REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.
2022
BOLETIM
REVISTA
OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL
ARTE E
DECOLONIALIDADE
V. 96, N. 01.2022
Junho. Julho . Agosto/2022
ISSN 2526-7442
V.96
SEÇÕES
• Memórias, Culturas e
Decolonialidade
• Poéticas e Decolonialidade
1
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
HAL WILDSON
Série Identidades
Acrílica sobre identidade em papel algodão
São Paulo, SP, 2020-2022 2
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3
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
EXPEDIENTE
O Boletim do Observatório da Diversidade Cultural (ODC) é uma
publicação periódica que difunde textos, artigos, entrevistas, relatos de
experiências, resenhas, reportagens e trabalhos artísticos (ilustrações,
gravuras, fotografias) relacionados à diversidade cultural em suas
diferentes perspectivas conceituais, metodológicas e estéticas, na
qual pesquisadores envolvidos com a temática refletem sobre sua
complexidade em suas variadas vertentes.
BOLETIM OBSERVATÓRIO Créditos das Imagens
DA DIVERSIDADE CULTURAL Adriano Machado
Carina Lacerda
Coordenação Editorial Cláudio Caropreso
José Márcio Barros Daiara Tukano
Ana Paula do Val Hal Wildson
Giselle Dupin Jessica Lemos
Priscila Lolata Josi
Sharine Melo Karen Eppinghaus
Lucas Soares
Editoria de Arte Ma Njanu
Ana Paula do Val Marcela Bonfim
Priscila Lolata Mika
Sandro Ka
Revisão Tiago Sant’ana
Carolina Maria Soares Lima Vulcanica Pokaropa
Giselle Dupin
Jocastra Holanda Capa
Luana Vilutis HAL WILDSON. Série Singularidades.
Renata Leandro Técnica: Datilograma e Digigravura.
São Sebastião, SP, 2020
Pareceristas
Joice Araújo
Sharine Melo *
Jocastra Holanda
Carolina Maria Soares Lima
Marcelo Renan de O. Souza
Vitor Marques Barreto
Projeto Gráfico e Diagramação
Ana Carolina de Lima Pinto
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4
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Projeto executado por meio da
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5
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ADRIANO MACHADO
Baratino (William com galo)
Fotografia
Feira de Santana, BA, 2018 6
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SUMÁRIO
11 EDITORIAL
SEÇÃO I - MEMÓRIAS, CULTURAS E DECOLONIALIDADE
16 ENTRE ARQUIVOS E LITERATURA: PERCURSOS DE
DECOLONIZAÇÃO DA MEMÓRIA CULTURAL
Giulia Crippa
33 MUSEU DO MATO: ESCULTURA MUSEAL, POÉTICA DA
HERANÇA
Luciana Moniz de Aragão
42 GRIOTS: MEMÓRIAS, IDENTIDADE E RESSIGNIFICAÇÃO NO
ENVELHECER – RELATO DE EXPERIÊNCIAS SOBRE O LIVRO
ÁRVORE
Maeli Gomes de Oliveira e Tamires Maria Lima
Gonçalves Santos
57 TRANÇADEIRAS DE MASSARANDUPIÓ: PIAÇAVA, CONFLITOS
SOCIOAMBIENTAIS E SABERES TRADICIONAIS
EM RISCO NO LITORAL NORTE DA BAHIA
Marcos Paulo Sales e Sílvia Helena Zanirato
72 RENDA DE BILRO: IDENTIDADE DE RESISTÊNCIA DO
ARTESANATO NUMA COMUNIDADE TRADICIONAL DA BAHIA
Vaneza Pereira Narciso, Viviane Pereira Narciso e Marcos
Paulo Sales
7
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SEÇÃO II - POÉTICAS E DECOLONIALIDADE
88 AS NARRATIVAS DE AVIVI NA PRODUÇÃO DE UMA POÉTICA
VISUAL AFRO-BRASILEIRA
Ayrson Heráclito
94 PO_ÉTICA DAS MERMAZÁRIAS
Francisco Rômulo do Nascimento Silva
120 UM OLHAR DECOLONIAL SOBRE A TEMPESTADE, DE WILLIAM
SHAKESPEARE
Weslaine Gomes
134 GRITANDO PELAS PAREDES: A ARTE URBANA COMO
NARRATIVA DECOLONIAL NA AMÉRICA LATINA
Carolina Maria Soares Lima
147 CRISE E IDENTIDADE
Érika Bauer
154 CURRÍCULO E DECOLONIZAÇÃO: DISCUSSÕES INICIAIS NO
CAMPO DO TEATRO (DIREÇÃO TEATRAL- UFBA)
Alexandra Gouvêa Dumas
165 ENTREVISTA COM JORGE ARMANDO NDLOZY
Colaboração de Wolfgang Pannek
174 DESCONSTRUIR DISCURSOS E PRÁTICAS NATURALIZADAS
SOBRE OPRESSÕES E IMPUNIDADES
Solange Borelli e Cecilia Setti
8
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186 ESTÁ NO SANGUE! RASTROS DE MEMÓRIA E PROCESSOS DE
APAGAMENTOS RACIAIS
Talita Rocha da Silva
199 APARÁ - CAMINHOS DAS EPISTEMOLOGIAS FEMINISTAS
NEGRAS NA CANÇÃO BRASILEIRA
Mariela da S. Santiago Laban
215 SOBRE A COORDENAÇÃO DO EDITORIAL E
EDITORIA DE ARTE
218 SOBRE O OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL
221 APRESENTAÇÃO DOS ARTISTAS E AUTORES
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DAIARA TUKANO
O canto da floresta
Acrílica sobre tela
1mx1m 10
Aldeia Escola Floresta do povo Maxakali, MG, 2021
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EDITORIAL
O Observatório da Diversidade Cultural (ODC) abre esta nova edição
com uma novidade, pois inaugura um novo formato para o volume 96,
n. 01/2022: agora o tradicional Boletim recebe o nome de Revista do
Observatório da Diversidade Cultural. Para celebrar este novo momento, a
temática proposta é “Arte e decolonialidade”.
A arte é um fenômeno social que envolve agentes e espaços de
construção do saber, mediados por relações de poder que determinam
quais epistemologias são válidas dentro dos sistemas das artes (SIMÕES,
2021, p.4). A mudança da família real portuguesa, em 1808, para o Brasil
estabeleceu e oficializou práticas e instituições de artes e cultura, de
educação e acadêmicas, além de universidades e currículos a partir de
uma matriz de conhecimentos eurocêntrica, desconsiderando saberes,
fazeres, histórias, culturas e artes dos povos originários e diaspóricos. Foi
determinado, assim, um único sistema reconhecido, as artes europeias,
focadas nas linguagens artísticas trazidas do além-mar e instituindo uma
ideia de universalidade e hegemonia dos sistemas de artes. A difusão de
uma arte branca, europeia, patriarcal, machista, racista e escravocrata
garantiu a manutenção do poder simbólico, contribuindo de forma crucial
com o projeto de embranquecimento da identidade nacional do país.
Contudo, essas culturas e sistemas de artes das margens, periféricas,
indígenas, quilombolas, negras, feministas, LGBTQIA+, chamadas de
minorias políticas e sociais (fora do circuito hegemônico), permaneceram
resilientes e se mantiveram em pé diante dos processos de apropriação
cultural e de apagamento de suas memórias e existências simbólicas.
Além de preservarem tradições e cosmologias, também se afetaram,
hibridizaram, expandiram expressões, criaram sistemas próprios de artes
e, sem dúvida, plasmaram e interseccionaram as fronteiras entre o erudito
e o popular, os lugares de fala, os territórios, as classes sociais, os gêneros,
as raças e etnias. Assim, construíram narrativas contra-hegemônicas
ao sistema elitista das artes e da produção de saberes culturais, que
podem ser denominadas como uma perspectiva decolonial que, fora do
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
circuito hegemônico, busca resistir e desconstruir padrões, conceitos e
perspectivas impostos aos territórios e identidades.
Nas artes brasileiras, o pensamento decolonial tem ajudado a
contextualizar a complexidade dos sistemas simbólicos que definem
as engrenagens sociais, as quais são disputadas pelo poder social e
econômico, sendo as artes peças-chave na manutenção de hegemonias
e negociações simbólicas (SIMÕES, 2021, p.4 ).
No contexto curatorial, o legado colonial tem ocupado o debate ao
colocar ou re-contextualizar os problemas históricos e sociais oprimidos
e silenciados e também ao questionar a falta de representatividade de
grupos e identidades, ocupando lugares de criação, pesquisa e curadoria
nas diversas linguagens das artes.
As forças criativas dessas expressões têm ocupado espaços
hegemônicos de legitimação importantes nos circuitos das artes, como
a Bienal de Artes de São Paulo (2021) e o Museu de Arte Moderna (MAM)
de São Paulo e da Bahia, o Museu Indígena para além de outros espaços
institucionais.
Esta edição busca reunir trabalhos que reflitam sobre os diferentes
aspectos e dimensões da relação entre as artes e a decolonialidade,
envolvendo reflexões acerca das memórias, da diversidade cultural, dos
processos identitários e das relações de poder, da criação artística, do
acesso aos meios de criação, produção e difusão, do reconhecimento
de práticas e artistas nos circuitos das artes e/ou pelas políticas públicas
para artes, dentre outros caminhos.
REFERÊNCIAS
SIMÕES, Alessandra. A hora e a vez do “decolonialismo” na arte brasileira.
Revista Visuais. Revista do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais
da UNICAMP. no 12, v. 7. 2021.
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VULCANICA POKAROPA
A Cura é Travesti
Acrílica e verniz vitral sobre tela
50x60x5cm 13
São Paulo, SP, 2020
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MEMÓRIAS, CULTURAS E
DECOLONIALIDADE
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TIAGO SANT’ANA
Arqueologia-reapropriação
Objeto (açúcar e azulejos encontrados em engenho de açúcar)
Salvador, 2018 15
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ENTRE ARQUIVOS E LITERATURA: PERCURSOS
DE DECOLONIZAÇÃO DA MEMÓRIA CULTURAL
Giulia Crippa1
RESUMO
O artigo visa pontuar os elementos politicamente conservadores dos
arquivos em relação às leituras decolonias. Dialeticamente, propõe um
uso “arquivial” da literatura pós-colonial como forma de produção de
uma Memória Cultural capaz de impactar, com eficácia, a elaboração
de narrativas documentadas como forma de história potencialmente
decolonial.
Introdução
Este artigo visa examinar duas formas e práticas de mediação da
Memória Cultural, no contexto de seus usos públicos, que definem o contexto
(pós)colonial:
1) Memórias coloniais de arquivos, cuja localização, renomeação
e, em alguns casos, desaparecimento, reflete atitudes públicas e políticas
estatais de ofuscação, ao invés de revelação e reflexão do/sobre o passado
colonial.
2) O papel da literatura, que se constitui como um espaço
intermediário entre a memória e a história, como o reino da memória viva,
assumindo a responsabilidade de lembrar e cumprir as três tarefas que
pertencem à instituição do arquivo, que são as de administrar as memórias
públicas, recuperar as memórias privadas e preservar, selecionar, organizar
e transmitir documentos para fins sociais, políticos e culturais.
Em relação à primeira questão a ser abordada, a matéria central é
a desconstrução da lógica classificatória, destinada a desvendar a matriz
1 Professora Associada, Dipartimento di Beni Culturali da Universidade de Bolonha (Itália). Doutora em História
Social pela USP; Livre Docente em Ciência da Informação pela USP. E-mail:
[email protected] 16
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colonial da memória cultural (especialmente a memória dos arquivos),
propondo contra narrativas como resistência e derrubando a própria
lógica desta ordem através da criação literária.
Em relação ao segundo ponto proposto, em uma revisão seletiva da
ficção mundial contemporânea, encontrei uma preocupação generalizada
com o problema da história em escritores cujos temas, estilos e métodos
diferem acentuadamente. Quer sejam atribuídos à categoria de “terceiro-
mundista”, realista mágico, pós-colonial, realista, modernista, pós-
modernista, feminista ou o que quer que seja, estes escritores revelam uma
profunda preocupação com as inúmeras forças históricas que se uniram
para moldar as especificidades culturais para as quais eles se posicionam.
Para esses escritores, o trabalho histórico, realizado através de atividades
de documentação, exigiu um grande sofrimento coletivo e um esforço para
encontrar os elementos de um passado “documentado” - ou seja, de um
passado fiel ao que aconteceu, mas capaz de gerar novas possibilidades.
Pareceu lógico, portanto, testar a viabilidade da arte literária como um
instrumento crítico da memória, analisando algumas dessas narrativas
contemporâneas que enfrentam o problema da história. Não apenas
porque são obras extraordinárias de grandes escritores contemporâneos,
mas também porque o problema da história é explicitamente tematizado
em todos os romances selecionados.
Embora muitos romances contemporâneos tematizem a história
em um sentido geral, as obras selecionadas parecem incomuns em
seu tratamento proeminente e insistente das narrativas relacionadas à
dimensão do documento e a forma como a história é contada.
A memória cultural hegemônica
Em Roma, perto da Piazza di Porta Capena, há um pequeno canteiro
com um cipreste e duas placas comemorativas, uma dedicada às vítimas
do massacre de 11 de setembro de 2001 em Nova York, inaugurada em 2009
pelo então prefeito de direita. A outra com uma frase de George Santayana:
“Aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo”. A
questão que nos interessa neste espaço é, paradoxalmente, o apagamento
da memória e, mais especificamente, da memória colonial. De fato, antes
de lembrar as vítimas do trágico ataque ao solo norte-americano em 2001,
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neste lugar encontrava sua colocação o obelisco de Axum, roubado da
Etiópia durante a conquista colonial pelo fascismo, em 1937. Somente em
2005 a Itália devolveu o monumento à Etiópia, respondendo ao pedido de
restituição, mas no lugar onde se encontrava o monumento, paradoxalmente,
a memória do passado colonial desapareceu completamente.
Este não é um caso isolado: em toda a Europa há uma luta para
tornar transparente o fenômeno do colonialismo, principalmente naqueles
países onde tem tido proporções muito maiores e mais duradouras do que
na Itália. Basta pensar na França, onde uma das ligações com o passado
imperial é representada pelos Arquivos Nacionais de Outre-Mer (ANOM),
localizados em Aix-en-Provence, que mostram como o giro arquivístico
na gestão francesa da história colonial serve como gesto obliquamente
redentor, na medida em que esta instituição é apresentada como local de
preservação de um passado que não reflete o estado atual das discussões,
colocado numa perspectiva histórica que enfatiza a distância política e
ética entre o “então” e o “agora”.
A página introdutória do site ANOM nos diz:
Herdeiros de mais de três séculos de história, os Arquivos Ultramarinos
Nacionais preservam duas grandes coleções com um passado
administrativo e arquivístico diferente:
- Os arquivos das Secretarias de Estado e dos Ministérios responsáveis
pelas colônias francesas do século XVII ao século XX.
- Os arquivos transferidos das antigas colônias e da Argélia na época
da independência, entre 1954 e 1962, além dos arquivos de gestão que
permaneceram nos países em questão.
(http://www.archivesnationales.culture.gouv.fr/anom/en/Presentation/
Historique.html)
Estes arquivos devem sua existência a uma história colonial que só
é reconhecida indiretamente na página inicial do site e nas informações
fornecidas sobre a origem e organização dos diversos tipos de recursos
(ministeriais, repatriados e privados) preservados. Qualquer referência ao
processo real de colonização é substituída por sua cronologia ou implícita nas
expressões “colônias francesas” ou “ex-colônias”. O que queremos destacar
é que existe a reivindicação de um legado cuja formação atual, através de
agendas e políticas conflitantes, que geram várias formas de dominação,
expropriação, resistência, participação e manutenção, permanece em
grande parte latente, escondida. Os arquivos foram estabelecidos sob
a pressão de eventos históricos, quando a França estava entrando em
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
sua fase pós-colonial, e a denominação da instituição que preserva os
registros coloniais, juntamente com a ausência, pelo menos aparente, de
um aparato acadêmico sistemático dedicado ao contexto histórico não
europeu ao qual devem sua existência, torna de vez insignificante o papel
da reflexão pós-colonial e as possibilidades de descolonização do discurso
memorial a eles atribuído.
O estudo de Krzysztof Pomian (1997), dedicado aos arquivos franceses,
no terceiro volume de Les Lieux de mémoire, obra de Pierre Nora, encontra-
se na última seção de todo o projeto, “De l’archive à l’emblème”, onde se
afirma que a missão do departamento de arquivos modernos da França é
“administrar e controlar os arquivos públicos que constituem a memória da
nação e uma parte essencial de seu patrimônio histórico”. O decreto oficial
do Estado francês, de 1979, ratifica a conexão inextricável entre as duas
formas distintas, memória e história, de relacionar presente e passado. O
ofuscamento, no Les Lieux de mémoire, do colonialismo na memória e na
história francesa é confirmado pela entrada ‘Arquivos’, tornada ainda mais
evidente pelo hapax: “Em 1699, foram estabelecidos os arquivos da Marinha,
das Colônias e das Galés”, uma referência que permanece tristemente não
desenvolvida.
No arquivo há sempre algo que escapa: ele é composto tanto de
estratificações, presenças e ausências quanto de materialidade e provas.
É difícil compreender o significado do silêncio, do que não foi dito ou não
pode ser dito, do que não é reconhecido ou foi removido, na medida em
que não faz parte da positividade explícita de uma gramática ordenada e
rigorosa que afirma e, em sua ordem, torna algo “evidente”. Em uma inspeção
mais detalhada, o arquivo é uma ordem meticulosa constantemente
enfrentando o caos (Derrida, 2002). A isto, acrescentamos que
Todo arquivo, na medida em que está sempre ligado ao passado e tem
necessariamente a ver com a memória, tem de fato uma espécie de fissura.
É ao mesmo tempo sulco, abertura e separação, rachadura e separação,
rachadura e desprendimento, rachadura e fissura, até mesmo laceração.
Mas o arquivo é sobretudo um material escamoso, cuja característica é,
em sua origem, ser feito de entalhes. De fato, não existe um arquivo sem
rachaduras. Sempre se entra como se por uma porta estreita, esperando
penetrar profundamente na espessura do evento e em suas cavidades.
Penetrar material de arquivo significa revisar os traços. Mas é, acima de
tudo, cavar diretamente na encosta. Este é um empreendimento arriscado
porque, em nosso caso, muitas vezes foi uma questão de fazer memória
através da fixação obstinada de sombras em vez de fatos reais, ou fatos
históricos afundados no poder da sombra. Muitas vezes tivemos que
traçar nosso próprio perfil sobre traços pré-existentes; para entender os
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
contornos da sombra e tentar nos ver a nós mesmos a partir da sombra,
como sombra. Muitas vezes o resultado tem sido desconcertante. (MBEMBE,
2019, p. 151).
Há algo, no entanto, que permanece “inarquivável”: são os corpos e os
objetos que não podem entrar na memória cultural oficial das instituições,
afogados, no passado, no Oceano Negro e, hoje, no Mediterrâneo ou entre
Nações cada vez mais marcadas por fronteiras intransponíveis, imensos
arquivos de esperança e morte. Certos objetos, certos corpos, escapam
da memória, porque não podem ser compreendidos em sua radicalidade
sem explicitá-los em uma ordem classificatória, privando-os de seu “sopro
vital” (MBEMBE 2019, p. 150), tornando-os, assim, inofensivos, neutralizando
seu potencial de escândalo. Talvez seja precisamente porque estas
memórias e estes órgãos não pertencem a instituições que eles mantêm
sua radicalidade.
César escreveu, em 1955:
E quanto aos museus, dos quais a Europa se orgulha tanto? Teria sido
melhor, tudo considerado, se nunca tivesse sido necessário abri-los. Melhor
se os europeus tivessem permitido que as civilizações além do continente
europeu vivessem ao seu lado, dinâmicas e prósperas, inteiras e imutáveis.
Melhor se tivessem permitido que essas civilizações se desenvolvessem
e florescessem em vez de oferecer membros dispersos, esses membros
mortos, devidamente rotulados, para que nós admirássemos. Afinal, por
si só, o museu não é nada. Não significa nada. Ele não pode dizer nada.
Aqui no museu, o arrebatamento da autogratificação apodrece nossos
olhos. Aqui, um desprezo secreto pelos outros nos seca o coração. Aqui o
racismo, não importa se é declarado ou não, drena toda empatia. Não, na
escala do conhecimento, a massa de todos os museus do mundo nunca
poderia superar uma única centelha de empatia humana.2 (CÉSAIRE, 1967,
p. 79)
Esta parece ser essencialmente a função dos espaços da memória
ocidental: uma função de culto e, ao mesmo tempo, política e cultural,
que se estabelece como necessária para a própria sobrevivência do
Ocidente, paralelamente à função do esquecimento. Documentos, objetos,
corpos, discursos, escreve Mbembe, devem continuar pairando como
fantasmas, escandalosos em sua ausência nas instituições responsáveis
pela memória cultural. Para o autor, eles deveriam estar “em toda parte e
em nenhum lugar”, aparecendo “na forma de uma invasão e nunca como
uma instituição” (MBEMBE, 2019, p. 151).
2 Todas as traduções do original são da autora.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
A ausência provoca um esforço de imaginação que se torna radical,
uma ausência que produz instituições invisíveis, ainda inexistentes: lugares
de hospitalidade para as narrativas e os corpos dos “malditos da terra”
(Fanon, 1967), espaços definidos pelo Mbembe como “anti-museus”, e não
instituições como estamos acostumados a pensar, lugares de transição,
refúgios concebidos por e para as testemunhas e testemunhos do modo
de produção escravocrata da Modernidade, um conceito que o arquivo
recusou-se e recusa-se sistematicamente a conter (Mbembe, 2019).
Instituições de memória cultural, sejam arquivos ou museus, são objetos de
discussões estratificadas nas quais o discurso hegemônico foi articulado,
traduzido, contestado e mediado por aqueles que ali trabalham com
pesquisa, organização, preservação, valorização, assim como por aqueles
que as atravessam como subjetividades. Basta pensar na documentação
museológica dos artefatos, produzida histórica e contextualmente como
todas as práticas burocráticas, que se torna necessário investigar, junto
aos objetos. Esta documentação que acompanhou todos os objetos, é
essencial para qualquer discurso sobre restituição, que é produzido com
base nesses documentos de arquivo e nos catálogos, que possibilitam
estabelecer vínculos de propriedade e autenticidade. Como é preciso levar
em conta o fato de que as necessidades expressas pelos documentos
podem mudar profundamente ao longo dos anos (valores diferentes são
atribuídos a artefatos ao longo do tempo, como são descritos destacam
aspectos e valores diferentes), então tudo que é produzido como documento
deve ser considerado parte das escolhas no tratamento comunicativo
das memórias. No decorrer da investigação nos arquivos, é imprescindível,
portanto, estudar como foram estabelecidas categorias e ideias intelectuais
que, com o passar do tempo, com base no falso conceito de “neutralidade”
dos dados arquivados, se tornaram normativas. Listas, registros, catálogos
devem ser considerados como tecnologias ligadas ao desenvolvimento do
campo disciplinar dos arquivos e dos museus desde o século XIX, criando
as estruturas dos bancos de dados digitais contemporâneos, modelados,
nesta perspectiva, sobre conhecimentos inevitavelmente de matriz colonial.
Memória Cultural Literária
Talvez por causa do esforço imaginativo que os arquivos relacionados
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
ao mundo colonial impõem, torna-se crucial recorrer a outras formas de
estabelecer a memória cultural. De fato, o arquivo, como reino colonial
de memória, parece emergir, capaz de desenhar um contraste (sombrio)
entre arquivos oficiais e ficcionais, em que estes últimos, ligados ao espaço
“imaginado” ou “virtual”, se opõem aos arquivos oficiais, entendidos como
“históricos” ou “físicos”, mas não necessariamente “reais”, “verdadeiros” ou
“autênticos”. A literatura, neste sentido, funciona como espaço restaurador
daquela memória que reivindica a verdade do arquivo, completando
sua escassez, corrigindo sua falsidade ou compensando sua completa
ausência.
A era pós-colonial nos apresenta uma série de livros que trazem à luz
as histórias não contadas, obscurecidas pelas crônicas oficiais da História
Universal Ocidental. A memória e a história, no caso do conhecimento
colonial, parecem se colocar em extremos opostos do espectro do arquivo,
e a literatura se esforça para preencher o abismo emocional e ético entre
eles.
No romance histórico Segù, Maryse Condé (1988) realiza a monumental
tarefa de recriar a vida do povo Bambara através de várias gerações de
governantes Traoré e seus súditos entre os séculos XVIII e XIX, época crucial
em que este poderoso império africano se viu sob a pressão das forças
colonizadoras europeias e da expansão muçulmana. A forma e a grandeza
do romance o transformam em uma vasta saga coletiva, entrelaçando
recriação genealógica, pesquisa etnográfica e fatos históricos, em uma
narrativa que ressuscita e transcende o arquivo. Trabalhos como Texaco,
de Patrick Chamoiseau (1994) e La Seine était rouge, de Leïla Sebbar (2003),
utilizam amplamente recursos documentais para revelar as consequências
socioeconômicas da criação, em 1946, dos “Departamentos Ultramarinos”
do Caribe (no caso de Chamoiseau) ou para questionar as lacunas históricas
e políticas sobre as ações violentas da polícia contra os manifestantes
anticoloniais durante a guerra na Argélia (no caso de Sebbar).
O romance de Chamoiseau, vencedor do Prix Goncourt em 1992,
narra as lutas da população de uma Comunidade contra sua destruição
e o apagamento da memória causado pelo desenvolvimento urbano
contemporâneo em Fort-de-France, na Martinica. O romance toma
emprestadas as características formais do arquivo, enquanto ergue um
complexo andaime narrativo de relatórios oficiais e notas pessoais, escritos
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
privados e notas explicativas. Sua narrativa integra e eventualmente
substitui documentos históricos silenciados, ausentes ou falsos.
Usando o tropo do imigrante de segunda geração que não fala “a
língua do país” (SEBBAR, 2003, p. 9), o livro de Leïla Sebbar trata de um episódio
crucial da guerra franco-argelina: a repressão sangrenta de um protesto
contra a guerra organizado pela FLN em Paris, em 1961, e seu subsequente
encobrimento, sob as ordens do prefeito de polícia Maurice Papon. Como,
na ausência de um inquérito oficial credível, o número real de vítimas e sua
causa de morte foram duramente contestados, Sebbar delega a busca da
verdade a seus personagens: um adolescente francês de família argelina,
um jornalista argelino no exílio durante a “década escura” de seu país e
um cineasta. Suas narrativas individuais ilustram a natureza multidirecional
e mediada da memória pós-colonial, enquanto destacam a vocação de
arquivação da arte, que coleta e sedimenta vestígios do passado perdidos
no discurso oficial.
Duas grandes narrativas decoloniais
É possível, através do prisma da memória cultural, construir um
paralelo entre dois romances que são bastante diferentes na origem e
no desenvolvimento narrativo. Estes são os romances da afro-americana
Octávia Butler, Kindred (2018) e da argelina Assia Djebar, La femme sans
sèpolture (2002). Ambos propõem uma confrontação da herança colonial.
Kindred usa o dispositivo da viagem no tempo, para permitir que a
protagonista, Dana Franklin, salve a vida de Rufus Weyland várias vezes, no
sul escravocrata dos EUA. Rufus está destinado a ser um proprietário de
escravos que violará e impregnará uma das ancestrais de Dana, e se isso
não acontecer, a própria Dana será destinada a não existir.
Djebar, por outro lado, reescreve a vida de uma combatente pela
liberdade argelina, Zoulikha Oudai, uma protagonista histórica da guerra
de libertação dos anos 50, torturada e massacrada pelos franceses, cujo
corpo nunca foi encontrado.
Pela leitura das duas obras, observa-se que, embora os tópicos e as
configurações dos dois trabalhos sejam diferentes, em ambos os casos é
encenada uma relação causal entre os eventos do passado e sua influência
no presente. Ambos os textos se encaixam na descrição da meta-história
proposta por Linda Hutcheon (1989):
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
O que eles sugerem [...] é que não existe um passado “real” para nós hoje,
direta e naturalmente acessível: só podemos conhecer - e construir - o
passado através de seus traços, suas representações. Como temos visto
repetidamente, sejam documentos, relatos de testemunhas oculares,
filmagens de documentários ou outras obras de arte, elas ainda são
representações e são nosso único meio de acesso ao passado. (HUTCHEON,
1989, p. 113)
Ao ir além do aspecto mimético e realista do romance tradicional,
as duas obras problematizam a questão da representação e da verdade
a partir da perspectiva dos grupos marginalizados. Em ambos os casos,
as autoras estabelecem e, em seguida, desfocam as linhas que dividem
a ficção da história (Hutcheon, 1989). Djebar questiona, em sua história,
o status do romance biográfico como forma de intervenção no debate
historiográfico. O livro abre com um Avertissement:
Neste romance, todos os fatos e detalhes da vida e morte de Zoulikha, a
heroína de minha cidade de infância, durante a guerra de independência
argelina, são relatados com uma preocupação de fidelidade histórica,
ou, eu diria, com uma abordagem documental. Entretanto, alguns dos
personagens ao lado da heroína, especialmente aqueles próximos à sua
família, são aqui tratados com a imaginação e as variações que a ficção
permite. Usei voluntariamente minha liberdade romancística, precisamente
para que a vida de Zoulikha pudesse ser mais iluminada, no centro de um
grande afresco feminino - de acordo com o modelo dos antigos mosaicos
de Cesareia da Mauritânia […] (DJEBAR, 2002, p. 9)
Assim, o problema da representação da verdade é colocado
explicitamente pois, ao mesmo tempo, seu livro é um romance que inclui
uma abordagem documental, garantindo assim uma “verdade” histórica,
e uma obra de imaginação. Da mesma forma, esta lógica se aplica ao
romance de Butler: uma espécie de “arqueologia” literária na qual somente
através de um ato de imaginação se pode compreender alguma verdade,
desde que este ato imaginativo tenha suas raízes na memória.
É claro que há diferenças notáveis entre Butler e Djebar. A primeira
é uma afro-americana de Los Angeles, que sempre escreveu em inglês
e é mais conhecida por seus romances de ficção científica, enquanto a
segunda, nascida e criada na Argélia, mudou-se para os Estados Unidos
nos anos 90, mas suas obras são escritas em francês, enriquecidas com
ritmos e termos árabes. As obras de Djebar têm aparecido desde os anos
50, ao mesmo tempo em que a Argélia estava entrando no processo
de descolonização da França. Seus romances e novelas se concentram
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na reescrita contra a colonização e a opressão das mulheres. Sobre
estes temas, podem ser encontradas semelhanças com Kindred, uma
reescrita da história afro-americana. Deve-se notar que ambas as autoras
ganharam prêmios e menções por seus trabalhos e são objeto de estudos
acadêmicos. Djebar, além disso, foi nomeada à Académie Française em
2005. Embora haja mais de duas décadas entre a publicação de Kindred
(originariamente publicado em 1979) e de Femme sans sépulture (de 2002),
Djebar começou a se dedicar à história de Zoulikha nos anos 80.
Ambos os livros têm uma protagonista feminina como parte essencial
de uma reflexão transeccional sobre feminismo e colonialidade, embora
em Butler personagens masculinas ocupem um lugar importante na
trama. Ambas as autoras, também, visam um amplo público de leitores
(americanos brancos e negros para Butler e argelinos e franceses para
Djebar).
Kindred lida com a centralidade da escravidão na história americana
e as consequências do passado sobre o presente. É possível pensar no
romance como uma alegoria nacional, na medida em que Dana e Kevin, o
marido branco da protagonista, são bastante representativos da realidade
contemporânea. A interpretação alegórica do texto parece ser apoiada pelo
simbolismo das datas das “viagens ao passado” da protagonista, a mais
evidente das quais é o 4 de julho, a última vez que Dana volta no passado
para a plantação. Outras datas, entretanto, parecem se referir à história
dos Estados Unidos. A terceira viagem a leva a 1819, um bicentenário muito
menos conhecido: foi em 1619 que a documentação atesta a chegada dos
primeiros africanos escravizados na Virgínia. O trabalho de Butler destaca
a necessidade de os brancos enfrentem sua própria história pois, de fato, é
durante esta viagem que a protagonista é acompanhada por seu marido.
O penúltimo retorno de Dana ao presente, é 19 de junho, uma referência à
mesma data em 1863, quando a escravidão foi oficialmente abolida e que,
desde 1865, tem sido uma data comemorativa (Dia da Emancipação Afro-
Americana). Finalmente, vale a pena considerar o sobrenome do casal,
Franklin, uma referência a Benjamin Franklin, figura que é ao mesmo tempo
fundadora da nação e ligada à sua trajetória de escravização: proprietário
de escravos, que ele libertou, Franklin foi um defensor da educação de
negros livres e signatário de uma petição em 1790 a favor da abolição.
Representantes da América contemporânea, Dana e Kevin não estão
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preparados para seu encontro com a dureza da história. Quando finalmente
se reencontram, depois de cinco anos de permanência de Kevin no passado,
eles têm dificuldade em se reconhecerem, por causa das feridas que a
permanência deles nesse passado deixou em cada um, especialmente
no corpo de Dana, castigado e chicoteado na plantação. Interpretados
sempre por uma perspectiva alegórica, estes corpos “marcados” mostram
como o necessário e inevitável retorno ao passado é doloroso tanto para
negros quanto para brancos, embora inevitavelmente mais para os negros,
assim como é necessária uma ‘permanência’ metafórica mais longa para
que os brancos entendam o que aconteceu e como isso afeta o presente,
enquanto a perda do braço de Dana e suas cicatrizes simbolizam o que
resta deles no passado.
O romance de Djebar enfoca a presença/ausência da lutadora pela
liberdade Zoulikha, cuja voz desencarnada ilumina, paradoxalmente, sua
corporeidade. Assim como Butler, que através do dispositivo de viagem
no tempo faz de Dana uma espécie de fantasma sem idade, Djebar
insere alguns monólogos de Zoulikha, um fantasma pela ausência de um
corpo, retomando a perspectiva de Mbembe (2019). O interesse da autora
pela personagem não se deve apenas à sua participação na luta pela
independência: Zoulikha foi a primeira mulher “diplomada da região”
(DJEBAR, 2002, p. 19); ela escolheu o marido que queria; divorciou-se duas
vezes; foi trabalhar na cidade; deixou sua filha ser criada por um parente e
conseguiu evitar usar o véu em uma época em que isso era incomum. Ela
não teve medo de afirmar o racismo dos colonizadores franceses nem de
criticar as injustiças do sistema colonial diante dos próprios franceses.
Djebar traça claramente um caminho que se desenvolve desde
o proto-feminismo da protagonista até sua luta nacionalista e isto, em
um contexto onde o feminismo é frequentemente visto em oposição aos
movimentos nacionalistas, revela perspectivas inovadoras: o nacionalismo
da protagonista está centrado em uma rede feminina que a apoia quando
ela se torna uma mujiaidin. Através da figura de Zoulikha, Djebar traça
uma nova historiografia argelina que focaliza o papel das mulheres nos
processos de descolonização.
Os dois livros não terminam com soluções fáceis. O fim de Kindred
não oferece todas as respostas que Dana procura: o que aconteceu com
Kevin nos cinco anos passados no Sul escravocrata, o que aconteceu
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com as personagens escravizadas, o que acontecerá com a relação de
Kevin e Dana. Estes silêncios refletem, talvez, o fato de que parte da história
permanece irrecuperável. De forma paralela, Djebar não tenta substituir os
silêncios da história por uma comemoração inequívoca da participação de
uma mulher no processo de independência argelina. Pelo contrário, para
evitar tal monumentalização, ele usa uma polifonia de vozes femininas
muitas vezes desestabilizadoras. Onde Kindred se concentra em um casal
inter-racial, sobrecarregado com o peso de uma alegoria nacional, em La
femme sans sépulture a relação entre as mulheres é privilegiada como um
caminho narrativo da construção da Argélia.
Considerações finais
Semelhante aos museus e outras instituições tradicionais, os arquivos
passaram por mudanças significativas nas últimas décadas, em direção
a uma maior acessibilidade e transparência, facilitada principalmente
pelos avanços nas tecnologias digitais. Estas mudanças levaram a novos
desafios que oferecem possibilidades imprevistas de democratização,
tanto em termos de acesso quanto de produção de conhecimento por
novas vozes, marginalizadas por muito tempo. A descolonização dos
arquivos tem um significado mais amplo, que vai além de interrogar o
legado colonial e as relações de poder neocolonial existentes, ou mesmo
emergentes (Stoler, 2009). Portanto, o que temos tentado discutir é
como desfazer, ou pelo menos evitar, a perpetuação das epistemologias
neocoloniais, lutando pelo reconhecimento de certos materiais como
relevantes, apesar das constantes rejeições das instituições (Ernst, 2016).
Um dos níveis que precisamos considerar ao lidar com a memória
cultural pensada em uma matriz decolonial reside no reconhecimento de
que os critérios e classificações ocidentais, aparentemente neutros, são
na verdade ferramentas para manter o papel dos arquivos dentro de
um projeto imperialista de dominação e afirmação, enquanto a ampla
disseminação de documentos digitalizados pode oferecer a ilusão de
uma nova “democratização” do conhecimento. No entanto, a aparente
abundância de material disponível online muitas vezes resulta em uma
sobrecarga que, em vez de reformular narrativas ocidentais estabelecidas,
apenas complementa e confirma sua primazia.
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O problema da narração de memórias culturais contemporâneas e o
reconhecimento de sua legitimidade ou não são temas do discurso pós-
colonial e decolonial.
A análise da literatura é particularmente interessante ao observar
as formas de impacto das reflexões culturais e políticas desenvolvidas pelo
meio acadêmico ao entrarem em contato com um público globalizado,
desafiando certos princípios de universalidade de origem eurocêntrica. Os
romances podem ser observados identificando, como seu núcleo principal,
a produção de discursos que se tornam institucionais e que se originam na
formação de memórias alternativas àquelas, em base binária, da dialética
centro-periferia, num esquema discutido, já nos anos 70, por Fernando
Novais (1986).
A questão que identificamos nestes produtos é a da possibilidade
de narrativas alternativas legítimas àquelas produzidas pela tradição
Ocidental, nas quais qualquer alteração à ordem imposta pela formação
de arquivos institucionais criados pela colonização não responderia à ideia
de verdade, mas seria relegada para o espaço da invenção. Queríamos
discutir o princípio do conhecimento legítimo e ilegítimo com base no status
das produções discursivas que, como ficções, são consideradas como
memórias sociais “secundárias”, pois ainda existem princípios eurocêntricos
que afirmam que as construções históricas só reconhecem a validade dos
discursos produzidos pela criação de fontes documentais, já que há muito
foram articuladas a partir de arquivos europeus e coloniais, especialmente
desde o século XIX.
Os romances estão ligados à esfera da produção artística e da
imaginação e, ao mesmo tempo em que ainda não são bem vistos pelo
mundo acadêmico da história, eles entram, de forma efetiva, no mercado
simbólico do capitalismo tardio, conforme analisado por Beatriz Sarlo
(2007).
A história proposta por estes romances impõe a irrupção do presente,
transformando-os em operações que só podem ser decodificadas na
medida em que são estruturadas como narrativas fictícias. Assim, eles são
capazes de ir muito além do campo disciplinar da história, alcançando a
esfera pública da comunicação política.
Nossa proposta quis discutir estas obras literárias, sugerindo uma
revisão das regras metodológicas de uma história ainda eurocêntrica,
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que afirma supervisionar as formas de reconstituição do passado, através
de um ideal epistemológico que se apresenta como garante de uma
produção histórica de “qualidade”, correspondendo assim à construção
da autoridade. Por outro lado, a história narrada pela ficção, sensível às
estratégias com as quais o presente “captura” o passado, revela-se aberta
a um “senso comum” capaz de orientar o público de diferentes maneiras,
legitimando certas perspectivas pós-coloniais e decolonias que ainda são
menores no mundo acadêmico.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
REFERÊNCIAS
AOM: http://www.archivesnationales.culture.gouv.fr/anom/en/
Presentation/Historique.html
BUTLER, Octávia. Kindred. London: Headline Publishing Group, 2018.
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Review Press,1972. p.79
CHAMOISEAU, Patrick. Texaco. Torino: Einaudi, 1994.
CONDÉ, Maryse. Segù. Roma: Edizioni Lavoro, 1988. 2 Vol.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. São Paulo:
Relume Dumará, 2002.
DJEBAR, Assia. La femme sans sèpolture. Paris: Albin Michel, 2002.
ERNST, Wolfgang. “Radically De-Historicizing the Archive: Decolonising
Archival Memory from the Supremacy of Historical Discourse”. In: AA.VV.
Decolonising Archives. Ghent: L’Internationale Books, 2016.
FANON, Frantz. Black Skin, White Masks. New York: Grove Press, 1967.
HUTCHEON, Linda. The politics of postmodernism. London-New York:
Routledge, 1989.
MBEMBE, Achille. Nanorazzismo: il corpo notturno della democrazia. Bari:
Laterza, 2019.
NOVAIS, Fernando. Estrutura e dinâmica do Antigo Sistema Colonial. São
Paulo: Brasiliense, 1986.
POMIAN, Krzysztof. “De l’archive à l’emblème”. In: NORA, Pierre. Les Lieux de
mémoire, Paris: Gallimard, 1997, vol. 3.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da Memória e Guinada Subjetiva.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SEBBAR, Leïla. La Seine était rouge. Paris: Babel, 2003.
STOLER, Ann Laura. Along the archival grain: epistemic anxieties and colonial
common sense.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
KAREN EPPINGHAUS
Luzir
Fotografia
Comunidade de Vão de Almas, Goiás, 2022 32
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MUSEU DO MATO: ESCULTURA MUSEAL,
POÉTICA DA HERANÇA
Luciana Moniz de Aragão1
RESUMO
Que futuro podemos ter com o presente que construímos? Com que futuro
sonhamos? Onde estão os modelos para o futuro? O que a herança espiritual,
memórias, outras percepções de tempo e espaço podem nos ensinar?
Um museu pode potencializar experiências locais, afetar percepções e
contribuir para a sobrevivência harmoniosa do ser humano? Um esboço
de resposta vindo dos pés da Serra do Sincorá, na Bahia.
Série Jaci. 2016. Acervo Museu do Mato
1 Luciana Moniz é graduada e mestre em Museologia pela UFBA, foi diretora executiva do MAM da Bahia e da 3a
Bienal da Bahia, desenvolve o projeto Museu do Mato na área rural de Mucugê, e é pesquisadora sobre relações entre arte,
herança, natureza e bem comum. E-mail: [email protected]
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O Museu do Mato é uma escultura, uma Escultura Museal. Escultura
cuja matéria-prima é pensamento e o cinzel a palavra. Palavra que
molda pensamento. Palavra que deve ser potente o suficiente para
provocar transmutações, mudanças de percepção. A matéria plástica
desta Escultura Museal são pensamentos, subjetividades relacionadas
a formas de percepção da natureza, dos bens espirituais, do tempo, do
espaço, da vida. É uma obra coletiva, construída a partir de subjetividades
compartilhadas, e com o desejo de transformar o futuro.
A Escultura Museal é um conceito elaborado no campo híbrido entre
arte e museologia, baseado em princípios do artista alemão Joseph Beuys2,
e tem estrutura de planta: raízes, ramos, flores. RAÍZES são o passado,
memória, tradição, o Sal alquímico; RAMOS são mediação, criação,
adaptação, o Mercúrio da alquimia; FLORES / PÓLEN, é o novo, a potência do
futuro, o Enxofre. Esta também é a estrutura funcional dos museus: passado,
presente, futuro – preservar, pesquisar, comunicar (modelo PRC3).
Museu é instância de legitimação, cujo propósito é criar e legitimar
narrativas culturais / artísticas, ideias e lógicas. O propósito do Museu do
Mato é produzir e difundir reflexões e exercícios poéticos sobre natureza,
tempo, ciclos, amplidão, aridez, água, trabalho, sobrevivência, memória,
transmutação (decomposição, compreensão e recomposição), sistemas
vivos, espaço, fruição, estado de participação, imprevisibilidade, cosmos.
Novas lógicas a partir de um círculo pequeno, fora dos centros urbanos,
buscando alguma independência das instâncias e ideias hegemônicas.
Leituras poéticas das relações natureza / cultura; percepções, valores
e tradições de fruição, plantio, lida com a terra; alimentos, remédios
caseiros, rezas; ancestralidade; relações entre herança espiritual (herança
ligada aos valores do espírito) e patrimônio total (natural e cultural), podem
provocar sensibilização e mudanças de perspectiva sobre o cotidiano e
sobre a vida, e contribuir para o bem comum.
Segundo a teórica política Hannah Arendt4 – que estudou a formação
dos regimes autoritários totalitários instalados na primeira metade do século
XX (nazismo e comunismo) – a massificação é um método de domínio
2 Joseph Beuys (1921-1986) foi um artista e teórico alemão considerado um dos mais influentes da segunda
metade do século XX.
3 Formulado na Academia Reinwardt em Amsterdam, o modelo PRC agrega as funções do museu em torno de
três pólos: Preservation-Research-Communication (preservação-pesquisa-comunicação).
4 Hannah Arendt (1906-1975) foi uma filósofa alemã de origem judaica. Entre suas principais ideias estão o respeito
às diferenças, inclusão (pluralismo político), contrário ao totalitarismo, onde as decisões sobre a sociedade são tomadas
por um só grupo; a importância de decidir em conjunto o futuro comum (“O revolucionário mais radical se torna um
conservador no dia seguinte à revolução”); a preservação do espaço público para prática da liberdade e da cidadania; e
as relações entre poder – para ela fruto da convivência e cooperação – e o domínio total, que anula a interação social.
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total sobre seres humanos, que os torna incapazes de ter consciência
das consequências dos seus atos e palavras. O indivíduo submisso age
como uma engrenagem do domínio total (AGUIAR, 2010, p.1), um domínio
institucionalizado, legitimamente eleito.
O método do domínio externo é eliminar qualquer conjunção que
possa favorecer a existência de elos afetivos, solidariedade, colaboração,
raízes culturais – os bens espirituais dos quais falava Beuys, o Sal. Como
explica o filósofo Odílio Aguiar – que estudou o pensamento de Arendt –
sem raízes, a percepção é de um mundo de desamparo e ódio, que se
espalha sem controle. E o mal “se realiza na banalidade, na injustiça e
nas radicais práticas de violência contra apátridas, imigrantes, mulheres,
desempregados, índios, negros, crianças, idosos e a natureza” (AGUIAR,
2010, p.4). No cotidiano.
Para Arendt, nas sociedades massificadas o mal banal, da vida
mundana, comum, do dia-a-dia, surge do sentimento de impotência,
submissão, solidão, condicionamento. Cuja única forma de libertação são
os dons do espírito: pensar, querer e julgar. O mal é a renúncia à capacidade
de pensar. Ao renunciar do pensamento se renuncia ao espírito. Ao
abdicar do espírito, o indivíduo, o grupo, se torna submisso à lógica externa
dominante, seus clichês morais e palavras de ordens (ARENDT, 1995).
O indivíduo que se submete ao domínio total não se reconhece
dotado da capacidade de dar início a qualquer coisa, se sente incapaz
de criar. “É um círculo vicioso onde quem não encontra a criatividade em
si recusa os dons do espírito. O mal é o vazio reflexivo. Quem pensa se
dignifica” (AGUIAR, 2010, p.2). Os exercícios dos dons do espírito produzem
uma sociedade melhor, o cuidado com o bem comum, o amor mundi. É a
dimensão ética da vida (AGUIAR, 2001).
Os pensamentos de Beuys e Arendt convergem em diversos pontos.
Para os dois a livre fruição dos dons do espírito (pensar, querer e julgar) –
através de ações de libertação da vontade, usando a potência de gestos
e palavras para canalizar energias coletivas –, pode transformar o mundo.
A reflexão aprofundada, transdisciplinar e coletiva é capaz de promover
o despertar da consciência sobre os bens espirituais, o bem comum,
produzindo o amor mundi.
Para Hannah Arendt a experiência humana se divide nas esferas da
contemplação e da ação, o trabalho, a participação na vida pública, o
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exercício dos dons do espírito, recriar o novo coletivamente. É o Pólen da
obra de Beuys, a transformação do mundo através da criatividade, da força
do pensamento criativo, expressão como estratégia de organização das
experiências: transformar ações cotidianas e organizar o esforço coletivo
para alcançar um novo estágio evolutivo de humanidade, a partir de uma
visão holística da sociedade e da natureza.
O mundo comum, como pensado por Hannah Arendt, é organizado
em torno de valores institucionalizados, família, arte, religiões, partidos,
sindicatos, justiça e outros sistemas, espaços físicos e simbólicos, onde
os indivíduos podem exercitar a empatia e a solidariedade entre iguais
e diferentes. Os governos totalitários atacam as instituições e os elos de
amparo e respeito entre as pessoas, tudo que possa multiplicar os dons do
espírito, gerar solidariedade e ação. O que é negado em tempos de horror
são as subjetividades.
A pesquisadora Lotte Arndt5 entende que contemporaneamente as
referencias (o Sal, as raízes), se fragmentaram e os sistemas instituídos
são incapazes de representar o interesse comum, de proteger cidadãos
e sociedades da supremacia de poderes excludentes, o que promove
um sentimento geral de abandono politico, cultural e social, uma crise de
representação (ARNDT, 2017). E nessa conjuntura as instâncias culturais tem
o papel preponderante de multiplicar as zonas de contato, de troca de
reflexões, valores, sensações, emoções, percepções. E para serem capazes
dessa tarefa precisam se reinventar. Para Arndt:
(...) os museus podem hoje participar na resistência às explosões
reacionárias e contribuir, através de suas práticas, para abrir e destacar
caminhos previamente invisíveis, ressoar com sons inauditos, resultantes
de encontros entre vozes e corpos muitas vezes separados por hierarquias
sociais, e assim esboçar, com uma transversalidade barroca e às vezes
dissonante, uma linguagem que se inventa no caminho (ARNDT, 2017,
tradução nossa).
Segundo a pesquisadora Nora Sternfeld6 “lógicas participativas
estão entre as principais tendências do campo museológico” (STERNFELD,
2017, p.8) na teoria e na prática. Assim como enunciados inclusivos anti-
5 Lotte Arndt leciona na École d’art et design de Valence. Seu PhD é sobre negociações pós-coloniais em revistas
culturais relacionadas à África. Sua produção científica foca em tópicos relacionados ao presente pós-colonial e
estratégias para subverter narrativas eurocêntricas. Ela acompanha o trabalho de artistas que interrogam criticamente o
presente pós-colonial e os pontos cegos da modernidade.
6 Nora Sternfeld é educadora e curadora. Faz parte do trafo.K, um escritório de produção de conhecimento crítico
baseado em Viena, e de freethought, uma plataforma de pesquisa. É diretora artística do Bergen Assembly e professora
de Curadoria e Mediating Art, na Universidade de Aalto, em Helsinki, Finlândia, e codiretora do ECM - educação / curadoria
/ gestão - Masterprogramme de teoria e prática de exposições na Universidade de Viena.
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nacionalistas, questões sobre representação e políticas de memória
hegemônicas, teorias decoloniais, herança cultural como instrumento de
inclusão social e cidadania, museus como zonas de agenciamento, de
narrativas e processos museológicos alternativos: exercícios para imaginar
mundos possíveis.
Para ela, mesmo diante da conjuntura atual e a partir de círculos
pequenos e isolados, é possível atuar sem ser assimilado pelo sistema
comercial, e sem se isolar, tendo impacto no desenvolvimento democrático
e saudável da sociedade. Para ser participativo não é preciso estar nos
centros emissores de discursos e práticas, tomar distância e experimentar
formatos independentes também é resistir. Este momento crítico da
história pede espaços de colaboração, de criação de novas reflexões,
e experimentos sobre transformações do mundo a partir do cotidiano.
Mesmo sem saber onde exatamente o trabalho pode levar, e o que fazer
com o conhecimento produzido.
Nesse panorama de privilegio dos interesses econômicos e
autoritarismo, em detrimento de valores ligados ao desenvolvimento
humano, Sternfeld acredita que “o desafio das instâncias culturais é
manter o compromisso crítico e continuar a produzir e difundir discursos e
práticas sobre memória e herança cultural cada vez mais independentes
das instâncias hegemônicas de poder” (STERNFELD, 2017, p. 9).
Arte é um locus de articulação das subjetividades. Arte é olhar para
fora a partir do universo interior. A criatividade é capaz de criar novas
modelagens de sociedade. A herança espiritual é mensagem poética,
passada de geração em geração, que tem o poder de ressignificar a
existência humana. Museu é o espaço simbólico para transmissão de
fragmentos dessas mensagens poéticas. Dentro do museu é possível
moldar o futuro.
A natureza e seus padrões possuem uma lógica própria e um profundo
sentido de equilíbrio e harmonia. A observação de sistemas biológicos
e fenômenos naturais pode trazer soluções para problemas diversos do
cotidiano. As experiências participativas e contemplativas nas relações
entre sujeito e ambiente ativam processos criativos, alargando fronteiras e
provocando novas interpretações e significados para a arte e a vida, novos
paradigmas.
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Ação artística “A Montanha Mágica”. Nicia Freire, 2019. Acervo do Museu do Mato.
A Escultura Museal é um processo poético contínuo, como os ciclos
naturais, e o MATO é objeto natural, arquétipo, imagem, símbolo dessa obra.
MATO é a vegetação que nasce espontaneamente, em local e momento
inesperados. É capaz de germinar em qualquer lugar, qualquer terreno.
MATO tem alto poder de adaptação, aproveita ao máximo qualquer escasso
recurso que surja. Precisa de pouco tempo para germinar e florescer.
É poliploide: capaz de se modificar geneticamente. É auto-compatível:
capaz de se polinizar com seu próprio pólen. MATO é capaz de hibernar até
ter condição de desenvolvimento. Produz continuamente. E por isso tudo é
perene, quase imortal.
MUSEU DO MATO é museu-obra que tem pensamento como matéria:
reflexões sobre natureza e cultura; sobre relações entre bem comum e
memória; sobre herança espiritual e mudanças de percepção em tempos
de transição. Como todo museu, é uma instância de legitimação.
Aqui é SERTÃO. Ideia que envolve relações entre tempo e experiência
cotidiana, SECA, SOL, suas causas e efeitos físicos, mentais, emocionais,
espirituais. Aqui nas GERAIS da Chapada Diamantina, na amplidão, no
tempo lento das cordilheiras, todo esforço é nada diante de uma força
maior: tudo é amplo, aberto e paradoxalmente hermético.
POÉTICA DA HERANÇA. Herança espiritual. Conhecimentos a partir
da experiência cotidiana, vivências poéticas nas Gerais. Em busca da
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consciência a partir de fragmentos. Fragmentos ancestrais de sangue e
de espírito. Pensando como os bens ou valores espirituais podem continuar
sendo transmitidos para contribuir para o BEM COMUM.
Nesses tempos de profunda transição os valores do espírito humano
se perdem no excesso de informação, de ambição, excesso de pressa. Em
lugares distantes da velocidade urbana, em contato direto com a natureza,
é possível buscar a dimensão real do espírito, do tempo, dos ciclos. Ritmo
da natureza se sobrepondo à velocidade do capital, retornando à escala
da vida natural, não-industrial.
Perspectiva poética nesta realidade permite crer e criar utopias.
Recriação coletiva de valores espirituais agregadores. Ganhar consciência,
transformar as estruturas mentais, em busca da ordem no caos. Para isso
é necessária percepção ampliada, alteridade, solidariedade, atenção e
TEMPO. Para produção de pensamentos e processos capazes de ressignificar
nossa existência.
As ações do Museu do Mato tem o objetivo de mapear, identificar,
potencializar subjetividades de agentes locais: diversos repertórios; relações
poéticas com história, cultura, natureza, patrimônio material e imaterial,
cultura, arte; que dialoguem com diferentes dimensões locais; para ampliar
percepções sobre o mundo, estimular a reflexão e o reconhecimento
de outros valores simbólicos, como estes das entranhas da Chapada
Diamantina; construir novas possibilidades de futuro, reativar experiências,
consolidar conhecimentos, divulgar ideias: ecoar outras vozes.
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REFERÊNCIAS
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MARCELA BONFIM
Rezador
Fotografia
Alta Floresta , RO, 2015 41
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GRIOTS: MEMÓRIAS, IDENTIDADE E
RESSIGNIFICAÇÃO NO ENVELHECER –
RELATO DE EXPERIÊNCIAS SOBRE O LIVRO
ÁRVORE
Maeli Gomes de Oliveira1
Tamires Maria Lima Gonçalves Santos2
RESUMO
O presente trabalho apresenta a criação do livro Griots, que se trata
de um projeto que discute questões ligadas à memória, identidade e
ancestralidade. Para essa produção, foram realizadas oficinas arte-
educativas em espaços públicos através do Edital Arte todo dia da Fundaão
Gregório de Mattos. É fruto do compartilhamento de saberes com idosos
de sete asilos e um orfanato em Salvador e buscou salvaguardar formas
de ser ancestral.
Introdução: o início da jornada
No território brasileiro a velhice aparece simbolicamente como o
período de descansar, aposentar sendo até mesmo considerado como
improdutivo. É também uma busca de retiro, em que não se pode assumir de
forma física e mental certas ações no conjunto social. Nesse período torna-
se necessário fortalecer vínculos familiares e de convívio para promover
a autonomia e a sociabilidade dos idosos. Embora, o envelhecimento
populacional, seja um fenômeno universal, marcado pela velocidade
da transição demográfica comprovada no nosso país, não é notório o
investimento em políticas públicas sociais e de saúde que favoreçam o
envelhecer saudável ou mesmo que garantam uma cobertura de atenção
ao idoso que não consiga conviver em espaços familiares seguros.
1 Doutora em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia. É docente adjunta do curso de Enfermagem da
Universidade Estadual de Feira de Santana atuando em supervisão de Estágio no Hospital Especializado em Saúde Mental
Lopes Rodrigues, atuando no Grupo de Trabalho Humanizado. E-mail:
[email protected].
2 Doutoranda em Educação pela Universidad Autónoma de Madrid. Mestre em Desenho, Cultura e Interatividade
pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Docente na Universidade Federal da Bahia, atuante no curso de Design
com foco em Ilustração e Educação Inclusiva à crianças surdas. E-mail:
[email protected].
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Após conhecimento dessa realidade e da legislação brasileira com
base no Estatuto do Idoso que respalda os direitos das pessoas com idade
igual ou superior a 60 anos, e que além das necessidades básicas como
higiene, alimentação e moradia, ressalta que manter a mente ativa através
da realização contínua de atividades artísticas e culturais são vitais para
manutenção da saúde mental e física da pessoa idosa. Foi a partir desse
conhecimento que se buscou o desenvolvimento do projeto Griots: arte
e ancestralidade, com o objetivo de estimular a realização de atividades
artísticas e educativas entre as pessoas idosas que ocupam esses espaços
de acolhimento e retiro, através do resgate das suas memórias e histórias
vivenciadas e compartilhadas. E através dessas vivências criou-se o livro
árvore.
O livro árvore é uma produção editorial, o qual consiste em poesias,
fotos e detalhes como: folhas flores, raízes e papéis transparentes que
significam as memórias e afetos das pessoas idosas residentes nessas
casas. Convém ainda dizer que a fonte de inspiração para a escolha do
nome Griots, originou-se no vocábulo jali ou jeli (djeli ou djéli na ortografia
francesa), que define as pessoas comprometidas em preservar e
compartilhar histórias, fatos históricos e os conhecimentos e as canções
de seu povo. Existem os griots músicos e os griots contadores de histórias.
Eles ensinavam a arte, o conhecimento de plantas, tradições, histórias e
davam conselhos aos jovens príncipes. Além disso são eles os responsáveis
por assegurarem a tradição e a cultura ao compartilharem com os demais
as suas experiências.
. Nesse sentido, as atividades propostas foram substanciais para
o levantamento das memórias e histórias desses sujeitos, pois durante a
realização das mesmas, estabeleceu-se um vínculo de confiança, o que
favoreceu a partilha de suas experiências de vida. Nesses marcantes
momentos, eles contaram suas histórias e compartilharam aprendizados
com uma atividade sensitiva. No desenvolvimento dessas atividades
foi realizada uma contação das histórias relatadas pelos idosos com as
crianças do Espaço Lar Vida, onde as mesmas, ouviram as histórias e
desenharam o que sentiram em cada história contada. As histórias foram
cruciais para a criação do livro, pois se tornou um material experimentado,
fugindo de bases clássicas, dando originalidade aos assuntos ligados à
memória dos nossos Griots.
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Memórias, identidade e ressignificação no envelhecer
Muitas pessoas não aceitam o processo de envelhecimento e até
chegam a adoecer psicologicamente por não compreenderem o seu
novo lugar no mundo. No tocante à autoimagem, memórias e identidade
existe um arcabouço teórico definindo sobre o significado de cada variável
nesse processo de envelhecimento. Em relação à autoestima, Morais
(2009), afirma que a mesma poderá influenciar para uma boa ou má
qualidade de vida. Considerando a importância do espaço que ocupamos
no mundo, a identidade é o “[...] o produto de uma intersecção de diferentes
componentes, de discursos políticos e culturais e de histórias particulares”
(HALL, 2006, p.38). Muitos fatos históricos acontecem no entorno de uma
pessoa, mas é considerado relevante o que traz significado para a vida
particular, pois isso define quem é a pessoa e como quer ser representada.
Desse modo, assim como as histórias, as pessoas tendem a trazer
consigo traços de seu pertencimento, sua identidade e memória, que
dependem das particularidades do contexto sociocultural de que fazem
parte. Muitas pessoas tornam-se adultas e não permanecem no lugar de
origem, mas levam consigo essas marcas e as memórias de sua infância.
Essas memórias podem ser revividas e recontadas com riso, se forem
lembranças boas e nostálgicas.
Pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas
pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições.
[...] Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens
e histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que
elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são,
irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas,
pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e não a uma
“casa” particular). (HALL, 2006, p.89).
Assim, o avivamento da memória traz à tona uma imensa bagagem de
relações construídas em diversos locais, culturas e relações interpessoais.
Já a memória é a reunião de recordações sobre histórias de vida ou histórias
de um grupo. Essas lembranças têm relação com a infância, com pessoas,
lugares e fatos que lhe ocorreram; até mesmo experiências sensoriais
podem ficar guardadas como memórias. O inconsciente preserva aquilo
que é considerado mais importante, seja uma memória de algo bom ou
ruim que aconteceu. Sendo assim, percebe-se que a memória é seletiva e a
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capacidade de guardar não é relacionada pela idade ou pelo que diz para
decorar: a memória é guiada pelo impacto que algumas sensações ou
momentos nos causam. Assim, ressalta-se como se compõe sentimentos
de identidade. Para o autor:
A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade,
tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência
de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. (POLLACK, 1992,
p.204).
Dessa forma, entende-se porque muitas pessoas não guardam na
memória os fatos históricos importantes do país, já que tais momentos não
influenciaram diretamente suas vidas. Então, os fatos foram esquecidos
de suas lembranças, porém, o cérebro também possui a capacidade de
apagar propositalmente as memórias ruins, que causaram muita dor à
pessoa. Nesses casos, pode-se reafirmar como a memória seleciona
os fatos que constituem a identidade. Para Pollack (1992), a memória é
atemporal, e o sujeito pode manter acesa na memória o que considera
mais importante, saltando o tempo e realocando em outros momentos da
história, buscando a ressignificação.
Na memória individual, permanecem a personalidade e histórias
particulares da vida, enquanto, na memória coletiva, é possível evocar
recordações impessoais quando for de interesse do grupo; um exemplo
é a função da oralidade de transmitir conhecimentos e histórias que
foram vividas pelos antepassados. São recordações não vividas, mas
foram sentidas pelo grupo em geral, então permanecem o sentimento
de recordação e o desejo de perpetuar esse sentimento aos mais novos
do grupo. Dessa forma, a memória é constituinte da organização social
e cultural da vida. Cabe à pesquisadora o cuidado ao analisar os relatos
orais das memórias, entendendo-os como tramas de significados em
movimento, que se deslocam no tempo e segregam recordações que
podem ou não vir à tona em outros momentos.
A narrativa de suas recordações é o esforço de um sujeito para construir sua
identidade. As histórias de vida devem ser consideradas como expressões
da identidade social do informante, e essa identidade é o resultado de um
processo de apropriação simbólica do real. Ao investir no relato e na ação,
ao conferir sentido aos gestos e materializar as significações adquiridas,
o ator torna-se sujeito dos seus atos. (MOTT; NEVES; VENÂNCIO, 1988, p.35).
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Nesse sentido, recordar é um modo de construir a identidade. O que é
lembrado tem valor simbólico e contribui para que a pessoa se desenvolva.
Dessa maneira, também se percebe elos com a ancestralidade, pelo
avivamento de suas origens e a transferência de práticas passadas
às próximas gerações. Portanto, escolher um suporte atemporal para
contar tais histórias é fundamental para trazer ao idoso um sentimento
de representação. Tendo em vista que a Política Nacional do Idoso (Lei Nº
8.842) declara em seu primeiro artigo o objetivo de assegurar direitos dos
idosos, criando condições para promover sua autonomia, integração e
participação efetiva na sociedade (BRASIL, 1994), é preciso revisitar práticas
de reintegrar tais pessoas à sociedade.
Tendo em vista a variabilidade desses conceitos de memória,
identidade, autoestima e sua subjetividade, com o propósito de promover
orientações para um envelhecimento com a salvaguarda de suas histórias
é que nasce a ferramenta livro. Com a produção literária, pode-se notar a
intrínseca relação entre memória e identidade, já que as histórias carregam
traços sobre memórias, pertencimento e etnia do autor. Para Ferreira (2005),
a identidade social reflete a etnicidade, como o entendimento dos traços
culturais identificadores e diferenciadores dos grupos.
O caminho metodológico
O caminho metodológico utilizado nesta pesquisa permeia a
Etnografia e o Design Thinking. A etnografia trata-se de um ramo da
antropologia social em que o pesquisador tem contato direto com o
sujeito ou com a comunidade que deseja estudar e busca compreender
um pouco de sua cultura para registrá-la. Percebe-se que o método
etnográfico propõe a interpretação do comportamento de indivíduos
ou grupos (CLIFFORD, 1998). Outros autores apoiadores da etnografia
que deram suporte na metodologia foram Minayo (1994) com Pesquisa
social: teoria, método e criatividade, e Thompson (1998) com Ideologia e
cultura moderna. O autor John Thompson(1998) acredita na importância
da aplicação de uma metodologia interpretativa, analisando as formas
simbólicas encontradas como expressões culturais. Portanto, durante oito
meses houve o contato com a comunidade idosa de Salvador ao visitar
sete instituições de longa permanência públicas nos bairros: Itapuã, Piatã,
Brotas, Campinas de Brotas, Barbalho, São Tomé de Paripe, Boa Viagem.
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Nesse momento foram propostas as oficinas arte-educativas para
promover o acesso ao lazer e a cultura e também conhecer suas histórias.
Essa série de atividades criativas instigou aspectos cognitivos dos idosos.
A oficina de bonecas estimulou a memória afetiva sobre elos familiares,
a oficina de plantas medicinais ajudou a recordar os ambientes vividos,
como a casa e seu cotidiano doméstico, as oficinas de recorte e colagem
estimularam a coordenação motora, abriu fronteiras para as conversas
sobre a sensação de cada cor e sua importância em memórias e a
Oficina de cadernos de memórias, os fez relembrar de grandes histórias
que marcaram suas vidas. Como última experimentação, compartilhamos
as histórias contadas e fotos dos idosos para nova geração, ou seja,
crianças. Visitamos o Orfanato Lar Vida e fizemos uma oficina de desenho
e encadernação a partir das memórias dos idosos. Após o período das
oficinas deu-se o desenvolvimento do livro e nessa etapa foi utilizado o
Design Thinking (2011), metodologia criativa advinda do Design colaborativo,
em que o público-alvo é inserido no processo. A metodologia então
se divide em três fases: Imersão, Ideação e Prototipação. Na Imersão, o
objetivo é propor ideias, conhecer e reunir informações sobre o público-
alvo. Para tanto, foi realizadas as oficinas previamente apresentadas. Na
Ideação foram organizadas as histórias compartilhadas e definições sobre
como as memórias afetivas deveriam ser registradas em poesia, fotografia
e desenhos no livro. Já na Prototipação, o primeiro livro nasceu, ao ser
diagramado, impresso e montado. Esse momento foi validado em dois
momentos: o primeiro sendo o retorno à Casa de Repouso Rosa Menina
em Piatã, e o segundo momento foi o lançamento do livro Griots: Arte e
Ancestralidade no espaço Ativa Atelier - Rio Vermelho.
Resultados e experiências
A memória é um elo constituinte entre as recordações das histórias
de vida do indivíduo e a formação de si mesmo. Essas lembranças são
selecionadas e registradas no inconsciente e podem ser reavivadas
através de conversas, entrevistas e momentos de ordem sensorial tais
como barulhos, cheiros e cores que remetem a alguma passagem da
vida. Dessa forma, é possível perceber que a memória possui movimento
próprio, pois ela “[...] desloca-se no tempo, sai do presente em direção ao
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tempo vivido e refaz o caminho em direção ao presente, é nesse tempo
que ela vive” (FERREIRA, 2005, p.6). Assim, observa-se a não obrigatoriedade
da memória em obedecer ao tempo cronológico. As recordações que
serão mais marcantes nem sempre serão as mais previsíveis, como um
aniversário ou uma conquista no âmbito profissional ou acadêmico. O
registro da memória pode se ater a um lugar visitado apenas uma vez na
infância ou fatos corriqueiros da vizinhança, o que importa é como esses
momentos podem marcar a história e a lembrança de um sujeito.
Por meio de conversas e trocas de experiências, as marisqueiras
contaram um pouco de suas lembranças e reconstruíram brinquedos que
pensavam ter esquecido. Realizar tais atividades foi um aprofundamento
da reflexão sobre o lugar que memórias tem no mundo, e como estão
relacionadas com a ancestralidade. A importância de cada fato em suas
vidas, o que carregam com eles por tanto tempo e a maior descoberta:
o tempo tem sua própria maneira de caminhar e a relevância do que
fazemos e do que somos varia no contexto social e familiar que ocupamos.
É preciso construir história com os pontos-chaves relevantes e saber que
se transformarão em memórias e marcas de nossos corpos.
Figura 1 – Oficina em Abrigo São Gabriel, Ribeira – Salvador. Fonte da autora
E por falar em corpo, esse foi o quesito crucial para planejar as
atividades arte-educativas, uma vez que foi necessário desacelerar,
pensar no tempo, nas conversas, na coordenação motora e nos materiais
utilizados. Essa percepção foi sentida nas primeiras atividades pois os
idosos queriam receber os produtos da oficina já prontos (a boneca, o
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caderno), pois já estavam acostumados a fazer atividades mais simples
como pintar ou colar. Então foi necessário fazê-los acreditar em suas
próprias habilidades, e as cuidadoras agradeceram muito pelos estímulos
de coordenação motora e psicológico gerados.
Figuras 2 a 6 – Fotos das oficinas nos asilos e orfanato em Salvador. Fonte da autora
O livro Griots: Arte e Ancestralidade
O projeto culminou em um livro de poesias cujo tema está relacionado
à memória dos afetos e a produção do livro contou com o apoio financeiro do
Edital Arte Todo Dia da Fundação Gregório de Mattos 2018, com a curadoria
de Juci Reis. Essa produção buscou um diálogo entre o passado e presente
e discute a amplitude de ser idoso, de ser ancestral. E, para isso, o livro se
mostra não só um livro em formato tradicional, ele se transforma, a cada
página aberta se apresenta como um novo tronco e galho, iniciando como
raiz de uma árvore que frutifica, assim como os idosos, também chamados
Griots.
Na parte conceitual o livro buscou-se tratar o tema de forma poética, e
colocar esse momento da vida humana envelhece e que os idosos refletem
o passado e o futuro. Eles são a raiz e nós o tronco que frutificamos. Tudo a
extensão de um corpo só. E por isso, o elemento árvore. Na parte estética o
livro assume um formato novo, o livro objeto, que na esfera editorial se torna
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criativo pela sua existência e complementa o tema discutido. As técnicas
utilizadas no livro são a risografia, serigrafia, dobradura e colagem de folhas
coletadas durante o processo. Por fim, o jogo de transparências também
remete à memória. A árvore representa um traço de culturas negras, ela
representa um lugar de segurança, onde são narradas histórias, gera
sombra e dá frutos. E mantém uma relação com os idosos desse projeto,
se apresentam como uma árvore que fica mais bela quando está mais
velha.
Essas relações entre a obra, memória e ancestralidade se aprofundam
quando analisamos as escolhas do papel com pequenas manchas que
aumentarão com o tempo, o tipo de impressão com pequeninas falhas e
partes desfocadas numa tentativa de captar o etéreo e o deslocamento
no tempo, assim como as memórias devem ser. Considerando que a
ancestralidade está ligada ao sentimento de origem e pertencimento ao
realizar certas práticas, no projeto gráfico e montagem foi proposta essa
interação a partir da escolha do processo de impressão, mas também na
proposta de interação da leitora e do leitor a partir do toque. Esse toque
foi pensado na colagem de folhas, flores e raízes, nas janelas de papel-
manteiga trazendo imagens turvas e cor dourada, trazendo um toque
antigo. Todos esses elementos corroboram em uma proposta decolonial,
fugindo do molde clássico do livro, propondo uma nova narrativa de contar
histórias em um suporte original, o livro de artista Griots.
Figuras 7 – Imagens do livro. Fonte da autora
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Figuras 8 a 11 – Imagens do livro. Fonte da autora
Compartilhando e trocando saberes
O lançamento foi um chá da tarde no Ativa Atelier Livre (endereço:
Rua Tupinambás, 423, Rio Vermelho). Essa temática de chá foi escolhida
exatamente por estar próxima do que seria uma atividade popular entre
idosos. Nesse momento foi realizada uma roda de conversa sobre memória,
idosos e afetos, os participantes relembraram histórias dos idosos de seu
cotidiano e de sua própria vida. Também foi um momento de contar as
histórias que inspiraram cada poesia e refletir sobre a situação atual dessa
comunidade na cidade e como contemplá-los cada vez mais.
Como validação do projeto, houve também a entrega dos livros nas
instituições de longa permanência e os idosos ficaram muitos contentes
quando se viram no livro. Esse momento de retorno foi de extrema
importância para completar o ciclo do projeto, assim como foi valioso ter
realizado esse registro de suas histórias no livro físico por ser um objeto
palpável e que está compartilhado com o mundo.
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Figura 12 a 16 – Lançamento do livro no Ativa Atelier e apresentação do livro na Casa de
Repouso Rosa Menina. Fonte da autora
Fechando um ciclo
O reconhecimento dos idosos ao visualizar o livro demonstrou
euforia e alegria em ver suas histórias registradas e a aceitação do livro
na Roda de conversa sobre Envelhecimento e Ressignificações foi de
grande relevância. Dessa forma, percebe-se a importância da essência do
caminho metodológico seguido, pois deu grande ênfase à convivência do
período estipulado com os sujeitos da pesquisa. Conhecê-los e envolver-
se no ambiente foi uma forma de entender como essa comunidade idosa
se sentia em relação ao registro da memória, das histórias e do afeto.
A partir desse projeto percebeu-se que a população brasileira está
envelhecendo, e este é um reflexo, dentre outros fatores, do aumento
da expectativa de vida devido aos avanços que o sistema de saúde
vem conquistando. Entender esse fenômeno e valorizar as transmissões
de saberes e fazeres pertencentes ao patrimônio imaterial foram as
principais circunstâncias que levou à essa criação. É observado também a
importância de considerar os sujeitos da terceira idade como um público
que carece de políticas de inclusão.
Essa reflexão se faz necessária ao considerar a escassez de ações
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culturais e artísticas que as instituições que amparam os idosos enfrentam
atualmente. Desta forma, essa série de atividades arte-educativas
incentivaram de forma criativa este público e ao mesmo tempo gerou
material paradidático de apoio para os educadores, médicos e servidores
das instituições numa ação multiplicadora. Além de uma ferramenta
pedagógica, o livro Griots registrou a história desses idosos e assim,
suas memórias, afetos e salvaguardou formas de ser ancestral. Temos
que a memória apresenta rastros de um passado, e nesse projeto
tem-se representada as origens dessas senhoras para demarcar sua
ancestralidade e compartilhar tais saberes à crianças na sessão do projeto
e as leitoras e leitores do livro produzido, tendo em vista um novo discurso,
uma narrativa decolonial ao inovar nos processos gráficos e de contar a
história da comunidade idosa participante que são raiz e têm tanto a nos
contar.
Figura 17 e 18 - Fachada do primeiro asilo visitado e cartaz final de divulgação. Fonte da autora
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
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JOSI
Da série: Decantações, fervuras e temperamentos
Água de feijão preto e açafrão sobre papel
Belo Horizonte, 2022 56
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
TRANÇADEIRAS DE MASSARANDUPIÓ:
PIAÇAVA, CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E
SABERES TRADICIONAIS EM RISCO NO LITORAL
NORTE DA BAHIA
Marcos Paulo Sales1
Sílvia Helena Zanirato
2
RESUMO
O texto analisa os conflitos que envolvem comunidades tradicionais do
Litoral Norte da Bahia, que produzem artesanato a partir de bens naturais
disponíveis no meio ambiente. Os saberes e práticas associadas se
expressam nos artefatos, principal fonte de renda dessas populações.
Os conflitos percebidos advêm de ações decorrentes do avanço
da silvicultura e da urbanização. A pesquisa empregou entrevistas,
fotografias e foi orientada por metodologias para cada fase do estudo.
Palavras-chave: Comunidades tradicionais; Áreas protegidas;
Artesanato; Conflitos ambientais; Massarandupió (BA).
INTRODUÇÃO
Este texto propõe uma análise sobre os conflitos socioambientais que
envolvem as comunidades tradicionais que vivem em Massarandupió, no
Litoral Norte da Bahia. Para produzir o artesanato Tupinambá, as artesãs
fazem uso de bens naturais da Mata Atlântica, recolhidos na região que se
tornou uma Área de Proteção Ambiental (APA). Criada como instrumento
da Política Nacional de Meio Ambiente (decreto nº 1.046/1992), a unidade de
conservação tem como premissa o ordenamento ecológico-econômico
da região.
À época da sua criação, o instrumento legal previa, por exemplo,
avaliar os diversos impactos que ocorreriam na localidade a partir da
1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política (ProMuSPP), da
Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social (PPGPTDS), pela
Universidade Católica do Salvador (UCSal). Jornalista.
2 Livre-Docente em Ciência Ambiental, Professora do Instituto de Energia e Ambiente e da Escola de Artes, Ciências
e Humanidades (EACH), da Universidade de São Paulo (USP). Brasil.
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construção da Linha Verde (BA-099) – rodovia que interliga os estados
da Bahia e Sergipe. Nestes quase 30 anos de criação da APA Litoral Norte
da Bahia mudanças substanciais ocorreram nos contextos ambientais
(ecossistemas), sociais, econômicos e culturais.
De acordo com o Instituto do Meio Ambiente (INEMA, 2022), a APA
possui área total de 142 mil hectares, uma faixa litorânea com 10 quilômetros
de largura e 142 quilômetros de extensão ao longo da Linha Verde. A Vila
de Massarandupió, região geográfica escolhida para este estudo por sua
expressiva produção artesanal, é um distrito do município de Entre Rios e
está inserida na unidade de conservação.
Os instrumentos legais destacados neste estudo buscavam (e
ainda buscam), favorecer a manutenção de um cenário de conservação
ambiental, nem sempre possível. As dificuldades não são recentes, mas
remetem a obras estruturantes e a abertura da linha verde, que favoreceu
o desenvolvimento de empreendimentos ligados ao turismo, estimulado
por aquilo que mais caracterizava a região: vegetação nativa densa, águas
limpas, praias quase desertas e paisagens deslumbrantes.
Mesmo com o avanço da ocupação da área por empreendimentos
ligados ao turismo, a região ainda conserva uma vegetação remanescente
de Mata Atlântica: restingas, manguezais, coqueirais, dunas, lagoas, riachos
e cachoeiras, além fauna e flora endêmicas (TINOCO, 2019). O patrimônio
natural ressalta a importância da localidade para a conservação
ambiental e proteção da biodiversidade, sendo considerado um hotspot
de biodiversidade (TINOCO, 2019).
As comunidades que vivem em Massarandupió manifestam as suas
tradições pelo artesanato. O saber-fazer tem origem que remete aos índios
Tupinambás, é carregado de ensinamentos ancestrais e transmitido por
sucessivas gerações. O ofício ocupa e empodera as mulheres, gera renda
e reconhecimento para a localidade (SOUZA; GERMANI; SOUZA, 2011).
Compreender esse saber como tradicional encontra fundamento em
Diegues et. al. (2000), são
[...] grupos humanos culturalmente diferenciados que historicamente
reproduzem seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com
base em modos de cooperação social e formas específicas de relações
com a natureza, caracterizados tradicionalmente pelo manejo sustentado
do meio ambiente (DIEGUES et. al. 2000, p. 22).
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O artesanato produzido pelas artesãs é resultante de um conjunto de
saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural, transmitidos oralmente
por gerações, e se verifica em um lugar ecológico específico: a zona
de ocorrência da piaçava da Bahia (Attalea funifera Martius), palmeira
resistente, endêmica da Mata Atlântica, no Litoral Norte da Bahia, principal
matéria-prima utilizada para a produção dos artefatos.
As práticas artesanais ali verificadas são definidas por Sales e Moura
(2020):
Representam uma forma de resistência ao mundo globalizado e ao
conceito de desenvolvimento baseado na economia, são protagonistas
do patrimônio cultural imaterial baiano. Elas detêm, transmitem e
socializam conhecimentos tradicionais do fazer com as mãos, transmitidos
por sucessivas gerações. São saberes trançados em práticas não
sistematizadas, mas com forte poder transformador de transmitir saberes
ancestrais, como o respeito às questões ambientais (SALES; MOURA, 2020).
Apesar de ser uma atividade secular que tem buscado se adaptar
às transformações do lugar, esta se encontra em risco que decorre de
mudanças bem mais abruptas nos espaços de ação das artesãs. Para
entender esse processo, a pesquisa se valeu de uma metodologia ampla:
pesquisa bibliográfica, visitas in loco, observação participante, entrevista
semiestruturada, registro de imagens e estudo de caso, realizado na
Associação das Artesãs de Massarandupió (ADAM), que conta com 16
trançadeiras em atividade.
As metodologias empregaram orientações a respeito da revisão de
literatura em artigos científicos, trabalhos acadêmicos e técnicos, acessados
pelos bancos de dados do Web of Science, SciELO, Sistema Integrado de
Bibliotecas da Universidade de São Paulo (SIBi USP) e Google Acadêmico. A
história oral foi praticada em acordo com Boni e Quaresma (2005), a leitura
da imagem fotográfica conforme Zanirato (2005) e a análise de conteúdo
dos documentos oficiais fundamentada em Laurence Bardin (1977).
A Vila de Massarandupió
De acordo com o IBGE (2010), as principais atividades econômicas
do município são a pesca artesanal, mariscagem, agricultura e produção
do artesanato. No entorno da Vila de Massarandupió é possível encontrar
vilarejos históricos, empreendimentos turísticos e hoteleiros e um extenso
litoral com quase 200 quilômetros de praias, que gera grande fluxo de
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turismo na região, atividades que também geram emprego e renda.
A comunidade, às vezes esquecida pelo poder público, relata a
deficiência de serviços básicos como o acesso universal à saúde, educação
e saneamento básico. A região, de hábitos simples, pode ser observada
na Figura 1, que traz em primeiro plano uma artesã no trabalho. As ruas de
terra, com amplas áreas verdes, são palco para a montagem da estrutura
de produção, exposição e comercialização do artesanato, que também
pode ser encontrado na sede da associação. A tranquilidade observada só
é interrompida pela presença de turistas – potenciais consumidores –, que
frequentam a praia naturista da Vila.
Figura 1 – Entrada da Vila de Massarandupió, no município de Entre Rios (BA)
Fonte: Marcos Paulo Sales (2021)
A Vila é acessível pela rodovia BA-099, Km 88, na região costeira do
município de Entre Rios, no Litoral Norte da Bahia, e fica a aproximadamente
120 quilômetros de distância da capital, Salvador. Atualmente conta com
uma população estimada de 600 habitantes, segundo dados da última
contagem (SOUZA; GERMANI; SOUZA, 2011).
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Figura 2 – Mapa da área de estudo, com destaque para a comunidade de Massarandupió (BA)
Fonte: Marcos Paulo Sales e Luis Paixão (2020)
O bioma predominante é a Mata Atlântica, onde se veem também
vegetação de restingas, coqueirais, dunas, áreas úmidas (brejos e lagoas)
e manguezais. Na Figura 3, pode-se observar, em primeiro plano, os
coqueirais, no segundo plano, um dos rios que serpenteia a região para
desaguar no mar, e ao fundo, as dunas e vegetações de restingas.
Figura 3 – Os coqueirais da Vila de Massarandupió (BA)
Fonte: Marcos Paulo Sales (2021)
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Relatos de moradores dão conta do surgimento da Vila, habitada
no passado pelos índios Tupinambá, que dá nome e homenageia o
artesanato da localidade. Estes relatos falam da abundância de uma
árvore da região, a maçaranduba (do tupi, maçarandyba), utilizada
na mata para rolar outras árvores. A maçaranduba é conhecida por
produzir um fruto amarelo, pequeno e geralmente doce. Diferente do
habitual, os frutos da região possuíam sabor amargo, o que levou
os moradores do início a associar os frutos da maçaranduba a
um sabor pior, originando daí o nome da Vila: Massarandupió.
Conhecimento biodiverso e o artesanato local
As áreas de ocorrência natural da piaçava, ao longo do Litoral Norte
da Bahia, hoje são propriedade de produtores rurais, redes turísticas e
empresas; há também a plantação em terras indígenas demarcadas
ou em processo de demarcação ou ainda em terras pertencentes aos
quilombos certificados pela Fundação Cultural Palmares – FCP (PIMENTEL,
2015).
Os artesãos extraem a piaçava se valendo de práticas empíricas de
manejo tradicional e esse manejo consiste, segundo Barreto (2009), em
[...] retirar a fibra de ano em ano, a fim de possibilitar a formação de fibras
mais longas e de melhor valor comercial, fazendo com que as artesãs
colham a palha em diversos pontos do piaçaval. A época considerada
como mais apropriada para a colheita é no período de maio a setembro,
uma vez que nos meses mais quentes as fibras ficam menos flexíveis
(BARRETO, 2009, p. 88).
Esse manejo exige um conhecimento aprofundado do ciclo das
palmeiras, de sua reprodução e de emprego de um calendário que permita
a retirada das fibras sem comprometer a capacidade de recuperação da
planta. Isso se deve a um conhecimento adquirido pela tradição herdada
e que possibilita o uso sustentado do ecossistema.
Constata-se, então, que o artesanato de Massarandupió se insere nos
ciclos naturais renováveis e se configura como um modo de vida associado
ao ambiente. Ele é, prioritariamente, produzido por mulheres. Os homens,
quando inseridos no contexto produtivo, aparecem como extrativistas, ou
quando comercializam a matéria-prima utilizada no artesanato, sobretudo
para as artesãs mais idosas e que já não têm condições de coletar a
piaçava nas matas do entorno da Vila.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Em décadas anteriores, foram realizados programas de qualificação
profissional em parceria com órgãos públicos e organizações não
governamentais (ONGs), que visavam a elevar a qualidade dos produtos e
permitir o acesso das artesãs associadas a novos mercados consumidores,
como os complexos hoteleiros da região. Atualmente não há mais nenhuma
iniciativa nesse sentido em curso.
O artesanato praticado na região é conhecido como Trançado
Tupinambá. A técnica é única no mundo e representa uma característica
marcante da região onde está inserida a Vila de Massarandupió. O processo
de produção é composto por oito etapas, que vai desde a coleta da
matéria-prima e o seu beneficiamento, até a comercialização do produto
final. A partir das entrevistas e observações realizadas, pudemos conhecer
o processo de produção do artesanato, descrito abaixo (Figura 4).
Figura 4 – Processo de produção do trançado Tupinambá
Fonte: Marcos Paulo Sales (2021)
As etapas de produção do artesanato Tupinambá podem ser
observadas nas imagens que ilustram este trabalho (Figura 5). Como
identificado por Barreto (2009, p. 90),”o trabalho começa com a saída das
artesãs em direção ao local da colheita, bem no início da manhã, quando
o sol está fraco, ou no final da tarde. O percurso até o piaçaval geralmente
é feito a pé, em grupos de três ou mais artesãs”.
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Figura 5 – Etapas de produção do artesanato Tupinambá
Fonte: Marcos Paulo Sales (2021)
A influência do turismo e a pressão mercadológica interferiram
na produção local: “[...] a atividade, que antes tinha lugar garantido na
ludicidade, ganhou o estatus de fonte de renda” (MATTEDI, 2002, p. 87). A
produção se adaptou ao mercado, incorporando adereços, mobiliários,
vestimentas, peças decorativas e funcionais, entre outras.
As artesãs de Massarandupió
A história do artesanato em Massarandupió pode ser melhor
compreendida a partir da fala de uma das artesãs:
Quando eu era menina, a gente passava o ano fazendo artesanato pra
conseguir dinheiro para duas festas: Natal e São João. A gente fazia três
tipos: chapéu, esteira e bocapiu, e só tinha uma cor, a cor natural. A gente
fazia e o pai ia vender longe esse artesanato, de comboio, uns três dias de
viagem. Lá, na feira de Alagoinhas, tinha um rapaz certo que comprava o
artesanato. E a gente ia a pé! Arrumava tudo no lombo do jegue, levava
água e comida e às vezes a gente também dormia na estrada, e voltava
com um dinheirinho pras festas, pra comprar farda, essas coisas.
A fala demonstra o saber recebido das mães e avós, que começou
ainda na infância. Hoje as artesãs têm, em sua maioria, idade que varia
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
entre os 61 e 70 anos (37,5%). As mulheres com mais de 71 anos perfazem
18,75%. Numa proporção menor, estão as artesãs na faixa etária entre os 26
e 30; 41 e 50 e 51 a 60 anos de idade, com 6,2% cada. Na faixa entre os 31 e
40 anos estão outras 25%. Há uma ausência de mulheres com idade até
os 25 anos nesse ofício, o que sugere que as mais jovens preferem atuar
em outros ramos de atividade, sejam eles formais ou informais, como nos
empreendimentos turísticos e hoteleiros da região ou prestando serviços
nas casas de veraneio no entorno da Vila.
As artesãs explicam que o seu fazer é difícil:
O artesanato para mim é a minha fonte de renda, é a minha vida. Como
você acompanhou a gente lá na mata, não é um trabalho, digamos, fácil.
Não! Eu trabalhei muitos anos na agricultura e depois voltei pro artesanato,
que é o que eu gosto. [...] eu ainda vou na mata pegar piaçava, mas tem
artesã que não aguenta mais pela idade, e compra os feixes na mão
do rapaz. [...] E posso falar que hoje ainda é melhor do que antigamente,
quando a gente não tinha a associação, né?.
O nível de ocupação é maior entre as mulheres com mais de 61 anos
de idade. Nessa faixa etária, elas são, em sua maioria, aposentadas e as
que ainda não conseguiram o benefício da aposentadoria atuam em
outras atividades para complementar a renda familiar, como em serviços
domésticos, na agricultura ou na coleta e comercialização de frutas da
estação, como a mangaba.
Percebe-se, assim, que já estão a ocorrer interrupções na transmissão
do conhecimento às populações mais jovens, atraídas por trabalhos
considerados menos difíceis, e associados aos diversos ramos vinculados
ao turismo. Todavia, não é apenas esse fator que está pondo em risco a
manutenção dos saberes e fazeres em torno do artesanato a partir da
piaçava da Bahia.
Um saber em risco
O manejo da matéria-prima ocorre de forma a minimizar os impactos
ao meio ambiente, com a preocupação em não extrair mais do que a
capacidade de reposição das palmeiras e não gerar pressão sobre as
mesmas. Como diz um dos artesãos, entrevistado por Barreto: “Não se pode
retirar a folha da mesma piaçava sempre, tem que esperar um tempo
pra ela crescer e ter novas palhas, senão termina matando a piaçava”
(BARRETO, 2009, p. 89).
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Ainda que haja essa preocupação, a continuidade da atividade
encontra-se em risco em face de ações que estão a ocorrer em
Massandupió e que remetem ao avanço da silvicultura e da urbanização
nos espaços que ainda abrigam formações vegetais que fornecem as
fibras para o artesanato praticado.
Dados apresentados por Maia e Santos (2009) mostram que, entre
1991 e 2008, a Costa dos Coqueiros, onde está situado o município de Entre
Rios, recebeu mais de 1.500 empreendimentos turísticos e hoteleiros. Foram
residências turísticas e de serviços, campos de golfe, áreas de serviços,
esporte e lazer à beira mar, que retiraram a vegetação de restinga, tornando
a situação crítica para a conservação da biodiversidade no Litoral Norte.
A silvicultura teve expansão no L itoral N orte na década de 1970.
A plantação gera produtos madeireiros, papel, celulose e carvão vegetal. A
produção “evidencia o seu caráter excludente quanto ao domínio territorial
das famílias de camponeses, historicamente estabelecidas no Estado da
Bahia” (ANDRADE e OLIVEIRA, 2016, p. 322).
Segundo o Instituto do Meio Ambiente da Bahia (INEMA, 2021), os
principais problemas na região que abriga a APA incluem a ocupação
desordenada do solo, o avanço da plantação de pinus e eucalipto, a
intensificação da pecuária e da pesca predatória, a degradação dos
manguezais e o turismo que tem levado a diversos loteamentos ao longo
de toda a costa.
O avanço dos condomínios e loteamentos sobre os brejos, mangues
e dunas costeiras não só deteriora os ecossistemas ao aterrar lagoas,
erradicar a vegetação originária, extrair areia para a construção civil,
despejar lixo e entulho nas áreas circunvizinhas, contaminar os lençóis
freáticos, como também contribui para acabar com os tradicionais meios
de subsistência da população local. (LIMONAD, 2007, p. 9).
Essas ações estão a diminuir a vegetação nativa do Litoral Norte da
Bahia, como as piaçaveiras. Essa diminuição é uma preocupação constante
na fala das artesãs, que dizem o quanto tem tornado a coleta difícil e escassa
nos limites da Vila. Parte das palmeiras que ainda resta está em áreas
privadas, situação que gera tensões e conflitos. Quando o acesso delas é
permitido, este se dá por acordos verbais com os proprietários de terras
para coletar a piaçava. Segundo as artesãs, caso medidas emergenciais
não sejam adotadas, a escassez da matéria-prima inviabilizará a tradição
do artesanato a médio ou longo prazo.
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Sobre a diminuição na oferta da piaçava na região, pudemos confirmar
a situação relatada in loco. Percorremos cerca de doze quilômetros, de
carro, do centro da Vila até o local mais próximo de coleta, na BA-099. No
passado, como dizem as artesãs, esse percurso era realizado a pé, dentro
dos limites da Vila:
Antes a gente não andava muito pra pegar a piaçava pra fazer o artesanato,
sabe? Tudo era aqui em Massarandupió, a piaçava, o licuri, a tintura pra
tingir a palha. Hoje não tem mais piaçava que preste aqui por perto e a
gente tem que andar muito pra conseguir uma boa, com qualidade pra
fazer o artesanato. Quem não consegue, compra, mas aí diminui o lucro,
que já é pouco e as pessoas não valorizam muito. Na verdade, muita área
daqui já foi desmatada pelo eucalipto, que acaba com tudo.
A fala da artesã traz uma série de problemas que afligem a coleta da
matéria-prima: o desmatamento para o plantio do eucalipto, a distância
cada vez maior até áreas onde ainda estão as piaçaveiras, dificuldades
decorrentes do desmatamento em conseguir outros produtos naturais
empregados no artesanato, como o licurí, e a ação de intermediários na
coleta das fibras, fatores esses que diminuem o lucro e desmotivam a
prática.
A pesquisa permitiu entender as ameaças à continuidade da
produção do artesanato, verificada tanto nos relatos das artesãs,
como no próprio campo. O principal motivo, segundo as falas das
artesãs, diz respeito ao desmatamento que tem ocorrido na região,
sobretudo para o plantio de eucalipto, seguido ainda pela privatização
de áreas verdes, que antes eram comuns, assim como pelo avanço da
urbanização e dos empreendimentos do turismo a ela associados. Estes
fatores ocasionam, de forma considerável, uma queda na oferta da
matéria-prima e na produção artesanal em Massarandupió.
Considerações finais
O estudo demonstra os problemas advindos da ocupação da região
costeira do Litoral Norte da Bahia, particularmente no entorno da Vila de
Massarandupió. Em que pese a área de estudo estar dentro de uma APA,
que tem como premissa o ordenamento ecológico-econômico da porção
litorânea dos municípios em seu entorno, os diversos impactos locais
advindos das novas formas de uso e ocupação do solo na região têm
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resultado em mudanças substanciais, com comprometimentos ambientais
e sociais.
Entre os comprometimentos está o relacionado ao desmatamento, que
envolve diretamente os saberes e práticas artesanais a partir da extração
e manuseio da piaçava, saber aprendido e transmitido por gerações. A
continuidade desse saber requer ações capazes de reduzir os riscos que a
ele se apresentam e que comprometem não só esse conhecimento, como
a manutenção dos bens naturais biodiversos.
O agravamento do problema aponta, como solução passível de
resolver e assegurar o direito à terra para as comunidades tradicionais,
a criação e efetiva fiscalização de reservas extrativistas, pensadas como
propriedades de uso coletivo, capazes de garantir o acesso das comunidades
de artesãos aos bens naturais de uso comum. As comunidades tradicionais
que vivem do artesanato e seus modos de vida e saberes devem ser
preservados, assim como os ecossistemas por elas utilizados.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
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70
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
RENDA DE BILRO: IDENTIDADE DE RESISTÊNCIA
DO ARTESANATO NUMA COMUNIDADE
TRADICIONAL DA BAHIA
Vaneza Pereira Narciso1
Viviane Pereira Narciso2
Marcos Paulo Sales3
RESUMO
Este texto traz uma reflexão sobre o saber-fazer artesanal da
renda de bilro, herança secular europeia. A atividade encontra-
se salvaguardada em mãos de mulheres negras, artesãs do
município de Saubara (BA). A análise foi feita com base em pesquisas
bibliográficas, a partir de termos como artesanato, identidade cultural
e decolonialidade. Por fim, compreende -se que a produção artesanal
representa um elemento de resistência para a comunidade local.
Palavras-chave: Identidade Cultural; Produtos Artesanais; Saubara (BA);
Decolonialidade.
*
Introdução
O produto artesanal busca personalizar diferenças culturais,
imprimindo sensibilidade e elementos simbólicos como valores agregados
à peça final e, deste modo, se contrapõe ao produto “globalizado”,
geralmente impessoal e feito em escala comercial. Assim, o artesanato faz
parte da identidade cultural de uma localidade, representando uma forma
de resistência diante da globalização. De forma geral, estes processos
globalizantes são responsáveis por uma padronização de costumes e
retira a “cor local” das peças produzidas pelas comunidades tradicionais
(BARRETTO, 2015, p. 97).
1 Pós-graduanda em Comunicação e Marketing pela Universidade Salvador (Unifacs), Bahia, Brasil. E-mail:
[email protected].
2 Pós-graduada em Gestão da Qualidade pelo Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE), Bahia, Brasil. E-mail:
[email protected].
3 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política (ProMuSPP), da
Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social (PPGPTDS), pela Universidade
Católica do Salvador (UCSal), Bahia, Brasil. Jornalista. E-mail:
[email protected].
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Esta reflexão parte da compreensão de que a identidade cultural
é mutável, e assim abrem-se caminhos para o debate sobre como o
artesanato da renda de bilro, produzido no município de Saubara (BA),
no Recôncavo da Bahia, resiste, buscando diálogos produtivos com as
diversas áreas do conhecimento e o equilíbrio nas relações entre a tradição
artesanal e a sociedade contemporânea (HALL, 2006, p. 12). Cabe destacar
que neste diálogo com a contemporaneidade, a oralidade das artesãs
é preponderante a manualidade, pois deixa entrever que suas histórias
de vida estão impressas simbolicamente no trabalho artesanal e que a
hibridação cultural faz parte da decolonialidade.
Este texto analisa o saber-fazer artesanal da renda de bilro como uma
herança europeia, que hoje encontra-se em mãos de mulheres negras do
Recôncavo Baiano e que neste processo de hibridação cultural verifica-se
uma possível afirmação da identidade de resistência do artesanato frente
aos processos globalizantes.
Artesanato e Identidade Cultural
Ao tratar da representatividade do artesanato tradicional, Lemos (2007,
p. 45) aponta que este “remete ao conjunto de artefatos mais expressivos
da cultura de um determinado grupo, representativo de suas tradições e
incorporados à vida cotidiana, sendo parte integrante e indissociável dos
seus usos e costumes”. A produção artesanal se incorpora às relações
familiares e comunitárias, de tal maneira que este saber é visto como de
valor cultural a ser preservado e transmitido de geração em geração, para
manutenção da memória coletiva (LEMOS, 2007, p. 45).
Alguns autores contribuem para o entendimento conceitual de
identidade cultural e, nesta abordagem, destacamos os trabalhos de Stuart
Hall (2006), Zygmunt Bauman (2005) e Manuel Castells (2018). Para Hall
(2006), um indivíduo possui múltiplas identidades, acessadas de acordo
com as circunstâncias vividas. Em sua obra, ele menciona, por exemplo,
algumas identidades: de classe, étnica, política, profissional e sexual. Já
Baumann (2005) vai afirmar que existe um processo de identificação
destas identidades, que se caracterizam e propõem ao indivíduo múltiplas
experimentações. Hoje, a identidade é entendida como uma característica
relacionada com o papel social que o sujeito desempenha em sua realidade
(BARRETTO, 2015, p. 93-96).
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Para o estudo da identidade coletiva aplicada ao artesanato, destaca-
se o exposto por Castells (2018): “A construção de identidades vale-se da
matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, por instituições
produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais,
pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso”. Desta forma,
um ou mais desses elementos podem ser dominantes para a construção
de uma identidade coletiva. Cabe destacar ainda a importância de
significados percebidos pelos indivíduos (CASTELLS, 2018, p. 55).
Qual ameaça sofre o artesanato enquanto elemento identitário na
atualidade?
O horizonte mencionado por Rios (1969), percebidos por alguns
estudiosos, era de que “nos albores da industrialização, que a fábrica
acabaria fatalmente por absorver a oficina e o artesanato, típico de uma
era superada pelo capitalismo e pela indústria, passaria a atividade fóssil
e marginal”. No entanto, a partir da crítica feita por Rios (1969), percebe-se,
na atualidade, que o artesanato vem resistindo ao tempo e aos processos
globalizantes, além de reforçar a sua importância e identidade cultural nos
cenários produtivos locais. Também ganhou novas tipologias: artesanato
brasileiro, artesanato indígena, arte popular e artesanato tradicional.
Neste aspecto, observa-se que o artesanato brasileiro na
contemporaneidade ganha novo fôlego e passa a valorizar as
características de onde ele é produzido, suas identidades culturais e
aspectos simbólicos, reafirmando, assim, uma resistência frente ao cenário
industrial e globalizante. Sobre este cenário, menciona-se que
“[...] o artesanato tradicional só pode ser produzido enquanto os modos
de vida que o sustentam continuarem a existir, ele é uma importante
ferramenta de resistência cultural e política” e acrescenta que o artesanato
permite que “grupos tradicionais como quilombolas, ribeirinhos e indígenas
afirmam as singularidades de suas culturas, reivindicando a importância
e o direito de preservar seus conhecimentos, modos de fazer e de viver”
(ARTESOL, 2022).
A identidade cultural da renda de bilro pode ser associada a uma
das definições propostas por Castells: “[...] Identidade de resistência: criada
por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/
ou estigmatizadas pela lógica da dominação” (CASTELLS, 2018, p. 57). A
partir destas contribuições, é possível caracterizar o artesanato produzido
por comunidades tradicionais brasileiras como um bem-dotado de uma
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identidade de resistência frente aos desafios impostos pela globalização.
Para sobreviver às intensas mudanças no cenário do consumo cultural,
é necessário que as comunidades artesãs, como a de Saubara (BA),
mantenham uma visão estratégica sobre estes processos de construção
da identidade e estejam estruturadas e sólidas para enfrentar as ameaças
a incidir sobre a identidade cultural do saber-fazer da renda de bilro.
Culturas Híbridas e Decolonialidade
Na obra Culturas Híbridas, Canclini (2001) faz uma abordagem
conceitual sobre o processo de hibridação cultural, no qual o define como
“processos socioculturais nos quais estruturas e práticas discretas, que
existiam separadas, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e
práticas”. Culturas diferentes passam a conviver juntas e a formar uma
multiculturalidade criativa, como resultados de processos intencionais ou
ocasionais, mas sempre como fruto da criatividade individual ou coletiva.
Este termo ganhou atenção no final do século XX, sendo comumente usado
para descrever alguns processos, dentre eles, os interétnicos, decoloniais e
globalizantes (CANCLINI, 2001, p. 15 e 16).
O pensamento de Aníbal Quijano reforça a linha argumentativa deste
texto quando este sociólogo expôs que, a Europa, como controladora das
diversas e heterogêneas culturas e produção do conhecimento, manteve
submissa à subjetividade dos colonizados que, por repressão, a definiram
como subcultura dos iletrados. Assim, houve o que o autor caracteriza
como “colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou
outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva,
do imaginário, do universo das relações intersubjetivas do mundo, da
cultura em si” (QUIJANO, 2005).
Nisto, cabe trazer o que foi mencionado por Hall (2006) quando
aborda a homogeneização cultural ao citar Kevins Robins, que se refere ao
capitalismo global como sendo um processo de ocidentalização, ou seja,
“a exportação das mercadorias, dos valores, das prioridades, das formas
de vida ocidentais”, onde o ocidente considera a cultura do outro como
sendo “alienígena” e “exótica” e, assim, “a globalização torna o encontro
entre o centro colonial e a periferia colonizada imediato e intenso” (HALL,
2006).
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O que seria então a decolonialidade?
Walter Mignolo (2017) pontua de forma simples que “a decolonialidade
significa primeiro desvincular-se dessa estrutura de conhecimento [criado
pelos colonizadores] para se engajar em uma reconstituição epistêmica”.
Ou seja, é preciso revisitar “os diversos modos de pensar, linguagens, modos
de viver e estar no mundo que a retórica da modernidade desmentiu e a
lógica da colonialidade implementada” (MIGNOLO, 2017).
O estudo sobre culturas híbridas interessa, sobretudo, aos setores
hegemônicos que dominam e determinam o mercado, mas também aos
setores populares que resistem e buscam beneficiar-se da modernidade.
A hibridação coloca em debate a existência de identidades puras e
autênticas, visto que
“em um mundo tão fluidamente interconectado, as sedimentações
identitárias organizadas em conjuntos históricos mais ou menos estáveis
(etnias, nações, classes) se reestruturam em meio aos conjuntos
interétnicos, transclassistas e transnacionais” (CANCLINI, 2001, p. 18,
tradução nossa).
Portanto, a hibridação vai além da mestiçagem biológica, pois no
campo das ciências sociais, abarca uma dimensão cultural e envolve
combinações identitárias. Em Saubara, há um exemplo de convivência
multicultural entre vários elementos identitários: indígena (artesanato de
palha), europeu (renda de bilro) e afrodescendentes (trabalho manual das
artesãs).
Para Quijano (2005), “a colonialidade, em outras palavras, é o lado mais
sombrio da modernidade ocidental” e acrescenta que “a decolonialidade
é tanto um fazer analítico quanto um fazer prospectivo: construindo e
reconstruindo os modos de vida que a modernidade repudiou e destruiu”
(MIGNOLO, 2017). Oportunizar e criar espaços de expressões orais dos
saberes tradicionais é promover a reconstituição epistêmica daqueles que
herdaram a tradição, mas que não puderam, por algum tempo, evocar
sua subjetividade durante o processo de produção. Hoje, representantes
destas comunidades tradicionais podem criar diálogos com as diversas
áreas do conhecimento sem perder a identidade cultural.
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Renda de bilro
Objeto de análise deste artigo, os registros mais antigos sobre a
renda de bilro datam dos séculos XV e XVI, porém, sem um marco temporal
específico. Fortes indícios apontam que a técnica pode ter surgido entre
Portugal e Espanha, por volta dos séculos XII e XIII (OLIVEIRA, 2014, p. 5). Vera
Felippi (2021) destaca que a técnica foi mencionada pela primeira vez nos
livros de Matio Pagano (1515-1588). Outros registros foram observados na
obra de Mrs. Burry Palisser, em 1869. Já em 1913, Clifford utiliza a renda de
bilro como ilustração (FELIPPI, 2021, p. 28-30).
De acordo com Ramos (1948), quase não há relatos sobre a origem
das rendas no Brasil, “pois a renda de bilros, entre nós, como, aliás toda
e qualquer forma de artesanato, jamais mereceram a menor proteção
ou orientação oficiais, sendo deixados aos azares da improvisação,
significando abandono quase completo” (RAMOS, 1948, p. 35-36).
Felippi (2021) também complementa que sobre a origem da técnica
“[...] não há como apontar certezas históricas, pois há muitas possibilidades
a serem consideradas, principalmente nos primeiros séculos de surgimento
das rendas como as conhecemos hoje”. Estes trabalhos evidenciam, assim,
as imprecisões históricas e temporais sobre o artesanato (FELIPPI, 2021).
Diante do exposto até aqui, a respeito do saber-fazer da renda de bilro
e da relação com a identidade cultural, converge-se para o entendimento
de que “as rendas, nesse caso, nos proporcionam um repertório rico para
estudo tanto histórico e social quanto técnico e visual”, como um bem
cultural material e imaterial, “carregam traços de identidade individual (no
caso de mestres artesãos) e coletiva que transmitem códigos culturais
através de características próprias na forma com que determinados
indivíduos ou grupos confeccionam pontos de renda ou tipos de renda”
(FELIPPI, 2021, p. 59).
A renda de bilro é um objeto que pode ser estudado a partir de várias
categorias de análises e contextos regionais, resultando em uma rica e
vasta produção de conteúdo, visto que, no Brasil, observamos a existência
de vários polos produtores da renda de bilro. Entre eles, está o município
de Saubara (BA), localizado no Recôncavo Baiano, a cerca de 120 km da
capital (Salvador), que possui pouco mais de 12 mil habitantes e surgiu
no ano de 1550 (IBGE, 2022). Ao segmentarmos a população por gênero,
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observa-se que os homens vivem da pesca; já as mulheres, trabalham na
coleta de mariscos, complementando a renda familiar com a produção e
comercialização do artesanato. Neste município, encontra-se a Associação
dos Artesãos de Saubara (também conhecida como Casa das Rendeiras)
que possui atualmente 110 associadas, das quais 55 estão em atividade,
sendo 43 artesãs com atuação na produção da renda de bilro e outras 12
dedicadas ao artesanato de palha.
Figura 1 – Mosaico de fotos da Associação dos Artesãos de Saubara: local de aprendizagem e
comercialização da renda de bilro
Fonte: elaborada pela autora (2022)
Mãos negras, renda branca
É possível estabelecer uma reconstituição epistêmica do modo de
ser, saber e fazer da renda de bilro através da oralidade das artesãs,
mas também nos poucos trabalhos científicos sobre a renda de bilro
saubarense.
No projeto de pesquisa sob o título “As rendeiras de Saubara - da
educação informal à educação formal: estudo de caso na Associação
dos Artesãos”, Tourinho (2019) mencionou o resultado do trabalho feito
pela Associação, conduzida pela mestra-artesã Maria do Carmo, em
que a artesã diz o seguinte: “tendo ganhado a confiança no mercado
e o reconhecimento da comunidade de outras cidades, e até estados e
países” observou a necessidade de organizar a transmissão deste saber-
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fazer através de cursos e, deste modo, “continuar o trabalho artesanal na
região, assim não deixando se perder no esquecimento dos antepassados”
(TOURINHO, 2019, p.17).
Na dissertação de Oliveira (2019), com o tema “Mãos que cosem a
memória: as Rendeiras de Saubara-BA e o protagonismo de mulheres
negras no patrimônio”, destaca-se o papel das artesãs na salvaguarda
deste trabalho artesanal. Evidencia-se a construção da identidade
cultural do saber-fazer a partir das expressões orais das rendeiras e o
modo como observam o mundo e se relacionam com ele. Representante
da Associação dos Artesãos, Maria do Carmo revela a sua relação
mágica com a renda de bilro ao dizer que “Por isso que chama magia do
Recôncavo, porque é uma magia mesmo a renda de bilro”. Ela também
aborda a questão da independência feminina (algo que não é exercido
pela maioria das rendeiras), conforme trecho em que diz que “eu não
aceito que ninguém mande em mim, nem diga o que eu tenho que fazer.
Eu não sou mulher de pedir, eu sou de avisar” (OLIVEIRA, 2019, p. 71).
Sobre o diálogo das artesãs com outras áreas do conhecimento,
tem-se a parceria das rendeiras com a designer Márcia Ganem, que
desenvolveu pesquisas na comunidade. Como resultado desta proposta,
alcançaram projeção internacional, com apresentação do artesanato
de Saubara na Europa e nos Estados Unidos.
Cabe mencionar a realização de alguns programas de capacitação
e fomento ao artesanato, que proporcionaram às artesãs uma maior
autonomia sobre a produção, mesmo que outros objetivos não tenham
sido alcançado, conforme avalia Maria do Carmo, representante da
Associação dos Artesãos, quando relata que o maior é que todas as
rendeiras vivessem só da renda “porque é um trabalho que fica em casa,
e a mariscagem é um trabalho muito sacrificado [...]. O que eu gostaria
que acontecesse aqui é que a gente encontrasse um mercado que
escoasse nossos produtos” (OLIVEIRA, 2019).
A relação das rendeiras com o saber-fazer revela a subjetividade de
cada artesã e cria momentos de distração ou mesmo de desenvolvimento
intelectual. Na fala de dona Doralina Cruz, a mais antiga das rendeiras,
ela menciona: “eu ainda coso porque eu gosto de coser a renda, tanto é
que não tem outra coisa que me distrai. O pensamento tá ali, aí distrai”.
Tal sentimento é compartilhado por Maria Antônia Passos: “Não me vejo
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sem minha renda. Às vezes quando não tem encomenda eu vou lá, ‘Maria
me dê qualquer coisa aí’” (OLIVEIRA, 2019, p. 71).
Acerca da transmissão do saber, valorizam-se os ensinamentos dos
antepassados. Torna-se motivo de orgulho ter aprendido a rendar com
uma tia, mãe ou avó, conforme a fala de Ednalva Menezes: “eu amo essa
profissão, amo mesmo, já gosto [...]. É fazer.. que gente tá (expressão de
tristeza)... às vezes distrai a mente da gente ói, vai jogando os birros ói”.
Estabelece-se um vínculo familiar que ultrapassa a correlação sanguínea
e torna-se uma relação comunitária do saber-fazer, incluindo outras
atividades como a mariscagem, segundo Doralina Cruz: “Eu comecei
menina, não lembro a idade não. Todo mundo fazia, minhas tias, tudo era
rendeira. Naquela época não tinha outra coisa pra fazer. Aí fazia renda.
Mariscava e fazia renda” (OLIVEIRA, 2019).
Comumente, as rendeiras brasileiras utilizam o termo “birro” em
substituição a palavra de origem europeia, “bilro”. Segundo o autor do livro
Ômi Rendero (2009), o termo birro “não recebeu nenhum reconhecimento
da parte da camada intelectual” e justifica este situação ao fato de
que “as rendeiras sendo na sua imensa maioria mulheres que muito
frequentemente não sabiam quase ler, e que por consequência não
tinham voz” (RENDERO, 2009).
Ainda que historicamente a origem da renda seja vista como
uma herança europeia, o que as artesãs destacam e se orgulham é o
processo de construção da identidade transmitida por seus familiares,
como vemos dito por Lidiane Silva: “Aí aos nove anos eu já sabia fazer
a renda, [...] E minhas primas todas elas fazem renda, aprendeu com
minha vó também”, e acrescenta: “é uma tradição milenar passada de
geração em geração desde os portugueses até aqui. É um fato histórico,
uma tradição histórica. Tanto a renda quanto a palha né, o trançar”. Nisto,
observa-se que outros elementos identitários são igualmente valorizados,
como o artesanato da palha, reforçando a multiculturalidade (OLIVEIRA,
2019).
O que preocupa a comunidade artesã nesta localidade é o
desinteresse da nova geração pela renda de bilro. Quando questionada
sobre este assunto, Maria do Carmo apontou que “elas [as jovens]
começaram com muita força de vontade mas depois o zap tiraram elas
da Casa das Rendeiras, é tanto que hoje só tem duas aí, antes eram 10”.
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Seria este um desafio para a Associação e para a sociedade diante da
modernidade? Cabe uma reflexão mais profunda sobre os contornos que
a colonialidade trouxe para as comunidades tradicionais (OLIVEIRA, 2019)
Observa-se nos trabalhos científicos aqui citados, que a tradicional
renda de bilro dialoga com diversas outras áreas do conhecimento,
como a moda, o designer, novas tecnologias, educação, meio ambiente e
desenvolvimento local. Assim, o artesanato da renda de bilro é visto, tanto
pelas artesãs como pela sociedade, como um elemento identitário de
resistência, que pode ser observado e analisado sob diversas perspectivas,
valorizando o saber-fazer artesanal e salvaguardando a tradição.
Considerações finais
Uma arte europeia trazida para o Brasil e aqui, desenvolvida por
mulheres negras que se apropriaram da técnica - desenvolvida a partir de
habilidades manuais - e se apropriaram dessas narrativas decoloniais em
seu cotidiano. Estas mulheres buscam, por meio da arte, o reconhecimento
do trabalho e a valorização da cultura. Resistem aos processos globalizantes
que afetam não apenas o consumo, mas também comprometem o
interesse das novas gerações em perpetuar o tradicional saber-fazer
artesanal. Assim é a produção artesanal da renda de bilro em Saubara,
que passa por constantes desafios e se mantém resiliente.
Os resultados aqui obtidos permitiram compreender que o conceito
contemporâneo de identidade cultural não é algo imutável, pois os signos e
símbolos que a compõem sofrem o processo de hibridação cultural através
de transições e mutações ao longo das épocas. Acrescenta-se a este
ponto de análise as possibilidades do artesanato no universo acadêmico,
sob as mais diversas perspectivas. Percebeu-se que a produção da renda
de bilro em Saubara se atualiza constantemente e resiste às mudanças do
tempo, sobretudo ao dialogar com outras áreas do conhecimento.
A representatividade do artesanato de Saubara torna-se um elemento
expressivo da cultura local. Além de trazer valores simbólicos, representa de
forma marcante as tradições dos grupos que o produz, trazendo elementos
da vida cotidiana e tornando-se parte indissociável dos costumes locais. Por
isso, a comunidade das artesãs cria, recria e mantém uma identidade de
resistência. Isto ganha notoriedade nos diversos depoimentos encontrados
nos trabalhos científicos e nos eventos catalogados para este trabalho.
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Destaca-se aqui que é urgente criar ações de fortalecimento da
identidade cultural da renda de bilro, salvaguardar esse saber ancestral e
fomentar ações que estimulem a preservação da memória. Dentre estas
possibilidades, citamos: oferta de oficinas e cursos, criação de acervo
bibliográfico e uso das tecnologias para aproximar o público da produção
artesanal. Estas ações podem fazer parte do processo de preservação,
conservação e recuperação do patrimônio e da memória, pois é o que
mantém a identidade local.
Por fim, compreende-se, com maior ênfase, que a produção artesanal
da renda de bilro constitui um elemento identitário de resistência para a
comunidade, principalmente quando se analisa os relatos das artesãs nos
diversos trabalhos científicos. Estas mulheres são símbolos de resistência e
expressam, com orgulho, a maneira em que promovem a preservação do
saber-fazer secular por transmiti-lo às novas gerações e, em simultâneo,
participarem de um intercâmbio de conhecimentos com outros setores da
sociedade contemporânea. Espera-se que este artigo contribua e estimule,
em alguma medida, para a preservação da identidade cultural da renda
de bilro na comunidade.
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VULCANICA POKAROPA
Poder as pessoas Trans e Travestis
Desenho digital
Presidente Bernardes, SP, 2021 85
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
POÉTICAS E
DECOLONIALIDADE
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
AYRSON HERÁCLITO
Narrativas de Avivi
Fotografia
Dimensões variáveis 87
Pirajuia, BA, 2022
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
AS NARRATIVAS DE AVIVI NA PRODUÇÃO DE
UMA POÉTICA VISUAL AFRO-BRASILEIRA
Ayrson Heráclito1
Fotografia como devir ritual: rumos metodológicos
O ensaio fotográfico Narrativas de Avivi integra as investigações do
artista, que compreende a produção de imagens como um devir ritual,
a partir da cosmopercepção afro-brasileira dos òrìsás. Toda visualidade
produzida pelo artista é criada através de uma ação ritual, remetendo ao
conceito iorubano de uma temporalidade multidimensional que reúne o
passado, o presente e o futuro em uma composição de eventos circulares,
como nos informa Fayemi Ademola Kazeem no seu artigo Time in yorùbá
culture (2016).2 Nesta perspectiva, a imagem realizada encarna a dinâmica
condição de impermanência em sua recepção.
Em outra conceituação sobre a distinção do tempo, nos diz o escritor
nigeriano, prêmio Nobel em literatura (1986):
passado, presente e futuro sendo concebidos de forma tão pertinente e
entrelaçados na cosmovisão yorùbána, o elemento de eternidade que .
prerrogativa do deus não tem a mesma qualidade de afastamento ou
exclusividade que tem no cristão, [islâmico] ou Cultura budista. (SOYINKA,
1988, p. 27)
Inspirados nas práticas e nos mitos do Candomblé (religião afro-
brasileira da qual o artista é integrante), que diviniza os elementos da
natureza, a obra apresenta saberes que afirmam os contínuos processos de
transformação dos seres humanos. Compreendendo que sua constituição
física possui parte do universo em seu corpo, como a água, a terra, o fogo,
o ar.
Cada òrìsá possui símbolos característicos que representam as
1 Ogã Sojatin do Jeje Mahi em Salvador, professor da UFRB na cidade de Cachoeira-BA, artista visual e curador.
Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC São Paulo, Mestre em Artes Visuais pela UFBA.
2 As palavras Yorùbá àkókò, ìgbà, asiko são frequentemente usadas de forma intercambiável para se referir ao
tempo. Àkókò - um tempo em torno de um evento de coisas, Ìgbà - um período ou época e Asiko - simplesmente uma
estação específica.
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forças da natureza em cada um de nós. Na pesquisa, nos debruçamos
nas divindades do chamado Panteão da Terra, o elemento terra. A
relação dessas divindades de origem africana que foram levadas pelas
populações negras escravizadas para as Américas e o Caribe, que são
evocadas nesta ação ritual materializada pela fotografia, nos diz o quanto
saberes pré-coloniais podem inspirar o mundo contemporâneo em uma
perspectiva não europeia. E como ações artísticas podem ser políticas em
uma concepção mística e espiritual com armas incomuns como o Ibirí,
Xaxará, Draka e Avivi. A beleza e as estratégias de lutas dessas divindades
(òrìsá) que representam a proteção e a regeneração, unidas em laços
familiares, podem nos conectar com a atualidade em que ainda vivemos
as consequências nefastas das desigualdades sociais e do racismo que
atingem as populações pretas nos nossos dias.
Ìtàn Òsányìn
A palavra Òsányìn se origina da contração do vocábulo Òsán (forte
luz do sol) com a Yìn (atingir) assim como Gbìn’lè (da palavra irúgbìn), que
significa semente da terra).
Representa o espírito de cura e magia através de todas as vidas
vegetais. O grande mago e feiticeiro da natureza domina os segredos e
propriedades das folhas, ervas e plantas. A energia e a força que movem o
cosmo (àse) reside, em sua parte, nos vegetais. Como se enuncia o famoso
oriki “Kò sí ewé, kò sí òrìsà” (sem folha, não há orixá), os ritos de Èsìn ìbíè
yorùbá não existem sem o poder das plantas, a alma de cada folha de
Òsányin. Sua magia é utilizada para o cuidado de todos os ritos de outros
Irunmole e òrìsá, sem seu poder nada pode ser realizado. Sua importância
é primordial nos ritos de Ifá, sendo que seu conhecimento sagrado é
reservado e secreto. A sua força, poder e vitalidade das suas propriedades
se encontram em diferentes folhas e ervas.
Òsányìn é o grande herbanário, curandeiro, médico. Mas seu poder
é paradoxal: cura, como também pode matar. O conceito de saúde para
os yorùbás é complexo e deve ser conseguido pela harmonia do físico,
psíquico, emocional e sobretudo espiritual. Para a promoção da cura
deve-se recorrer aos poderes fitoterápicos específicos para cada mal. Os
curandeiros se dividem em vários grupos e funções, como os divinadores, os
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fitoterapeutas, como os herbalistas (Onísègùn) que realizam o diagnóstico
preparando ou fornecendo o remédio vegetal em consulta direta com a
divindade Òsányìn. Nesta tradição e cultura, os yorubanos realizaram um
estudo expressivo sobre as qualidades terapêuticas das ervas, levando o
estudioso Robert Farris Thompson a registrar a sua importância:
Ossanha inicia o domínio desse conhecimento taxonômico aprendendo
quais espécies de erva coletar, misturar e amassar para fazer remédios
a fim de tratar um corpo febril ou de acalmar uma mente agitada. Como
elementos de cura, as folhas e as raízes são para Ossanha o que as
dezesseis ikin e a arte divinatória são para o Ifá.(THOMPSON, 2011, p. 55)
As ervas agem sobre os efeitos maléficos dos Ajogun.3 Neutralizando
seus efeitos das doenças e malefícios. O grande sacerdote é conhecido
como “Aquele que tudo vê, com os olhos de Olódùmarè”. Acredita-se que
nenhuma folha pode cair em uma floresta sem a ciência e consentimento
do grande Olódùmarè. A magia de Awo Asè, que representa também a
essência do espírito Ẹla e que teve a divindade primordial e Òsùmàrè como
sistematizadores, agora está sob o poder do praticante da magia.
Sobre a técnica ritualística de colher e preparar os medicamentos, o
nosso professor de itãs e linguística yorùbá, Damilare Falade4 nos informa
que:
[...] Colhe-se as ervas pela manhã, depois que o sol secou o orvalho, mas
antes que o calor do dia chegue. Usar uma faca consagrada afiada para
cortar as ervas. [...] agradece a planta por seu presente e oferece algo em
troca, talvez um pouco de água.
[...] Familiarizar-se com ervas e outras plantas, saber como elas devem ser
e como devem cheirar é um aprendizado fundamental no processo de
um Awo.
Ao se relacionar com a natureza de forma tão íntegra e sustentável, a
cultura yorùbá nos ensina grandes lições sobre como devemos tratar nossos
recursos naturais, além da lógica capitalista e sua violência de exploração
de forma tão destrutiva e extrativista. Òsányìn é uma divindade que todo
o mundo contemporâneo precisa reverenciar por tudo que representa.
Inspiração divina para as batalhas contemporâneas de proteção da
natureza no antropoceno.
3 Ajogun – Àqueles Que Lutam Contra A Humanidade - espíritos malignos que têm como objetivo afetar a vida
das pessoas no Aye. Forças muito negativas, que têm como objetivo causar doenças, acidentes, brigas, discórdias.
4 Anotações de aulas realizadas no curso de Ìtàn, de forma remota, entre março de 2021 e março de 2022 no
Instituto ÈKÓ YORÙBÁ, com o professor Damilare Falade.
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Aviví ou Opá Òsányin
O Avivi é composto por um cajado ou Opá em yorùbá que representa
o triunfo da consciência - Ori (cabeça) sobre as energias das enfermidades
e da destruição. Um bastão de ferro batido encimado por um ou mais
pássaros. A ferramenta possui muitas variações entre a África e sua
diáspora nas Américas e Caribe. O ifé diz que existem cerca de 16 tipos de
cajados, variando a quantidades de pássaros. No Brasil, especificamente
a partir da Bahia, se popularizou uma versão mais simplificada, com um
único pássaro que o estudioso americano assim descreve:
Um eco dessa forma, na Bahia, é despojado e simplificado, e foi feito por um
ferreiro afrobrasileiro, José Adário dos Santos, em seu ateliê na ladeira da
Conceição, acima do porto de Salvador, na primavera de 1968 (imagem 31).
Um único pássaro estilizado em cima seis barras esquadrinhadas de ferro
pontudo, sugerindo, em uma versão, Ossanha acima das encruzilhadas
de Exu e do ferro ou, na outra versão, o pássaro de Ossanha sobre pontas
afiadas do ferro de Ogum ou, ainda em outra versão, o pássaro de Ossanha
nos galhos de uma árvore”. (THOMPSON, 2011, p. 61)
Babalorixá Mauro T’Òsún, em sua análise sobre os significados
simbólicos da ferramenta, nos recorda o mito do pássaro ‘kukuru idé’
(pássaro de ferro), pássaro utilizado pelo orisá Osaniyn, que obedece e
informa o awo das èwè e toda mágica da divindade da floresta.
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REFERÊNCIAS
KAZEEM Ademola Fayemi. Time In Yorùbá Culture. Al: Hikmat. University of
Logos, Akoka, Nigeria, 2016.
SOYINKA, W. The Fourth Stage: Through the Mysteries of Ogun to the
Origin of Yoruba Tragedy. Art, Dailogue, and Outrage. New York: Pantheon,
1988.
THOMPSON, Robert. Farris. Flash of the spirit – Arte e filosofia africana e
afro-americana. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2011.
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MA NJANU
Enredo
Colagem digital
Fortaleza, CE, 2020
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PO_ÉTICA DAS MERMAZÁRIAS
Francisco Rômulo do Nascimento Silva1
RESUMO
Po_ética das Mermazárias é uma relação de cuidado, desprendimento e
do em-comum. São três pontas de uma espiral-encruzilhada do “agora”:
passagens e travessias; opacidade e transparência; salto e invenção.
Neste texto costuro uma escrita-acontecimento da pesquisa que vem
sendo realizada junto às poetas-mediadoras-de-leituras que fazem parte
das bibliotecas de iniciativa popular de Fortaleza (CE), especificamente,
o Movimento Biblioteca Na’zária. Poetas de Lugar Nenhum e de todos os
Lugares. Nessa zona existencial cada pessoa é abertura, raiz que se estende
a outras raízes.
Palavras-chaves: Po_ética das Mermazárias. Mediação-de-Leituras.
Bibliotecas de Iniciativa Popular. Saraus de Periferias. Fronteirizações.
“Que todos vivam o grande conclave que é a Terra.
O grande conselho que é a Terra”.
- “Orí”,
Beatriz Nascimento (1989).
1 Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UECE), pesquisador do Laboratório
de Estudos sobre a Conflitualidade e Violência (COVIO), da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e pesquisador-
colaborador do Laboratório de Arte Contemporânea (LAC), da Universidade Federal do Ceará (UFC) e também pesquisador
do Laboratório de Artes e Micropolíticas Urbanas (LAMUR/UFC). E-mail:
[email protected] 94
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“Para o povo colonizado, o valor mais essencial,
porque mais concreto, é a terra: a terra deve
garantir o pão e, é claro, a dignidade. Mas essa dignidade
não tem nada a ver com a dignidade da ‘pessoa humana’. Dessa
pessoa humana ideal, ele nunca ouviu falar”.
- “Os condenados da Terra”,
Frantz Fanon (2005).
A po_ética2 das mermazárea inventa-se a um-só-tempo como
múltipla e una, desordenada e imprevisível. Por excelência, as mermazárea
é a Terra, é a questão da Terra. É uma condição indistinta e opaca, logo,
diversa entre humanos e mais-que-humanos. É a po_ética do Vivente.
Jamais relativa, passiva e indiferente, ela acontece e se nutre do encontro,
a confluência do tudo e do Todo na radicalidade que é a transmutação,
a invenção reimaginada dos mundos possíveis já existentes. Porque é
impossível sair ileso de um encontro. É, deve-se dizer, atravessar fronteiras,
destruir os mitos [todos eles], caminhar no fio-da-navalha, abraçar o
imprevisível e aceitar o erro. A po_ética das mermazária é uma epifania
ecumênica dos caminhantes que se materializa na festa regada a poesia,
literaturas, abraços de um devir-ilimitado dos saraus de periferias e das
bibliotecas-livres, comunitárias e de iniciativa popular3. Poetas de Lugar
Nenhum e de todos os Lugares. Nessa zona existencial cada pessoa é
abertura, raiz que se estende a outras raízes.
2 Neologismo com as palavras “poetics” e “ethics”, formando “poethics”. Noção utilizada por Denise Ferreira da
Silva em “Corruption Everybody Knows” disponível em <http://www.e-flux.com/program/64755/corruption-every-body-
knows/>., com curadoria de Natasha Ginwala, como parte do programa E-Flux-Su-percommunity da 56a Bienal de Veneza,
realizada em 2015. Acesso em 16 de junho 2021, às 14h52. Uso o underline (_), também conhecido por underscore ou
subtraço, não somente como um símbolo gráfico usado como sinal de separação de palavras - principalmente em
comunicações informáticas onde o espaço não é interpretado como uma informação válida -, mas, pelo contrário,
para evocar uma poética da Relação (GLISSANT, 2011), os rastros-vestígios da memória, a raiz-aberta e subterrânea,
assim como para sublinhar não somente a preciosidade da teoria da diferença, mas confluir na textura da trama que
é a própria Relação; a semelhança de um hiperlink que nos leva não apenas para as mil passagens das possibilidades
Transparentes na Era Computacional, mas sobretudo nos convida a consentir com o “direito à opacidade”: “subsistência
numa singularidade não redutível” (idem, p. 180).
3 Daqui em diante irei usar apenas “bibliotecas de iniciativa popular”. Tratarei brevemente de descrever algumas
zonas de vizinhanças transparentes e opacas entre elas no estado do Ceará, em especial, na cidade de Fortaleza a
partir de contatos com falas e conversações com Talles Azigon e Profa Dra. Claudiana Alencar (UECE). Bibliotecas de
Iniciativa Popular, noção pensada para e com o Encontro de Bibliotecas Comunitárias pela Profa Claudiana Alencar e
poeta e mediador de leituras Talles Azigon, lugar criado por uma pessoa ou um grupo de pessoas, um coletivo ou uma
iniciativa popular, elas, as bibliotecas de iniciativa popular, se distingue de algumas bibliotecas comunitárias pelo fato
de não possuir CNPJ, logo, não está associada a uma instituição, seja ela político-partidária, igreja, ONG, associação
comunitária e etc. As bibliotecas de iniciativa popular nascem do desejo e da dimensão política não exclusivamente
visando apenas o acesso ao objeto livro disponível para a comunidade [ainda que consideremos esse objeto ser muito
caro quando comparado ao custo de vida dessas pessoas], mas principalmente, objetivando a experiência da leitura da
palavra traduzida pela leitura-mundo de cada pessoa e somada pelo emaranhamento de encontros que esses espaços
possibilitam. Ou seja, talvez a principal diferença entre elas e as bibliotecas comunitárias seja o fato de não atender
exclusivamente critérios institucionais para demandas de financiadores, seja público ou privado.
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Enquanto a lógica da filiação opera violentamente na exclusão absoluta
do “Outro”, na tentativa de legitimação enraizadora e conquistadora, a
extensão, por sua vez, “tece-se” na relação imaginando outra poética da
existência. Um elogio à circularidade, à transversalidade e ao inesgotável
emaranhamento dos afetos, ou seja, distribuir-se no espaço aberto e
indefinido (GLISSANT, 2011). Mais que ato de sobrevivência, a vida habita
e prolonga-se no movimento circular, na travessia tática e nas espirais-
encruzilhadas.
A poética da extensão é para as poetas-mediadoras-de-leituras uma
po_ética das mermazárea, em outras palavras, “uma relação de cuidado
mútuo, solidariedade e desprendimento” (NASCIMENTO SILVA, 2019, p. 174),
trata-se de reimaginar modos de relação espiralar de cuidado mútuo
com tudo e com o Todo vivente a partir da redistribuição da palavra, da
memória e da escuta.
dar caminho
uma árvore sozinha
enfeitando os desertos
quadrados e sem-raízes.
seguro caneta na boca
como quem segura-se no cachimbo.
Sou [da] fumaça.
cruzo os punhos nas costas e ando.
Caminhante, não boêmio.
Tô chegando e já vou saindo.
o doce cheiro do limão corresponde ao sabor
das breves manhãs e das tardes
que nunca têm fim.
agarrado às bordas dos muros da irracionalidade,
a rua habita em mim.
Sou [da] rua.
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sendo-encruzilhada
observo, aprendo.
Masco teus silêncios e cuspo tuas palavras.
não-durmo
finjo que cochilo.
um banco pequeno de madeira
e uma janela do imprevisível
dali ouço teu canto
e fumo tuas lágrimas.
Porque minha palavra é uma navalha de cura,
e meus ouvidos oceanos de novos caminhos.
anoiteceu.
ainda bem,
ainda bem.
A po_ética da extensão transpõe fronteiras da morte [que é o
colonialismo] para se fazer existentes do “lado de lá” da vida, da alteridade
em deslocamento [a poeta é uma errante no caminho]. Isto é, por meio da
invenção de zonas de existências4, lugares marcados pelo encontro como
os que acontecem nos saraus das periferias e bibliotecas de iniciativa
popular da cidade de Fortaleza e outras cidades dos interiores do Ceará;
práticas por si só de subversão das assimetrias do poder que são as relações
coloniais de dominação inscritas nos corpos marcados e criminalizados
(FANON, 2005). O imprevisível que floresce a todo-instante em zonas áridas
e vigiadas por todos-os-lados: a poesia nos saraus, nos cambão e nas
4 A questão da Terra, no Mundo Moderno, não somente se ver confrontada com a lógica da raça e suas infinitas
dobras, mas nela se reedita enquanto máquina-brutalista e se alimenta como invenção-destruidora de tudo que é vivo
e vivente. Enquanto nomos da Terra, atualiza-se o problema da distribuição da terra (questão quid juris? Como distribuir
a terra ou o solo e a quem pertence a terra?) A um-só-tempo, a possibilidade da Declosão-do-Mundo, para citar Jean-
Luc Nancy (2016, p. 293), trata-se da “desmontagem e desajuntamento dos encerramentos, das cercas, das clausuras.
Desconstrução da propriedade - a do homem e a do mundo”. Em seu mais recente trabalho, Achille Mbembe (2020),
afirma que a grande questão do século XXI, juntamente com as mudanças climáticas, é a governança da mobilidade
das pessoas em escala global, somadas ao capitalismo-absoluto, a intensificação da velocidade da vida cotidiana por
meio do que ele chama de “era computacional” ou “era do Brutalismo” estão levando a aceleração e densificação das
conexões cada vez mais complexas. Segundo o autor, essas infinitas conexões criam redes e trocas de todos os tipos
inimagináveis.
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bibliotecas de iniciativa popular como mediação-de-leituras não apenas
da palavra, mas da leitura de Todo-o-Mundo são sementes lançadas
“onde um autêntico ressurgimento pode acontecer” (FANON, 2008, p. 26).
Trabalhando com as noções de “rastros-vestígios”, “extensão, filiação”
de Édouard Glissant (2005, 2011, 2014), a radicalidade da performance preta
fugitiva (HARNEY & MOTEN, 2013; FANON, 2005), os conceitos de “quilombo”
como “continuum” e mermazária em um pensamento atmosférico da
liberdade, do em-comum e da imaginação (BEATRIZ NASCIMENTO, 2018 e
2021; NASCIMENTO SILVA, 2019), este texto encruzilha, por meio de uma escrita-
acontecimento, as artes com os fazeres de um devir-poeta-mediadora-
de-leituras no meio de uma sociologia que se faz canto e vôo nas grafias
de um território movente de criação de um ‘em-comum’.
BIBLIOTECA NA’ZÁRIA: aquilombamento-criador
“Estar-junto” é compactuar da mesma ideia. Não estamos
em todos os lugares, mas estamos lutando por uma
causa só. “Estar-junto” por uma causa única: pela vida,
arte e transformação. Imagino, por exemplo, que sarau
não tem lugar, o que importa é o encontro.
- Elane Fidelis, no II Encontro de Saraus do Ceará - Diário
de Campo em 28 de julho de 2018.
O massa porque a gente consegue de certo ponto
acabar com a segregação com esse tipo de arte, tá
ligado? Porque tem canto que é facção tal, é facção
tal que “ah, não pode vir pra cá porque aqui é isso e aí
no teu é isso, tá ligado?” E aí, quando a gente já através
da arte que a gente já faz o sarau e a gente já chega
pra dialogar com a criminalidade, a criminalidade já
começa a pegar uma visão de tipo de entender que o
cara que ele mora em outra favela, por mais que seja
diferente, ele também é favela, tá ligado?! E é onde vem
a expressão “mermazária”. O favelado, tá ligado?! A gente
tem que entender, mã, que a gente é tudo “mermazária”.
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Que a favela, não importa onde ela seja, ela vai ser só um
lugar diferente de pessoas diferentes. Mas as condições
e as vivências, as experiências, sofrimentos vão ser os
mesmos, tá ligado?!
- Victor Oliveira, artista de rua e poeta de busão, entrevista
em 09 de outubro de 2018
Na capital cearense existe o que denomino Rede de Afetos
(NASCIMENTO SILVA, 2019). Trata-se de uma poética da Relação que habita
encruzilhadas e zonas existenciais, um emaranhado de práticas de re-
existências poéticas5 em constante movimento, sem começo e fim, tecida
entre “becos” e asfaltos pelas inventividades das poetas nos encontros-
saraus e por meio da poesia no “busão”6. Uma quebrada se reconhece
em outras, é tudo mermazária: “por mais que seja diferente, ele também é
favela”.
As principais titulares, em sua maioria, são jovens entre 15 e 29 anos,
moradoras e moradores de periferias e favelas de Fortaleza (CE) e região
metropolitana, algumas também integrantes de inúmeros coletivos e
coletividades, projetos e iniciativas diversas: saraus, bailes de reggae,
batalhas de MCs, slams, projetos musicais, de dança, teatro, residências
artísticas e rolezinhos que resistem e re-existem nos dias de destruição.
Rede de Afetos são práticas de resistência e de re-existência que
objetivam reimaginar coletivamente outras formas de vida. Para além
dos encontros-saraus de periferias e da poesia no “busão”, a Rede de
Afetos estende-se na ação poética e política de moradores e moradoras
de comunidades localizadas em periferias e favelas, assim como das e
dos poetas-mediadores-de-leitura7 que reinventam projetos de incentivo
e fomento à leitura por meio da organização e construção coletiva de
bibliotecas livres, comunitárias e de iniciativa popular, recebimento de
doações de livros e atividades de “leituramundo” e de “Todo-o-Mundo”
5 Para “re-existências”, conf.: NASCIMENTO SILVA, 2019; MACIEL, ALENCAR e SOUSA, 2018; SOUZA, 2009.
6 Expressão local para ônibus ou transporte coletivo. Para saber mais sobre a poesia de cambão conferir SILVA &
FREITAS. Práticas de re-existências poéticas: a poesia no “busão” em Fortaleza (CE). INTERSEÇÕES [Rio de Janeiro] v. 22 n. 1, p.
97-123, mai. 2020. Disponível em <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intersecoes/article/view/51166> Acesso em
15 de abril de 2022, às 00h11min. Para acompanhar as publicações diárias de alguns poetas de cambão nas redes sociais
acessar no Instagram “Rimadores de Busão” (@rimadoresdebusao) e “Poesia Viva” de Chris Rodrigues (@_poesiaviva).
7 A extensão sarau-de-periferia-biblioteca-comunitária-e-livre e o seu inverso é uma das poéticas da relação, da
circularidade, da travessia e da re-existência inventiva no cotidiano não somente na cidade de Fortaleza, mas em outros
municípios localizados no Estado do Ceará, como por exemplo, Maracanaú, Caucaia, Maranguape e Sobral.
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(FREIRE, 2006; FREIRE & MACEDO, 2021; GLISSANT, 2014) prioritariamente com e
para crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos moradores de favelas
e periferias da capital cearense.
A semelhança dos encontros-saraus, as bibliotecas de iniciativa
popular são organismos vivos que existem mais por meio da poética da
extensão e menos por meio da imposição enraizadora da filiação. A poética
da extensão, neste sentido, é a poética do Diverso, do compartilhamento,
da circularidade e da travessia (GLISSANT, 2005; 2011; GILROY, 2012). Ela tece-
se numa outra poética do inesgotável, da transversalidade, da “quantidade
que não se realiza”, conforme Glissant (2011, p. 63). A poética da extensão é
para as poetas-mediadoras-de-leituras uma po_ética das mermazárea,
mais que uma tática de sobrevivência, trata-se de reimaginar modos
de relação espiralar de cuidado mútuo com tudo e com o Todo vivente
[humanos e mais-que-humanos].
Os encontros-saraus possuem outras temporalidades que inventam
espaços, embora possuam certa periodicidade e espacialidade, quando
comparado ao caráter fixo, porém inventivo, das casas-bibliotecas de
iniciativa popular. Saraus de periferias acontecem nas bibliotecas de
iniciativa popular e essas bibliotecas habitam os encontros-saraus, uma
raiz estende-se a outras infinitamente. Ao mesmo tempo que ambos são
lugares da palavra aberta, da memória da carne e do tato no encontro,
ambas afastam-se do pensamento do Uno, isto é, da imposição enraizadora
e conquistadora da filiação, o sistema da “generalização de fundamento
ontológico” que é, portanto, a exclusão absoluta do Outro. A poética da
extensão, conforme Glissant (2011, p. 63), portanto, “não é apenas espaço,
é também o seu próprio tempo sonhado”, ou seja, é o que nos falta no
mundo.
Em outras palavras, podemos identificar as bibliotecas de iniciativa
popular como patrimônios material e imaterial que circulam, isto é, espaços
de compartilhamentos não somente de livros, mas da palavra, da memória
e do encontro [a experiência conta mais que o acervo]. As bibliotecas de
iniciativa popular doam e redistribuem livros em lugares e para existências
em que a presença física do livro é rara. Por receberem diferentes doações
voluntárias de livros, brinquedos, materiais de escritório e higiene pessoal
e etc., concorrem e, por vezes, aprovam pequenos projetos em editais
públicos. À semelhança dos saraus de periferias e da poesia-no-cambão,
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as bibliotecas de iniciativa popular são organismos vivos que existem mais
por meio da partilha e da relação de cuidado a favor da vida.
Durante o isolamento social (2020 e 2021), ainda que de forma remota
e mais recentemente semipresencial e presencial, algumas bibliotecas
nos últimos dois anos foram obrigadas a fechar as portas e outras a se
reinventar conforme cada realidade, respeitando os decretos locais e
protocolos recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em
combate à pandemia da COVID-198.
As poetas-mediadoras-de-leituras, diante das inumeráveis
arquiteturas de isolamentos [lógicas do recinto-fechado] que se reeditam
no trânsito perpétuo entre o desejo de explorar e a tentação de eliminar
preferencialmente corpos-pretos e favelados, durante o isolamento
social enfrentaram inúmeras dificuldades. Além dos diferentes relatos de
desemprego, escassez de comida e múltiplos adoecimentos, durante o
isolamento social rígido [lockdown], alguns saraus de periferias passaram
a acontecer ao vivo pelo Instagram, assim como algumas bibliotecas de
iniciativa popular passaram a realizar mediações-de-leituras por meio das
redes sociais da internet.
Nos últimos meses, resultado de lutas e organização popular,
inicialmente o Movimento Biblioteca Urgente9 se articulou como rede
integrando aproximadamente doze bibliotecas de iniciativa popular
de Fortaleza inicialmente com o objetivo de lutar pela inclusão de
fomentos para bibliotecas de iniciativa popular no Plano Plurianual (PPA)
de Fortaleza10. Resultado da abertura para o diálogo com instituições e
diferentes representantes do poder público, o Movimento Biblioteca Urgente
não é filiado a nenhuma bandeira político-partidária, pelo contrário, as
bibliotecas de iniciativa popular têm como princípios da autogestão e
da autonomia junto às comunidades onde estão plantadas. Suas raízes
são práticas que se estendem para além das fronteiras de onde estão
situadas geograficamente. Expressões não apenas das necessidades
básicas como alimentação e incentivo em arte e cultura, as bibliotecas de
iniciativa popular expressam os modos de vida particulares e em-comum
8 Sobre os limites e desafios da Lei Aldir Blanc (LAB), política de emergência à cultura no contexto pandêmico,
conferir SEMENSATO, C. A. G & BARBALHO, A. “A Lei Aldir Blanc como política de emergência à cultura e como estímulo ao
SNC”. POLÍTICAS CULTURAIS EM REVISTA, v. 14, p. 85-108, 2021. Disponível em <https://periodicos.ufba.br/index.php/pculturais/
article/view/42565> Acesso em 19 de maio de 2022, às 13h38min.
9 Para apoiar e saber mais como tem sido a luta do Movimento Biblioteca Urgente, siga o perfil @bibliotecanazaria,
no Instagram.
10 Instrumento estabelecido pela Constituição Federal de 1988, o PPA é o planejamento que determina, de forma
regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública estadual para as despesas de Capital e para
relativas aos programas de duração continuada.
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às margens e nas brechas dos complexos de equipamentos culturais e
turísticos da cidade de Fortaleza (CE).
O Movimento Biblioteca-Urgente estende-se a toda Cidade, seja por
meio das programações abertas e gratuitas, seja pelo apoio e participação
não apenas das poetas-mediadoras-de-leituras, mas também de
intelectuais, artistas, produtores e escritoras, lideranças comunitárias que
direta ou indiretamente unem-se na luta pela continuidade e fortalecimento
das práticas de incentivo e fomento à arte, cultura e leitura por meio da
organização, construção coletiva de bibliotecas de iniciativa popular,
recebimento de doações diversas, além da livre circulação de livros e
promoção de atividades que envolvem clubes de leituras, esportes, artes
e entretenimento prioritariamente voltadas para crianças, adolescentes,
jovens, adultos e idosos das comunidades.
Meses antes do fechamento do orçamento plurianual de Fortaleza,
parte das/os poetas-mediadores-de-leituras, juntamente com outros
integrantes na luta do movimento, mantiveram diálogos com vereadores
das diferentes ideologias e siglas partidárias na intenção de que os
parlamentares apoiassem na câmara a inclusão das demandas das doze
bibliotecas de iniciativa popular no orçamento, entretanto, não houve êxito.
Em reunião, sem a presença de representantes do movimento
Biblioteca Urgente, decidiram não aprovar a inclusão para o PPA11 sob
justificativa, dentre outras coisas, da inexistência de uma instituição que
pudesse executar o recurso [embora o movimento já tivesse sinalizado a
existência da instituição parceira, no caso, a Organização Social O Pequeno
Nazareno12], posteriormente, aprovaram emenda parlamentar coletiva no
valor de 750 mil reais por meio da Lei Orçamentária Anual (LOA)13 a ser
executada pela Secretaria de Cultura de Fortaleza (SECULTFOR). No entanto,
embora aprovada e dependendo apenas do repasse do recurso, até o
presente momento [desde março deste ano], o movimento não obteve
11 Segundo Portal da Transparência de Fortaleza (https://transparencia.fortaleza.ce.gov.br/), com o valor gasto
com PMPU (Torres de Vigilância Comunitária) em 2019 que foi de R$ 10,3 milhões. Com esse valor seria possível implantar
171 Bibliotecas de Iniciativa Popular, ou seja, quatro por território (bairro/comunidade) de Fortaleza ou seria possível
manter as 12 bibliotecas por 14 anos. Com o valor gasto com PMPU em 2020 (R$ 4,9 milhões), seria possível implantar,
aproximadamente, 82 Bibliotecas de Iniciativa Popular, ou seja, duas por território ou seria possível manter as 12 bibliotecas
por sete anos. Já o valor gasto em um mês para compra de 100 pistolas para a Guarda Municipal foi de R$ 588.087,00
enquanto o custo anual por biblioteca seria de R$ 60.000,00.
12 O Pequeno Nazareno possui uma plataforma multidisciplinar de atendimento nas áreas de Educação
(Educação Social de Rua, Educação Profissionalizante), Assistência Social (Acolhimento Institucional e Apoio Psicossocial
às Famílias) e Direitos Humanos (Sensibilização e mobilização social). Para apoiar e conhecer mais, acessar <https://www.
opequenonazareno.org.br/> Acesso em 20 de maio de 2022, às 09h33min.
13 Disponível em <https://transparencia.fortaleza.ce.gov.br/index.php/orcamento/loa> Acesso em 20 de abril de
2022, às 09h53min.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
nenhuma resposta do atual Secretário de Cultura do Município, Elpídio
Nogueira Moreira (PDT)14.
Biblioteca Naz’área se estende nas e pelas singularidades infinitas e
em-comum das seguintes Bibliotecas de Iniciativa Popular: Adianto - Barra
do Ceará; Casa Futuro - Coaçu; Cia Bate Palmas - Conjunto Palmeiras;
Coisa de Preto - José Walter; Filó - Santa Filomena; Livro Livre Curió - Curió;
Okupação - Antônio Bezerra; Papoco de Idéias - Pici; Periferia que Lê - Bom
Jardim; Quintal Cultural - Bom Jardim; Viva Barroso - Barroso e Viva a
Palavra - Serrinha.
Um dos objetivos principais das bibliotecas de iniciativa popular
é inventar não somente uma relação com os livros e leitores (inclusive,
frequentadores do espaço) não mediada pela vigilância dos cadastros,
da catalogação, dos prazos de renovação e devolução; assim como não
somente sobre a quantidade de livros que podem circular por vez, mas
mais que um espaço físico, trata-se da mediação-de-leitura da Palavra-
de-Todo-o-Mundo (FREIRE, 2006; GLISSANT, 2014). As infinitas práticas de
mediação-de-leituras aqui experimentadas objetivam inventar relações
com e a partir das comunidades em que estão situadas e, por sua vez,
com toda a Cidade, de modo à reimaginar por meio das poéticas que
as constituem, outras formas ou modos de fazer política com e a partir
de onde estão fincados os pés, mãos e rostos das entidades-hifenizadas
desse acontecimento, as poetas-mediadoras-de-leituras: mulheres cis
e trans em sua maioria pretas [negras e pardas] e/ou descendentes de
populações indígenas15.
Dentre as inumeráveis linhas que compõem esse emaranhado
afetivo e comunitário, como por exemplo, rodas de conversa, capoeira,
jogos digitais, serviço de manicure, oficinas de música, curso de desenho,
oficinas de fanzines, intervenções urbanas, dentre outras, algumas
bibliotecas e saraus de periferias, por exemplo, possuem estantes, caixas e
até geladeiras-estantes totalmente abertas com livros para circulação. São
práticas não de “abandono” ou “restos”, mas de fomento da livre circulação
de livros novos e usados em condições de uso mediada pela po_ética do
14 Secretário de Cultura de Fortaleza, Elpídio Nogueira Moreira é natural de Acopiara, Região Centro-sul do estado
do Ceará. Contou com base eleitoral em algumas igrejas evangélicas dentre outras coisas, foi diretor do Hospital
Gonzaguinha da Barra do Ceará. É irmão de José Sarto Nogueira Moreira, atual Prefeito do Município de Fortaleza, eleito
em 2020.
15 No Estado do Ceará são 14 os povos indígenas, espalhados por 18 municípios, que fortalecem esse legado de
resistência. Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tabajara,Tapuia-
Kariri, Tremembé, Tubiba-Tapuia e Tupinambá. Em 2018, surgiu um povo chamado Jaguaribara, apelidado de “Karão”, por
conta do cacique deles. Eles estão ali perto dos Kanindé, maciço de Baturité.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Aberto, da Palavra e do Comum. Não obstante, a própria biblioteca-livre
circula em uma bike, é o caso da experiência em mediação-de-leituras
que acontece na cidade de Sobral com a poeta-mediadora-de-leituras
Fran Nascimento:
[...] para além dos livros, a biblioteca-ambulante tem uma parte com
mediação-de-leituras aí, tal hora, quem não tá afim de ler ou de pegar nos
livros, tem uma parte lá que a gente bota também pra galera que quer
desenhar, e tal hora, usamos instrumentos musicais [...] e tal hora a gente
leva uma experiência científica também [...] então, a experiência com a
biblioteca-ambulante ela parte de um campo literário também, que aí eu
não consigo te precisar exatamente quais são os livros que a gente tem
lá um a um, mas ela parte também para um campo sensorial também.
Então, eu acho que é isso, acho que a minha experiência que eu tenho
com a biblioteca-ambulante parte disso também. Eu acho que além da
experiência da leitura em si, que a gente busca incentivar com a biblioteca
[...] a biblioteca-ambulante tem esse foco, acho que reavivou agora em
2021, que é o lance da gente [...] criar esses pontos de leitura, assim como
a gente já criou alguns aqui na cidade, né, em bairros distintos. O lance
é esse assim, desse incentivo à leitura. A biblioteca-ambulante é uma
extensão da única biblioteca comunitária da Cidade e ela surge desse
contato com o chão, lendo os livros, quem quiser criar cria seus desenhos,
toca seus instrumentos. Ela surge para romper com esse lugar estático,
romper essas paredes, ela está em todo canto. (PODCAST BIBLIOTECAS-
CAROLINAS, “Fran Nascimento e nina rizzi”. Primeira Temporada, 2ª edição,
2021)16
Por serem lugares de partilha não somente de livros, mas sim da
palavra-praticada, escrita, lida ou relatada, mediada principalmente pela
experiência particular de determinados territórios que têm o em-comum
como prática e invenção cotidiana, esses espaços são construídos
com tijolos e argamassa em comunidade, práticas fruto das formas
de existências que diferem das lógicas do verticalismo autoritário e da
fragilidade das políticas públicas no campo da arte, cultura, assim como
das políticas do livro e da leitura no Brasil.
A po_ética das mermazária é, nesse sentido, um acontecimento que
possibilita ler mais que um livro ou uma imagem, ela nos convida a escrever
com nossas próprias mãos, pés e rosto a nossa história re-imaginando
possíveis por meio da luta cotidiana e coletiva. A semelhança, e como uma
espécie de extensão dos saraus de periferias, as bibliotecas de iniciativa
popular possuem certa espontaneidade, criam ordenações múltiplas
e relações possíveis entre os participantes e a própria comunidade.
16 A série de podcasts Bibliotecas-Carolinas seguidas de cartas-diários e oficinas de zines-coletivas são mediações-
de-leituras com e das poetas-mediadoras-de-leituras da cidade de Fortaleza e outras cidades dos interiores do Ceará.
O episódio completo pode ser acessado no seguinte endereço no spotify : <https://open.spotify.com/episode/0IAMdOAtzx
cBOSeg5Cm8nL?si=FK6DXTJ1RmWqj6QZacD-Qg&utm_source=&nd=> Acesso em 21 de maio de 2022, às 21h47min.
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Reivindicam uma existência respirável contrária a toda lógica que nos
asfixia há séculos.
Não apenas como mediação-de-leituras da expressão oral e escrita
- a literatura -, defendo que a po_ética das mermazária são três pontas de
uma espiral-encruzilhada do “agora”: passagens e travessias; opacidade e
transparência; salto e invenção. O princípio comum às três pontas consiste
em “erguer uma ponte”, inventar estruturas de escuta não como um em-si
ou clausura sobre si mesmo, mas como um favorecimento à extensão em
detrimento da compreensão/profundidade; uma Relação à Escuta17.
Em outras palavras, esta produção e mediação poética e literária
acontecem sob e à revelia da violência-total do Mundo-Branco. Constituído
por suas infinitas clausuras, erguem-se por todos os lados torres de vigilância,
multiplicam-se as insígnias inscritas nos muros da mente e da carne da
Cidade; o Mundo-Branco é um emaranhado de forças que consagram,
celebram e legitimam os conclaves, as hierarquias, as identidades-
fechadas. Em outras palavras, trata-se do mundo-transparente e ordenado
pelos pilares ontoepistemológicos que sustentam as matrizes desse mundo
que nos foi dado a conhecer, conforme Denise Ferreira da Silva (2019)18.
Esta forma de vida que decodifica, seleciona e hierarquiza existências
como racializadas, marginalizadas sócio-economicamente, dissidentes
de gênero e sexualidade, feridas e mortas é não somente denunciada e
subvertida pelas poetas-mediadoras-de-leituras por meio da escrita e
da oralidade perfomatizadas. A partir das diferentes formas de travessias,
habitação e invenção de zonas existenciais imageadas nos saraus-
de-periferias e nas bibliotecas de iniciativa popular, essas identidades-
abertas e perecíveis, ora transmutam-se ora fixam-se, reinventando-se e
reinventando os diferentes espaços na cidade de Fortaleza (CE).
Aquilombamento-criador, conforme Glissant (2011, p. 74), tem como
base o pensamento do “rastro-vestígio”, ele também é resultado dos
aquilombamentos-históricos ou de um “continuum” de acordo com Beatriz
Nascimento (2018): múltiplas práticas poéticas que começaram a fundar
um continuum19. Semelhantemente, a poética de Conceição Evaristo (2017,
17 Participei de uma breve entrevista para o jornal O POVO abordando essa noção. “‘Estruturas de escuta são
invenções cotidianas de insubmissão’, defende Rômulo Silva”. Disponível em <https://mais.opovo.com.br/jornal/pau-
se/2021/05/30/estruturas-de-escuta-sao-invencoes-cotidianas-de-insubmissao---defende-romulo-silva.html> Acesso
em 21 de abril de 2022, às 22h20min.
18 Para “Mundo Ordenado” pelos pilares ontoepistemológicos e Mundo Implicado, conf.: Denise Ferreira da Silva
(2019).
19 “[...] A nós não nos cabe valorizar a história. A nós cabe ver o continuum dessa história. Porque Zumbi queria fazer
a nação brasileira, já com índios e negros integrados dentro dele. Ele queria empreender um projeto nacional de uma
forma traumática. Mas não tão traumática quanto os ocidentais fizeram, destruindo culturas, destruindo a história dos
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
p. 24-25) nos convida a pensar com e a partir das poetas-mediadoras-de-
leituras esse continuum, esse “rastro-vestígio” das “Vozes-Mulheres”:
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
povos dominados!” (BEATRIZ NASCIMENTO, 2018, p. 337)
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A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
A po_ética das mermazárias como palavra-praticada, incorporada,
imageada e transmutada em canto ecoa à margem do Estado e suas
instituições, arquiteturas moderno-colonial-patriarcal-capitalistas, para
além das fortificações que amarram a política e a crítica na arquitetura
colonial do tempo presente, tempo linear e de repetição da engrenagem
necropolítica das ficções de poder que cerceiam as vozes da periferia.
ÁRVORES DE CONCRETO E AÇO: entre a assimilação e a aniquilação
No mesmo ano, isto é, em 2020, conforme previsto, tivemos eleições
para prefeitura de Fortaleza e em outras cidades do Brasil. Apoiado pelo
ex-governador Camilo Santana (PT) e outras filiações, Sarto Nogueira (PDT)
foi eleito prefeito de Fortaleza para os próximos quatro anos. Em segundo
turno, obteve 51,69% dos votos válidos e derrotou o candidato apoiado pelo
presidente Jair Bolsonaro (PL) em Fortaleza, Capitão Wagner, que teve 48,31%
dos votos válidos. Importante observar o desempenho de cada candidato
e a diferença entre eles. Mas não somente.
Para o primeiro mandato, Sarto e seu vice, Élcio Batista (PSB), dentre
outras coisas, prometeram ampliar e dar continuidade à implantação de
novas Torres de Segurança da Guarda Municipal20. A instalação de Células
de Observação Comunitária e o patrulhamento ostensivo do Grupo de
Operações Especiais (GOE), somados ao apoio da Polícia Militar do Ceará,
integram o Plano Municipal de Proteção Urbana (PMPU) nas diferentes
periferias e favelas de Fortaleza, capital do estado do Ceará.
Idealizado pelo ex vice-prefeito Moroni Bing Torgan (DEM), o PMPU foi
lançado com a instalação da primeira torre no início do segundo semestre
20 Na série fotopoética “A Cidade e a Lama”, o fotógrafo e escritor Leo Silva imageou, dentre outras coisas da Cida-
de, uma das Torres de Vigilância Comunitária (PMPU). Série disponível em <https://www.behance.net/gallery/118137941/A-
-Cidade-e-a-Lama-Srie-Fotografica-em-processo> Acesso em 02 de abril de 2022, às 11h50min.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
de 2017, no bairro Conjunto São Cristóvão (Grande Jangurussu), na calçada
do Cuca Jangurussu – um dos equipamentos de arte, cultura e esporte
para as juventudes21. Por sua vez, o atual vice-prefeito eleito, sociólogo (UFC)
e ex-chefe de gabinete do ex-governador, Élcio Batista, antes de ocupar
o alto escalão do Executivo Estadual e Municipal, foi secretário-executivo
de Segurança Pública e assessor de planejamento do Instituto de Arte e
Cultura do Ceará (IACC). Inclusive, no primeiro mandato do prefeito Roberto
Cláudio (PDT), ocupou o cargo de secretário da Juventude de Fortaleza.
À época, às vésperas da inauguração da primeira Torre de Vigilância
em 2017, a Defensoria Pública do Estado (DPCE) foi mobilizada após
articulação de coletivos de juventudes do Grande Jangurussu, publicações
da grande mídia e compartilhamentos de nota pública nas redes sociais
denunciando as recorrentes violações da Guarda Municipal (inclusive, as
equipes que faziam a guarda patrimonial da própria Rede Cuca), por policiais
militares, dos direitos de civis na região e questionando a legitimidade do
PMPU, mobilizou a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE).
Conforme SILVA & FREITAS (2018), no dia 28 de dezembro de 2017,
a Defensoria protocolou ofício solicitando à Prefeitura de Fortaleza
esclarecimentos sobre o possível treinamento feito pela Polícia Federal dos
homens da Guarda Municipal de Fortaleza com o objetivo de uso de arma
de fogo de alta precisão. Essa atividade, em particular, seria desenvolvida
nas periferias nas denominadas “torres de vigilância.” Curiosamente, a
primeira Torre de Segurança foi instalada na esquina da avenida Álef de
Souza Cavalcante, nomeada em 2016 após abaixo-assinado de moradores
no entorno do Cuca Jangurussu e organizado por coletivos de resistências
juvenis. O rebatismo da rua homenageia uma das vítimas da Chacina
da Messejana, protagonizada por Policiais Militares sob a gestão do ex-
governador Camilo Santana, que aconteceu na madrugada de 12 de
novembro de 2015 e deixou 11 mortos (quase todos jovens entre 15 e 29
anos) e, pelo menos, sete pessoas sequeladas.
Sobreviventes em territórios sob um estado de exceção permanente,
as poetas-mediadoras-de-leituras inventam rotas de fuga-criadora e
escapam da “câmera sofisticada do ‘pan-óptico’” (MAFFESOLI, 2001, p. 25)
21 Existem atualmente cinco CUCAs em Fortaleza. Eles formam a Rede Cuca: um na Barra do Ceará, inaugurado em
2009, um no Mondubim e um no Jangurussu, ambos inaugurados em 2014; e outros dois inaugurados em 2020 e 2022, José
Walter e Pici, respectivamente. Ambos são administrados pelo Instituto Cuca e mantidos pela Prefeitura de Fortaleza. Eles
foram construídos em locais estratégicos, territórios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e elevado índice
de homicídios entre indivíduos de 13 e 29 anos. Os Cucas são resultado das demandas das expressões dos movimentos
juvenis e sociais que conseguiram construir e implementar ações de fortalecimento desta política pública na agenda
governamental ainda na gestão da ex-prefeita Luizianne Lins (PT), por meio do Orçamento Participativo (OP).
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
que pode ser aqui representada pelas dezenas de Torres de Vigilância
Comunitárias e ocupações militares distribuídas pela Cidade. A semelhança
de árvores de concreto e aço, elas foram plantadas inicialmente em
territórios precários [zonas do “não-ser”, conforme Fanon, 2008] e se
alastrou pelos cinturões turísticos com nova estrutura, mas mantendo a
mesma lógica militar: comandadas não apenas por nômades-fardados
da Guarda Municipal de Fortaleza em parceria com a Polícia Militar do
Ceará, mas por toda-sorte de câmeras espalhadas no perímetro de cada
uma das dezenas de Torres implantadas, por meio do uso tático de drones.
Ambas estruturas governadas por uma espécie de força que separa, uma
política da inimizade que transita entre o desejo de explorar e a tentação
de eliminar o ‘Outro’, em suma: a militarização não apenas da polícia e da
política, mas de toda a arquitetura das relações sociais do mundo que nos
foi dado a conhecer22.
Não obstante, é necessário lembrar que o controle político no Mundo
Moderno-Colonial acontece por meio de elementos de múltiplas ordens
que tentamos dar alguma forma, seja pela força ou por meio do exercício de
torcer e remodelar. É nesse sentido, conforme Achille Mbembe (2020), que a
Política pode ser vista como uma prática instrumentalizada, um trabalho de
montagem, organização, modelagem e redistribuição, incluindo espacial,
de conjuntos corporais vivos. Entretanto, e cada vez mais, parece que tudo
é regido pela lei da espada. Os pilares fundamentais do humanismo, do
“direito de gente”, parecem ruir e entramos efetivamente naquilo que o
autor chama de era do Brutalismo.
A era do Brutalismo ou era computacional (MBEMBE, 2020) se
caracteriza pela imbricação de diferentes figuras da razão: a econômica
e instrumental; a eletrônica e digital; e a razão neurológica e biológica. O
autor está convencido de que não há mais distinção entre os viventes e
as máquinas ou, em suas palavras, existe uma “ligação cada vez mais
estreita do humano à máquina” (MBEMBE, 2017, p. 29). Essa imbricação e,
por último, essa indistinção permitem caracterizar a era computacional
como um fenômeno de ordem global, não circunstancial e nem circunscrita
localmente. Não obstante, o gesto mais radical é aquele que, operando
sobre a indistinção entre os viventes e as máquinas, permite delimitar esse
22 Existem atualmente dez torres funcionando na Cidade. Para saber como surgiram as Torres, conferir SILVA,
Francisco Rômulo do Nascimento & FREITAS, Geovani Jacó de. Práticas Poéticas: juventude, violência e insegurança
em Fortaleza. Tensões Mundiais, Fortaleza, v. 14, n. 26, P. 129-155, 2018. Disponível em <https://revistas.uece.br/index.php/
tensoesmundiais/article/download/887/775/3299> . Acesso em 07 de junho de 2020, às 19h09min.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
tempo como uma prática de transformação e de gerência, portanto de
cálculo de tudo e do todo (vivo e não vivo) por meio dos algoritmos, como
sendo obsoleto, residual ou despejado. Para o filósofo, uma das questões
centrais de nosso tempo é: a civilização dará lugar a possíveis formas de
vida política?
A especificidade do presente tempo histórico, político, econômico
e estrutural continua privilegiando relações de inimizade assentadas
em lógicas de guerra. Principalmente uma guerra do “todos-contra-
todos”. Os espíritos belicosos, intrigas, rivalidades, desconfiança, ciúmes,
os movimentos de ódio e hostilidade que se alastram nas redes sociais
(principalmente as da Internet, mas não só), assim como as armadilhas
que as alianças trazem consigo, das quais ninguém está isento. A luta
contra um “inimigo” pré-fabricado, encastelamento narcisista, instalação
de cercas elétricas e câmeras de vídeos traduzem a construção social
do medo sob a máscara de democracias liberais que possuem como fio
condutor, conforme Achille Mbembe (2017), “viver a ferros” como norma.
Trata-se de demarcações a ferro e fogo por meio de fronteiras
simbólicas e geográficas a partir da ideia de “inimigo”23 [o corpo-poeta,
o corpo-não-artiste e antipoeta são a própria fronteira]. Fronteira móvel,
caminhante, itinerante e opaca, não mais codificada por linhas fixas, mas
corpo em movimento perpétuo ainda que parado [indomável]. Trata-se aqui
de entender a poeta-mediadora-de-leituras não como a representante-
fugitiva, pelo contrário, chamo atenção para sua fugitividade irrepresentável
que agarra-se nas bordas dos muros da irracionalidade [para recuperar
Harney & Moten, 2013 e Fanon, 2021]. Mais que fronteiras, refiro-me a esse
corpo como fronteirização.
O crime organizado e suas “facções”, com as respectivas insígnias
identitárias filiativas expressas nos muros, entre becos-infinitos espalhados
pelo Brasil (PCC, CV, FDN, GDE, dentre outras) é apenas uma pequena parte
no interior da complexa, assimétrica e extensa rede do poder estatal e
outras múltiplas soberanias24. Escoriações do ferro, da madeira e da palha,
23 Importante lembrar que o princípio da filiação, conforme Édouard Glissant (2011, p. 55), está alicerçado na
seguinte Lei: “ou ele é assimilado ou é aniquilado”.
24 Para a discussão sobre “Governo Privado Indireto” (Du gouvernement privé indirect), conferir Achille Mbembe
(1999) e para “A era do humanismo está terinando”, acessar <https://www.ihu.unisinos.br/publicacoes/564255-achille-
-mbembe-a-era-do-humanismo-esta-terminando> Acesso em 29 de janeiro de 2022, às 11h18min. No primeiro ano da
pandemia no Brasil (entre 2020 e 2021), por exemplo, surgiram pelo menos 11 novos bilionários. Isso significa, de acordo
com o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil, 33,1 milhões de
brasileiras/es/os estão passando fome e mais da metade da população do país [125,2 milhões de pessoas] vivem com
algum grau de insegurança alimentar.
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esse poder se manifesta como hieróglifos-da-carne, “marcas indecifráveis
no corpo”, conforme nos lembra Hortense J. Spillers (2021, p. 35 - grifo da
autora) que revelam um construto histórico e retroalimentado “encontrando
suas várias substituições simbólicas em uma eficácia de significados” que
tem em determinada “forma de morte-na-vida” (MBEMBE, 2017, p. 124) o seu
estandarte no negacionismo. Nomadismos em flecha, essas identidades-
fechadas constituem, mantêm e reeditam determinadas relações sociais
e históricas inscritas em determinados corpos-territórios. Neste caso, em
específico, são coletivos-híbridos-armados [máquinas-de-guerra] a
serviço dos “Donos do Poder”25 em territórios brasilis que integram o jogo
do tabuleiro compondo o que Mbembe (2020) chama de “forma-rede”,
neste caso, daqueles e daquelas que direta ou indiretamente lucram com
essa lógica por meio da produção, rotas, distribuição, comércio de drogas
e armas - a criminalização da primeira corresponde ao não controle da
segunda.
Na trama do espetáculo midiático, do superfaturamento da terceira
maior indústria carcerária do mundo e da multiplicação da economia-
funerária; o excedente, isto é, o corpo-combustível-enjaulado-chacinado,
habitando as bordas dessa forma-rede aparecem apenas como números,
estatísticas. Acumulação de cadáveres. A dívida impagável. Trata-se dos
mesmos perfis: adolescentes quase crianças, jovens ainda adolescentes
em sua grande maioria lidas no Brasil como pretas (negras e pardas), e
residentes das margens urbanas.
A VOZ DA TERRA: o direito às mermazárias
A po_ética das mermazárias é abertura do mundo. Declosão:
derrubada das cercas, dos muros, dos conclaves. Uma quebrada se
reconhece na outra como imensidão do lugar de onde se emite a voz, o
texto e o grito, mas também como o lugar da experiência do encontro com
outras pessoas que abre caminho para uma consciência de si em nível
coletivo ou de reimaginar um em-comum. O Poeta sabe que é impossível
sair ileso de um encontro e que há uma multiplicidade de encontros
acontecendo a todo-instante.
Rede de Afetos são emaranhadas práticas de re-existências “em
25 Conf.: Raymundo Faoro (1925-2003), autor de Os donos do poder – Formação do patronato político brasileiro
(2001 [1958]).
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
movimento, como um manto” ou como “a armadura de voo”. Pois há
aquelas que, não obstante, correm “buscando por uma arma” e segue
“correndo à busca de largá-la” (HARNEY & MOTEN, 2013, p. 19). A indecisão
e insubmissão à institucionalização, descrença e insurreição contra
tentativas de regulamentação “democrática” [a democracia radical é uma
promessa, está sempre por vir] das manifestações artísticas por meio da
coerção física e simbólica do Estado e suas instituições como “comunidade
humana” que “reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física”
(WEBER, 2011, p. 66, 67 - grifei) e ainda como a instância oficial, reconhecida
como legítima, isto é, como detentora do monopólio da violência simbólica
legítima, conforme Bourdieu (2014), as poetas-mediadoras-de-leituras
com as suas práticas de re-existências poéticas não se limitam a lutar
pela igualdade de direitos prometida pelo Estado Moderno, mais que isso,
reivindicam o direito às mermazárias.
A Biblioteca Na’zária é essa rede de afetos, um bando que voa
habitando lugares e continua a voar na intenção de abandoná-los. Não
se trata aqui de doze bibliotecas, são histórias e vidas incontáveis. É a
insistência sem medida a favor da vida e de uma existência diferente, um
mundo diferente sobre a única Terra que herdamos e que é de todo vivente
por direito.
A palavra aberta, o livro-aberto, as bibliotecas na’zária são corpos em
permanente combate, um devir-ilimitado de encontros.
NÃO HÁ COMEÇOS ABSOLUTOS. HÁ TODO-INSTANTE UM AO LONGO QUE
FLUI POR TODOS LADOS, COMO ÁGUAS DOCES E SALGADAS POSSIBILITANDO
CAMINHOS, IMPREVISIBILIDADES
SOMOS ÁGUA E A PRÓPRIA FRONTEIRA
PRECISAMOS INTERROGAR O ESPANTO E A NATURALIZAÇÃO DAS VIOLÊNCIAS
GOLPEAR IMAGENS SEM RECUAR
SE OPOR AO PENSAMENTO DO “EU-MENOS-O-OUTRO”
TODA FORMA DE CANCELAMENTO É COLONIALISTA. FIGURA COMPLEXOS E
112
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
FISSURAS NARCISISTAS, INCLUSIVE, HIPÓCRITA, LEGALISTA E NEGACIONISTA.
ANTÍPODAS DA GENEALOGIA DA MORAL
A TENTAÇÃO DE SER MODELO/REPRESENTANTE NASCE DO DESEJO DE
SOBERANIA E NÃO DA VONTADE DE POTÊNCIA
A DEMOCRACIA DE ESCRAVOS MUDA PROVISORIAMENTE OS LUGARES DE
PODER, CONTANTO QUE MANTENHA-SE A RELAÇÃO, ISTO É, SUA LÓGICA DE
FUNCIONAMENTO: VERTICAL, HORIZONTAL, SELETIVO E DESIGUAL
HABITO O AVESSO, CAMINHOS ÍNGREMES E QUENTES DO CAOS, ESPIRAIS-
ENCRUZILHADAS QUE NÃO SE DEIXA NOMEAR
O SERVIÇAL DO INTERIOR DA CASA-GRANDE, AO APRENDER E ADENTRAR
OUTROS CÓDIGOS DE LINGUAGEM E CONDUTA, INCORRE NA POSSIBILIDADE
DE NUTRIR O AUTO-ÓDIO: O SOBREVIVENTE DA CASAGRANDE NÃO SOMENTE
DESEJA A ELIMINAÇÃO DO OUTRO, ELE TEM PRAZER EM VÊ-LO SUCUMBIR
AS POLÍTICAS DO ÓDIO, DO MEDO E DO TERROR CIRCULAM NA E ENTRE A
PLANTATION, A SENZALA E A CASA-GRANDE. TOMA FORMAS E CONTORNOS
DISTINTOS E SIMILARES. A REPETIÇÃO E O MESMO
NESSA ANTIECONOMIA, POR NÃO PARTICIPAR EFETIVAMENTE DE NENHUM
TIPO DE HUMANIDADE, ELE INSISTE, ELE BAJULA, MAS SEU FIM É O AÇOITE, A
HUMILHAÇÃO E A PROMESSA DE UMA RECOMPENSA ADIADA. TALVEZ EM OUTRA
VIDA JUNTO AO ONIPOTENTE, ONIPRESENTE E ONISCIENTE
O PEDAGOGO DA CASA-GRANDE QUE É UM CATECISTA-BANCÁRIO, POR SUA
VEZ, DISPUTA CERTO REGIME DE VERDADE, CANCELA E REPLICA O CANCELADOR,
REIVINDICA SER O MILITANTE-ISENTÃO QUE JÁ LEU PAULO FREIRE, MAS SÓ
CONSEGUE TECER UMA CRÍTICA NA DISPUTA POR OUTRA ECONOMIA: A DO
LUCRO-SILENCIOSO
O SOBERANO É BRANCO. ELE PERFORMA UM MUNDO-PRETO E ALIMENTA-SE DE
SUA CRIAÇÃO
113
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
DESPISTADOR E INVENTIVO, CADA CORPA-DANÇANTE E CORPO-NEGRO É UM
QUILOMBO. SOMOS A PRÓPRIA FUGA, A PRÓPRIA DANÇA. FUMAÇA E CINZAS.
NÃO SOMOS, ESTAMOS SENDO. SER-SENDO. DAR-COM.
REVERÊNCIA A TODA FORMA DE AQUILOMBAMENTO-CRIADOR. BEATRIZ
NASCIMENTO E UMA MULTIDÃO ESCREVE COMIGO.
“QUE TODOS VIVAM O GRANDE CONCLAVE QUE É A TERRA. O GRANDE
CONSELHO QUE É A TERRA”
É NA FRAGILIDADE DE TODOS E DO TUDO QUE HABITA A RELAÇÃO E O POSSÍVEL,
O INVENTIVO E O TRANSGRESSOR.
GARGALHAMOS.
“[...] Onilé, orixá da Terra, receberia mais presentes que os outros. Deveria
ter oferendas dos vivos e dos mortos, pois na Terra também repousam os
corpos dos que já não vivem”26
26 “Onilé ganha o governo da Terra”. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001,
p. 414.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
CLÁUDIO CAROPRESO
Sem título
Gravura em relevo e estêncil
São José dos Campos, SP, 2016 119
Cortesia da Galeria Gravura Brasileira
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
UM OLHAR DECOLONIAL SOBRE
A TEMPESTADE, DE WILLIAM SHAKESPEARE
Weslaine Gomes
RESUMO
Nosso ensaio analisa a peça A Tempestade, de William Shakespeare,
sob a ótica das experiências históricas, sociais, estéticas e políticas do
Sul, defendendo a possibilidade de uma leitura decolonial a partir do
diálogo com os autores latino-americanos – muitos do chamado grupo
Modernidade/Colonialidade, constituído no final dos anos 1990 na América
Latina - e com Aimé Césaire.
ATO I
Da crítica pós-colonial à teoria decolonial
Nas últimas décadas tem ganhado força o movimento de valorização
das epistemologias do Sul em diferentes universidades do mundo. Tais
epistemologias têm exercido influência em áreas diversas, como economia,
ciências sociais, literatura e outras artes. No campo literário algumas obras
têm sido revistas sob a ótica das experiências históricas, sociais, estéticas
e políticas do Sul. Entre tais obras, a peça A Tempestade, de Shakespeare,
tem recebido atenção de autores dos estudos pós-coloniais e autores
latino-americanos.
Em nosso ensaio procuramos destacar as leituras pós-coloniais
da peça e tentamos ir além, defendendo a possibilidade de uma leitura
decolonial, a partir do diálogo com os autores do chamado grupo
Modernidade/Colonialidade, constituído no final dos anos 1990 na América
Latina.
Como salienta Walsh (2007), no interior da categoria de análise da
colonialidade, podemos distinguir quatro esferas que se articulam entre si:
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
(1) colonialidade do poder; (2) colonialidade do saber, (3) colonialidade do
ser e (4) colonialidade da natureza.
Ainda segundo a autora, a primeira esfera refere-se aos padrões de
poder que vinculam as categorias de raça, Estado, controle e exploração do
trabalho e a produção do conhecimento. A segunda esfera faz referência
ao eurocentrismo como narrativa única que organiza a construção do
conhecimento e de saberes, segundo uma divisão geopolítica e ontológica
do mundo entre centro e periferia. A colonialidade do ser está relacionada
à imposição de determinados seres sobre outros, baseando-se no controle
de suas subjetividades, a partir dos padrões de poder coloniais. Por fim,
a colonialidade da natureza expressa uma crítica à divisão natureza-
sociedade, divisão binária que desconsidera a relação entre seres humanos,
plantas e animais, bem como, entre os chamados mundos espiritual e
material.
Em nosso ensaio, abordaremos a colonialidade do poder e do ser,
buscando articulá-las com uma leitura da peça que compreende a
categoria racial e os saberes produzidos como fator de distinção entre as
personagens e que, considerando o contexto shakespeariano, defendemos
se tratar de uma crítica do autor ao empreendimento colonial e toda
violência decorrida do mesmo.
Ato II
Shakespeare: uma crítica à colonização do coração da colonização?
A vasta obra de William Shakespeare (1564-1616) tem despertado, no
decorrer dos últimos quatro séculos, uma pluralidade de leituras-traduções
ao redor do mundo, não diferindo no caso de A Tempestade. Segundo a
cronologia das peças teatrais de Shakespeare, elaborada por Chambers
(1982), A Tempestade foi escrita entre 1611 e 1612, sendo considerada a última
de suas 37 peças.
O enredo dá conta da comitiva do rei de Nápoles, Alonso, também
composta por seu filho, Ferdinando, seu irmão, Sebastião, seu conselheiro,
Gonzalo, e pelo ilegítimo duque de Milão, Antônio. Durante a viagem dos
nobres italianos, que regressavam do casamento da filha de Alonso com
o rei de Túnis, o navio sofre com uma inesperada tempestade e seus
viajantes são obrigados a abandoná-lo para tentar sobreviver, e nesta
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
tentativa encontram a ilha criada por Shakespeare. A ilha é comandada
por Próspero, uma espécie de mago, que habita com sua filha, Miranda, e
seus servos, Ariel e Caliban, ambos seres nativos da ilha.
A tempestade foi provocada por Ariel, um “espírito do ar”, a mando de
Próspero, que almejava se vingar da comitiva dos nobres, uma vez que seu
irmão, Antônio, em acordo com o rei de Nápoles, usurpou-lhe a coroa e o
ducado de Milão.
Próspero e sua filha, ainda um bebê, foram expulsos de Milão e
colocados em um barco, condenados a vagar pelo mar, tendo suas vidas
guiadas pela sorte. Gonzalo, o velho conselheiro napolitano, se compadeceu
de Próspero e sua filha e, na tentativa de ajudá-los, deu-lhes água potável,
alimentos e alguns livros que Próspero, amante dos estudos, guardava em
sua biblioteca e que Gonzalo sabia ser da estima do duque traído. Após dias
vagando pelo mar, pai e filha se depararam com a ilha e, posteriormente,
com seus habitantes, Ariel e Caliban.
Caliban é filho da bruxa Sycorax, banida de seu país, Argélia, e enviada
para a ilha, já Ariel era criado de Sycorax, mas devido a sua recusa em
obedecer determinadas ordens, foi aprisionado por Sycorax em uma fenda
de pinheiro, até ser resgatado por Próspero. Doze anos passados da traição
sofrida por Próspero, a comitiva de Nápoles e Milão segue rota próxima à
ilha e dá ao ex-duque a possibilidade de vingança.
O arco dramático principal da peça desenvolve-se em torno da
relação Próspero – Ariel – Caliban. Tal relação tem sido explorada de formas
distintas por autores oriundos de diferentes tradições literárias, filosóficas e
políticas. Como já salientamos no ato anterior, nosso diálogo ocorrerá com
as leituras pós-coloniais e latino-americanas da peça, que interpretam
a relação de servidão estabelecida entre Próspero e os dois nativos da
ilha inseridas no discurso crítico ao empreendimento colonial britânico - e
europeu - à época de Shakespeare.
Para estabelecer tal diálogo, a seguir apresentamos brevemente
algumas leituras de intelectuais latino-americanos acerca da peça e de
Aimé Césaire, um dos mais influentes desenvolvedores do argumento
pós-colonial, como pode ser observado em A Tempest, sua versão de The
Tempest, de Shakespeare.
Em sua leitura da peça, Césaire (1991) critica duramente as relações
de mando e obediência entre colonizadores e colonizados. Próspero é
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
representado como o colonizador europeu, Ariel como o escravo mulato
e Caliban como o escravo negro. A peça de Césaire se passa em alguma
ilha não especificada do Caribe e o enredo se mantém similar ao de
Shakespeare.
Césaire procura fazer sua voz anti-colonizadora ser ouvida por meio
da personagem Caliban, que em sua versão possui mais clara consciência
de sua escravidão e de que Próspero roubou sua terra, cultura, linguagem
e identidade. Próspero não é apresentado como o mago poderoso de
Shakespeare, mas como o colonizador da ilha pertencente a Caliban. É
como se Césaire tivesse colocado uma lente de aumento e denunciado
o caráter violento e opressor da colonização, capaz de retirar dos sujeitos
subalternizados a capacidade de autodeterminação de suas vidas. É
visível a raiva no discurso de Caliban contra Próspero:
“(...)
Prospero, you’re a great magician:
You’re an old hand at deception.
And you lied to me so much,
about the world, about myself
that you ended up by imposing on me an image of myself: underdeveloped...
undercompetent
that’s how you made me see myself! And I hate that image... and it’s false!
(CÉSAIRE, 1991, p.64) “
Caliban recusa a imagem depreciativa criada por Próspero para se
referir a ele como um ser inferior, e demonstra uma atitude mais pró-ativa
na construção de sua própria identidade. Uma identidade a que ele não
tenha que se referir com vergonha, mas com orgulho. A mesma postura de
recusa Caliban possui em relação ao seu nome, dado por Próspero:
“It’s the name given me by your hatread, and everytime it’s spoken it’s an
insult (CÉSARIE, 1991, p. 15)”
Próspero, na leitura de Césaire - e também de Shakespeare, porém
Césaire de modo mais intenso - se refere a Caliban sempre de forma
humilhante, “beast”, “dumb animal”, em uma interpretação do olhar da
civilização ocidental para a África, como um mundo bárbaro, que não
possui dignidade alguma (FEI, 2007).
Essa imagem e esse nome falso construídos pelo colonizador e
recusado por Caliban é o que Césaire procura descolonizar, transformando
Caliban em um símbolo do nativo resistente e consciente de sua escravidão.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Ariel, espírito do ar, no que lhe concerne, recebe um tratamento melhor
que o do Caliban e, embora também seja consciente de sua condição de
escravo e deseje sua liberdade, ele procura conquistá-la de forma não
violenta. Ariel demonstra certo comodismo na servidão a Próspero e tenta
despertar a consciência do colonizador, porém, em uma relação de poder
tão assimétrica, falta-lhe força. Na leitura de alguns críticos, Ariel representa
os intelectuais, guardando mais semelhanças com o próprio Césaire (FEI,
2007).
A peça de Shakespeare e suas possibilidades de leituras-traduções
também falam alto aos escritores latino-americanos. De modo geral, tais
escritores também centraram-se na relação Próspero – Ariel – Caliban e
procuraram reinterpretar certos elementos simbólicos do velho mundo
europeu a partir da América Latina, no intuito de oferecer ao novo mundo
um olhar renovado sobre sua própria identidade (WEINBERG, 1994). Podemos
mencionar o nicaraguense Rubén Darío, o uruguaio José Enrique Rodó,
o mexicano Leopoldo Zea, o argentino Aníbal Ponce e o cubano Roberto
Fernández Retamar.
Em nosso diálogo com as leituras latino-americanas, discutiremos as
visões de José Enrique Rodó e Roberto Fernández Retamar, por limitações de
espaço, e também por considerarmos suas interpretações mais influentes
ao pensamento social e político latino-americano.
O livro Ariel, escrito por Rodó, publicado pela primeira vez em 1900,
trata-se de uma das obras fundamentais do pensamento político-social
latino-americano do século XX. Rodó (1930) estabelece uma oposição
entre Ariel e Caliban, e não entre Próspero e Ariel-Caliban, como o fazem
outros autores. Ariel, o espírito do ar, é símbolo do espírito livre, nobre,
dedicado à cultura e repudia somente os interesses voltados para a vida
mundana e questões materiais. Caliban, no que lhe concerne, é símbolo do
apego aos interesses materiais e da massificação e brutalização da vida.
A artimanha de Rodó é associar Ariel à espiritualidade da cultura latina
em oposição ao pragmatismo norte-americano, associado a Caliban. Ariel
representaria uma crítica à sociedade estadunidense, baseada em uma
cultura materialista, que poderia promover a canibalização do patrimônio
cultural-espiritual das nações latino-americanas (WEINBERG, 1994).
Diferente de Rodó, Roberto Fernández Retamar (2004), em seu livro
Todo Caliban, propõe uma leitura a partir da oposição Próspero – Caliban.
124
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Este último se converte na representação da relação colonial imposta na
América, África e Ásia pelos conquistadores europeus, representados por
Próspero.
A personagem Ariel, assim como faz Rodó, é lida como símbolo dos
intelectuais latino-americanos, no conflito entre os interesses de Próspero
e Caliban. Retamar enfatiza que Ariel também está na mesma ilha que
Caliban e possui duas escolhas: servir a Próspero ou se rebelar contra seu
senhor, unindo-se a Caliban (WEINBERG, 1994).
Ainda que haja diferenças nas interpretações dos autores mencionados
neste segundo ato, todos eles possuem em comum o fato de inserirem
Shakespeare no debate colonial. Podemos nos perguntar se o autor de A
tempestade estaria participando das controvérsias de seu tempo acerca
da investida britânica e europeia sobre os novos territórios descobertos e,
principalmente, sobre o violento ataque aos povos originários destas terras.
Certamente, as respostas encontradas concordarão com as tradições
literárias e políticas dos diferentes escritores.
Neste ensaio, defendemos haver elementos presentes na peça
shakespeariana que nos permitem lê-la em uma chave decolonial
e continuar o diálogo com o poeta. Os elementos presentes na peça e
abordados no ensaio são a ideia de raça, que na teoria decolonial surge
como categoria que organiza e justifica os padrões mundiais de poder, e
a noção de geopolítica do conhecimento, que critica o estabelecimento
da Europa como perspectiva única de conhecimento, desconsiderando
os saberes produzidos fora do centro europeu. A articulação destas duas
categorias de análise com a peça em questão é o assunto do nosso
próximo ato.
ATO III
Por uma Tempestade decolonial
A inserção da categoria racial no debate pós-colonial, constitutiva da
esfera colonialidade do poder, foi uma contribuição do grupo Modernidade/
Colonialidade, tendo origem mais precisamente no pensamento de Aníbal
Quijano.
Outra contribuição importante do grupo foi a noção de geopolítica
do conhecimento e diferença colonial, desenvolvida principalmente por
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Walter Mignolo, e associada à esfera colonialidade do saber.
Quijano (2005a) afirma que um dos eixos centrais do padrão de poder
constituído pelo capitalismo colonial/ moderno/europeu é a classificação
social da população mundial segundo critérios de raça. Para o autor, a
classificação racial deu legitimidade à conquista dos novos territórios e
à relação de dominação violentamente imposta pelos colonizadores
europeus aos povos originários destes territórios. Um elemento chave,
então, para se compreender a colonialidade do poder é a questão racial.
O autor estabelece, ainda, uma relação entre raça e o lugar nas
ocupações de trabalho. Uma vez que os povos violentados pela colonização
foram classificados como naturalmente inferiores, seus lugares e papéis
destinados na estrutura social também foram os mais inferiores. O cenário
construído nesta perspectiva do autor é de uma divisão racial do trabalho,
na qual as categorias raça e divisão do trabalho foram associadas e
cada vez mais mutuamente reforçando-se. É para essa relação entre
classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça
e as novas formas de controle e exploração do trabalho que gostaríamos
de chamar atenção, pois, de nosso ponto de vista, tal relação manifesta-se
em A tempestade, e diferencia-se das leituras pós-coloniais anteriores da
peça.
Pedimos licença para uma citação mais longa de um trecho da peça,
onde encontramos um raivoso diálogo entre as personagens Próspero e
Caliban em torno da, entre outros temas, escravidão a que Caliban foi
submetido e a noção de raça inferior defendida por Próspero:
“Caliban - Está na hora do meu jantar. Esta ilha é minha; herdei-a de Sicorax,
a minha mãe. Roubaste-ma; adulavas-me, quando aqui chegaste; fazias-
me caríciais e me davas água com bagas, como me ensinaste o nome da
luz grande e da pequena, que de dia e de noite sempre queimam.
Naquele tempo tinha-te amizade, mostrei-te as fontes frescas e as
salgadas, onde era a terra fértil, onde estéril… Seja eu maldito por havê-lo
feito!
Que em cima de vós caia quanto tinha de encantos Sicorax: besouros,
sapos e morcegos. Eu, todos os vassalos de que dispondes, era nesse
tempo meu próprio soberano. Mas agora me enchiqueiraste nesta dura
rocha e me proíbes de andar pela ilha toda.” (SHAKESPEARE, 1982, p. 43-44)
Este diálogo é revelador do contraste entre o entendimento de Caliban
e Próspero a respeito de seus próprios direitos à ilha e a uma livre existência.
Próspero, o europeu, italiano, ex-duque de Milão, de origem nobre, acredita-
126
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
se no direito de aprisionar e escravizar Caliban, que o próprio Shakespeare
não descreve segundo o sexo, gênero, idade, cor da pele, identificando-o
apenas como ser nativo da ilha, e que aos olhos de Próspero, trata-se de um
selvagem, pertencente a uma raça vil, inferior, que merece a escravidão.
A raça como categoria e estrutura de classificação foi também
utilizada e institucionalizada para posicionar, de forma hierárquica,
determinados grupos acima ou abaixo nos campos de saber (WALSH, 2007).
Desta perspectiva podemos depreender que a colonialidade do poder
está ligada à colonialidade do saber, nossa segunda esfera de estudo e
articulação com A Tempestade.
A colonialidade do saber exprime a ideia de que há, na América
Latina - e no mundo - uma subalternização de formas de se produzir
conhecimento que não se enquadram no padrão científico hegemônico
de origem europeia, resultando em uma perspectiva eurocêntrica de
conhecimento que nega, por exemplo, o legado intelectual de povos
indígenas e negros (WALSH, 2005), que também por meio da categoria de
raça são reduzidos a “seres primitivos” (MIGNOLO, 2008a, 2008b; QUIJANO,
2005a, 2005b; CASTRO-GÓMEZ, 2008).
A questão da epistemologia eurocêntrica pode ser discutida em
A Tempestade. O conhecimento de Próspero advém de seus estimados
livros, trazidos de Milão, quando da sua expulsão do reino. Ao chegar a
ilha e encontrar Caliban e Ariel, os poderes (conhecimento) do ex-duque
de Milão mostraram-se superiores aos dos nativos, capazes de dominar
a natureza de modo a utilizá-la contra Caliban, o escravo que se rebela
contra a escravidão. Os conhecimentos de Caliban e Ariel são valorizados
apenas na medida em que podem servir a Próspero. Caliban após ensinar
a Próspero como sobreviver na ilha é escravizado sem maiores problemas.
Ainda que Caliban insista que a ilha lhe pertence, herdada de sua mãe,
Sycorax, a bruxa banida da Argélia, Próspero não se comove. Sycorax,
inclusive, pode ser lida como a natureza, a mãe-natureza de Caliban e
outros povos originários, com quem estes estabeleciam uma relação de
comunhão e não de exploração material/capitalista. Ariel, ,, só consegue
sua liberdade após colocar seus poderes a serviço dos planos de vingança
de Próspero.
A relação estabelecida entre Próspero e Caliban - Ariel pode ser
comparada à relação estabelecida entre os colonizadores europeus e os
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
povos nativos da América, e em uma leitura atual, entre a Europa e o restante do
mundo. Conforme afirma Santos (2010), a dicotomia apropriação/violência
foi a que prevaleceu nos territórios coloniais, contrariamente a dicotomia
regulação/emancipação aplicada às sociedades metropolitanas. Coube
à população que ficou “do outro lado da linha” – apropriação/violência –
lidar com as consequências da colonização, em todas as suas dimensões,
racial, epistemológica, cultural.
Caliban é consciente da violência física, epistemológica, simbólica,
racial, submetida por Próspero, e é só devido a este reconhecimento que
obedece.
“Caliban – Forçoso é obedecer.
Sua arte é tão potente, que lhe fora possível dominar até Setebos,
o deus de minha mãe, e transformá-lo
em seu vassalo, até.” (SHAKESPEARE, 1982, p. 45)
Ao mesmo tempo em que, quando planeja a morte de Próspero
para livrar-se da escravidão, sinaliza à outra personagem que primeiro é
preciso destruir a fonte de conhecimento de Próspero: seus livros. Fonte
esta, inacessível para Caliban.
“Caliban – (…) Mas, primeiro, é preciso que te lembres
de lhe tomar os livros, pois, sem eles,
é um palerma como eu, já não dispondo
de espírito nenhum sobre o que mande.
Todos, como eu, lhe têm ódio entranhado.“ (SHAKESPEARE, 1982, p. 76)
A Tempestade, como procuramos mostrar, possui marcas da
colonialidade do saber. Outra marca que podemos discutir é a marca
do lugar. Conforme assinala Escobar (2005), o enfraquecimento do lugar
como lócus da experiência cotidiana, devido à globalização, enfraqueceu
ou invisibilizou as formas subalternas de pensar e os modelos locais de
configurar o mundo, tais como os modelos de Caliban.
Por fim, outro personagem que podemos nos perguntar sobre seu
papel na peça é Ariel. Afinal, quem é Ariel, em A tempestade? Ou, quem é
Ariel hoje frente à colonialidade do saber?
Em nossa leitura, compreendemos que Ariel guarda semelhanças
com o intelectual latino-americano, no conflito entre servir à epistemologia
soberana ou assumir a diversidade de epistemes como ponto de partida
de sua produção intelectual. Nos termos de Walsh (2007, 2010) trata-se
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da pergunta: qual a responsabilidade dos intelectuais, de seus projetos e
daqueles que com eles se aliam? Para a autora é necessário o diálogo
com as formas de produção de conhecimento que se localizam fora
das universidades e do cânone científico padrão. É necessário refutar os
pressupostos de universalidade, neutralidade e não-lugar do conhecimento
científico como único modelo possível de produção de saber, pois esses
pressupostos desconsideram as experiências baseadas no lugar (ESCOBAR,
2005), desconsideram os Calibans e consideram os Arieis até o momento
em que estes não se coloquem contra os padrões de poder e reclamem-
lhe os recursos que lhe permitem construir a si próprios e não serem
construídos pelos dominadores.
A relação entre Ariel e Próspero é provocadora, ao mesmo tempo em
que Ariel vivencia a servidão, busca em seu senhor afeto e reconhecimento
de seus trabalhos. Próspero, demonstra afeto por seu servo e o considera
um ser delicado, oposto a Caliban.
“Ariel – Amais-me, mestre, também?
Próspero – De coração, meu delicado, Ariel.” (SHAKESPEARE, 1982, p. 85)
Podemos nos perguntar porque Ariel age dessa forma. Por não
conhecer a liberdade, já que antes de servir a Próspero, servia a Sycorax?
Diferente de Caliban que nasceu livre. Por temer outro castigo que o
machuque novamente e preferir a servidão a Próspero? Por ser grato a
Próspero por tê-lo tirado do aprisionamento realizado por Sycorax? Por
não conseguir imaginar outra realidade possível fora da servidão? Outra
realidade é possível para América Latina?
ATO IV
Admirável Mundo Novo!
“Miranda – Oh! Que milagre!
Que soberbas criaturas aqui vieram!
Como os homens são belos! Admirável
mundo novo que tem tais habitantes!
Próspero – Para ti isso é novo.” (SHAKESPEARE, 1982, p. 100)
A respeito das diversas possibilidades de leitura da peça,
compreendemos também que a história da América passa por imaginação
similar a da personagem Miranda, em diálogo com seu pai, Próspero,
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apresentado no início deste último ato. O diálogo ocorre quando esta vê
pela primeira vez outros homens, os tripulantes do navio naufragado, e é
com este diálogo que gostaríamos de encerrar nosso ensaio.
Miranda, que não conhece ou se lembra de outro mundo a não ser
a ilha em que viveu, considerou novidade aqueles homens que chegaram
ao seu mundo. Seu pai, entretanto, conhecedor do velho mundo, lembra
que, para ela, aquilo era novo.
A similaridade está no fato de que quem chegou e colonizou o
continente americano foi o homem europeu, branco, nobre, capitalista,
cristão, corrupto. O velho mundo ao encontrar o novo trouxe todos os seus
padrões de poder e tratou de reproduzi-los, em sua visão, para o bem da
humanidade - europeia - e da população do novo mundo.
Dada a colonização e a colonialidade, não é de mau tom perguntarmos:
como podemos viver nessas colonialidades? O que implica existirmos
nesses padrões de poder estabelecidos a partir da raça, conhecimento,
gênero, sexo, idade, natureza? Quem somos nós em A Tempestade? Nosso
conhecimento aprisiona outras pessoas, torna-nos Prósperos? Ou nosso
conhecimento liberta e contribui para a construção de um mundo mais
inclusivo, diverso e questionador das colonialidades?
Muitas são as perguntas que podem ser formuladas a partir da peça
e, certamente, não esgotam o rico mundo construído e imaginado por
Shakespeare.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
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DAIARA TUKANO
De volta ao alento
Pintura mural
São Paulo, SP, 2021
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GRITANDO PELAS PAREDES: A ARTE URBANA
COMO NARRATIVA DECOLONIAL NA
AMÉRICA LATINA
Carolina Maria Soares Lima1
RESUMO
O presente texto representa um excerto da pesquisa de mestrado realizada
entre 2020 e 2021 na Universidade Federal de Minas Gerais. A pesquisa
buscava compreender as relações entre a arte urbana e a produção do
espaço, mas, dentre os resultados, foi observado o potencial da arte urbana
em promover narrativas alternativas, de forma dissensual e decolonial,
sobre grupos subalternizados na América Latina.
Apresentação
O presente texto, que se apresenta como excerto de uma pesquisa
de mestrado realizada entre os anos de 2020 e 2021 e como fonte de
provocações sobre a potencialidade dissensual e decolonial da arte urbana,
também traz contribuições a respeito de experiências e vivências em
outros âmbitos de pesquisa, objetivando expor entrelaces possíveis entre
arte, espaço público e a perspectiva decolonial. Nesse sentido, portanto,
busca-se, aqui, responder à pergunta sobre de que modo a arte pública
resiste à violência epistêmica, conseguindo promover uma produção de
conhecimento outra, de bases decoloniais, nas cidades contemporâneas?
Num primeiro momento, portanto, faz-se fundamental discutir os
conceitos fundantes desta pergunta, sendo eles a arte pública, a violência
epistêmica, o decolonialismo e as cidades contemporâneas. A partir da
discussão ao redor dos conceitos supracitados, faz-se possível responder
à pergunta apresentada. Contudo, a partir da pesquisa de mestrado
1 Geógrafa e mestre em geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais e especialista em Políticas Sociais
Integradas pela Universidade Estácio de Sá. É pesquisadora do Observatório da Diversidade Cultural e bolsista DTI do
Observatório das Metrópoles.
[email protected] 134
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realizada, evidências empíricas em duas cidades brasileiras (Belo Horizonte
e São Paulo) colaboram para o argumento que se pretende construir neste
texto.
Colonialidade e violência epistêmica
Há um grande perigo para as sociedades em ter uma única história
sendo contada (pela produção acadêmica e cultural, sobre os grupos e
lugares), pois a história única rouba a verdade dos agentes dominados
(ADICHE, 2009). De tal modo, comecemos pela noção de colonialidade,
o processo que roubou a verdade dos povos do Sul. Este “furto da
verdade” é o que Aníbal Quijano (2014) chama de violência epistêmica,
consistente no apagamento histórico de saberes, culturas, conhecimentos
e representações dos grupos marginalizados na leitura racializada e
eurocentrada da sociedade contemporânea.
Quijano (2014), então, elabora uma proposta de se analisar os grupos
e as comunidades a partir dos diversos campos de tensões que partem
deles, em justaposição com os demais grupos, sem hierarquizá-los. Ou seja,
sem considerar que um grupo é a ausência do outro, resultado apenas
da dominação do outro: deve-se realizar uma leitura das comunidades
a partir delas mesmas e de seus processos históricos. De tal modo, seria
possível conceber os grupos subalternizados em sua totalidade e não
como o fragmento excluído e marginal do grupo dominante.
Um importante aspecto da colonialidade é a noção de raça, que,
desde o processo de colonização em si, codifica os colonizadores e os
colonizados de modo que as relações sociais se fundam em uma divisão
racial. Assim, surge, neste contexto, uma divisão social e racial do trabalho
(QUIJANO, 2002). De tal modo, diferentes identidades históricas racializadas
são produzidas e apenas uma delas concentra o poder hegemônico
econômico, científico e cultural – os brancos –, engendrando um processo
de repressão até mesmo da produção artística e cultural dos grupos
dominados. Ou seja, a partir deste processo, a cultura dos grupos dominados
passa a ser codificada como uma cultura inferior, marginalizada e excluída,
em detrimento da cultura erudita ou branca.
A partir disso, voltando a Quijano (2014), o autor destaca que toda utopia
acaba por se constituir, essencialmente, no plano estético. Apoiados nisto,
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podemos notar a importância da produção artística para a construção
de narrativas alternativas e contra-hegemônicas. O autor, ainda, aponta,
que a busca por outros modos de vida é aportada pela subversão
estética, uma vez que esta antecipa a subversão do poder. De tal forma,
a construção de narrativas utópicas no plano estético (ou sensível, como
veremos em Rancière, à frente) faz-se fundamental para o rompimento
com a colonialidade. De acordo com o autor, a América Latina, ainda, faz-
se um território extremamente profícuo para a insurgência destas utopias
que produzem o imaginário coletivo a partir de racionalidades alternativas
de poder.
Um exemplo evidente de proposta de subversão pela veia cultural
na América Latina, recente, é a música This is not America (2022), do
cantor porto-riquenho Residente. Na música e no vídeo que a acompanha,
Residente critica o imperialismo estadunidense, líderes atuais do continente,
como Jair Bolsonaro e referencia diferentes eventos históricos e sociais
dos territórios latinos. A partir deste vídeo e da música, foi gerada uma
instabilidade na ordem do sensível, trazendo as pautas para a discussão
popular e ganhando destaque na imprensa brasileira.
A cidade na era da produção capitalista do espaço
Entretanto, este texto não busca discutir qualquer produção cultural
na América Latina. Conforme explicitado anteriormente, a busca analítica
presente se situa no contexto das produções culturais urbanas, em
especial para a arte urbana, situada em espaço público, na urbe latino-
americana. Por tal motivo, faz-se importante compreender, ainda, o lócus
desta produção artística, que também é o lugar da existência dos agentes
que a produzem. Antes, ainda, de compreender a urbe latino-americana, é
fundamental compreender o conceito de lugar, aqui trabalhado.
Isso porque a noção de “lugar” se refere a uma importante categoria
da pesquisa socioespacial. Esta noção se relaciona às formas com as quais
a experiência humana se apropria do espaço socialmente construído.
Assim, o lugar trata de uma convergência do que se entende por espaço
percebido (mais relacionado à fenomenologia e à compreensão individual
do espaço) e do que se entende por espaço vivido. Além disso, tal categoria
relaciona-se, também, às dimensões culturais, simbólicas e identitárias,
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sendo carregada de sentidos, narrativas e histórias próprias (SOUZA, 2013).
A partir disso, portanto, em diálogo com a discussão sobre narrativas
contra-hegemônicas, passa a ser esperado que nos lugares, exatamente,
sejam observadas insurgências narrativas que colaboram para o debate
decolonial, tendo em vista que o lugar, por assim dizer, é o suporte essencial
da consolidação da identidade dos agentes e de diferentes grupos.
O lugar, então, é o espaço vivido, percebido e o lócus da reprodução
da vida cotidiana. Na contemporaneidade, de acordo com Serpa (2007),
entretanto, só é possível atingir a condição de lugar nas brechas e margens
do tecido espacial, ou seja, naqueles espaços nos quais há a insurgência
de resistências contra a produção capitalista, e hegemônica, do espaço.
Nesse sentido, nota-se que as cidades contemporâneas não possuem uma
produção espacial, cultural e simbólica, orientada para a consolidação de
lugares. De tal modo, ocupar-se dos espaços públicos e da cidade, em
sua totalidade, como forma de resistência, faz-se uma ocupação não
apenas física, mas sobretudo política, contra uma cultura imposta pela
colonialidade do poder. Considerando, ainda, que a produção artística e
cultural pode ser uma forma de apropriação do espaço, fica evidenciada
a relação que se estabelece entre as ruas, a arte, a decolonialidade e a
noção de lugar.
Arte pública como resistência
O autor Ângelo Serpa (2007) aponta que o poder é sempre expresso
e mantido nas representações, assim, as representações das margens, ou
seja, oriundas da cultura dos povos dominados e subalternizados, podem
conter narrativas e alternativas que expressam o poder sobre eles exercido
ou respostas contra-hegemônicas, que propõem uma visão em paralaxe
do poder central. Nos espaços públicos, frequentemente marcados por
exclusão e repressão, senão fundados nestes processos, a arte urbana se
coloca como uma prática crítica e política, capaz de agenciar narrativas
dissensuais e imaginários sociais contra-hegemônicos. A estética marginal,
portanto, faz-se capaz de auxiliar na leitura dos espaços a partir deles
mesmos, e não por suas ausências (ausência de dinheiro, do eurocentrismo
e da raça branca, por exemplo), além de ser capaz de descrever o
urgente, e busca pela promoção da instabilidade na ordem do sensível –
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o dissenso. Considerando isso, portanto, vê-se em Lima (2021a) que a arte
urbana e a estética marginal são fundamentais para uma leitura crítica
dos espaços, mais próxima da proposta decolonial no que diz respeito às
relações socioespaciais que se estabelecem, não somente, mas também,
nas metrópoles.
As obras de arte que se colocam nas ruas têm algumas características
em comum: são obras com acesso mais amplo do que aquelas expostas
em museus, por exemplo. Elas se colocam em contraponto às galerias, se
voltando para as cidades e para as pessoas (MARQUEZ, 2018). Ao caminhar
pelas ruas das cidades, pela fruição, acessamos obras de murais, grafittis
e pixo de forma quase obrigatória (ainda que alguns não sejam tocados
pelas provocações intencionais das obras). É essa diversificação de acessos,
permitida pelos espaços públicos, que gera a possibilidade de instabilidade
na ordem do sensível e de uma agência dissensual mais abrangente do
que as obras presentes em espaços privados, fora das ruas. São as obras
presentes no espaço público, portanto, que carregam um maior potencial de
construção de imaginários coletivos, apresentando narrativas alternativas.
As obras de arte em espaço público são peças fundamentais da construção
de um imaginário coletivo, a partir das narrativas apresentadas em suas
representações, capazes de gerar, em grupos distintos, diferentes versões
sobre a realidade política, social, econômica e cultural de um lugar (LIMA,
2021). A arte urbana é essencialmente socioespacial por seus propósitos e
ambições relacionados à revolução e à contestação da estrutura (social,
política e econômica), que, de acordo com Nascimento (2020), é fundada
na exclusão.
Ainda que, em algumas ocasiões, as obras de arte urbana sejam
cooptadas pelo mercado e pelo Estado, que as utilizam para fins de
propaganda, a presença dessas obras nas cidades confronta até mesmo a
arquitetura e o planejamento das cidades. Isso porque confronta a função
pré-concebida dos muros e paredes: aquilo que antes era visto como
forma de proteção ou, por vezes, abrigo, torna-se um suporte expográfico.
A presença da arte urbana confronta, também, a funcionalidade urbana
prevista, além de confrontar a institucionalidade hegemônica em que a
arte e a política se inserem, propondo experimentações artísticas desde
insumos gráficos variados a formas de ocupação do espaço alternativas.
Devido a tal enfrentamento, a arte urbana está constantemente exposta
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a riscos, assim como seus artistas. Não somente pelo risco ao qual são
expostas, mas também pelo fato de que as manifestações de arte
urbana compõem um escopo de produções que surgem no interior das
periferias, onde há movimentações e produções da ordem da cultura
cujas reciprocidades e abrangências reescrevem o que se considera “à
margem” (PALLAMIN, 2017), surge um profundo interesse de pesquisa em
compreender a potencialidade destas representações tão efêmeras e, em
simultâneo, disruptivas.
Retomando, então, a análise crítica da produção do espaço em
Lefebvre (1983), buscando estabelecer um diálogo com as manifestações
de arte urbana, nota-se que o autor propõe uma dimensão do espaço que
nos interessa no presente debate: o espaço de representações. Este é o
espaço apreendido por meio dos sentidos e dos componentes subjetivos
dos significados, por meio da percepção espacial, ou seja, constitutivo do
imaginário. O imaginário, ainda na concepção do autor, destaca-se como
um fato social, consolidado a partir das representações. Por tal potencial
das representações, de consolidar imaginários sociais, articula-se um
campo de disputa ao redor do que se entende pelas representações e pelos
espaços de representação (os quais as obras de arte urbana ocupam).
Esse campo de tensões e disputas parece ter origem na instabilidade
que a arte promove na ordem do sensível, ou seja, o potencial de dissenso
que a arte pública carrega. De acordo com Rancière (2010), a arte redispõe
frações do mundo já dado e reorienta o olhar sobre ele, por meio da
construção de espaços e relações capazes de reconfigurar o material e
o comum. Tal apontamento reforça a noção de que a arte é capaz de
apresentar outras narrativas sobre a realidade presente. De tal modo, a arte
interfere naquilo que se entende como a partilha do sensível: um sistema
de evidências que revela a existência de um comum partilhado e de partes
exclusivas (RANCIÈRE, 2014). Nesse contexto, a arte gera heterotopias, por
desestabilizar o sensível e, também, a materialidade. Por conseguir constituir
uma experiência sensível compartilhada, ela assume um caráter político,
devido à sua capacidade de agência na ordem do sensível. Há, portanto,
uma relação profunda entre política e estética permitida, possibilitada
e agenciada pela partilha do sensível, caracterizando, assim, toda arte
como arte política, em especial as obras públicas, pela quantidade de
agentes que podem ser, como visto anteriormente, por ela atravessados e
mobilizados.
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Para compreender o espaço público, fundamental para a presente
discussão, tendo em vista que é o lócus da produção e da exibição
das obras em questão, não é possível olhar apenas pelas lentes que
miram as estruturas hegemônicas; devemos deslocar o olhar, também,
para as horizontalidades e as micropolíticas agenciadas no “teatro do
cotidiano”. Estas, segundo Carlos (1996), não se restringem à rotina, mas,
essencialmente, às coações e possibilidades, formando elo entre a estrutura,
as superestruturas e as relações que são resíduo e produto do conjunto
social. Ademais, nota-se que o cotidiano, nas cidades, tem um ritmo próprio,
composto de outros ritmos, concordantes ou não com o hegemônico,
e o ritmo da produção artística pode se apresentar como estratégia ou
resistência ao hegemônico, por ser contra a disciplina e a norma impostas
(LEFEBVRE, 2013). Nesse sentido, faz-se profícuo debruçar-se sobre a arte
urbana como um fenômeno socioespacial que sugere uma possibilidade
de leitura do lugar a partir de suas narrativas, produções e recepções.
Nota-se, portanto, reforçando o argumento de Barbosa (2009), que a arte
confere possibilidades de leituras e interpretações do espaço e constitui
uma dimensão histórica da crítica do espaço, sendo um instrumento para
a percepção da realidade, registrando o cotidiano e se colocando como
um modo de entender e agir no mundo.
Portanto, reforça-se a existência de uma capacidade de promoção
do dissenso a partir da arte urbana, sendo esta capaz de reorientar a visão
que se tem sobre a realidade e promover debates e inflexões políticas
sobre o próprio espaço. Assim, a arte faz-se um importante componente
do escopo de elementos que constituem as cooperações e conflitos que
tecem o espaço público nas cidades contemporâneas. A arte urbana é uma
prática social e espacial: configura territorialidades, potencializa a criação
de lugares e altera a paisagem urbana e, devido ao seu caráter público e
das narrativas que agencia, poderia ser um importante elemento para uma
leitura crítica e mais acurada do espaço, considerando a leitura do lugar
e as suas perspectivas não hegemônicas. De tal modo, tais intervenções
conseguem atribuir novos sentidos, narrativas e histórias de grupos que, por
vezes, são subalternizados. Esse processo de ressignificação dos espaços,
chamado por Souza (2013) de “relugarização”, é uma prática que merece
destaque na pesquisa socioespacial, capaz de agregar análises críticas a
respeito da cultura e dos símbolos nas disputas de poder que se articulam
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
no e sobre o espaço, oriundos, na contemporaneidade, do processo de
colonialidade.
Casos de análise
No contexto da pesquisa de mestrado, que seguiu sob a pretensão de
investigar as formas com as quais a produção da arte urbana se relaciona
à produção do espaço, também foi possível verificar que a arte urbana
promove narrativas alternativas sobre a sociedade, além de agenciar
resistências e movimentos contra-hegemônicos. A fim de verificar tais
hipóteses, foram analisadas três cidades na América Latina: Medellín, na
Colômbia, Belo Horizonte e São Paulo, no Brasil. À frente será apresentada
uma discussão a partir do caso belo-horizontino, e suas relações com o
decolonialismo.
O caso da cidade de Belo Horizonte, MG, conta com publicações já
dedicadas a ele (LIMA, 2021b), que elucidam, em maior profundidade, os
fatos encontrados para a análise. É importante destacar que a análise
do caso belo-horizontino se deu, também, como um desdobramento da
monografia de conclusão de curso que antecedeu o mestrado, sobre a
Rua Sapucaí, também em Belo Horizonte. Já no contexto do mestrado, o
interesse pela pesquisa foi dedicado às obras do Circuito Urbano de Arte
(CURA). Não apenas no circuito, mas também em outros contextos, a arte
de rua se coloca como forma de apropriação do espaço público na cidade
de Belo Horizonte.
O CURA é um festival que objetiva ser o maior festival de arte pública
de Minas Gerais e, em suas primeiras edições, criou o único mirante de arte
urbana do mundo, na Rua Sapucaí, no bairro Floresta em Belo Horizonte.
Quando a pesquisa foi realizada, cinco festivais já haviam ocorrido, nos
quais o CURA realizou ocupações na cidade de forma festiva, formativa
e com obras de arte, que até hoje permanecem na paisagem de Belo
Horizonte. No Circuito, que conta com mais de 15 obras de mural, diversas
destas trazem narrativas que apresentam outros pontos de vista sobre
grupos subalternizados. Conforme já apontado como característica das
obras de arte urbana, não seria diferente com algumas das obras do CURA:
sofrem perseguições da sociedade e do Estado.
Entretanto, não são todas as obras do CURA que sofreram
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perseguições sistemáticas. Este fato, de que apenas algumas das obras
sejam perseguidas, abre porta para questionamentos sobre as motivações
das perseguições, bem como para a discussão acerca das noções
de legalidade, pois tais perseguições configuram uma criminalização
seletiva, a partir de marcadores sociais das contradições que nascem da
produção do espaço (raça, propriedade ou gênero, por exemplo). As obras
perseguidas no Circuito, as quais serão apresentadas posteriormente
nesta análise, foram obras que retratavam o feminino (relacionada à
questão de gênero), o corpo negro ou culturas indígenas (relacionada à
questão da raça), criminalizando não apenas a estética da periferia – da
arte urbana –, mas também a realidade dos grupos subalternizados. Nota-
se um processo de criminalização das contradições que se originam no
processo de colonialidade.
Três das obras do CURA, ainda que tivessem suas execuções
autorizadas, foram perseguidas por diversos atores da sociedade e do
próprio Estado, conforme apresentado na pesquisa de dissertação. As
obras são “Híbrida Astral”, da artista Criola, pintada em 2018; “Entidades”,
do artista Jaider Esbell, uma instalação de 2020; e “Deus é Mãe”, do artista
Robinho Santana, pintado em 2020. Criola é uma mulher negra e Jaider,
um homem do povo Makuxi. O trabalho de Criola foi contestado na justiça
sob a alegação de que “não é uma simples pintura, é uma decoração de
gosto duvidoso”, enquanto a obra de Jaider sofreu ameaças de moradores,
que disseram que agiriam para a remoção da instalação. Já Robinho, um
homem negro, foi indiciado, junto às organizadoras do CURA, por crime
ambiental. Felizmente, nenhuma das acusações levou ao cárcere ou
remoção das obras até a data de escrita deste trabalho.
Nos casos analisados, então, foi possível notar um processo de
criminalização das estéticas das periferias, das contradições resultantes
da produção do espaço e dos artistas. Além disso, nota-se que a arte no
espaço é importante para a promoção do dissenso, uma vez que interrompe
o cotidiano e apresenta debates à coletividade. Assim, é estabelecido um
campo de tensões ao redor da arte de rua, articulando diversos agentes, e
mediando interações entre pessoas e o próprio espaço.
A partir deste caso, portanto, ficam evidenciados aspectos que
colaboram para a construção do argumento apresentado aqui. Isso porque,
em primeiro lugar, a arte de rua serviu para trazer a pauta da negritude e da
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maternidade em um dos maiores murais do mundo, apresentando debates
inerentes a grupos subalternizados e que, por vezes, sofrem da violência
epistêmica que retira deles o direito de narrar suas próprias histórias. É certo
que se estivesse em um museu, ou se não tivesse as proporções que tem,
que só é permitido pela construção que é seu suporte, não teria sucesso
em transmitir a narrativa que transmitiu. O artista foi capaz de trazer duas
pautas sensíveis e resultantes da exclusão sistemática na qual a produção
do espaço se funda sob a lógica neoliberal da contemporaneidade, e foi
visto e ovacionado não apenas por citadinos de Belo Horizonte, mas de
todo o Brasil, através de uma intervenção autorizada na paisagem da
capital mineira.
Considerações finais
Ao longo da pesquisa percebeu-se, conforme evidenciado no
presente texto, que a arte de rua (e, ainda que este texto se ocupe das
artes visuais, não apenas elas) configuram uma forma de resistência à
hegemonia neoliberal que produz os espaços na contemporaneidade,
apoiada na colonialidade do poder. De tal modo, surgem hipóteses de que
a arte de rua, alinhada à análise socioespacial e histórica, pode ser uma
importante ferramenta de compreensão das narrativas da sociedade que
apresentam perspectivas diferentes que não as hegemônicas.
No caso apresentado, referente à cidade de Belo Horizonte, é notado,
ainda, que além do potencial de denúncia e de apresentação de narrativas
decoloniais, analisar a arte de rua, tal como se ocupar da análise crítica
das ruas, colabora para um entendimento sobre as relações de poder que
se estabelecem no tecido socioespacial. Isso porque a forma com a qual
diferentes agentes – artistas, estado, sociedade – se articulam ao redor
das manifestações artísticas é uma espécie de simulacro das relações de
poder que ordenam a sociedade. A arte não escapa.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
LUCAS SOARES
1. Série Tô descalço no calçado (ao centro)
2. Desbica (primeira à esquerda)
3. Flor (primeira à direita)
4. Opala (segunda à esquerda)
5. Por conta das pernas inchadas (segunda à direita)
Tinta Óleo sobre chinelo arrebentado 146
Juiz de Fora, MG, 2020
Fotos: Marize Moreno
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BOLETIM OBSERVATÓRIO
DA DIVERSIDADE
DA DIVERSIDADE
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CULTURAL
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CRISE E IDENTIDADE
Érika Bauer1
Na música de Gilberto Gil e Caetano Veloso, “Haiti”, aparece um trecho
que fala da chacina do Carandiru:
(...) e quando ouvir o silencio sorridente de São Paulo, diante da chacina, 111
presos indefesos, mas presos são quase todos pretos, e pobres são como
pretos e todos sabem como se tratam os pretos. (VELOSO, Caetano; GIL,
Gilberto, 1993)
Como um soco no estômago, a música nos lembra o quanto fomos e
ainda somos cruéis. Olhando em retrospectiva, tentamos recuperar o grito,
a tragédia que sempre se repete e que deveria ecoar em cada existência
branca, invisível e tão estabelecida com a sua imagem herdada de um
passado colonial. Sempre presente nas instâncias de poder da sociedade
branca brasileira, o preconceito mascarado de arrogância e bondade
marcou a separação dos territórios de classe e raça, como leis de conduta
entre o eu branco e o outro, entre o que pode e o que não pode. Entre um
levante dos excluídos e outro, entre uma crise econômica, política e social
e outra, novas fissuras se instalaram e os grupos das minorias excluídas
foram se articulando, principalmente através da cultura.
Esse incômodo da memória da escravidão, do genocídio indígena,
foi fundamental para a criação das políticas públicas brasileiras, iniciadas
pelo Governo Lula e encabeçadas justamente pelo Ministro Gilberto Gil.
Na virada do século 20, no Brasil, com o avanço das novas tecnologias
e um cenário político mais favorável, mas já percebendo as ondas de uma
nova crise que se aproximava, vários artistas do audiovisual começaram
suas produções, dialogando com uma nova forma de enxergar o país,
longe da representação, mas criando alegorias e rupturas do sujeito
neoliberal, estimulado pela comunicação ilimitada (FOUCAULT). Um cinema
caracterizado pela insurgência rompeu o cenário audiovisual brasileiro,
apresentando uma proposta de contracorrente, como um chamado para
1 Professora do Curso de Comunicação Social da Universidade de Brasília. É documentarista e realizou, entre ou-
tros, o documentário “Dom Helder Camara, o Santo Rebelde”, e “Flor do Moinho”, seu mais recente trabalho. Doutoranda no
PPG- Faculdade de Comunicação/UnB.
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uma ampla e impactante atuação de diferentes grupos identitários nas
telas audiovisuais.
Escolhemos três filmes – Tremor-ie (2018), de Elena Meireles e Lívia
de Paiva, Era uma vez Brasília, de Adirley Queiroz (2017), e Voltei!, de Glenda
Nicácio e Ary Rosa – para refletir sobre interessantes diálogos que essa
nova onda audiovisual estabelece para transpor barreiras, sem medo de
se perder na escuridão periférica. Todos eles se caracterizam por trabalhar
com uma imagem escura, noturna, e a partir de territórios que não
aparecem na mídia como possibilidade de produção de saber e riqueza.
Acreditamos que esses filmes celebrem encontros coletivos, rompendo
com normas midiáticas impostas diariamente no imaginário comum, ou
seja, saem do padrão do indivíduo como sujeito para encontrar uma nova
formação de vida coletiva, invertendo jogos de poder.
Alguns autores nos ajudam a pensar essa sociedade extremamente
conservadora e violenta. Como remover a poeira do preconceito, e
iniciar qualquer compreensão sobre grupos identitários no Brasil e seus
movimentos culturais de sobrevivência. Liv Sovic, em “Aqui ninguém é
branco”, nos aponta para Muniz Sodré, para quem a civilização europeia
é uma espécie de “modelo identitário das elites nacionais”, e Kabengelê
Munanga, que afirma que a cor não é uma questão biológica, mas uma
das “categorias cognitivas herdadas da história da colonização, apesar da
nossa percepção da diferença situar-se no campo do visível”.
Identidade no Brasil é um tema complexo, levanta debates espinhosos
e carrega uma ferida muito antiga – a ferida colonial. A história oficial
costuma disfarçar esse lado grotesco, feito de mortes e invasões, por
homens que chegaram sem avisar, usando os pés para calçar botas que
chutavam corpos dóceis e corpos escravizados, laçando e estuprando
mulheres negras e indígenas. Só podemos pensar identidade no Brasil como
criação de homens brancos para gerar mais privilégios de uns contra o
enfraquecimento das outras múltiplas vozes, com diversos povos e etnias.
Todos esses grupos foram mantidos na invisibilidade, mas suas dores e
perdas se transformaram em canções, pinturas, danças, comida e poesia.
Depois da quebra do monopólio de acesso aos meios e das possibilidades
geradas com as políticas públicas, e fortalecidas com as novas tecnologias,
o audiovisual se tornou um importante canal de manifestação de ruptura
com o padrão estabelecido.
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Como lembra o líder e pensador indígena Ailton Krenak, “precisamos
de mais narrativas”, para assim evitar o perigo da história única. A defesa
contra aquilo que foi construído, as promessas de um progresso que coloca
em disputa diferentes povos que nunca foram escutados.
Esse novo cinema, principalmente depois de 2010 – e que está presente
nos filmes “Tremor-ie (2018), de Elena Meireles e Lívia de Paiva, Era uma vez
Brasília, de Adirley Queiroz (2017), e Voltei!, de Glenda Nicácio e Ary Rosa –,
surge e amadurece sobretudo com as políticas inclusivas do governo Lula,
apontando para uma narrativa que segue pelas vias vicinais da história
brasileira, mostrando novos personagens, novos corpos periféricos que se
reinventam e lutam há 500 anos, trazendo outras formas de olhar o país.
São três filmes que abordam um momento importante da nossa história
recente, quando grupos periféricos, surgidos das mais diversas realidades
oprimidas, gritam para mostrar seu descrédito diante do poder branco
e opressor, falível, forjando uma narrativa pulsante, com a força de suas
dores e uma espera fora do tempo, potencializados pelo autocuidado
que sustenta vidas marginalizadas. Como se faltasse apenas o sopro da
oportunidade de motivação política para convocar o povo que faltava,
trazendo para o centro dos debates esse caldeirão com ingredientes que
integram identidades brasileiras.
Como seria esse novo caminho apontado pelos filmes citados? Como
eles nos direcionam para uma descolonização do inconsciente? Seria
possível fazê-lo pelo afeto? Como captar esse desejo que habita em nós e
torná-lo ação para afetar, tocar, perturbar, atingir?
O sujeito colonial moderno é um que utiliza a maior parte da sua energia
pulsional para produzir sua identidade normativa: angústia, violência,
dissociação, opacidade, repetição... não são mais do que o preço que
a subjetividade colonial-capitalística paga para poder manter sua
hegemonia. (PRECIADO, 2018. Tradução nossa)
Nesses filmes percebemos um olhar que mira o próximo, como se
olhasse para uma nova família e estabelecesse laços para permanecer,
reconhecer-se no outro, partilhar o sensível e planejar estratégias coletivas
de fuga e transformação – destruir o que não foi feito para todos e
imaginar novos horizontes. Talvez esteja aí uma mudança que se processa,
transfigurando a compreensão de direitos humanos para “inteligência
coletiva”.
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Além disso, retomam uma dimensão política de coletividade e
urgência, trazendo um grito que clama pela humanidade perdida, uma
necessidade de retorno à natureza para mergulhar em outras formas de
viver o mundo. A diversidade presente nos personagens contrasta com
o poder instalado e suas câmeras de vigilância. As ações são filmadas
durante a noite, buscando luz nas frestas, em pequenos espaços onde
enxergamos possibilidade de insurgências criativas, novos imaginários e
rupturas.
Assim como novas narrativas são criadas, também novos valores
de troca surgem, como um abraço, uma memória perdida, o coletivo que
trabalha para atirar fogo contra o esquecimento dos grupos identitários e a
memória que os poderes insistem em apagar, o mal-estar da escravidão e
do genocídio indígena. Os três filmes decompõem o país do futuro e forjam
histórias apagadas.
Lembrar, compartilhar, afetar – verbos que contribuem para rasgar a
cortina do poder colonial instaurado e, com isso, possibilitar a abertura da
caixa de pandora de nossas múltiplas identidades. As crises contribuem
para que possamos dar sempre mais um passo rumo ao “reflorestamento
de nossas mentes” (KRENAK).
Ao analisar esse cenário de insurgência apontado nos filmes
estudados, que se evidencia principalmente depois de 2010, diante de
uma crise que levará a outra ainda maior, de golpes, conservadorismos e
a sociedade branca indignada diante desses portões que foram abertos
pelas políticas públicas inclusivas, percebemos os diálogos que os filmes
promovem para encarar discriminações, criando algumas doses de futuro
e invenções ousadas. O audiovisual percebeu esse cenário com muita força
criativa, olhando a política brasileira e desenhando uma polifonia com as
vozes dissonantes, marcando territórios e tempos desarticulados com o
presente, firmando novas posições periféricas. Trouxe os corpos diversos,
de cores quentes, cabelos rebeldes, com gêneros variados, endereços
desconhecidos, descalços, destronados, mas não mais amedrontados.
Corpos que rasgaram o ideal da beleza padronizada do capitalismo, que
clamam por justiça e dignidade, seja saindo às ruas, tentando entender
do que é feita a política, como enfrentando homens da ordem, desafiando
o poder instalado e ocupando territórios. Nesses filmes, um feixe de luz
desenha desejos de novos futuros.
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Houve também uma desarticulação de posições vitimizantes. Vozes
da diversidade se articularam e se fortaleceram nesses filmes, sem perder
coragem para enfrentar a escuridão. O que assistimos é justamente o afeto
e a vontade de enxergar e viver o mundo, “enquanto o céu vai caindo”.
Acertar no continuum da história (BENJAMIN, W.), para que essa introduza
“um novo calendário”, marcando novas passagens, novas insurgências.
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REFERÊNCIAS
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nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999, p.18.
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insurrección – Apuntes para descolonizar el inconsciente. 1ª ed. Buenos
Aires: Tinta Limón, 2019, p. 9-18.
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JESSICA LEMOS
Tudo que a boca come
Fotoperformance
Mosqueiro, PA, 2021 153
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BOLETIM OBSERVATÓRIO
DA DIVERSIDADE
DA DIVERSIDADE
CULTURAL . V.96
CULTURAL
. N.01.2022
CURRÍCULO E DECOLONIZAÇÃO: DISCUSSÕES
INICIAIS NO CAMPO DO TEATRO
(DIREÇÃO TEATRAL- UFBA)
Alexandra Gouvêa Dumas1
RESUMO
O texto versa sobre questões discutidas nos estudos da decolonialiadade
tendo como foco de diálogo teórico e análise o currículo de graduação em
Direção Teatral da UFBA. Percebe-se nesse relevante documento formativo
uma dominação dos conhecimentos de origem europeia em detrimento
das epistemes negras, ignorando de forma incisiva o contexto afrocultural
de localização do curso.
Trazer a temática da decolonialidade para uma reflexão no âmbito
acadêmico é se deparar com a necessidade de um enfrentamento
identitário sociocultural que perpassa a formação histórica universitária
no Brasil. Essa constatação se apresenta como um desafio crítico, já que
temos como base de implementação das instituições de ensino superior,
inclusive dos cursos de artes, o referencial colonizador. Logo, tensionar a
tríade arte-universidade-decolonialidade é fazer o exercício de análise
da origem das universidades brasileiras e perceber os reflexos históricos
nos instrumentos conceituais e operacionais atuantes em seus cursos e
percursos ainda hoje.
O texto em tela tem como intenção levantar algumas observações a
partir de uma leitura sobre um dos documentos basilares na organização
pedagógica do ensino formal, o currículo, especialmente do bacharelado
em Direção Teatral, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), localizado na
cidade de Salvador- Bahia. A análise ficará restrita ao curso de graduação
mais antigo da unidade, Direção Teatral, e se atentará para a identificação
de alguns dos indicadores epistemológicos que fazem parte do seu currículo,
1 Professora da Escola de Teatro da UFBA. E-mail: [email protected]
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dentre eles: as disciplinas (ou componentes curriculares), as ementas e as
bibliografias. Entende-se currículo como um elemento que compõe uma
rede formada por complexos documentos e ações que atuam em mãos
duplas como reveladores e condutores do campo de ensino. “O currículo
está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais
particulares e interessadas (...)” (MOREIRA; SILVA, 2005, p. 8). Trazendo para
o campo mais direto da revisão discursiva e crítica sobre o processo
colonizador brasileiro, o professor Luiz Rufino aponta: “A colonização não
se faz sem que haja um plano de ensino e um currículo que institua a
aprendizagem do ser colonizado via violência e esquecimento de si para
sua transformação em algo permanentemente em desvio e submisso”.
(RUFINO, 2021 p. 22)
Atualmente, estudos que aprofundam reflexões sobre o processo
colonizador europeu ocorrido no século XVI nas Américas e na África vêm
sendo progressivamente discutido em diversas áreas de conhecimento
e, como resultado, vem promovendo, ainda que de forma insuficiente,
revelações e desnaturalizações de ações de caráter colonizadoras
entranhadas na nossa cultura acadêmica. Entretanto, percebe-se um
desequilíbrio no que tange o quantitativo das produções textuais em
artigos científicos acerca do tema e as reformulações efetivas nos
currículos de artes cênicas dos cursos de graduação2 que, por ora, atendem
prioritariamente as determinações exigidas pelos órgãos oficiais federais.
O currículo, como documento orientador de um curso, apresenta-se como
um aparelho que tem uma dinâmica de resposta que não corresponde
ao tempo de demandas advindas da sociedade. Um processo de revisão
curricular, geralmente, passa por longo processo de discussão e elaboração
textual no interior da sua comunidade conduzido por membros do corpo
docente, que o pensa, o elabora e o delibera. Para se pensar um currículo
numa perspectiva decolonial faz-se necessário identificar, perceber e
tentar combater procedimentos arraigados que estão absolutamente
naturalizados nas práxis pedagógica, que passam até como imperceptíveis.
Posteriormente, propor formas, procedimentos metodológicos, conteúdos,
teorias ou mesmo uma outra organização que, porventura, não tenha sido
ainda experimentada no meio acadêmico.
A eficácia do processo de opressão se estabelece, dentre tantas
2 Tomo como base para essa afirmação a análise feita nos currículos de cinco cursos de graduação em Teatro
focando nas disciplinas, ementas e bibliografias.
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questões, através da naturalização e da reprodução de seus mecanismos
conceituais e operacionais. Entrando de forma mais direta no propósito
anunciado no início do texto, compartilho uma indagação condutora
para esse escrito: em que medida os currículos dos cursos de Artes, aqui
circunscrito apenas no curso de Direção Teatral, da UFBA, podem ser
reprodutores de ideias e saberes colonizadores? De que maneira, pilares da
colonização como racismo, patriarcado e elementos de ordem capitalista
podem se apresentar no currículo de Direção Teatral da UFBA?
Disponho a fazer um breve diagnóstico epistemológico do currículo
vigente3, e de pronto, anuncio como resultado a primeira constatação: a
eurorreferencialidade é dominante nas disciplinas, seja nas suas ementas,
seja nos programas e bibliografias básicas. Essa característica marca as
nossas universidades brasileiras que tiveram na sua implementação, nas
primeiras décadas do século XX, vínculos com a elite local, herdeira dos
senhores comandantes europeus, com intuito de formar filhos da classe
detentora do poder em profissões que a beneficiavam. Os modelos europeus
foram determinantes nas formulações das universidades brasileiras e aqui
“a crítica ao eurocentrismo é uma crítica à sua episteme e à sua lógica
que opera por separações sucessivas e reducionismos vários.” (PORTO-
GONÇALVES, 2005, p.3)
Não pretendo, contudo, oferecer um diagnóstico com o pretensioso
(e falacioso) alcance da “única história” (Adichie, 2010) que caracteriza os
ideais da Modernidade, mas sim, me implicando nesse processo de revisão,
contribuir para ampliação epistêmica de uma universidade que represente
cada vez mais a multiculturalidade que a habita, sobretudo através de seu
corpo discente e da ampla sociedade que a abraça.
Considero importante, porém, antes de adentrar na apresentação
da análise, contextualizar o curso em destaque. As graduações em Teatro
da UFBA são consideradas as primeiras em plano acadêmico no Brasil.
Inicialmente se configuraram como cursos livres, até que no ano de 1963,
Direção Teatral passou a ser de nível superior e o de Formação em Ator,
como nível médio que, posteriormente, no ano de 1983, institucionalizou-
se como Bacharelado em Artes Cênicas, com as seguintes habilitações:
Direção e Interpretação Teatral.
3 Projeto pedagógico dos Cursos de Bacharelado em Artes Cênicas (Direção Teatral e Interpretação Teatral) e
Licenciatura em Teatro da Universidade Federal da Bahia, aprovado pelo Conselho Acadêmico de Ensino 04/06/2014,
implementado no semestre 2015.1 e ajustes aprovados em 04/11/2015. Disponível em <http://teatro.ufba.br/wp-content/
uploads/2013/12/PP-Escola-de-Teatro-UFBa-2014.pdf>
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O curso de Direção Teatral, que oferece cerca de dez vagas por
ano, tem a carga horária total de 2.924 horas, e é dividido em três etapas
subsequentes: Propedêutica, composta por “disciplinas indispensáveis para
a introdução ao estudo sistematizado do teatro” (Projeto pedagógico, 2014, p.
17); Consolidação, com disciplinas que “garantem a preparação dos alunos
para a prática autoral da criação em teatro”. (Idem) e a Profissionalizante,
composta por disciplinas “que simulam a prática profissional”. (Idem). São,
no total, vinte e cinco disciplinas entre obrigatórias, optativas e livres.
Do total dos componentes, trago primeiramente um recorte que
engloba um conjunto representativo de disciplinas presentes em diversos
cursos de graduação em Teatro no Brasil, seja nas licenciaturas ou nos
bacharelados, que são as “Histórias”. No curso aqui analisado, são três,
cada uma com a carga horária de 68 horas, sendo elas: 1) História do Teatro
Ocidental da Antiguidade Clássica ao Romantismo; 2) História do Teatro
Ocidental Moderno e Contemporâneo e 3) História do Teatro no Brasil e na
Bahia.
Ao iniciarmos a observação pelo nome do primeiro componente
citado, ofertado aos que ingressam no primeiro semestre do curso,
percebemos um ponto crucial nas discussões da decolonialidade: a crítica
ao eurocentrismo. O Teatro Ocidental que aparece no título refere-se a
um território específico do Ocidente, o europeu, e este é tomado como
medida totalizante. Na ementa há uma intencionalidade crítica quando
traz: “Abordagem crítica e analítica da história do teatro e da literatura
dramática no ocidente, da antiguidade clássica ao século XVIII.” Porém,
no item Programa, os pontos que o compõem corroboram a referência
euroexclusivista que traz marcos temporais dos territórios culturalmente
dominantes: “Teatro clássico. Teatro romano. Teatro de mistérios e festas
medieval. Renascimento e teatro. Teatro barroco. Teatro elizabetano.
Commedia dell Arte. Classicismo francês. Teatro romântico.”
A Bibliografia Básica corrobora a mundialização “travestida de neutra
e universal” (Bernardino-Costa; Grosfoguel, 2016, p. 20) composta pelas
obras: História mundial do teatro, de Margot Berthold (2000), Mestres do
teatro, de John Gassner (1974) e A tragédia grega, de Albin Lesky (1971), obras
consideradas referências na área e que corroboram os cânones europeus.
A primeira é de abrangência territorial ampliada, porém no capítulo
intitulado “Teatro Primitivo” aparece uma ação de caráter dominador
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quando afirma que: “O raio de atuação do teatro compreende desde a
pantomima de caça dos povos da era glacial até as categorias dramáticas
da atualidade.” Ao colocar o teatro como modelo para tudo que corresponde
a movimentação cênica humana desconsidera-se as estéticas e éticas
próprias de cada legado cultural. Dessa forma, o teatro europeu se coloca
sobre as múltiplas expressões de caráter cênico, impondo-se como: “tudo
é teatro”. Porém, essa abrangência da conceituação do que é teatro não
condiz com a restrição territorial quando observamos quem diz, quem
legitima, quem pensa e quem determina o que é teatro. São os grandes
centros acadêmicos e artísticos europeus, sobretudo os franceses, ingleses
e alemães, que publicam e difundem suas ideias que, inclusive, referenciam
os cursos de teatro no Brasil, assim como são desse território as principais
técnicas corporais, de poéticas teatrais trabalhadas. Destarte, é já na
entrada do curso que o futuro diretor ou a futura diretora de Teatro com
formação na negra Bahia inicia a “sua” história: pela história dos “outros”
Entretanto, há mais história nesse currículo. Trata-se do segundo
componente denominado História do Teatro Ocidental Moderno e
Contemporâneo. Na sua ementa também se ressalta o caráter “crítico e
analítico” com atenção para o “Teatro no Ocidente do século XIX ao Teatro
Contemporâneo”. O programa demonstra de que Ocidente se trata, pois o
destaque é para a “transição do Romantismo para o Teatro burguês, das
vanguardas históricas e teatro do pós-guerra e, por fim o teatro no século
XXI”. O que pode parecer ainda pouco explícito do recorte ocidental a ser
tratado, as referências não nos deixam dúvida, pois elas estão pautadas
prioritariamente no referencial europeu, sendo elas: o Teatro do Absurdo, de
Martin Esslin (1968), mais uma vez a História Mundial do Teatro, de Margot
Berthold (2000) e Estudos sobre teatro, de Bertolt Brecht (2005). As três obras
básicas são escritas por autores que têm suas principais experiências de
teatro em centros dominantes da cultura europeia.
Como a compreensão mais imediata tida pelas pessoas mais
apartadas dos estudos acerca da decolonialidade é achar que a crítica
ao eurocentrismo visa a eliminação de todo referencial europeu dos
currículos, é importante antecipar que a discussão gira mais na afirmação
de uma pluriepistemologia do que a reprodução monoepistêmica, até
então adotada. Não se trata de desconsiderar a relevância de experiências
teatrais europeias, mas, sobretudo, problematizar a sua preponderância
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
e o consequente apagamento das demais referências que também
constituem a formação cênica brasileira, em destaque as da cultura negra.
Seguimos para o terceiro componente das histórias do currículo de
Direção Teatral: História do teatro no Brasil e na Bahia. Estando na sequência
semestral em terceira posição, significa que, no fluxograma regular (não
constam como pré-requisito), a/o estudante conhece e analisa, através das
duas disciplinas anteriormente citadas, práticas teatrais, prioritariamente,
europeias para se chegar com essa bagagem de conhecimentos no
Brasil e na Bahia. O programa é vasto e faz-se importante apresentá-lo
em sua totalidade: “Programa: Teatro transculturado e matrizes: teatro e
catequese (séculos XVII e XVIII), festas espetaculares e casas de ópera,
matrizes francesas e a constituição do teatro nacional (século XIX), o
Teatro São João na Bahia. Brasilidade no palco: a cena teatral brasileira na
primeira República (temas e práticas cênicas), tentativas de renovação
da cena teatral (atores empresários, dramaturgos e divas), o moderno
teatro brasileiro e a ação dos amadores, o Teatro Experimental do Negro
(grifo nosso), o Teatro Brasileiro de Comédias. Olhares renovados sobre a
brasilidade na cena: a busca da identidade brasileira no teatro da década
de 50, o Teatro de Arena, o Grupo Oficina, o moderno teatro na Bahia (Escola
de Teatro, ensino-encenação e influências), o Centro Popular de Cultura e
o Grupo Opinião, a década de 70 (contracultura, teatro de grupo e criação
coletiva), as décadas de 80 e 90 (teatro e criação colaborativa)”.
A razão de apresentar todos os pontos do programa a serem
abordados nas 68 horas de carga horária total do componente é localizar
uma das únicas referências que se é feita no currículo de Direção Teatral
da UFBA à cultura negra. É dentre o vasto campo histórico do Programa
do componente em tela que o Teatro Experimental do Negro é citado, sem
muitos desdobramentos, como pôde ser visto no parágrafo anterior.
O Teatro Experimental do Negro (TEN), segundo a pesquisadora Evani
Tavares Lima:
(...) foi criado em 1944 com objetivos bem definidos: integrar o negro
na sociedade brasileira; criticar a ideologia da brancura; valorizar a
contribuição negra à cultura brasileira; mostrar que o negro era dotado de
visão intelectual e dotar os palcos de uma dramaturgia intrinsecamente
negra. Ciente da problemática enfrentada pelo negro na sociedade
brasileira e seus reflexos no teatro, o TEN propõe-se a utilizar o palco
como principal veículo de sua ação. A iniciativa de criação desse teatro é
creditada ao seu principal mentor, Abdias do Nascimento. (LIMA, 2010, p. 117)
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Abdias do Nascimento, homem negro, é uma referência nas artes
teatrais pela polivalência de ações em que atuou: da dramaturgia à
militância, das visualidades da cena ao campo político. Tem publicações
na área teatral, artes visuais e em diversas temáticas referentes à negritude.
Saindo do Programa e adentrando a Bibliografia Básica, das três obras
referenciadas não há sequer um livro sobre o TEN, tampouco uma obra
escrita por Abdias do Nascimento.
Indo um pouco além, o TEN e Abdias Nascimento foram descartados
totalmente das referências no item Bibliografias Básicas e no subsequente
Bibliografias Complementares dos currículos dos dois bacharelados
da Escola de Teatro da UFBA, além do de Direção, o bacharelado em
Interpretação Teatral. Esse ato desconsidera um momento histórico relevante
para a comunidade negra, o que traz no bojo desse acontecimento um
apagamento epistêmico, que faz prevalecer a representação entronada
como primordial, no caso a de base europeia. Aliás, há apenas um único
livro referente ao Teatro Negro que consta na Matriz Curricular do curso
de Direção Teatral da UFBA, e está citado em uma única disciplina apenas
como Bibliografia Complementar4. Para Walter Mignolo:
(...) a tarefa do pensamento decolonial é revelar os silêncios epistêmicos da
epistemologia ocidental, e afirmar os direitos epistêmicos dos racialmente
desvalorizados e das opções decoloniais que permitam que os silêncios
construam argumentos para confrontar os que tomam a “originalidade”
como critério máximo para o julgamento final. (MIGNOLO, 2021, p. 28)
O racismo epistêmico vem sendo um ponto nodal nas discussões
decoloniais no âmbito acadêmico. Uma discussão que é também
tema levantado pelo professor José Jorge de Carvalho que denuncia o
funcionamento das universidades brasileiras pautadas num “modelo de
instituição adaptado para uma prática monoepistêmica de transmissão
e criação de conhecimento - quadro que não espelha a diversidade
epistêmica da sociedade brasileira.” (CARVALHO, 2020, p. 20). No caso,
a epistemologia branco-europeia ao ocupar a absoluta maioria de
referências bibliográficas e conteúdos, coloca o diretor ou diretora formado/
da pela Escola de Teatro da UFBA alheio ao seu meio cultural, inclusive, das
culturas negras que marcam a capital baiana, Salvador, cidade que sedia
o curso e que tem na sua população a maior concentração de negros e
negras em relação às demais cidades do país.
4 UZEL, Marcos. O teatro do Bando: negro, baiano e popular. Salvador: P555, 2003.
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Além de ignorar a história e personalidades negras nacionais do meio
teatral, o currículo em tela descarta a contextualização de onde ele acontece,
pois, as práticas culturais de matrizes africanas também não constam como
conteúdos, como pontos do programa, tampouco nas bibliografias. Dessa
forma, forja-se um currículo com uma pseudoneutralidade identitária, mas
que na verdade, é a afirmação de um modelo teatral europeizado que
promove fissuras entre a identidade local e a da poética teatral acadêmica.
São questões extremamente complexas, que envolvem séculos de
dominação e o currículo é apenas um dos pontos desse emaranhado
ideológico. Porém, sendo um elemento condutor formativo de pessoas e
profissionais tem um potencial multiplicador de ideias inegável. Por tal razão,
pensar, repensar, reformular as matrizes curriculares numa perspectiva
emancipatória deve ser um exercício contínuo, pois o documento e suas
tramitações burocráticas tomam parte do tempo e o tempo de agora é um
tempo de urgências, de mobilizações e transformações. O currículo, como
afirma o professor Fausto Antonio “é dimensão material, não é abstração”.
Para ele, esse instrumento “é a cotidianização do conhecimento; é desse
modo que se dá a sistematização do saber”. (2017, p. 45)
Sendo a Escola de Teatro da UFBA um centro relevante no cenário
de formação acadêmica no Brasil, vejo-a como lugar estratégico nas
elaborações curriculares de ações antirracistas. Digo isso, considerando
o contexto cultural onde essa unidade está instalada, num bairro central
da capital baiana, onde corpos, personagens e culturas negras desfilam
histórias, inventam cenas, modos e jeitos de existir. Ao perceber suas
peles e máscaras brancas, a Escola de Teatro da UFBA pode destronar
o seu modelo hegemônico, o monoepistêmico, partir para a construção
de um corpo de múltiplas peles e tons para que outras tantas epistemes
protagonizem suas novas e dignas histórias com novas e justas cenas.
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perspectiva negra. Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1
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no Ensino Superior e na Pesquisa, 2020.
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RUFINO, Luiz. Vence-demanda: educação e descolonização. Rio de Janeiro:
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JESSICA LEMOS
Travessia
Fotoperformance
Cândido Sales, BA, 2020 164
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ENTREVISTA COM JORGE ARMANDO NDLOZY
Colaboração de Wolfgang Pannek1
Por favor, conte um pouco de sua trajetória como artista.
Jorge Ndlozy: Sou bailarino e coreógrafo de dança contemporânea e
de dança tradicional moçambicana. Desde 1999, sou profissional dessa
área das artes. Comecei em 1994 na igreja católica São João Baptista do
Fomento, em que fazia parte de um grupo de adolescentes. Eu vinha de uma
família na qual havia certa influência artística que passou de geração em
geração. Meu pai, quando jovem, fazia parte de um grande grupo de dança
macuaela2. Meu irmão, Ndlozy3, virou um renomado escultor. Na família havia
esse espírito, essa herança. Na igreja me deram espaço. Éramos dois amigos
curiosos e gostávamos do desafio de conhecer melhor e de desenvolver a
dança. As danças que eu desenvolvia e ensinava eram inventadas por mim
e não tinham nome. Aos poucos, começamos a participar de concursos
de dança e passamos a ganhar competições. Em Moçambique, havia e
ainda há poucas companhias de dança. Acabei entrando na Companhia
Municipal de Canto e Dança da Matola, a segunda maior do país, onde
comecei a praticar as danças tradicionais com mais frequência. Aprendi as
danças tradicionais de Maputo e de todas as províncias de Moçambique,
como xigubo4, nondje5, mapiko6, ngalanga7, chioda, khonza, mutxongoi,
1 A entrevista foi realizada por Sharine Melo, pelo Google Meet, em 13 de maio de 2022. A transcrição foi revisada e
editada por Jorge Armando Ndlozy, com a colaboração de Wolfgang Pannek.
2 Dança do Sul de Moçambique, influenciada pela cultura da África do Sul, a princípio executada por mineiros,
depois praticada por homens em geral, acompanhada de cantos em que se satirizam aspectos da vida social (como,
por exemplo, decisões patronais, conduta das mulheres e infelicidades conjugais). Fonte: <https://www.infopedia.pt/
dicionarios/lingua-portuguesa/macuaiela>. Acesso em 05 Jun. 2022. (Nota dos editores).
3 Ndlozy é o nome artístico do escultor Sebastião Armando Jonze.
4 Tradicionalmente dançada para festejar as vitórias militares e para preparar os guerreiros para o combate.
Fonte: <https://www.mozambiquehistory.net/arts/politica_cultural/19831100_semana_da_cultura.pdf>. Acesso em 05 Jun.
2022. (Nota dos editores)
5 Surgiu durante a luta armada de libertação nacional, como evolução da dança Limbondo, de Cabo Delgado.
Fonte: <https://www.mozambiquehistory.net/arts/politica_cultural/19831100_semana_da_cultura.pdf>. Acesso em 05 Jun.
2022. (Nota dos editores)
6 Mistura de dança, teatro e música que cultiva a história e os signos do povo Maconde ao mesmo tempo que
mantém o diálogo com o tempo atual. Após a independência de Moçambique, durante o período socialista, foi usada
como elemento cívico. <http://evento.abant.org.br/rba/30rba/files/1465940694_ARQUIVO_MapikoIdentidadeMaconde-
MarianaCondeRhormensLopes-Trabalhocompleto(artigo).pdf>. Acesso em 05 Jun. 2022. (Nota dos editores)
7 Tradicional do distrito de Maputo, celebrava o regresso dos guerreiros, após uma batalha na qual haviam sido
vitoriosos.<https://sopra-educacao.com/2021/02/20/dancas-tradicionais-de-mocambique/>. Acesso em 05 Jun. 2022.
(Nota dos editores).
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wadjaba8, ganda9, semba10, niketche11, chimgomana12 e makhuae. Nessa
companhia aprendi tanta coisa, com tanta rapidez, que acabei fazendo
espetáculos em outras regiões do país. Conheci professores de outras
companhias, participei de workshops com outros coreógrafos, estabeleci
relações artísticas.
Quando surgiu um novo grupo de dança contemporânea chamado
Culturarte, participei de uma audição. Fui aprovado e participei da criação
de uma peça de dança contemporânea de Titolo Ingaco, coreografada
por George Khumalo, ambos sul-africanos. Na sequência, fiz workshops
com vários professores internacionais, em Moçambique, em Portugal, na
Alemanha e na Bélgica. A seguir, participei de uma outra audição promovida
pela Culturarte, desta vez para o primeiro processo de formação em dança
contemporânea em Moçambique. Faço parte desta primeira geração.
Essa formação durou quatro anos e ocorreu na Culturarte, na escola de
dança contemporânea PARTS, na Bélgica, e no Mark Theater, na África
do Sul. Faço parte da primeira geração de dançarinos contemporâneos
moçambicanos. Durante esse período, criei meu primeiro solo, Falando
de mim. Esse solo recebeu um convite para o festival internacional Danse
l’Afrique, em Paris, tendo aberto o festival. Fiz apresentações em vários
países, como Alemanha e Bélgica. Nesses lugares pude aprimorar minha
dança e entender melhor o corpo e o pensamento da dança. A minha
linhagem é fazer algo meu, não de João, de Zezé. É trazer a minha própria
marca. É onde consigo, talvez, incorporar a minha experiência e identidade.
Em 2005, a Taanteatro Companhia passou por Moçambique e, durante
sete semanas, realizou um trabalho em colaboração com a Companhia
Municipal de Canto e Dança da Matola. Sob direção e com coreografia
de Maura Baiocchi, fizemos uma peça com o título Xiphamanine, derivado
do nome de uma árvore chamada mphma. Essa árvore tem uma história
de grande significado colonial. Havia um régulo muito temido, chamado
8 Dança originária do norte de Moçambique, antigamente executada em rituais de iniciação masculina.
Desenvolveu-se durante o período de luta armada pela libertação nacional. <http://fcsh.unl.pt/mozdata/files/
original/6/3405/MOZ_256.1.pdf>. Acesso em 05 Jun. 2022. (Nota dos editores)
9 Originária do litoral cio Lago Niassa, no norte de Moçambique, era praticada pelos homens como manifestação
de alegria pelos sucessos obtidos na produção agrícola e na pesca. Durante a Luta Armada de Libertação Nacional, foi
usada como instrumento de mobilização popular e de esclarecimento político pelo conteúdo revolucionário das suas
canções. <http://fcsh.unl.pt/mozdata/files/original/6/3405/MOZ_256.1.pdf>. Acesso em 05 Jun. 2022. (Nota dos editores)
10 Dança originária da Província de Sofala, no centro do País, exprime o sentimento dos jovens apaixonados. <http://
fcsh.unl.pt/mozdata/files/original/6/3405/MOZ_256.1.pdf>. Acesso em 05 Jun. 2022. (Nota dos editores)
11 Dança tradicional originária de Gilé, que ganhou muita força no trabalho forçado nas plantações de chá sob o
controle das grandes companhias nos tempos coloniais. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Niketche>. Acesso em 05 Jun. 2022.
(Nota dos editores)
12 Originária da província de Gaza, é uma dança tradicionalmente feminina. <http://fcsh.unl.pt/mozdata/files/
original/6/3182/MOZ_294.2.pdf>. Acesso em 05 Jun. 2022. (Nota dos editores)
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Ngungunhane (1850 a 1906), o último imperador da província de Gaza, que
resistiu ao Império de Portugal e foi exilado à força. Antes de enfrentar o
exílio na Terceira Ilha dos Açores, onde também morreu, Ngungunhane
passou pela fortaleza da capital, perto do porto, onde havia uma árvore
chamada mphma. Lá ele se sentou em uma pedra, embaixo da árvore.
Foi o último lugar onde se sentou em Moçambique. É um lugar histórico. A
pedra está lá até hoje e essa árvore não se corta. Diz a lenda que, quando
ela é cortada, passado um dia, o galho está de volta no mesmo lugar. Os
turistas que vêm para Moçambique sempre vão visitar esse local.
No espetáculo Xiphamanine - o eterno originar da árvore mphama,
apresentado no Teatro Cine África, fiz um solo com duração de 20 minutos.
Durante três meses a gravação desta obra foi reprisada pela TVM (Televisão
de Moçambique). Posteriormente, fiz contato com a Taanteatro Companhia.
Pensamos em trabalhar juntos, mas ainda não havia condições para realizar
esse plano. Então, fiz outros trabalhos como coreógrafo e em colaboração
com outros artistas, em Moçambique e internacionalmente. Participei de
concursos e ganhei alguns prêmios.
Em 2016, recebi o convite para participar das comemorações dos 25
anos da Taanteatro Companhia, em 2017, integrando o elenco da peça
Mil e um Platôs. Foi uma linda peça. Fizemos quarenta apresentações
em teatros de São Paulo. Na sequência, retornei para Moçambique. No
ano seguinte, voltei novamente ao Brasil, por três meses. Sob direção de
Wolfgang pannek, criamos Mensagens de Moçambique, que estreou na
Sala René Gumiel da Funarte SP. Passei a integrar a Taantatro Companhia.
Em 2019, concorremos em um edital do Programa de Fomento à Dança
para a cidade de São Paulo. Ficamos em primeiro lugar. Desde então,
estreamos outras peças, como Chissano - rito para Mabungulane (2020) e
Hamlet em Necropolis (2021), também apresentados no Complexo Cultural
Funarte SP. Além disso, realizamos projetos de cinema, como O Teatro e
a Peste de Antoin Artaud (2020) e Apokálypsis (2021). Desde 2021, junto à
Taantearo Companhia, integro também a equipe de curadoria do Festival
Internacional de Ecoperformance.
Como você vê a influência colonial na arte e nos circuitos artísticos de
Moçambique e do Brasil?
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Jorge Ndlozy: Em primeiro lugar, é preciso dizer que minha percepção
artística ainda não incorporou por inteiro o tema do colonialismo no
Brasil a ponto de poder falar desse assunto com muita propriedade. Mas
posso falar um pouco sobre Moçambique. Em comparação ao Brasil que
se tornou independente de Portugal há muito tempo, a independência
moçambicana é mais recente. Nessa perspectiva histórica, estamos a
uma distância enorme do Brasil. Ainda hoje em dia, sentimos uma grande
influência colonial portuguesa em Moçambique. A colonização ainda existe
e atua em nós, por exemplo, em forma da língua oficial do país, do sistema
educacional e das instituições políticas. Por outro lado, tivemos uma
verdadeira revolução anti-colonial. No Brasil, essa ruptura violenta, através
da luta armada e pela independência política e cultural, não ocorreu.
Além disso, a população originária bem como o governo pós-colonial de
Moçambique são formados por negros. Por consequência, a população
negra moçambicana não se encontra na situação minoritária e racista
caraterística dos negros no Brasil.
Na revolução anti-colonial moçambicana, vários artistas tiveram um
papel fundamental. O pintor Malangatana Valente Ngwenya e o escultor
Alberto Mabungulane Chissano, para falar dos mais famosos, não apenas
retrataram a luta contra o colonialismo mas também valorizaram o
povo moçambicano e sua cultura. Com frequência, as obras de artistas
de Moçambique expressam situações existenciais e sociais das diversas
tribos e das famílias de nosso país, falam das crenças e práticas de nossos
ancestrais. Quando digo nossos, falo também de mim, de meus pais, meus
avós, etc. Meu pai foi militar e lutou contra a colonização. Foi um dos antigos
combatentes pela libertação do país. Essa experiência da guerra, com suas
perdas e conquistas, é uma das coisas que não saem de nossos trabalhos.
Falo de modo geral. A maioria das danças ou expressões corporais reflete
esse sentimento ligado à luta pela liberdade. É uma forma de criarmos
uma paz para nós. Os artistas mais reconhecidos de Moçambique traziam
essa energia pesada e pensaram em como transformá-la em algo que
nos fosse benéfico. O espetáculo Mensagens de Moçambique, por exemplo,
também traz essa questão. Aborda a possibilidade de superação da guerra
e da luta violenta, sua transformação em algo que transmita a paz.
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Como a arte pode contribuir positivamente com os movimentos negros,
feministas, indígenas, LGBTQIA+, entre outros?
Jorge Ndlozy: Conforme eu disse acima, as situações de Moçambique
e do Brasil são distintas e cada lugar deve adotar estratégias políticas e
artísticas que correspondam a sua respectiva situação. Em Moçambique, a
população originária não é minoria, nem minoritária. E lá, atualmente, não
existe essa divisão entre negros e brancos. Existem também movimentos
feminista e LGBTQIA+, mas estes se fazem sentir menos na vida social e no
debate público do que no Brasil.
Apesar dessas diferenças geográficas, históricas e culturais, a arte
sempre contribui para a liberdade de expressão. Antigamente, na era
colonial, essa liberdade não existia. Não podíamos sair e abrir a boca quando
quiséssemos. Hoje em dia, a arte conquistou um espaço de expressão para
os mais diversos movimentos. A arte se tornou um lugar em que qualquer
pessoa, independentemente de sua origem e de suas características pode
desenvolver seus ideais e abraçar o mundo. Nesse sentido, e apesar de
não ser um lugar de mero aconchego, fazer arte deve ser prazeroso e, ao
mesmo tempo, um combate benfeitor.
Em que sentido você diz que as minorias não são muito presentes no
debate público de Moçambique? Além da população negra, que hoje é
majoritária, há as mulheres, a população LGBTQIA+...
Jorge Ndlozy: Eu não disse que não há minorias ou movimentos sociais
em Moçambique. O que tentei dizer é que ser negro em Moçambique
e ser negro no Brasil são duas realidades distintas. Na atualidade, em
Moçambique, onde a população originária negra forma a maioria e
exerce todas as funções sociais possíveis, inclusive e sobretudo o governo,
uma pessoa dificilmente será discriminada por ser negra. Os primeiros
movimentos feministas moçambicanos surgiram junto à guerra anti-
colonial e acompanharam a luta pela libertação nacional entre 1964 e
1974. Mais recentemente emergiram também manifestações políticas em
prol da população LGBTQIA+, ainda que menos expressivas e bem menos
aceitas quando comparadas à mobilização no Brasil.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Na sociedade, de certa forma, a discriminação, o racismo e o preconceito
ainda existem…
Jorge Ndlozy: Evidentemente, como em qualquer sociedade, existem a
discriminação e o preconceito na sociedade moçambicana. Mas, no que
diz respeito ao racismo, a situação é diferente do Brasil. Para mim, cada
um é cada um. Cada um é aquilo que é, com seu respectivo modo de vida.
Ninguém é, nem precisa ou pode ser como um outro é. Obviamente, a arte
pode e deve expressar o ser e viver de indivíduos, grupos e movimentos
minoritários. É uma das funções tradicionais da arte, que contribui para a
reflexão, a transformação e o enriquecimento democrático da vida social
através da diversidade de seus agentes, temas e formas expressivas. Mas,
ao meu ver, a abrangência da arte vai além de pautas identitárias.
Sua última performance é inspirada em Alberto Mabungulane Chissano.
Poderia falar um pouco sobre a obra deste artista? Qual a sua importância
atual?
Jorge Ndlozy: Chissano foi o melhor e mais famoso escultor de Moçambique.
Foi também o mestre de meu irmão. Além disso, era nosso vizinho, quase
familiar. A distância entre sua casa e a nossa casa é de 300 metros. Como
eu falei, ainda tenho essa carga ancestral. O escultor Chissano foi uma
figura culturalmente importante de Moçambique. Foi escultor e político
ao mesmo tempo. Mesclado. Antigamente, o político se associava ao
artista. Chissano trazia histórias e problemas da era colonial e do combate
anticolonial, mas em forma de arte. Deixou um legado fundamental
para o período pós-colonial, com registros de expressões muito fortes e
politicamente importantes. Em suas obras retratava os acontecimentos
sociais. Era abstrato na forma, mas o conjunto da obra referia-se aos fatos
reais. Cada escultura contava e encarnava uma história. Falava sobre o
massacre de nossos ancestrais, sobre seu lugar de origem, sobre a época
em que viveram e sobre seu próprio presente, falava de sua visão sobre
a geração vindoura. Os assuntos que exprimia através de suas esculturas
me interessavam muito, não somente porque ele era próximo de minha
família, mas também porque a questão da luta, tão presente em sua obra,
tem a ver com a história de meu pai, que sofreu bastante na guerra da
170
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
independência. Chissano parou de estudar por causa da arte. Foi expulso
da escola por dançar ngalanga, uma dança tradicional, fora da sala de
aula. No espetáculo Chissano - rito para Mabungulane, quase no fim,
minha dança faz referência a esse fato. Na era dos portugueses, não era
permitido fazer danças tradicionais de Moçambique. Éramos obrigados a
dançar o vira e o fado, por exemplo. O fato de estar dançando a ngalanga
levou a sua expulsão da escola. Chissano parou de estudar, mas virou
escultor. E, em sua escultura, a dança está presente e vem de longe. Suas
obras trazem corpos em conexão com outros corpos, o corpo ancestral,
mas também o corpo africano em confronto com o corpo cristão.
É possível traçar relações entre o trabalho de Chissano e os atuais
movimentos decoloniais?
Jorge Ndlozy: A escultura de Chissano emergiu num período da história
repleto de confrontos armados extremos entre as forças de opressão
colonial e os movimentos de resistência anti-colonial. Desde então,
passaram-se cinquenta anos e as caraterísticas do combate mudaram.
Mas a herança colonial persiste mesmo que sua violência se expresse
de forma menos explícita do que no passado. Em sua época, a obra de
Chissano articulou um discurso anticolonial por meio de uma linguagem
artística contemporânea de matriz africana.
Em comparação, os discursos dos movimentos decoloniais da
atualidade quase sempre estão impregnados por lógicas e formas que
o próprio sistema colonial criou. Sob esse aspecto, a obra de Chissano
levanta um desafio: como é possível superar o colonialismo sem se deixar
capturar por sua linguagem? No espetáculo Chissano, me inspirei nesse
escultor. Reinventei sua obra, mas sem tentar imitar sua linguagem, à
minha maneira e através da dança. Quando trabalho não pretendo atingir
nem perder o que já existe. Procuro fazer algo entre a ancestralidade e
a contemporaneidade, de modo que gerem um único momento. Não
gosto muito de falar em atualidade porque, às vezes, me faz pensar que o
que você fez ontem já não existe, já não é nada. O respeito, por exemplo,
pertence à ancestralidade e é algo que traz disciplina, mas já não existe.
Quando focamos na atualidade, acabamos deixando coisas ricas para
trás.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Em que outros artistas e obras você se inspira?
Jorge Ndlozy: Em Chissano, em Ndlozy, dois escultores. Eu me inspiro muito
na escultura de meu irmão, não por ser meu irmão, mas por ter feito obras
de que eu gosto e com as quais trabalho. Dois exemplos dessas obras são
Manuna e Olhe também pelos lados. Eu sigo certos aspectos das obras
desses artistas, pequenos fragmentos, não o trabalho em sua totalidade.
Sigo micro-temas e, depois, trabalho neles. Também havia um dançarino
que me inspirava muito, mas desde que me aprimorei na área da dança,
não procuro nenhuma pessoa ou obra como modelo para me inspirar.
Pessoalmente, prefiro experimentar e fazer. Me inspiro pelo pensamento,
sonhando de diversas formas. É claro que, às vezes, busco alguma
informação que eu possa vincular a esse pensamento. Na maior parte das
vezes, é assim.
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MIKA
Corpo Casca
Colagem têxtil
Teresina PI, 2020 173
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DESCONSTRUIR DISCURSOS E PRÁTICAS
NATURALIZADAS SOBRE OPRESSÕES E
IMPUNIDADES
‘Y LA CULPA NO ERA MÍA, NI DÓNDE ESTABA, NI CÓMO VESTÍA’
Solange Borelli1
Cecilia Setti2
RESUMO
A partir do ato performático do coletivo artístico LasTesis, propomos uma
discussão preliminar sobre os mecanismos internos de subalternidade
e a produção de comportamentos naturalizados, como a violência de
gênero em suas múltiplas formas, na perspectiva de pensadoras, ativistas
e feministas, a fim de obtermos perspectivas epistemológicas que nos
levem a desconstruir discursos e práticas naturalizadas sobre opressões e
impunidades.
Palavras-chave: feminismos decoloniais, violência de gênero, patriarcado.
“El patriarcado es un juez, que nos juzga por nacer / y nuestro castigo es
la violencia que ya ves / Es feminicídio / Impunidad para el asesino / Es la
desaparición /Es la violación / Y la culpa no era mía, ni dónde estaba, ni
cómo vestía / El violador eras tú / Son los pacos / Los jueces / El estado/ El
presidente / El estado opresor es un macho violador / El violador eras tú.”
(LASTESIS, 2019)
Introdução
Antes de qualquer estruturação do pensamento do que vamos
expor aqui, neste ensaio reflexivo, precisamos dizer que somos e estamos
diretamente afetadas por nascer e viver numa sociedade que esconde
a brutalização, o abuso e a desumanização que a colonialidade de
gêneros implica. Num país que mata indiscriminadamente gente preta,
indígena, imigrantes, prostitutas, pessoas LGBTQIA+, empobrecidas e
moradores de bairros periféricos. Mata mulheres que escolhem seus
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
próprios caminhos, afetos e modos de viver. Mulheres que carregam no
corpo marcas da misoginia, da violência doméstica, da exploração, da
solidão e da depressão, marcas próprias de um sistema patriarcal que
insiste em manter adestrados os corpos para garantir a subalternidade
sob controle. Nesse contexto e a partir do ato performático inaugurado
pelo coletivo artístico chileno LasTesis, propomos instaurar uma discussão
preliminar sob a perspectiva de ativistas e teóricas feministas decoloniais,
que buscam nas suas militâncias desconstruir os mecanismos internos de
subalternidade e a produção de comportamentos naturalizados, como a
violência de gênero em suas múltiplas formas.
O coletivo LasTesis
Em 20 de novembro de 2019, nas ruas de Valparaiso, a 120 quilômetros
da capital chilena, quatro mulheres artistas, integrantes do coletivo LasTesis,
criaram um ato performático “Un violador en tú caminho”. Em questão
de dias, a performance viralizou e se tornou um fenômeno internacional,
interpretada por outras mulheres em dezenas de cidades ao redor do
mundo, transformando-se em um poderoso hino feminista que denuncia
a violência de gênero.
O coletivo LasTesis, formado por Daffne Valdés Vargas, Paula Cometa
Stange, Lea Cáceres Díaz e Sibila Sotomayor Van Rysseghem, se dedica a
pesquisar as artes performativas enquanto hibridização e choque entre
linguagens (teatro, performance, dança, artes visuais etc.), em diferentes
proposições de articulação entre arte e vida, envolvendo dimensões
políticas, existenciais e culturais mais amplas.
A performance “Un violador en tú caminho” nos propõe observar com
outras lentes os mecanismos internos de subalternização, caracterizadas
por uma relação hierárquica de poder, onde a desigualdade e a exclusão
das mulheres manifestam-se e são explicadas com base nas diferenças
físicas, sexuais e biológicas, construindo assim, uma identidade feminina
com definições de papéis, colocando-a como figura passiva e submissa,
criando assim o espaço propício para o exercício da opressão masculina.
A performance “Un violador en tu camino” encontra-se em vários
canais do YouTube. Aqui selecionamos um dos registros feitos, no día
contra a violência contra as mulheres, que ocorreu no Centro de Santiago,
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no dia 25 de novembre de 2019, com registro e edição de NOA (Nosotras
Audiovisuales): https://www.youtube.com/watch?v=aB7r6hdo3W4.
Pensar a Mulher a partir de Mulheres: Maria Lugones, Lélia Gonzalez e
Julieta Paredes
É importante desde já, desmistificarmos o que representa ser mulher,
que não se limita a pré-determinações biológicas, características físicas,
culturais ou da própria reprodução. Ser mulher num território colonizado é
ser atravessada pela subalternidade, tanto quanto ser mulher não branca,
não cisgênero, não magra, não feminilizada, homossexual, trabalhadora
não formal, enfim, não correspondente aos modelos hegemônicos do que
se pensa e se projeta como referência para o ser mulher.
Para alimentar essa discussão trouxemos a contribuição de autoras
mulheres para o debate sobre a realidade social latino-americana com
suas críticas a uma visão de mundo eurocêntrica. Trata-se de pensadoras
e ativistas que abrem uma discussão importante sobre as diversas
implicações que colocam a mulher num território de subalternidade. Maria
Lugones, Lélia Gonzalez e Julieta Paredes, apresentam os feminismos latino-
americanos a partir de três perspectivas: a do feminismo decolonial, do
feminismo afro-latino-americano e do feminismo comunitário.
Direcionamos nossa análise para as produções reflexivas de
mulheres latino-americanas, que são pouco referenciadas no universo
acadêmico, especialmente dentro das ciências sociais, o que demonstra
uma tendência a invisibilização de produções de mulheres que pensam
sobre as mulheres. Assim, obras como: “Rumo a um feminismo descolonial”
de María Lugones (2014), “Descolonizar as lutas: a proposta do Feminismo
Comunitário” de Julieta Paredes Carvajal (2018) e “Por um feminismo afro-
latino-americano” de Lélia Gonzalez (2020), nos trazem contribuições
imprescindíveis, reivindicando por um movimento emancipatório que
respeite e contenha em si os debates sobre colonialidade, raça, classe e
gênero.
Frente a isso, adentramos primeiramente, ainda que de forma
bastante concisa, o conceito de gênero, na perspectiva de Maria Lugones
(1944-2020), socióloga, professora, feminista e ativista argentina radicada
nos Estados Unidos, na tentativa de compreender como a subordinação
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é reproduzida e a dominação masculina é sustentada em suas múltiplas
manifestações, buscando incorporar as dimensões subjetiva e simbólica de
poder para além das fronteiras materiais e das conformações biológicas.
Quando María Lugones publica o ensaio “Colonialidade e Gênero”
(2008), inaugura uma discussão inserindo a categoria gênero no
pensamento decolonial. Para a autora, o sistema de gênero surge quando o
discurso moderno colonizador estabelece a dicotomia fundadora colonial:
a classificação entre o humano e o não humano. Enquanto humano, o
colonizador. Enquanto não humanos, os nativos indígenas e, um pouco
mais tarde, as populações escravizadas, vistas como animais primitivos.
Na categoria não humano, a atribuição de gêneros está ausente, o que
não chamou atenção de autores decoloniais.
É esse o passo à frente que deu nome ao feminismo decolonial: o
gênero como elemento estruturante da colonialidade, como categoria
criada pelo vocabulário colonial e que não faz propriamente parte das
dinâmicas pré-coloniais. O feminismo decolonial denuncia a imbricação
estrutural das noções de heteronormatividade, classificação racial e
sociedade capitalista.
Lélia Gonzalez (1935-1994), ativista e intelectual negra brasileira,
que denunciou o racismo e o sexismo como formas de violência que
subalternizam as mulheres negras, nos propõem olhar sob suas análises
enquanto antropologia, sociologia, filosofia, psicanálise e sobretudo,
considerando sua própria vivência de mundo enquanto mulher negra
brasileira. Além de militante pelo movimento de mulheres negras, Lélia
Gonzalez se apresenta ao mundo como uma brilhante intelectual com
estudos pioneiros sobre a cultura negra no Brasil, deixando um legado de
extrema relevância para análise das relações de raça, gênero e classe.
Ao recorrer a abordagens psicanalíticas para compreender as
relações fundamentadas na linguagem (falada e compreendida), Gonzalez
batizou de “neurose cultural brasileira” o fenômeno de dominação da
população negra no Brasil através principalmente do “mito da democracia
racial”, termo grifado pela autora e atribuído à obra de Gilberto Freyre,
onde o escritor explora uma suposta igualdade entre brancos e negros
no Brasil produzida pela miscigenação e cordialidade entre os senhores e
seus escravizados, a despeito do racismo praticado no estrangeiro. Para
Gonzalez (1984), a difusão do mito da democracia racial, que tem o racismo
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em seu cerne por excelência, quando somada às práticas sexistas, produz
não só efeitos de segregação e domesticação, mas de violência contra
esses corpos de mulheres negras.
A autora trata ainda do que denomina como “noção de consciência
e memória”, em que a primeira implicaria em desconhecimento,
encobrimento, alienação e no próprio saber enquanto discurso ideológico
que serve de base para o discurso e prática de branqueamento e da
chamada “democracia racial”. Enquanto a segunda comprime em
si a história não escrita, o não saber que conhece e a própria verdade
estruturada como ficção; induzida de forma oculta através do que Lélia
nomeia como “jogo dialético” entre consciência e memória.
Em seu artigo “Cultura, etnicidade e trabalho” (1979), Gonzalez realça a
definição de ideologia em que se ampara através de seu contemporâneo, o
filósofo marxista argelino Louis Pierre Althusser, destacando que o exercício
da ideologia na sociedade de classes é uma representação tendenciosa
da realidade, utilizada exatamente para manipular e manter os homens nos
lugares que “devem” ocupar para manutenção do sistema de exploração
de classe no lugar de torná-los conscientes de sua realidade material.
Gonzalez (1979) ainda destaca o quanto a mulher negra foi precursora
do seu gênero ao entrar no sistema produtivo ainda no período colonial
brasileiro, operando a reprodução social e sexual do trabalho. Primeiro
como mucama, que emerge para o papel de doméstica (termo que para
a autora comprime em si mais do que a própria função de atividades
domésticas propriamente) no período de proletarização, exercendo
funções de sujeição (à classe média fora de casa e aos homens dentro de
casa), não somente em seu próprio lar, mas fazendo o trabalho reprodutivo
no lugar de outra mulher (branca burguesa) que conseguiu conquistar seu
“direito” de estudar ou trabalhar.
No entanto, a mulher negra nunca teve a labuta como direito,
mas como condição imposta, sem a possibilidade de escolha. A autora
ainda denuncia a produtificação da mulata, que se torna um importante
“produto de exportação” da nação brasileira, especialmente no carnaval,
fortalecendo o nocivo mito da democracia racial, mascarando a realidade
racista brasileira ao mesmo tempo que a reafirma com seus atos.
Destacamos ainda o caráter de objetificação do corpo da mulher negra
através dessas duas vias, uma enquanto objeto de superexploração para
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acumulação do capital e outra enquanto objeto de consumo da burguesia
para seu prazer.
Essa divisão espacial, ideológica e até cultural entre dominados
e dominadores, alocados como lugares naturais, segregam de forma
estrutural, negando aos dominados os melhores níveis de educação e os
mais altos postos de trabalho, possibilitando-lhes participação mínima
nos processos político, econômico e cultural, o que serve a um sistema de
acúmulo de capital e de consumo de pessoas como se fossem objetos, de
forma absolutamente normalizada pelo Estado e pela sociedade (GONZALEZ,
1979), amalgamando-se no que hoje nomeamos como racismo estrutural.
O pensamento de Lélia explicita a perversidade do racismo na
estratificação social brasileira, evidenciando a relevância da categoria de
Raça enquanto uma das camadas de exploração humana, agregando-se
às outras camadas de Classe, Gênero e Imperialismo como determinantes
de relações de subordinação.
Tecendo contribuições que permitem aprofundar e ampliar o escopo
de nossa discussão, Julieta Paredes (1967), indígena do Povo Aymara da
Bolívia, nos instiga pensar através de sua produção cultural e acadêmica,
sua prática enquanto educadora popular, sua militância e ativismo no
feminismo comunitário que, entre outras raízes, a dimensão de patriarcado
teve origem anteriormente ao processo de invasão e colonização do
território ao qual reconhece como Abya Yala, sendo portanto pré-existente
mesmo no modo de vida comunitário dos povos originários dessa terra.
Abya Yala é o nome usado por teóricos e ativistas decoloniais, um
modo de renomear o continente americano, especialmente a América
Latina. Esse termo tem uma origem pré-colonial, na língua Kuna, nação
indígena da região do Panamá, e o seu significado é “terra de vida, terra
madura”. Trazer de volta esse nome é como um ato de resistência à
dominação dos invasores que submeteu a identidade dos nossos povos
originários.
Paredes nos aponta para a existência de uma luta em oposição ao
patriarcado, hoje nomeada como feminismo, muito anterior ao século XVIII
de Alexandra Kollontai ou Simone de Beauvoir, com o acúmulo de sabedoria
correspondente à sua idade, tanto quanto os saqueamentos e opressões
aos quais gerações de mulheres foram expostas.
A autora ressalta ainda a distinção entre machismo e patriarcado,
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atribuindo ao segundo a matriz das opressões, discriminações e violências
que oprimem a humanidade e a natureza, constituído sobre os corpos das
mulheres; enquanto coloca o primeiro como um dos elementos constitutivos
desse sistema, podendo inclusive ser reproduzido pelas próprias mulheres
(PAREDES, 2017). Demonstra que os indivíduos, ao reproduzirem o machismo,
não deixam de estar subordinados ao patriarcado que promove essa
prática.
A autora vai além, caracterizando a noção de gênero como mais
uma possibilidade para o encarceramento de indivíduos, tanto quanto
as divisões de classes sociais. Defende que a liberdade de expressão
sexual e social está intimamente ligada à superação dos nossos princípios
e valores ligados ao gênero. Cenário esse que colocaria em xeque as
próprias iniquidades, injustiças e violências ligadas estritamente a esses
valores. Ainda assim, as lutas pautadas apenas por essa categoria não
têm condições de superar o sistema patriarcal por si só.
Nesse sentido, Julieta destaca o caráter radical do movimento do
qual faz parte. Radical por se propor a reestruturar as raízes que compõem
a sociedade e não se limitar a demandar direitos através dos parâmetros
da democracia burguesa, mas por estabelecer como critério a proteção e
cuidado dos territórios, através do que nomeia como mãe e irmã natureza,
pelo viver bem não só individual, mas das famílias, das comunidades e
das relações entre as comunidades. Paredes nos convoca enquanto
sociedade a participar da construção do que ela chama de utopia, numa
mudança completa dos paradigmas definidores das relações sociais e
com o ambiente, em valorização do bem maior que é a vida de todos os
tipos.
Considerações finais
Sob a perspectiva dos aportes teóricos apresentados ao longo desta
reflexão, impõe-se a seguinte questão: quais são os possíveis caminhos
para romper com essa estrutura de poder que nos violenta, nos aprisiona
e nos faz reproduzir mecanismos de subalternidade?
Lugones, Gonzalez e Paredes, apesar de trabalharem em linhas
teóricas pouco semelhantes, travando debates com análises diversas entre
si, são consonantes, em linhas gerais, sobre três aspectos fundamentais: 1)
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superação de um sistema de exploração de humanos, animais e natureza;
2) superação da divisão sexual do trabalho; 3) superação da subordinação
hierárquica racial.
A repercussão produzida após a inauguração da performance do
grupo LasTesis “Un violador en tú caminho” em 2019, assim como sua
reprodução mundo afora, evidencia numa dimensão prática, o caráter
universal do sentimento de violação sofrido pela maioria das pessoas que se
identificam como mulheres na atualidade. Como as próprias idealizadoras
do movimento destacam, o violador é o pai, o irmão, o familiar, o vizinho, o
desconhecido, é o Estado, violador é o sistema estruturado para reproduzir
e perpetuar a violência simbólica, psicológica, física ou material.
Nos deparamos com uma série de camadas que formam uma densa
e complexa estrutura de segregação social, as quais quanto mais acúmulo
de pertencimento, maior a gravidade da opressão sofrida por indivíduos
e populações. A exploração humana não tem origem na sociedade
capitalista, ao contrário, o sistema produtivo vigente se apropriou,
incorporou e reciclou as formas de tal exploração para conquistar e manter
a hegemonia do poder. Mas apenas a exploração humana não bastou,
houve a intensificação da exploração dos recursos naturais.
Para responder à questão proposta, impõe-se antes contornar
adequadamente o problema, identificando-se assim, quais são os
determinantes sociais que sustentam as relações de poder que se objetiva
superar. Parece-nos que a redistribuição territorial dos espaços público e
privados, urbanos e rurais são centrais para essa discussão, que atravessa
a questão da descolonização e da expropriação do capital saqueado
e acumulado às custas de pauperização, violação, encarceramento e
devastação de pessoas, comunidades e territórios. Mas, ao constatarmos
que as desigualdades de gênero, a maior suscetibilidade de mulheres em
situação de violência, o feminicídio, a cultura do estupro, a precarização da
saúde, as injustiças raciais e étnicas, são de longe os dispositivos que nos
coloca mais vulneráveis frente aos processos de dominação perpetradas
nas culturas com matrizes coloniais, reativarmos a convicção sobre a
importância da participação da mulher na construção de espaços de
contravenção.
LasTesis, coletivo inspirador e disparador da reflexão que trouxemos,
lançaram recentemente dois livros: Quemar el miedo (2021) e Antología
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feminista (2021), onde se refletem todas as suas opiniões e a urgência de
que a América Latina avance na discussão e reconhecimento acerca da
desigualdade de direitos entre homens e mulheres.
Não é fácil ser mulher num tempo e lugar em que essa identidade
significa enfrentamentos. E mesmo diante destas dificuldades seguimos
carregando sob nossos corpos objetificados a história da humanidade.
Nossas vozes ecoam e instauram um lugar de insurgências. Partimos desse
lugar para construir uma discussão onde a mulher e as artes performativas,
se coloquem em diferentes proposições de articulação entre arte e vida,
envolvendo dimensões políticas, existenciais e culturais mais amplas. Para
isso, nos inspiramos no ato performático inaugurado pelo coletivo artístico
LasTesis e elaboramos esse ensaio que, mais do que refletir, pretende
provocar outros modos de existir e re-existir.
Apresentamos três mulheres que, cada uma a seu modo e a seu
tempo, constroem um pensamento crítico feminista, com poder de mostrar
que existimos, a despeito do resgate de todas as pautas conservadoras e
opressoras representadas na figura de um (des) governo e seus seguidores
de aluguel que, atualmente, desejam nos ter caladas.
No entanto, cabe ressaltar que o presente ensaio traz apontamentos
ainda introdutórios, vinculados muito mais ao objetivo de lançar pistas
que instiguem o adensamento de um debate repleto de possibilidades
de desdobramentos. Essa reflexão não se encerra aqui. Continuaremos
enveredando pelas produções científicas de mulheres que tratam sobre a
importância de se debater gênero em suas diversas dimensões desde uma
perspectiva local, tomando como ponto de partida uma abordagem crítica
sobre a construção histórica latino-americana e sobre o eurocentrismo. Há
muito a ser desvelado. Sigamos produzindo afetos. Sigamos, em resistência.
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Onde reside a sua força
Colagem têxtil
Teresina PI, 2020 185
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ESTÁ NO SANGUE!
RASTROS DE MEMÓRIA E PROCESSOS DE
APAGAMENTOS RACIAIS
Talita Rocha da Silva1
“A Vida é Loka Nego, velho e eu tô de passagem!”
música Vida Loka, part1: Racionais M’Cs
Introdução
O presente artigo apresenta uma experiência auto etnográfica
desenvolvida junto ao Mestrado em Artes da Universidade do Estado
de Minas Gerais2, onde investigo o sangue enquanto materialidade, a
partir de rastros que possibilitaram a minha apropriação e atualização
de uma memória apagada em meio às decorrências dos processos
de miscigenação racial no Brasil. Meu processo criativo se constitui em
repensar a estética do sangue a partir da ideia de rastro, onde este é
tratado como uma evidência em meio às questões raciais e identitárias,
permeando questões de caráter biológico, como também seu simbolismo
social e artístico.
Os rastros partem do lugar da ausência de memórias, de modo
que o apagamento de partes fundamentais da história inviabilizando a
sobrevivência de diversos grupos sociais, como no caso, os de origens afro-
indígena. Trabalhar artisticamente com o sangue enquanto possibilidade
de reconstruir a memória de meus antepassados, permitiu a restituição de
narrativas negligenciadas e por sua vez, a construção de novas, repensando
os processos históricos ditos oficiais a partir de processos artísticos.
Assim considerando também, a condição do que é ser artista, como um
construtor de si mesmo, um narrador que se utiliza de si próprio, de matéria
para construir sua visualidade, busco alinhavar rastros de ancestralidade e
de sangue. Para Rosana Paulino, a figura do artista se constrói pelo ato de
tecer uma existência.
1 Artista e Arte –Educadora. Mestre em Artes pela UEMG.
2 Foi desenvolvida enquanto pesquisa artística a dissertação Rastros de Sangue. Trajetos de Ancestralidade,
defendida em 2021 e orientada pelo prof. Dr. José Márcio Barros.
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“Este tecer, que mais do que simbolicamente, representa uma maneira
real de se colocar no mundo, procura também trazer à tona vestígios de
momentos passados”. (Paulino, 2011, p. 25).
O processo artístico é aqui tratado como uma construção e junção
desses vestígios de tempos. Pois cabe assim a tentativa de uni-los.
Sobre memória e miscigenação
Ao tomar minha trajetória de vida como centro da pesquisa artística,
um desafio se impõe: Como descolonizar minha própria narrativa? A
possibilidade de me colocar no centro dessa narrativa e estabelecer
diálogos com aquilo que me transborda e me conecta com o coletivo,
os desafios para compreender o que rastros do meu sangue revelam. Foi
apostar nas possibilidades que as pesquisas em artes juntamente com a
autoetnografia trazem. A possibilidade de criar e de modificar um formato,
por meio do que a natureza da própria pesquisa exige.
“Assim poderíamos pensar em autoetnografia como espaços
comunicativos e discursivos através dos quais ocorre o ‘encontro de
subjetividades’, a interação de subjetividades em diálogo” (2005, apud,
SANTOS & BIANCALANA, 2017 p. 85).
Usar da autoetnografia foi uma maneira de me apropriar de mim
mesma, uma forma também de enxergar minha própria subjetividade em
meio a um contexto mais amplo. A ausência permeia todo o sistema de
complexidade dos sujeitos racializados, neste caso, lugar onde me encontro.
Uso aqui o dispositivo da autoetnografia, como um modo de lembrar,
utilizo-me de registros feitos em vídeos, fotos e escritas para produzir uma
escrita que viabilizasse a existência de uma primeira pessoa, a figura do eu.
A constituição da nossa subjetividade enquanto indivíduos negros,
miscigenados, racializados perpassa, primeiramente, pelo amplo contexto
da discussão sócio-histórica da miscigenação racial no Brasil e seu passado
colonial. Todavia, nos atentaremos a sua constituição em um campo
mais individual e ao negligenciamento de nossas memórias, a partir de
processos que chamaremos de hierarquização das culturas, definido pela
autora Lélia Gonzalez (1984). Considerando assim, a visualização de rastros,
como um ato de se lembrar da própria história e restituí-la.
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O campo da memória, como o lugar de emergência da verdade,
afirmado também pela autora, procura se fundamentar em um palco
onde se opera esse processo de hierarquização.
“(...) esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita,
o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como
ficção. Consciência exclui o que memória inclui”. (Gonzalez,1984, p. 227).
A hierarquização presente entre as culturas é fundamental para
entender o porquê do apagamento de determinadas memórias.
“Desnecessário dizer o quanto tudo isso é encoberto pelo véu ideológico
de branqueamento, é recalcado por classificações eurocêntricas
do tipo “cultura popular, folclore nacional” etc., que minimizam a
importância da contribuição negra”. (GONZALEZ, 1988, p.70). O processo de
embranquecimento da população explicita processos raciais ocorridos no
Brasil de apagamentos, onde apagar qualquer vestígio de outra população
que não fosse branca, era um objetivo a ser atingido.
O autor Jacques Le Goff, chama a manipulação da memória
de jogos sociais de poder praticados pelos chamados “senhores da
memória”, em que o ato de esquecer é correspondente ao ato de apagar.
“Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses
mecanismos de manipulação da memória coletiva.” (Le Goff, 1990, p. 427)
Para o autor, esquecer seria algo da ordem dos vencedores das lutas
sociais pelo poder, de uma escolha calculada para se construir uma única
narrativa histórica, quem possui o poder dessa escolha, determinará o que
será lembrado.
Ao considerarmos a miscigenação racial brasileira dentro desse
processo, ocorre uma disputa discursiva entre uma narrativa já construída
oficialmente, que subjuga outras.
O ato de lembrar se faz essencial para nós racializados, pois nos
organiza e presentifica, uma possibilidade de reelaboração de um passado
histórico. Este mergulho na minha própria história possibilitou a manipulação
e a análise do que ainda restou desse processo de embranquecer.
O passado colonial, para a autora Grada Kilomba, seria como uma
espécie de paradoxo que não se pode evitar lembrar e muito menos
esquecer. “O passado colonial foi ‘memorizado’ no sentido em que não foi
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esquecido. Às vezes, preferimos não lembrar, mas na verdade não se pode
esquecer.” (Kilomba, 2019a, p. 213)
Na tentativa de se lembrar das partes historicamente negligenciadas,
há um desejo de se esquecer esse passado, pois se trata de um passado
traumático e violento. Carrega em si uma carga traumática, consequência
da violência de suas guerras de conquista.
“O termo trauma é originalmente derivado da palavra grega para “ferida”
ou “lesão”. O conceito de trauma refere-se a qualquer dano em que a
pele é rompida como consequência de violência externa”. (LAPLANCHE e
PONTALIS, 1988, p. 405 apud KILOMBA, 2019a, pp. 214-215).
Diferentemente do que se postula, nós como o resultado da
miscigenação, possuímos também o elemento traumático advindo da
colonização. O colonialismo e os aspectos da subalternidade trazem
consigo o trauma colonial, cargas próprias de sociedades como a nossa,
construídas e sedimentadas em violências, traz como carga a pele rompida
do sujeito subalterno, produzindo assim um ser social completamente
fragmentado.
No entanto, o que proponho é a reelaboração deste passado,
identificando e juntando o que restou desses processos históricos sofridos
e os ressignificando através da ótica de uma produção artística. Assim para
que haja uma reconfiguração real, é preciso lembrar e depois esquecer,
sendo que a reivindicação do direito à memória, também é um direito de
se esquecer.
Por uma Árvore Genealógica
Os rastros são os vestígios, as pistas deixadas no tempo presente de
algo que aconteceu, de cenas que se formaram em um passado, mas que
suas marcas permaneceram ainda no presente. Entre uma marca deixada e
outra, busco reconstruir e narrar essas cenas de certos apagamentos. Surge
assim a possibilidade de representar quem não se sabe absolutamente
nada sobre, dos sujeitos sem nomes da história. Busco reunir os restos que
sobraram da minha memória.
Meus trabalhos artísticos se iniciaram com uma forte motivação
de refazer artisticamente minha ancestralidade. Deparando-me,
primeiramente, com as ausências e a falta de informação dos meus
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antepassados. A partir da frase sempre dita comumente “Está tudo
no sangue”, iniciei a produção de algumas imagens com meu próprio
sangue, como maneira de investigar visualmente e materialmente minha
ancestralidade e também como possibilidade de reconstruí-la no terreno
do sensível.
O campo de trabalho que esse material me deu, dentro de sua
natureza visual, possui sua relevância enquanto suporte recorrentemente
utilizado por artistas na história da arte: como Ana Mandieta, Caetano
Dias, Nazareth Pacheco, dentre outros. Até enquanto material científico,
como repositório que carrega nosso material genético e também nosso
axé. Me utilizo principalmente da materialidade do sangue como poética
fundamental para reunir meus rastros e vestígios de memória, trata-se de
uma linha que os costura. O sangue nesse processo artístico se apresenta
como uma maneira de reconfiguração, reunindo os restos.
A opção por se tirar o meu sangue e não utilizar qualquer outro é devido
a questão da própria natureza da pesquisa, em que a manipulação do
meu próprio corpo se faz necessária como potência de criação, permitindo
trabalhos com uma natureza de campo visual mais expandido, dentro das
questões fundamentais de ancestralidade e linhagem.
Por meio desse, enxergo um pedaço ínfimo dos meus antepassados
que se personificam. Através de uma análise de resultados de um
laboratório artístico ficcional, de um enquadramento possível, é analisado
em uma espécie de lente microscópica. Apresentam-se entre formas e
mais formas, as imagens de meus avós, meus bisavôs, meus avós, meus
pais.
Colocar o sangue no papel é uma tentativa primeira de ver quem
são os membros da minha família, um modo de preencher esses vazios,
de construir uma árvore genealógica, que me foi negada e a tantos outros.
Árvore esta, iniciada em viagens com minha avó Elita para Bom Jesus da
Lapa (BA),viagens realizadas à junto à Romaria de Seu Zé Teixeira de Medina.
Foram também realizadas idas constantes à cidade de Mauá, na região no
ABC paulista, região da Grande São Paulo, onde nasci e fui criada. Viagens
onde minha avó me contava sobre alguns dos nossos, antepassados
ainda vivos em sua memória. Os resultados são marcas que parecem
mais feridas, uma textura quase de casca, que também produzimos no
corpo, apresentando-se ainda como ferimentos, traumas e rompimentos
da nossa pele.
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Trabalho: Árvore Genealógica. Sangue sobre papel. 2019
Os sem nomes estão presentes como pingos de sangue, os não-
ditos e vazios da história. O sangue aqui não significa, ele é. Não representa
simbolicamente o rastro, trata-se do próprio.
A reação do material com o ar altera sua coloração, a sua mudança
é quase instantânea a retirada do corpo e quando colocado em contato
com o papel, oxida e se transforma já em outra coisa, com tonalidades
mais amareladas e enferrujadas. A coleta do material é feita pela retirada
no meu braço, em um ambiente de assepsia. São colocados em tubos
anticoagulantes, onde é possível obter seu estado líquido por mais tempo.
Sua reação com o ar é prevista, quando se considera sua materialidade
orgânica, não ficando isento também da passagem do tempo.
Instável Linhagem
Na instável linhagem que possuímos enquanto sujeitos racializados,
não afirmamos nada, não somos ninguém, não existe linhagem, somos
“os etc.” (SCHWARCZ, 2008, p. 98), os pardos, os qualquer coisa, os cara de
pobre, os negros, os sem-nome. Aquele papel fino de pão que serve a mesa
todos os dias. Somos os subalternizados até pela mesa de café da manhã.
Pardo é ninguém, mas fundamental para fazer a vida social funcionar.
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Possuímos o desejo de se afirmar alguma coisa, pois somos um
movimento, onde é dificultoso se enxergar, uma dança violenta e perversa.
Uma dança de sobreposição de cores, onde a branca me faz esquecer a
qual ancestralidade respondo e o que devo lembrar. Servimos, cegados
por essa luz branca ferina, que queima nossa visão nos enlouquecendo.
“Tanta brancura que me queima”, (FANON apud KILOMBA, 2019b, p. 14). Nos
obriga a reconhecer que estamos de um lado das trincheiras. Sabemos que
somos configurados pela nossa natureza de colisão, pela nossa natureza
formada na guerra de sociedades. Esta por sua vez, ao mesmo tempo em
que carrega a possibilidade de destruir-nos, também carrega a de unir
destroços.
O processo de indefinição é algo que compõe a nossa subjetividade
de indivíduo miscigenado, o que ocasiona muitas vezes o sentimento de
não pertencimento. Todavia este pertencimento também não é no local da
branquitude. No entanto, cabe suscitar que estes caminhos não estão em
lugares igualitários, onde as culturas são equiparadas e a miscigenação
se trata de um processo natural e em que há equidade, mas muito pelo
contrário.
A partir da miscigenação, a dita degradação do sangue évista pelo
racismo científico, como um fator que se vincula às visões negativadas.
Determina processos de racismos em que ainda associam a minha
ancestralidade negra àalgo da ordem do ruim, do sujo, do insignificante. Tudo
o que não é positivado, da ordem da branquitude, da dita normalidade é
negativado e colocado na ordem do animalesco, do raivoso, do descontrole,
como cita a autora Grada Kilomba: “Nós tornamo-nos então a ameaça, o
perigo, a violência, a agressividade, o problema, o caos, a sujidade, mas
também o desejável, o sexual, o perverso, o excitante, o místico, e exótico.
Nos tornamos aquilo que não somos” (KILOMBA, 2019b, pp. 16-17).
De modo que ser branco está ligado a uma moralidade, uma
distinção social de certa nobreza, ao puro, à ordem. “Isto permite que a
branquitude se construa como: ideal decente, civilizada, honesta, limpa,
generosa, emancipada e liberal, em absoluto controle da ansiedade que
sua história colonial possa causar. (KILOMBA, 2019b, pp. 16-17), habitando
os lugares de gente bonita, civilizada, de gente que não oferece nenhum
perigo a sociedade, nenhuma criminalidade, de sangue limpo e puro,
portanto passível de possuir uma existência.
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Precisamos ser ninguém, somos estes esmaecidos, esquecidos de
nós mesmos, os da amnésia racial, os que não lembram de si próprios.
Estes ecos ainda nos habitam. Estou procurando uma interlocução, algo
além do eco no narcisismo da branquitude, mas assim como a figura de
Narciso, não há escuta, há somente uma repetição do que se é dito pela
própria voz, uma repetição e um amor à própria autoimagem: “Narcisista é
esta sociedade branca patriarcal na qual todos nós vivemos, que é fixada
em si própria e na reprodução da sua própria imagem, tornando todos os
outros invisíveis” (KILOMBA, 2019b, p. 13)”
Odiamo-nos o tempo todo, nos matamos o tempo todo, nós somos
obrigados a amar muito mais a branquitude. E este trabalho, este processo
de pesquisa, por mais que não pareça, é um gesto de amor próprio, esta
tentativa de cavoucar e entender minha imagem, quem sou para além do
que me disseram que sou, é sobretudo um ato de Amor.
A guerra que se estabelece em nosso interior, essa luta pela própria
carne não está findada, estas vozes nos rasgam e nos transformam em
sujeitos sem lugar. Todavia a ambivalência e neste ponto, considero essas
vozes como algo que nos penetram de um modo violento e de choque,
ocasionam estados de hesitação e “A contenda interior resulta em
insegurança e indecisão. A personalidade dupla ou múltipla da mestiza
é assolada por uma inquietude psíquica”. (ANZALDÚA, 2005, p. 705). Ao
considerar uma guerra nesse interior subjetivo, auxilia o entendimento real
do que se passa e de quem de fato nós somos.
O sangue retirado do meu corpo é protagonista nesses trabalhos. A
solução que este apresenta se dá não somente na sua plasticidade, na sua
composição imagética, como também em sua composição bioquímica. O
centro do palco que ocupa é onde se encontra toda a discussão sobre a
miscigenação, toda a questão de ancestralidade e linhagens. Dá conta
da elaboração e de uma construção de uma nova memória. O sangue
coletado é retirado e utilizado ainda em seu estado líquido, o que permite
a mobilidade para as pinturas nas lâminas, sua manipulação se liga
diretamente ao seu movimento, ao movimento que o próprio corpo carrega,
o movimento que é possível enxergar nossa memória, reiterando a ideia de
que o sangue dança em meio a uma guerra.
Meu sangue dança e queima nestas lâminas de laboratórios. 50%
negra, 45% branca, 5% indígena? Ou 10% negra, 40% branca, 50% indígena?
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Ou 50% 50%? Em uma tentativa exata de medir quem sou, de quem eu
posso ser, de quem me deixaram ser.
Trabalho: Instável Linhagem, esfregaço sanguíneo.
Sangue sobre lâminas de vidro. 2019
Interessa-me também sua forma sólida, seca e apresentada em
uma materialidade de assentamento de diluições, para que seja também
possível sua análise. O esfregaço sanguíneo ou distensão sanguínea
feita nessas lâminas é geralmente utilizado para exames laboratoriais,
buscando identificar alguma anomalia na morfologia celular. Trata-se de
uma análise microscópica, do meu sangue. Tento visualizar e comparar
como seriam as formas para estas questões raciais, nessa quase análise
ficcional laboratorial da miscigenação.
Aparentemente são localizadas duas ou mais possibilidades nessa
existência. No entanto são caminhos que produzem uma instabilidade
identitária, determinando um cenário de agonia e desalinho. Não se define
um limite e isto passa a ser da ordem da asfixia, o que a princípio deveria
ser libertador.
O ato de permanecer na fronteira é uma forma de enxergar os dois
lados, esses dois limiares que são visíveis a partir da precariedade deste
estado fronteiriço. É possível afirmar que estar entre, nos traz um constante
tensionamento, em meio às nervuras e feridas produzidas por esse processo,
possibilitando criar narrativas, através desse estado do permanecer no
meio, entre linhagens precárias.
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Amor ao sangue (Considerações Finais)
Esse processo artístico, por mais que se apresentou como uma
maneira de rememorar e me reconfigurar. Foi também uma possibilidade
de lembrar que não estamos sozinhos, e que não fomos construídos agora.
Buscar vestígios e resquícios da própria memória é correr ainda um risco
de se embrutecer e se ressentir mais uma vez, mas também é o de se
recuperar e de se restabelecer.
É de sangrar para poder lembrar, juntando os vestígios encontrados
nesses trajetos percorridos e dar uma nova forma. Fazer o sangue dançar
mesmo que na dor.
“Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o
passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o
futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura.” (HOOKS, 2010, on-line).
Só assim será possível convidar outros para dançarem juntos.
Essa pesquisa artística não fala apenas de minha história e de meus
familiares, e seus atravessamentos raciais e sociais. Não é uma história
única.
É necessário unir as vozes presentes para se gritar mais alto, construir
um canto impossível de ser ignorado. Não podemos mais andar sozinhos,
não conseguimos mais, estamos exaustos e a cura é coletiva. Nossas dores
vêm de longe.
A linhagem por mais instável que seja, é preciso continuá-la. E por
mais que nos ensinaram que não somos nada, que por sermos mulheres
negras, racializadas, pobres, faveladas, somos inadequadas, não cabemos
nos lugares, não deveríamos nem existir. Assumimos nossa condição e
reelaboramos nossa própria subjetividade pelo enfrentamento, tomamos
muitos socos e devolvemos ainda poucos. A prática da liberdade não se
consolidou de maneira grandiosa e ainda está em curso, trata-se de um
horizonte a ser conquistado, portanto de uma prática em estado de devir.
Sou uma sujeita negra periférica, com subjetividade fundada na periferia e
estou em trânsito, estou de passagem.
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REFERÊNCIAS
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196
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
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197
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
ADRIANO MACHADO
Cobra Verde
Fotografia
Feira de Santana, BA, 2013 198
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APARÁ
CAMINHOS DAS EPISTEMOLOGIAS FEMINISTAS
NEGRAS NA CANÇÃO BRASILEIRA
Mariela da S. Santiago Laban1
RESUMO
No cenário da nova MPB, o ano de 2022 tem sido marcado por diversos
lançamentos de intérpretes-compositoras baianas. Suas canções trazem
em comum temas como o combate ao racismo e ao genocídio da
população negra, a religiosidade do candomblé e vivências do campo
afetivo, permeadas pelas matrizes conceituais do feminismo negro (ou
do movimento de mulheres negras, como preferem algumas autoras). Ao
mesmo tempo, vivemos um momento inédito na história do país, onde livros
de algumas autoras negras transformam-se em best-sellers, motivando a
publicação de ensaios e coletâneas, fundados em textos produzidos desde
1970, por outras feministas negras. O presente artigo dedica-se a observar
interações entre esses dois acontecimentos, a partir do território Salvador,
Bahia. Da leitura de obras lítero-musicais, artigos, declarações e registros
auto etnográficos de suas protagonistas, surgem excertos, agrupados em
cinco passagens.
A MPB constituiu - se enquanto lugar do protesto e da defesa e da
democracia, em finais dos anos de 1960. Até transformar-se em “etiqueta
mercadológica” - ainda que lhe restem espaços privilegiados de expressão
da opinião -.Transformação marcada, entre outros eventos, pelo “MPB Shell”
(SANDRONI 2004 apud LABAN, 2017, p.44).
Na Bahia, a música dos blocos afros também emerge, em finais dos
anos 1970, como canção de protesto, denunciando a violência do racismo
que, na sociedade baiana, se manifesta em arranjos onde as elites têm
1 Mestranda em Cultura e Sociedade no Pós Cultura UFBA.Graduada em Jornalismo, intérprete - compositora,
artista interdisciplinar. E-mail:
[email protected]. Este trabalho contou com apoio da bolsa FAPESB - Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia.
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imposto “a definição de mundo social mais conforme aos seus interesses”
(BOURDIEU, 1989, p.11), não sem a mão direita dos seus conglomerados de
mídia. As letras das músicas dos blocos afros buscavam denunciar o mito
da democracia racial e promover uma imagem positiva da pessoa negra,
baseada na consciência da sua humanidade, das suas contribuições
históricas e ancestralidade. Algumas teciam elegias ao feminino, onde
a figura da mulher era associada às heroínas quilombolas, princesas
africanas e divindades do candomblé. Com a emergência e ascensão da
axé music, na segunda metade dos anos de 1980, embora o país vivesse
um clima de retomada da democracia, na Bahia, as práticas de uma
nova classe empresarial em articulação com a grande mídia e poderes
locais, remetiam ao cerceamento do antigo regime, desencorajando e
restringindo a circulação de músicas com perfil “de protesto”. Em nome
da maximização dos lucros, partia-se para um discurso ameno e festivo,
confirmando Salvador como cidade balneário. Operação que, segundo
Conceição (2006), foi deletéria para luta antirracista e contou com a
cumplicidade de personalidades do movimento.
Na década seguinte a cidade torna-se progressivamente território da
“ditadura da alegria``2, onde a musicalidade originária na periferia negra e
seu discurso crítico, sucumbem à exaltação de uma alegria compulsiva,
entoada pelas estrelas dos trios elétricos em coreografias robóticas.
Nos anos 2000, o pagode se diversifica e assume a dianteira (mais
tarde perdendo espaço para o sertanejo), ficando axé music restrita a
poucos artistas que, a despeito de constituir um pequeno grupo, detém o
monopólio no mercado de música local e ainda constitui parte importante
da identidade cultural midiática do território Salvador-Bahia.
O cerceamento da crítica, assim como de outras vertentes musicais que
não se encaixam naquele mercado, centrado na folia veranil e momesca,
atinge também outros grupos. Artistas e intelectuais independentes se
refugiam em ilhas criativas pela cidade, formando o que se convencionou
chamar “música alternativa”. Muitos deixam os palcos, inserindo-se em
outras instâncias da cultura, desde a academia à gestão pública, passando
pela produção de festivais conectados a mercados alternativos de outros
estados, voltados para o rock e a emergente nova MPB.
A população negra e periférica da cidade será a mais prejudicada
2 Albino Rubim, em entrevista a Gonçalo Junior. A ditadura da alegria: intelectuais defendem mudanças para
salvar a festa mais tradicional da Bahia - o Carnaval. Em: Sociologia. Pesquisa Fapesp, ed. 136, jun. 2007.
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com tal silenciamento. Nos bairros, já não se ouve os enredos pedagógicos
sobre o continente africano, seus reis e rainhas. Outras “rainhas” roubam
a cena. Ao mesmo tempo, cresce a influência das igrejas evangélicas
neopentecostais nos bairros populares e com elas a violência contra as
religiões de matriz africana. O rap ganha força nas periferias, mas não toca
nas rádios comerciais nem integra programação das TVs. O bloco afro Ilê
Aiyê é uma ilha. Mantém, no escopo do seu projeto social, uma escola.
Resiste, mas não sem arriscadas negociações.
Nos últimos 20 anos, enquanto a inteligência se debatia em
especulações sobre a decadência, o sucesso ou as contribuições da axé
music para a cultura e a economia baiana, professoras, pesquisadoras,
ialorixás, mães de família e ativistas de diversas áreas, enfrentam a mesma
violência e exclusão denunciada pela vanguarda dos blocos afros, dando
continuidade (e ampliando) o que pode ser considerado um processo
crítico e contra - pedagógico para a emancipação dos “hegemonizados
da cidade”, aqueles que, segundo Santos (1989), “vivem dentro da cidade
sob tempos lentos.” Em casa, nas escolas públicas, nos terreiros, na
gestão pública, nas universidades e prisões, nas artes e nos movimentos
sociais, as mulheres negras assumem sua dimensão, mantendo atuação
espaço-temporal intensa, multifacetada. É dessa experiência quase
onipresente no território, produzida historicamente a partir do seu lugar
produtivo (NASCIMENTO, apud RATTS, 2020) que insurgem suas declarações,
dissertações e teses.
Na Música, a dificuldade de inserção no mercado baiano, sobretudo
para cantoras negras e, principalmente, para aquelas que se dedicam a
gêneros não sazonais, como a MPB, leva muitas artistas a deixar a cidade e
migrar para capitais sudestinas, onde não raro conquistam relevância na
cena cultural midiática. Nesta perspectiva, a presente ascensão das vozes
negras femininas da Bahia ao panteão da nova MPB, evoca, entre muitos
outros sentidos, o discurso “de protesto” inaugurado pelos blocos afros nos
anos 1970. Uma cena liderada por mulheres que reverbera, majoritariamente,
a partir do eixo Rio-São Paulo, mas não por isso menos imersa na cultura do
território de origem, de suas organizações de resistência ao colonialismo
e à modernidade racista patriarcal. Resistência onde o candomblé ocupa
lugar matricial, mas que tem sido alimentada por outras organizações,
tais como o MNU - Movimento Negro Unificado -.(GONZALEZ, 1979 apud REIS;
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LIMA). Em suas motivações, assim como em sua dimensão estética, o MNU
se entrelaça, na Bahia, com a fundação dos blocos afros.
Fundado em 1978, em São Paulo, o MNU “visa combater o racismo,
o preconceito de cor e as práticas de discriminação racial, em todas as
suas manifestações, buscando construir uma sociedade da qual sejam
eliminadas todas as formas de exploração.” (MNU, 2022). A entidade constitui,
como o próprio nome enuncia, a unificação de diversos movimentos
preexistentes. Segundo González, (2020), o Movimento de Mulheres Negras
surge no seio do MNU, a partir da necessidade das militantes de discutir
e encaminhar soluções para problemas que afetavam em particular as
mulheres negras e que, à época, pareciam não ser priorizados pelo MNU,
ou pelo movimento feminista clássico. Salvador torna-se a partir de então
passagem obrigatória para as feministas negras, desde os anos de 1970
(GONZALEZ, 1979 apud RIOS; LIMA 2020), (NASCIMENTO; GERBER,1989).
A seguir, aninhadas em 5 passagens, conexões sensíveis imaginadas
entre as pensadoras Ana Célia da Silva, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez,
Luiza Bairros, María Elvira Díaz-Benítez, Makota Valdina, Miriam Alves, Sueli
Carneiro, Vilma Reis, Larissa Luz, Luedji Luna, Manuela Rodrigues, Majur,
Mariella Santiago, Nara Couto e Xênia França. Pela formação de novos
repertórios face à pergunta “Quais são suas influências?”.
CABÔ
Cabô, vinte anos de idade
Quase vinte e um
Pai de um, quase dois
E depois das 20 horas
Menino, volte pra casa
Cabô
Ô Neide, cadê menino?
Cabô, quinze anos de idade
Incompletos seis
Eram só 6 horas da tarde
Cabô, cadê menino?
Quem vai pagar a conta?
Quem vai contar os corpos?
Quem vai catar os cacos dos corações?
Quem vai apagar as recordações?
Quem vai secar cada gota
De suor e sangue (...)” (LUNA, 2017)
MARCHA DO RENASCIMENTO
“(...) Veja que festa se faz
e lá tem um canto que é o teu lugar
202
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Máscara e medo no fundo é normal
Cresce e que o mundo não te faça mal
Chora esse choro profundo
e desperta no peito o teu carnaval
Casa teu útero quente
Ma mamãe eu quero eu quero mamar
Ache quem cuide da gente
Tem vida corrente querendo passar” (RODRIGUES, 2022)
VALE DO IJEXÁ
Ijexá que se respira
Nossa qualidade de vida
Corpo que escapou da bala
caiu na Boca da Mata (...) (SANTIAGO, 2022)
“Se falamos de oscilação entre sujeição e fuga é por reconhecermos que a
fuga nunca é uma ação que conhece o fim, assim como a sujeição nunca
é um dispositivo que não encontra resistência. Isso porque o peso da
racialização volta de um ou outro modo para sujeitos que estão em fuga:
aqueles que cultuam os orixás e encontram na ancestralidade a fuga (ou
retorno) espiritual enfrentam o recrudescimento do ódio (...) racista (...)
que atinge os seus terreiros e busca destruí-los, encontram na música (...)”
(DIAZ-BENITEZ; RANGEL, 2022, p. 43)
BEBÊ A BORDO 1990
para as crianças do Curuzu.
”Que brilho é este”...
“Que brilho é este negro”
É o brilho do sangue no asfalto dos bebês do Curuzu.
Negras crianças insurgentes desesperadas, abandonadas.
Negra juventude transviada?
Seus frágeis corpos metralhados
seguem a bordo do grito de justiça” (SILVA, A.C. da. 1990)
Tininha partiu para Salvador, deixando o filho mais velho, Jorge, com a tarefa
de cuidar dos irmãos menores. Mal chegou ao Curuzu. Um telefonema e
uma passagem aérea (dada pela patroa que a chamara) obrigaram-na
a voltar. Duas noites após a partida de Tininha, alguns homens bateram à
porta de sua casa, em Nilópolis, Baixada Fluminense. Não era tarde, mas
Jorge, que passava o dia carregando e descarregando caixas de Brahma,
já estava deitado. Levantou-se, abriu a janela e, desculpando-se por não
abrir a porta pelo fato de não os conhecer, perguntou-lhes o que queriam.
A resposta foram dois tiros à queima-roupa. Eram policiais. Mas por que
Jorge, trabalhador sério, com carteira assinada e tão querido por todos do
lugar? (GONZALEZ, 1987 apud RIOS; LIMA 2020, p.244).
Com um tiro de “confere” – um tiro fatal na testa ou na nuca,
depois jogado em um campo de desova, longe do bairro onde mora,
de preferência sem os documentos para não ser imediatamente
identificado por familiares, que saem à procura de um rapaz que
não tem envolvimento com a criminalidade, estuda num curso de ensino
fundamental à noite e, durante o dia, trabalha para ajudar nas despesas
em casa, com idade entre 15 e 24 anos. É assim que são abatidos os jovens-
homens-negros de Salvador, e foi assim que eles apareceram em vários
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
relatos dos estudiosos, das autoridades que deviam impedir as mortes e
na dor das suas famílias, que os buscam para ter ao menos o direito de
enterrar o ente querido. (REIS, 2001)
RETINTA
Convoco todas as mulheres do meu clã
Convoco todas as nações no abrir da flor
Convoco todas as mulheres da minha cor
Eu convoco as retintas, sim
convoco as retintas (...)
Sempre fui bonita, cê que descobriu agora
Deixe de conversa, venha logo apreciar
Da cor da Bahia agarrada nos patuás
Feitiço bem refinado no passo de avançar (COUTO; OLÉRIA, 2022)
O Ilê acertou quando criou a noite da beleza negra, porque independente
dessa afirmação da estética negra, ele elevou nossa autoestima enquanto
mulheres […] conseguimos que as mulheres dessa cidade se sentissem
bonitas”, afirma Arany Santana (diretora do bloco). Concordo com ela, (...)
acredito que é também uma atitude política. (GUELEDÉS,.05/03/2012)
(...) o que acaba nos levando ao encontro do Movimento Negro Organizado,
à necessidade de conhecer melhor a história do negro, a identificar as
formas explícitas e camufladas pela discriminação racial patrocinada
pela escola, pelos meios de comunicação. (...) e, como resultado, do ponto
de vista de nós, mulheres, o mais imediato dessa descoberta de ser negra
numa sociedade racista vem a ser a afirmação de uma estética negra,
que vai se expressar, principalmente, pelo repúdio às pastas e ao ferro
alisante. Ao longo desse processo começamos também a aprender e a
perceber melhor o papel particularmente importante que a mulher
desenvolve dentro da comunidade negra. (BAIRROS, 1990.)
(O) racismo também superlativa os gêneros por meio de privilégios que
advêm da exploração e exclusão dos gêneros subalternos. Institui para
os gêneros hegemônicos padrões que seriam inalcançáveis numa
competição igualitária. A recorrência abusiva, a inflação de mulheres loiras,
ou da “loirização”, na televisão brasileira, é um exemplo dessa disparidade
(CARNEIRO, 2003.)
BONECAS PRETAS
Mídias virtuais
Anúncios constantes
Revistas, jornais
Trocam estética opressora
Por identificação transformadora
Procuram-se bonecas pretas
Procura-se representação! (...) (LUZ, 2016)
Esse livro apresenta transformações positivas na representação social
do negro, nos seus textos e ilustrações. Os personagens negros foram
ilustrados, em sua maioria, sem aspecto caricatural, com traços
fisionômicos característicos da sua raça/etnia, marcados, em sua grande
maioria, pela beleza e expressões de alegria. (...) A mulher negra jovem foi
ilustrada bem vestida, com um ramo de flores na mão (...) As características
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
negras apareceram nas ilustrações de uma forma específica, quando o
cabelo pixaim foi ilustrado e descrito, assim como o pente “pata-pata”,
próprio para pentear esse tipo de cabelo. (...) Os personagens negros ainda
se constituem em minoria nas ilustrações. A frequência da sua presença
nesse livro foi de 36, para 279 frequências de personagens brancos. (SILVA,
A.C. 1999, p 28-29)
Gloria Cristal, um típico exemplo de mulata bem-sucedida (ela tem dois
empregos excelentes: na Oba Oba e na TV Globo), diz: “Ser uma mulata é a
melhor profissão do mundo, pois temos a oportunidade de nos tornarmos
damas. Todos nos tratam com carinho e cuidado. Às vezes penso que sou
uma boneca de porcelana e gosto muito disso ”. Acontece que as bonecas
de porcelana ganham muito pouco dinheiro no começo de suas carreiras.
É esse o caso das mulatas que estão concluindo sua formação. As casas
noturnas do Rio pagam um salário mínimo mensal para as iniciantes. O
empresário Elias Abifadel, dono da Oba Oba, afirma que todo começo é
difícil. Entretanto, no caso de Maria Luzacir, por exemplo, seu salário é duas
vezes maior do que ela ganha atualmente como empregada doméstica
em Copacabana, ou seja, menos de 40 dólares. (GONZALEZ, Lélia. 1982 apud
RIOS ; LIMA, 2020, p.152.).
UM CORPO NO MUNDO
Atravessei o mar
Um sol da América do Sul me guia
Trago uma mala de mão
Dentro uma oração
Um adeus
Eu sou um corpo
Um ser
Um corpo só
Tem cor, tem corte
E a história do meu lugar
Eu sou a minha própria embarcação
Sou minha própria sorte
E Je suis ici, ainda que não queiram não (...)
Olhares brancos me fitam
E a palavra amor cadê? (LUNA, 2016)
NAVE
Pode chegar
Quando chispar a nave, eu vou
Cruzar a órbita prum novo mar
Que a nossa Lua transbordou
Vazou
Pode correr
Que lá só vai crescer amor
Ó minha mãe, perdoa se eu te deixar
Que esse planeta é gente demais
Enquanto transita um novo boato
Santo tira o corpo fazendo de surdo(...)
Um quase inocente na arena inflamada
Queimando a cabeça à beira do absurdo
Pode chegar
Quando chispar a nave, eu vou
Cruzar a órbita prum novo mar
Que a nossa Lua transbordou
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Vazou
Pode correr (FRANÇA, 2019)
OSEUJADÁ
Venha ver venha ver
como é que faz pra desobedecer
canta maré joga maré
a onda nasce e quebra sem saber
Sinta o que quer fazer
Esqueça que um dia te ensinaram a obedecer
Arranhe o osso pra ler
tudo que a cidade desintegra
´Pra que tanto trabalhar ter
Vida de escravo ser mandado até morrer
Longe do mal da lei é o lugar seguro
pra saber quem é você (SANTIAGO, 2002)
Entre luzes e som, só encontro, meu corpo, a ti. Velho companheiro das
ilusões de caçar a fera. Corpo de repente aprisionado pelo destino dos
homens de fora. Corpo/ mapa de um país longínquo que busca outras
fronteiras, que limitam a conquista de mim. Quilombo mítico que me faça
conteúdo da sombra das palavras. Contornos irrecuperáveis que minhas
mãos tentam alcançar. (NASCIMENTO, 1997 apud RATTS, 2006, p.68).
A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu
estou. Quando eu estou, eu sou. (NASCIMENTO, 1989 apud RATTS, 2006, p.53)
‘Nesse sentido é que a gente diz clivagem continental, é a transmigração
de uma cultura e de uma atitude no mundo de um continente pra outro.
Continente no sentido geográfico, de África para América, de Angola para
Pernambuco. (NASCIMENTO,1982 apud BATISTA, 2016 p.127).
“O movimento de fuga era, em si mesmo, uma negação da sociedade oficial
que oprimia os negros escravos, eliminando a sua língua, a sua religião,
os seus estilos de vida. O quilombo, por sua vez, era uma reafirmação da
cultura e do estilo de vida africanos. O tipo de organização social criado
pelos quilombolas estava tão próximo do tipo de organização então
dominante nos Estados africanos que, ainda que não houvesse outras
razões, se poderia dizer (...) que os negros por ele responsáveis eram em
grande parte recém-vindos da África. (NASCIMENTO apud BATISTA, 2016
p.126).
Não é exagero considerarmos que os corpos das afro-latinas, são
territórios de sustentação de travessias cimarronas e ao mesmo tempo,
territórios onde se elaboram planejamentos e perspectivas insurgentes
que nos trouxeram ao século XXI. Assim, nos alinhamos com noções mais
amplas sobre pertença e território e, deslocamos quadros conceituais
que precisam ser tensionados. Em primeira instância, a tarefa nos obriga
a entrelaçar desafios do passado com as demandas do tempo presente.
(MIRANDA, 2020, p 102)
LENÇÓIS
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Minha amada quando mira as estrelas
pela miríade dos seus olhos mansos
desperta tanto brilho tanta beleza
que não se perde em certezas
Só tem dança alegria água e amor
E eu não me sinto só na imensidão do céu (...)
Porque sei que ela pensa em mim
e o meu peito se faz paz
e o corpo um vulcão (...) (LUNA, Luedji. 2020)
APARÁ
Eu não vou dizer só pra te agradar
Eu não vou dizer (que eu tenho medo)
só pra te agradar
Nem que o céu é perto, ou que é raso o mar
Se eu saio de noite sei por onde andar
Se eu cai na terra foi pra caminhar
Tempo deu no tempo d’a gente mudar
Tempo deu no tempo d’eu acreditar(...)
Chorei muitas luas, salguei muitos lagos
Rasguei tantos livros, cortei muitos laços
Até que a força fez morada em mim
Valentia fez morada em mim
Até que a calma me fez companhia
Juntei as armas pra lutar, lutar
E com os guerreiros caminhar
Caminhar, caminhar
“Ê menina ê menina yeye Oxum da mina” (SANTIAGO, 2015)
No contexto em que se encontra cabe a essa mulher a desmistificação
do conceito de amor, transformando este em dinamizador cultural e
social (envolvimento na atividade política, por exemplo), buscando mais
a paridade entre os sexos do que a “igualdade iluminista” . Rejeitando
a fantasia da submissão amorosa, pode surgir uma mulher preta
participante, que não reproduza o comportamento masculino autoritário,
já que se encontra no oposto deste, podendo assim, assumir uma postura
crítica intermediando sua própria história e seus ethos. Levantaria ela a
proposta de parcerias nas relações sexuais que, por fim, se distribuiria nas
relações sociais mais amplas”. (NASCIMENTO, 1990 APUD RATTS, 2006, p.129).
AFRODATE (DREADLOV)
Seu dread na minha nuca
Me deixa maluca
Passeando em mim
Faz meu corpo arrepiar
Se liga na onda do preto
Viaja na onda da preta
Se liga na onda do preto
Viaja na onda da preta(...)
Te dou um chá, cê me toma no colo
Faz isso tão bem quanto as tracks que eu bolo
Eu desenrolo olhares, deram um choque
Fio desencapado, alta tensão
Nas preliminar era papo de love
Nos finalmente, papo de tesão
Deixa curtir nossa vibe, nego
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Ninguém rouba nossa vibe, nego
Como é quente nossa vibe, nego (...) (LUZ, 2022)
Eu sinto que esse pessoal jovem agora se organiza nesse movimento soul,
eles vão ter menos problemas que eu tive, por exemplo, eu que sempre
vivi alijada da comunidade branca e convivendo com ela e alijada da
comunidade negra e vivendo com ela. Quer dizer, é possível inclusive [ter]
laços mais fortes entre essas pessoas, de casamento. Menino [preto] vai
namorar menina preta, não vai ter necessidade de arranjar a moça branca
pra casar (...). Esse processo aí pode(...) na medida em que o soul é uma
coisa moderna, atual, que está na televisão, no cinema, no jornal, que é de
americanos. Quer dizer, que tem inclusive essa possibilidade de afirmação
ao nível do que eu sou bonito, eu sou forte, de que eu tenho um corpo
bom. (...) um dos grandes dramas do intelectual, do negro que ascende
na mobilidade social, é justamente a perda da ligação com seu grupo. Eu
tenho a impressão que dentro desse grupo soul isso pode acontecer, mas
em doses muito menores (...) Porque o grande drama da gente, a grande
tragédia, é justamente a perda da compreensão do nosso passado, a
perda do contato com o outro. Isso é fundamental. (NASCIMENTO 1977 apud
RATTS 2006, p. 67).
ABALA
Siga liga liga a pomba
Pomba que te excita
Eu não sou maldita (...)
Grita o que acredita (...)
Veste sua saia e sua conta(...)
Ela que te faz ser
Busque ela lá e aí tu vai ver
Chama ela lá, vai laroye (LUZ, 2019)
OGUNTÉ
Diz a quem manda que é difícil
Iemanjá mandou dizer
Que se atravessa algum feitiço
Sua espada é mão de fé(...)
E se tuas asas o mal cortaste
Seu ventre há de segurar
Nas águas vem desde o início
Nunca vai te abandonar
Ae Iabara, e Iemanjá (...). MAJUR, 2022
OMORODÉ
Omorodé shining
Shining all along the way
Omorodé shining
Shining under the sun (...)
You’re my only friend here
You will be the one that guides me
Whenever things seem to fall (SANTIAGO, 2015)
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EBÓ
Jogue o dinheiro na estrada
Na frente do caminhão
Sete vezes nada nada
Jogue as chaves na fogueira
Num dia de sexta-feira
Entregue sua casa ao tempo
Se banhe na cachoeira
Se esqueça do pensamento(...) (SANTIAGO, 2002)
BANHO DE FOLHA
Mas um punhado de folhas sagradas
Pra me curar, pra me afastar de todo mal
Para-raio, bete branca, assa peixe
Abre caminho, patchuli
“Oxalá quem guia
Oxalá quem te mandou (...) (LUNA, 2017)
EU FALO
A minha fala é um falo
Que atravessa suas certezas culturais.
(ALVES, 2014)
As mulheres de candomblé não estavam ocupando espaços como hoje.
São pequenos espaços, mas são avanços que a gente tem conquistado.
Entretanto, essas mulheres sempre fizeram política, a meu ver. Porque,
naquela época… Quantas insurreições quantas coisas eram articuladas
nos fundos, em um quintal de terreiro? Muitas. A gente sempre fez política.
O negro nunca deixou de fazer política neste país. De formas diferenciadas,
mas a gente sempre fez. E a mulher estava lá. Sempre! (MAKOTA, Valdina;
ANUNCIAÇÃO, 2018).
A predominância de uma única matriz religiosa em educação nas escolas,
ensinada sob forma de catequese e não de apreciação histórica e cultural
das diversas religiões, têm contribuído para uma fragmentação da fé
que a criança traz do seu grupo familiar e cultural, tornando-a confusa,
muitas vezes internalizando a imagem idealizada negativa que a escola
expande da sua religião de origem. A imposição de uma só matriz religiosa
constitui-se em violência simbólica contra os grupos subordinados, que
não têm poder para colocar seus conteúdos e significados culturais nos
currículos de ensino das nossas escolas. (SILVA, A.C. da, 1999).
(...) Referimo-nos ao candomblé, religião afro-brasileira de origem iorubana
e praticamente berço das demais religiões negras do Brasil. Seu grande
centro de dispersão, como sabemos, é o estado da Bahia, principalmente
sua capital, a cidade de Salvador (...) sofre os efeitos das investidas do
capitalismo monopolista. Sem entrarmos nos detalhes de sua estrutura,
cabe salientar que é liderado principalmente por mulheres: as ialorixás ou
mães de santo. São mulheres negras e pobres que não desempenham
um papel apenas religioso/cultural. (GONZALEZ, 1979 apud REIS;LIMA 2020,
p.59.)
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
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Carranca de peito com tédio Carranca de peito: os machistas que lutem
Escultura madeira de Nym indiano. Escultura madeira Algaroba
90 x 28 cm (diâmetro) 50 x 22 cm (diâmetro)
Petrolina, PE, 2019 Petrolina, PE, 2018
CARINA LACERDA
Carranca de peito com tédio
Escultura madeira de Nym indiano.
90 x 28 cm (diâmetro)
Petrolina, PE, 2019
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
SOBRE A COORDENAÇÃO EDITORIAL
E EDITORIA DE ARTE
José Márcio Barros
Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de
Campinas e Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal
de Minas Gerais. Professor e pesquisador do PPG Artes/UEMG e do Pós-
Cultura/UFBA. Coordenador do Observatório da Diversidade Cultural.
Ana Paula do Val
Mestra em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo, especialista
em Políticas Públicas para América Latina Clacso e em Cultura e
Comunicação pela Universidade Paris VIII. Graduada em Arquitetura
e Urbanismo pela Fundação Armando Álvares Penteado e em Artes
Plásticas pela Schule Belletristik. Atua como gestora cultural, professora,
pesquisadora, artista, arquiteta e urbanista e integra os grupos de
pesquisas do Observatório da Diversidade Cultural e do Maloca.
Giselle Dupin
Graduada em Comunicação/Jornalismo (UFMG), com especialização em
Relações Internacionais (PUC Minas) e Gestão Cultural (Paris Dauphine),
é pesquisadora do Observatório da Diversidade Cultural desde sua
criação. Atua como ponto de contato da UNESCO para a Convenção
sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais.
Desde 2006, é servidora do Ministério da Cultura, atual Secretaria
Nacional de Cultura do Ministério do Turismo.
Priscila Valente Lolata
Mestra em História da Arte Universidade Federal da Bahia e doutoranda
em Cultura e Sociedade no Pós-Cultura/UFBA. Professora de História da
Arte na Escola de Belas Artes da UFBA e membro do Grupo de Pesquisa
Observatório da Diversidade Cultural. Atua também como curadora e
crítica de arte independente.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Sharine Melo
Graduada em Comunicação Social (habilitação em Publicidade e
Propaganda) pela Escola Superior de Propaganda e Marketing - ESPM
(2005), Mestre (2010) e Doutora (2015) em Comunicação e Semiótica
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, com período
de bolsa sanduíche na Universidade de Leeds (Inglaterra). Atualmente,
é Administradora Cultural na Funarte SP e pós-doutoranda na Cátedra
Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência (Instituto de Estudos Avançados
da Universidade de São Paulo), onde pesquisa “A Institucionalidade da
Cultura no Contexto Atual de Mudanças Socioculturais”, sob coordenação
do Prof. Dr. Néstor García Canclini. Entre 2016 e 2017, concebeu o Site Vozes
da Funarte SP (http://sites.funarte.gov.br/vozessp/), tendo participado
também de todo o processo de pesquisa de conteúdo e imagens,
entrevistas, redação e design. Colaborou em ações do Território de
Interesse da Cultura e da Paisagem (TICP Paulista Luz) e participou da
articulação entre instituições culturais da região dos Campos Elíseos.
É integrante do Grupo de Pesquisa do Observatório da Diversidade
Cultural e dedica-se à pesquisa sobre as políticas culturais no Brasil.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
HAL WILDSON
Vale das Ausências (detalhe)
Fotografias queimadas e Cabide
Goiânia, GO, 2017-2018 217
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
SOBRE O OBSERVATÓRIO
DA DIVERSIDADE CULTURAL
O Observatório da Diversidade Cultural (ODC) é uma instituição
integrada a um grupo de pesquisa, que desenvolve projetos e ações de
formação, investigação, difusão de informações e consultoria.
Os objetivos centrais são produzir e difundir informação qualificada,
desenvolver pesquisas que gerem conhecimento crítico, realizar
processos de formação e prestar consultoria no campo interdisciplinar
da proteção e promoção da diversidade cultural e suas interfaces com
as políticas culturais, gestão cultural, processos de mediação, memória
e patrimônio, educação, saúde, meio ambiente etc.
Com sede em Belo Horizonte (MG), a ONG atua de forma presencial e
virtual em diversos territórios do estado de Minas Gerais e de outros
estados brasileiros. O grupo de pesquisa é integrado por pesquisadores
de diferentes instituições como UEMG, PUC Minas, UFBa e UFC, que atuam
nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Ceará.
Coordenado desde sua fundação pelo Prof. Dr José Marcio Barros,
em 2010, o ODC foi reconhecido internacionalmente como uma das
melhores práticas em promoção da diversidade cultural pela comissão
alemã da UNESCO.
DIRETRIZES DE ATUAÇÃO
Formação
Realização de seminários, oficinas e cursos de curta e média duração
integrados ao Programa Pensar e Agir com a Cultura, com o objetivo de
formar e capacitar gestores culturais, artistas, arte-educadores, agentes
e lideranças culturais, pesquisadores, comunicadores e interessados
em geral por meio de metodologias reflexivas e participativas.
Pesquisa
Desenvolvimento de pesquisas e realização de diagnósticos
e mapeamentos utilizando-se de metodologias qualitativas e
quantitativas referentes a processos de gestão cultural, construção de
políticas culturais, práticas culturais etc.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Informação
Produção e disponibilização de informações focadas na diversidade
cultural e seu amplo espectro de existência e diálogo, por meio da
publicação de livros, edição de boletins, manutenção de um portal
informativo e de uma política de difusão nas redes sociais.
Consultoria
Prestação de consultoria para instituições públicas, empresas e
organizações não governamentais, no que se refere às áreas da Cultura,
Diversidade e Gestão Cultural.
PRINCIPAIS REALIZAÇÕES
• Programa Pensar e Agir com a Cultura / Curso Desenvolvimento
e Gestão Cultural – 2003 a 2020 responsável pela formação e
capacitação de mais de 3.000 pessoas;
• Portal Observatório da Diversidade Cultural
(www.observatoriodadiversidade.org.br);
• Boletim ODC com 95 edições lançadas;
• Pesquisa “Mapeamento da Diversidade Cultural em Belo Horizonte”
(2011-2013);
• Pesquisa “Arte, gestão cultural e território: desafios para a promoção
da diversidade em equipamentos culturais públicos em Minas Gerais
e Bahia” (2018-2020);
• Seminário Diversidade Cultural – 07 edições entre 2005 e 2014 e uma
em 2020;
• Participação na Comissão de elaboração do relatório quadrienal
do Brasil de monitoramento da Convenção da diversidade para a
UNESCO;
• Publicação de 6 livros e inúmeros artigos.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
SANDRO KA
Damas e Cavalheiros (detalhe)
Instalação in situ, dimensões
Porto Alegre, RS, 2018 220
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APRESENTAÇÃO DOS ARTISTAS E
AUTORES
ARTISTAS
Adriano Machado
Artista Visual. Natural de Feira de Santana, vive entre sua cidade natal e
Alagoinhas-BA. Doutorando em Artes Visuais pela UFBA, desenvolve projetos
artísticos em fotografia, vídeo e objetos que buscam discutir questões sobre
identidade, território, ficção e memória, investigando processos de políticas
de vida. Suas obras apontam para a condição humana entre os espaços
de convivência e os territórios afro-inventivos. Participou de exposições
como Bienal de Dakar 2022 (Senegal), junto ao Coletivo Intervalo (BA);
31º Programa de Exposições CCSP (2021); Valongo Festival Internacional
da Imagem (Santos/SP, 2019); Concerto para pássaros (Goethe Institut,
Salvador, 2019); Panapaná “Vamos de mãos dadas (João Pessoa, 2018).
Indicado ao Prêmio PIPA 2021; recebeu o Prêmio-aquisição no Circuito de
Arte latino-americano (2022); Prêmio principal nos Salões de Artes Visuais
da Bahia em 2013 e menções especiais em 2011 e 2014, e o Prêmio Funarte
de Residências Artísticas 2019. Participa do Latitude Artist Residence 2022
(Chicago,EUA) e realizou residências artísticas na Pivô Pesquisa Ciclo III (São
Paulo, 2020); Fluxos: Acervos do Atlântico Sul (Salvador, 2019) e VerdeVEZ, no
Campo arte contemporânea (Teresina, 2019).
Web: www.cargocollective.com/adrianomachado
Instagram: @machadomad
Carina Lacerda
Pernambucana natural de Araripina, teve seu primeiro contato com a
escultura ainda criança vendo seu irmão fazer pequenos objetos com
massa epox, já com idade adulta conhece a oficina do artesão e começa a
fazer suas esculturas tendo orientação de mestre Pintor, entre seus muitos
trabalhos destaca-se a carranca de peito, aonde a mesma ressignificou a
cara feia da carranca contra os maus espíritos, para espantar a MISOGINIA
e o machismo.
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
O tema feminino é o fio condutor de seu trabalho onde expressa sua
indignação contra todas as formas de violência contra o feminino.
Tem seu trabalho reconhecido e exposto por todo Brasil e países como:
França, Itália, Canadá e Holanda. Entre outros. Formada em Artes Visuais
(UNIVASF), mestranda UFPE. Trabalha em Petrolina a mais de 20 anos e
coleta madeira morta nas ruas das duas cidades que circundam o Rio São
Francisco para produzir suas esculturas.
Instagram: @escultora_carina
Cláudio Caropreso
Vive e trabalha em São José dos Campos. Formado em Arquitetura e
Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
do Vale do Paraíba. Pós Graduado em Arte, Educação e Tecnologias
Contemporâneas pela Universidade de Brasília. Como artista desenvolve
pesquisa com procedimentos ligados a gravura em relevo colorida e
processos criativos
Instagram: @caropresoxilogravura
Daiara Tukano
Daiara Hori Figueroa Sampaio - Duhigô, do povo indígena Tukano – Yé’pá
Mahsã, clã Eremiri Hãusiro Parameri do Alto Rio Negro na Amazônia brasileira,
nascida em São Paulo. Artista, ativista, educadora e comunicadora.
Graduada em Artes Visuais e Mestre em direitos humanos pela Universidade
de Brasília - UnB; pesquisa o direito à memória e à verdade dos povos
indígenas. Foi coordenadora da Rádio Yandê, primeira web-rádio indígena
do Brasil de 2015 à 2001. Ganhadora do Prêmio PIPA Online 2021, organizado
pelo Instituto PIPA como mais relevante prêmio brasileiro de artes visuais.
Estuda a cultura, história e espiritualidade tradicional de seu povo junto à
sua família. Reside em Brasília, DF.
Web: https://www.daiaratukano.com/
Instagram: @daiaratukano
Hal Wildson
Artista multimídia e poeta , nascido em 1991 no Vale do Araguaia , região
de fronteira entre Goiás e Mato Grosso, Hal Wildson trabalha com os
conceitos de escrita, identidade e a reconstrução de memórias coletivas e
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
autobiográficas, atravessadas por questões sociais e políticas. A pesquisa
sobre memória e esquecimento é a base de um trabalho que investiga a
criação de territórios narrativos por meio de símbolos e documentos usados
como ferramentas de construção e reconstrução no campo pessoal e
coletivo.
Web: www.halwildson.com
Instagram: @halwildson
Jessica Lemos
Artista visual, mestre em Artes pela UFSJ e graduada em Comunicação
pela UFBA. Suas obras trazem uma perspectiva afro diaspórica para falar
principalmente sobre o entrelaçamento de memórias ancestrais e familiares
em ambientes rurais. Atualmente vive em Salvador, onde trabalha com
fotografia, vídeo e performance.
Web: www.jessicalemos.com.br/
Instagram: @jessicalemos
Josi
Natural de Itamarandiba, Vale do Jequitinhonha-MG, vive e trabalha em
Belo Horizonte. É formada em Letras pela UFMG e em Artes Plásticas pela
Escola Guignard - UEMG. Suas pesquisas traçam saberes de artesanias
variadas, desenho, lavação de roupa, tintas naturais, escrita, cozinha,
cerâmica, animações... Participou das exposições coletivas RJ “Abre Alas 17”,
na Galeria A Gentil Carioca /RJ e “Algumas Histórias sobre nós”, na Galeria
Danielian/RJ. É vencedora do Prêmio Pipa 2022.
Web: www.premiopipa.com/josi/
Instagram: @josi.fsouz
Karen Eppinghaus
Fotógrafa com especial interesse na documentação do nosso povo e
suas diversas manifestações culturais. Seu modo de ser e de viver, sua
religiosidade, suas tradições, festas e rituais são temas constantes em
seu trabalho, pois são eles que nos tornam tão singulares e especiais,
conferindo-nos identidade como povo brasileiro.
Web: www.eppinghausfotografia.com.br
Instagram: @eppinghaus_foto
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REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Lucas Soares
Artista Visual e Fazedor de coisas. Mestrando em Artes, Cultura e Linguagens
(UFJF). Suas obras são marcadas pelas relações entre encontro e paisagem.
Atualmente, participa da exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil
para os brasileiros”, na qual apresenta a série “Tô descalço no calçado”, no
Sesc Sorocaba.
Web: www.lucassoares.art/
www.diasporagaleria.com.br/lucas-soares/
Ma Njanu
Poeta, artista visual e educadora. Faz parte da Pretarau - Sarau das Pretas,
coletiva de artistas negras de Fortaleza e região metropolitana; e da Rede
de Mulheres Negras do Ceará. Sua criação artística é desenvolvida através
de narrativas literárias e imagéticas que envolvam memória subjetiva-
individual coletiva, traumas e curas, celebração de saberes tradicionais
do terreiro do candomblé; crítica e ruptura dos sistemas coloniais da
modernidade, produtores de violência racial, econômica, ambiental, política,
cultural, de gênero e sexualidade. Publicou a zine Na boca do dragão da
américa latina e Olho de tigre com fome: considerações sobre a literatura
perversa.
Instagram: @mameninama
Marcela Bonfim
Fotógrafa, formada em Ciências Econômicas (2008) pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Direitos
Humanos e Segurança Pública (2011) pela Fundação Universidade Federal
de Rondônia (UNIR), atualmente se dedica ao projeto “(Re)conhecendo a
Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta” - projeto
de militância e reflexão das artes visuais, no campo da antropologia visual,
sobre a constituição e memória da população negra brasileira na região
amazônica.
Web: www.amazonianegra.com.br/bio
Instagram: @bonfim_marcela | @amazonianegra
224
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Mika
Artista Visual - Inraizada em Teresina -PI, arte educadora formada pela
Universidade Federal do Piauí. Minha pesquisa parte de uma busca por
ancestralidade através de narrativas, seja da memória familiar ou de
estudos sobre afrobrasilidade, buscando nas receitas/ensinamentos de
minha mãe e avós, pessoas mais velhas do meu convívio/trajeto, matéria
para minhas criações.Tenho baseado meu processo criativo nos últimos
tempos partindo da oralidade como fio condutor, escuta que se reverbera
em pinturas, colagem têxtil/digital, instalação etc.
Atualmente tenho buscado expandir meus processos experimentando
materialidades novas, mas que tem como ponto de partida também a
memória ancestral na escolha desses materiais, seja como suporte ou
como pigmento/tingimento das minhas criações. Participo de exposições
coletivas entre Teresina (PI), Fortaleza (CE) e São Paulo (SP).
Web: www.inraizamika.wixsite.com/portifolio
Instagram: @inraizada | @mika_raiz
Sandro Ka
Artista visual e pesquisador (Porto Alegre/RS, 1981). Professor EBA/UFMG.
Doutor e mestre em Artes Visuais (PPGAV/UFRGS). Desde 2003, realiza
exposições e participa de mostras em diversas cidades no Brasil e no
exterior, desenvolvendo produções em escultura, desenho, instalação e
intervenção urbana.
Web:
www.sandroka.com.br
www.galeriamamute.com.br/sandroka
www.facebook.com/SandroKaArte
Instagram: @sandro.ka.atelier
Tiago Sant’Ana
Artista visual, curador e doutorando em Cultura e Sociedade pela
Universidade Federal da Bahia. Seus trabalhos imergem nas tensões e
representações das identidades afro-brasileiras, entendendo as dinâmicas
que envolvem a produção da história e da memória.
Web: www.tiagosantanaarte.com
225
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Vulcanica Pokaropa
Travesti formada em Fotografia, Mestra em teatro pela UDESC, Doutoranda em
Artes pela UNESP. Sua pesquisa aborda a presença de pessoas Transexuais,
Travestis e Não Bináries no Teatro, Performance e Circo. Produtora da série
“Desaquenda” que foi seu principal trabalho do Mestrado e está disponível
no youtube pelo canal da “Cucetas Produções ``. Integra a Cia Fundo Mundo
de circo, formada exclusivamente por pessoas Transexuais, Travestis e Não
Bináries. Artista Plástica e Visual, Produtora Cultural.
Instagram: @vulknik
AUTORES
SEÇÃO I - MEMÓRIAS, CULTURAS E DECOLONIALIDADE
ENTRE ARQUIVOS E LITERATURA: PERCURSOS DE DECOLONIZAÇÃO DA
MEMÓRIA CULTURAL
Giulia Crippa
Professora Associada, Dipartimento di Beni Culturali da Universidade de
Bolonha (Itália). Doutora em História Social pela USP; Livre Docente em
Ciência da Informação pela USP.
E-mail:
[email protected]MUSEU DO MATO: ESCULTURA MUSEAL, POÉTICA DA HERANÇA
Luciana Moniz de Aragão
Luciana Moniz é graduada e mestre em Museologia pela UFBA, foi diretora
executiva do MAM da Bahia e da 3ª Bienal da Bahia, desenvolve o projeto
Museu do Mato na área rural de Mucugê, e é pesquisadora sobre relações
entre arte, herança, natureza e bem comum.
E-mail:
[email protected]GRIOTS: MEMÓRIAS, IDENTIDADE E RESSIGNIFICAÇÃO NO ENVELHECER –
RELATO DE EXPERIÊNCIAS SOBRE O LIVRO ÁRVORE
Maeli Gomes de Oliveira
Doutora em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia. É docente
226
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
adjunta do curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Feira de
Santana atuando em supervisão de Estágio no Hospital especializado em
Saúde Mental Lopes Rodrigues, atuando no Grupo de Trabalho Humanizado.
E-mail:
[email protected]Tamires Maria Lima Gonçalves Santos
Doutoranda em Educação pela Universidad Autónoma de Madrid. Mestre
em Desenho, Cultura e Interatividade pela Universidade Estadual de Feira
de Santana. Docente na Universidade Federal da Bahia, atuante no curso
de Design com foco em Ilustração e Educação Inclusiva às crianças surdas.
E-mail:
[email protected]TRANÇADEIRAS DE MASSARANDUPIÓ: PIAÇAVA, CONFLITOS
SOCIOAMBIENTAIS E SABERES TRADICIONAIS EM RISCO NO LITORAL NORTE
DA BAHIA
Marcos Paulo Sales
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Mudança Social e
Participação Política (ProMuSPP), da Universidade de São Paulo (USP).
Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social (PPGPTDS),
pela Universidade Católica do Salvador (UCSal), Bahia, Brasil. Jornalista.
E-mail:
[email protected]Sílvia Helena Zanirato
Livre-Docente em Ciência Ambiental, Professora do Instituto de Energia
e Ambiente e da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), da
Universidade de São Paulo (USP). Brasil.
RENDA DE BILRO: IDENTIDADE DE RESISTÊNCIA DO ARTESANATO NUMA
COMUNIDADE TRADICIONAL DA BAHIA
Vaneza Pereira Narciso
Pós-graduanda em Comunicação e Marketing pela Universidade Salvador
(Unifacs), Bahia, Brasil.
E-mail:
[email protected]Viviane Pereira Narciso
Pós-graduada em Gestão da Qualidade pelo Centro Universitário Jorge
Amado (UNIJORGE), Bahia, Brasil.
227
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
E-mail: [email protected]
Marcos Paulo Sales
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Mudança Social e
Participação Política (ProMuSPP), da Universidade de São Paulo (USP).
Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social (PPGPTDS),
pela Universidade Católica do Salvador (UCSal), Bahia, Brasil. Jornalista.
E-mail: [email protected]
SEÇÃO II - POÉTICAS E DECOLONIALIDADE
AS NARRATIVAS DE AVIVI NA PRODUÇÃO DE UMA POÉTICA VISUAL AFRO-
BRASILEIRA
Ayrson Heráclito
Ogã Sojatin do Jeje Mahi em Salvador, professor da UFRB na cidade de
Cachoeira-BA, artista visual e curador. Doutor em Comunicação e Semiótica
pela PUC São Paulo, Mestre em Artes Visuais pela UFBA.
PO_ÉTICA DAS MERMAZÁRIAS
Francisco Rômulo do Nascimento Silva
Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia
(PPGS/UECE), pesquisador do Laboratório de Estudos sobre a Conflitualidade
e Violência (COVIO), da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e
pesquisador-colaborador do Laboratório de Arte Contemporânea (LAC), da
Universidade Federal do Ceará (UFC) e também pesquisador do Laboratório
de Artes e Micropolíticas Urbanas (LAMUR/UFC).
UM OLHAR DECOLONIAL SOBRE A TEMPESTADE, DE WILLIAM SHAKESPEARE
Weslaine Gomes
Professora, atriz, produtora e gestora cultutal. Graduada em Ciências
Sociais e Mestra em Ciência Política, ambos pela UFMG. Especialista em
Políticas Culturais de Base Comunitária pela FLACSO. Formada em Teatro
também pela UFMG.
E-mail:
[email protected] 228
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
GRITANDO PELAS PAREDES: A ARTE URBANA COMO NARRATIVA DECOLONIAL
NA AMÉRICA LATINA
Carolina Maria Soares Lima
Geógrafa e mestre em geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais
e especialista em Políticas Sociais Integradas pela Universidade Estácio de
Sá. É pesquisadora do Observatório da Diversidade Cultural e bolsista DTI
do Observatório das Metrópoles.
E-mail:
[email protected]CRISE E IDENTIDADE
Érika Bauer
Professora do Curso de Comunicação Social da Universidade de Brasília.
É documentarista e realizou, entre outros, o documentário “Dom Helder
Camara, o Santo Rebelde”, e “Flor do Moinho”, seu mais recente trabalho.
Doutoranda no PPG- Faculdade de Comunicação/UnB.
CURRÍCULO E DECOLONIZAÇÃO: DISCUSSÕES INICIAIS NO CAMPO DO
TEATRO (DIREÇÃO TEATRAL- UFBA)
Alexandra Gouvêa Dumas
Professora da Escola de Teatro da UFBA.
E-mail:
[email protected]ENTREVISTA COM JORGE ARMANDO NDLOZY
Wolfgang Pannek
Diretor, performer, autor, tradutor e produtor. Integrante (1992) e codiretor
(1994) da Taanteatro Companhia. Mestre em filosofia, letras e psicologia
pela FernUniversität Hagen (Alemanha). Doutorando em filosofia pela
Academia de Artes de Leipzig sob orientação de Marc Rölli.
DESCONSTRUIR DISCURSOS E PRÁTICAS NATURALIZADAS SOBRE OPRESSÕES
E IMPUNIDADES
Solange Borelli
Artista da dança, gestora e articuladora de projetos culturais. Idealizadora
e diretora geral de Dança à Deriva - Encontro Latino-americano de Dança,
Performance e Ativismo. Mestra em Artes pela UNICAMP. Mestranda em
229
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
Ciências no PROMUSPP - Programa de Pós graduação Mudança Social e
Participação Política pela EACH USP. Integra o Grupo de Pesquisa ECOAR
(EACH) e o Grupo de Pesquisa NUPEDELAS ( PROLAM)
Cecilia Setti
Obstetriz (EACH-USP), pós graduada em Saúde Coletiva (IS-SES/SP), tem
experiência em assistência à saúde da mulher e em políticas públicas
de saúde. Atualmente é pesquisadora em Tradução do Conhecimento
e Políticas Informadas por Evidências para o fortalecimento de políticas
sociais (Instituto Veredas).
ESTÁ NO SANGUE! RASTROS DE MEMÓRIA E PROCESSOS DE APAGAMENTOS
RACIAIS
Talita Rocha da Silva
Artista e Arte-Educadora. Mestre em Artes pela UEMG.
APARÁ - CAMINHOS DAS EPISTEMOLOGIAS FEMINISTAS NEGRAS NA
CANÇÃO BRASILEIRA
Mariela da S. Santiago Laban
Mestranda em Cultura e Sociedade no Pós Cultura UFBA.Graduada em
Jornalismo, intérprete - compositora, artista interdisciplinar. Este trabalho
contou com apoio da bolsa FAPESB - Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado da Bahia.
E-mail:
[email protected].
230
REVISTA BOLETIM OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL . V.96 . N.01.2022
HAL WILDSON
Série Singularidades
Datilograma (digitais do artista) atravessada por
fotomontagens e digigravuras que misturam arquivos
e documentos fotográficos nacionais com recortes
autorais, impresso com pigmento mineral em papel
Edition Etching Rag 310g 100% algodão. 231
São Sebastião, SP, 2020