Personagem Judeu – “Auto da Barca do Inferno”
Personagem-tipo → Representa a Religião Judaica, todos os Judeus que viviam em Portugal
(classe religiosa). No século XV, para ficarem no nosso país, os Judeus foram forçados a converter-se ao
Cristianismo (cristãos-novos), embora muitos continuassem a seguir, às escondidas, os rituais do
Judaísmo (não aceitando verdadeiramente mudar de religião). Esta situação manteve-se na época de Gil
Vicente, século XVI, continuando a ser vítimas de perseguições, de maus tratos, eram acusados
como responsáveis de tudo o que acontecia de mal no nosso país – o que revela a não aceitação
pela maioria da sociedade portuguesa, só por questões de crenças religiosas.
Elemento Cénico Simbologia
Representa a Religião Judaica, pois este animal era
“bode” utilizado em cerimónias / rituais específicos do Judaísmo
(normalmente como sacrifício para pedir ou agradecer
favores divinos).
Percurso Cénico da Personagem
1) Diálogo entre o Judeu, Diabo e Parvo (v. 557 a 604)
Ao contrário de todas as restantes personagens-tipo, o Diabo mostra o seu desagrado quando o
Judeu chega ao cais, desprezando-o e falando de forma ríspida, só por ele ser representante da
Religião Judaica, não querendo deixá-lo entrar (nem ao bode) na barca infernal, como se pode ver
nos versos 558 – “Oh! que má hora vieste! “; v. 560 – “Esta barca é do barqueiro”.; v. 562 e 564 – “E
esse bode há cá de vir? Que escusado passageiro!”; v.566 – “Nem eu passo cabrões.”; v. 572 –
“Nenhum bode há de vir cá.”
→ O desprezo por elementos do Judaísmo é tanto, que o próprio Diabo diz ao Judeu para ir para a
Barca do Anjo – “lá te passarão, porque vão mais despejados” (v. 593 e 594). – Cómico de Situação
NOTA – O Judeu é a única personagem que não apresenta argumentos de defesa perante o
Diabo; pelo contrário, pede-lhe para o passar, oferecendo-lhe dinheiro (v. 567 a 571). Quando o
Arrais Infernal se nega a deixá-lo entrar e ao seu bode, o Judeu oferece-lhe mais dinheiro, oferece-lhe
quanto quiser. Mais uma vez, o Diabo impede a sua entrada, o que leva o Judeu a perguntar por que
razão ele não pode entrar na mesma barca “onde vai Brízida Vaz?” (v. 573 e 574) – o que revela que as
personagens se conheceram na vida terrena.
Ao ver também o Fidalgo, trata-o de forma bastante respeitosa, pedindo-lhe para ser ele a deixá-lo
entrar naquela barca, como se fosse o Fidalgo (pela sua importância social) a decidir quem entra, e
castigar o Diabo (v. 576, 578 e 579 ) - Cómico de Situação
v. 581 a 588 – O Judeu insulta e “roga pragas” ao Diabo por não o deixar entrar – Cómico de
Linguagem e Situação. Tal atitude revela que o Judeu é tão fanático pela sua religião, que nem
depois de morto ele aceita separar-se do bode, isto é, nem após a sua morte ele aceita mudar de
religião / converter-se ao Cristianismo. Para além disso, se em vida nunca foi aceite pelos cristãos,
nunca poderia ter entrada na Barca da Glória.
Acusações – são feitas pelo Parvo (assume novamente o papel de acusador e de provocar o riso):
v. 589 a 592 / 595 a 600 – através de uma linguagem disparatada e pouco lógica (Cómico de
Linguagem e Situação), insinua que o Judeu roubou o bode; acusa-o de profanar as sepulturas
católicas / desrespeitar os mortos da religião católica (os mortos eram enterrados nas capelas ou
igrejas); e acusa-o ainda de comer “carne no dia de Nosso Senhor”, ou seja, de desrespeitar os
rituais da própria religião judaica, (apesar do fanatismo que mostra, a ponto de preferir entrar na Barca
do Diabo).
Sentença final – O Diabo não quer perder mais tempo com esta personagem, por isso acaba por
aceitar levar o Judeu e o seu bode para o Inferno, mas são levados a reboque (“irês à toa” – v. 602) –
mesmo sendo todos pecadores e merecedores do Inferno, o facto de não entrar na barca e ir a reboque
mostra que o Judeu é colocado num plano inferior ao de todos os condenados ao fogo infernal.
Texto Expositivo
O Judeu, carregado com o seu bode às costas, dirige-se diretamente ao batel infernal, pedindo ao
Diabo autorização para entrar.
Como o Diabo levanta objeções à entrada do bode, o Judeu tenta suborná-lo, pois não quer
abandonar o símbolo da sua religião. Ao mesmo tempo que insulta o Diabo, o Judeu pede para que o
Fidalgo intervenha a seu favor. Para além de criar efeitos cómicos, o Parvo acusa o Judeu de ter
profanado sepulturas católicas e não ter cumprido os rituais religiosos do Judaísmo.
Finalmente, o Diabo aceita levar o Judeu e o seu bode, mas a reboque, o que mostra o desprezo
pelo Judaísmo existente na época de Gil Vicente.