“Negrinha”, Monteiro Lobato, 1920
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos
ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos
cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa
não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, mimada dos padres, com lugar
certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entalada as banhas no trono (uma cadeira de
balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário (...)
Ótima a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos,
não a calejara o choro da carne de sua carne. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança,
gritava logo nervosa:
– Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a
boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho
beliscões de desespero.
– Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre ou frio, desses que
entanguem pés e mãos e fazem-nos doer.... Assim cresceu, Negrinha - magra, atrofiada, com os
olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a
pontapés. Não compreendia a ideia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma
coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas
quase não andava. Com pretexto de que à solta estragaria as plantas no quintal, a boa senhora
punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.
– Sentadinha aí, e bico, hein?
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.
– Braços cruzados, já, diabo! (...).
Que ideia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha,
diabinho, coruja, barata descascada, pinto gorado, mosca morta, trapo, coisa ruim - não tinha conta
o número de apelidos com que a mimoseavam.
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões (...). A excelente dona Inácia
era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos – e daquelas
ferozes. Nunca se habituara ao regime novo - essa indecência de negro igual a branco e qualquer
coisinha: a polícia!
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o chicote, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava,
Negrinha, em casa como remédio para os frenesis. Inocente divertimento.
Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas,
lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas. Do seu canto na sala do trono
Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu – alegres, pulando e rindo com a
vivacidade de cachorrinhos novos (...).
“Negrinha”, Monteiro Lobato, 1920
Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos
ouvidos o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga?” (...)
Chegaram as malas e logo:
– Meus brinquedos! – Reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa
assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... (...).
Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. E, num momento em
que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o
beliscão e aproximou-se da criaturinha de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem
ânimo de pegá-lo.
As meninas admiraram-se daquilo.
– Nunca viu boneca?
– Boneca? – repetiu Negrinha. Chama-se Boneca?
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
– Como é boba! – disseram. – E você como se chama?
– Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de rir; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava,
disseram, apresentando-lhe a boneca:
– Pegue!
Negrinha pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor Menino, sorria para
ela e para as meninas, com assustados relanços d’olhos para a porta. (...) Tamanho foi o seu enlevo
que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia deteve-se, feroz, e esteve uns instantes assim,
apreciando a cena (...).
Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força
irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi
mulher. Apiedou-se. (...)
– Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a
fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu (...)
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma – na princesinha e na mendiga.
“Negrinha”, Monteiro Lobato, 1920
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia que tinha uma alma. (...) Sentiu-se enlevada à
altura de ente humano. Cessara de ser coisa – e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa.
Se não era coisa? Se sentia? Se vibrava? Assim foi – e essa consciência a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou a rotina.
Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada (...).
Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de
susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, pensativos., cismarentos. Aquele dezembro
envenenara-a.
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos. Como um gato sem dono. Jamais,
entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de
olhos azuis. E de anjos... (...)
LOBATO, Monteiro. Negrinha (1920).
In: REBELO, Marques. Antologia Escolar Brasileira,
Departamento Nacional de Educação/MEC, 1967, p. 70-74
VOCABULÁRIO
ruços: pardos, desbotados.
entalada: apertada
calejar: endurecer, tornar insensível.
vagir: gemer, chorar
entanguir: encolher-se, contrair-se.
gana: desejo, ímpeto, raiva, ódio, impulso de fazer o mal.
frenesi: impaciência, inquietação, desvario.
êxtase: encanto, admiração, assombro.
extática: em êxtase.
cismarento: pensativo, sonhador.
QUESTÕES DE ANÁLISE DO TEXTO
1. Em que época se passaria a narrativa? A escravidão ainda existia ou já tinha ocorrido a abolição?
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2. Faça um levantamento das palavras e expressões que caracterizam a Negrinha e dona Inácia.
Inclua aquelas que denotam ironia e sarcasmo, isto é, significam exatamente ao contrário do que
dizem.
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“Negrinha”, Monteiro Lobato, 1920
3. “Que ideia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho?” Responda a
pergunta do autor.
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4. “Varia a cor da pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma – na princesinha e na
mendiga”. Você concorda com essa afirmação? Por que?
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5. “Brincara ao sol, no jardim. Brincara!” Qual é a diferença de sentido entre brincara, brincou e
brincava? Que ideia o autor nos transmite nessa frase?
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6. O que despertou a consciência de Negrinha? Como o autor comenta essa transformação?
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7. O que tornou Negrinha tão triste a ponto de morrer?
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8. Que padrão de beleza a boneca representa? Esse padrão ainda persiste na atualidade?
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9. O autor faz muitas denúncias nesse conto. Qual delas mais chamou a sua atenção?
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10. Imagine um outro final para o conto. Depois que as sobrinhas de dona Inácia foram embora, que
outro destino Negrinha poderia ter?
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