Ileo Paralítico (Outubro 2010)
Ileo Paralítico (Outubro 2010)
Resumo
Abstract
Introdução
O início da investigação dos processos fisiológicos inerentes à motilidade
do tubo digestivo remonta aos finais do século XIX. Contudo, só em 1906
Cannon e Murphy esboçaram a primeira definição de íleo paralítico e em
1917 Paul Trendelenburg descobriu o sistema nervoso entérico (SNE) (1).
Inicialmente, pensava-se que o SNE fazia parte do sistema nervoso
autónomo periférico e que os neurónios da parede intestinal eram
neurónios parassimpáticos pós-ganglionares. Hoje em dia sabe-se que o
Correspondência SNE funciona independentemente dos sistemas nervosos central e pe-
André Goulart riférico, fazendo a ligação entre estes e o intestino, sendo constituído pelos
Rua da Universidade, nº 48 Hab305 plexos mioentérico (Auerbach) e submucoso (Meissner) que se encontram
4710-057 Braga interligados por numerosas fibras nervosas. Este sistema controla a motilidade
Tlm.: (00351)915300875
intestinal, a secreção exócrina e endócrina e a microcirculação do tubo digestivo, con-
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tribuindo ainda para a regulação imune e de processos inflamatórios (2).
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Considerar procinéticos
mesmo prejudicar as anastomoses intestinais (11). O papel analgesia intensa (opióides) desempenha também um
da preparação intestinal na cirurgia rectal ainda está por papel importante na diminuição do íleo pós-operatório
definir (11). que é difícil de dissociar do benefício da laparoscopia
per si. Assim, o benefício da laparoscopia no pós-ope-
ratório parece ser multifactorial (1, 5).
Medidas Provavelmente Benéficas
Administração Pré-Operatória de Antagonistas
Cirurgia Minimamente Invasiva Opióides
Este tipo de técnica cirúrgica produz menos lesão Os opióides são fármacos muitas vezes usados no con-
tecidular que a cirurgia laparotómica e, consequente- trolo analgésico pós-operatório, contudo os seus efeitos
mente, menor resposta imune (12). Com base no que foi laterais, nomeadamente a potenciação do íleo pós-
descrito anteriormente, esta menor resposta imune operatório, limitam o seu uso na cirurgia abdominal (5, 12).
poderá ter efeitos benéficos na motilidade gastrointesti- Para contrariar este efeito, surgiram os antagonistas dos
nal, porém os estudos existentes não são concordantes receptores opióides. Os primeiros fármacos a ser usados
em demonstrar diminuição do íleo pós-operatório com foram o naloxeno, nalmefeno e naltrexona. Estes anta-
esta abordagem cirúrgica. Para além da diminuição da gonistas atravessavam a barreira hemato-encefálica e a
resposta imune, a laparoscopia apresenta também dose necessária para impedir o desenvolvimento da
diminuição da dor pós-operatória com menor necessi- dismotilidade intestinal revertia a analgesia ou desen-
dade de analgesia intensa, melhoria da função pul- cadeava síndrome de abstinência dos opióides. Para
monar e alta mais precoce. Esta menor necessidade de ultrapassar este problema, estão a ser desenvolvidos
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antagonistas periféricos que não atravessam a barreira Administração Pré-Operatória de Inibidores COX-2
hemato-encefálica e, por conseguinte, não bloqueiam a
analgesia ou desenvolvem síndrome de abstinência. Como descrito anteriormente, a COX-2 desempenha um
Foram criados dois fármacos novos com esse objectivo: papel fundamental no desenvolvimento do íleo pós-
alvimopan e metilnaltrexona. O alvimopan é um anta- operatório, pelo que a sua inibição através de anti-infla-
gonista dos receptores μ com uma sensibilidade de matórios não esteróides (AINE’s) ou inibidores da COX-2
200 x para os receptores periféricos, assim é usado para tem sido largamente estudada.
tratar a disfunção induzida pelos opióides sem influen- Os AINE’s administrados no pós-operatório para contro-
ciar os efeitos centrais (percepção da dor ou abstinên- lo analgésico permitem reduzir a necessidade de
cia). Estudos mostram que este fármaco diminui o opiáceos até 30% e diminuir a incidência e duração do
tempo de recuperação gastrointestinal e o tempo de íleo pós-operatório, contudo o seu uso associa-se a risco
internamento. Os efeitos deste fármaco são dose- aumentado de hemorragia na incisão cirúrgica (1, 5). Para
dependentes, sendo a dose ideal 12mg 2id até a um contrariar este efeito lateral, têm-se estudado o uso de
máximo de 15 tomas (7 dias). O fármaco só pode ser inibidores selectivos da COX-2. Com esse propósito, Sim
usado por via oral e a primeira dose deve ser admi- e colaboradores (2007) (15) desenvolveram um estudo
nistrada antes da cirurgia a fim de ocupar os receptores prospectivo randomizado no qual associaram valdeco-
μ antes do uso dos opióides. A metilnaltrexona é um xib vs placebo ao esquema analgésico de doentes sub-
antagonista periférico puro, pode ser administrado por metidos a cirurgia colorectal. Os autores concluíram que
via intravenosa e tem efeitos idênticos ao alvimopan (1, 5, 9). o valdecoxib reduz o tempo do íleo pós-operatório de-
vido a três motivos: diminuição do uso de opióides,
Administração Limitada de Fluidos Intravenosos deambulação precoce por melhor controlo da dor e
diminuição da resposta inflamatória por inibir a COX-2.
Apesar de não ser consensual, a evidência sugere que a Tal como este trabalho, outros estudos que evidencia-
hidratação excessiva peri-operatória pode levar a alte- ram o benefício no uso de inibidores COX-2 não foram
rações da função cardíaca e pulmonar e ao desenvolvi- capazes de demonstrar que a redução do íleo pós-ope-
mento de edema intestinal que piora o íleo pós-ope- ratório é independente da redução da utilização de
ratório. A dose ideal ainda não está definida, sendo opiáceos. Assim, parece que o principal benefício tem
necessários mais estudos com esse objectivo (1, 5). sido a redução da dose de narcóticos necessários para o
controle adequado da dor (10).
Administração Pré-Operatória de Hidratos de
Carbono
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Este tipo de abordagem implica o empenho dos vários nal por rotina. Outras medidas em estudo mostram
profissionais de saúde, nomeadamente cirurgiões, algum efeito na diminuição do íleo pós-operatório,
anestesistas, enfermeiras e técnicos (21). nomeadamente a administração oral até 2 horas antes
Apesar da eficácia aparente destas abordagens fast- da cirurgia de soluções ricas em hidratos de carbono, o
track e da evidência deletéria de algumas práticas tradi- uso de inibidores da COX-2, a restrição de fluidos intra-
cionais, os cirurgiões mostram-se reticentes em adoptar venosos peri-operatoriamente, a administração de fár-
essas abordagens na prática clínica(5). Kehlet e colabo- macos procinéticos e de probióticos e o uso de pastilha
radores (2006)(23) desenharam um inquérito para avaliar elástica no pós-operatório. Recentemente a indústria
a prática clínica na cirurgia do cólon em 295 hospitais farmacêutica desenvolveu dois antagonistas dos rece-
na Europa e EUA. Segundo este estudo, a preparação ptores opióides (alvimopan e metilnaltrexona) que con-
intestinal foi realizada em mais de 85% dos doentes; 40- trariam os efeitos laterais gastrointestinais dos opióides
66% mantinham SNG no pós-operatório, sendo removi- sem alterar o efeito analgésico e sem causar síndrome
da, em média, ao 3º dia; foram necessários 3-4 dias e 4-5 de abstinência.
dias para que metade dos doentes tolerasse dieta líqui- A combinação dos efeitos benéficos dessas medidas
da ou sólida, respectivamente; e 4-5 dias para que 50% levou ao desenvolvimento de protocolos multimodais
dos doentes referissem sentir movimentos intestinais. O que apresentam resultados muito promissores na
íleo pós-operatório persistiu mais que 5 dias em 45% diminuição do íleo pós-operatório e tempo de interna-
dos doentes e o tempo de internamento rondou os 7 mento (Quadro I).
dias nos EUA e os 10 dias na Europa, o que é bastante
superior aos 2-5 dias que os protocolos multimodais
preconizam (Quadro I).
Bibliografia
Conclusão
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Esta complicação aumentou em 29% o tempo de inter- 2008.
namento e em 15% os custos de hospitalização (22). 4. Litkouhi B. Postoperative ileus. In: UpToDate. 17.3;
Diversas medidas têm sido estudadas com o intuito de 2008.
prevenir/tratar esta complicação. As medidas mais efi- 5. Story SK, Chamberlain RS. A comprehensive review
cazes dizem respeito ao controlo rigoroso da dor pós- of evidence-based strategies to prevent and treat
operatória com o recurso mínimo a opióides, o recurso postoperative ileus. Dig Surg. 2009;26:265-75.
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