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POSSENTI

Por que (não) ensinar gramática na escola
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LL = i “Ff. _&3s Re a Ss SIRIO POSSENTI POR QUE (NAO) SINAR GRAMATICA NA ESCOLA DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGACAO NA PUBLICACAO (CIP) (CAMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL) Possentl, Sirio Por que (no) ensinar gramatica na escola / Sirio Possenti— Campinas, SP: Marcado de Letras : Associagio de Leitura do Brasil, 1995, (Colegao Leituras no Brasil) ISBN 85 89725-24-9 1, Portugués ~ Gramlica - Estudo e ensino |. Titulo Il. Série, 96-3880 coD-469.507 indie para catélogo sistemitic 1. Gramatica ; Portuguss : Estudo @ ensino 469.507 COLEGAO LEITURAS NO BRASIL CCoordenapao: Luiz Percival Leme Brito Conseiho Eciferiat Gléucia Mollo Pécore, Valdir Heitor Barzott, Maria José Nobrega, Wiimar da Rocha D'Angelis © Marcia Abreu Capa: Vande Rotla Gomide Copidesque: Nivia Maria Fernandes Revisdo: Marla Marcello Braida DIREITOS RESERVADOS PARA A LINGUA PORTUGUESA; (© MERCADO DE LETAAS EDIGAO E LIVRARIA LTDA, Rua Barbosa de Andrade, 111 Fone: (19) 3241-7514 1078-410 ~ Campinas SP Brasil wyrw.mercado-de-letras.com br E-mail [email protected] ASSOGIAGAO DE LEITURA DO BRASIL Faculdade de Ecuoagae(Unicam> Cidade Universiteria"Zeterino Va2" 19081-970 ~ Campinas S? Brasil Fone: (19) 3289-4166 9? reimpressao 2002 Proibida a reprodugaio desta obra sem @ aulorizago prévia dos Editores. INTRODUCAO ) Na primeira parte, apresentei um conjunto de argumen- tos que, penso, poderiam convencer os leitores de que é com- pletamente desnecessdrio ensinar gramética na escola, se 0 objetivo for dominar a variedade padrao de uma lingua e tornar os alunos habeis leitores e autores pelo menos razodveis. Mas, sei muito bem que ha outros fatores atuando na escola, além dos critérios de ordem intelectual. Ha, por exemplo, a pressao da tradig&o — que é ruim, mas cujo peso é grandee seria pouco inteligente desconhecer. No que se refere 4 anilise lingiifstica, assim como € muito diferente nao ser estruturalista depois de té-lo sido e nao ser estruturalista sem jamais té-lo sido, acredito qui 59 diferenga € ainda maior se ficar claro que ha varios tipos de gramitica e até mesmo varios tipos de gramatic: s tradicionais. Por isso, Para muitas pessoas das mais variadas extrag6es intelec- tuais e sociais, ensinar lingua é a mesma coisa que ensinar gramitica. Ou, o que é diferente, embora pareca mera inversao, para muitos, ensinar gramatica é a mesma coisa que ensinar lingua. Além disso, por ensino de gramatica entende-se, fre- qiientemente, a soma de duas atividades, que, eventualmente, se inter-relacionam, mas nao sempre, nem obrigatoriamente, As duas atividades sao: essa primeira atividade € 0 estudo de regras ortogra- ficas, regras de concordancia e de regéncia, regras de colocagao dos pronomes obliquos etc. térios para a distingao entre vogais e consoantes, critérios de descoberta das partes da palavra (radical, tema, afixos), andlise sintatica da oracdoe do periodo, especialmente se isso se faz com a utilizagiio de metalinguagem. As duas atividades podem nao estar relacionadas por que, em principio, pode-se realizar a primeira sem socorrerse da segunda. Por exemplo, pode-se ensinar uma forma padrao. da Ifngua sem recorrer as raz6es explicitas que justificam tal forma. E 0 caso de quando se ensina que 0 correto é dizer “prefiro x ay” e nao “prefiro x do que y”’, purae simplesmente, sem justificar a regra com uma anilise do contetido semantico de “preferir”. Atividades como essa sao correntes (ou deve- Do ponto de vista do ensino de lingua padrao, parece evidente que o primeiro tipo de atividade, cuja finalidade, de fato, é tentar consolidar 0 uso de uma variedade de prestigio, € mais relevante do que o segundo, que s6 se justifica por critérios independentes do ensino da lingua. (Em sua Gramd- tica descritiva da lingua portuguesa (Atica), Perini justifica 0 ensino de gramatica na escola por raz6es culturais. Assim como se estudam tépicos sobre agricultura chinesa e os desertos africanos, sem nenhuma perspectiva de aplicagao pratica, é de interesse aprender coisas sobre como se estrutu- ram as Iinguas. Justificar 0 ensino da gramitica por razdes culturais significa, entre outras coisas, admitir que o ensino da gramitica pode nao ter nada a ver com o ensino da lingua — no que concordo com Perini, como deve ter ficado muito claro na primeira parte desse livro.) ‘ Como ja se viu no pardgrafo acima, que destacou apenas um aspecto da questéo do ensino da gramitica, pode ocorrer que quando duas pessoas falam de gramatica, ou de ensino de gramiatica, nao estejam falando da mesma coisa. Uma pode estar falando de formas padrdes por oposigo a formas popu- lares, e outra, de como certos aspectos de uma lingua se estruturam. E talvez pelo fato de nao estar sempre claro para todos que esta questao é complexa, que, muito freqiientemente, discussdes sobre o tema nao prosperam. Os contendores podem achar que discordam quando concordam, e podem achar que concordam quando, de fato, esto discordando. Talvez isso explique, em parte, entre outra es, a distancia entre os projetos de ensino e sua execucao. Por isso, nesta segunda parte, vou ocupar-me exclusiva- mente de uma discussio relativa a conceitos de gramitica. Penso que esta deve ser uma discussao prévia 4 discussao sobre a introdugao da gramatica na escola. E melhor saber 0 que se est de fato propondo que os alunos aprendam e qual a relagao entre a disciplina escolar e os objetivos de ensino de Ifngua Sabe-se que a questao do ensino da gramiatica na escola tem sido longamente discutida. A discussao continua atual, seja porque o professor precisa decidir, caso haja ensino de grama- tica na escola, qual proporgao do tempo destinado ao ensino da lingua deve ser dedicado a cada uma das estratégias (leitura, redagio, gramitica etc.), além do fato de que a decisio pode variar conforme o nivel de ensino e 0 tipo de classe, ou, até mesmo, 0 tipo de escola. Outra razdo é que esta discussao revela diferentes orientagdes didaticas (ensinar a partir do uso observado ou ensinar a partir de regras), diferentes concepgdes do papel da lingua numa sociedade cheia de contrastes como & a nossa (serve para a comunicagao ou abre acesso a oportuni- 62 dades de emprego) e diferentes objetivos atribuidos a escola de primeiro e segundo graus (preparar para a vida ou preparar para o vestibular, dois objetivos que sé coincidem para um mimero extremamente limitado de alunos). Fundamentalmente, a discussdo continua atual porque, embora tenha havido muita mudanga de discurso, a pratica escolar continua basicamente a mesma, exceto em poucos enclaves muito particulares. ath CONCEITOS DE GRAMATICA Comecemos pelo dbvio: se nao para ensinar gramatica, pelo menos para defender tal ensino, € preciso — ou parece decente que assim seja — saber 0 que é gramatica. Acontece que a nogio de gramatica é controvertida: nem todos os que se dedicam ao estudo desse aspecto das linguas a definem da mesma maneira. No que segue, proponho que se aceite, para efeito de argumentacao, que a palavra gramatica significa “conjunto de regras” . No é uma definigao muito precisa, mas nao € equivocada. Serve bem como guarda-chuva. Mas, acres- cente-se logo que a expressio “conjunto de regras” também pode ser entendida de varias maneiras. E é trabalhando sobre essa expressao que distinguirei varios tipos de gramitica. Como o que interessa é formular pontos de reflexdo e argumentos especialmente para professores de primeiro ¢ segundo graus, destacarei trés maneiras de entender “conjun- to de regras”, aquelas que parecem diretamente pertinentes as questdes do ensino, no que é relevante atualmente, em decorréncia de determinada tradig&o (que exclui, por exem- 63 plo, gramaticas funcionais). Assim, tal expresséo pode ser entendida como: 1) conjunto de regras que devem ser seguidas; 2) conjunto de regras que sdo seguidas, 3) conjunto de regras que o falante da lingua domina. As duas primeiras maneiras de definir “conjunto de regras” dizem respeito ao comportamento oral ou escrito dos membros de uma comunidade lingiifstica, no sentido de que as regras em questao se referem a organizagao das expressbes que eles utilizam. Ver-se-d mais adiante a diferenga entre as duas. A terceira maneira de definir a expressao refere-se a hipsteses sobre aspectos da realidade mental dos mesmos falantes. Vou detalhar um pouco essas trés nogdes, de modo a caracterizar trés tipos de gramiaticas, ou trés sentidos um pouco mais precisos para a palavra “ gramatica” . GRAMATICAS NORMATIVAS Le, A primeira definigéo de gramatica — conjunto de regras que devem ser seguidas — é a mais conhecida do professor de primeiro e segundo graus, porque é em geral a definigdo que se adota nas gramaticas pedagégicas e nos livros didaticos. Com efeito, como se pode ler com bastante freqiiéncia nas apresenta- Ges feitas por seus autores, esses compéndios se destinam a fazer com que seus leitores aprendam a “falar e escrever corretamen- te”, Para tanto, apresentam um conjunto de regras, relativamente explicitas e relativamente coerentes, que, se dominadas, poderao produzir como efeito o emprego da variedade padrao (escritae/ou 64 oral). Um exemplo de regra deste tipo é a que diz que o verbo deve concordar com o sujeito, por um lado, ¢, por outro, que existe uma forma determinada e tinica para cada tempo, modo © pessoa do verbo: a forma de “pér” que concorda com “eles” no pretérito perfeito do indicativo é “puseram”, e nao “puse- 0” onharo” ou “ponhou”. Gramiati- , “pds”, “ponharam”, “ ipo de gramitica é suficientemente conhecido, nao explicitarei mais suas caracteristicas. GRAMATICAS DESCRITIVAS A segunda definigao de gramética — preocupa¢ao central € tornar conhecidas, de forma explicita, as regras de fato utilizadas pelos falantes — dai a expressfio “regras que sdo seguidas” . (Ficou claro, espero, na primeira parte, que todos os que falam sabem falar, e que isso significa que seguem regras, j4 que grupos de falantes “erram” de maneira organizada, isto €, regrada. Adiante, falar-se-4 um ouco sobre regras, e a i i i — ouregras que muito poucos falantes ainda seguem, embora apenas raramente. Vejamos alguns exemplos de diferengas entre o que espera uma gramatica normativa e 0 que nos revela uma gramiatica descritiva. 65 Se observarmos as conjugagdes verbais, veremos que algumas formas nao existem mais, ou s6 existem na escrita. Em especial: a) as segundas pessoas do plural que encontramos nas gramaticas desapareceram (vés fostes, v6s irfeis etc.). Na verdade, desapareceram tanto 0 pronome de se- gunda pessoa do plural “ vés” quanto a forma verbal correspondente. Hoje, se diz“ vocés foram”, “ vocés iriam” etc.; b) os futuros sintéticos praticamente nao se ouvem mais, embora, certamente, ainda se usem na escrita, Na modalidade oral, o futuro é expresso por uma locugdo (vou sair, vai dormir etc.), e nao mais pela forma sintética (sairei, dormird); c) 0 mesmo se pode dizer do mais que perfeito “sim- | ples” ; ninguém mais fala“ fora”, “dormira” etc., mas apenas “tinha ido”, “tinha dormido” etc.; d) a forma do infinitivo nao tem mais 0 “x.” final. Ou seja, ninguém fala, de fato, “* vou dormir” , mas “vou dorm”. ey Um outro dominio em que ha algumas diferéngas not veis é 0 sistema pronominal. Certamente, qualquer observagao mostraré que: a) como ja vimos, nao existe mais a forma “vés” (e sua correspondente em posigéio de objeto — “vos”); a forma usada para referir-se a mais de um interlocutor é“vocés” ; b) apenas em algumas regides ainda se usa a forma “tu”; na maior parte do pais, o pronome de segunda pessoa 66 é “vocé”; no entanto, a forma “te” € corrente para expressar a segunda pessoa em posigao de objeto direto e indireto. A gramatica normativa considera esse fato um problema. Para uma gramatica descriti- va, trata-se apenas de um fato, um fato regular, isto 6, constante; c) as formas de terceira pessoa em posicéo de objeto direto “o/a/os/as” também nao se ouvem mais; ocor- remeventualmente na escrita. As formas que ocorrem de fato em seu lugar sao, variavelmente, “ele/ela/eles/elas” , apesar de parecer um escandalo a certos ouvidos; e, cada vez mais, ocorre como objeto direto a forma “Ihe(s)”, alternando essa fungao com a de objeto indireto — que, alids, cada vez mais é cumprida pelas formas “a/para ele; a/para ela” etc.; d) no lugar de “nos”, mais freqiientemente do que su- pomos, usa-se a forma “a gente”, tanto na posigdo de sujeito quanto na de complemento (a gente foi, ela viu a gente). Uma observacao indispensdvel, quando se fala de pro- ouvir uma meséclise de um analfabeto — mas, defender que sejam aceitas no Brasil equivale a propor que se volte a formas. do portugués medieval. Purismo por purismo, por que nao? 67 Na verdade, as préprias gramaticas normativas com- portam sempre partes bastante relevantes e extensas de des- crig¢&o. Por exemplo, quando distribuem palavras em classes diferentes, quando distinguem partes da orag&o, ou quando segmentam as palavras em radical, vogal tematica e desinén- cia, as gramaticas normativas sao descritivas. Mas, muito freqiientemente, se ndo sempre, as passagens descritivas das gramaticas normativas referem-se sempre as formas “corre- tas”, e por isso descrigao e prescrigao se confundem. O que caracteriza uma gramatica puramente descritiva é que ela nao tem nenhuma pretensio prescritiva. Numa perspectiva des- critiva, constata-se, por exemplo, que, no portugués de hoje, existem pelo menos trés maneiras de dizer “eles puseram” : eles puseram, eles pusero e eles pds (sem contar, evidente- mente, a forma um pouco mais rara ¢ motivada por outros fatores eles poram e as formas decorrentes da suposi¢ao de que 0 infinitivo do verbo seja “ponhar’”). Verifica-se, além disso, que as trés formas comportam marcas suficientes para indicar pluralidade: em “eles puseram” e “eles pusero”, a pluralidade é indicada redundantemente, uma vez pelo pro- nome sujeito e outra pelas desinéncias (am num caso € 0 no outro); em “eles p6s”, a pluralidade é indicada sé no pronome sujeito, nao havendo a redundancia observada nas duas outras formas. Mas, evidentemente, ninguém confunde, e muito menos considera idénticas ou interpreta da mesma maneira as seqliéncias “eles pds” e “ele pds”. No contraste entre “eles puseram”, “eles pusero” e “eles p6s”, 0 gramatico descritivista nao esta preocupado em apontar erros, mas pode ir além da constatagio de que essas formas existem, verifi- cando, por exemplo, que elas sao utilizadas por pessoas de diferentes grupos sociais ou, eventualmente, pelas mesmas pessoas em situagées diferentes; constataré ainda que ha uma 68 resisténcia ou prevengao em relagao a “eles pusero” & ele pds” porque nao sao formas utilizadas pelas pessoas culta: percebe-se, assim, imediatamente, que 0 critério de corregio nao é lingiifstico, mas social. GRAMATICAS INTERNALIZADAS A terceira definicao de gramatica — conjunto de regras que o falante domina — refere-se a hipoteses sobre os conhe- cimentos que habilitam 0 falante a produzir frases ou seqiién- cias de palavras de maneira tal que essas frases e seqiiéncias sio compreensiveis e reconhecidas como pertencendo a uma lingua. Diante de frases como “Os meninos apanham as goiabas” ou “Os menino (a)panha as goiaba”’, qualquer um que fale portugués sabe que sao frases do portugués (isto 6, que nao sao frases do espanhol ou do inglés), isso tem a ver com aspectos observaveis das proprias frases, dentre os quais se podem enumerar desde caracterfsticas relativas aos sons (quais so e como se distribuem), até as relativas a forma das palavras ¢ sua localizagéo na seqiiéncia, Dada a maneira constante — isto é, que se repete— através da qual as pessoas identificam frases como pertencendo a sua lingua, produzem e interpretam seqiiéncias sonoras com determinadas caracte- risticas, € Ifcito supor que ha em sua mente conhecimentos de um tipo especifico, que garantem esta estabilidade. Sem entrar em detalhes, pode-se dizer que tal conheci- mento é fundamentalmente de dois tipos: lexical ¢ sintdtico-se- mantico, 0 -conhecimento lexical pode ser descrito si moplificadamente como a capacidade de empregar as palavras adequadas (isto 6, instituidas historicamente como as pilav 69 da ‘mgua) a as “coisas”, aos “processos” etc. O c ) conhecimento sintatico-semantico tem a ver com a distribuic&o das palavras na. sentenga e 0 efeito que tal distribuigdo tem para o sentido. O léxico tem implicagoes na sintaxe-semintica, na medida em que as palavras t@m exigéncias em relagdo ao outro nivel. Por exemplo, para empregar a palavra “dizer” é necessdrio saber © que cla significa, por um lado, e, por outro, saber o que ela significa tem a ver também com exigir que esse verbo tenha um sujeito de tal tipo, complemento(s) de tal outro tipo ete. Como conseqtiéncia desse saber, diante de uma sentenga como “Ea raposa disse para 0 corvo tivas: ou acha que a frase é estr , 0 falante tem duas alterna- ‘anha (sem sentido, de um certo ponto de vista, jd gue raposas ndo falam), ou tem que colocar- sé num outro mundo (que é, certamente, a alternativa mais comum). Se ouvir alguém dizer “O meu mie nao gosta”, o falante de portugués tem de novo que escolher; ou conclui que ha um problema (uma regra violada, j4 que em portugués se diz “a minha mae...”) ou supe que 0 falante é estrangeiro, De fato, este segundo re seria uma explicacao do primeiro — sé um estrangeiro poderia produzir uma forma como essa, Ha dois tipos de fatos lingiifsticos que podem ser inter- pretados como dois fortes argumentos a favor da existéncia de gramiaticas internalizadas, ou seja, na mente dos falantes, e que funcionam como a fonte das formas lingiiisticas produzidas Como sempre, é no limite entre 0 aceitével e o nao aceitavel que esto os melhores materiais para ter acesso a supostas propriedades mentais. Os dados em questo provém da fase de aquisi¢ao de uma lingua e de fases de mudangas de dialetos por parte de adultos, especialmente, embora nao exclusivamente. Uma versao sobre a aquisic¢do do conhecimento, em particular do conhecimento gramatical, diz que aprendemos 70 por repetig&io. Simplificando, falamos o que falamos porque ouvimos. Ora, criangas tipicamente produzem pelo menos algumas formas que nunca ouvem consistentemente — podem até ouvi-las esporadicamente de outras criangas. Tais formas fio tipicamente regularizadoras de formas eae Os exemplos mais tipicos sao formas verbais como “eu sabo” , “ cabo”, “eu fazi”, “ele iu” etc. H bom que se diga que fatos semelhantes ocorrem também com criangas de outras naciona- lidades aprendendo outras Iinguas. E, ao contrério do que muitos pais e eventualmente professores poderiam pensar, quando criangas, produzem essas formas “erradas” mostram que sao normais. Problematico seria se néo cometessem esses erros. Seria um sintoma de um cérebro pouco ativo, com problemas para uma aprendizagem auténoma. Uma suposigdo razodvel que se pode fazer para explicar estas formas na fala infantil € a seguinte: as criangas aprenderam regras de conjugag&o verbal, e é aplicando essas regras que produzem tais formas. A rigor, esta afirmago valeria mesmo se se admitisse que o aprendizado de certas regras se faz pela repetigao. Mesmo assim, haveria um estdgio em que a produgao das seqiiéncias seria ativa, e resultaria da aplicagéo de regras conhecidas, internalizadas. E é isso que é de fato relevante. Outro exemplo do mesmo tipo sio as conhecidas hiper- corregées. Falantes do meio rural ou com pouca instrugdo produzem formas como “meu fio” (filho). Se, em algum momento, puderem aprender, em contato com falantes de outros grupos, que as palavras certas sao “filho” , “ palhago” “telha” etc., poderd ocorrer que apliquem a regra que muda “fio” em “filho” etc. sempre que o contexto for o mesmo ou semelhante. E dirio, eventualmente, coisas como “telha de aranha” (teia), “‘a pilha do banheiro” (pia) etc. Ora, nitidamen- 7 te tais falantes nao ouviram essas formas dos gtupos dos quais ouviram “telha” — que ouviram quando se falava de cobertura de casas e nao quando se falava de aranhas. Se nao as ouviram, entao as produziram ativamente, por sua conta. Poder-se-ia comparar 0 que ocorre nesse caso como que se di com um dos comandos dos Processadores de textos usados em microcomputadores. Se alguém quer, por exemplo, substituir uma palavra por outra num texto, ao invés de alterar uma ocorréncia de cada vez, pode dar um comando ao compu- tador, que substituird todas as ocorréncias de um elemento por outro. Podem, entdo, ocorrer problemas. Suponhamos que se queira substituir a forma “ele” pela forma “ela”, O computa- dor mudaré todas as ocorréncias de “ele” em “ela”, todas as ocorréncias de “aquele” em “aquela” (¢ pode ser que isso seja desejado pelo autor), mas mudara também seqiiéncias como “elemento” em “elamento” (0 que certamente € hipercorri- git...). O resultado nao é bom, mas, pelo menos, descobre-se que ha um principio no programa computacional e como ele funciona. Sem querer apegar-me a metdfora computacional para explicar o funcionamento do cérebro, espero que a com- paragao sirva para que a hipdtese da gramiatica internalizada fique mais clara (e mais forte). A esses conhecimentos, e ds hipdteses por meio das quais os lingiiistas tém tentado organizé-las, chama-se, num sentido moderno do termo, gramitica. Naturalmente, existem relagdes estreitas entre descrever uma lingua e descobrir a “ gramética” que os falantes dessa lingua dominam. De fato, a questo pode ser assim resumida: uma gramatica descritiva é tanto melhor. quanto mais ela for capaz de explicitar 0 que os falantes sabem. Em outras palayras, quanto mais a gramética descritiva for um retrato da internalizada, que, a rigor, & seu objeto, 72 Assim como 0 conceito de gramiatica nao é unfvoco, assim também os conceitos de regra, de lingua e de erro nao o sao. Por isso merecem um pequeno comentario. REGRAS Ha dois sentidos em que se pode falar de regras: umdeles traz consigo a idéia de obriga¢do, aproximando-se da nogaio de lei em sentido juridico: a regra é algo a que se obedece, sob pena de alguma’Sangao. E nesse sentido que se fala das regres de etiqueta e do “bom comportamento”. Quem as transgride é apontado como grosseiro, marginal ou caipira, e pode ser reprovado: sua companhia pode nao ser procurada, perderd oportunidades de jantar com as pessoas chiques etc. O outro sentido de regra traz consigo a idéia de regulari- dade e constancia, aproximando-se da nogao de lei no sentido de “leis da natureza”. Por exemplo, a lei da gravidade sistematiza uma parte de nossas observages sobre os abjetos que nos cercam. avaliados positivamente (na vida social e na escola). Violan- do-as, os falantes tornam-se objeto de reprovagio (sao con- siderados ignorantes e nao dignos de p tais e tais caracteristicas — descreve-as, classifica-as; um quimico nao critica um elemento da natureza por produzir 73 <£__<£<_<<££<___ odores insuportaveis — descreve-o. Pois bem, nas linguas ha regras semelhantes — embora varidveis. Por exemplo, em portugués, artigos vém antes de nomes; pode-se ouvir “nés vamos” ou “nds vai”, mas ndo se ouve “eu vamos” . Ou seja, ha combinagGes possiveis e outras impossfveis... outra regra de uma gramatica produz avaliagoes sociais do tipo “é culto”, “é inculto”. Mas, certamente, seguir uma ou outra regra nao indica menor ou maior inteligéncia, maior ou menor sofisticagéo mental ou capacidade comunicativa.

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