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Aula 9 - O Império Do Sabonete - Anne McClintock

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Aula 9 - O Império Do Sabonete - Anne McClintock

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5

O império do sabonete
Racismo mercantil e propaganda imperial

Sabão é civilização.
Slogan da Unilever

~lestre: Nossa, está tão limpo.


'
Zangado: Há trabalho sujo em ação.
·1 Branca de Neve e os sete anões

.i SABÃO E CIVILIZAÇÃO

,,
• No coM EÇO do século XIX, o sabão era um item escasso e monótono, e
o ato de lavar, na melhor das hipóteses, superficial. Poucas décadas de-
. ~
pois, a manufatura do sabão tinha-se expandido num comércio imperial:
,
os rituais vitorianos de limpeza eram anunciados globalmente como o
sinal divino da superioridade evolutiva da Grã-Bretanha, e o sabão era
JJ .C"I

'
r

investido de mágicos poderes de fetiche. A saga do sabão capturou a


afinidade oculta entre domesticidade e império e incorporava uma crise
triangulada no valor: a subestimação do trabalho feminino no domínio
doméstico, a superestimação da mercadoria no mercado industrial e a
negação das economias colonizadas na arena do império. O sabão entrou
no reino do fetichismo vitoriano com efeito espetacular, não obstante o
fato de que os homens vitorianos promoviam o sabão como ícone da
racionalidade não fetichista.
Tanto o culto da domesticidade quanto o novo imperialismo encon-
traram no sabão tuna forma mediadora exemplar. Os valores emergentes
da classe média - monogamia (sexo "limpo", que tem valor), capital
industrial (dinheiro "limpo", que tem valor), cristandade ("ser lavado no
sangue do cordeiro") e a missão civilizadora imperial ("lavar e vestir o
selvagem") - podem ser todos maravilhosamente incorporados numa

3o7
Couro imptrial

única mercadoria doméstica. A propaganda do sabão, cm particular a


campanha do sabão Pears, assumiu sua posição na vanguarda da nova
cultura mercantil da Grã-Bretanha e de sua missão civilizadora.
No século XVIII, a mercadoria era pouco mais que um objeto mun-
dano a ser comprado e usado - nas palavras de Marx, "uma coisa tri-
vial"'. Ao final do século XIX, porém, a mercadoria tinha assumido seu
lugar privilegiado não só como forma fundamental da nova economia
industrial, mas também como forma fundamental de um novo sistem?.
cultural de representação do valor social'. Surgiram bancos e bolsas de
valores para administrar as benesses do capital imperial. Surgiram pro-
fissões para administrar os bens que despencavam febrilmente das ma-
nufaturas. O espaço doméstico da classe média estava abarrotado como
1 \
nunca de móveis, relógios, espelhos, quadros, animais empalhados, or- l
. ·,

namentos, armas e uma miríade de bugigangas. Os novelistas vitorianos


davam testemunho da estranha proliferação de mercadorias que pare-
·-1 !~

ciam ter vida própria, e navios enormes carregados de ninharias e ber- d


loques faziam seu comércio entre os marcados coloniais da África, do .·J•
Oriente e das Américas1• .1
A nova economia criou um alvoroço não só das coisas, mas também ;}
•·,

dos signos. Como afumou Thomas Richards, se todas essas novas mer- .1
cadorias tinham de ser administradas, seria preciso encontrar um siste- i ..
ma unificado de representação cultural. Richards mostra como, em 1851, í
a Grande Exposição no Palácio de Cristal serviu como monumento a f
un1a nova forma de consumo: "O que a primeira exposição anunciava
com tamanha intimidade era a completa transformação da vida coletiva 1
1
e privada num espaço para a exibição espetacular das mercadorias"4 • 1
1r . . .
,
•'1
1
1. Karl Marx, "Commodity Fctishism", in Capital (Nova York: Vintage Books, 1977, vol. 1),
p. 163. 1l
2. Ver a excelente análise de Thomas Richards, 1ht Commodity Culturt ofVictorian Britain:
,1dvtrtising and Spmadt, 1851-1914 (Londres: Verso, 1990), especialmente a Introdução e J
o capírulo 1. 1
!
3. Ver a análise de David Simpson sobre o fetichismo nos romances cm Fttishism and Ima-
~ ·..
4.
gination: Did:em, Nfdvilfe, Conrad (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1982).
R.ich~rds, 1he Commt>dity Cullure... , p, 72.
.l. -··
i;,

308
O imptrio do sabonu, - 'l{etísmo m,rcantil, propaganda impuial

Como um "laboratório semiótico da teoria do valor trabalho", a Expo-


sição 1\.1undial mostrou de uma vez por todas que o sistema capitalista
não só tinha criado uma forma dominante de troca, mas também estava
no processo de criar uma forma dominante de representação que a
acompanhasse: o panorama voyeurista do excedente como espetáculo.
Ao exibir mercadorias não só como coisas, mas também como sistema
organizado de imagens, a Exposição Mundial ajudava a dar forma "a
uma nova espécie de ser, o consumidor, e a uma nova espécie de ideo-
logia, o consumismo">. Nascia o consumo cm massa do espetáculo da
mercadoria.
A propaganda vitoriana revela, porém, um paradoxo, pois, como for-
..• ma cultural a quem fora atribuída a defesa e o marketing exterior dessas
., distinções fundadoras da classe média - entre privado e público, traba-
lho pago e não pago - , a propaganda desde a saída também começou a
confundir essas distinções. A propaganda trouxe os signos íntimos da
domesticidade (crianças no banho, homens se barbeando, mulheres cm
.,. corpetes, empregadas levando o drinque da noite) para o domínio pú-
blico, colando cenas de domesticidade cm muros, ônibus, vi trines e qua-
dros de anúncios. Ao mesmo tempo, levava cenas do império a cada
canto do lar, imprimindo imagens da conquista colonial em cai..xas de
sabão, caixas de fósforos, latas de biscoitos, garrafas de uísque, latas
de chá e barras de chocolate. Traficando promíscuamente através dos
limiares do público e do privado, a propaganda começou a subverter
uma das distinções fundamentais do capital mercantil, ainda que este
apenas começasse a existir.
Desde o princípio, além disso, a propaganda vitoriana Lomuu forma
explícita em torno da reinvenção da diferença racial. O kitsch mercantil
tornou possível, como nunca antes, o marketing de massa do império
como sistema organizado de imagens e atitudes. O sabão florescia não
:• só porque criara e preenchera um vazio espetacular no mercado domés-
' tico, mas também porque, corno mercadoria doméstica barata e portátil,

5. Idem, op. cit., p. 5.


Couro impaial

podia persuasivamente mediar a poética vitoriana da higiene racial e do


progresso imperial.
O racismo mercantil se distinguiu do racismo científico por sua ca-
pacidade de expandir-se para além da elite letrada e proprietária através
do marketing do espetáculo da mercadoria. Se, desde os anos 1850, o ra-
cismo científico saturou as revistas antropológicas, científicas e médicas,
e os livros de viagens e romances, essas formas culturais eram ainda limi-
tadas p or classe e inacessíveis à maioria dos vitorianos, que não tinham
os meios nem a educação para ler ta] material. O kitsch imperial como
espetáculo do consumidor, em contraste, podia empacotar, mercadejar e
distribuir o racismo evolucionista numa escala até então inimaginável.
Nenhuma forma preexistente de racismo organizado fora capaz de al-
cançar massa tão grande e diferenciada do povo. Assim, enquanto as
mercadorias domésticas era.m mercadejadas através de um apelo ao ja-
cobinismo imperial, o próprio jacobinismo mercantil ajudou a reinven-
tar e manter a unidade nacional britânica cm face da crescente compe-
tição imperial e da resistência colonial. O culto da domesticidade passou
a ser indispensável para a consolidação da identidade nacional britânica,
e no centro do culto doméstico estava a simples barra de sabão6 •
No entanto, o sabão não tem história social. Como ele pertence pro-
positadamente ao reino feminino da domesticidade, o sabão é visto
como além da história e além da política propriamente dita7. Iniciar uma
história social do sabão, então, é recusar-se, cm parte, a aceitar o apa-
gamento do valor doméstico das mulheres sob o capitalismo imperial.

6. Em 1889, um anúncio do sabão Sunlight mostrava a figura feminizada do nacionalismo


britãnico, Brita1111ia, sobre uma colina e exibindo a P. T. Bamum, o famoso administrador
e empresário do circo do espetáculo mercantil, uma enorme fábrica de sabão Su11/igl1t que
se estendia ~ frente deles. Orgulhosamente, Britannia proclama que a manufatura do
sabão Sunlight é •o maior espc1:iculo da Terra#. Ver a excelente 2n:llise de Jennifer Wickc
sobre P. T. Bamum cm Adv"tiling Fi(fion: Literatur~, Advutiummt and Soâal Rmdi11g
(Nova York: Columbia University Press, 1988).
7. Ver Timothy Burkc, -Np.macira Th:11 I Loved': Commoditization, Consumption and
the Social History of Soap in Zimbabwe", 1Ju Soánies ofSouthun A/rira;,, thc rif• and
20'1 Cmturia: Colluted Scminar Paf'"1, n• 42, ,•oi. 17 (Londres: Insli1u1c of Common-
wealth Srudics, 1992), pp. 195-216.

JIO
O implrilJ d1J saór,nete - '7?.acismo mercantil e propaganda imperial

Não se pode esquecer, além disso, que a história das tentativas europeias
de impor uma economia mercantil às culturas africanas é também a
história das diversas tentativas africanas de recusar ou de transformar
. ' o fetichismo mercantil europeu de modo a satisfazer suas necessidades.
'
1 . A história do sabão revela que o fetichismo, longe de ser uma propensão
t ·- quintessencial africana, como afirmava a antropologia do século XIX,
fj era central para a modernidade industrial, habitando e mediando as
incertas zonas liminares entre domesticidade e indústria, metrópole e
império.
!

l SABÃO E O ESPETÁCULO MERCANTIL
1

l
1 Antes do fim do século XIX, a lavagem das roupas de vestir e de cama
era feita na maior parte dos lares apenas uma ou duas vezes por ano em
1 grandes reuniões comunais, usualmente em público em regatos ou rios8•
l' ·"'
~anto a lavar o corpo, pouco tinha mudado desde os tempos em que a
1 ~'(.
Rainha Elizabcth I se distinguia pela frequência com que se lavava: "re-
1
l gularmente a cada mês, precisasse ou não"9 • Nos anos 1890, porém, as
.
' vendas de sabão estouraram, os vitorianos consumiam 260 mil toneladas
l 1
de sabão por ano, e a propaganda surgira como forma cultural central do
( ;:
1 • capitalismo mercantil'º.
•! ~ Antes de 1851, a propaganda praticamente não existia. Como forma
l
l comercial, era em geral vista como confissão de fraqueza, uma espécie de
lamentável último recurso. A maioria dos anúncios se limitava a peque-
l nos avisos nos jornais, panfletos baratos e cartazes. Em meados do sécu-

l
1
S. Leonorc Davidoít e Catherine Hall, Family Fortunes: /11/m and Hómm of the English
J\1idd!t Class (Londres: Routledge, 199i).
9. David T. A. Lindsey e Geoffrey C. Bamber, SMp-Making. Past and Prnmt, 1876-1976
(Nottingham: Gerard Brothers Ltd., 1985), p. 34.
10. Idem, op. cit., p. 38. Quão profundamente a relação entre sabão e propaganda acabou
misturada na memória popular se vê cm expressões como "nap opera" [equivalente :1
nossas novelas de rádio ou TV]. Para histórias de propaganda, ver também Blanche
B. EUiott, A Hist1Jry ofEnglish Advertísing (Londres: Business Publications Ltd., 1962); e
T. R. Nevctt, //dvertising in Britain: A Hútory (Londres: l lcinc:111ann, 1982).

Jll
Couro imptrial

lo, entretanto, os fabricantes de sabão foram pioneiros no uso da propa-


ganda ilustrada como parte central da política do negócio.
O ímpeto inicial para a propaganda do sabão veio do lado do impé-
rio. Com o florescimento do algodão imperial nas plantações escravistas
veio o excedente de peças baratas de algodão, ao lado do crescente poder
de compra de uma classe média que pela primeira vez podia consumir
tais bens cm grandes quantidades. De modo semelhante, as fontes ba-
ratas de óleo de palma, coco e sementes de algodão se multiplicavam nas
planta',=ôt:s impt:riais da África Ocidental, da Malásia, Ceilão, Fiji e
Nova Guiné. À medida que rápidas mudanças na tecnologia de fabrica-
ção do sabão aconteciam na Grã-Bretanha depois do meio do século,
surgia a perspectiva de um grande mercado doméstico de sabonetes, que
até então tinham sido um llLxo só acessível à classe mais alta.
A competição econômica com os Estados Unidos e com a Alemanha
criou a necessidade de uma promoção mais agressiva dos produtos bri-
tânicos e levou às primeiras inovações na propaganda. Em 1884, ano da
Conferência de Berlim, foi vendido o primeiro sabonete embalado sob
uma marca. Esse pequeno evento significou uma grande transformação
no capitalismo, quando a competição imperial fez surgir os monopólios. (

Daí em diante, itens anteriormente indistinguíveis entre si (sabão ven-


dido simplesmente como sabão) passariam a ser comercializados por sua
marca corporativa (Pears, Monkey Brand etc.). O sabão veio a ser uma
das primeiras mercadorias a registrar a mudança histórica de miríades
de pequenas companhias aos grandes monopólios imperiais. Nos anos
1870, centenas de pequenas fábricas de sabão comercializavam o novo
negócio da higiene, mas no fim do século, o comércio era monopolizado
por dez grandes companhias. ·l
A fim de administrar o grande show do sabão, surgiu uma nova espé-
cie de publicitários agressivamente empreendedores, dedicados a bene- ·1
ficiar cada produto caseiro com um halo radiante de encanto imperial e
de potência racial. O agente de propaganda, como o burocrata, desem- ·1
penhava um papel vital na expansão imperial do comércio e.xterior. Os -~ .
propagandistas chamavam a si mesmos de "construtores do império" e ...
se exaltavam com "a responsabilidade da missão histórica imperial".

312
O implr io do sabonete - 'R.f!dsmo mtr,anr il, prtJpaganda imptrial

Disse um: "Ainda mais que o sentimento, o comércio une as porções


separadas no oceano do império. Qyem quer que aumente os interesses
comerciais reforça todo o tecido do império"". O sabão foi creditado não
só pela salvação moral e econômica da "grande sujeira" britânica, mas
também pela encarnação mágica do ingrediente espiritual da própria
missão imperial.
Num anúncio do sabão Pears, por exemplo, um negro varredor de
carvão e implicitamente racializado segura nas mãos um objeto oculto,
que brilha. Luminosa por sua própria radiação interna, a simples barra
de sabão brilha como um fetiche, pulsando magicamente com ilumina-
ção espiritual e grandeza imperial, prometendo aquecer as mãos e os
corações dos trabalhadores em todo o globo11• A marca Pears, em parti-
..
• cular, veio a ser intimamente associada com uma natureza purificada
i:-'
1..
magicamente limpa da indústria poluente (gatinhos saltitantes, cachor-
t ros fiéis, crianças enfeitadas de flores) e uma classe trabalhadora purifi-
cada magicamente limpa do trabalho poluente (empregadas sorridentes
ern engomados aventais brancos, meninas de rostos rosados e ajudantes
de cozinha esfregados)'3•
De qualquer maneira, a obsessão vitoriana com o algodão e a limpe-
za não era simplesmente um reflexo mecânico do e.xcedente econômico.
Se o imperialismo extraía grande quantidade de algodão barato e óleos
para sabão do trabalho colonial forçado, o fascínio da classe média vito-
riana com corpos limpos e brancos e roupas limpas e brancas derivava
não só da exploração desenfreada da economia imperial, mas também
dos domínios do ritual e do fetiche.
O sabão não floresceu quando a efervescência imperial estava no
..{ pico. Ele surgiu comercialmente numa era de crise iminente e calamida-
de social, servindo para preservar, através do ritual fetichista, as frontei-

.. 11. Apud Diana e Gcoffrcy H indlcy, Adwrtising in J/'i(forian England, 1837-1901 (L ondres:
v\':1yland, 1972), p. 117.
~.: 12. Mikc D cmpsey (org.), B11bbl,s: Early Ad'IJ(rtising ArrfrtJm P,ars Lrd. (Londres: Fontana,

i 1978).
IJ. Laurcl Bradlcy, "From Eden to Empirc: John Evcrett Millais' Chcrry Ripe", Vi(forian
Srr,dits 34, • {t99,), pp, 179· 203. Ver também .l'vlid,~cl Dcmpscy, Ba/J/Jl,s...

313
Couro impaial

ras incertas de identidade de classe, gênero e raça numa ordem social


que se sentia ameaçada pelos fétidos eflúvios dos cortiços, a fumaça das
indústrias, a agitação social, sublevação econômica, competição imperial
e resistência anticolonial. O sabão prometia a salvação e a regeneração
espiritual através do consumo de mercadorias, um regime de higiene
doméstica que poderia restaurar a potência ameaçada do corpo poütico
e da raça imperiais.

A CAMPANHA DA PEARS

Em 1789, Andrew Pears, filho de fazendeiro, deixou sua aldeia de Meva-


gissey, em Cornish, para abrir uma barbearia em Londres, seguindo a
tendência de migração demográfica do campo para a cidade e o movi-
mento econômico da terra para o comércio. Em sua loja, Pears fazia e
vendia os pós, cremes e dentifrícios usados pelos ricos para assegurar a
pureza alabastrina de sua aparência. Para a elite, uma pele queimada de
sol por trabalho manual era o estigma visível não só da classe obrigada a
trabalhar à intempérie para ganhar a vida, mas também de raças remotas
marcadas pelo desfavor divino. Desde o início, o sabão tomou forma
como tecnologia de purificação social, inextricavelmente ligado à semió-
tica do racismo imperial e enegrecimento da classe.
Em 1838, Andrew Pears se aposentou e deixou a firma nas mãos de
seu neto, Francis. A seu tempo, a filha de Francis, Mary, casou-se com
Thomas J. Barratt,'quc se tornou sócio de Francis e assumiu o jogo de
modelar mn mercado de classe média para o sabonete transparente.
Barratt revolucionou a Pears planejando uma série de brilhantes cam-
panhas de propaganda. Inaugurando uma nova era da propaganda, ele
ganhou fama duradoura, na iconografia familiar da descendência mas-
culina, como "pai da propaganda". O sabão encontrou, assim, seu destino
industrial pela mediação do parentesco doméstico e a preocupação pe-
culiarmente vitoriana com o patrimônio.
Através de uma série de expedientes e inovações que situaram a Pears
no centro da cultur(I mercantil britânica que surgia, Barratt mostrou um
perfoito entendimento do fetichismo que estrutura toda propaganda.

314
O implrio do sabo,uu - 'R.gdsmo mer,antil, propaganda imperial

Importando um quarto de milhão de moedas de cêntimo francesas,


Barratt as fez estampar com o nome Pears e as pôs em circulação -
gesto que ligava maravilhosamente o valor de troca com o nome ela
marca corporativa. O expediente funcionou admiravelmente, trazendo
muita publicidade para o Pears e tal alarde público que um Ato do Par-
lamento foi passado declarando ilegais todas as moedas estrangeiras. As
fronteiras da moeda nacional se fechavam em torno da doméstica barra
de sabão.
Georg Lukács observa que a mercadoria está no limiar entre cultura
e comércio, confundindo as fronteiras supostamente sacrossantas entre
estética e economia, dinheiro e arte. Em meados dos anos 1880, Barratt
projetou urna peça de impressionante transgressão cultural que exem-
plifica o insight de Lukács e fixou a fama do Pears. Barratt comprou o
. quadro Bubbles [Bolhas] (originalmente intitulado A Child's 1'Vorld [O
t mundo de uma criança]), de Sir John Everett Millais, e inseriu nele uma
l~ ),
barra de sabão gravada com a totêmica palavra Pears. De um só golpe,
ele transformou a obra de arte do pintor mais conhecido da Grã-Breta-
1
, 1 ' nha numa mercadoria produzida cm massa associada na visão do pú-
{
blico ao Pear/- 4 • Ao mesmo tempo, reproduzindo cm massa o quadro
1
.· corno cartaz, Barratt tirou a arte do domínio da propriedade privada da
t! õi.
elite e a levou para o domínio de massas do espetáculo mercantil'5•
.. Na propaganda, o eixo da posse se desloca para o eixo do espetáculo.
l • A principal contribuição da propaganda para a cultura da modernidade
1
.l .
1
foi a descoberta de que, manipulando o espaço semiótico cm torno da
mercadoria,o inconsciente de um espaço público também podia ser ma-

l{
l ~
nipulado. A grande inovação de .liarratt foi investir enormes somas de
dinheiro na criação de um espaço estético cm torno de uma mercadoria.
O desenvolvimento da tecnologia do cartaz e da impressão tornou pos-

l
14. Barratt gastou 2.200 libras no quadro e 30 mil libras na produção cm massa de milhões
de reproduções individuais do quadro. Nos anos 1880, Pean gastava entre 300 mil e 400
mil libras só cm propaganda.
15. Furioso com a poluição do sacrossanto reino da arte pela economia, o mundo da arte

..
·1 I~·
~
atacou lVlillais (publicamente e não cm pri\-ado) por traficar no sórdido mundo do co-
mércio.
,
..
315
Couro imp~rial

sível a reprodução en1 massa de tal espaço cm torno da imagem de uma


mercadoria16 •
Na propaganda, aquilo que é rejeitado pela racionalidade industrial
(ambivalência, sensualidade, azar, causalidade imprevisível, tempo múl-
tiplo) é projetado no espaço da imagem co1no repositório do proibido.
A propaganda se funda cm fluxos subterrâneos de desejo e tabu, 1nani- -~
pulando o investimento do dinheiro excedente. A distinção da Pears,

rapidament~ emulada por várias outras fabricantes de sabão, inclusive
Moukey BraT1d e Sunlight, e por incuntávci:; anunciantes, era inve:;tir o
espaço estético em torno da mercadoria doméstica do culto comercial
·:! :
do império. ;
I
O IMPÉRIO DO LAR
A racialização da domesticidade
..
t
• 1

O sabão

<2!iatro fetiches aparecem ritualmente na propaganda do sabão: o pró-


prio sabão, roupas brancas (especialmente aventais), espelhos e macacos.
Um anúncio típico do Pears mostra uma criança negra e uma branca
juntas no banheiro (Figura 5.1). O banheiro vitoriano é o santuário mais
íntimo da higiene doméstica e, por extensão, o templo privado da rege-
neração pública. O sacramento do sabão oferece uma alegoria de refor-
ma, pela qual a purificação do corpo doméstico vira uma metáfora da
regeneração do corpo político. Nesse anúncio particular, o menino negro
e:;tá :;entado no banho, com os olhos esbugalhados para a água como
se fosse um elemento estranho. O menino branco, com um avental
branco - fetiche familiar de pureza doméstica - se inclina benevolen-
te sobre seu irmão "inferior", abençoando-o com o precioso talismã do
progresso racial. O mágico fetiche do sabão promete que a mercadoria
pode regenerar a Família do Homem lavando da pele o estigma da de-
generação racial e de classe.

16. Ver Jennifc:r Wicke,.lldwrtising Fiaion ...• p. 70.

316
O império do saóonue - 'R.gcismo mer,antil t propaganda imperial

,,,.
:;•
..,..
~

Figura 5.r - Ra;a t o wlto da domesticidade.

A propaganda de sabão oferece uma alegoria do progresso imperial


como espetáculo. Nesse anúncio, o lugar imperial que chamo de tempo
·,
panóptico (o progresso consumido como espetáculo a partir de um
ponto de invisibilidade privilegiada) entra no domínio da mercadoria.
No segundo quadro, logo abaixo, o menino negro saiu do banho e o
' menino branco mostra-lhe seu olhar surpreendido no espelho. O corpo
r.' do menino negro se tornou magicamente branco, mas seu rosto -
para os vitorianos o lugar da individualidade e da autoconsciência ra-
'.'
•,
cional - continua teimosamente negro. O 1ncnino branco aparece,
assim, como agente da história e o herdeiro masculino do progresso,
mostrando o reflexo de seu irmão "inferior" no espelho europeu da au-
toconsciência. No espelho vitoriano, o menino negro testemunha seu
destino predeterminado de metamorfose imperial, mas continua um
.. híbrido racial passivo, parte branco, parte negro, levado à beira da ci-
vilização pelos fetiches mercantis gêmeos do sabão e do espelho. O
anúncio exibe um elemento crucial da cultura mercantil vitoriana
tardia: a transformação metafórica do tempo imperial em esparo de

317
Couro imperial

consumo - o progresso imperial consumido num relance como espe-


táculo doméstico.

O macaco

A metamorfose do tempo imperial em espaço doméstico é captada da


maneira mais vívida pela campanha de propaganda do sabão Monkey
Brand. Durante os anos 1880, a paisagem urbana da Grã-Bretanha vito-
riana estava abarrotada da imagem do macaco fetiche desse sabão. O
macaco com sua frigideira e uma barra de sabão estava pendurado em
toda p arte, cm tapumes e ônibus, cm muros e vitrines, promovendo o "I

sabão que prometia eliminar magicamente o trabalho doméstico: "Sem


pó, sem sujeira, sem trabalho". O sabão Monkey Brand prometia não só
regenerar a raça, mas também apagar magicamente o espetáculo impró-
prio d o trabalho manual das mulheres.

Figura 5.2 - O l!SJ>aro ana.rõnico: limiar dl! domutiddade e mercado.

318
O implrio do sabonue - 'R.gâsmo mercantil e propaganda impaial

Num anúncio exemplar, o macaco fetiche do sabão senta-se de per-


nas cruzadas na soleira de uma porta, limiar entre a domesticidade pri-
vada e o comércio público - a encarnação do espaço anacrônico (J:"'i-
gura 5.2). Vestido como um ajudante de realejo num esfarrapado terno,
camisa branca e gravata, mas com improváveis mãos e pés humanos, o
macaco estende uma frigideira para receber a esmola dos passantes. No
capacho à sua frente, aparece uma grande barra de sabão, acompanhada
de um placar onde se lê: ".lvleu próprio trabalho". Sob todos os aspectos,
o macaco é um híbrido: não inteiramente macaco, não inteiramente
humano; parte pedinte, parte cavalheiro; parte artista, parte publicitá-
rio. A criatura habita a fronteira ambivalente entre selva e cidade, pri-
vado e público, o doméstico e o comercial, e oferece como seu trabalho
manual um fetiche que é tanto arte quanto mercadoria.
Os macacos habitam o discurso ocidental nos extremos do limite
social, marcando o lugar de uma contradição do valor social. Como ar-
j gumentou Donna Haraway: "o corpo primata, como parte do corpo da
''( natureza, pode ser lido como um mapa do poder"1i. A primatologia,
..
: í
1
j
insiste Haraway, é um discurso ocidental [ ...] uma ordem política que
! funciona pela negociação dos limites alcançados pelo ordenamento
'l
.l das diferenças"18 • Na iconografia vitoriana, a recorrência ritual da figura
' i' do macaco é eloquente de uma crise no valor, donde a ansiedade com
.
1
i' ...... !J.,
't
a possível ruptura das fronteiras. O corpo primata se tornou um espaço
simbólico de reordenamento e policiamento dos limites entre os hu-
j
manos e a natureza, mulheres e homens, famüia e política, império e
metrópole.
O imperialismo símio também se ocupa do problema da represenca-
ção da mudança social. Projetando a história (e não o destino, ou a von-
tade de Deus) sobre o teatro da natureza, a primatologia fez da natureza
o álibi da violência política e pôs nas mãos da "ciência racional" a auto-
1 I

1
l'
; 17. Donna Haraway, Prima/e Yisions: Gmder, Ra,e and Nature in the World ifModem Sâen,e
(Londres: Routledgc, 1989), p. 10.
,s. Ibidem.
Couro imperial

ridade para sancionar e legitimar a mudança social. Aqui, "a cena das
origens", argumenta Haraway, "não é o berço da civilização, mas o berço
da cultura [ ...] a origem mesma do social, especialmente no ícone carre-
gado de sentido da familia"'9 .A primatologia surge como um teatro para
negociar os perigosos limites entre a família (enquanto natural e femi-
nina) e o poder (enquanto político e masculino).
O aparecimento de macacos na propaganda de sabão assinala um
dilema: como representar a domesticidade sem representar mulheres no tra-
balho. A casa vitoriana de classe média se estruturava em torno da con-
tradição fundamental entre o trabalho doméstico pago e o não pago das
mulheres. Como as mulheres eram afastadas do trabalho pago em mi-
nas, fábricas, lojas e negócios para o trabalho não pago no lar, o trabalho
doméstico se tornou economicamente subestimado, e a definição de
classe média sobre a feminil.idade figurava a mulher "apropriada" como
a que não trabalhava por ganhos. Ao mesmo tempo, um cordão de iso-
lamento de degeneração racial era lançado em torno daquelas mulheres
que trabalhavam pública e visivelmente por dinheiro. O que não podia
ser incorporado na formação industrial (o valor econômico doméstico
das mulheres) era relegado para o domínio inventado do primitivo, e
assim, disciplinado e contido.
Os macacos, em particular, eram utilizados para legitimar os limites
, ' .
sociais co1no éditos da natureza. Fetiches divididos entre a natureza e a
cultura, os macacos eram vistos como aliados das classes perigosas: os
pobres andarilhos: os famintos irlandeses, os judeus, as prostitutas, os
negros empobrecidos, a classe trabalhadora, os criminosos, os insanos, as
mineiras e empregadas domésticas, todos "simiescos", que eram vistos
coletivamente como habitando o limiar da degeneração racial. O!iando
Charles K.ingsley visitou a Irlanda, por exemplo, lamentou: "Estou as-
sombrado pelos chimpanzés que vi ao longo de centenas de milhas de
um campo horrível [ ...] Mas ver chimpanzés brancos é terrível; se fos-

t? Id.-m, op. cit., pp. 10-1.

320
O império do saóoneu - 'R.g<ismo mer,a11til e propaganda imperial

sem negros, não se sentiria tanto, mas suas peles, exceto onde queimadas
pela exposição, eram tão brancas como as nossas":º.
No anúncio da Monkey Brand, a assinatura do macaco no trabalho
("Meu próprio trabalho") assinala uma dupla negação. O sabão é mas-
culinizado, figurado como produto masculino, enquanto o trabalho (cm
sua maioria feminino) dos trabalhadores nas enormes fábricas insalu-
bres é negado. Ao mes1no tempo, o trabalho de transformação social na
limpeza e esfrega de pias, panelas e pratos, de pisos e corredores do es-
paço do1néstico vitoriano desaparece - redefinido con10 espaço ana-
crônico, primitivo e bestial. As criadas desaparecem e no lugar delas
aparece um híbrido masculino fantasma. Assim, a domesticidade -
vista como a esfera mais afastada do mercado e do tumulto masculino
do império - toma forma em torno das ideias inventadas do primitivo
e do fetiche da mercadoria.
Na cultura vitoriana, o macaco era um ícone da metamorfose, servin-
do perfeitamente ao papel liminar do sabão em mediar as tran:;forma··
ções da natureza (sujeira, lixo e desordem) em cultura (Limpeza. raciona-
lidade e indústria). Como todos os fetiches, o macaco é uma imagem
' contraditória, encarnando a esperança do progresso imperial pelo co-
'
mércio e ao mesmo tempo fazendo visíveis os profundos temores vi-
,.
I torianos em relação à militância urbana e à desordem colonial. O sabão-
macaco tornou-se emblema do progresso industrial e da evolução
imperial, encarnando a dupla promessa de que a natureza podia ser
redimida pelo capital consumidor e que o capital consumidor podia
ser garantido pela lei natural. Ao mesmo tempo, porém, o sabão-macaco
era eloquente do grau em que o fetichismo estrutura a racionalidade
industrial.

20 Charles Kingsley, carta à sua mulher, 4 de julho, 1860, in Charlu Kingsley: His Letters and
Memories ofHis Lift, Francis E. Kingslcy (org.) (Londres: Henry S. King & Co., 1877), p.
107. Ver também Richard Keamey (org.), 'lhe lrish. Mind (Dublin: \-Volfhound Press,
1985); L. P. Curtis Jr., Anglo-Saxom and Ct:!ts: A Study ofAnti-lrish Prejudiu in Vfrtorian
England {Bridgcport: Confcrcnce on British Srudics of Univcrsity of Bridgcport, 1968);
and Seamus Dcanc, "Civilians and Barbarians", lrelandr Fidd Day (Londres: Hutchin·
son, 1985), pp. 33-42.

321
Couro imperial

O espelho

Na maioria dos anúncios da Monkey Brand, o macaco segura uma frigi-


deira, que é também um espelho. Num anúncio semelhante do sabão
Broolu, uma beleza feminina clássica está de pé com os brancos braços à
mostra e vestida de branco, sua pele e roupas como epítomes do valor de
exibição da pureza sexual e do lazer doméstico, enquanto da cornucópia
que ela segura flui um grotesco eflúvio de anjinhos fantasmas. Cada fe-
tiche híbrido encarna a dupla imagem vitoriana da mulher como "anjo .
)

na sala, macaca no quarto", bem como da iconografia racial do progresso


evolutivo de macaco a anjo. O tempo histórico, novamente, é captado
como espetáculo doméstico, misteriosamente refletido no fetiche da fri-
gideira/espelho.
Nesse anúncio, o sabão_Brooke oferece uma alquimia do progresso
econômico, prometendo fazer "cobre parecer ouro". Ao mesmo tempo, a
ideia iluminista de um tempo linear e racional que leva à perfeição an-
gélica encontra uma antítese no outro tempo do trabalho doméstico,
regido pelos mistérios da sujeira, da desordem e do tempo não progres-
sivo do fetiche. Irrompendo nas margens da moldura racional, o anúncio
exibe as consequências irracionais da ideia de progresso. O espelho/fri-
gideira, como todos os fetiches, expressa visivelmente uma crise no valor,
mas não pode resolvê-la. Pode apenas encarnar a contradição, congelada
como espetáculo mercantil, atraindo o espectador cada vez mais para o
consumismo.
Os espelhos brilham e cintilam na propaganda de sabão, como cm
geral na cultura do kitsch imperial. Nos lares da classe média vitoriana,
as criadas lustravam e poliam cada superfície de metal e de madeira até
o brilho de um espelho. Trincos, suportes de lâmpadas, corrimãos, me-
sas e cadeiras, espelhos e relógios, facas e garfos, chaleiras e panelas, sa-
patos e botas, tudo era polido até brilhar, refletindo em sua superfície
outros objetos-espelho, uma infinidade de cristalinos espelhos dentro de
espelhos, até que o interior da casa fosse todo composto de superfícies
brilhantes, um labirinto de reflexos. O espelho virou a epítome do feti-
chismo da mercadoria: apagando tanto os signos elo trabalho doméstico

322
O implrio do sabomu - '"R.gdsmo mercantil e propaganda imperial

quanto as origens industriais das mercadorias domésticas. No mundo


doméstico dos espelhos, os objetos se multiplicam sem intervenção hu-
mana aparente numa promíscua economia de autogeração.
Por que a atenção à superfície e ao reflexo? O polimento era dedica-
do, e1n parte, ao policiamento dos limites entre o privado e o público,
removendo qualquer traço do trabalho, substituindo a evidência desor-
denada das trabalhadoras pela substituição da superfície como verniz, o
..l espetáculo da mercadoria con10 superfície, a casa arrumada como teatro
'
- : ~r
de limpas superfícies para exibição de mercadorias. O espelho/ merca-
l ,
doria devolve o valor do objeto como exibição, espetáculo a ser consu-
mido, admirado e exposto por sua capacidade de encarnar um duplo
valor: o valor de mercado do homem e o status de exibição da mulher. A
casa existia para exibir a feminilidade como portadora apenas de valor
de exibição, além do mercado e, portanto, por decreto natural, além do
t
poder político.
Um anúncio do creme para móveis Stephensan mostra uma criada
. ,.
impecável, de quatro, sorrindo de um chão tão limpo que espelha seu
reflexo. O creme garante "não exibir marcas de dedos". Um sabão supe-
rior não deve deixar manchas denunciadoras, nenhuma impressão de
trabalho feminino. Enquanto as criadas vitorianas perdiam a indivi-
dualidade nos nomes genéricos que seus empregadores lhes impunham,
também o sabão apagava as marcas do trabalho das mulheres na história
da classe média.

A DOMESTICAÇÃO DO IMPÉRIO

Por volta do fim do século, um fluxo de quinquilharias invadira as casas


vitorianas. Heróis coloniais e cenas coloniais eram enaltecidos numa
série de mercadorias domésticas, de caixas de leite a garrafas de molho,
de latas de tabaco a garrafas de uísque, de biscoitos variados a pasta de
dentes, de caixas de balas a fermento em pó11 • Fetiches nacionais tradi-

21 Durante a Guerra dos Bôeres, as forças britânicas foram vistas como tendo sido valente·
,ncntc rcfor-.adas pela farinha de milho Johnston, pelo uísque Pattison e pelo chocol:ttc

32 3
Couro imperial

cionais como a bandeira, Britannia,John Buli e o agressivo leão eram


dispostos numa celebração reformada do espetáculo imperial (Figu-
ras 5.3-5.5). O império era visto como defendido por lronclad Porpoi-
se Bootlaccs [Cordões de sapato do boto] e sabão Sons of the Empire
[Filhos do império], enquanto Henry Morton Stanley acudiu ao res-
gate do Emin de Pasha abarrotado de enormes caixas de biscoitos
Huntley and Palmers.
A propaganda vitoriana tardia apresentava uma vista da África con-
quistada pelas mercadorias domésticas 21 • Na bruxuleante lanterna má-
gica do desejo imperial, chás, biscoitos, tabaco, latas de cacau e, acima de

Figura 5.3 - Britannia e a domesticidade. Figura 5.4 - Impmalismo nacional.

ao leite Fryc. Ver Robert Opie, Trading on tlu British lmage (Middlesex: Penguin, 1985),
para uma excelente colcçio de imagens de propaganda.
22 Num capitulo brilhante, Richards explora como a convicção imperial do explorador e
escritor Henry Mocton Stanley, de que ele tinha a missão de civilizar os africanos ensi-
nando-lhes o valor das mercadorias, *revela o grande papel que os imperialistas atribuíam
à mercadoria na propulsão e justificação da luta pela África". Richards, 1lu Commodity
Cultun... , p. UJ,

32 4
O império do sabontlt - 'Rgcismo mtr<antil t propaganda imptrial

f'.
t
.
1'
I'•
t,~,.
t;,.,
1,.
e:. Figura 5.5 - Fetichismo nacional
f.

rudo, sabão, vão à praia em margens distantes, marcham através das


selvas, subjugam levantes, restauram a ordem e escrevem a inevitável
lenda do progresso comercial na paisagem colonial. Num anúncio dos
biscoitos 1-/untley and Palmers, um grupo de homens coloniais senta no
meio de uma selva de engradados de biscoitos, tomando chá (Figura
5.6). Em direção a eles avança, hierática e aparentemente infindável,
uma procissão de elefantes carregados com mais biscoitos e coloniais,
,,. trazendo a hora do chá para o coração da selva. O criado nesse anúncio,
"
(
como na maioria dos outros, é um homem. Duas coisas acontecem cm
.. tais imagens: as mulheres desaparecem do império e os colonizados são
feminizados por sua associação com o serviço doméstico.
,' .
Imagens liminares de oceanos, praias e litorais são repetidas cm
'.. anúncios de limpeza da época. Um anúncio exemplar do alvejante Chlo-
rinol Soda mostra três meninos numa caixa de soda velejando nurn oce-
ano fantasma banhado pela radiação da alvorada imperial (Figura 5.7).
Numa cena nas cores vermelha, azul e branca da Union Jadi [bandeira
inglesa], dois meninos negros orgulhosamente seguram no alto suas cai-
xas de Chlorinol. Um terceiro menino, o híbrido racial familiar dos
anúncios de limpeza, presumivelmente já aplicou o alvejante, pois sua
pele aparece cm branco fantasmal. Na vela vermelha que repete o ver-

1
f
' 325
Couro impaial

melho da caixa de alvejante lê-se a legenda da pretensa redenção comer-


cial dos povos negros na arena do império: "Usaremos o Chlorinol e se-
remos como o negro branco".

Figura 5.6 - O chá chega à selva.

Figura 5.7- Ttmpo panóptico:progrtsso racial num rdanu.

O anúncio exemplifica vividamente a lição de Marx segundo a qual


a mística do fetiche da mercadoria reside não em seu valor de uso, mas
em seu valor de troca e em sua potência como signo: "Na medida em
O impâio do sabon,u - 'l(ecismo m,rrantil t propaganda impuial

que [a mercadoria] é um valor em uso, não há nada misterioso em rela-


ção a ela". Para os três meninos nus, o alvejante de roupas é menos que
útil. Em lugar disso, o agente branqueador promete uma alquimia de
elevação racial pelo contato histórico com a cultura mercantil. O poder
transformador da missão civilizadora está estampado na vela da caixa-
bote como caráter objetivo da própria mercadoria.
Mais que um mero símbolo do progresso imperial, a mercadoria do-
méstica se torna agente da própria história. A mercadoria, abstraída do
contexto social e do trabalho humano, faz o trabalho civilizador do im-
pério, enquanto a mudança radical é figurada como mágica, sem proces-
so ou atuação social. Donde a proliferação de anúncios mostrando má-
gica (Figura 5.8). De maneira semelhante, anúncios de limpeza, como o
do Chlorinol, prenunciam o "antes e depois" dos anúncios de beleza do
século XX, gênero crucial dirigido amplamente às mulheres, cm que o
poder invocador do produto para a alquimia da mudança é tudo o que
reside entre o "antes e depois" temporal da transformação corporal das
mulheres.


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Figura 5.8-A mdgica mer,antil e o desapar"imento do trabalho ftmin ino.

32 7
(ouro impaial

O anúncio do Ch!orinol expõe uma divisão do trabalho por raça e


gênero. O progresso imperial de criança negra a "negro branco" é con-
sumido como espetáculo mercantil - como tempo panóptico. O satis-
feito e híbrido "negro branco" segura literalmente o leme da história e
direciona a mudança social, enquanto a alvorada da civilização banha
seu ccnho iluminado. As crianças negras têm valor de exibição si1nples-
mcnte como consumidores potenciais da mercadoria, presentes apenas
para manter a promessa do comércio capitalista e representar quão lon-
ge evoluiu o 111cuino branco - na iconografia do racismo vitoriano, a
condição da "selvageria" é idêntica à condição da infância. Como as mu-
lheres brancas, os africanos (tanto homens como mulheres) são figura-
dos não como agentes históricos, mas como molduras para a mercado-
ria, valorizados só para exibição. As trabalhadoras, tanto negras como
brancas, que gastaram tanta energia para alvejar os lençóis, camisas, ba-
bados, aventais, punhos e colarinhos das roupas imperiais, não aparecem
nunca. É importante notar que, na propaganda vitoriana, as mulheres
negras são raramente apresentadas como consumidoras de mercadorias,
pois, no saber imperial, elas estão muito atrás dos homens para serem
agentes da história. A domesticidade imperial, portanto, é uma domes- ,;
ticidade sem mulheres.
No anúncio do Chlorinol, a criação de valor social pelas mulheres
através do trabalho doméstico é deslocada para a mercadoria como po-
der próprio desta, inscrito cm modo de fetiche nos corpos dos meninos
como mctamorfóºse· mágica da carne. Ao mesmo tempo, a subjugação
militar, a coerção cultural e o banditismo econômico são transformados
cm processos domésticos benignos, tão naturais e saudáveis como o ato
de lavar. As manchas do passado desagradavelmente complexo e tenaz
da África e a inconveniência de valores econômicos e culturais alterna-
tivos são lavadas como a sujeira (Figura 5.7).
Incapazes de por si mesmos engendrar a mudança real, os homens
africanos figuram apenas como "mímicos", tomando emprestada a ex-
pressão melancólica de V. S: Naipaul, destinados simplesmente a maca-
quear a épica marcha branca do progresso cm direção ao autoconheci-
mento. Privados dos brancos trajes da divindade imperial, os meninos
.,
O implrio do saho,ute - w.ecismo mtr(antil t propaganda imptria/

do Chlorinol parecem tomar o fetiche literalmente, contentes em alvejar


suas peles. No entanto, esses anúncios revelam que, longe de ser uma
propensão africana, a fé no fetichismo era uma fé fundamental para o
pró?rio capitalismo.

O MITO DO PRIMEIRO CONTATO

Na virada do século, os anúncios de sabão encarnavam vividamente a


esperança de que a mercadoria, por si só, independentemente de seu
valor de uso, poderia converter outras culturas à "civilização". Os anún-
cios de sabão também encarnavam o que pode ser chamado de o mito do
primt!iro contato: a esperança de capturar, como espetáculo, o momento
puro do contato original fixado para sempre na superficie atemporal da
imagem. Em outro anúncio do Pears, um homem negro está sozinho
numa praia, examinando uma barra de sabão que pegou de um engrada-
do trazido de um naufrágio (Figura 5.9). O reclame anuncia nada menos
que "O nascimento da civili1.ação". A civilização nasce, implica n ima-
gem, no momento do primeiro contato com a mercadoria ocidental.
Simplesmente por tocar o objeto mágico, o homem africano é inspirado
pela história. Tem lugar uma metamorfose épica, quando o homem ca-
çador-coletor (o homem anacrônico) evolui instantaneamente para o
homem consumidor. Ao mesmo tempo, o objeto mágico produz uma
transformaç ão de gênero, pois o consumo do sabão doméstico é raciali-
zado como um ritual masculino de nascimento, com a mercadoria em
.
... forma de ovo como fértil talismã da mudança. Como as mulheres não

podem ser reconhecidas como agentes da história, é necessário que um
homem, e não uma mulher, seja o beneficiário histórico da coisa mágica,
} e que o nascimento do homem ocorra na praia e não no lar13•

23. Como observa Richards: "Cem anos antes, o na,io ao largo tcr· s:-ia preparado para es-
cravizar fisicamente o africano como objeto de troca; aqui, o objeto é incorpor:1-lo à ór-
bita da troca. Nos dois casos, esse momento liminar postula que o capitalismo depende
do mu ndo não capitalista, pois a superprodução endêmica do sistema capitalista só pode
continuar mandando mercadorias para áreas li minares, onde, p resumivelmente, seu v:uor
1
1, nio ser:i imediatamente :lpreciado". lochards, 77,, Commodity Culrurt.. . , p. 140.
,•·

'
32 9
Couro imptrial

Figura 5.9 - O mito do priwuiro contato.

Seguindo a iconografia racista da degeneração de gênero dos ho-


mens africanos, o homem é sutilmente fcminizado por seu papel como
exibição histórica. Sua vistosa pluma representa o que os vitorianos gos-
tavam de acreditar que eram as predileções fetichistas, femininas e de
gosto duvidoso dos homens africanos para decorar seus corpos. Thomas
Carlyle, em sua longa cogitação sobre as roupas, Sartor Resartus, observa,
por exemplo: "O primeiro desejo espiritual de um homem bárbaro é a
Decoração, como de fato ainda vemos entre as classes bárbaras em na-
ções civilizadas"••. As feministas exploraram como, na iconografia da
modernidade, os corpos das mulheres são exibidos para consumo visual,
mas pouco se disse sobre como, na iconografia imperial, os homens ne-
gros aparecem como espetáculos de exibição de mercadorias. Se, nas

24. Thomas Carlylc, Sarlor Resartus, in 1lu IVorh of1homas Carlyle (Londres: Chapman and
Hall, 1896-1899, vol. l), p. 30.

33º
O império do saóonrtt - 'R,ecismo mtr<antil, propaganda imperial

cenas situadas no lar vitoriano, as criadas são racializadas e retratadas


como molduras para exibição da mercadoria, em cenas de propaganda
situadas nas colônias, os homens africanos são Jeminizados e retratados
como molduras para a exibição das mercadorias. As mulheres africanas,
cm contraste, são tornadas virtualmente invisíveis. Suposições essencia-
listas sobre um "olhar masculino" universal debcam de lado muitas com-
plexidades históricas importantes.
Marx observou como, sob o capitalismo "o valor de troca de uma
mercadoria assuine uma existência independente"'5• Por volta do final
do século XIX, a própria mercadoria desaparece de muitos anúncios, e a
~
• assinatura corporativa, como encarnação do puro valor de troca no capi-
talismo monopolista, acha uma existência independente. Outro anúncio
do Pears mostra um grupo de dervbces sudaneses desgrenhados que se
• espantam diante de uma legenda cavada em branco na face da monta-
t•
• nha: o SABÃO PEARS É o MELHOR (Figura 5.10). A importância do anún-
! cio, como nota Richards, é sua representação da mercadoria como meio
1 mágico capaz de reforçar e ampliar o poder britânico no mundo colo-
!
t nial, mesmo sem o entendimento racional dos mesmerizados sudane-
1 ses,6. O que o anúncio revela propriamente é a própria fé fetichista dos
1• coloniais na magia das marcas para forjar o poder causal do império.
! ~ Num anúncio similar, as letras BOVRIL marcham corajosamente sobre
t1 um mapa colonial da África do Sul - o progresso imperial consumido
como espetáculo, como tempo panóptico (Figura 5.11). Numa ideia pro-
i1 mocional inspirada, a palavra foi reconhecida como designando os avan-
ços militares de Lorde Roberts através do país, reunindo, co1no se deter-
1
minado pela natureza, as lições simultâneas da dominação colonial e do
progresso da mercadoria. Nesse anúncio, o mapa colonial entra explici-
, tamente no reino do espetáculo mercantil.

25. l'vlarx, "Theories of Sucplus Value", apud G. A. Cohen, Karl 1\ltarx'; 1heory ofHistory: A
Diffrrenu (Princcton: Princcton Univcrsity Press, 1978), pp. 124-5.
26. Rkhards, 7he Cgmmgdity C:,/ture... , PP· 122-;.

33 1
Couro imperial

Figura 5.ro -A marca conquistadora.

THE EVENT THE YEAR.

.- How Lord Roberts wrote BOVRIL.


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n,.;. •••~••,- e. • . 1 e-• tt - _... ~ J ~ • .; •...:.,, •t Deffil,. . ...." " • •lh--'! ,,_... •
•• f • -, / lh"-'4-4 t.&.. M•I. Muu• '--"-tWC..
w._,.._. ~ 1&.e ~ ; . . .. 11.., 11-u~.. tL.t P.t_ , :. U.. s;.11 ......._ 11.. C... i. d,. ltk~-. ., ,_ .,._ ..
7.t ;,. lwU t...ld, _ . ••~lt •• ....__U,.uJ • i...,.... L,J.

Figura 5.rr - O progresso imperial como cspctd,ulo mercantil.

A poética da limpeza é uma poética da disciplina social. Rituais de


purificação preparam o corpo como campo de sentido, organizando flu-
xos de valor através do eu e da comunidade e demarcando limites entre

332
O implrio do saóonete - 'R.gdsmo mer,antil e propaga11da imperial

uma e outra comunidade. Rituais de purificação, todavia, podem tam-


bém ser regimes de violência e contenção. Povos que têm o poder de
invalidar os rituais de limites de outros povos demonstram, assim, a ca-
pacidade de impor violentamente sua cultura aos outros. Viajantes colo-
niais, comerciantes, missionários e burocratas censuravam constante-
mente a suposta ausência, na cultura africana, de uma "vida doméstica
apropriada", particularmente a suposta falta de higiene dos africanos 27•
l\1as a inscrição dos africanos como sujos e não domesticados, longe de
ser uma descrição acurada das culturas africanas, servia para legitimar a
violenta imposição dos valores culturais e econômicos dos imperialistas,
com a intenção de purificar e, assim, subjugar o sujo corpo africano e
impor-lhe os valores culturais e de mercado mais úteis à economia mer-
cantil imperial. O mito das mercadorias imperiais arribando às praias
nativas, para serem aí bem-vindas por estupefatos nativos, apaga da me-
mória a longa e intrincada história da troca comercial dos europeus com
os africanos e a longa e intrincada história da resistência africana à co-
lonização e à Europa. O ritual doméstico se tornou uma tecnologia da
disciplina e da expropriação.
O ponto fundamental não está simplesmente nas contradições for-
mais que estruturam os fetiches, mas também na questão historicamen-
te mais exigente de como certos grupos têm sucesso, pela coerção ou
hegemonia, em excluir a ambivalência que o fetichismo encarna impon-

27. Mas sabão de óleo de palma fora feito e usado durante século, na África Ocidental e
equatorial. Em Travds in Hfst Afrfra, Mary Kingslcy registra o costume de escavar ba-
nhos profundos na terra, enchendo-os com água ferve me e ervas fragrantcs, com lu.xuo-
sas coberturas de argila úmida. No sul da África, esse sabão não era muito usado, mas
lamas, scivas e cascas de árvores eram processadas como cosméticos, e arbustos conheci·
dos como "moitas de sabão" eram usados na limp~a. Mary H. Kingslcy, Travds in West
·' AJrfra (Londres: MacmiUan, 1899). Atividades dos homens tswanas como caça e guerra
,
\ eram elaboradamente preparadas e reguladas pelo tabu. "Em cada caso", como escrevem
Jean e John Comaroff, "os participantes se encontra,-am fora dos limites da aldeia, vesti-
dos e armados para o combate, e eram sujeitos a uma cuidadosa lavagem ritual (go foka
marumo)". Jean e John Comasoff, O/R=e/ation and Reuo/ution: Chrútianity, Co/onia/úm
a,rd Comci;umm in S,uth Afrfra (Chicago: University of Chicago Press, 1991, vol. 1), p.
164. Em geral, as pessoas passav:im cremes, lustravam e poliam seus corpos com uma
variedade de óleos, ocres rosados, gorduras animais e argílu coloridas.

,, 333
Couro impuial

do seu sistema econômico e cultural sobre os outros18 . O imperialismo


cultural não significa que as contradições sejam permanentemente re-
solvidas, nem que não possam ser usadas contra os próprios coloniais.
De qualquer maneira, parece importante reconhecer que o que foi alar-
deado por alguns como a indecidibilidade permanente dos signos cultu-
rais também pode ser violenta e decisivamente rejeitado pela força mili-
tar superior ou pelo domínio hegemônico.

FETICHI SM O NA ZONA CO NT ESTADA

Escritores iluministas e vitorianos frequentemente imaginavam o en-


contro colonial como a jornada da mente (masculina) europeia racional
através de um espaço liminar (oceano, selva ou deserto) povoado por
híbridos (sereias e monstros) para uma zona pré-histórica de dervixes, I

canibais e adoradores do fetiche. Robinson Crusoé, em uma das primei-


ras expressões novclísticas da ideia, situa as terras cristãs longe daquelas
cujos povos "se prostram diante de troncos e pedras, adorando monstros,
elefantes, animais de formas horríveis e estátuas, ou imagens de mons-
tros"19. A mente iluminista teria transcendido a adoração do fetiche e
podia olhar com indulgência aqueles ainda encantados pelos poderes
mágicos de "troncos e pedras". l\llas, como aponta Mitchell, "a magia
mais profunda do fetiche da mercadoria é a negação de que exista qual-
quer magia nela"'º· Não obstante os protestos coloniais, uma fé decidi-

28. Pan uma excelente c.xploração da hegemonia colonial no Sul d:i Africa, ver Jean e John
Comaroff, ~H omc-:-.ifade H egcmony: Modemity, Domcsticity and Colonialism in South
Africa~, in Karen H ansen (org.), Encounlcn W ith DomcJlicity (Ncw Brunswick: Rutgers
Univcrsity Press, 1992), PP· 37-74.
29. Daniel Dcfoe, 71,, Farther Ad--.xnf'Jres ofR ohinnn Crus«, in 7hc Shal:cspcarc Hcad Edition o/
thc Nowls and Stlmd Writings ofDanid Dif«. (O xford: Basil 81:ickwell, 1927-1928, v::,l, 3),
p.177.
30. Para uma excelente análise do fetichismo da mcrc:ldoria, ver \.V. J. T. Micchell, Í(onology:
lmagc, Tcxt, Idcology (C hicago: Univcrsity of Chicago Prcss, 1986), p. 193. Ver também
;
\Volfg2ng Frin H 3ug, Critique ofCommodity Atsthrtüs: Appcaranu, Scxuality andAiwr-
tising in C;,pitaliJt Sodtty, trad. Robert Bock (M inncapolis; University of Minnesota
Prcss, 1986). Ver o ensaio bibliogrifico de Catherine Gallagher cm Critidsm 19, 2 (1987),

334
O impirio do sabonlft - ~cismo mucantil e propaganda impuial

damente fetichista nos poderes mágicos da mercadoria estava subjacen-


te a boa parte da missão civilizadora colonial.
Ao contrário do mito do primeiro contato encarnado nos anúncios
vitorianos, os africanos vinham negociando com os europeus havia sé-
culos quando da chegada dos vitorianos britânicos. Intrincadas redes de
··t comércio se espalhavam pela África Ocidental e do Norte, com comple-
.l
! xos assentamentos interculturais e longa história de negociações e tro-
'1
!
cas, esporadicamente interrompidas por violentos conflitos e conquistas.
t Como observou John Barbot, o comerciante e escritor do século XVII, a
·i 1 respeito do comércio na Costa do Ouro: "Os negros da Costa do Ouro,
tendo comerciado com os europeus desde o século XIV, são muito habi-
lidosos sobre a natureza e as qualidades próprias de todos os objetos e
mercadoria ali vendidos"3'. Relatos de viagens no século XVIII revelam,
! ademais, que os navios europeus que faziam comércio com a África
! ,-
eram frequentemente carregados não com mercadorias "úteis", mas com
quinquilharias, bugigangas, contas, espelhos e poções "medicinais"32 • Em
listas de comércio do século XVII aparecem, ao lado do sal, conhaque,
tecidos e ferro, itens como anéis de latão, pérolas falsas, pequenas contas
de vidro, espelhos, pequenos sinos, falsos cristais, conchas, panos bri-
lhantes, botões de vidro, pequenas cornetas, amuletos e braceletes33• Os
coloniais incorriam pesadamente na noção de que, carregando esses na-
vios com ninharias e balangandãs através dos mares, estavam satisfazen-
do os gostos ingênuos e primitivos dos africanos. As listas de tráfego
mercante revelam, porém, que no seu retorno os navios europeus vi-
nham carregados não só de pó de ouro e óleo de palma, mas tambén1 de

pp. 133-42. Sobre o caráter ritual das mercadorias, ver Arjun Appadurai (org.), 71,e Social
Lifa of 1bings: Comm~dities in Cultural Penputive (Cambridge: Cambridge Univcrsity
Press, 1986). Ver também Sut Jhally, 1bt Codts of/ldçertising: Fetishism and the Politi,al
Economy ofí\1,aning in th, Comumer Society (Londres: Roudedge, 1990); e, para a lingua-
l ,'.., ~
gem da mcrcantilização, ver Judith \-Villiamson, Decoding /ldçertiummts: ldeology and
,.;..'l Meaning itt /ldwrtising (Londres: Marian Boyars, 1978).
.,,
·C"..; ••
31. Apud Masy H. IGngsley, Traveis in Wut ///rica, p. 622.
·i 32. Simpson, Fetishism and lmagination. .. , p. 29.
33. "Tradc Goods Used in thc Early Trade with Africa as Givcn by Barbot and Other \1/ritcrs
of thc Scvcntccnth Ccntury", in IGngsley, Trtw,I, in ~,1 Afrita, pp. 6u- 25.

335
Couro imptrial

presas de elefantes, dentes de hipopótamos, penas de avestruz, cera de


abelhas, couros de animais e bolsas de almíscarH. A absoluta mercantili-
zação da humanidade e a genuflexão colonial diante do fetiche do lucro
era revelada da maneira mais grotesca na listagem indiscriminada de
escravos en1 meio às ninharias e bugigangas.
Ao definir as trocas econômicas e crenças rituais de outras culturas
como "irracionais" e "fetichistas", os coloniais tentavam rejeitá-las como
sistemas legítimos. A enorme quantidade de trabalho que entrava no
trnnsporlc <lt: carrt:gamentos de bugigangas para as colônias tinha menos
a ver com a propriedade de tais objetos em relação às culturas africanas
J
do que com a sistemática subestimação desses sistemas diante do capi- 1

talismo mercantil e dos valores de mercado nas metrópoles europeias. !



Evidências também sugerem que os comerciantes europeus, embora
negando vigorosamente seu próprio fetichismo e projetando tais incli- 1
nações "primitivas" sobre as mulheres, africanos e crianças, levavam
muito a sério seus próprios fetiches "racionais"35• Segundo muitos re-
latos, o império parece ter sido muito fortalecido pelo maravilhoso feti-
che do Sal de Fruta Eno. Se o Pears era encarregado de limpar o corpo
por fora, Eno era encarregado da "limpeza" interna. Mais que isso, po-
!
dia-se confiar que a pureza interna garantida por Eno assegurava a po-
tência masculina na arena da guerra. Como atestava um colonial: "Du- .f
t
rante a guerra afegã, acredito piamente que vencemos em Kandahar 1
porque todos to1namos grande quantidade de Sal de Fruta Eno e che-
gamos aptos a derrubar meia dúzia de Ayub K.hans"36 . Ele não era o 1'
único a recomendar fortemente a força de Eno na restauração da supre- 1
1
rnacia branca. O comandante A.J. Lofrus, hidrógrafo de Sua Majestade 1 :,
i ..(
'i .'
34. Idem, op. cit., p. 614. 1
1 ·•
35. O fetichismo foi definido muitas vezes como uma predileção infantil. Em Typu, de Hcr·
man Mclvillc,o herói descreve as pedras-fetiche das pessoas como "diversões infantis[...}
co_mo aquelas cm que um grupo de crianças brinc:i com bonecas e casinhas". The North- 1
1
wcstern-Newberry Edition, Harrison Ha}'ford, Hershel Parker e G. Thomas Tansclle
(or~.). 1l;e W6tings ofHerman i\1dvi!le (Evanston: Northwestern University Prcss; Chi·
1
cago: The Ncwberry Libnry, 1968), pp. 47·77.
36. D. e G. Hindle)\ Adwrtising in Vi,t~rian England.. . , p. 99. 1 J

(
~
336
O império do sabo,uu - ~cismo mercantil t propaganda impuial

Siamesa,jurava nunca se aventurar na selva sem urna lata de Eno. Hou-


ve só uma ocasião, disse ele, durante quatro anos de expedições impe-
riais, em que um m embro de seu grupo caiu com febre: "e isso aconteceu
depois que nosso suprimento de Sal de Fruta acabou"J7•
O fetichismo virou um espaço intercultural em que os dois lados do
encontro parecem ter ocasionalmente tentado manipular um e outro,
cada um imitando o que imaginava ser o fetiche específico do outro.
No ~ênia, Joseph Thomson posou grandiosamente como feiticeiro
brauço conjunm<lo um elaborado artificio com uma lata de Eno para
t
suposta edificação dos l\1asai: "Tomando meu sextante", registra ele ale-
1(
,, gremente,

e calçando um par de luvas de couro de cabra - que tinha acidentalmente


comigo e que impressionaram enormemente os nativos - examinei atenta-
mente o conteúdo [ ...] aprontando um pouco de Sal de Fruta Eno, e cantei
,. ur.ta fórmula - algo sobre "Três Garrafas Azuis" - sobre ele. l'v[inha voz
[ ...] funcionou como a de um feiticeiro. Minhas preparações completas e
Brahim pronto com uma arma, lancei o Sal na mistura; simultaneamente, a
' arma foi disparada e ferveu e espumou o ácido carbônico[... ] os chefes com
medo e tremendo o provam quando ccssa38•

Divertindo-se à grande, a imaginadas expensas dos Masai, Thomson


revela sua própria fé na forç a de seus fe tiches (luvas como fetiche de
lazer de classe, sextante e arma como fetiche da tecnologia científica e
Eno como fetiche de pureza doméstica) para enganar os Masai. "Mais
divertida", porém, como nota Hindlcy, é a própria ingenuidade de
Thomson, pois o ponto central da história é que, "para persuadir os Ma-
sai a tomarem seu remédio desconhecido, Thomson montou um show
em que o famoso sal de fruta só mostrou seus efeitos 'mágicos"'J9 • A
força de Eno como fetiche doméstico foi eloquentemente resumida por

37. Idem, op. cit., p. 98.


38. I bidem.
39. Ibidem.

337
Couro imptrial

um general, que escreveu agradecendo a J.\,lr. Eno por seu bom pó: "Bên-
çãos a seu Sal de Fruta", escreveu ele, "acredito que não seja profano
dizê-lo, mas juro por ele. Ali fica a estimada garrafa sobre a minha larei-
ra, meu pequeno ídolo - em casa meu deus do lar, no exterior, meu
vadc-n1écum"•º. Os fabricantes de Eno ficaram tão satisfeitos com essa
dedicação plena a seu pequeno fetiche que a adotaram como bordão
promocional regular. Daí em diante, Eno passou a ser anunciado pelo
slogan: "Em casa, meu deus do lar, no exterior, meu vade-mécum".
No encontro colonial, os africanos adotaram uma variedade de estra-
tégias para enfrentar as tentativas coloniais de subavaliar suas economias.
Entre essas estratégias, as mais frequentes eram a mímica, a apropriação,
a reavaliação e a violência. Os coloniais censuravam rancorosamente o
hábito africano de sair com o que não lhes pertencia, hábito que era
visto não como uma form_a de protesto, nem como uma recusa das no-
ções europeias de propriedade e de valor de troca, n1as como uma inca-
pacidade primitiva de compreender o valor de uma economia "racional"
de mercado. Barbot, por exemplo, descreve os Ekets como

o mais exasperante dos povos com que tínhamos que lidar [ ...] O pobre Sa-
wyer teve enormes dificuldades; as pessoas tinham uma ideia de que podiam
fazer o que quisessem com o encarregado da fábrica e frequentemente saíam
com os bens sem pagar por eles, ao que Sawyer naturalmente se opunha, e
isso geralmente acabava em luta livre, e minha gente às vezes levava a pior''.

Richards nota como Henry Morton Stanley, igualmente, não podia


fazer com que os africanos (que ele via primeiro como carregadores de
mercadorias ocidentais) compreendessem que ele dotava os bens que
eles carregavam de um valor de troca abstrato à parte de seu valor de uso.
Como a esses bens "falta qualquer papel social concreto nos costumes,
diretivas e tabus de suas vidas tribais, os carregadores estão deixando-os

40. Idem, op. cit., p. 99·


41. Kingslcy, Traveis i11 U~st Afrfra, p. S94-

338
O império do sabomu - '7?.!cismo mu,antil e propaganda imperial

cair sempre, descartando-os, colocando-os em lugares errados ou indo


embora com eles. Indignado, Stanley chama a isso de roubo" 4:.
Desde o início, o fetichismo envolveu uma contestação intercultural
eivada de ambiguidade, erros de comunicação e violência. Os coloniais
eram propensos a ter ataques de fúria quando os africanos se recusavam
a mostrar o devido respeito a suas bandeiras, coroas, a seus mapas, reló-
gios, armas e sabões. Stanley, por exemplo, registra ter executado três
carregadores africanos por terem removido rifles, embora admita que os
condenados não entendiam o valor dos rifles ou o princípio pelo qual
tinham sido condenados à morte43• Outros carregadores foram execu-
tados por infrações como deixar cair bens nos rios.
1 Anedotas também revelam quão rapidamente a fúria colonial ex-

l
i ~
plodia quando os africanos deixavam de mostrar espanto diante das es-
tranhas bugigangas que os coloniais lhes ofereciam, pois não demorou
1 muito para que a curiosidade e a tolerância dos não europeus virasse
derrisão e desprezo. Na Austrália, Cook censurava a ingrata recusa dos
habitantes locais em reconhecerem o valor das bugigangas que lhes
trouxera: "Alguns dos nativos não abriam mão de um porco, a menos
que recebessem um machado em troca; mas pregos e contas e outras ni-
nharias, que, durante nossas viagens anteriores, tinham tanta circulação
na ilha, eram agora tão desprezados que poucos se dignavam até mesmo
a olhar para cles" 44 •
i'
, De Bougainville também lembra como um nativo das i\ilolucas,
quando recebia "um lenço, um espelho ou outra quinquilharia [ ... ] ria
-;
dos presentes e não os admirava. Ele parecia conhecer os europeus"45•
Como observa Simpson: "O lenço é um atributo da 'civilização,' uma
ferramenta para fazer desaparecer o desagradável suor da testa, a descar-

.,.
42. Richards, 1he Commodity Culture.. . , p. n5.
43. Ibidem.
44. James Cook, A Voyag, to the Paâjic Ouan, Undn-tak.en by the Comma!'d ofHir Majesty,far
1\!Jaking DiJ,0•11eries in the Nurthern Hemisphn-e (Londres: James Cook, 1784, vol. 2), p. 10.
•' 45. Lewis de Bougainvillc, A J'oyag, Round th, World, P,rfarmed by th, Ordn- of His i'vtost
.. Chrütian lv!ajuty, in th, Y,crs q66, 1767, q68, q69, trad. John Rcinhold Forstcr (Lon-
Jrcs, 1772), !'· 360.

339
Couro imptrial

ga nasal dos climas frios e talvez as lágrimas da emoção excessiva". O


lenço branco também era (como as luvas brancas) o ícone vitoriano da
pureza doméstica e do apagamento dos sinais do trabalho. A recusa do
molucano ao lenço e ao espelho exprimia uma franca recusa a dois dos
principais ícones do consumismo vitoriano de classe média46•
Em alguns casos, formas elaboradas de mímica foram criadas pelos
africanos para manter o controle do comércio. Como observaram os
Comaroff, os Tlhaping, os Tswana do sul, tendo obtido contas para si
mesmos, tentaram impedir os europeus de aventurarem-se mais para o
interior, fazendo a mímica dos estereótipos europeus da selvageria negra
e retratando seus vizinhos como "homens de hábitos ferozes", bárbaros I
demais para misturarem-se com eles•7•
l
Na zona imperial contestada, fetiches encarnavam conflitos no do- 1
1nínio do valor e eram eloquentes de uma recusa africana contínua a
aceitar as mercadorias europeias e os rituais de limites nos termos dos t
coloniais. A saga do sabão e o culto da domesticidade demonstram vivi-
damente que o fetichismo não era original nem do capitalismo indus-
trial nen1 das economias pré-coloniais, mas era desde o início a encarna-
ção e marca de um encontro incongruente e violento.

'i

46. Barbot admite que os africanos da costa ocidental "sofreram com tanta frequência impo·
sições dos europeus, que, cm eras anteriores, não tiven.m escrúpulos cm enganá-los na
qualidade, no peso e nas medidas dos bens que, no principio, recebiam contentes, porque,
diziam, nunca passaria por seus pensamentos que os homens brancos[... ] eram baL~os a
ponto de abusar de sua credulidade [ ... ) e examinavam peça por peça e muito de perto
toda nossa mercadoria". Não demorou muito para que os africanos inventassem seus
próprios subterrugios pua enganar os europeus e ganhar na troca. Pelo relato de Barbot,
eles enchiam com madeira pela metade os barris de óleo, acresccntav:im :igua e ervas ao
óleo, para ·que fermenrasse e, assim, enchiam os barris com a metade do óleo. Kingsley,
Traveis in West A/rira, p. 582.
47. Jean e John L. Coma.roff, O/RnNlation and R«>0lution ... , p. 166.

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