sociais, assim como servem
de inspiração para os trajes de cena do teatro popular – que é a terceira e última
definição abordada nesta seção. Partimos de um conceito geral, apresentado por
Patrice Pavis, que opõe o teatro popular a todas as formas teatrais que extinguem o
povo de sua realização, ou seja, ele é contrário ao teatro elitista, burguês, literário,
etc. Em seguida, trazemos uma classificação proposta por Brooks McNamara, que
indica diferentes condições espaciais para a realização de espetáculos populares. E
finalizamos com a contribuição de Augusto Boal, que defendia o teatro popular feito
para o povo, sobre o povo e com o povo em cena. Atualmente, a compreensão do
teatro popular é variada e possui diferentes ramificações, entretanto, arriscamos dizer
que o teatro popular é basicamente uma expressão cênica que tem no povo a sua
essência criadora, assumindo-se como referência estética e cultural e como atores
que encenam a própria história. O traje de cena do teatro popular, seguindo a mesma
tônica como elemento cênico, reflete as características culturais do povo que o
circunda.
A terceira seção é como uma caixinha de memórias, um relicário, contendo
inúmeras informações sobre os trajes de cena do teatro popular pelo mundo, temática
ainda pouco abordada nos estudos acadêmicos. Através dos escritos de teóricos do
teatro e da indumentária, como Margot Berthold, Oscar Brockett, Patrice Pavis,
Béatrice Picon-Vallin, Fausto Viana e François Boucher, foi traçada essa linha invisível
no tempo, conectando diferentes expressões teatrais com essência popular. E para
cada teatro existe um figurino, com pequenas ou grandes aproximações, ou
distanciamentos entre si.
Ao olharmos o curso desta linha do tempo, percebemos que a influência
europeia no campo das artes ainda é majoritária, entretanto, assistimos uma mudança
nessa lógica com as teorias decoloniais. Esse não é o foco desta pesquisa, nem muito
menos uma das principais descobertas realizadas aqui, mas é importante tomar
consciência deste fato e empreender novos caminhos para futuras pesquisas.
O teatro popular sempre existiu enquanto expressão artística de um povo, ele
tem raiz nos atos ritualísticos e pode ser verificado nas pinturas rupestres. As
civilizações orientais possuem registros de formas de teatro popular anteriores aos
gregos, como é o caso do teatro de bonecos da Indonésia e também na dança
ritualística chinesa, observada na estatueta de terracota, onde uma dançarina utiliza
225
(o que viria ser) as mangas d’água, posteriormente encontradas nos mimos em
afresco da Idade Média, no Pulcinella, que é personagem da Commedia dell’Arte e
até hoje é utilizado na Ópera de Pequim como artifício cênico.
O traje de cena do teatro popular se apropriou da indumentária de cada época
e acrescentou o aspecto teatral que faltava. Entendemos esse aspecto teatral como
sendo o efeito obtido por algo que se deseja representar a partir de outros elementos
que não apenas o verossímil. Na Grécia, por exemplo, os trajes de cena utilizavam-
se de estratégias para amplificação da estrutura corporal do ator, como a modificação
da linha da cintura do traje para linha abaixo do busto, além do uso de calçados de
plataforma alta (cothurno), máscara e diadema (onkos) com peruca. A amplificação
dos trajes como efeito para alcançar os espectadores mais distantes, também foi
observada nos festivais de rua do início do Renascimento. A escolha por tecidos de
cores fortes e variadas texturas foi artifício para atrair os olhares dos transeuntes para
as apresentações nas feiras, nos boulevards e nas ruas.
Outro efeito obtido pelos gregos, especificamente para os trajes da comédia,
foi a utilização de próteses e enchimentos, como barrigas e falos. Esses adereços são
essenciais no teatro popular até hoje. As próteses, assim como as máscaras, se
tornaram parte da visualidade de muitos personagens na história do teatro. Esse efeito
é essencial para construção visual dos personagens da Commedia dell’Arte, que
assumiram uma forma específica, com traje e máscara acompanhando a criação de
cada tipo.
Os trajes do teatro popular não podem ser associados apenas a trajes simples,
sem ornamentos, pois muitos nobres doavam peças de seus guarda-roupas para as
trupes teatrais, como por exemplo o Teatro Elizabetano, que chegou a receber
doações da família real. Outra possibilidade era ter um bom patrocinador ou produtor
que conseguisse capitalizar fundos para investir nos trajes de cena.
A ascensão da burguesia, o aumento da desigualdade social e todas as
mudanças que aconteceram no século XVIII e por diante, provocaram nos artistas e
intelectuais o interesse pela valorização de suas culturas locais. Em seguida, iniciou-
se uma movimentação para permitir o acesso às classes sociais menos favorecidas
nos espetáculos teatrais.
No século XX, os encenadores sintetizaram as características aqui relatadas,
em suas produções, algumas em maior proporção, outras não. Para finalizar a terceira
seção, destacamos o retorno à estética das feiras livres, com a montagem de A
226
Barraca da Feira de Atrações de Meyerhold, assim como o engajamento político e o
rompimento total com a ilusão teatral nas obras de Brecht e a valorização do ser
humano enquanto artista e espectador de múltiplas nacionalidades no Théâtre du
Soleil. Assim, podemos assumir que o teatro popular esteve presente em toda história
das artes cênicas e que os trajes que permearam essa trajetória, podem ser
caracterizados pela: utilização do efeito de amplificação, além de próteses, máscaras,
cores vibrantes e texturas variadas. Esses trajes podiam ter relação com os trajes
regionais de cada localidade e eram, inicialmente, em sua maioria, oriundos dos trajes
sociais contemporâneos, podendo ser dos próprios artistas e grupos, confeccionados
pelos produtores dos espetáculos ou doados pelos mais nobres.
Seguindo a alegoria da caixa de memórias, a cada nova seção descobrimos
um novo conjunto de informações sobre aspectos mais profundos do teatro popular e
seus trajes. A quarta seção nos conduziu pela América Latina até o Brasil, analisando
formas de teatro anteriores à colonização e continuamos abordando outras
possibilidades já no século XX.
A partir dos estudos de Zeca Ligiéro, conhecemos tradições espetaculares e
populares com características dos povos originários da América Latina, nos levando
à confirmação de que o teatro popular está ligado à vida humana, seja como elemento
ritualístico ou para representação de histórias. Neste processo, os trajes são
importantíssimos, pois através deles percebemos particularidades sobre as
comunidades e culturas em questão.
Duas características são representativas do teatro popular no Brasil do século
XX - o aspecto político e a influência dos folguedos populares. Muitos artistas,
intelectuais e estudantes viram no teatro deste período uma possibilidade de crítica e
de expressão contra a repressão e a desigualdade social. Augusto Boal, o Teatro
Arena, o CPC, entre outros, trabalharam objetivando conscientizar o povo da
exploração a qual estavam submetidos. Outra iniciativa, que rememora as ações do
Théâtre National Ambulant e do Théâtre National Populaire, era levar o teatro para
comunidades que não tinham acesso aos teatros. O traje de cena integrava o discurso
político, como é o caso do uso de calças jeans importadas no espetáculo Arena canta
Zumbi, do Teatro Arena, que discutia em cena a falta de liberdade.
Por outro lado, elementos das tradições populares, também denominadas de
folguedos, começaram a aparecer na cena teatral, seja do ponto de vista dramatúrgico
ou visual, de maneira literal ou apenas como inspiração. Isso aconteceu junto ao
227
surgimento das políticas de valorização das culturas populares. Destacamos a
atuação em Pernambuco do Movimento de Cultura Popular, e de personalidades
como Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna; na Paraíba, neste período, temos a
atividade de Altimar Pimentel.
A dramaturgia nordestina tem em Suassuna seu maior representante. Ele
levava ao palco o contexto de vida do nordestino, sertanejo, abordando questões
sociais inerentes ao imaginário popular desta região. A visualidade e, por
consequência, os trajes de cena eram desenhados com elementos dos trajes de
folguedos, como o uso de cores terrosas e/ou vibrantes, decoração com fitas de cetim
e também eram utilizados adereços dos próprios folguedos, como vimos no
espetáculo do Teatro Popular do Nordeste, O melhor juiz, o rei.
Nesta seção, percebemos que, mesmo com abordagens diferentes, o teatro
popular manteve o povo como fundamento principal dos espetáculos. Os trajes
utilizados reafirmam essa condição por meio dos tecidos utilizados, das modelagens
e dos adereços que compõem o discurso simbólico de cada peça. A relação direta
com os trajes sociais da época comprova essa ideia.
Para concluir essa linha do tempo do teatro popular através dos trajes de cena,
verificamos na quinta seção, por meio da trajetória do ator popular José Maciel, a
influência estética e conceitual da cultura popular e seus folguedos presentes na vida
dele desde a juventude. Os espetáculos citados apresentam interseções com a cultura
popular nordestina, refletindo o contexto em que estão inseridos. Essas montagens
ocorreram entre as décadas de 1990 e 2010, abarcando 30 anos de produção teatral
dedicada a encenar temas regionais, por decisão do próprio grupo envolvido.
Os trajes de cena utilizados por Maciel e sua companhia eram discutidos entre
eles mesmos. O figurinista só apareceu anos mais tarde, quando um dos integrantes
resolveu se especializar nessa área, o que demonstra a característica colaborativa de
teatro de grupo muito forte nessa época. Com o aumento dos incentivos financeiros,
o grupo conseguiu contratar outros figurinistas para os espetáculos seguintes.
Também deram oportunidade para que jovens artistas pudessem assumir tal função,
como aconteceu com Geóstenes Melo. Os resultados destes espetáculos são retratos
criativos do Nordeste brasileiro, pois o grupo precisava pensar em alternativas
acessíveis para a confecção dos trajes, chegando a reutilizar trajes antigos de
folguedos que eram doados e ressignificando outros materiais.
228
Depois de ter percorrido todo esse caminho, consideramos os trajes de cena
do ator popular uma construção multifacetada, que inspirados em referências
originárias utilizam aspectos contemporâneos, de acordo com as experiências vividas
pelos grupos, para composição do discurso visual do espetáculo. Os materiais
utilizados são coerentes com a realidade retratada e também retratam a escassez de
produtos diversificados nas cidades afastadas dos grandes centros comerciais. Desde
os princípios do teatro popular, os trajes de cena acompanharam as condições
produtivas e criativas dos artistas de cada época, além da tecnologia até então
desenvolvida. Por isso, podemos afirmar que é possível contar a história do teatro por
meio dos trajes de cena.
Temos aqui um estudo inédito que apresenta um panorama histórico do teatro
popular e seus trajes, e com tantas memórias escritas e tecidas, essa pesquisa pode
se tornar um lugar de reencontro entre pesquisadores, curiosos e tais momentos
históricos, com o objetivo de manter vivo o teatro popular, servindo de base para
novos estudos e criações.
Todavia, o presente trabalho se limitou a algumas representações do teatro
popular, que se destacaram aos nossos olhos e que se encontraram dentro da linha
temporal aqui desenvolvida. Essa escolha foi feita levando em consideração a
essência popular, o acesso às informações e a diversidade de experiências. Existem
muitas outras iniciativas que devem ser apreciadas, principalmente em outras
localidades que não foram aqui representadas, como as africanas por exemplo.
Portanto, mais pesquisas neste campo seriam de grande valor para as artes cênicas.
Esperamos ter contribuído com essa jornada.
Alea jacta est!
229
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