0% acharam este documento útil (0 voto)
49 visualizações13 páginas

Mudança Linguística

Este documento discute como as línguas mudam ao longo do tempo. Aborda as perspectivas dos neogramáticos sobre mudança linguística uniforme versus as críticas posteriores baseadas em variação entre dialetos. Também menciona fatores que podem acelerar ou retardar a mudança linguística.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato DOCX, PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
49 visualizações13 páginas

Mudança Linguística

Este documento discute como as línguas mudam ao longo do tempo. Aborda as perspectivas dos neogramáticos sobre mudança linguística uniforme versus as críticas posteriores baseadas em variação entre dialetos. Também menciona fatores que podem acelerar ou retardar a mudança linguística.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato DOCX, PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 13

Márcio Renato Guimarães

MUDANÇA LINGUISTICA1

Márcio Renato Guimarães

UFPR/SCH/DELLIN

Como as línguas mudam?

No texto de Silvia Luraghi, Causas da Mudança Linguística, vimos que as novas


formas linguísticas surgem predominantemente entre falantes da periferia das comunidades e
que situação de contatos entre dialetos ou com outras línguas aumentam a tendência de surgirem
formas novas.

Um ponto que não foi abordado no texto de Luraghi é o mecanismo com que essas
formas novas se espalham pela língua. Vamos contrastar a primeira proposta sobre esse
mecanismo, a dos neogramáticos (movimento teórico-epistemológico que surgiu na linguística
no século XIX) com o que se descobriu sobre as línguas depois disso. Mais especificamente,
vamos observar casos de mudança linguística no português atual (a mudança linguística que está
acontecendo na língua que você está falando agora mesmo). Na sequência, veremos como a
mudança linguística era vista pelos neogramáticos e como esse ponto de vista foi questionado
pelos dialetologistas.

As regras da mudança linguística e as leis sonoras

A perspectiva dominante, do ponto de vista dos neogramáticos, era a de que as regras de


mudança linguística (eles estudavam especificamente a mudança sonora) agiam de maneira
mecânica:

Toda transformação sonora, uma vez que age mecanicamente, consuma-se como uma
lei que não admite exceções, i.e. o controle da mudança pertence a uma coletividade
linguística, exceto no caso em que ocorre uma divisão dialetal, é sempre a mesma, e
todas as palavras, nas quais os sons se apresentam sob as mesmas circunstancias em que
age a mudança sonora, deverão apresentar a mudança prevista sem exceção.

(Georg Curtius, 1876)

Apesar de essa visão ter sido superada (como veremos a seguir), ela representa um
avanço com relação a visões anteriores. Em primeiro lugar, ela rejeita a noção de que são
alterações no “espírito da língua” que promovem as mudanças linguísticas, adotando a
perspectiva de que as mudanças são causadas por interações entre os sons nos ambientes em que
se encontram, entre outras circunstâncias. Em segundo lugar, ela representou a vitória de uma
visão uniformitariana sobre a perspectiva não-uniformitariana que, apesar de seriamente
contestada mesmo à época de Curtius, ainda era defendida por alguns linguistas. Na perspectiva
uniformitariana, não existe a alternância de fases de estabilidade, em que não ocorrem
mudanças sonoras, com fases em que ocorrem mudanças. O comportamento da língua com

1
Esta apostila foi elaborada como material de apoio às disciplina HL224 – LINGUISTICA III e HL397 –
LÍNGUA PORTUGUESA V, do Curso de Letras da UFPR. O texto é parte de um projeto de uma introdução
mais embasada e aprofundada à linguística histórica, para uso nas disciplinas de Linguística III e Língua
Portuguesa V. Como parte de um work in progress, ele ainda apresenta algumas quebras. Aceito de bom
grado críticas e sugestões da parte dos alunos dessas disciplinas, a quem ele é destinado.

1
Mudança linguística

relação à mudança é uniforme, ou seja, as mudanças ocorrem o tempo todo, em todas as fases
da história.

Observe que essa uniformidade não implica que as mudanças ocorram sempre na
mesma velocidade em todas as línguas, em todos os locais. A pesquisa histórica identificou uma
série de fatores sociais que podem acelerar ou retardar a mudança linguística. Em geral o
contato linguístico com línguas estrangeiras, o adensamento da população (sobretudo quando
esse adensamento põe em contato falantes de variedades dialetais diferentes de uma língua) e
períodos de enfraquecimento das instituições que veiculam na propagação da norma padrão
(como a escola), são identificados como fatores que propiciam e/ou aceleram as mudanças
linguísticas. Por outro lado, o isolamento (com relação a outras línguas), a baixa densidade
demográfica, e a atuação de fatores que contribuem para a manutenção e a propagação da norma
padrão, são fatores que retardam as mudanças linguísticas.

O francês, por exemplo, vivenciou um período de contato mais forte com línguas
germânicas, a partir das invasões bárbaras, do século IV em diante. Isso fez com que ele se
alterasse mais profundamente do que as línguas ibéricas e os dialetos do centro e sul da Itália
(entre eles, o italiano padrão):
latim italiano espanhol/português francês
amatus > amado >
amatus amato amado aimé
amata amata amada amata > amada >
aimée
capra > cabra >
capra capra cabra
chèvre
casa casa casa chèz
capu(t) capo cabo capu- > cabo > chef
isla insula > isla > isle >
insula isola
ilha île
Por outro lado, línguas como o islandês e o sardo experimentaram grandes períodos de
isolamento, o que contribuiu para o seu aspecto “arcaizante”. Observe-se que estamos falando
de uma “tendência”, o que significa que essas línguas não se mantiveram totalmente inalteradas.
Não se sabe de nenhuma língua natural que tenha permanecido inalterada durante séculos (ou
mesmo décadas), sendo utilizada por seus falantes.

LEI FONÉTICA – descreve os processos de mudança regulares e sistemáticos que


ocorrem na passagem de um estágio mais antigo para um mais recente. Para os
neogramáticos, "die Lautgesetze wirken blind, mit blinder Notwendigkeit" (Ostoff &
Brugmann, 1878: 326) – "as leis sonoras agem cegamente, segundo uma necessidade
cega". Os casos que não seguem as regras são formados por mutações anômalas,
explicadas por analogia. Um exemplo de analogia na mudança fonética é o caso da
palavra latina foresta (derivada da mesma raiz da palavra fora) que passou para floresta,
por analogia com a palavra flor. Alguns exemplos mais típicos de analogia, constantes
dos dicionários: contradança (< country-dance), ferrolho ( < verrŭc(ŭ)lŭ), golfinho (<
delfinŭ) e chaminé (< chimney). Segundo Coutinho (:150-5), a analogia com leiteira
poderia explicar o surgimento de um /t/ em cafeteira, bem como a analogia com
caminho poderia explicar o surgimento de um /nh/ em caminhão. A palavra saudade (<
Márcio Renato Guimarães

soedade < solĭtate) teria o seu ditongo explicado pela analogia com saúde. Alguma
motivação específica pode estar envolvida, como o eufemismo, em casos como
vagalume (que vem de caga-lume).

CRÍTICAS À NOÇÃO DE LEIS FONÉTICAS: A "cegueira" na ação das mudanças


linguísticas foi questionada por vários linguístas desde que foi proposta pelos
neogramáticos. Hugo Schuchardt (1885) observou que havia vários indícios de que as
leis fonéticas agiam em alguns dialetos, mas não em outros: por exemplo, as oclusivas
do proto-indo-europeu tiveram um resultado diferente no proto-germânico (em que as
mudanças foram regidas pela Lei de Grimm-Verner) e no proto-itálico (as oclusivas
surdas e sonoras se mantiveram; as oclusivas sonoras aspiradas evoluíram em oclusivas
sonoras não-aspiradas, quando em meio de palavra, e na fricativa labio-dental surda [f]
em início de palavra – cf. tabela). Da mesma forma, as leis fonéticas agem durante uma
determinada época: por exemplo, no período mais antigo da evolução do latim para o
português, as oclusivas surdas se sonorizaram quando em contexto intervocálico – lŭpŭ
> lobo; sĭte > sede; lacŭ > lago. As palavras que entraram, a partir do latim, a partir da
Idade Média, não sofreram essa alteração, conservando as oclusivas surdas originais:
lapis > lápide, lápis; vitalis > vital (cf. vita > vida); localis > local (cf. localis > lugar).

Com o advento da sociolinguística, alguns fenômenos de variação foram


estudados mais detalhadamente, tendo como base dados empíricos levantados. A
variação linguística pode ser entendida como um processo de mutação em curso – existe
variação entre duas (ou mais) formas porque a mudança ainda não se estendeu. A
mudança fonética, ao invés de se estender automaticamente – "cegamente" – para toda
a língua parece mais se propagar pelo léxico, atingindo algumas palavras antes de
outras. Um exemplo de variação que parece ser uma mudança em curso no português do
Brasil é o da ditongação de vogais tônicas em vocábulos oxítonos terminados por /S/:
caracteriza-se por pronúncias como "treis" para "três"; "puis" para "pus" e "faiz" para
"faz", por exemplo. Em uma análise feita com dados do português falado na Região
Metropolitana de Curitiba, Agostini et alii (2002) observaram que não só a taxa de
ditongação era diferente de falante para falante mas também de vogal para vogal. Além
disso, para uma mesma vogal havia a ocorrência de formas ditongadas junto a formas
não-ditongadas, às vezes para a mesma palavra produzida mais de uma vez pelo mesmo
falante:

3
Mudança linguística

Os autores observaram, ainda, que palavras com maior potencial de ocorrência


(como três, mês, mas efaz) tinham maior possibilidade de terem as vogais ditongadas do
que palavras com menos comuns, como inglês e capataz. Também observaram que a
ditongação diminuía sensivelmente em situações de maior formalidade de fala.

Um outro exemplo que pode ser citado envolve o segundo deslocamento –


Zweite Lautverschiebung, que atingiu apenas alguns dialetos do alemão, entre eles o
alemão padrão ou alto-alemão (Hochdeutsch). Por essa mudança fonética, as oclusivas
surdas do alemão evoluíram: I. em africadas (quando em início de palavra, quando
"geminadas" ou quando precedidas de outra consoante) ou II. em fricativas (depois de
vogal):

Antigo
Alemão
Mudança Alto Holandês Inglês
(Hochdeutsch)
Alemão
got. pund pfunt Pfund pond pound
p > pf
as. appel apfuli Apfel appel apple
got.
tiuhan ziohan ziehen trekken
t > (t)s
as. setzen setzen zetten sit
I
settian
as.
wekkian wecchan wecken wake
k>k
as. mahhon machen maken make
makon
as. opan
offan offen open open
p > ff as.
slâffan schlafen slapen sleep
slâpan
II as. fôt fuoz Fuß voet foot
t > ss
as. water wazzar Wasser water water
as. ik ih ich ik I
k>
as. bok buoh Buch boek book
got. = gótico; as. = Altskandinavien (antigo escandinavo).

Fonte: http://neon.niederlandistik.fu-berlin.de/de/nedling/taalgeschiedenis/germaans/
Márcio Renato Guimarães

Ocorre, porém, que essa mutação foi mais avassaladora nos dialetos alemães do
sul, onde atingiu praticamente todas as palavras. Nos dialetos alemães do norte (o
chamado baixo alemão, Plattdeutsch ou Plattdüütsch), a mudança não ocorreu. Entre os
dialetos do norte e os do sul, ocorre uma faixa intermediária em que o segundo
deslocamento ocorreu em algumas palavras, mas não em outras, como se pode observar
no mapa da próxima página.

Alternância entre formas que sofreram a mudança da Zweite Lautverschiebung (ao sul)
e as que não sofreram (ao norte). Fonte: Gerdt.

A conclusão a que se chegou é a de que as leis fonéticas não operam de maneira


"cega", ou seja, independente de qualquer motivação externa – seja extralinguística
(fatores históricos, sociais, geográficos, culturais) seja linguística (posição da palavra na
sentença, por exemplo).

Impacto da Geografia Linguística. Os grandes precursores da geografia linguística


foram os diealetologistas Georg Wenker (1852-1911) e Jules Gilliéon (1854-1926).

O trabalho do alemão Georg Wenker é pioneiro, tendo inspirado a pesquisa de


Gilliéron. Entre 1876 e 1880 ele enviou pelo correio questionários com 42 frase, a
40.736 escolas distribuidas por diferentes localidades em toda a Alemanha (nesta fase
ele não trabalhou com outros países germanófonos), solicitando aos professores que
traduzissem as frases para o dialeto falado naquela localidade. Ele obteve um total de
44.251 questionários respondidos (em algumas localidades, mais de um questionário foi

5
Mudança linguística

respondido, por existirem mais de um dialeto falado. Já em 1877 ele iniciou a


publicação de mapas linguísticos da região do Reno e do Mosa, que viriam fazer parte
do Atlas linguístico da língua alemã [Deutscher Sprachatlas],cuja primeira edição foi
publicada em 1887.

O questionário original encontra-se no Anexo ao final deste texto. Não está


traduzido, mas é importante observar que o questionário tenta monitorar a pronúncia
dos fonemas em que existe variação entre os diferentes dialetos. Veja, por exemplo, o
item 3, do questionário:

[3] Tu Kohlen in den Ofen, damit die Milch bald zu kochen anfängt.

„Põe carvão no fogão, para o leite começar a cozinhar logo“

Os itens lexicais Ofen, Milch e kochen apresentam os fonemas fricativos /f/ e /x/,
no alemão padrão (Hochdeutsch) e nos dialetos do Sul, que alternam com as oclusivas
correspondente, nos dialetos do Norte: Aben, Milk e koken. Secundariamente, a pesquisa
identificou variação em itens lexicais utilizados. Por exemplo, o item 4 [cf. Goosses,
1977]

4. Der gute alte Mann ist mit dem Pferd(e) auf dem Eis eingebrochen und in das kalte
Wasser gefallen.

„O bom e velho homem andava a cavalo sobre o gelo, quando esse quebrou e ele caiu
na água fria”

captura a variação lexical entre Pferd/Perd, Ross e Gaul para cavalo, como no mapa
abaixo.

[fonte: https://www.uni-marburg.de/fb09/dsa/publikationen/sprachdynamik_buch/medien_karten/
karte03]

Os resultados mostrados no mapa da página 3, que demonstram que a


alternância, nos dialetos, entre formas que sofreram a segunda mudança consonantal e
as que não sofreram, foi o resultado da pesquisa de Wenker que teve o impacto mais
importante no contexto da concepção neogramática da Se os neogramáticos estivessem
corretos a respeito das leis de mutação consonantal [2.Lautverschiebung], a fronteira
entre os dialetos que alteraram as oclusivas surdas [p, t, k] para africadas ou fricativas
Márcio Renato Guimarães

correspondentes [pf/f, z, ch] seria observada de maneira bem definida. Analisando os


dados obtidos, percebeu-se que os dialetos observavam graus variáveis de difusão dessa
alternância no léxico: os dialetos mais ao norte conservavam as formas originais dos
fonemas, sem mudança; os dialetos do sul apresentavam formas alteradas pela 2.
Lautverschiebung de maneira também categórica. Entre eles apresentava-se uma linha
de dialetos que apresentava a alteração consonantal de maneira gradual: presente em
algumas palavras, mas não em todas.

Dialetos do Alemão (fonte: Wikipedia)

Ao invés de comprovar a teoria dos neogramáticos, os dados combinavam com


um modelo de “dispersão”, em que uma determinada mudança sonora se dispersa de
maneira gradual e a velocidades diferentes, tanto pelo território ocupado pela língua
como pelo próprio léxico da língua. Assim, algumas palavras “mudam” antes de outra.

Através desse tipo de levantamento foi possível traçar os mapas dialetais do


alemão e, posteriormente de outras línguas. O mapa da página anterior mostra a
distribuição geográfica dos dialetos do alemão em 1910 (observe que certas regiões de
fala alemã deixaram de sê-lo devido às evacuações após a II Guerra Mundial, sobretudo
a leste). Observe que o holandês e o flamengo são representados como variedades
dialetais do alemão, apesar de apresentarem, historicamente o estatuto de língua. Da
mesma forma, há quem considere o conjunto de dialetos ao norte (Niederdeutsch, no
mapa) como uma língua distinta do alemão, o chamado baixo-alemão (Plattdeutsch ou
Plattdütsch).
7
Mudança linguística

Mapa do Atlas Linguistique, mostrando a alternância dos itens lexicais correspondentes ao francês padrão
charger. Fonte: http://taban.canalblog.com/archives/2009/05/18/13770753.html

O suíço Jules Gilliéron é autor do Atlas Linguistique de la France, publicado


entre 1902 e 1910. Ele selecionou 693 localidades na França, nas regiões francófonas da
Suíça e Bélgica, e na Alsácia e Lorena (então pertencentes à Alemanha), onde cerca de
2.000 falantes foram submetidos a um questionário que cobria palavras e expressões
idomáticas que se supunha variarem regionalmente. Esses questionários foram aplicados
por Edmond Edmont (1849-1926), que percorreu todas as localidades aplicando os
questionários, entre 1897 e 1901. Após o levantamento, os mapas mostrando a
distribuição de formas alternativas foram confeccionados, os quais foram reunidos no
Atlas.

Posteriormente, também o mapa dialetal da França foi confeccionado [ver na


página 8]. Como no caso do alemão, os grupos dialetais do norte e do sul não raro são
considerados línguas diferentes: o francês, ou Langue d’Oil, ao norte, e o Langue d’Oc,
ao sul (que inclui o provençal). Uma terceira “língua” é reconhecida a sudeste,
incluindo a área de Genebra, o franco-provençal, que inclui o oeste da Suíça e a região
italiana do Val d’Aosta. O mapa abaixo também inclui territórios de outras línguas que
se estendem para dentro do território francês, como o flamengo, o alemão, o bretão, o
basco, o catalão e o corso.
Márcio Renato Guimarães

[Zonas dialetais da França; fonte: Wikipedia]

O impacto imediato da dialetologia do final do século XIX foi o surgimento de


correntes teóricas que se contrapunham à perspectiva neogramática. No entendimento
dos neogramáticos, os processos linguísticos (mormente a mudança linguística) eram
movidos única e exclusivamente por elementos internos do sistema linguístico. Para os
linguistas que se contrapunham a essa perspectiva, a mudança linguística era
influenciada por mudanças culturais e circunstâncias históricas vividas pelas
comunidades que as falavam. Essas ideias influenciaram movimentos culturalistas e
historicistas na ciência linguística, como o do linguista alemão Hugo Schuchardt (1842-
1927), mas esses movimentos acabaram se tornando marginais com relação ao eixo de
desenvolvimento principal da ciência, influenciado pelo pensamento do linguista suíço
Ferdinand de Saussure.

9
Mudança linguística

Saussure, ao insistir que o falante não tem acesso aos estados antigos da língua
(o que ele chama de “diacronia”) e que as variantes não são mais do que flutuações
aleatórias das formas da língua, de uma certa forma continua a perspectiva da língua
como um sistema autônomo, movido apenas por fatores internos. Essa visão será
contestada no final da década de 1960 pelo linguista norte-americano William Labov,
de que vocês devem ter ouvido falar na Linguística III. Labov mostra, a partir de suas
exaustivas pesquisas, que as variantes linguísticas mostram mudanças em curso na
língua, o que desafia a perspectiva saussureana da inacessibilidade dos estados
“diacrônicos”, a distinção entre sincronia e diacronia e, principalmente, a noção de
língua como um sistema heterogêneo.

As pesquisas de Labov iniciaram-se no âmbito do levantamento dialetal do


inglês estadunidense2 e essa conexão com o campo da dialetologia propiciou a
formulação de uma visão alternativa à perspectiva de Saussure. No entanto, por motivos
complexos, a noção de uma língua como um objeto dinâmico definido por sua
historicidade intrínseca ainda não é unânime na linguística do século XXI.

Dialetos do Português do Brasil

Para a história da dialetologia no Brasil, seguiremos o texto de Suzana Alice


Cardoso, que relata a situação atual do ALIB (Cardoso, 2009).

Cardoso (2009: 185) marca o início dos estudos dialetais no Brasil, no texto do
Marquês (então ainda Barão) de Pedra Branca, no Atlas Ethnographique du Globe de
Adrien Balbi (1826). O texto é um dos diversos enxertos que Balbi faz no seu texto,
uma “classificação dos povos antigos e modernos de acordo com sua língua”, como diz
um dos subtítulos da obra (1826: iii).

“As línguas mostram os costumes e o caráter dos povos. A língua


portuguesa, por exemplo, está sob a influência de seu caráter religioso e
belicoso; desse modo, as palavras honesto, galante, beato, bizarro 3, etc., têm um
significado bastante diferente daquele assumido em língua francesa. A língua
portuguesa é rica em termos e frases para expressar movimentos violentos, de
ações fortes. Em francês, por exemplo, é necessário acrescentar a palavra coup
(golpe) à coisa com a qual se golpeia, enquanto que o português exprime com
uma só palavra o instrumento e o golpe. Diz-se em francês un coup de pierre (um
golpe de pedra), em português uma pedrada; un coup de couteau (um golpe de
faca), uma facada, etc.
“Sem esquecer as construções e locuções particulares de uma língua,
pode-se também formar superlativos e diminutivos e até alguns substantivos de
todo e qualquer adjetivo. A rispidez na pronúncia acompanhou a arrogância
das expressões e é conservada ainda hoje como herança; mas, esta língua levada
ao Brasil sofre a influência da suavidade do clima e do caráter dos habitantes; ela
assumiu essa característica pelo emprego e pelas expressões de sentimentos suaves e,

2
Quem se interessar, dê uma olhada em http://www.lap.uga.edu/
3
No original : honnête, galant, béate, bizarre
Márcio Renato Guimarães

conservando toda a sua energia, ela se tornou mais amena. Pode-se convencer-se
disso lendo as poesias de Gonzaga J. B. da Gama (nós acrescentaremos ainda as
do Senhor Barão de Pedra Branca) e de vários outros escritores brasileiros.

“A esta primeira diferença, que envolve a universalidade do idioma


brasileiro, é necessário ainda acrescentar aquelas palavras que mudaram
completamente de acepção, bem como várias outras expressões que simplesmente
não existem em língua portuguesa e que são emprestadas dos indígenas, ou que
foram trazidas para o Brasil pelos habitantes de diferentes colônias portuguesas
de ultra-mar.
“Na tabela seguinte, alguns desses exemplos são citados.

NOMS QUI ONT CHANGE’ DE SIGNIFICATION


Mots Signification en Signification au Brésil
Portugal

Faceira Grosse Machôire Coquette

Arruamento Action d’arranger Parade

Babados Bavé Jabot, falbalas

Tope Entrave Cocarde, bouquet de fleurs

Chacota Chanson grivoise Moquerie

Cecia Action de Grasseiyr Minaudière

Capoeira Cage à poules Broussailles

Sotão Souterrain Mansardes

NOMS EN USAGE AO BRÉSIL ET INCONNUS EN PORTUGAL

Mots Signification Mots Signification

Pabulo Fat, suffisant Fado Bouderie

Capéta Lutin Fuxicar Chiffonner

Quindins Minauderies, petits Farofa Ostentation


soins ridicule

Chibio Polisson, vaurien Mocotó Pied de boeuf

Balaio Espéce de panier Mungangas Grimaces

Tapéra Terrain abandonné Muxoxo Action de faire la


moue

11
Mudança linguística

Capim Gazon Boquinha Petit Baiser

Coivara Action de brûler Mideixe Noli me tangere


des broussailles

Findinga Fille publique Mulambo Guenile

Fadista

Charquear Preparer la viande Mascate Marchand forain


sèche

Cuchilar Sommeiller Mascatear Faire le marchand


forain

Munheca Le poignet Mandinga Fétiche

Chingar Passer de Muquem Boucaner


sobriquets

Cangote Le drignon Muquiar L’endroit ou l’on


boucane

Calanda Magnétisme, des Muxiba Des peaux de


vapeurs viandre maigre

Muxingueiro Celui qui est chargé Nanica Naine


de fouetter les
esclaves

Presinganga Ponton, prison Nuello Sans Plume

Carpina Charpentier de Quitanda Marché de vivres


bâtiment

Caçula Cadet d’une famille Pequira Criquet

Dondon Vaudeville Pimpão Ferrailleur, crâne

Sipoada Coup de badine Saracutear Tournailler

Trapiche Magasin au bord Rossa Maison de


de l’eau campagne ou ferme

Chacra Maison de Senzala Case à négres


campagne

Extraído de: RIBEIRO, João. (s.d.: 29-30)


Márcio Renato Guimarães

REFERÊNCIAS

AGOSTINI, Basílio et alii. Aspectos da ditongação no falar da Região Metropolitana de


Curitiba. In: RODRIGUEZ, Benito et alii. Anais do XV seminário do CELLIP. Curitiba:
UFPR, 2002.
AGUILERA, V. D. A. 1994. Atlas lingüístico do Paraná.[Hauptband]. Univ. Estadual de
Londrina.
BALBI, A. (1826). Atlas ethnographique du globe: ou Classification des peuples anciens et
modernes d'apres leurs langues, précédé d'un discours sur l'utilité et l'importance de l'étude
des langues appliquée à plusieurs branches des connaissances humaines; d'un aperçu sur
les moyens graphiques employés par les différens peuples de la terre... avec environ sept
cents vocabulaires des principaux idiomes connus, et suivi du tableau physique, moral et
politique, des cinq parties du monde.. (Vol. 1). Rey et Gravier.
CARDOSO, S. A. M. (2009). Projeto atlas linguístico do Brasil-Projeto ALiB: descrição e
estágio atual. Revistada ABRALIN, 185-198.
CUR'I'IUS, G. 1876. Nachwort. Studien zur griechischen und lateinischen Grammatik
(Curtius Studien), 9, 436.
GOOSSENS, Jan. 1977. Deutsche Dialektologie. Berlin / New York: De Gruyter.
OSTHOFF, H., BRUGMAN, K. 1878. Vorwort. Morphologische Untersuchungen, I: 111-xx.
de Ramírez, M. V. (1996). El español de América: Morfosintaxis y léxico (Vol. 2). Arco
libros.
RIBEIRO, João. s.d. A língua nacional: notas aproveitáveis. São Paulo: Monteiro Lobato &
Cia.
SCHUCHARDT, H. 1885. Ueber die Lautgesetze - Gegen die Junggrammatiker.
Oppenheirn, Berlin.

13

Você também pode gostar