Cada Palavra É Uma Semente - Susanna Tamaro
Cada Palavra É Uma Semente - Susanna Tamaro
Susanna Tamaro inicia este livro descrevendo como o pai costumava caminhar pela cidade: de ar absorto como um
atento observador, chegando sempre a horas mas sem ter sentido de tempo, ou de pressa. E é também deste modo que a autora
percorre este texto. Acreditando que a escrita deve propagar a semente da inquietação, Susanna Tamaro aborda, sempre numa
atitude de espanto e de humildade, o grande mistério da vida humana. Com ela desbravamos o mundo das perguntas sobre
temas como a natureza do tempo, a evolução da Humanidade, o papel da ciência e das religiões, a relação com o meio
ambiente, o sentido da diversidade e o relativismo ético, entre muitos outros, à medida que nos aproximamos de debates tão
actuais e preocupantes como a futilidade do consumismo, a influência dos mass media e a (sobre)vivência na “aldeia global”.
Uma viagem espiritual, embaladora, que nos confronta e nos inspira através do realismo e da sensibilidade da prosa
envolvente a que Susanna Tamaro já nos habituou.
ÍNDICE
O TEMPO SETA
UM FIO QUE NÃO SE PARTE
CADA PALAVRA É UMA SEMENTE
O GOLFINHO E AS SOMBRAS CHINESAS
Sobre a Autora
O TEMPO SETA
O meu pai era uma pessoa bastante especial. Vivia num pequeno quarto com uma varanda que dava para a gravilha de
uma linha férrea. Já estava reformado há alguns anos e sentia-se feliz. Não sei o que fazia o dia todo, não tinha amigos, não
convivia com ninguém. Sentia-se vaidoso por poder comprar o passe social a preço reduzido. “Sabes — dizia-me ele —, por
esta quantia, por esta modesta quantia, posso viajar dia e noite, nos meios de transporte que quiser.”
Acho que passava a maior parte do seu tempo a andar nos autocarros e nos comboios citadinos.
Por mais do que uma vez, fui encontrá-lo em lugares impensáveis, muito afastados da casa onde vivia. O passo era
sempre o mesmo, mãos atrás das costas, ar absorto. E quando eu lhe perguntava: “O que é que andas a fazer por estes lados?”,
respondia invariavelmente: “Vim dar uma volta.”
Por vezes, eram os amigos que me diziam onde ele estava. “Vi-o perto do entroncamento... no túmulo de Nero... no
fundo da Aurélia... no átrio da Stazione Tiburtina...” “Estava sozinho?” “Claro.” “O que é que estava a fazer?” “A passear.”
À noite, voltava para casa e desligava o telefone, ou talvez, mais simplesmente, evitava atender. Penso que já só havia
duas ou três pessoas que soubessem o seu número, mas isso não tinha importância. Não queria ser incomodado, não queria que
ninguém fosse lá a casa, sem ser convidado, para lhe dar cabo do seu tempo.
Na varanda, tinha uma bicicleta já velha; não era um desportista, mas tinha problemas de coração. Por isso, à noite,
pedalava. Pedalava e via passar os comboios. De vez em quando, telefonava para me dizer: “Sabes, já começam a aparecer os
primeiros pirilampos, vejo-os reluzir entre dois comboios...” Ou então: “Há uma gata que teve gatinhos, dois ruivos e um
cinzento. Quando volta da caça, vão a correr ao encontro dela, todos contentes, de cauda levantada.”
O meu pai chegava sempre a horas aos nossos encontros, mas não tinha o sentido do tempo. Olhava para os outros —
aqueles a quem o Principezinho chama “os adultos” — com um espanto mal disfarçado. Para onde iam eles a correr? Porque
têm tanta pressa? Não conseguia entender.
Já numa idade mais do que adulta, começou a estudar chinês. Descobrira no taoísmo a repercussão perfeita do seu ser.
“Pratica o não agir. Tenta não fazer nada. Saboreia o que não tem sabor. Considera o pequeno como grande, o pouco como
muito.”
O meu pai não tinha o sentido do tempo, mas, apesar disso, foi ele, juntamente com a minha mãe, quem me deu o meu
tempo. Deu-me o tempo, o meu tempo, e deu-me o seu não-tempo, a indiferença total pelo desenrolar das coisas.
Também chego sempre a horas aos encontros, mas abro as cartas uns meses depois de as receber e respondo, se me
lembrar, passados uns anos. Quando o telefone toca, nem o ouço. Se digo a alguém “telefono-te amanhã”, é certo e sabido que
telefonarei passado um mês, não por maldade, desleixo ou arrogância, mas porque também vivo numa espécie de presente
eterno. No meu tempo interior, um mês, uma semana, um dia, valem o mesmo.
; Quanto tempo demorei a reparar no tempo? Não muito. Devia ter uns sete anos. Lembro-me de uma tarde cinzenta e
ventosa, o vento sul entrava por baixo da janela e esfriava o quarto. Eu estava a meter os livros na pasta, para o dia seguinte.
De repente, pensei: este dia já passou e nunca mais voltará. Tudo o que vi, senti, sofri e ouvi desapareceu para sempre. Cada
pôr do Sol é um pequeno passo para a morte.
Foi a partir de então que comecei a ver de uma forma diferente cada pessoa que encontrava. Havia a pessoa e, a seu
lado, um pequeno poço. Esse poço ficava perto da cama e cada entardecer engolia o dia que tinha passado. Havia poços quase
vazios, como o meu e o dos meus irmãos, e poços já cheios, como os dos avós. Os poços quase cheios faziam-me chorar.
A partir daí, a ansiedade foi a minha fiel companheira. Sentia-me como um ramo que a chuva atirara para a água de um
rio lamacento que ia correndo lentamente para um sítio qualquer, a paisagem não era muito diferente da que vi muitas vezes do
comboio, entre Trieste e Veneza. Neblina, casas, campos de milho, canais, choupos e campanários. Neblina, casas e campos
de milho. De vez em quando, uma figura escura, de bicicleta.
Nunca tinha pedido para descer aquele rio e não tinha qualquer possibilidade de sair dele, navegava como navegavam
os outros todos, mas também com um sentimento de grande impotência.
O que era a vida? Levantar de manhã, ir à casa de banho, ir para a escola, comer, fazer os trabalhos de casa e ir para a
cama, para recomeçar, no dia seguinte, a mesma série de sequências ridículas. Haveria de crescer e, em vez de ir para a
escola, iria para o trabalho e essa seria a única diferença substancial. Depois, o trabalho também acabaria e os meus cabelos
ficariam brancos, as pernas começariam a fraquejar e eu ficaria muito tempo parada diante das passadeiras para peões, antes
de atravessar a rua. Depois, as pernas deixariam de aguentar com o meu peso e deitar-me-iam no caixão como, durante tantos
anos, me tinha deitado na minha cama. Fim do tédio, fim da repetição, fim de tudo o resto.
Era para isso que as pessoas vinham ao mundo? E o que era a vida senão um monótono desperdício de tempo e de
energia?
Nessa altura, como é natural, não sabia nada do Big Bang e do espaço, dos cem milhões de galáxias que giram connosco
no cosmos, nem das relações que ligam o espaço ao tempo, a massa à energia. Todavia, tinha percebido uma coisa
absolutamente fundamental, isto é, que o tempo é como uma seta, sai do arco e vai parar no alvo e nunca pode fazer o percurso
inverso. Pelo menos, não para nós, seres humanos e animais e plantas. Para nós que, de uma forma ou de outra, respiramos.
Para os eléctrodos e as partículas fundamentais, tudo muda, não têm relógios, nem encontros marcados, não se
apaixonam, nem serão avós, e também não imaginam que a morte existe. Para eles, o passado e o futuro são a mesma coisa.
Para nós, não. Para as criaturas — para todas as criaturas — só há um caminho e uma única direcção. É daí que nasce o
espanto, o horror vacui que senti na infância e hoje sente qualquer pessoa que pare, ao menos por um instante, para reflectir.
A pergunta acerca do tempo é, acima de tudo, uma pergunta acerca do sentido. Porquê? Para quem? Para quê?
Tenho um temperamento marcadamente terrestre. Entre olhar para as alturas e olhar para o chão, sempre preferi olhar
para o chão. Compreendo mais coisas ao ver uma formiga a transportar uma semente do que ao estudar as fórmulas
matemáticas que definem o trajecto das estrelas.
Na memória de todas as culturas, antes do mundo, havia o caos. A certa altura — que talvez ainda não fosse altura
nenhuma porque o tempo não existia — houve uma coisa muito pequena que explodiu, gerando uma coisa grande.
Na língua chinesa, o que exprime o caos primogénito — um caos que, naturalmente, não é caos, mas apenas uma ordem
diferente da que conhecemos — é o ideograma hun tun..
O meu pai tinha estudado chinês e, durante um certo tempo, eu estudei a caligrafia chinesa. Tinha uma professora
minuciosa e silenciosa, mas que, diante das folhas brancas, se transformava e brandia o pincel com energia e graça, como uma
dança. Gostava de repetir: “Céu, pai, terra mãe, nós muito pequenos, muito, muito pequenos.”
Os ideogramas não são gatafunhos incompreensíveis, são representações de microcosmos e do macrocosmo.
O Hun Tun, o caos que antecede a criação, é formado por dois ideogramas. O ideograma Hun que representa um homem
e, por baixo dele, o Sol, um Sol abaixo do horizonte, ainda prisioneiro das trevas. Pelo contrário, o ideograma Tun representa
uma pequena planta que tenta criar raízes. Em ambos os ideogramas, está presente o signo da água. A água é, portanto, a fonte
da vida, foi aí que todo o mundo que conhecemos começou a criar raízes. E é também aí, na água do ) ventre materno, que a
vida de cada criatura inicia o seu percurso de crescimento.
Existir no tempo é, acima de tudo, criar raízes.
Um dos livros que leio com maior paixão é o livro da evolução, a vida que houve antes de nós. A grande seta que
permitiu o disparo da seta mais pequena, a da nossa existência individual. Uma seta lançada por uma criança e uma seta
disparada por um gigante, ambas apontadas para o mesmo alvo.
Eu não posso transformar-me em lémure, tal como um carvalho não pode transformar-se em alga unicelular. No entanto,
num determinado momento, a alga começou a imaginar dentro de si o carvalho.
Aconteceu há cerca de quatrocentos milhões de anos, no devónico. Até essa altura, as plantas tinham vivido e tinham-se
propagado apenas horizontalmente.
Todavia, o sonho gera a inquietação e, de repente, tudo o que era cómodo e natural começa a ficar acanhado. Porque
não explorar também outros espaços? Porque não tentar atingir a grande estrela que enche de luz o espaço circundante?
Para isso, não se pode estar parado, a flutuar. Necessita-se de um sistema diferente de transporte dos alimentos. É assim
que se formam novas células, células muito compridas, capazes de transportar a água para o topo, e outras capazes de voltar a
trazer a linfa elaborada para baixo. Assim se desenvolve uma espécie de tecido celular com uma estrutura semelhante à
medula, no centro. No meio, há ar, e ar significa respiração. Células com clorofila rodeiam o tecido vascular e a planta cobre-
se de pequenos botões, os estornas. Botões que se abrem e fecham para conterem ou libertarem vapor. O vapor sobe até ao
céu e o céu restitui-o sob a forma de chuva.
E é nessa altura que a terra dá início ao grande processo da respiração.
Para falar verdade, até há poucos anos, não prestava grande atenção à vida das plantas. Privilegiava o estudo dos
animais porque os animais têm um olhar. Só com o tempo, aprofundando alguns pensamentos, é que fui reparando na grande
afinidade que existe entre o nosso destino e o destino do mundo vegetal.
Entre nós e uma planta, a diferença não é muito grande. Tanto nós como elas somos feitos de tecido vascular, temos uma
medula que nos mantém direitos e nos faz ter, crescendo, uma posição erecta. Tanto nós como elas, para podermos continuar a
viver, precisamos da dose de alimento adequada.
Criar raízes, alimentar-se, crescer.
Enquanto os animais crescem na horizontal, nós e as plantas somos seres verticais. Elas aguentam o peso da ramagem,
nós, o embaraçoso peso da cabeça.
As plantas demoraram alguns milhares de anos a mudar de estado. Desenvolvendo-se em altura, tinham resolvido vários
problemas, mas ainda havia muitos por resolver. O da propagação, por exemplo. Antes do nascimento das sementes, o ovo
fecundado não tinha qualquer tipo de protecção, bastava uma mínima mudança de clima para gastar o seu potencial de
crescimento.
Por conseguinte, as sementes foram a outra grande revolução silenciosa.
A semente tem tudo no seu interior, pode ficar protegida no ovário, ou transformar-se em fruto e ir parar à barriga de
uma pessoa, pode cair ao chão e ficar adormecida durante meses, ou mesmo anos, à espera das condições propícias para
crescer, ou pode agarrar-se ao pêlo de um animal e andar a vaguear pelo mundo.
Há sementes que explodem, como a da impatiens, ou voam ligeiras, como o dente-de-leão, e outras que ficam paradas
no ar como máquinas de Leonardo.
As sementes são potencialidade, uma potencialidade em prudente espera. Primeiro, não agem, e, quando agem, têm um
projecto. A margarida converte-se em margarida, a genciana converte-se em genciana.
As plantas crescem para a luz e nós também crescemos para a Luz, embora muitas vezes façamos tudo para o
ignorar. '
Olhando à minha volta, tenho muitas vezes a impressão de que, para muitas pessoas/o tempo da vida se parece com um
grande armário cheio de gavetas que elas têm de encher o mais depressa possível.
O tempo, com a sua vacuidade, gera ansiedades dificilmente controláveis.
“Não, hoje, não, amanhã, também não. Talvez na semana que vem, mas não sei. É difícil conseguir arranjar
tempo.”
Quantas vezes ouvimos conversas deste género?
Estamos no tempo, mas não temos tempo.
Temos de correr, andar, fazer coisas, ver pessoas, adquirir talentos cada vez mais novos para calar o rumor dos dias,
dos meses, dos anos que vão passando e que não podemos deter de forma alguma.
Depois, um instante antes de morrermos, talvez vejamos num lampejo a nossa vida e, ao vê-la, aperceber-nos-emos de
que os únicos instantes verdadeiramente nossos, verdadeiramente cheios, foram aqueles em que pudemos ter “perdido tempo”
para contemplar uma flor, a forma de uma árvore, ou acariciar a cabeça de uma criança que ia a passar ao nosso lado.
Na língua chinesa, a ausência da acção é definida pelo ideograma Xu. Neste ideograma, não há um homem deitado numa
rede, há sopros que se movem entre eles, sem gerarem conflitos, numa harmonia perfeita.
A ausência de acção é o movimento perfeito, o movimento do homem que acolheu dentro de si não a arrogância do
saber, mas a humildade da sabedoria.
Não agir é estar-se sempre pronto. Pronto para a morte e para a vida. Pronto para a chamada.
“Aqui estou eu, envia-me a mim!”, diz o profeta Isaías.
Não diz: “Irei amanhã” ou “Podias ter-me chamado ontem.”
Não, diz: “Aqui estou eu!”
Viver esta dimensão significa, antes de mais, perceber que o nosso tempo é como uma fatia de gelado. O seu destino é
ser consumido, ou derreter-se.
Ao passo que o verdadeiro tempo, ou seja, o gelado inteiro, permanece no congelador.
Existia antes e continua a existir, depois de a nossa porção ter terminado.
Para se perceber o tempo, para se perceber o significado mais profundo, em vez de o interpretarmos, teríamos de nos
despojar.
Despojarmo-nos do eu, mais do que de qualquer outra coisa.
Eu quero, eu faço, eu compreendo, eu sou.
Despojarmo-nos e esperar.
Esperar e ouvir.
Assim, a pouco e pouco, iremos reparando que este tempo, este tempo que nos torna ansiosos, este tempo em que vamos
acumulando coisas a fazer e a dizer, é, na realidade, um tempo que não difere muito da corrida de uma formiga, um tempo
ligeiro, breve, curto. O verdadeiro tempo não é esse.
É o tempo do mistério e da transcendência.
É o tempo em que a cada semente será revelado o seu projecto. Um tempo que nos envolve e nos ultrapassa. Um tempo
sem tempo, sem madrugadas, nem crepúsculos, sem aniversários, nem funerais.
É um tempo que nos antecede e nos segue, mas é também um tempo que nos acompanha ao longo dos dias, ou melhor,
que irrompe nos dias, salvando-nos da deriva.
É o tempo da humildade, da descida às raízes.
O tempo da escuta, da escuta que se transforma em diálogo.
É o tempo do acolhimento e do reconhecimento.
É o tempo da semente que se transforma em rebento e do rebento que se transforma em planta.
É o tempo da planta que transforma a energia do crescimento na beleza inútil da flor e que, um momento antes de
murchar e deixar cair as sementes, repara com espanto que aquilo a que, até esse momento, chamara Luz, era, de facto, Amor.
Quando ando pelas ruas de Roma, de noite e de dia, tenho muitas vezes a impressão de que estou a ver o meu pai.
Não era ele, aquela figura de perfil, no autocarro meio vazio? Aquele casaco que acabava de dobrar a esquina não era o
seu?
De tempos a tempos, paro e ouço-o suspirar. Suspirava muito. Suspirava como se sentisse sempre um peso no coração.
As suas longas e intermináveis caminhadas talvez fossem uma tentativa para se libertar desse peso.
Caminhando sem parar, talvez andasse à procura de uma coisa qualquer que, de repente, lhe tornasse tudo claro.
Caminhava para fugir, para fugir de si mesmo, do seu passado, da sua solidão.
E talvez caminhasse também com a esperança desesperada de que lhe aparecesse, de repente, o rosto do Outro.
Porque uma semente pode estar parada na terra durante meses, durante anos, mas, nessa obscura permanência, nunca
deixa de desejar a água, de esperar por ela.
Espera pela água e pela força que lhe permita romper o tegumento e começar a subir para as alturas, para o universo da
luz e da respiração. Para descobrir finalmente a forma que, desde o início, tinha sido chamada a assumir no mundo.
Pouco antes de morrer, o meu pai tentou escrever-me um bilhete. Não conseguiu.
Na folha, só ficou um ponto.
O que terá querido dizer?
Perdão? Medo?
Ou seria paz?
Nunca saberei, pelo menos neste tempo.
No mistério deste tempo-seta, lançado para as trevas do cosmos justamente pela explosão de um ponto.
UM FIO QUE NÃO SE PARTE
Há muitos anos que existe um fio nos meus pensamentos. É um fio de metal brilhante, esticado entre um tronco de
azinheira e outro de ameixoeira brava, no fundo de um prado de uma casa onde vivi muitos anos. Servia para estender a roupa.
Porque me vem sempre à ideia? Porque, nesse fio, acontecia uma coisa estranha. Quando a pressão atmosférica sofria
uma certa diminuição, juntavam-se dezenas de formigas e, quando a pressão voltava a aumentar, as formigas desapareciam.
É provável que a maior parte das pessoas nem sequer reparasse nessa relação metal-pressão — formigas. Quando
muito, borrifariam o fio com um bom insecticida e a história ficaria por aí. Eu, pelo contrário, passei a vida a perguntar
porque seria e, como, passados tantos anos, ainda não consegui encontrar uma resposta, a curiosidade permaneceu intacta.
Que espécie de benefício retiram as formigas dos fios de metal, quando o siroco sopra? Não sei. Ou melhor, ainda não
sei.
Estou convencida de que os talentos individuais nascem connosco e não são, como há quem gostaria de nos fazer crer,
determinados pelo meio. A música, a matemática, a pintura, a maior aptidão para as ciências exactas do que para a palavra
são pequenas fogueiras que ardem dentro de nós desde o momento em que abrimos os olhos. Cada pessoa tem uma fogueira de
dimensão diferente. Algumas alimentam-se apenas de ramiscos e, portanto, apagam-se facilmente. Outras, porém, têm pilhas
de lenha sobre as quais o vento não pára de soprar e é difícil apagá-las. E chegam mesmo a queimar quem se aproximar
demasiado.
Durante os últimos anos, desiludi muitos jornalistas que estavam à espera de revelações inéditas acerca de um qualquer
indício de precocidade artística. “Escrevia histórias?” perguntam-me. “Passava horas a ler contos?” Nada disso. Quando a
professora dizia: “Escrevam o que quiserem”, eu escrevia na margem da folha, em letras minúsculas: “Hoje, está sol”, ou
então “Hoje, está a chover”. Só isso.
Na infância, sofri muito com a falta de imaginação. Enquanto as minhas colegas escreviam poemas rimados e faziam
desenhos cheios de arco-íris e florinhas, eu examinava com tristeza a página em branco, à espera de um mínimo de inspiração.
Contudo, a faísca não jorrava e, por isso, escrevia apenas o meu nome acompanhado de um esquisso, sei lá, o cubo de um
edifício, a porta de uma garagem, a forma dentada de um abeto.
Pedem-me muitas vezes que invente de repente uma história para uma criança qualquer. A resposta que me vejo
obrigada a dar é sempre a mesma: “Lamento muito, mas não sou capaz.” Como é natural, ninguém acredita. “O quê? Se tu, que
escreves livros, não sabes...” Pensam que é uma desculpa.
A fogueira que ardia no meu coração, quando abri os olhos, era a da matéria e da forma, das leis que transformam uma
coisa na outra, gerando a infinita variedade do mundo. Nasci para observar, avaliar, catalogar, memorizar, e não para encher
folhas de papel com palavras bonitas.
Havia, e há, muito de física dentro de mim. Preciso sempre de tocar, sentir, cheirar. Os voos pelo mundo da fantasia
fazem-me sentir pouco à vontade, ou melhor, aborrecem-me. Adoro estar com os pés na terra, se possível deitada ou
ajoelhada, com uma lente na mão para ver o que sucede ao nível do solo.
Durante estes anos, ofereceram-me inúmeros livros de poemas. Poemas de jovens e de menos jovens, homens e
mulheres. Todos com um denominador comum: a desilusão com a finitude de tudo e a ânsia de algo grandioso. As imagens
mais recorrentes são o mar alto com uma gaivota, as nuvens que correm ou em dia de tempestade, o Sol que se põe, nasce ou
brilha, indiferente aos sofrimentos humanos. São estas as três dimensões que o contacto com o mistério assume na vida dos
poetas ocasionais. Mar, céu, Sol, com algumas breves incursões da Lua.
Acho que a poesia é, fundamentalmente, uma forma de interrogação. Que fazes tu, Lua, no céu, diz-me que fazes...
escrevia Leopardi. Sente-se um mistério por detrás da realidade de todos os dias e esse mistério gera inquietação. Como
posso dormir tranquilo, se há qualquer coisa que eu não sei, que não consigo perceber, explicar? Então, chamo as nuvens, o
mar, as gaivotas. Ou seja, convoco as testemunhas do mistério.
A poesia nasce das perguntas que fazemos a nós mesmos, olhando para as alturas. As ciências naturais também fazem
perguntas, mas olham para o chão. Porque é que as formigas correm sobre o fio? Porque é que aquela planta espontânea nasce
naquele sítio preciso da parede rochosa? Porque é que os melharucos voam todos juntos por cima do pilriteiro?
O aspirante a poeta interroga-se acerca do geral, o naturalista interroga-se acerca do pormenor. O carácter genérico das
“grandes” palavras, dos “grandes” sentimentos, não costuma conduzir a parte alguma. É como gritar num salão cuja acústica é
péssima, de pé, em cima de uma cadeira. De que serve? Pelo contrário, a observação atenta do que nos rodeia assemelha-se a
um dédalo de carreiros. Não sei para onde devo ir, mas não deixo de meter pelos carreiros porque sou curioso, porque quero
saber. Porque o mistério não está no azul do céu, mas no mais profundo de mim mesmo.
O branco e o preto são as cores-não-cores mais distantes entre si. De facto, dizer “branco” e “preto” remete para dois
opostos dificilmente conciliáveis. No entanto, no famosíssimo símbolo do Tao, no negro está contida a origem do branco, e
vice-versa. Não se misturam, não se transformam em cinzento. Apenas se vão gerando um ao outro.
Como posso admirar-me com o grande, se não conheço o pequeno, que está na origem do grande?
Com o passar dos anos, dei muitas vezes por mim a pensar que a minha mente de naturalista - a pequena fogueira da
precisão - tinha dado um grande contributo para a grande fogueira da literatura. A imagem que tenho sempre na ideia é a de um
rio que, já perto do estuário, se divide em dois grandes braços. Um é o da técnica, o outro é o das perguntas.
O primeiro rio a desaguar é certamente o da técnica. Ninguém sonharia vir a ser concertista sem ter passado longos
anos colado ao piano, a estudar. Escrever um livro, um poema, parece, pelo contrário, ao alcance de todos, excepto os
analfabetos. Se as palavras fluem na cabeça, porque não iriam fluir, com a mesma facilidade, no papel? E, de facto, fluem
docilmente, enchendo resmas e resmas de folhas. No entanto, em geral, essas folhas não chegam ao coração de ninguém a não
ser da pessoa que as escreveu e que, muitas vezes, já está apaixonada por si mesma.
Uma escrita consciente apoia-se na precisão do pormenor. Um pormenor que não é enumeração obsessiva, mas procura
da verdade em todas as situações. Quero saber porque é que as formigas, naquelas condições determinadas, correm sobre o
fio. Não exalto a sua luta titânica pela sobrevivência, nem fico horrorizada com a ditadura do formigueiro. Vejo-as apenas
correr e pergunto a mim mesma “porquê?”. O único óculo que tenho é o da curiosidade. Vi começar uma história e quero
perceber a razão do seu início.
Os primeiros objectos que atraíram a minha atenção, na infância, foram os seixos. Não sei porquê, talvez porque, ao
andar, os encontrava muitas vezes debaixo dos pés. Ou talvez porque, dos três reinos, o mineral é o reino fundamental, o que
sustém tudo o resto.
Andava e apanhava seixos. Apanhava-os sem qualquer discernimento. Nos passeios sujos, apanhava cacos e betume já
seco. A beira-mar, a alegria era muito maior porque os seixos eram verdadeiros e tinham os bordos arredondados. O
polimento da superfície fazia sobressair os veios mais ocultos. Havia-os verdes, vermelhos, amarelados e de um branco
transparente como diamante. E havia ainda a maravilha dos vidros coloridos. Autênticas pedras preciosas, arremessadas pelo
movimento perpétuo das ondas. Por que razão, perguntava eu, a areia em que punha os pés não era uniforme e monótona como
o asfalto da rua? De onde vinham aquelas cores, aquelas formas, quem as tinha feito? E sobretudo, porquê?
Metia os seixos todos numa caixa. Era o meu tesouro. Sempre que podia, enfiava as mãos lá dentro, como Creso fazia
com as suas jóias. Polia-as, fazia-as girar à luz como fazem os magos com as bolas de cristal, para descobrirem o futuro.
Tive uma infância citadina. Acordava no meio do cimento e ia para a escola, atravessando o cimento. A única natureza
que me era dado conhecer eram os buxos poeirentos e malcheirosos de alguns jardinzitos, os pombos que arrulhavam nas
varandas, sujando tudo, as formigas que invadiam a cozinha por alguma fenda misteriosa.
A natureza não estava à minha volta, estava dentro de mim. Fazia-me falta. Sentia-me como um animal a quem tivessem
arrancado uma pata. Não sabia qual tinha sido, mas era importante. Não servia para comer, dormir, respirar, mas para
escolher uma direcção e percorrê-la até ao fim. A sintonia com o universo dos humanos era bastante escassa. A minha volta,
falava-se uma língua que eu não conseguia entender, mas percebia que as folhas, as pombas e os cães tinham qualquer coisa
importante a dizer-me.
A desilusão com os adultos provinha também daí. Se eu perguntava, apontando para um melro “o que é isto?”,
respondiam-me “é um pássaro”. E ouvia a mesma resposta, se apontava para um pardal. As árvores tinham igual sorte. A tília
e o carvalho eram apenas troncos com ramagens e os seixos eram apenas seixos. Quando eram maiores, passavam a ser
pedras, e era tudo.
Na aula, éramos trinta. Só raparigas, como as árvores são só árvores. Todavia, eu tinha orelhas de abano, era loura e
chamava-me Susanna; a minha colega de carteira era morena, de orelhas pequenas e graciosas e chamava-se Fiorella.
Porque seria que as árvores não tinham nomes? Porque é que os pássaros também não tinham? Em suma, o que
significava não ter nome?
Ainda andava na escola primária quando me deram, não sei em que dia de aniversário, dois grandes volumes sobre a
vida dos animais. Era um clássico da história natural do século XIX alemão, o Brehm.
Quando penso nesse livro, não o considero um livro, mas uma jangada. Foi para essa jangada que subi e foi a ela que
me agarrei para atravessar as águas instáveis da infância. Estavam lá os nomes todos. Os nomes de animais que eu já tinha
visto e os nomes de animais que eu nem imaginava que existissem. Infelizmente, não havia fotografias, havia apenas alguns
desenhos — na maioria, a preto e branco e bastante maus —, mas pelos desenhos já tinha começado a perceber que, à face da
Terra, havia muitos mais animais do que os que podia imaginar. O número das formas vivas mencionado naqueles livros era
extraordinariamente elevado e de uma natureza extraordinariamente diferente.
Via à minha frente as florestas de Madagáscar, mergulhadas na escuridão da noite, e os grandes olhos dos lémures
movendo-se, silenciosos, por entre as lianas. Via as águas lamacentas e preguiçosas do rio Amazonas, povoadas de piranhas,
à espera de cravar os dentes. Sentia na pele o frio dos Andes, vendo os condores a rodopiar no céu claro.
Não havia animal que me metesse nojo ou medo. Nem as serpentes, as aranhas, os ratos. Desde sempre que adorava os
morcegos. Faziam-me companhia nas minhas insónias de criança. Ouvia-lhes, para lá da janela, os assobios breves,
intermitentes. Já sabia que não assobiavam para me chamarem, mas para fugirem dos objectos. Era um som estranho, com uma
frequência diferente da dos outros todos. Tinha de se saber distingui-los entre dois automóveis, dois autocarros. Chi? Chi?
Chi?, repetiam eles, até aos primeiros alvores da madrugada.
“Quem?” e “porquê?” serão como uma bola de ténis, que sai de um lado da rede e depois volta para trás? E “quem?”
parece poder continuar assim, indefinidamente, sem nunca vencer o jogo.
E chegamos ao segundo braço do estuário. O das perguntas. No primeiro, havia a técnica. Observar, descrever,
memorizar. Todavia, a técnica, quando é aplicada sem mais nada, facilmente se torna um monstro, ou se resume a muito pouco.
Para ter sentido, precisa de se fundir com um fluxo maior, o fluxo das perguntas.
Se esta é a forma, de onde é que ela vem? Terá saído do nada ou, antes dela, já existiam outras formas? Porquê ela e
não outra? Porquê aqui e não além, com esta cor e não com aquela? Com um bico curto e não comprido?
Nas escolas dos anos 60, não se falava de Darwin e da teoria da evolução às crianças. Os animais e as plantas existiam
e mais nada. Só era possível ter mais algumas informações na aula de religião. A variedade dos seres vivos, bem como a luz e
as estrelas, tinha sido extraída das trevas, apenas em seis dias.
Actualmente, pareceria um horror negar às crianças o saber da ciência, substituir a racionalidade do pensamento por
histórias sem pés nem cabeça. No entanto, tenho de agradecer a essa ignorância passageira porque, durante anos, me permitiu
ver o mundo não como uma grande e eficiente empresa onde os melhores e os mais merecedores fazem carreira, mas como a
concretização do sonho de um Prestidigitador extraordinariamente imaginativo.
Da escuridão total, a existência inesperada das coisas.
A poesia, o fascínio, o mistério nascem desta imagem, não da ideia de um progresso obtido após várias tentativas e
vários erros. Experimento assim, se não resultar, experimento de outra forma. Mais tarde ou mais cedo, acontecerá qualquer
coisa que porá os meus filhos à frente dos outros. Porque o objectivo da vida parece ser apenas este: lançar o nosso
património genético o mais longe possível na evolução do tempo, chegar antes dos outros.
Durante anos, desejei ter um cão beagle. Não por gostar da raça, mas porque era assim que se chamava o barco em que
Charles Darwin partiu para as suas fundamentais explorações do mundo. Ao crescer, deixei o mundo do Prestidigitador e fui
parar ao dos tentilhões das Galápagos. Sete bicos para sete funções diferentes. Em Darwin, tudo me agradava: a sua recusa de
acabar os estudos para seguir a sua vocação, o facto de ser um diletante que descobre coisas que os outros nunca viram, a
gratidão para com os pais, pessoas abastadas que, apesar de tudo, lhe permitiram andar a vaguear pelo mundo, tentando
descobrir porque é que o musaranho é o musaranho e o elefante é o elefante.
Estava-lhe grata pela curiosidade e pelo desejo obstinado de a satisfazer. Descobrir que cada ser vivo, antes de ser
aquilo que eu via, tinha sido outra coisa qualquer, pusera de novo numa roda-viva a minha imaginação. Ainda conservo na
minha biblioteca vários livros de paleontologia que remontam a esse período e uma caixa com fósseis que fui apanhando ao
longo dos anos.
Hoje em dia, na escola primária, já não se explica a vida na Terra a partir dos três reinos dispostos em pirâmide — o
reino mineral, vegetal e animal, com o homem em equilíbrio no desconforto do vértice —, mas com a marcha progressiva da
evolução. Os professores ensinam com a mesma segurança com que ensinavam a breve, mas intensa, actividade do Criador. Já
ouvi dizer o seguinte: “Meninos, o homem, ao longo dos milénios, saiu do macaco. Temos provas científicas. Mas, (suspiro de
presunção), há as pessoas que vão à igreja e estão convencidas de que o mundo foi feito numa semana. Ou melhor, em seis
dias, porque, no sétimo, Deus estava cansado.”
“Chi? Chi” Chi?” assobiavam os morcegos, diante das minhas janelas.
Quem é que fez as leis que permitem a constituição dos sistemas cristalinos do isométrico, do ortorrômbico, do
monoclínico?
Quem é que determinou o número dos elementos e o modo como se ligam uns aos outros? Quem ensinou os líquidos a
mexerem-se de uma forma e os gases, de outra? Quem é que inventou as energias que geram a gravidade?
Só alguns grupos de fanáticos continuam a acreditar que o que diz a Bíblia é uma reprodução literal. Para os outros, a
questão é muito mais subtil. Não se trata do barro que se transforma em macaco e depois em homem, mas das leis que
constituíram o punhado de terra, que deram vida às nuvens que fizeram cair a água. Agua que, misturando-se com a terra,
formou o barro que, por sua vez, deu também vida ao macaco. E quando o nosso corpo se dissolve não é mais do que isto.
Água e minerais. Saboroso alimento para as larvas dos necróforos.
“Qual o caminho para o lugar onde habita a luz?” pode ler-se no Livro de Job. “Onde é a morada das trevas? De que
lado se propaga a luz? A chuva terá pai? Quem é que gerou as gotas de orvalho? De que seio nasceu o gelo e quem é que gerou
a geada que cai do céu? As águas tornam-se duras como pedra e a face do abismo fica gelada.”
Se não me tivesse apaixonado pelas ciências naturais, é muito possível que, em toda a minha vida, nunca chegasse a
descobrir a filosofia e a teologia.
Pelo seu carácter asséptico, os livros dessas duas disciplinas provocam em mim uma leve sensação de asfixia, de
vertigem. Como quando está calor e se viaja nos assentos traseiros de uma camioneta por estradas de montanha, o dia está
bonito, a paisagem é bonita, mas sente-se uma certa náusea.
De que falam esses livros? De coisas invisíveis, de coisas nunca vistas, tocadas, ouvidas, ou cheiradas. A imanência, a
transcendência, o número, o ser em si, o a priori. São conceitos sem forma ou dimensão. Conceitos bola de sabão, fascinantes
e extremamente luminosos, perfeitos na manutenção da tensão superficial, mas muito frágeis, prontos a desvanecer-se ao
primeiro contacto com um objecto sólido, ou uma corrente de ar mais intensa. Pop, pluf pop. A imanência deixa de existir.
Nunca a cheirámos, nem vimos. Deixa de existir e eu não consigo ter pena. Que inquietação posso sentir por causa de uma
bola de sabão? Como é que pode provocar-me insónias? De forma nenhuma.
Sinto, isso sim, uma grande inquietação ao observar os necróforos, ou os seus amigos, os colêmbolos. “Ao sepulcro
chamo pai e aos vermes, minha mãe e minhas irmãs” é o que grita Job, no seu protesto. É o que grita cada homem, quando a luz
da razão e da consciência irrompe nos seus pensamentos. Se a vida existe, porque tem de acabar? Que sentido tem a vida, se
não passamos de alimento futuro para as larvas dos colêmbolos?
“Os que nos são queridos andam sempre a voar à nossa volta”, li eu, já há algum tempo, no livro de um naturalista do
século XIX. “São os moscardos dourados que se alimentaram com as suas carnes.”
Macabro? Irreverente? Não, apenas concreto. É um dado de facto. Cabe-nos a nós e à nossa capacidade de reflectir,
transformar esta constatação numa coisa mais ampla. O que nos faz seguir em frente, ou obriga a voltar atrás é mais uma larva
branca e gorda do que a transcendência.
Digo “atrás” porque, ao longo dos anos, conheci muitas pessoas que se deixaram literalmente paralisar por este
pensamento. Se todos temos de apanhar um comboio, se não sabemos quando o comboio vai chegar e em que linha, porque
andamos numa lufa-lufa? Mais vale estar parado e esperar que o nosso tempo passe. Contudo, o comboio não chega e nós
temos de enganar a espera, podemos folhear uma revista, observar os outros passageiros, acertar o relógio, comer qualquer
coisa. “Que chatice!” suspiramos. Finalmente, o altifalante chama por nós. Chegou a nossa vez. Que libertação! Adeus, adeus
a todos!
Há muitas vidas que são vidas de medo, de ansiedade e, portanto, de espera. Todavia, uma vida de espera é uma vida
que nega o seu próprio princípio. Porque a vida, na sua realidade física, é, acima de tudo, transformação, movimento. A cada
minuto, ocorrem no nosso corpo milhões de processos bioquímicos que nos mantêm vivos. Basta que um seja interrompido
para resvalarmos rapidamente para o mundo das larvas.
À nossa volta, também há mudanças constantes. No ar que respiramos, no gerânio que estamos a regar, na criança a
quem damos a mão, nas folhas da árvore e na linfa que corre no tronco da árvore debaixo da qual estamos a passar. A Terra
gira sobre si mesma e à volta do Sol e, à face da Terra, há uma infinidade de formas vivas que giram, correm, saltam,
rastejam, nadam, voam e rebolam. Formas de todos os graus, de todos os níveis, desde os protozoários até aos elefantes. E
dentro de cada forma, há um fervilhar de movimentos de todos os tipos. A física e a química aplicam todas as suas leis e
propriedades — e provavelmente também leis e propriedades que ainda não conhecemos — para nos manterem vivos e
manterem vivo o universo que nos rodeia.
Os seixos são os únicos que estão parados e contemplam o mundo, os únicos que mantêm fixo o espaço entre os seus
elementos, como no primeiro instante e para sempre.
Nos últimos dois decénios, nasceu no mundo ocidental uma corrente de pensamento bastante difusa, a que eu chamo
“sentimentalismo da natureza”. Em que é que consiste? Consiste em amar a natureza e defendê-la, sem fazer a mínima ideia do
que ela é de facto.
É bastante normal que isso aconteça. A maior parte de nós vive uma existência que é o cúmulo da falta de naturalidade.
Assim, chega-se a chorar pelo que já não se tem. Na cidade, não se vêem muitas formas de vida. Pode-se erguer os olhos e, na
nesga de céu entre os prédios, vislumbrar o voo de uma gaivota ou de uma andorinha, baixar os olhos para um canteiro e ver
algumas borboletas raquíticas, e mais nada. São formas modestas, graciosas, inofensivas. Formas que podem levar-nos a crer
que a natureza é um mundo de paz e inocência, oposto à cega brutalidade do homem. Em suma, confunde-se a parte — uma
parte minúscula — com o todo.
Bastaria descer aos esgotos e ver a vida competitiva dos ratos, para se perceber que a natureza não é nenhum idílio. Ou
descer ainda mais, para o mundo terrível dos insectos, onde qualquer pesadelo, por mais paranóico e louco que seja, se
converte numa lei muito precisa da natureza.
A natureza não é um eterno pôr do Sol dourado, com golfinhos prateados a mergulharem nas ondas, elefantes a
caminhar, unidos pelas trombas, borboletas a pousarem nas flores e as flores a agradecerem-lhes por terem pousado em cima
delas. O amor genérico pela natureza, tal como a poesia genérica, não conduz a parte alguma.
O mundo à nossa volta é, na realidade, uma arena. Uma arena onde se combate de todas as formas possíveis para se
conseguir vencer os outros. É um mundo feito de aguilhões, garras, presas, dentes, acúleos, esporões, mandíbulas, couraças,
mimetismos, ardis e armadilhas.
Um mundo onde não é possível distrairmo-nos, nem que seja por um instante, ou baixar a guarda.
E continuamos no rio das perguntas.
Aqui, o “quem?” de pouco nos serve. O que temos à nossa frente é um “porquê?”. Um porquê tão grande como uma
dezena de catedrais colocadas umas em cima das outras. Tão grande que escurece e oculta o céu.
Porquê os esporões, as presas, porquê os mares de sangue e os ossos que estalam entre mandíbulas, como o sal sob os
sapatos? Porquê os terramotos e as erupções dos vulcões? Porquê a divisão entre perseguidores e perseguidos, predadores e
presas, parasitas e parasitários? Porquê os vírus? Porquê o homem que, logo que lhe é possível, ergue a mão e se transforma
em Caim?
O porquê do mal é um lago em que mais ou menos todos se afogaram. Os teólogos agarraram-se a todas as paredes que
pudessem servir-lhes de apoio e os filósofos fizeram o mesmo. Escreveram-se enciclopédias inteiras para explicar — e,
portanto, tornar aceitável — a presença do trágico no mundo.
Todavia, o problema mantém-se, irresoluto. Basta nascer para perceber que é assim.
Como é natural, trata-se de um problema que tem a ver com a esfera religiosa. Com efeito, num mundo criado ao acaso,
o mal só se manifestaria como uma dolorosa forma de necessidade. Contudo, se o universo é fruto da vontade de um Criador,
como é possível explicar que as coisas se passem assim? Como é que pode ser bondoso, se gosta de ver as suas criaturas a
devorarem-se umas às outras? Ou talvez seja, de facto, bondoso, mas fraco, ou distraído. Talvez se pareça com um cozinheiro
trapalhão que, enquanto amassa o bolo, olha para outro lado, pelo que o auxiliar pérfido consegue deixar cair na massa um
ingrediente que não faz parte da receita.
Se é, de facto, omnipotente, não podia imaginar o mundo como uma enorme pastagem povoada de bezerras e ovelhas,
cabritos e coelhos, borboletas e coleópteros, todos estritamente vegetarianos?
Havia necessidade de a evolução tirar, de repente, do seu chapéu mágico a mandíbula, a presa, a garra e a sede de
sangue? Não bastava a pureza da água para matar a sede às criaturas do mundo? Havia necessidade de a carne devorar a
carne? Havia necessidade dos buracos negros que devoram com a mesma sofreguidão o espaço e o tempo? Que necessidade
havia da entropia? E será mesmo a entropia que gere o futuro do universo? Ou existirá uma força qualquer que ainda não
somos capazes de entender? Até que ponto poderá a ciência explicar as coisas que acontecem, as coisas que aconteceram?
Durante um período da minha vida, fiz documentários naturalistas. Fi-lo porque, antes de escrever, era essa a minha
profissão, uma profissão escolhida por paixão. Todavia, não posso negar que, ao longo dos anos, o entusiasmo se foi
transformando em insatisfação. A mesma insatisfação — ou mesmo, raiva — que sinto quando vejo na televisão a maior parte
dos documentários sobre animais.
Darwin era um homem de génio e, como todos os homens de génio, conseguiu abrir uma fresta no mistério. A abertura
para o mistério exige sempre um elevado nível de imaginação, aliado à ausência de rigidez mental.
Os seguidores de um homem de génio procedem, em geral, em sentido contrário, estruturando rigidamente e
transformando em dogma o que era uma intuição da verdade.
Para viver em toda a sua plenitude, a verdade deve aliar-se à liberdade. Quando se alia ao dogma, converte-se num
“ismo”, ou seja, numa ideologia que se refere e se justifica a si mesma e que não só não leva a parte nenhuma, mas também
impede que os outros progridam.
Foi assim que o darwinismo se transformou num grande ficheiro organizado, com cada ficha no seu devido lugar. Não
há uma gaveta vazia, nem uma folha que esvoace. Está tudo rigidamente nomeado, catalogado, organizado. Não há perguntas
sem resposta porque não pode haver. O sistema é perfeito. Quando a resposta não é imediata, estende-se e alarga-se como a
massa da pizza, até a fazer cobrir o prato.
De onde provinha a minha insatisfação na feitura dos documentários? Do facto de tudo já estar estabelecido, como no
ficheiro. Não havia espaço para a surpresa, o espanto, a dúvida. Diante de mim, havia uma máquina — o animal — e eu já
sabia tudo acerca dessa máquina, o que ela iria fazer e como o iria fazer e porque o iria fazer. Sabia porque vivia e porque
acabaria por morrer. O animal não existia como criatura portadora de beleza e de mistério, mas como demonstração de um
teorema.
Basta ver alguns dos documentários transmitidos para se perceber que é essa a visão que impera. Pessoalmente,
considero-os deseducativos e, por isso, desaconselho sempre que os mostrem a um grande número de crianças.
Porque é que são deseducativos? Porque ensinam o dogma do neodarwinismo. O mundo é dos mais fortes. O destino
dos outros — dos não capazes — é sucumbirem. E é justo que assim seja porque se trata de uma “lei da natureza” e a natureza
conhece a verdade do mundo.
Mas temos mesmo a certeza de que é uma verdade da natureza? Não será antes um óculo cómodo que utilizamos para
ver apenas a nesga de realidade que nos convém ver? Decidimos que é a verdade e, portanto, apontamos o óculo para o ponto
exacto onde temos a certeza de a ver. O que sucede à direita, à esquerda, por cima, por baixo do nosso campo visual não nos
diz respeito. Não nos diz respeito porque somos preguiçosos, porque temos medo, porque é cómodo ver as coisas sempre da
mesma maneira.
O factor que me fez intuir a fragilidade da selecção natural é a beleza. As cores extraordinárias e as extraordinárias
formas das criaturas vivas têm — ou deveriam ter — sobretudo duas funções: favorecer o acasalamento e evitar a predação.
O que, a um olhar ingénuo, parece ser uma dádiva de beleza gratuita, não passa, para a maior parte dos cientistas, de
uma estratégia do acaso para favorecer a afirmação de uma espécie.
Todavia, eu quero ser ingénua porque a ingenuidade é a ausência de esquemas. E por isso, quando penso nos matizes da
cabeça de um grou-coroado, nas vistosas escamas dos peixes da barreira de coral, nas pequenas esmeraldas voadoras que são
os colibris, penso numa beleza que não age por utilidade, mas por um excesso de energia e de graça que se oferece aos nossos
olhos.
O princípio da sobrevivência explica um grande número de coisas, mas não as explica a todas. De acordo com a
selecção natural, no caso do mimetismo, por exemplo, há duas espécies — uma, não comestível pelos predadores e outra,
comestível — que se encontram no mesmo biótipo. As modificações sucessivas por que passa a que não é comestível para se
converter na que não é comestível vão sendo premiadas pela lei darwiniana, até criar um clone estético do modelo, isento de
riscos.
Será assim?
É assim, mas também não é assim. Porque há casos em que o imitador e o imitado são ambos comestíveis e outros casos
em que o modelo não comestível e o seu seguidor vivem em biótipos totalmente diferentes. Além disso, essas identidades de
aspecto exterior também podem manifestar-se entre espécies geograficamente muito afastadas.
E que dizer do fantasioso mundo da reprodução?
Se a natureza é tão realisticamente concreta — o resultado máximo com o mínimo de desperdício — porque será que é
tão difícil a fecundação das orquídeas e tão elementar a fecundação das avelaneiras, que só necessitam de uma leve brisa que
lhes sacuda os amentos?
Porque é que as baratas e os colêmbolos, que têm a mesma propagação à face da Terra, se reproduzem de formas tão
clamorosamente diferentes? Não bastava um sistema para todos, e o sistema que fosse o mais elementar, o das baratas, por
exemplo, que copulam com a mesma banalidade com que os mamíferos copulam? Quem sabe um pouco de biologia e teologia
depressa se apercebe de que uma das realidades inegáveis é a da extraordinária riqueza inventiva da natureza.
E o meio ambiente não desempenha o papel decisivo do grande seleccionador. É mais como uma avó indulgente que
permite que os netos façam quase tudo. A toupeira, por exemplo, é o resultado de uma típica adaptação à vida subterrânea.
Possui duas patas anteriores, denominadas fossórias, que lhe permitem escavar em todo o lado. O mesmo acontece com o ralo,
que é um insecto mas que, por convergência, desenvolveu o mesmo método de escavação. Se o meio ambiente fosse, de facto,
um censor, a toupeira e o ralo seriam os únicos capazes de povoar o subsolo, por serem os mais aptos. No entanto, o subsolo
está cheio de outras formas de vida estruturalmente diferentes. Está cheio de minhocas, cobras-de-vidro, formigas, ratos do
campo que não têm patas fossórias, mas umas patinhas cor-de-rosa mais parecidas com as do esquilo que, em vez de escavar,
trepa para os ramos mais altos das árvores.
Em suma, na natureza, há uma extraordinária vitalidade inventiva e essa vitalidade gera inúmeras perguntas. Perguntas
que nem sempre podem ser encerradas, por comodidade, no ficheiro daquilo que estamos convencidos de saber.
A natureza não é um mecanismo, tal como o animal não é uma máquina e nós não somos apenas macacos a quem caiu o
pêlo e que aprenderam a servir-se da língua e das mãos. Em nós e no mundo que nos rodeia, há um mistério e esse mistério
exige, acima de tudo, espanto e humildade.
É um mistério, não é um tabu ou um dogma. Portanto, também exige perguntas, muitas perguntas. As perguntas da
curiosidade e as perguntas da inquietação, as perguntas do estuário. As perguntas que nos permitem compreender quem somos
e para onde vamos.
Comecei com as formigas que correm sobre o fio — uma pergunta a que não sei responder — e cheguei às toupeiras e
aos ratos — outra pergunta a que não sei dar resposta. Entre as formigas e as toupeiras, surgiram muitas outras perguntas,
perguntas gigantescas, opressoras, devastadoras na sua banalidade repetida.
Porque é que as formigas correm? Porque é que os colêmbolos não copulam e plantam estacas? Porque é que existem os
dentes, as presas? Porque é que o sangue é delicioso, em vez de ser um veneno intragável? Porque é que existem as orquídeas,
porquê as inúteis caudas dos pavões e das aves-do-paraíso?
Porquê e quem?
Quem é que fez tudo isso, quem é que se diverte, se aborrece ou fica indiferente com o espectáculo terrível e
maravilhoso que se desenrola num pequeno planeta, desde há centenas de milhões de anos?
Quem e porquê? Entretanto, nós estamos aqui. Acordamos todos os dias sob os raios daquela grande estrela que queima
hidrogénio e continuamos a viver. Os nossos filhos também continuarão a viver, mas até quando? Até a estrela deixar de
brilhar, ou muito menos?
Ao andar pelos campos, sobretudo na Primavera, é cada vez mais frequente encontrar toupeiras mortas. Não têm
feridas, nem sinais de doenças. Parecem-se mais com mergulhadores que estiveram em apneia durante demasiado tempo e
chegam à superfície de boca escancarada, como se gritassem “ar”! Passeio e vou colhendo corpos de toupeiras, em vez de
flores. Acaricio-lhes o pêlo extraordinariamente macio e pergunto a mim mesma: “Porquê?”
Porquê essas mortes por aparente falta de oxigénio? A isto, infelizmente, soube responder quase de imediato. As
toupeiras morrem envenenadas. Quando vemos a erva a amarelecer nos campos e não é Outono, nem há seca, quando a erva,
em vez de amarelo-palha se torna cor-de-laranja, é porque alguém andou a lançar doses maciças de herbicida. O veneno,
infiltrando-se nas raízes, envenenou a terra e tudo o que vive na terra: os insectos, as minhocas, as larvas e, naturalmente, as
toupeiras. “Socorro!” — gritam as toupeiras, saindo. “Socorro!”
A evolução previu tudo, mas de certeza que não previu que as toupeiras fossem dotadas de máscaras antigás e de
pulmões e fígados sobressalentes.
“Socorro!” pedem as toupeiras, mas a quem?
Não tenho, por natureza, um temperamento optimista. A passagem dos anos e tudo o que acontece à minha volta não
contribuíram para o melhorar. Quando volto a pensar na história deste último século, sinto um certo alívio por não ter gerado
filhos. É um tempo que mete medo, mas ainda mete mais medo o tempo que está para vir.
Durante milhares de anos, o ser humano e o progresso tecnológico foram avançando aos poucos, lado a lado. Depois,
em pouco mais de cem anos, houve um vertiginoso salto para a frente, a ciência e a técnica transpuseram o horizonte e nós
ficámos parados num degrau, a jogar aos dados.
Ainda poderemos vestir as cotas do Renascimento ou o peplo dos romanos porque a evolução cultural tem sido
microscópica, mas, para matar, já não temos de nos atirar ao povoléu, brandindo o gládio. Basta-nos ficar sentados e carregar
num botão, ou regar os campos com herbicida. Em nós continua a agir o cérebro reptiliano e, nos nossos comportamentos
diários, não andamos muito longe dos primatas. Gritamos instintivamente ao ver uma serpente, formamos grupos e é com a
força do grupo que vamos avançando.
A evolução interior do homem, a evolução da consciência que caracteriza — ou deveria caracterizar — o nosso ser, foi
quase nula. As religiões, em vez de se revigorarem com o sopro do Espírito, dividiram-se em trialismos estéreis e violentos
— o meu deus é melhor do que o teu, o meu é verdadeiro e o teu, não — e provocaram, ao longo dos milénios, dezenas de
milhões de mortos inocentes. Seria esta a vontade do Omnipotente? Foi por isso que se revelou através do seu Filho? Para que
os campos fossem banhados pela chuva e pelo sangue? E será mesmo verdade que só existimos nós e Ele, no universo? A
nossa alma e os nossos pecados, de um lado, e o seu olhar inquiridor, do outro? Nesse caso, como deverá ser o hipotético
Além? Um grande espaço ladrilhado, branco e a cheirar a desinfectante, e nós, diante do omnipotente, como estranhos num
elevador, sem saberem o que dizer uns aos outros? Nós que, com o espírito de um comerciante diligente, durante toda a nossa
existência, avaliámos as nossas fraquezas, as nossas faltas e lhe oferecemos a nossa alma como um lençol bem dobrado,
dizendo: “Perdoa as nossas sombras, que até nem são muitas...”
E se Ele, em vez de dizer magnanimamente “são-te perdoadas”, respondesse com outra pergunta? Se a sua voz de trovão
varresse como um turbilhão os ladrilhos brancos, bradando: “Porque estás sozinho? O que é feito do esplendor do mundo que
te confiei?” Então, já não poderemos voltar atrás para irmos buscar as coisas de que nos esquecemos, e talvez seja melhor
assim, porque o que levaríamos à sua presença já não seria um jardim, mas um caixote cheio de lixo.
O que poderemos responder? Que usámos o mundo e o deitámos fora porque foi isso que nos disseram para fazer?
Porque o homem é a única criatura que nos interessa e tudo o resto não passa de uma útil e graciosa cenografia?
Quanta estupidez, quanta cegueira, quanta ignorância em relação ao mundo natural! Uma estupidez e uma ignorância que
nos conduziram ao limiar da loucura, da destruição total. E, mais extraordinário ainda, quanta extraordinária imbecilidade por
parte da Igreja que, justamente em nome de Cristo, do alfa e do ómega, deveria ter feito nascer e germinar em todo o lado o
princípio da partilha e da responsabilidade! Não se revive o drama de Cristo no mistério, na morte violenta de cada criatura,
no olhar arregalado do derradeiro instante que se ergue para as alturas e pergunta: “Porquê?”
As feras das estepes e as aves do Céu não foram moldadas com terra, como foi Adão? E, por acaso, não é Adão quem,
no Génesis, dá um nome a todas as criaturas? Porque será que não o faz o próprio Omnipotente? Todos os nomes e todas as
formas não estavam já dentro dele? Nesse caso, porque é que conferiu essa responsabilidade ao homem? O que é que nós
fazemos quando nasce um filho? Não lhe damos um nome? E não têm nome os nossos pais, os nossos avós, os nossos irmãos?
Dar um nome é partilhar um caminho de comunhão, de responsabilidade.
O olhar dos animais interroga-nos. Há medo nos seus olhos, terror. Não éramos nós, nós, que fomos feitos à imagem e
semelhança do Criador, que deveríamos cuidar deles? Por que motivo traímos a vocação de irmãos? Porque teremos exercido
— e continuamos a exercer — todas as formas de violência, todas as formas de sadismo, de crueldade? A quem é que
emprestámos o nosso rosto? Os nossos irmãos mais novos gritam o seu desespero, gritam o seu terror. Gritam e os seus gritos
não são muito diferentes das trombetas do apocalipse.
Assassinando a natureza, assassinamo-nos a nós mesmos. Assassinamo-nos porque depressa faltarão os recursos para
seguirmos em frente. Faltará o ar, faltarão a chuva e a água. Na nossa presumida superioridade, acreditamos que somos os
únicos dignos de viver. Sem nos lembrarmos de que somos o que somos porque, um dia, os aminoácidos se reuniram em
cadeias, porque se formaram as células e uma bactéria, enfiando-se na célula, se transformou numa mitocôndria. Aconteceu
assim com todos: com o protozoário, a alga unicelular e todas as formas de vida que nos precederam, constituin-do-se.
Dentro de nós, jaz a memória de cada forma evolutiva anterior e a memória do que nunca foi vivo. Dentro de nós,
sonham o seixo, a terra, a areia. Porque o seixo, a terra, a areia foram a plataforma de onde a vida foi lançada.
Como podemos ser tão parvos que pensamos que a redenção e a salvação se cumprem apenas no homem?
Salvar-se-á toda a criação, ou não se salvará sequer o homem. O que ficará para guardar será apenas um palácio que
ficou vazio.
“De todos pecados, há só um que não será redimido. Será redimida a ofensa contra o filho do homem, mas não o pecado
contra o Espírito Santo.”
Palavras claras, luminosas, mas tratadas ao longo dos séculos como os papéis deixados por uma excursão de escola.
Pisados, arrastados, deixados a apodrecer debaixo da lama e da chuva.
O Espírito Santo não é uma pomba que eSvoaça sem destino, é o espírito da vida. O espírito que dá a vida, qualquer
vida. É a emanação da Sabedoria do Omnipotente. Essa sabedoria a que a Bíblia chama “artífice de tudo”.
Há nela um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, subtil, ágil, perspicaz, claro, puro, inofensivo, amigo do bem,
agudo, amigo do homem, imutável, seguro, tranquilo, que tudo pode, tudo vê e que penetra em todos os espíritos, inteligentes,
puros, subtis.
A sabedoria é mais ágil que todo o movimento; Atravessa e penetra tudo Graças à sua pureza.
Que longe nos levou o fio das formigas!
Partimos do fio e fomos parar ao rio e percorremos o estuário do rio. Um dos braços era pequeno — o da técnica — e o
outro — o das perguntas — era maior. Contudo, os rios acabam sempre por se lançar no mar e o mar recebe-os, diluindo nas
suas águas salgadas as suas águas doces.
O percurso das interrogações não nos faz recuar, faz-nos avançar. Lentamente, de pergunta em pergunta, vou entrevendo
um novo horizonte. Não tenho medo e, por isso, avanço. No caminho, reparo que, a pouco e pouco, qualquer coisa em mim vai
mudando. Vejo o que não via. O que me atraía deixou de me atrair. Para onde vou? Vou para o mar. Não para o Adriático ou o
Tirreno, mas para o mar da sabedoria.
A irrupção da sabedoria é o encontro que cada homem deve ter com a verdade da sua vida. A sabedoria não dorme
sepultada nas bibliotecas, nem viaja nos congressos de filosofia, nem é uma borboleta muito rara que esvoaça por entre
palavras quase incompreensíveis.
Lá fora, está a chover e nós estamos em casa.
A sabedoria tem o olhar brilhante de um cão que está lá fora e espera, em silêncio, que o deixem entrar.
Espera à porta de cada um, à porta de cada vida porque “a multidão dos sábios é a salvação do mundo.” (Livro da
Sabedoria, 6, 24).
CADA PALAVRA É UMA SEMENTE
No dia 11 de Setembro, estava nas montanhas dos Dolomitas. Saí cedo para dar um longo passeio solitário, de mochila
às costas. O ar estava ameno, como só é possível após uma grande chuvada nos últimos dias do Verão. As vacas e os cavalos
ainda estavam nos pastos. Andei durante horas, no meio de bosques, pastagens e cabanas de pastores abandonadas. Debaixo
de uma árvore, vi um vitelo recém-nascido a tentar pôr-se em pé. Para o encorajar, a mãe lambia-lhe ternamente a cabeça, sob
o olhar pacífico das outras vacas. Mais adiante, um cavalo de crina loura puxava a custo um arado, ajudado por dois velhos
camponeses, de aventais azuis. As agulhas dos larícios já começavam a amarelecer e nos ramos dos mirtilos e das
framboeseiras viam-se poucos frutos, já secos. Ao longe, os cumes rochosos tinham um brilho quase irreal contra o céu azul.
Nesse dia, tudo emanava esplendor. A pura glória da existência.
Ao regressar, quando o crepúsculo já envolvia as coisas em redor, encontrei uma das minhas leitoras que me convidou
a ir a sua casa beber alguma coisa. A minha atenção fixou-se logo num belo pessegueiro que havia no quintal, pelo que nos
pusemos a falar da melhor forma de o podar e da melhor época para o fazer, enquanto íamos bebendo chá quente. De repente,
o filho adolescente entrou, gritando: “Aconteceu uma coisa tremenda!” Tinha acabado de ligar a televisão, para ouvir as
notícias. Eram quase oito da noite. Há já muitas horas que o mundo que nós conhecíamos deixara de ser o mesmo.
Nunca acreditei na bondade natural do homem. Nasci numa cidade fronteiriça, numa terra devastada pela guerra, numa
altura em que, historicamente, essa devastação tinha terminado há muito pouco tempo. Durante muitas dezenas de anos, os rios
acres do ódio, das vinganças e da morte tinham envolvido tudo. Na minha infância, o rosto do lobo mau do Capuchinho
Vermelho era o de Hitler, os seus passos e os dos seus seguidores ecoavam ao longo dos meus dias, ribombavam durante as
noites. Via-lhes os olhos semicerrados e amarelos, as garras afiadas como espadas, vivia permanentemente com o seu hálito
gelado a roçar-me o pescoço. Sabia que tinham morrido, mas sentia que a sua morte era apenas aparente e que, a qualquer
momento, podiam voltar a materializar-se porque a força das trevas era a força que governava o mundo. Iriam ressurgir com
outros nomes, com outros rostos, para cumprirem a mesma missão: profanar a vida, destruir tudo o que vive, tudo o que existe
e ama, tudo o que é sagrado. Cresci a desenhar cruzes, sentada no chão, enquanto o fumo da morte entrava em mim, à mistura
com os relatos que ia ouvindo à minha volta. O do tio a quem ficou só um braço, do amigo cuja única recordação era um
sapato, dos primos desaparecidos, um a seguir ao outro, na Rússia e dos outros que tinham sido lançados ainda vivos nas
dolinas. Depois, havia aqueles senhores que tinham um número no braço e jogavam silenciosamente às cartas, na sala, e outros
que se tinham volatilizado para sempre no calor dos fornos.
Tinha havido uma guerra mundial para os meus avós, uma guerra mundial para os meus pais, só me restava esperar pela
terceira, a guerra para os nossos filhos, porque as guerras eram distribuídas, equitativa e generosamente, por cada geração.
Todavia, enquanto o meu avô combateu com arma branca, corpo a corpo, nós limitar-nos-íamos a esperar pela morte que viria
das alturas. Um grande fumo, macio como nata batida, envolver-nos-ia, morreríamos quase de imediato e os poucos
sobreviventes veriam nascer-lhes duas cabeças, escamas longas e verdes e uma cauda roxa.
A minha descrença na bondade natural do homem nunca me levou a ficar surpreendida com a exibição da sua maldade.
Pelo contrário, o que me surpreende é que nos tenhamos esquecido dessa tendência natural para o mal, que tenhamos perdido a
memória das nossas origens. Quem gerou todas as estirpes que povoam a Terra não foi Abel, morto precocemente, foi Caim.
Um céu vazio e um paraíso de fácil construção à face da Terra desviaram o homem dos seus passos. A compreensão da
técnica — e o seu domínio — deram a ilusão de que o próprio saber se podia estender ao coração. Sem Céu — e sem um
caminho a percorrer —, o próprio homem transforma-se em máquina e, como todas as máquinas, pode funcionar bem ou mal,
depende da construção, do programa, da manutenção. Sem os pratos da balança que o arcanjo Miguel segura delicadamente na
mão, qualquer acção se torna relativa. E boa se me convém, se é útil para o meu grupo, para a minha família, se favorece o
meu projecto de transformar o mundo todo num mundo que imagino ser melhor.
Sem a ideia da redenção, a História transforma-se numa arena onde os vencedores passam a vida a amontoar os corpos
dos vencidos, na brincadeira de um cachorro que confunde a cauda com uma presa e a persegue, rodando sobre si mesmo,
cada vez mais excitado, cada vez mais feroz, até ficar exausto.
Sem a ideia da redenção, a vida dos seres humanos não é muito diferente da de excursionistas surpreendidos pelo
nevoeiro. Por que estrada viemos? Para onde vamos? Ninguém tem uma bússola, avança-se às cegas, voltando sempre pelo
mesmo caminho e, por isso, quando a morte chegar, teremos gasto as solas dos sapatos, parados no mesmo sítio.
Uma casa de campo abandonada depressa passa a ser morada das ervas daninhas e das árvores. Um novelo rastejante
de lianas apodera-se dos quartos, das casas de banho e da cozinha, introduzindo-se nas fendas das paredes, nos interstícios
das fechaduras. O humano desaparece, devorado pelo verde, porque a natureza não gosta do vazio e demonstra-o sem perda de
tempo.
Um Céu vazio — o céu da chamada liberdade, da emancipação — transforma-se assim num céu grávido: gera ídolos
com a mesma frequência generosa com que os afídeos põem ovos. Há o ídolo do progresso, da tecnologia, da religião, da
propriedade, do domínio, das ideologias, da imortalidade e depois há os ídolos mais pequenos, os modestos totens pessoais
que fabricamos, dia após dia, para conseguirmos sobreviver. “Mas os ídolos são como um espantalho numa plantação de
pepinos e não conseguem falar. Têm de ser transportados porque não andam por si mesmos. Não tenhas medo deles. Não
fazem mal, nem conseguem fazer bem.” (Jeremias 10,5)
Enterrados no lixo do palavreado mediático, já perdemos a percepção da palavra. Um rio de ruído vazio atravessa os
nossos dias e escorre por nós, deixando-nos cada vez mais sujos. Em muitos lados, ergue-se o canto das carpideiras: “A
poesia tem os dias contados”... “A narrativa está morta e apodrece”... “O ser humano está demasiado avançado para se
entreter com esses restos da sua história evolutiva”... “Se tudo já foi dito, porque haveria de se repetir?”
A ausência de silêncio e o palavreado constante fizeram-nos esquecer o poder e o mistério que se escondem na
profundidade da palavra. Não da palavra-casca, da palavra-sussurro, mas da palavra-eco de outra Palavra. Nessa Palavra,
não há repetição, cansaço, mas a constante renovação de uma nova compreensão. Assumir para si a palavra-eco é muito
diferente do que ser-se criativo e usufruir da nossa fantasia. É pôr às costas uma mochila cheia de pedras, beber todos os dias
um pouco de veneno e gastar sem piedade o nosso corpo e o nosso espírito. É imergir no mal, na devastação, mergulhar nas
trevas do coração, não por se sentir prazer, como quereriam os cínicos, com as próprias trevas, mas para procurar o ponto, o
local, o momento em que uma réstia de luz pode nascer da mais funda escuridão.
Diante de cada folha branca, não sinto a excitação alegre que se supõe pertencer à criatividade, mas o medo de Jonas
que, em vez de ir a Ninive, embarcou para Tarsis, ou o temor de Jeremias quando diz: “Eu não sei falar: sou ainda muito
novo.”
Em tempos tão dramaticamente confusos, não se podem atirar as palavras ao ar como se fossem coentros, nem sacudi-
las para onde calha, como se sacodem as migalhas da toalha. Cada palavra é uma semente e o terreno onde medra é o coração
do homem.
Tal como as sementes, as palavras podem germinar de imediato, ou esperar anos em estado de dormência. Podem gerar
flores e frutos, que proporcionam beleza e alimento, ou ervas daninhas, que cegam e sufocam quem as deixou crescer.
Há as palavras-instigação e as palavras-reflexão, palavras que explodem em raiva, em ressentimento e outras que, pelo
contrário, são capazes de conter qualquer tipo de explosão. A dispersão das palavras-semente é anemó-fila, propaga-se com o
vento, a brisa transporta-as, uma rajada de vento arranca-as, ninguém pode prever quando pousarão na terra, nem em que lugar
irão cair. É também por isso que a escrita gasta, porque é um peso e, hoje mais do que nunca, uma responsabilidade.
Se há uma semente que a escrita deve propagar, não é a do repouso, de uma planta que dá sombra e abrigo, mas a da
inquietação, invisível e pungente. Os campos e os bosques estão cheios de pequenas sementes espinhosas que se agarram a
tudo, às orelhas dos cães, às nossas peúgas, introduzem-se sorrateiramente nas pregas das calças e da pele, obrigando-nos a
mexer, a sacudir-nos, a despir-nos.
A semente da inquietação fere-nos o coração e obriga-nos a caminhar.
Antes de ser palavra, a escrita é visão. Vejo o que não é evidente, o que, por acordo tácito, foi mantido oculto. Vejo o
terrível, o devastador. Vejo o ciclone que se aproxima antes de qualquer instrumento de previsão.
A visão é solidão, ausência de conforto, troça por parte de todos os que erguem a cabeça e dizem: “O que é que estás
para aí a dizer? Não vês que está um sol esplendoroso?”
Para sobreviver à visão, tem de se arranjar uma espécie de antídoto. Há quem beba, quem tome psicofármacos, quem se
torne fanático de uma coisa qualquer. Eu optei por tratar das árvores. Ao longo destes anos, plantei muitas. Carvalhos,
azinheiras, pinheiros marítimos de dez centímetros de altura, oliveiras, salgueiros e dezenas de árvores de fruto. Todas as
manhãs, em todas as estações, mal me levanto, vou vê-las.
Com o passar do tempo, fui compreendendo que as árvores não são estruturas rígidas, mas criaturas vivas e sensíveis.
Quando se decide tratar delas, tem de se possuir a mesma disponibilidade de espírito que se tem com as crianças. A primeira
coisa que essas criaturas nos ensinam é que crescer é uma coisa extremamente difícil. Cada árvore tem um número
terrivelmente grande de inimigos: insectos fitófagos, sugadores, carpófagos, devoradores da casca, podridão das raízes, focos
de bactérias, vírus fulminantes, esporos fúngicos capazes de a devastar em poucas horas.
Por conseguinte, a segunda lição que nos ensinam é a da vigilância. Ando entre elas, levanto-lhes as folhas, raspo
levemente a casca, desinfecto uma ferida, dou-lhes de beber quando têm sede, cubro as raízes com palha quando a temperatura
desce demasiado depressa e pode gelar a linfa.
Todavia, a vigilância, para ser eficaz, deve aliar-se à atenção. Posso andar entre as árvores, pensando numa viagem que
quero fazer, ou parar para as observar, não como se fossem um móvel ou um par de sapatos, mas como uma coisa viva, que
atrai o meu amor e necessita da minha sede de conhecimento. De facto, como posso distinguir um insecto bom de um insecto
mau, como posso saber onde e quando devo podar, como alimentar e proteger, se antes não estudei as leis que permitem o
desenvolvimento óptimo daquela planta?
E nós, seres humanos, como pensamos crescer interiormente, se já não sabemos nada de nós mesmos?
Combater o mal com o mal conduz a um beco cada vez mais estreito. Se, para eliminar um parasita, uso um veneno
potente, elimino não só o parasita, mas também os seus predadores úteis e os predadores dos predadores. E assim enveneno as
abelhas e os polinizadores e a planta passará a ser um arbusto estéril, no meio de um deserto. A única forma de vencer os
parasitas é fortificar a planta, alimentá-la, regá-la, fazer crescer as raízes porque o mal não pode ser derrotado totalmente e
para sempre.
O mal, a doença, a destruição e a morte têm, de facto, uma misteriosa razão de existir. Não se atinge a salvação
caminhando ao pôr do Sol, à beira de um mar calmo, mas empoleirando-nos como cabras nos montes, no meio da aridez, dos
espinhos, correndo o risco de cairmos lá de cima, a cada instante.
O mal não se pode combater com o mal, mas também não se pode combater com a retórica do bem e dos bons
sentimentos. É como querer construir um tanque de guerra com palitos. “Devemos amar-nos uns aos outros!!” “Devemos
querer a paz!” E porquê, se o mundo todo à nossa volta nos fala apenas de prepotência, de vitória dos ímpios, do triunfo da
crueldade? “Que fareis no dia do castigo, quando a tempestade chegar de longe? A quem ireis pedir auxílio e onde ireis
esconder as vossas riquezas? Sereis humilhados como prisioneiros, caindo por terra com os que morrem.” (Isaías, 10, 3-4)
O pecado do nosso tempo — e de todos os tempos — não é o mal, mas a idolatria. É ela que leva o homem a andar à
deriva e transforma a história da Terra numa corrida desenfreada, rumo à aniquilação.
“Haveis de ter vergonha dos carvalhos que amais e dos jardins escolhidos. Sim, sereis como carvalhos de folhas secas
e jardins sem água. O vigoroso é como a estopa e todo o seu trabalho é uma faúlha, ambos arderão juntos e ninguém poderá
apagar o fogo.” (Isaías, 1, 29-31)
Sim, deveríamos plantar mais árvores, observá-las, compreender que, entre nós e elas, a diferença é realmente pouca
porque tanto a sua vida como a nossa dependem da generosidade da luz e da abundância de água. Da luz que é verdadeira luz e
da água que mata a sede. Deveríamos semear mais palavras. Palavras que agui-lhoam, que ferem, palavras que fazem erguer
os olhos, palavras que, na estação propícia, saibam germinar e transformar-se em plantas. As plantas da esperança, do amor e
da misericórdia.
Deveríamos ser de novo capazes de ver, de escutar, de renovar a aliança. Podar o ouvido, o olhar e o coração, tal
como, na enxertia, se podam os ramos para que a flor nasça e se transforme em fruto.
O GOLFINHO E AS SOMBRAS CHINESAS
Cantam as cigarras, sobre o mar e as rochas desceu a calma das horas de maior calor. À sombra da minha tenda, só
entrevejo um petroleiro ao longe e, mais próximo, um pequeno barco à vela. O casco está parado, a vela, inerte, tudo parece
imóvel, aparentemente privado de vida. Neste tempo de espera, vem-me de novo à ideia um episódio que um velejador meu
amigo me contou, há uns anos atrás. Andava a fazer uma travessia solitária entre a Toscânia e a Sardenha, a bordo de um
pequeno barco. Para se sentir acompanhado, escutava uma sinfonia de Mozart. De repente, viu aproximar-se um golfinho.
Nadava, dançando ao lado da quilha, como se acompanhasse o ritmo da música. Seria apenas uma sugestão? Para o confirmar,
o meu amigo desligou o gravador. Houve longos minutos de silêncio. O golfinho parecia ter desaparecido. De repente, saltou à
tona da água, batendo com força no casco, como se quisesse dizer: “Então, o que é que se passa?” Prontamente, o meu amigo
voltou a ligar o gravador e o golfinho, feliz, recomeçou a dançar à volta do barco, acompanhando-o até à Sardenha.
Portanto, o golfinho é capaz de distinguir e apreciar a harmonia musical, facto que já não me surpreende muito porque,
quando toco flauta, as vacas do meu vizinho juntam-se todas debaixo das minhas janelas e ficam ali, muito atentas. Com os
focinhos húmidos e os olhos brilhantes, como damas que estão a assistir a um concerto.
As últimas pesquisas da fruticultura dizem-nos que as árvores que ouvem música de Bach se curam das doenças, ficam
mais fortes e dão muitos frutos, ao passo que as árvores que ouvem música hard ou techno definham rapidamente e deixam cair
os frutos antes da maturação. No entanto, as árvores não têm ouvidos, os golfinhos vivem debaixo de água e as vacas não
sabem, com toda a certeza, ler as partituras.
É evidente que todas as criaturas vivas são capazes de reconhecer a beleza, a harmonia e essa percepção transforma-se
espontaneamente em alegria, dança, produção de vida.
É frequente ouvir-se dizer que a sociedade actual se descristianizou, mas, quanto mais olho à minha volta, mais noto que
esse termo não exprime exactamente a ideia. A palavra “descristianizar” pretenderia sugerir uma espécie de analfabetismo por
falta de utilização do que se aprendeu: já não se sabem as coisas, não se recordam, mas, com alguma boa vontade e empenho,
poder-se-ia regressar ao traçado inicial.
Acredito, isso sim, que a sociedade que o século XX nos confiou é uma sociedade que se colocou totalmente à margem
do cristianismo. À margem do cristianismo e à margem do judaísmo, à margem de uma lógica monoteísta baseada no respeito
da lei e que vê no processo da redenção a possibilidade de progresso das pessoas e dos povos. De facto, a redenção é a
possibilidade de fazer história, não de ser vítima da história.
Sendo assim, como é que poderemos definir o nosso tempo? Qual é o factor que o unifica e o distingue? Claro que é
uma época de grandes contradições. Na verdade, atingimos um desenvolvimento tecnológico que era impensável há vinte anos
atrás e um subdesenvolvimento — ou melhor, uma degradação ética — igualmente insuspeitável.
Vivemos na época das antinomias. Do máximo bem-estar e da maior insatisfação, da extrema segurança e dos medos
incontroláveis, das sofisticadíssimas comunicações planetárias e da incapacidade total de comunicar entre as pessoas.
O nosso tempo é um tempo ditatorialmente democrático, é o tempo do domínio absoluto do ruído, do alarido, dos gritos,
da desarmonia sonora que já atinge e envolve os seres humanos de todos os povos e de todas as condições sociais.
Sim, se tenho de pensar num factor unificador da nossa época, é justamente o alarido.
O silêncio morreu e, ao desaparecer, arrastou consigo tudo o que constitui a base do ser humano. Não há silêncio no ar
à nossa volta, não há silêncio nos espíritos, nos corações. A ausência de silêncio é o triunfo daquilo a que todas as tradições
orientais chamam “o macaco” — o nosso espírito — que gera ruídos, grita por causa de uma sombra, se agita, salta, faz
alarido para abafar o alarido dos outros.
O macaco gera um turbilhão constante de impressões, opiniões, alarmes, um rio a transbordar que faz gorar qualquer
tentativa de criar, no espírito e no coração, uma estabilidade e uma ordem verdadeiras.
O alarido incomoda-nos. Consultando o dicionário, descobrimos que “incomodar” significa: estorvar, impedir, obstar,
desviar, distrair.
Sim, há sempre alguém ou alguma coisa que quer desviar-se do silêncio, evitar que contemplemos a nossa realidade
mais profunda, impedir que dessa realidade nasça e cresça a nossa evolução como pessoas.
“O que a irrigação é para as plantas, é o silêncio para o aumento do conhecimento” escrevia Isaac de Ninive no século
VI d.C. De facto, sem silêncio, não posso conhe-cer-me, não posso conhecer o outro. Sem silêncio, não posso abeirar-me da
fonte do saber.
Mas de onde vem o alarido? Porque é que não há força que consiga contê-lo?
“Não fazes ideia”, dizia-me recentemente uma amiga minha que é neuropsiquiatra infantil, 'do número de crianças em
idade pré-escolar que me aparecem no consultório com perturbações graves. Crianças que gritam, mordem, dão pontapés,
cospem na cara dos avós. Os pais chegam com ar contristado e dizem: "Nós não sabemos como lidar com ele, veja o que pode
fazer." Tratam o filho como se fosse um electrodoméstico de que perderam as instruções, um gadget tresloucado cujos
circuitos só um técnico saberá voltar a pôr a funcionar correctamente. E esta a verdadeira emergência dos últimos dez anos”,
concluía ela, com tristeza, “mas não provoca alarido e, por isso, ninguém fala do assunto.”
Se quero plantar uma árvore no fim do Inverno, costumo preparar o terreno no início do Outono. Há sempre um factor
determinante que contribui para o nascimento e a evolução de um acontecimento novo. Por isso, o século XX, com o seu rasto
trágico de ideologias, niilismo, guerras e extermínios, semeou no novo milénio a bomba-relógio do relativismo ético.
O bem e o mal já não são valores reconhecíveis colectivamente, são derivas do sentimentalismo individual. Se o bem
não existe em si, passa a ser bem o que me agrada, o que me satisfaz, e, por conseguinte, mal é aquilo de que não gosto, o que
me inquieta, me faz sentir mal.
Graças ao relativismo ético, a nossa sociedade renunciou à sua função educativa A família não educa, a escola não
educa, o contexto civil não educa.
De facto, educar significa conduzir, apontar um caminho, mas, para isso, haveria que saber o rumo a seguir. Como se
pode apontar um caminho, se a vida é um vaguear sem destino, se não há limites a respeitar, horizontes a atingir? Portanto,
mais vale confiar no acaso, a bondade natural do ser humano fará o seu papel e do resto tratarão os acontecimentos com que
iremos deparar, que nunca serão bons, nem maus e de que, além do mais, não seremos minimamente responsáveis.
A tarefa principal dos pais modernos parece ser apenas a de não criarem obstáculos (que poderiam provocar traumas
incuráveis), não estabelecerem limites (para não correrem o risco de cortar as'asas à natural criatividade infantil). Pensa-se
que será a sabedoria inata da criança a fazê-la escolher o caminho que a levará a realizar-se da melhor forma.
Há um belíssimo provérbio africano que diz: “Para se educar uma criança, é preciso uma aldeia inteira.”
E é mesmo assim, precisa-se da variedade e da diversidade das relações e, ao mesmo tempo, da coesão de uma
comunidade que respeita e faz respeitar as suas leis.
Talvez seja por isso que a acanhada família mononu-clear, apesar de todos os seus cuidados e subtilezas pedagógicas,
gera, na maior parte dos casos, crianças eternas, capazes de conjugar até ao infinito um único e importuno verbo: “Eu quero”.
E ninguém reparou — ou melhor, ninguém quis reparar — que, entretanto, o provérbio africano foi assumido a nível
planetário. Só que já não é o conjunto dos parentes — ou seja, o contexto social feito de pessoas, rostos, histórias
humanamente compreensíveis — que educa, mas a anónima e poderosíssima e subtilmente perversa aldeia global.
Perante a abulia educativa dos pais, perante a apatia da escola e a ausência de um grupo formativo, a comunidade
educadora passa automaticamente a ser a que é constituída pelo rosto opaco dos mass media, da grande antena que domina e
envolve os nossos dias com o seu constante grasnar.
É ela que nos diz no que devemos acreditar e o que devemos desprezar, o que escandaliza e o que, pelo contrário, deve
merecer o nosso aplauso. É ela que nos impõe a certeza de que, sem a posse de alguns objectos determinados, resvalaremos
para o grande mar dos zés-ninguéns. Como é natural, tudo acontece de uma forma democrática, desprovida de obrigações. Na
verdade, para evitar rebeliões, temos de estar convencidos de que somos sempre nós — e só nós — que escolhemos. Mas será
mesmo assim?
Há uns dois anos atrás, houve duas raparigas filipinas que estiveram hospedadas em minha casa, em Roma. Andavam
nos melhores liceus de Manila e, pela primeira vez na sua vida, tinham ido visitar os pais ao país para onde tinham emigrado
há muitos anos, em busca de trabalho. Era uma viagem “instrutiva”, para elas perceberem quanto trabalho, quanta renúncia
estava por detrás dos privilégios dos seus estudos em Manila. Todavia, instrução houve muito pouca. A estada de ambas foi
uma frenética correria entre uma loja de telemóveis e outra de roupa desportiva. Sabiam dizer as marcas de cada objecto por
ordem decrescente, de acordo com o valor de culto e o seu preço relativo, como se fosse o rosário ou as litanias dos santos. E,
naturalmente, veneravam as mesmas marcas, os mesmos modelos que os nossos jovens idolatram. Nos intervalos das compras,
esparramavam-se nos sofás da casa, suspirando, entediadas. Nunca sentiram vontade de perguntar fosse o que fosse, de olhar
pela janela, nunca houve o desejo ou a ousadia de dar um passeio sem destino, para cheirar um perfume, observar um rosto,
ver como as ruas de Roma são diferentes das ruas de Manila.
O que inquieta, nesses jovens planetários, é essa espécie de avidez idiota. Todas as forças estão direccionadas,
concentradas no objecto do desejo. Uma vez adquirido, a mesma energia, cujo poder ficou intacto, desloca-se para outro
objecto e depois para outro, numa corrida cujo fim não se consegue vislumbrar. A escolha terá sido sua, ou terão sido
influenciados? E quem é que os fez acreditar que a vida é aniquilação da pessoa em função da posse? Quem levou os jovens
de Brasília, Moscovo, Pequim, Sidney, ou San Diego a acreditar nisso? Quem os fez decidir que têm de possuir aqueles
sapatos, aquele telemóvel que tira fotografias, aquele modelo de T-shirt?
A futilidade dos objectos, a sua insubordinação em relação à sua função original é o grande moloch destes tempos.
Essa perseguição obsessiva atrás de frivolidades ido-látricas lembra-me cada vez mais o comportamento dos lemingos,
os pequenos roedores do Norte da Europa que, de repente e por motivos inexplicáveis, atravessam as charnecas a correr e
lançam-se no mar, onde morrem.
Essa perseguição do que é fútil projecta-nos constantemente num futuro imaginário, que não edifica. Suicidamo-nos
diariamente, com o olhar extasiado do vitelo de ouro — os inúmeros vitelos de ouro baratos — e, entretanto, a nossa vida,
com o seu mistério, com as suas perguntas, foge-nos das mãos, deixando-nos à mercê de manifestações incontroladas e
alarmantes: inesperados ataques de pânico, suicídios insuspeitáveis, gestos de loucura de pessoas aparentemente normais que
matam a família, sem saberem porquê.
Sempre considerei a diversidade como a maior riqueza do mundo. Cada flor, cada insecto, cada mamífero, cada mineral
tem uma relação de reciprocidade com o mundo vivo.
Para os seres humanos, o discurso da diversidade também é fundamental. Cada um de nós nasce com uma atitude
diferente — de sensibilidade, inteligência, cultura — e o objectivo da vida é justamente cultivar e compreender essa nossa
peculiaridade, levando-a a dar os seus melhores frutos. O caminho do crescimento é portanto o da descoberta e da construção
lenta do nosso rosto, da nossa história. Rosto e história que são únicos e irrepetíveis, mas complementam todos os rostos e
todas as histórias que nos rodeiam.
É essa a vocação do ser humano, o apelo para que descubra qualquer coisa, numa evolução contínua, numa contínua
inquietação, buscando constantemente o horizonte por detrás do qual se intui, oculta pelo véu do mistério, a grande e indizível
verdade.
Trata-se, porém, de uma vocação que exige a capacidade de escutar, escutar uma voz que chama cada um de nós pelo
seu nome. Mas quem é que poderá chamar-nos, se fomos gerados pelo acaso, se o céu está- vazio e o único ruído que chega
até nós é o silvo dos satélites?
Se somos filhos do acaso e o céu está vazio, o único ponto de referência estável é a grande antena, que nos programa e
nos guia, com o seu alarido incessante, para todos os pontos do planeta, fazendo-nos acreditar que somos totalmente livres e,
ao mesmo tempo, inevitavelmente programados. Livres de existir na tirania do ego, programados pelo fluxo das hormonas e do
código genético dos antepassados.
A grande antena faz-nos correr atrás das sombras chinesas, convencendo-nos de que são a realidade. Em-purra-nos
constantemente para um sucesso mediático, efémero, que tem de ser constantemente confirmado, para não repararmos que
somos, de facto, escravos. Escravos das modas, dos pensamentos, da erosão homoge-neizante da aldeia global.
A grande antena passa o tempo a falar de tolerância, mas bastar-nos-ia reflectir um pouco para percebermos que uma
vontade que elimina a diversidade é a primeira geradora de intolerância.
A grande antena mostra-nos constantemente a beleza onde não há beleza. Na eterna juventude do corpo, na capacidade
de gerar criaturas por encomenda, com o sexo que se pretende, a cor que se deseja, a inteligência que convém, na manipulação
da vida, na posse e no domínio.
A grande antena sacralizou os nossos direitos mais fúteis — os que têm a ver com a satisfação imediata e obstinada de
qualquer desejo — roubando sacralidade à única coisa realmente sagrada: a unicidade da vida humana.
A verdadeira beleza está, pelo contrário, inserida no património do universo. Cada estrutura mononuclear, cada reacção
enzimática, cada espectro cristalino contém em si o reflexo do esplendor. Todavia, esse esplendor mantém-se longe dos
olhares obtusos dos consumidores planetários, dos filhos que não querem ser filhos, dos seres que contemplam o belo no
efémero, de criaturas que vivem imersas no sentimentalismo, mas não possuem sentimentos, numa paródia da vida em que se
dança e canta, sem nunca se deixar de rir histericamente.
A beleza só poderá mudar o mundo, se os homens conseguirem voltar a vê-la, mas, para a verem, terão de percorrer o
longo caminho que transforma o coração de pedra em coração de carne, o caminho que elimina a opacidade do olhar,
tornando-o vivo e constantemente aberto ao espanto. Esse caminho que permite que os ouvidos se ponham à escuta, rejeitem o
ruído e acolham o silêncio. Acolher e esperar. Esperar com paciência que o silêncio fale com “o murmúrio de uma leve brisa”
(Primeiro Livro dos Reis, 19, 12.)
A beleza poderá salvar o mundo, se as pessoas conscientes, as pessoas que têm a capacidade de comunicar,
conseguirem perceber que o pensamento, hoje mais do que nunca, deve ser transformação, e que ensinar a pensar é ensinar a
ver de forma diferente.
Transformar-se é aprender a dizer sempre: “Sim, sim. Não, não” porque o que é de mais, como sugere o Evangelho,
vem do demónio.
Transformar-se é também privilegiar a pessoa em relação ao indivíduo, a diversidade em relação à homologação, a
ideia de que a verdade não é uma posse, mas um sentido em que se deve caminhar, uma meta que nos espera no fim do
caminho.
Transformar-se é privilegiar a procura do silêncio para se chegar à fonte do saber porque — como diz a Bíblia — nela
“há um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, subtil, ágil, perspicaz, puro, claro, inofensivo e amigo do bem”. (Livro da
Sabedoria, 7, 22)
Transformar-se é sentir-se parte de um mundo onde o discurso da filiação regressa como ponto central. E, por
conseguinte, de um mundo que volta a inserir-se na humildade da criatura e reaprende a sentir a vida como dádiva, como
respeito dos deveres e não como prepotência do direito.
Como esforço de construção.
FIM
Sobre a Autora
Susanna Tamaro é autora de inúmeros bestsellers, como Vai aonde Te Leva o Coração, A Alma do Mundo - Anima
Mundi, Responde-me e Um País para Lá do Azul do Céu, que, entre outros, se encontram publicados na Presença, na colecção
“Grandes Narrativas”. Na “Destaques”, para além deste Cada Palavra É Uma Semente, poderá igualmente encontrar Regresso
a Casa e Conversa com Susanna Tamaro - Um Respirar Tranquilo, ambos títulos que conheceram bastante sucesso.
Texto fonte Rtf: Desconhecido
Formatação/conversão ePub: