TeoriadaHistoriaHoje Ebook
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FRANCINE IEGELSKI
RENATA SCHITTINO (orgs.)
PPGH/UFF
Usina Editorial
Niterói/ 2022
SUMÁRIO
3 Apresentação
Desde o século XIX, ao menos, quando a concepção moderna de história ainda era uma
novidade, o saber teórico ganhou uma dupla ênfase. Seja na forma da filosofia, da teoria
política, da teoria literária ou na forma da teoria da história, entre outras, esse tipo de
conhecimento eminentemente reflexivo configurava-se como uma tentativa de pensar
a natureza e a articulação de determinados preceitos gerais das ciências nascentes nas
suas diversas especificidades, além de se ater às investigações sobre a inteligibilidade da
própria realidade – agora entendida como sendo advinda do
processo histórico. Nesse período, o historiador, construindo os arcabouços da profis-
sionalização da história, foi lançado no turbilhão de disputas com as demais ciências,
querendo circunscrever a validade e a singularidade de seu ofício. Note-se que a afir-
mação da disciplina história e a definição de seus critérios de racionalidade implicou
também em uma elaboração particular das relações entre passado-presente-futuro. No
entanto, havia certa reticência em deixar evidente essa relação entre regras da disciplina
e modos de conceber a realidade. Na verdade, poder-se-ia supor que essa relação seria
suplantada por meio do recurso da isenção ou da neutralidade do historiador, de modo
que a teoria devia dar lugar a perspectivas metodológicas da prática historiográfica, ver-
sando não sobre um suposto sentido da história ou sobre as formas de organização da
disciplina. A metodologia surgia, assim, como um instrumento privilegiado, promotor
de critérios e modos de identificar e organizar as fontes históricas, por meio dos quais
seria possível explicar ou compreender o processo histórico. Em linhas gerais, o que
propiciava a possibilidade de neutralidade do historiador, além de seu aparato técnico (a
metodologia) era o recurso da morte do passado histórico. Entendia-se que quanto mais
para trás um evento estava no tempo, quanto mais distante do acontecido o historiador
estivesse, mais profissional ele seria, pois não estaria envolvido com os problemas e
questões a serem tratadas graças ao distanciamento.
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Do século XIX para cá muita coisa mudou no âmbito da prática historiográfica, mas
mesmo com a pluralização de olhares, objetos e fontes históricas e avanços na com-
preensão da natureza do conhecimento histórico, ainda é possível sentir o resquício
dessa cisão entre teoria e metodologia na área de história. A metodologia da história foi,
e talvez ainda seja em determinados círculos de historiadores, a questão principal da
historiografia. É assim que muitos ou repudiam as questões de teoria, ou entendem que
teoria e metodologia são uma única e mesma coisa (acreditando que a metodologia por
si só é suficientemente teórica).
Entendemos que sempre que se estabelece uma metodologia para a produção his-
toriográfica, está imbricada nesta metodologia uma determinada concepção teórica. O
que no caso da ciência histórica significa, sobretudo, que quando se está a propor uma
metodologia para análise e localização de fontes, esta proposta comunga de uma visão
da história, uma concepção histórica da história. Acontece que tematizar a teoria que
subjaz às práticas metodológicas e as diversas formas de escrita ou de vivências e agên-
cias da história é uma das tarefas específicas da teoria da história.
Heidegger, certa vez, perguntando-se sobre a diferença entre “ciência e pensamen-
to do sentido”, indicou a impossibilidade da ciência de pensar a si mesma, sob seus
próprios critérios. A história, já indicava o filósofo naquela época, é uma ciência com
uma possibilidade mais alargada que as outras no que tange a este critério, posto que
ela consegue analisar historicamente a sua própria prática – a isso os historiadores cha-
mam de historiografia.
De fato, a história da escrita da história vem sendo um recurso importante no cres-
cimento do âmbito de estudos históricos no Brasil e no mundo, permitindo aos historia-
dores considerar elementos de seus modos de escrever e pensar a história. Interessante
notar que esse exercício não se configura como uma possibilidade teórica separada do
processo histórico, uma vez que cada escrita da história está ligada à sua época e à rede
de interlocução dos historiadores. Não é possível que o historiador saia do mundo histó-
rico para escrever história, nem para escrever história da escrita da história. Parece que
esse reconhecimento e historicização da disciplina remete aos anseios de elaborar um
lugar autônomo para a teoria da história, sem que isso a leve para qualquer instância para
fora do planeta ou para o mundo das ideias descarnadas.
No entanto, se a historiografia é uma possibilidade de espaço para a teoria da histó-
ria – compondo-se como uma ciência que pode pelos seus próprios critérios dobrar-se
sobre si mesma, refletindo sobre sua historicidade –, há também um outro traço, aquele
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que Heidegger negava às ciências, que é a possibilidade do pensamento do sentido.
Entendemos que a teoria da história abarca também esse movimento de pergunta pelo
sentido. Não como uma busca pelo sentido teleológico das filosofias da história, como
acontecia no século XIX, mas como uma indagação pelas maneiras de constituição de
sentido do histórico.
Durante o século XX, a história vem, mais significativamente, se confrontando com
os limites de sentido do histórico, sobretudo a partir dos debates e embates com os sabe-
res afins, como as ciências sociais, a antropologia, a crítica literária e a filosofia. Mas foi
desde o momento da chamada Linguistic turn, a Virada Linguística dos anos 1960, que a
teoria da história passou a ser entendida cada vez mais como um campo de investigação
reflexivo da história, lugar em que os historiadores perscrutam um conjunto de elemen-
tos que estão em jogo na produção do conhecimento histórico. Embora a Linguistic turn
tenha jogado um papel importante para as ciências e a filosofia como um todo e tenha
colocado, para a história, as incongruências da relação imanente entre a linguagem e a
investigação sobre o passado, foi notadamente nos anos 1980, segundo François Hartog,
que os historiadores cada vez mais experimentaram a tentação da epistemologia. Para
alguns observadores do momento, como Gérard Noiriel, essa virada epistemológica na
história estaria ligada à “crise de identidade” da própria disciplina. É razoável dizer que
esses trabalhos são uma resposta ao abandono dos grandes paradigmas teóricos dos
anos 1960. Mas consideramos, de nossa parte, que o interesse pelo teórico na história
seja bem mais do que isso. A teoria da história se nutre da natureza inquietante do co-
nhecimento histórico, das suas condições paradoxais, entre elas: perseguir o passado sa-
bendo impossível alcançá-lo tal como ele foi; defender a objetividade da história ao mes-
mo tempo que se considera que a própria história não pode existir sem altas doses de
imaginação; construir a distância em relação ao objeto investigado sem desconsiderar
que a posição do historiador em relação a esse objeto incidirá sempre sobre a sua análise.
A teoria da história, portanto, abarca tanto a reflexão historiográfica quanto a refle-
xão de sentido do histórico. Essa tendência teórica da historiografia do fim do século XX
parece ter se estendido até os dias de hoje, com movimentos de avanços e recuos e com
consideráveis diferenças em relação às historiografias nacionais. No Brasil, a Sociedade
Brasileira de Teoria da História e História da Historiografia (SBTHH), criada em 2009,
pode, em certa medida, ser inscrita nesse momento reflexivo em que os campos de inves-
tigação da teoria da história e da história da historiografia ganham destaque dentro da
disciplina. No documento de fundação da SBTHH, a Carta de Mariana, seus signatários
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sublinham que “nenhuma historiografia pode ser considerada sólida sem que em sua
matriz disciplinar a área de teoria e história da historiografia tenha se desenvolvido de
modo pleno e autônomo”. Mais do que atribuir causas gerais para explicar essa não tão
súbita “tentação da epistemologia” experimentada pelos historiadores, nossa intenção
com esse livro é apresentar alguns caminhos percorridos pelos historiadores que fazem
teoria da história hoje, mesmo considerando que nossas investigações são marcadas por
preocupações muito heterogêneas.
A proposta do livro é ensejar a reflexão sobre a concepção, o alcance e as especifi-
cidades da teoria da história hoje. Pode-se dizer que a noção de teoria da história está
intimamente relacionada à delimitação, pelos próprios historiadores, das fronteiras e
definições de sua ciência – o afastamento da historiografia da memória, da literatura e
da filosofia ao longo do século XIX. Também não é inviável entender que já havia teoria
da história mesmo quando tal prática não coincidia diretamente com a busca da cien-
tificidade moderna da disciplina, observando-se que a pergunta pelo histórico – pelo
tempo histórico, pela experiência histórica, pela escrita da história – é até anterior e/ou
ultrapassa as indagações dos historiadores profissionais.
Em meio às urgências do público e às demandas do tempo presente, em especial,
tendo em vista a valorização das experiências e as imbricações entre teoria e prática
na nossa realidade social e política, a ideia da coletânea é lançar aos autores algumas
das seguintes questões: o que significa fazer teoria da história hoje? Como a teoria da
história se relaciona com a ação política e com a prática historiadora? Quais as especi-
ficidades do historiador que se especializa em teoria da história? Quais são as relações
entre a escrita histórica e a escrita ficcional? Quando e de que modo os historiadores e
não historiadores enfrentaram a questão do histórico ao longo do tempo? Quais foram
as especificidades do saber histórico no decorrer do século XX, especialmente no con-
texto das ciências humanas? Como a história intelectual, a historiografia e a teoria da
história costumam se articular como um conjunto investigativo? É possível fazer uma
história do tempo presente?
Temos em vista a necessidade de afastamento de uma noção de teoria que pretenda
tanto dizer de antemão para onde a história vai, como o fizeram as filosofias da histó-
ria tradicionais, quanto de uma noção de teoria que se posicione como saber anterior
acumulado para o exercício da prática historiográfica, como pretendem fazer as meto-
dologias da história. A teoria da história constitui-se, então, por meio de um conjun-
to de perguntas que o historiador de hoje faz sobre como as sociedades e as pessoas
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experimentam o tempo, sejam aquelas que se definem ou não por meio da história; e
sobre como elas escreveram e escrevem história e por que a escreveram e escrevem.
Supõe-se aqui que é hora de vislumbrarmos o lugar da teoria da história como espaço de
reflexão sobre questões relacionadas às possibilidades de pensar e agir historicamente
e de escrever história, o que implica, por fim, em refletir sobre o sentido do histórico e
sobre os seus limites.
Esse livro está dividido em quatro partes temáticas e os seus autores se encontram
em diferentes momentos de formação e de carreira. Os capítulos foram escritos por
pós-graduandos da Universidade Federal Fluminense em plena atividade; por pesqui-
sadores e professores com sólida formação e reconhecimento na área, oriundos de di-
ferentes universidades do país e do exterior. Consideramos que essa heterogeneidade
seja positiva, uma vez que nos permite ter um panorama amplo das questões relativas
à teoria da história, pois os diferentes capítulos do livro compreendem perspectivas di-
versas, nem sempre coincidentes.
Na primeira parte do livro, os autores trabalham com as concepções de responsa-
bilidade, ética e alteridade, pensando em que medida esses temas se relacionam com a
teoria da história no mundo contemporâneo.
Renata Schittino pretende mapear o conceito de responsabilidade no pós-Segunda
Guerra Mundial e observar como se pode revelar a partir daí uma nova experimentação
do tempo e da história, concebida fundamentalmente sob o jugo da ameaça ao futuro/
existência do planeta enquanto tal. A autora trabalha com uma série de concepções de
responsabilidade formuladas depois de 1945, tendo em vista, em especial, a análise da
argumentação de Hannah Arendt e de Jean Paul Sartre, e defende que é possível perce-
ber na evocação da noção de responsabilidade uma preocupação com a continuidade da
história e o compartilhamento de um mundo comum.
A pergunta pelas formas de se relacionar com o passado e com o futuro, tendo em
vista a abordagem ética é também tematizada por João Ohara, que pergunta mais pro-
priamente pela ética da história. O autor trata da pretensão do conhecimento histórico,
que ao se instalar como ciência na modernidade pretendeu deixar para trás o pressu-
posto da história exemplar, indicando que, apesar das transformações na experiência
do tempo, a história não se livrou do problema dos valores. Ohara acredita que ainda
devemos considerar as relações práticas com o passado e que, não se pode perder de
vista, essas relações afetam também a produção de conhecimento histórico e como o
historiador se relaciona com o seu público. Ao escrever história estabelece-se um pacto
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com o leitor que não é meramente cognitivo, mas envolve uma relação valorativa, de
confiança e responsabilidade.
Em seu capítulo, Cristiano F. de Barros traz o debate da perspectiva heterológica
de Michel de Certeau como elemento essencial para pensar a teoria da história hoje. O
autor defende que o modo certeauniano de ver a história traz em seu bojo a questão da
alteridade, da outridade, que aparece não como um objeto a ser pesquisado, mas como
um fundamento ético, estético e epistemológico. Tem-se em vista que a tarefa da histo-
riografia, ao manter-se crítica, não é uma recomposição do passado, de modo a torná-lo
presente, mas de se erguer a partir da morte do passado, da ausência, dos rastros. A
produção histórica é, sobretudo, consciência do passado. Reconhecimento da diferença
entre passado e presente. Experiência da perda.
A segunda parte do livro é dedicada a pensar as relações entre história e literatura
e como essas interconexões são frutíferas para as pesquisas e os avanços no campo da
teoria da história hoje.
Luiz Costa Lima traz novas considerações sobre o problema que perseguiu duran-
te boa parte de sua vida, qual seja, a tentativa de reformulação da concepção grega de
mímesis. Vale lembrar que o presente texto de Costa Lima foi apresentado em uma
sessão dos Webinários do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense1,
em setembro de 2022. Costa Lima coloca mais uma vez em questão o modo pelo qual
história e literatura são comumente consideradas, como se a literatura se completasse
unicamente pela abordagem histórica. À própria historiografia, considera o autor, tem
se imposto, ao menos desde os anos 1970, a sua dimensão ficcional. O passado chega
até nós por uma ficção do fato que não invalida a história, muito pelo contrário, esta faz
parte da própria forma do conhecimento histórico. Mas seria possível, então, pressupor
que a ficcionalidade do romance tenha a mesma natureza, ou possa ser entendida da
mesma maneira que entendemos a ficção na historiografia?
As maneiras de se compreender ficção e realidade podem ainda ser estendidas aos
nexos que ligam história, literatura e mito. Ademais, essas relações contém chaves in-
terpretativas valiosas para se escrever a história do tempo presente, apresentando pers-
pectivas diferentes sobre o passado e o futuro de uma dada sociedade. Francine Iegelski,
1 COSTA LIMA, Luiz. Webinários do IHT. História e literatura: panorama crítico. Debatedores: Ana Carolina de
Azevedo Guedes (PUC-Rio) e Maycon da Silva Tannis (PUC-Rio). 29 de setembro de 2022. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=7xCFK41UlhQ.
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a partir de sua leitura do romance Dois irmãos (2000), escrito pelo manauara Milton
Hatoum, reflete sobre os impactos traumáticos da ditadura militar sobre a trama da
ficção, escrita nos anos 2000, e os significados que aquele período autoritário assu-
mem no momento em que o leitor do romance vive a experiência tenebrosa do governo
Bolsonaro. Ademais, o romance de Hatoum permite à autora explorar a história de um
antigo motivo mítico ameríndio, o dos falsos gêmeos rivais, registrado pelo viajante
André Thevet, no século XVI brasileiro.
Graças às reflexões realizadas a partir do campo da teoria da história, temos visto,
cada vez mais, trabalhos que exploram a inflexão das múltiplas dimensões do universo
literário – linguagem, trauma, experiência, ficção, memória e imaginação – para a escri-
ta da história. Entretanto, é muito interessante pensar esse problema a partir de um pon-
to de vista inverso, ou seja, levando em consideração as maneiras pelas quais a leitura de
obras escritas por historiadores impactam a produção de universos ficcionais. Ou, ainda,
quais seriam as tarefas dos historiadores para a compreensão do passado, segundo os
escritores? Em seu capítulo, Pedro Caldas, a partir de indicações encontradas nos textos
de Primo Levi sobre a história e os historiadores, percorre esse instigante caminho.
Na terceira parte, é possível perceber como a história intelectual pode ser uma abor-
dagem para as investigações da teoria da história, seja a partir da própria historiografia,
seja considerando, por exemplo, a produção das ciências humanas.
Em seu capítulo, Juliana Reis propõe uma aproximação entre dois livros fundamen-
tais das ciências humanas no século XX. Trata-se de Os sertões (1902), do escritor Euclides
da Cunha, e Tristes trópicos (1955), do antropólogo Claude Lévi-Strauss. Pelo tema da via-
gem, Reis explora como, nessas obras, o deslocamento espacial é um mote importante
para se entender as contradições e transformações de perspectivas vividas por seus res-
pectivos autores. Ao entrarem em contato com lugares e pessoas antes desconhecidos,
eles modificaram, a partir do contato com o outro, as suas compreensões da relação de
suas próprias sociedades com o presente, o passado e o futuro.
A abordagem da história intelectual, portanto, possibilita aos investigadores tomar
como objeto de reflexão da teoria da história as obras de autores que não são historia-
dores mas que estiveram às voltas com a história. Mas a história intelectual se encontra
com a teoria da história também para pensar a própria historiografia. O capítulo escrito
por Felipe Brandi traz considerações sobre o estado atual da teoria da história, levando
em conta as diferenças das experiências brasileiras e francesas. Se no Brasil a teoria
ganhou forte impulso desde os anos 2000, na França essa conjuntura parece ter se
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eclipsado na última década. Perdurou também, é preciso reconhecer, uma desconfiança
de muitos colegas historiadores com a área. Brandi nos apresenta um estudo de caso, a
sua tese sobre Georges Duby, autor que até então não havia sido tão minuciosamente
perscrutado pela historiografia. Duby integrou ativamente uma geração de historiado-
res que se dedicou a pensar as representações mentais enquanto um problema histórico.
Duby teve de readequar, por conta de questões epistemológicas e por disputas de poder
dentro da vida acadêmica, o seu projeto e as suas reflexões sobre o ofício de historiador.
A historiografia se escreve em cenários movediços, de constantes transformações. A
quarta e última parte deste livro traz uma reflexão sobre os desafios de se escrever uma
história do tempo presente diante de um tempo perturbado. Em seu capítulo, Fernanda
Olívia Lázaro trata de um momento histórico de profunda distopia no Brasil, analisado
a partir do discurso da Ponta da Praia, realizado pelo então candidato a presidente na
eleição de 2018, Bolsonaro. O discurso da apologia da destruição e da “limpeza” do país
de Bolsonaro, já naquele momento, se apoiava em uma retaguarda, a qual ele descreveu
como sendo as “Forças Armadas altiva (sic), que estarão colaborando com o futuro do
Brasil”. A negação de nosso passado histórico por um público não especializado e ideolo-
gicamente interessado tem nos compelido a repensar, cada vez mais, o papel da própria
história. Levando em consideração os problemas de nossas sociedades atuais, drama-
ticamente postos a nu no contexto da pandemia de covid-19 que atingiu todo o globo,
conseguiremos reconfigurar o sentido do histórico na história? Essa parece ser uma ta-
refa central dos historiadores que vivem as frenéticas primeiras décadas do século XXI.
***
Desejamos, por fim, que esse livro possa ser um instrumento de divulgação e de
afirmação da relevância da área de teoria da história para a própria disciplina, de um
modo particular, e também, mais amplamente, para o conjunto das ciências humanas.
Há tempos vemos um esforço realizado por docentes e pesquisadores em diferentes ní-
veis de formação, seja na graduação, ou na pós-graduação, no interior da Universidade
Federal Fluminense nessa mesma direção.
Este livro não seria possível sem o apoio do Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal Fluminense, cujo edital financiou a materialização do projeto.
Gostaríamos de agradecer a todos os membros do Programa - alunos, funcionários e
professores e, em especial, aos Coordenadores Alexandre Carneiro e Jonis Freire.
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ÉTICA, RESPONSABILIDADE
E ALTERIDADE
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RESPONSABILIDADE HISTÓRICA -
SOBRE A CONTINUIDADE DA HISTÓRIA
NO PÓS-SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
RENATA SCHITTINO2
3 A ideia fundamental é apresentar um pouco deste horizonte esquecido do alvorecer da ênfase so-
bre responsabilidade na esteira da segunda guerra mundial e da bomba atômica como possibilidade
de destruição do planeta. Tenho em vista que se trata de uma temática importante hoje e também
de um conceito em disputa, conforme definiu J. Butller, observando que o neoliberalismo avança
para tomar para si a concepção de responsabilidade, incutindo a conexão entre responsabilidade e
liberalismo, sob a máxima “cada um é responsável por si mesmo”. Butler defende a retomada do
conceito de responsabilidade para a seara da esquerda, donde responsabilidade não significa res-
ponsabilidade individual, mas uma responsabilidade pelo coletivo, uma responsabilidade que tem
em vista a pluralidade e o mundo compartilhado. “Embora responsabilidade seja uma palavra que
circule bastante entre os que defendem o neoliberalismo e concepções renovadas do individualis-
mo político e econômico, vou procurar reverter e renovar seu significado no contexto do pensamen-
to sobre formas coletivas de assembleia”(BUTLER, 2018, p. 20). Trata-se em Butler da “possibilidade
de descontrair essa forma de responsabilidade individualizada e enlouquecedora em favor de um
ethos de solidariedade que afirmaria dependência mútua, a dependência da infraestrutura e de
redes sociais viáveis, abrindo caminho para uma forma de improvisação no processo de elaborar
formas coletivas e institucionais de abordar a condição precária induzida.” (BUTLER, 2018, p. 27)
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A problemática, embora tenha aparecido de modo evidenciado depois da guerra,
certamente, tem relação com o próprio caráter específico das guerras totais. Como
notou Hobsbawm, as duas grandes guerras mundiais do início do século XX, seriam
estranhas para os grandes diplomatas do XX; nenhum deles pensaria em levar o
conflito às últimas consequências. Fato é que tanto os aspectos próprios do totalita-
rismo, quanto o desenvolvimento do armamento moderno, corroboraram para que
nas terríveis batalhas da primeira guerra mundial, e, em especial, da segunda guerra,
deixasse de haver uma fronteira entre civis e militares. A guerra total significava que
toda a população na sua totalidade e todo o globo estavam envolvidos no confronto.
Indicava ainda que estava em jogo o anseio de dominação total do globo, o que, por
conseguinte, acarretava a manutenção da guerra até a vitória ou rendição incondi-
cional do inimigo.
Uma vez terminado o conflito, uma nova questão, condizente com esse caráter
inovador despontaria com força. Quem eram os responsáveis pelo horror? A pergun-
ta foi lançada com veemência sobre os perdedores e tornou-se sentença nos tribunais
de guerra do pós-45. O fardo do passado trazia de forma imprescindível a questão
da responsabilidade, seja aquela propriamente jurídica, seja a da responsabilidade no
sentido mais geral, que alguns chamavam de culpabilidade, relacionada à participa-
ção e/ou posicionamento nos regimes de exceção.
A situação do imediato pós-guerra, de modo amplo, também trouxe para o pri-
meiro plano as dimensões de justiça e responsabilidade nas guerras de libertação
nacional anti-imperialistas. Ou seja, com a segunda guerra mundial, a temática da
responsabilidade torna-se uma questão de ordem não apenas do âmbito jurídico ou
da atuação das figuras públicas – homens de Estado, intelectuais, etc -, mas algo que
diz respeito a cada um como pessoa herdeira de uma história específica ou como
participante de uma determinada comunidade. O que as situações limites deixaram
ver de modo decisivo é que não há neutralidade. Ao escolher apoiar ou não apoiar;
fugir ou resistir; calar ou falar se está assumindo uma responsabilidade. Mesmo a
não escolha já implica uma tomada de posição.
Muito se discutiu, no período mesmo do pós-guerra, sobre a culpabilidade ale-
mã. Falava-se numa culpa generalizada e espiritual da nação alemã como um todo,
indagando-se se, de um modo ou de outro, a população não teria sido ativa, co-ativa
ou conivente com o assassinato em massa. É preciso ter em vista que a tentativa de
compreender o caráter coletivo da responsabilidade vai muito além do caso nazista.
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Considerar a evocação do conceito de responsabilidade nesse período significa, na
verdade, vislumbrar como a ideia de uma responsabilidade pelo mundo vai além das
questões dos tribunais de guerra, que surge no pós-guerra, tornando-se elemento
– senão uma espécie de nomos – fundamental do direito e da política desde então.
Passamos a lidar com tribunais de guerra, pedidos de perdão, demandas por res-
ponsabilização coletiva. Isso não só se tornou parte de uma nova agenda política que
precisa prestar contas, mas se constituiu como parte central da renovação da ideia de
justiça. Fazer justiça não significa mais apenas resolver uma querela entre indivíduos.
Fazer justiça tem cada vez mais relação com reparar feridas históricas, condutas polí-
ticas e desigualdades. Veja-se aí o crescimento das demandas por justiça de transição,
justiça colonial, justiça de gênero, etc.
Minha suposição é que a experiência temporal ligada à responsabilidade prescin-
de não da fragmentação da história ou do esgotamento do horizonte de expectativas,
mas de uma profunda e atualizada conexão entre passado e futuro. Responsabilizar-
se pelo passado e pelo futuro implica uma noção de continuidade temporal e de pro-
cesso histórico.
Entenda-se que as próprias experiências da guerra total no século XX, dos ge-
nocídios e da bomba atômica fazem cair por terra a crença ingênua ou causalista na
História. Neste sentido, tomar a perspectiva da responsabilidade histórica significa
vislumbrar que a História não é um processo autônomo dotado de sentido, mas, antes,
que as pessoas fazem história, que são responsáveis por si mesmas e coletivamente
pelo sentido da História. Assim, vamos poder notar que a evocação da responsabili-
dade comporta uma visão de história que traz em si a noção de ruptura com o passado.
Tal como na concepção moderna de História, a experiência temporal da responsabi-
lidade (ou a responsabilidade histórica, como estou defendendo), não entende que o
passado ou a tradição orientam o futuro. No entanto, diferentemente da concepção
moderna, a compreensão da responsabilidade é irrefutavelmente marcada pelo fu-
turo ameaçado. Não se trata mais, como no século XIX, da certeza de um futuro que
caminha inevitavelmente para o futuro. Por essa razão, alguns autores imaginaram
que fazia sentido sugerir que, para os contemporâneos ou para aquela geração que
havia experimentado da segunda guerra, a ruptura com o passado e o fechamento do
futuro significava uma ênfase irrefutável no presente. Imaginava-se que, no cenário
de pós-guerra, com a destruição total, a ameaça atômica e a descrença no processo
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da civilização, um esvaziamento do futuro e a ruptura com o passado significariam a
hegemonia do tempo presente” - um presentismo. 4
No entanto, vamos observar que o futuro, embora incerto e ameaçado, aparece
de modo crucial nas formulações do conceito de responsabilidade. O fato de o futuro
não estar mais à disposição como um dado - de poder realmente não existir mais o
futuro frente a um desastre atômico mundial - significa que a necessidade de preo-
cupar-se com o futuro - responsabilizar-se por ele - torna-se urgência extrema. O
que vemos nas formulações dos autores que trazem essa questão da responsabilidade
a partir do pós-guerra é exatamente a concepção de que se deve ter um cuidado com
o futuro; que devemos lutar pelo futuro; que a ação no presente tem a ver com um
futuro a ser escolhido. Isso implica duas movimentações gerais que deixam ver uma
nova concepção de história e temporalidade, cuja manifestação significativa é a ên-
fase nas formulações pela responsabilidade.
Em primeiro lugar, esse elemento que estamos apontando. O futuro já não é
mais dado como horizonte certo e infinito. O futuro se mostra como um futuro
ameaçado pelas guerras totais e pelas bombas atômicas. Há a ameaça totalitária, que,
embora derrotada na guerra, pode assumir novas formas ou ganhar novas forças. E
há também uma ameaça teórico-política ao futuro, sob a qual deve-se manter vigi-
lante - qualquer tipo de concepção da história que tenha em vista uma pré-definição
do futuro, que queira dizer o que o futuro é, sem deixar meios para que a liberdade
humana e a ação coletiva tomem suas formas próprias, é também um meio de fechar
e ameaçar o que está por vir - a contingência do futuro. Com a ameaça à própria
existência do futuro, a noção de processo histórico se modifica significativamente.
Em vez de um processo que se desenrola inevitavelmente para a frente, depara-se
com a possibilidade de um não futuro. De um lado, a ruptura e excepcionalidade
desses tempos catastróficos; de outro, a contingência do futuro que está em risco.
Os autores que vão tratar do conceito de responsabilidade neste período, portanto,
trazem críticas contundentes à concepção moderna da história, sobretudo, onde ela
indica que o movimento rumo ao futuro está automaticamente pronto.
4 O termo é de Hartog, mas a concepção de fardo do passado e ênfase no presente ou esgotamento do futuro per-
passa muitos trabalhos sobre o período - Hayden White, Huizinga. Voltaremos adiante às formulações de Hartog.
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Um dos elementos centrais desta pesquisa é deixar ver que a crítica do conceito
moderno de história, na aurora da ênfase na responsabilidade, embora questione a
concepção moderna de história, não está na verdade rejeitando uma noção de pro-
cesso - não está rejeitando a concepção moderna de história no seu todo. O que é alvo
de crítica é o caráter autônomo/automático da noção moderna de história. Diante da
irreversível ameaça ou contingência do futuro, a experiência temporal da respon-
sabilidade ainda entende que a historia é um processo voltado para o futuro, mas
enfatiza que esse futuro não está definido e nem sequer se sabe se haverá realmente
futuro. É essa experiência da contingência do futuro que eleva a importância da res-
ponsabilidade sobre a história - sobre passado, presente e futuro. São as pessoas que
fazem a história e a fazem sem poder controlá-la completamente. É preciso cada vez
mais cuidado e responsabilidade com essa movimentação para que ela não se confi-
gure como um fim da história, um fim do futuro.
Em segundo lugar, a percepção do futuro como futuro ameaçado, como futuro
que não virá automaticamente, e que pode mesmo não acontecer, se encontra, na
concepção da responsabilidade, com uma nova relação com o passado. O passado
chega, como na formulação moderna da História, por meio da ruptura da tradição
(qual seja, não é um passado com cunho exemplar). É um processo histórico que se
desenrola e se movimenta do passado ao futuro como um processo de desenvolvi-
mento e transformação. A responsabilidade se estende ao futuro e ao passado. É pre-
ciso assumir as possibilidades e consequências que a ação humana na história traz
e as que já estão, irremediavelmente, colocadas em curso. Da perspectiva do futuro
ameaçado é preciso se entender com os problemas do passado, assumir que somos
herdeiros inevitavelmente - mesmo que críticos, mesmo que na ruptura - herdeiros
do passado. A responsabilidade histórica é essa nova conexão com o futuro e com o
passado. Evidentemente, isso não significa que o tempo ande para trás. A respon-
sabilidade é que pode se vislumbrar entre o passado e o futuro - “como se” numa
brecha temporal. Tomar consciência do passado, enquanto passado, mas nem por
isso, entender-se desligado dele. Assim, como o processo não vai ser considerado um
processo automático rumo ao futuro, mas que necessita abrir-se como projeto, como
escolha e, ao mesmo tempo, como contingência, também, a relação com o passado
não é automática - não significa simplesmente deixar o passado para trás definitiva-
mente ou tirar lições dele. É preciso desencobrir o passado, encontrar aquilo que foi
menosprezado pela tradição. É preciso reparar o passado.
16
A noção de responsabilidade exige, em última instância, assumir a perspectiva da
história como um caminho nas suas continuidades e descontinuidades. Um processo
que não é autônomo, nem automático e nem tem um sentido em si mesmo e por isso
mesmo precisa que as pessoas assumam as consequências das ações, pensem com
elas, rompam com elas. Talvez a imagem de Walter Benjamin sobre a necessidade da
locomotiva da história voltar um pouco atrás, seja uma imagem bastante significativa
para se pensar essa experiência da responsabilidade e sua forma temporal especí-
fica - da responsabilidade histórica. A experiência da guerra, dos crimes de guerra,
movimentam uma responsabilização pelo passado, tanto no sentido da punibilidade
de determinados criminosos de guerra, quanto de tomada de consciência pelo pro-
cesso histórico - pelo que fizemos ou pelo que foi feito. Trata-se em última instância
de assumir o lugar dos sujeitos históricos como livres e responsáveis e considerar
que apenas nesse sentido é possível compreender o “retorno”ao passado (que não é
nostalgia ou busca de orientação), mas que pode, por um lado, se reconciliar com o
desenvolvimento e consequências das ações do passado e, de outro, encontrar poten-
cialidades sufocadas.5
Vou tratar de alguns autores que escreveram sobre responsabilidade no pós-guer-
ra. Embora tenha notado elementos e questões comuns sobre essa temática numa
série de pensadores, que escreveram no âmbito das guerras totais do início do século
XX, tais como: Husserl, W. Benjamin, Hans Jonas, Günther Anders, E. Levinas, Hans
Jonas (e outros). Neste trabalho, volto-me mais especificamente para as formulações
de J.P. Sartre e Hannah Arendt.
Esses autores, embora tenham se esbarrado em Paris, quando Arendt vinha fu-
gindo do nazismo, e tenham frequentado a mesma classe de Kojève na sua leitura
da Fenomenologia de Hegel, nunca frequentaram um ao outro. Embora tenham am-
bos lido e se interessado pelo existencialismo, Husserl e Heidegger, entendem-se
como parte de tradições distintas da filosofia e da política. Não obstante, não vou a
Arendt e Sartre para colocá-los em diálogo. Tomo-os aqui como parte de um projeto
5 Não estamos de acordo aqui com a oposição radical proposta por B. Bervernage de uma passado
que não passa (o tempo das vítimas) e um passado que fica para trás (tempo do historiador moder-
no). Na formulação de Benjamin. “Marx havia dito que as revoluções são a locomotiva da história
mundial. Mas talvez as coisas se apresentem de maneira completamente diferente. É possível que
as revoluções sejam o ato, pela humanidade que viaja nesse trem, de puxar os freios de emergên-
cia.” Apud LOWY, M. Aviso de incêndio, p. 93.
17
mais amplo, entendendo que seus trabalhos revelam sintomas de uma nova forma
de conceber tempo e história que vai se firmando no pós-segunda guerra mundial.
A proposição visa retomar a concepção e ênfase no conceito de responsabilidade que
aparecem em suas obras, observando em que medida tal noção guarda elementos de
uma nova experiência temporal própria deste período das guerras totais.
Antes de trabalhar mais propriamente com os autores aqui mencionados, gostaria
de fazer uma breve incursão ao famoso texto de F. Hartog, Regimes de historicidade.
Na verdade, essa menção ao texto hartoguiano se faz mais no sentido de trazer um
contraponto para o que estamos propondo. Explico-me.
Interessa-me em Hartog como ele vai notar que desde a primeira guerra mundial
e mais propriamente depois de 1945, surge uma “experiência de ruptura de continui-
dade”, que dá a “todo homem o sentimento de pertencer a duas eras”. O autor vai des-
tacar aí a relação com um passado do qual não se pode mais tirar nenhuma orientação.
Nesse sentido, vai trazer uma série de passagens sobre autores que tem a sensação de
viver “entre o passado e o futuro”. Importante notar que daí, Hartog pressupõe uma
ênfase na concepção de ruptura e avalia que neste período o “tempo histórico parecia
então suspenso” (HARTOG, 2013, p. 22). Note-se que, sobremaneira, Hartog nos é re-
levante porque evoca justamente nossos dois autores em questão Sartre e Arendt. De
Arendt, traz diversas passagens para frisar a experiência de “brecha” temporal. Aliás,
da crítica da noção de progresso/ processo, Hartog entende que surge uma experiên-
cia do tempo fundada na ruptura, na descontinuidade. Brecha, ruptura, fenda são ter-
mos que se sobrepõem e se conectam na tentativa de expor o que acontece a partir da
experiência das guerras na primeira metade do século XX. É neste sentido, qual seja,
evocando a experiência da “brecha”temporal que o autor vislumbra elementos de um
novo regime de historicidade, diagnosticado como uma experiência do tempo onde o
presente é hegemônico - daí a concepção de “presentismo”.
Seguindo a reflexão de Hartog, notemos um outro momento que importa para
nosso trabalho sobre responsabilidade. O momento de uma onda memorial, que, em-
bora vá encontrar o seu auge nos anos 80, tem uma relação significativa justamente
ainda com as guerras gerais (esse é o termo hartoguiano) do início do século. Nas
palavras do autor: “não há dúvida de que os crimes do século XX, seus assassinatos
em massa e sua monstruosa indústria da morte são as tempestades de onde partiram
essas ondas memoriais (…) O passado não havia ‘passado’e, na segunda ou terceira
geração, ele estava sendo questionado.”(HARTOG, 2013, p. 25)
18
Esses dois pontos, ou seja, a sensação de ruptura temporal e o movimento de
retorno do passado através de memórias e testemunhos, são de grande importância
para a argumentação que aqui desenvolvo. Também trabalho com a ideia de que há
uma movimentação particular acerca da temporalidade na geração que vivencia e
sobrevive às guerras totais no início do século XX, tendo em vista de que modo se
estabelecem novas relações do presente com o passado e com o futuro. Faço isso, no
entanto, observando a ênfase que adquire a noção de responsabilidade. Creio que tal
abordagem nos permite perceber que a sensação de perda de orientação do passado/
de perda da tradição não supõe - e aqui discordo de Hartog - uma concepção de his-
tória sem conexão entre passado e futuro, uma história apenas de descontinuidade e
ruptura. Entendo que esses autores questionam o conceito moderno de história, mas
não em nome de uma fragmentação e descontinuidade. Trata-se, na minha hipótese,
ao contrário, de uma geração profundamente marcada pela necessidade de repensar
o vínculo entre passado e futuro. Marcados pela ameaça de destruição do planeta,
pelo sentimento profundo de que o passado não orienta o futuro e por uma desilusão
com o desenvolvimento automático da história. O que percebo no estudo da noção
de responsabilidade é a ênfase na importância de assumir as ações humanas; as es-
colhas humanas e políticas como elemento fundamental. Isso vai implicar, como
estamos notando, uma reconexão com o passado e com o futuro - uma continuidade
que se firma não por qualquer processo dado, mas justamente quando se assume res-
ponsabilidade pelo passado, pelo futuro, pela humanidade, pela história. Passemos a
uma análise mais detida de Arendt e Sartre na tentativa de observar de que modo
se coloca em questão uma determinada visão moderna de História e se depara com
a necessidade de evocar a responsabilidade para no âmbito da ruptura e do futuro
ameaçado, assumindo as potencialidades do contínuo humano no mundo.
RESPONSABILIDADE EM ARENDT
19
pessoas na sua igualdade e pluralidade também vai estar ancorada no chamado para
que os próprios homens assumam a potencialidade fundamental da ação, que é a
construção mesma de um mundo de assuntos humanos com liberdade e durabilida-
de. Neste sentido, o esforço aqui é o de tentar conectar a visão arendtiana de mun-
do, e, mais especificamente, sua interpretação da crise temporal que se abre com o
totalitarismo, com o desenvolvimento da noção de responsabilidade, esboçada mais
propriamente em três artigos específicos: Crise da educação (1957), Responsabilidade
pessoal sob ditadura (1964) e Responsabilidade coletiva (1968).O propósito é tentar ver
como a noção de responsabilidade guarda uma experiência temporal específica deste
período das guerras totais.
Em 1957, Arendt publica um texto chamado Crise da educação, onde trata pela pri-
meira vez de modo mais especifico da questão da responsabilidade. Trata-se de um
artigo que discorre sobre a crise da educação na América, mas que versa fundamen-
talmente sobre a crise ou perda da autoridade tradicional na modernidade e sobre o
vácuo de responsabilidade que a crise da autoridade deixa atrás de si. Arendt vai falar
da responsabilidade no âmbito dessa crise da autoridade, que se configura para ela
como uma verdadeira crise da autoridade tradicional - de uma crise da tradição. Para
a nossa temática da experiência temporal da responsabilidade é muito pertinente ter
em vista que a crise da autoridade (da tradição) está relacionada a uma espécie de
vácuo da autoridade, qual seja, uma crise da responsabilidade.
Vejamos como a autora desenvolve seu argumento. Segundo ela, se antes a auto-
ridade estava no passado, no soberano ou na Igreja; no mundo moderno, a autoridade
passa a ser a responsabilidade de cada um para consigo e para com o mundo. Com o
moderno questionamento da autoridade e a libertação dos agentes da história, todos,
ao menos em teoria, passam a estar investidos de autoridade, agora entendida menos
como um poder de mando e mais como um poder de ação. Note-se que, nesta abor-
dagem arendtiana da responsabilidade, a passagem à modernidade tem a ver não
apenas com a ênfase no sujeito, mas o sujeito é tido como responsável e essa respon-
sabilidade não é simplesmente individual. Cada um passa a ser responsável pelo seu
governo e pelo governo de todos.6
6 Sobre a questão do sujeito em Arendt ver SCHITTINO, R. Demandas por uma subjetividade ética. In: FER-
REIRA, D; LIMA, E.; SCHITTINO, R. Subjetividade e modernidade. Porto Alegre: Fi, 2022.
20
É neste sentido que a autora evoca uma noção de autoridade legítima, que sig-
nifica também exercício da responsabilidade, e defende que as crianças - por serem
recém-chegadas ao mundo - ainda não estão aptas a assumir. Assim, no que tange
à educação, que é o tema mais propriamente dito do artigo, a autora está falando de
uma confusão entre autoridade e responsabilidade, pois ao rejeitarem a educação
autoritária, muitos pais e educadores abrem mão da responsabilidade - que, como
adultos, eles possuem - de ajudar a criança a fazer a passagem ao mundo adulto. É
neste sentido que ela fala de uma autoridade legítima, sinônimo de responsabilida-
de, que precisa ser assumida pelos pais na educação das crianças, mas rejeita uma
autoridade - que vou chamar de autoritária -, aquela onde autoridade e violência
são sinônimas.
Para nosso estudo, é muito significativo notar que a autora vislumbra uma no-
ção de responsabilidade, que tem em jogo uma responsabilidade pelo mundo. Sua
preocupação é, sobretudo, mostrar como a modernidade deixa um legado que não é
apenas aquele da responsabilidade individual - de cada um para consigo - no senti-
do de que cada um é responsável pelo que faz, mas também de uma responsabilida-
de coletiva (o termo só irá aparecer em texto posterior), que é uma responsabilidade
pelo mundo.
Pois bem: sabemos todos como as coisas andam hoje em dia com respeito à au-
toridade. Qualquer que seja nossa atitude pessoal face a este problema, é óbvio
que na vida pública e política, a autoridade ou não representa mais nada – pois
a violência e o terror exercidos pelos países totalitários evidentemente nada têm
a ver com autoridade-, ou, no máximo, desempenha um papel altamente con-
testado. Isso, contudo, simplesmente significa, em essência, que as pessoas não
querem mais exigir ou confiar a ninguém o ato de assumir responsabilidade por
tudo o mais, pois sempre que a autoridade legítima existiu ela esteve associada
com a responsabilidade pelo curso das coisas no mundo. Mas isso pode também
significar que as exigências do mundo e seus reclamos de ordem estejam sendo
consciente ou inconscientemente repudiados; toda e qualquer responsabilidade
pelo mundo está sendo rejeitada, seja a responsabilidade de dar ordens, seja a de
obedecê-las. Não resta dúvida de que, na perda moderna da autoridade, ambas
as intenções desempenham um papel e têm muitas vezes, simultânea e inextri-
cavelmente trabalhado juntas. (ARENDT, 1997: 240)
21
A educação, da maneira como apresentada por Arendt, é uma espécie de vir a ser.
A criança chega ao mundo já existente como uma novidade. Cabe aos adultos, res-
ponsáveis por ela, a apresentação do mundo e a inserção na pluralidade. A educação
tem, sobretudo, a função de tornar as crianças parte do mundo comum. Trata-se de
fazer perceber a pluralidade do mundo e a necessidade de assumir responsabilidade
pelo mundo, o qual herdamos ao nascer e que deixaremos ao morrer. Na perspec-
tiva arendtiana, não tem sentido que as crianças tenham que decidir tudo por elas
mesmas, como se elas fossem responsáveis por tudo. É um elemento fundamental
para que as crianças se sintam seguras e aprendam também com o tempo a assumir
responsabilidade por si mesmas e pelo mundo. A ideia de um mundo autônomo das
crianças parece à Arendt uma espécie de covardia, pois viria, na verdade, não formar
adultos melhores, mas sim, deixá-las à mercê de uma infantilização prolongada ou
de uma tirania da maioria – atravancando o processo de desenvolvimento de seus
julgamentos, decisões e responsabilidade por si, pelos outros e pelo mundo.
22
rejeitando a responsabilidade, mas sim, fazendo uma apologia da responsabilidade.
Está instigando os contemporâneos a assumir a responsabilidade, não só no sentido
de sujeitos individuais, mas de uma responsabilidade pelo mundo. Aliás, a temática
da educação é muito sugestiva neste sentido, pois quando fala em educação, Arendt
está pensando nesta relação com o futuro; com esses ‘recém-chegados’ à Terra e ao
mundo humano. A responsabilidade aqui é investida coletivamente, e, não, na tradi-
ção, configurando-se, portanto, como uma autoridade/responsabilidade que vem da
ruptura com o passado. Não cabe ao passado dizer o que fazer, mas cabe aos adultos,
responsáveis, posicionar-se diante do futuro - da educação das crianças. A figura
do adulto assume um lugar especial nessa conexão dada pela responsabilidade. Um
lugar que tem a ver com a conexão entre passado-presente-futuro, diante da perda
da autoridade da tradição.
Não sem razão o texto da Crise da educação é publicado numa coletânea, Entre o
passado e o futuro, que traz uma série de trabalhos sobre a temática da ruptura tempo-
ral - ruptura com a tradição no mundo contemporâneo - com a realidade do totalita-
rismo. Entendo que a evocação da noção de responsabilidade vai se configurar, tanto
nestes textos dos anos 50, como nos trabalhos posteriores sobre responsabilidade,
como uma resposta à condição visualizada da “quebra na história”, a qual, brotou, não
do questionamento intelectual da tradição, mas
23
revolucionária - donde o futuro, para usar a expressão de Koselleck, abria-se como
um “horizonte de expectativas”.7 Agora, sob totalitarismo e desenvolvimento técnico
desenfreado, o mundo das guerras totais experimenta, de modo muito mais cruel, a
perda do passado, que significa também uma insegurança sobre os caminhos futuros
e sobre a própria existência do futuro - não há certezas sobre o desenvolvimento da
história no sentido do progresso.
Arendt vivencia e tematiza esse momento de crise temporal, que ela mesma deno-
mina “tempos sombrios”. Seu conceito de responsabilidade parece diretamente ligado
a esta experiência. Neste texto de 1957, pode-se notar que a chamada à responsabilida-
de tem a ver com a perda da tradição, com a insegurança em relação ao futuro - se não
é a tradição em sua autoridade que fará a conexão entre passado e futuro, quem fará?
Deve-se notar que a ênfase na responsabilidade significa não apenas um diagnóstico
temeroso da experiência temporal. Trata-se de, a partir da ruptura, da experiência da
“quebra da história”, assumir a responsabilidade pelo futuro, e, como veremos, pelo
passado. O que se destaca aqui de modo crucial para o nosso ponto, é como neste
primeiro texto onde Arendt tematiza responsabilidade está em questão a importância
da experiência da ruptura, de um lado, mas, também, da importância da conexão (ou
reconexão) - lembrando que esse é um termo meu - da história, por outro. Ao adulto
cabe assumir a responsabilidade pela educação das crianças. Cabe assumir a tarefa de
estabelecer uma relação entre o presente e o futuro. A responsabilidade tem aqui um
caráter também de continuidade e evoca a necessidade de se assumir, no âmbito da
ruptura, a continuidade do mundo também como relação entre o passado e o futuro.8
8 É certo que Arendt não usa aqui o termo História e prefere falar de uma responsabilidade pelo mundo. Enten-
do que isso se deve de fato à critica ao conceito moderno de história. Arendt quer refutar uma concepção de his-
tória, segundo a qual, a história é um processo automático, cujo sentido está dado a priori, conforme definiam as
filosofias da história no século XIX. Arendt diz que Hegel tem a filosofia da história mais bem acabada. A rejeição
de Arendt a uma versão da história como processo pré-definido foi muitas vezes entendida como uma rejeição
do histórico em prol do político. Como argumentei em outro lugar, essa crítica da história como um processo
único, com um caminho evolutivo pronto não significa um abandono da concepção de história - que, entendo,
ainda existir em Arendt justamente nessa ênfase da conexão entre o passado e o futuro. A temática da responsabi-
lidade traz ainda possibilidade de perceber de modo ainda mais significativo a permanência e necessidade dessa
conexão histórica. Ver SCHITTINO, R. Hannah Arendt, a política e a história, p. 200-228. “A história só existe na
medida em que o homem age. (…) A suposição é a de que a ocorrência do evento efetiva a passagem da esfera da
ação para o âmbito da história. Seu pressuposto é que para se realizar ele precisa deixar de ser mera possibilidade.
É como se a sua efetivação matasse as diversas possibilidades que estavam em jogo para os autores. Em outras
palavras, a concretização de um evento o retira imediatamente do possível e torna-o fato.”(IDEM, p.167)
24
Nos anos 1960, Arendt escreve uma série de textos com a temática moral e ética.
É nesse momento que aparece seu livro famoso sobre o julgamento de Eichmann em
Jerusalém e os artigos onde trabalha diretamente com a questão da responsabilidade
- Responsabilidade pessoal sob ditadura e Responsabilidade coletiva.
Em Eichmann em Jerusalém, embora o conceito de responsabilidade em si não
seja tematizado, a problemática gira em torno da questão da responsabilização de
Eichmann pelos crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Ao cunhar a noção
de banalidade do mal, a autora vai exatamente defender a importância da responsa-
bilização do ex-oficial nazista, que, segundo ela, deve arcar com as conseqüências de
sua participação no regime.
Durante o julgamento de Eichmann em Jerusalém, a promotoria tenta provar o
ódio pessoal de Eichmann aos judeus e que, ao menos uma vez, agiu com as próprias
mãos. Por seu turno, o advogado de defesa de Eichmann insiste em dizer que seu
cliente apenas havia obedecido às ordens de Estado e que seu posicionamento era
semelhante ao de um “dente na engrenagem”. A argumentação de defesa era de que
não havia nada que pudesse ser feito de diferente sob regime nazista. Eichmann ape-
nas cumpria com seu trabalho e sua obrigação.
A análise arendtiana não concorda nem com o argumento da promotoria, nem
com a tese da defesa de Eichmann. Arendt sugere que se compreenda o que Eichmann
está de fato falando - que ele não odiava pessoalmente os judeus e não era grande
entusiasta do nazismo. A concepção de banalidade do mal, cunhada pela autora, está
relacionada a esta tentativa de levar à sério o que Eichmann diz. É neste sentido que
ela entende que o réu não é nenhum Macbeth ou Ricardo. Ele não é um grande vilão
da história. Na verdade, ele é apenas um homem normal, banal; quase ordinário, que
pensava por clichês e tinha enorme dificuldade de se colocar no lugar do outro. O
problema maior de Eichmann é que ele nunca se deu conta exatamente do que es-
tava fazendo. “a única característica específica que se podia detectar no seu passado,
bem como no seu comportamento durante o julgamento e o inquérito policial que
o precedeu, era algo inteiramente negativo: não era estupidez, mas uma curiosa e
totalmente autêntica incapacidade de pensar”. (ARENDT, 2008: 226)
Essa incapacidade de pensar, na leitura arendtiana, não se relaciona à qualquer
dificuldade do entendimento ou do intelecto em si, mas à incapacidade de perceber
o mundo do ponto de vista de outrem. Uma incapacidade de pensar do ponto de
vista de outro.
25
Note-se que apesar de não visualizar em Eichmann uma intenção específica ou
pessoal para matar, isso não significa que esteja inocentando o réu ou defendendo
que ele não deva arcar com as conseqüências do crime no qual estava envolvido.
Arendt, embora tenha várias críticas à condução do processo, concorda com o vere-
dicto da corte de Jerusalém e com o enforcamento de Eichmann. Sua justificativa
aparece de modo suscinto na passagem: “política não é jardim de infância. Em polí-
tica, obedecer e escolher são a mesma coisa.” (ARENDT, 1999, p. 302)
Se o totalitarismo é uma nova forma de governo baseada no terror, como podemos
julgar aqueles que fizeram essa máquina de matar funcionar? Embora a palavra/con-
ceito responsabilidade não tenha lugar de destaque em Eichmann, pode-se dizer que a
questão da responsabilização é um tema central neste trabalho. Quando a autora con-
corda com o veredicto da corte de Jerusalém sobre o enforcamento de Eichmann, está
auferindo que ele é responsável por seus atos e deve arcar com suas conseqüências.
Em Eichmann, Arendt vai destacar o aparecimento de um novo tipo de crime - o
crime contra a humanidade. A preocupação em criticar o Tribunal de Jerusalém é
bastante sintomática nesse quesito. A autora insiste em dizer que a promotoria estava
equivocada ao tentar provar que o réu tinha intenção e motivação para matar e que
havia matado, ao menos uma vez, com as próprias mãos. O que Arendt sugere é que
o problema do julgamento não gira mais em torno das questões fundamentais para o
direito positivo - intenção, motivação, etc. Elementos, sobretudo, centrados na subje-
tividade e na consciência que o autor tem de seu crime. Ocorre que o crime contra a
humanidade não pode ser visualizado dentro desses critérios. Na verdade, a proposi-
ção arendtiana é, nesse sentido, muito condizente com o que estava posto desde suas
primeiras análises do fenômeno totalitário; com a ideia de que o totalitarismo rom-
peu com nossos padrões tradicionais de julgamento. Sendo ele mesmo uma novidade,
o totalitarismo precisa ser compreendido e julgado (os crimes sob totalitarismo) de
acordo com novos quesitos. Eichmann, portanto, não devia ser julgado através das
balizas antigas, vinculadas ao direito positivo. A violação posta no totalitarismo não
se faz apenas a pessoas na sua individualidade, mas se levanta contra a humanida-
de em si. Ao imaginar ser possível controlar a totalidade do real; desfazer a espon-
taneidade e liberdade do mundo propriamente humano, o totalitarismo dirige-se
contra o humano em si; contra a pluralidade e a contingência do mundo que se abre
entre os homens. A noção de responsabilidade que a autora vislumbra nos crimes
sob totalitarismo está ligada ao coletivo da terra e não simplesmente à sociedade de
26
sujeitos individuais. O lugar público do crime; o impacto público, é mais importante
que a ênfase na subjetividade do réu. Trata-se de um crime que ultrapassa, digamos
assim, a relação entre sujeitos – sujeito agressor e sujeito agredido, normalmente o
ponto chave do direito positivo – e tem a ver com a existência pública dos homens
no mundo. É uma responsabilidade que não é tão somente para com a vítima ou
a sociedade em questão. Não sem razão, a autora acredita que muitos criminosos
sob totalitarismo não seriam criminosos em “circunstâncias normais”, quer dizer, se
não houvesse um Estado autorizando e incentivando esse crime. Para nossa questão
da responsabilidade, é muito importante que nessa categorização do julgamento de
Eichmann, seja possível vislumbrar essa nova demanda por responsabilidade – que
é uma responsabilidade pelo mundo, pela continuidade do mundo. Ao rejeitar a plu-
ralidade do mundo e participar do crime de genocídio, Eichmann está não apenas
matando (como num crime comum), mas ameaçando o futuro da humanidade. É por
cometer um crime contra a pluralidade, um crime contra o futuro que Eichmann
deve ser responsabilizado. Assumir a responsabilidade ou a atribuição de responsa-
bilidade também aqui no texto sobre o tribunal de Jerusalém tem a ver com assumir
a responsabilidade pelo futuro. Embora aqui também, sendo tematizado um crime
de guerra, cometido no passado, está lançada ainda, de modo mais próprio a questão
da responsabilidade pelo passado. Questão que será de fato mais elaborada nos seus
textos subsequentes sobre a temática.
No desenrolar da década de 1960, Arendt escreve os dois textos em que a ques-
tão da responsabilidade é tema central – agora muito mais claramente que em
Eichmann, posto que a noção de responsabilidade ela mesma é o ponto principal
dos artigos - Responsabilidade pessoal sob ditadura e Responsabilidade coletiva. Nesses
dois trabalhos, pode-se observar como, a partir do julgamento de Eichmann – re-
pensando a querela e os desenvolvimentos do livro -, Arendt vai começar a falar
mais propriamente em responsabilidade.
A autora trata primeiramente da dificuldade que as pessoas têm em julgar alguma
coisa. Tradicionalmente, há algo no próprio não julgar que é valorizado moralmente.
Essa conexão do argumento arendtiano nos importa bastante porque é justamente
nesse ponto que ela deixa evidente a relação entre a necessidade de julgar, de atribuir
responsabilidade, e o caráter de liberdade. Segundo ela, “por trás da não vontade de
julgar, oculta-se a suspeita de que ninguém é um agente livre, e com isso a dúvida
de que alguém seja responsável pelo que fez”. (ARENDT, 2008: 83)
27
Arendt chega a falar em um “colapso do julgamento pessoal nos primeiros está-
gios do regime nazista”. Com isso está atentando para aquelas pessoas, milhares de
alemães, que não foram responsáveis pelo nazismo em si (ela mesma usa a expressão
“não eram responsáveis pelos nazistas”), mas que não se interpuseram ao regime e
nem sequer, de fato, dada a incapacidade de julgar o que estava acontecendo, com-
preenderam o nazismo.
A distinção estabelecida pela autora no que se refere à responsabilidade passa en-
tão por uma linha que divide aqueles que fizeram realmente ações que contribuíram
para o crescimento do nazismo e aqueles que se mantiveram na Alemanha, não se
opuseram de fato ao regime, mas não participaram efetivamente.
O que Arendt discute aqui em Responsabilidade pessoal é a necessidade de dife-
renciar o grau de participação nos crimes nazistas. Sua preocupação, desde o caso
Eichmann, direcionou-se no sentido de pensar mais propriamente o julgamento e a
colaboração na máquina de matar totalitária. Pensar o julgamento - a culpabilidade
de cada alemão - significa refletir mais uma vez sobre a liberdade da ação, sobre es-
colha e sobre responsabilidade. A circunscrição da responsabilidade é um elemento
fundamental para não se cair nem na falta de um julgamento, nem na atribuição
aleatória de responsabilidade. Tentando reverter a noção de culpabilidade geral da
nação alemã (“onde todos são culpados ninguém de fato o é”), a autora busca, estabe-
lecer uma separação entre responsabilidade pessoal e responsabilidade política.
Lembrando que Napoleão chamou para si toda a responsabilidade por tudo o
que a França fez na história, “desde Luís, o Santo, até o Comitê de Salvação Pública”,
Arendt defende que “ele apenas afirmou, um pouco enfaticamente, um dos fatos
básicos de toda a vida política” (ARENDT, 2008: 89), qual seja, que um grupo políti-
co específico, uma comunidade nacional, existe numa continuidade histórica. Essa
responsabilidade é a responsabilidade política. Não é uma ‘culpa’ pessoal, como se
realmente alguém do presente tivesse que assumir a autoria de atos que não come-
teu. A responsabilidade política é diferente da responsabilidade pessoal. A primeira
tem a ver com o processo histórico, com o passar das gerações políticas, enquanto a
segunda refere-se à responsabilidade de uma pessoa específica. Arendt acredita que
“apenas num sentido metafórico é que podemos dizer que nos sentimos culpados
pelos pecados dos nossos pais, de nosso povo ou da humanidade, em suma, por atos
que não praticamos.” (ARENDT, 2008: 90)
28
Vale notar que está em jogo uma distinção entre culpa e responsabilidade. Na ver-
dade, Arendt já anunciava em Eichmann que uma coisa era a questão da consciência,
da moral íntima de cada um, e outra é a questão da responsabilidade, referente aos
atos humanos no mundo, em meio aos outros. O sentimento de culpa está relaciona-
do à interioridade, enquanto a responsabilidade está na esfera comum, do comparti-
lhamento do mundo.
Na discussão da responsabilidade, a autora demarca mais enfaticamente que não
existe “culpa e inocência coletiva” (ARENDT, 2008: 91), mas existe uma responsabi-
lidade individual, de quem colaborou com o regime e, do mesmo modo, existe tam-
bém uma responsabilidade do sistema. Note-se aqui que, mesmo quando a autora
parece reconsiderar o argumento levantado pela defesa no caso do julgamento de
Eichmann, qual seja, aquele sobre a ideia do dente na engrenagem (que Eichmann
estava simplesmente cumprindo ordens de Estado e tinha nada a ver com o assunto),
ela chama o sistema à lide; mas não como uma desculpa para Eichmann. Aqui fica
claro que tanto o sistema, quanto Eichmann – tanto o regime político, quanto a pes-
soa individual precisam ser responsabilizados pelos crimes. A responsabilidade do
sistema não cobre a responsabilidade individual e vice-versa.
Há uma ligeira inflexão entre a escrita de Responsabilidade pessoal sob ditadu-
ra e Responsabilidade coletiva. No primeiro texto, como estamos frisando, a auto-
ra traça uma distinção entre responsabilidade pessoal e política, indicando que a
responsabilidade política está relacionada a uma continuidade histórica. O exem-
plo dado é Napoleão chamando para si a responsabilidade pelo passado político
francês. Quando fala da responsabilidade política, Arendt faz uma ressalva. Tal
responsabilidade está atrelada à existência de um poder político, ainda que míni-
no. Quer dizer, só tem responsabilidade política quem tem algum poder político.
Essa ressalva é importante porque no totalitarismo, diferentemente das ditaduras,
“apenas aqueles que se retiraram completamente da vida pública, que recusaram a
responsabilidade política de qualquer tipo, puderam evitar tornar-se implicados em
crimes.” (ARENDT, 2008: 96)
Nesse sentido, pressupõe-se que há uma possibilidade remota de, sob totalitaris-
mo, não se ter parte na responsabilidade dos crimes. É possível que Arendt estives-
se pensando em pessoas como seu ex-orientador, Karl Jaspers, a quem, num texto
emocionado de Homens em tempos sombrios, elogiava por ter conseguido se afastar
da vida pública/política durante o nazismo. A dúvida certamente é como alguém
29
individualmente teria condições para se afastar completamente da vida política, vi-
vendo em sociedade – onde de uma maneira ou de outra estamos envolvidos com a
produção e o consumo de materiais.
Talvez essa suspeita tenha também ecoado nos ouvidos arendtianos, pois em
Responsabilidade coletiva, a autora sugere que é impossível livrar-se pessoalmente da
responsabilidade coletiva. Apenas renegando a comunidade poderia a pessoa estar
livre da responsabilidade coletiva em uma determinada comunidade, mas mesmo
assim, ela teria que passar a uma nova comunidade, onde assumiria inevitavelmente
uma outra responsabilidade coletiva. Nas palavras de Arendt, “Só podemos escapar
dessa responsabilidade política e estritamente coletiva abandonando a comunidade”.
O que seria “trocar uma responsabilidade por outra”. (ARENDT, 2008: 217)
Nessa definição mais categórica da responsabilidade coletiva, a autora defende
que se trata de uma responsabilidade política, que está dada a todos os membros da
comunidade. Tudo o que é feito em nome dessa comunidade é responsabilidade de
todos. Note-se que, no que se refere à inflexão do argumento, vemos que não apenas
lideranças políticas (como o caso de Napoleão) estão investidas de poder político, mas
todo membro da comunidade possui algum poder político, do qual não pode se livrar
nessa Terra (pois apenas trocaria uma comunidade por outra). A responsabilidade
coletiva é, portanto, uma responsabilidade política, que existe para todos; mesmo
quando a pessoa não é um chefe de estado ou uma figura política do governo. Em
Responsabilidade coletiva, parece não haver possibilidade de escapar à responsabilida-
de política, embora claramente existam tipos e graus distintos de responsabilidade.
Nenhum padrão moral, individual e pessoal de conduta será capaz de nos es-
cusar da responsabilidade coletiva. Essa responsabilidade vicária por coisas que
não fizemos; esse assumir a responsabilidade por atos de que somos inteira-
mente inocentes é o preço de levarmos nossas vidas em comunidade. Não co-
nosco mesmos, mas entre nossos semelhantes. (ARENDT, 2008: 225)
Note-se que Arendt, de certa forma, retoma aqui a proposição que estava lançada
em a Crise da educação, onde sustentava que, com a crise da tradição, todos estão in-
vestidos de responsabilidade - devem assumir, juntamente com a capacidade de agir,
as consequências da responsabilidade. Responsabilidade só se configura como pos-
sível, quando se considera, portanto, ainda que minimamente, a capacidade humana
30
de agir. A ação está, na configuração arendtiana, no plano da liberdade. Indica que
existem certas escolhas, que a história não está fechada, nem pela teoria - que po-
deria querer anunciar, como nas filosofias da história, um sentido pré-definido da
História, nem por um controle total do futuro. Mesmo sob ameaça totalitária - que
visava sim, na concepção de Arendt destruir toda a possibilidade de ação dos homens
e, portanto, toda possibilidade de algo novo vir ao mundo, regulando de antemão
(por ideologia e terror) o que deveria aparecer na história -, a autora vislumbra possi-
bilidades, mesmo que muito reduzidas de escolha. É nesse sentido, que entende que
Eichmann escolheu apoiar o nazismo e por isso tem uma parcela de responsabilidade.
Mesmo sob um futuro ameaçado, nos destroços da ruptura da tradição, o horizonte
não está completamente fechado. Arendt indica que, a menos que o mundo todo seja
completamente totalitário, haverá possibilidade de ainda surgir uma novidade (uma
ação) não controlada pelo totalitarismo, pois os homens são impelidos para a frente -
são impelidos a agir e iniciar novos processos.
Creio que a demanda por responsabilidade em meio à crise - em meio à possibi-
lidade de fim do futuro e mesmo fim do planeta - deixa ver de modo muito enfático
a questão da experiência do tempo dessa geração do pós-segunda guerra mundial.
Ao cobrar responsabilidade individual e coletiva, Arendt revela anseios de toda uma
geração que, diante da ruptura com o passado, - diante do sentimento de que a tra-
dição não serve para explicar ou orientar o presente e também diante da constatação
de que a história como processo não irá necessariamente para frente e tampouco
irá necessariamente para um desenvolvimento espiritual -, vê-se na condição de re-
pensar a relação com o passado e com o futuro. A responsabilidade tem a ver com
esse lugar entre o passado e o futuro, mas ela também incide como responsabilidade
coletiva - que supõe assumir uma continuidade histórica (eu diria, uma responsabi-
lidade histórica) - e também uma responsabilidade sobre o futuro, que não está nem
concretizado (como se fosse possível dizer de fato o que será o futuro), nem tampouco
encerrado (como um fim da história). A ênfase na responsabilidade pessoal e coletiva
indica a necessidade de se responsabilizar tanto pelo passado, quanto pelo futuro.
Tanto assumir as consequências (criminosas ou não) dos nossos antepassados e lidar
com elas, já que são irreversíveis (Arendt usa mesmo o termo irrevogável), quan-
to estar atento às ações futuras, pois delas depende a própria existência do futuro.
Responsabilidade está intimamente conectada à noção de liberdade - da possibilida-
de da ação humana. É neste sentido que não significa exatamente um abandono da
31
concepção moderna de história, mas, sim, um descarte da noção - que também existe
na formulação moderna da história - de progresso automático ou de processo autô-
nomo. Não há um futuro automático. Dependendo do que as pessoas escolhem fazer
e podem fazer - pessoal e coletivamente - haverá um futuro diferente; quiça haverá
futuro. A concepção de responsabilidade vem conceder às pessoas a cota da liberdade.
Vem recobrar a noção moderna de que são as pessoas - e suas escolhas e ações - que
fazem a história e, exatamente, por isso, porque são livres, precisam assumir a res-
ponsabilidade pelo processo histórico - pela continuidade da história.9
RESPONSABILIDADE EM SARTRE
Sartre, como toda uma geração de jovens no início do século XX, foi marcado pela as-
censão do nazismo e pela experiência da guerra total. É muito conhecido que o autor,
judeu, foi preso no período da guerra e depois conseguiu elaborar algumas atividades
de Resistência na Paris sitiada - fundando o grupo Socialismo e liberdade. Sartre
foi também um defensor do engajamento intelectual e marcou posicionamento em
importantes debates políticos do período da guerra fria. Juntamente com B. Russel
criou o Tribunal Russel-Sartre para julgar os crimes de guerra no Vietnã e apoiou as
manifestações estudantis e a greve geral em 1968 na França.
A proposta aqui não é dar conta da vasta e rica trajetória biográfica do autor. Se
retomo alguns pontos mais gerais, é com o intuito de mostrar como a filosofia sar-
triana revela a experiência temporal de sua época - em particular, como a evocação
da noção de responsabilidade tem a ver com uma nova conexão temporal diante da
ruptura com o passado e da incerteza do futuro.
A insistência na potencialidade da escolha e na necessidade de que as pessoas
tomem posição política, assim como a ênfase na vivência e na concepção de que nada
precede a existência - de que o homem é um ser que existe, levou muitos comenta-
dores de Sartre à suposição de que sua filosofia existencialista privilegia o presente
- seria presentista, se ficarmos com a formulação de Hartog.
9 Em A condição humana, Arendt trabalha mais especificamente com a caracterização da ação. É interessante
notar que neste livro, a autora vai chamar a atenção para a questão do perdão.
32
Pode se entender que a priorização de um Sartre existencialista em oposição a um
Sartre marxista10 segue o recurso metodológico de focar em determinadas obras do
autor, dando atenção, sobretudo, à análise da obra literária e/ou de juventude, onde
A náusea tem lugar de destaque. Bernard Henry-Lévy defende, neste sentido, que há
um distanciamento profundo entre o primeiro e o último Sartre. Entre, por exemplo,
A náusea e Questão de método. Muitos preferem destacar a evidência de não sentido
do mundo, encontrando um Sartre completamente afastado da crítica à burguesia e
da adesão ao marxismo e comunismo. Evidentemente, isso se deve não apenas à lei-
tura existencialista de Sartre, mas também às tentativas de expulsar Sartre do mar-
xismo, tentativas pungentes no próprio âmbito da história do marxismo. A querela
Sartre-Althusser na seara da história intelectual francesa deixa ver a disputa entre
um marxismo com subjetividade e humanismo e um marxismo estruturalista - o que
para alguns seria uma disputa entre subjetivismo e marxismo.
Para nossa questão da responsabilidade, detenho-me no texto O existencialismo é
um humanismo, escrito logo após o término da guerra. Evoco aqui a perspectiva de
Baring, ao observar que “O existencialismo é um humanismo foi inovador por colocar
o pensamento de Sartre em comunicação direta com as questões e temas mais amplos
do discurso político do pós-guerra”. (BARING, 2019, p.38) Vale notar ainda que em O
existencialismo é um humanismo o autor fala de modo categórico sobre a temática da res-
ponsabilidade. Eu diria mesmo que a ideia de responsabilidade desenvolvida neste tex-
to por Sartre se torna uma questão chave, pois defende que a responsabilidade conecta
a humanidade como um todo, deixando ver que o sujeito não é um sujeito individua-
lista, que se volta apenas para sua própria angústia e seu presente. O existencialismo é
um humanismo justamente porque passa pela demanda de responsabilidade.
Na perspectiva aqui proposta a noção de responsabilidade em Sartre revela uma
preocupação típica da experiência temporal do pós-guerra com a possibilidade de
manter o futuro com contingência, como possibilidade da liberdade e ação humanas.
A ênfase na responsabilidade significa uma valorização no sentido do que é feito pe-
los homens e mostra a preocupação com o passado, com o futuro, com a história, que
é feita livremente pelos homens, uns com os outros. Assim, a abordagem de Sartre
10 Entenda-se que distinção evocada entre Sartre existencialista e Sartre marxista, do ponto de vista de alguns
comentadores de Sartre, tem a ver também com o posicionamento diante da História. No Sartre existencialista,
uma ênfase no nada e no presente e, no Sartre marxista, a existência de um futuro construído pelos próprios
homens nas condições históricas objetivamente dadas.
33
aqui, embora detida mais propriamente no texto O existencialismo é um humanismo,
tem em vista a obra sartriana como um conjunto amplo e coerente, que tem a expe-
riência histórica como uma questão central.
Mas o que é responsabilidade para Sartre e o que ela tem a ver com esse mundo
do pós-guerra? A ideia fundamental de Existencialismo é um humanismo é que o ho-
mem é um ser livre e precisa, por isso, assumir responsabilidade. Sua liberdade tem
a ver com o pressuposto central de que não havendo nada que preceda a existência, o
homem é irremediavelmente livre.
A concepção existencialista de liberdade aqui pode parecer uma total refutação
da história. Já que nenhuma “essência precede a existência”, o homem não está preso
à Deus, à tradição ou ao passado. Temos traços da leitura existencialista, que estão
presentes em Sartre desde A náusea -, que podem dar a impressão de um mundo que
chafurda apenas na crise e na ruptura. A perspectiva sartriana da liberdade e, con-
sequentemente, da responsabilidade, que lhe é correlata, pode ser entendida como
uma ênfase na contingência e uma total refutação de qualquer continuidade históri-
ca. O que destaco aqui, no entanto, é que a sua evocação de responsabilidade - a qual
entendo como responsabilidade histórica - parte da crise ou do reconhecimento da
ruptura, mas vai conectar responsabilidade e liberdade. Há o chamado à responsa-
bilidade justamente porque o homem é livre e seu futuro não está pré-definido. O
reconhecimento da ruptura - a incerteza ou contingência da história - configura-se
como necessidade de se assumir responsabilidade, de se lançar como projeto, de fa-
zer escolhas que garantam a possibilidade e a potencialidade do futuro.
No meu entendimento, longe de ser um autor que desconsidera a história e afirma
apenas o tempo presente, Sartre aparece como alguém extremamente preocupado com
o futuro do mundo e da história, compondo-se justamente como um autor significa-
tivo para compreendermos a nova experiência temporal do pós-guerra, donde a partir
da ruptura com o passado se vislumbra uma nova conexão com o futuro ameaçado - se
vislumbra na valorização da escolha do presente uma continuidade entre os tempos.
Neste momento do pós-guerra, a sensação de perda de sentido deixada pelas ca-
tástrofes vai tornar realidade a perspectiva da ruptura. A história é experimentada
como uma ruptura radical. Na filosofia sartriana essa sensação é tão forte que vai se
conceber a refutação de todas as essências e a constatação de que o homem faz a si
mesmo a partir do momento que passa a existir; qual seja, que o sentido da existência
não existe antes do homem, mas é construído por ele mesmo.
34
Sartre parte do pressuposto de um mundo sem deus, um mundo sem tradição,
entendendo que “o homem não é mais que o que ele faz” (SARTRE, 1970, p.216).
O elemento fundamental é que justamente por sermos livres, precisamos decidir a
todo momento. Precisamos escolher e nos responsabilizar pelas escolhas.
Existe, portanto, o reconhecimento de uma não significação a priori do mundo e
da história, mas isso não significa que não vá existir história. Ao contrário, é exata-
mente essa concepção de que a existência humana não tem sentido dado, que garante
para Sartre a ideia de que o sentido da existência é construído inteiramente pelas
ações humana, pelas escolhas, pelos projetos. Ao homem é dada a possibilidade de
criar a comunidade humana, responsabilizando-se por suas escolhas.
o homem antes de mais nada é o que se lança para um futuro, e o que é cons-
ciente de se projetar no futuro.”(217) (…)“Antes de viverdes a vida não é nada;
mas de vós depende dar-lhe um sentido, e o valor não é outra coisa senão esse
sentido que escolherdes. Por isso vedes que há possibilidade de criar uma comu-
nidade humana.(SARTRE, 1970, p. 266)
35
a priori ou pré-definida não pode se confundir com uma concepção de mundo a-his-
tórica. Aqui, como em Arendt, podemos notar que a crítica à História passa mais pela
crítica de uma História automaticamente dada como processo do que por uma crítica
de qualquer sentido histórico - de um contínuo entre passado e futuro.
Em O existencialismo é um humanismo, destaca-se o anseio sartriano em desven-
cilhar a ideia de responsabilidade de uma decisão egoísta, egocentrada do indíviduo
e lançá-la ao mundo, no reconhecimento do pertencimento ao mundo comum, com-
partilhado com Outrem.
A responsabilidade em Sartre refere-se a cada indivíduo. “a existência precede a
essência, ou, se se quiser, que temos que partir da subjetividade.” (SARTRE, 1970, p. 213)
Não se pode negar que interessa ao autor toda uma esfera do âmbito individual
e pessoal, que, segundo ele, é, inclusive, correntemente preterida na história do
marxismo. Por sua via, muitos marxistas acreditam que Sartre não considera as es-
truturas nas quais o sujeito já está lançado, sendo acusado de defender o liberalismo
burguês.11 Mas, de qualquer forma, a questão da responsabilidade remete não ape-
nas ao destino individual dos seres, mas ao próprio mundo. A escolha autêntica tem
a ver com a humanidade inteira. Trata-se de uma responsabilidade pelo mundo. É
nesse sentido que entendo ser possível falar de uma responsabilidade histórica em
Sartre. É na clivagem da relação fundamental entre sujeito e objeto que a responsa-
bilidade se interpõe.
O autor explica que quando recorre à noção subjetividade não está falando de um
individualismo ou psicologismo, mas da necessidade de considerar que a situação
humana na Terra passa pela subjetividade. Nas palavras de Sartre isso aparece como
“impossibilidade para o homem de superar a subjetividade humana” (SARTRE, 1970,
p. 218). Não se trata, portanto, da defesa de uma individualidade liberal, que surge
do entendimento de que os indivíduos estão separados e isolados lutam uns com os
outros. Não se trata também de uma mera esfera interior ou do pensamento. Note-
se que, “só há realidade na ação (…) o homem não é senão o seu projecto, só existe
na medida em que se realiza, não é é portanto nada mais do que o conjunto dos seus
actos, nada mais do que a sua vida” (SARTRE, 1970, p. 241). A objetividade vem ao
mundo através de nós - da subjetividade - e se configura como uma noção que se co-
necta fundamentalmente a essa percepção da liberdade e a caracterização da história
11 Para acompanhar detalhadamente este debate ver Edward Baring, O jovem Derrida e a filosofia francesa.
36
como aquela que - não estando previamente dotada de sentido - se contrói a partir da
própria ação humana. Deste modo, o autor frisa a irredutível situação da subjetivida-
de. Segundo ele, não é possível destituir o sujeito, ou seja, “toda verdade e toda ação
implicam um meio e uma subjetividade humana” (SARTRE, 1970, p. 209).
O sujeito, dada sua liberdade, precisa assumir um projeto - está lançado para o fu-
turo. Futuro comum de toda a humanidade, continuadamente escolhido e agido por
todos. E que, portanto, não está pronto e nem aparece automaticamente. A ideia de
humanismo que aparece aqui não é a de culto da humanidade, mas a de um huma-
nismo que se faz a cada dia - precisa ser escolhido como projeto, como possibilidade
da ação. É por isso que, na formulação sartriana, o homem está fadado a ser livre. “o
homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou ali próprio; e
no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto
fizer” (SARTRE, 1970, p. 228). Responsabilidade é correlata direta da liberdade e, por-
tanto, da contingência.
É importante frisar que a subjetividade existencialista, da qual fala Sartre, está
desde sempre implicada na existência comum com os outros, no compartilhamento
do planeta. É nesse sentido que a subjetividade insuperável, que passa inclusive pelo
próprio corpo de cada um, não é uma mônada; não é mero subjetivismo, como replica
o autor. Ela se constitui e se projeta no âmbito da responsabilidade. Responsabilidade
de cada um consigo mesmo, mas também responsabilidade com o futuro e com os
outros. Se não há essência humana e o homem é livre para constituir-se, para fazer-
-se, esse fazer-se tem a ver com a totalidade, pois envolve a todos.
Quando dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer que cada um
de nós escolhe a si próprio; mas com isso queremos também dizer que, ao es-
colher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens. (…) o primeiro esforço do
existencialismo é o de pôr todo o homem no domínio do que ele é e atribuir
a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que o homem
é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável
pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens.
(SARTRE, 1970, p. 218-219)
37
Sartre dá alguns exemplos pontuais dessa conexão entre a escolha de cada um e
uma imagem de si que está inteiramente conectada com uma imagem de mundo.12
Ele diz:
se quero, facto mais individual, casar-me, ter filhos, ainda que este casamento
dependa unicamente da minha situação, ou da minha paixão, ou do meu desejo,
tal acto implica-me não somente a mim, mas a toda a humanidade na escolha
desse caminho: a monogamia. Assim, sou responsável por mim e por todos, e
crio uma certa imagem do homem por mim escolhida; escolhendo-me, escolho
o homem. (SARTRE, 1970, p. 220)
12 Em Questão de método, Sartre faz uma crítica aos marxismo deterministas e distingue temporalidade meio -
que entende ser a perspectiva que o marxismo idealista tem em comum com o racionalismo cartesiano, formu-
lando-a como uma “dialética paralisada”, segundo a qual, concebe uma “totalização das atividades humanas no
interior de um continua homogêneo e infinitamente divisível” (SARTRE, 1978, p. 152). Distintamente, da visão
burguesa do progresso, Sartre encontra uma de temporalidade real, “da relação verdadeira dos homens com
seu passado e com seu futuro” (SARTRE, 1978, p. 152). Aparece ainda a noção de projeto na caracterização do ho-
mem como um ser que está sempre lançado na superação da sua situação. Neste trabalho retoma a concepção
de que a escolha não se refere a uma indeterminação completa, sugerindo que a História como possibilidade
também se abre num campo de possíveis. Considera, portanto, a existência de contradições de base que estru-
turam o campo dos possíveis, mas observa que isso não nega a escolha. Quer evitar o caminho do marxismo
idealista que erra “ao negligenciar o conteúdo particular de um sistema cultural e ao reduzi-lo imediatamente
à universalidade de uma ideologia de classe” (SARTRE, 1978, 177). Defendendo um “verdadeiro conhecimento
compreensivo que reencontrará o homem no mundo social e o seguirá em sua práxis ou, se preferir, no projeto
no qual se lança em direção dos possíveis sociais a partir de uma situação definida”(SARTRE, 1978, 191). Neste
texto, o conceito de responsabilidade às vezes encontra eco na concepção da “consciência do papel histórico”.
38
Da experiência deste tempo de ruptura próprio do pós-guerra, Sartre também
reconhece, como Arendt, que o futuro está ameaçado, não está pré-determinado. A
crise aparece como uma possibilidade de se notar que a história é atravessada pela
contingência, quiça pela liberdade. Note-se, portanto, que é a vivência profunda des-
te tempo de ruptura que reconhece a contingência do processo histórico e chama a
responsabilidade como uma tarefa de assumir a relação com o passado, com o futuro,
com Outrem. É no âmbito da incerteza e da ruptura que a responsabilidade aparece
como elemento crucial para conectar os homens, os tempos e a humanidade mesma.
A ênfase na ação guarda a importância do futuro - preocupação com o futuro - e
também do passado no sentido de humanidade. Para visualizar esse ponto é preciso
que se entenda que a valorização da ação não se dá num esvaziamento da temporali-
dade. Ao contrário, justamente porque liga presente e futuro, que o humano tem um
sentido e uma finalidade enquanto humano e humanidade. Sentido e finalidade que
não estão dados a priori, mas que são construídos pelos próprios homens no desenrolar
histórico. Longe de ser uma afirmação do tempo presente, a ação e liberdade em Sartre
são verdadeiras afirmações da continuidade no tempo. Continuidade que não tem o
mesmo significado da continuidade da tradição ou da autoridade do passado sobre o
futuro. Não se trata de uma continuidade automática, mas de uma continuidade que
se perfaz na descontinuidade crítica da tradição; na experiência profunda da ruptura. A
formulação segundo a qual o passado orienta ou determina o futuro aparece, em Sartre,
como uma história sem futuro, sem ação humana, sem escolha. Para que haja História
é preciso que ela não esteja completamente determinada, que seja aberta e livre.
Assim, pode-se dizer que Sartre parte da noção de ruptura com a tradição. E,
como nos modernos, reconhece uma ruptura entre o passado e futuro. No entanto, a
refutação da História é uma crítica não da História propriamente dita, mas da ideia
de que a História anda automaticamente para a frente como que previamente dada.
Destacar que o homem, na sua relação consigo mesmo, com os Outros e com o mun-
do, escolhe a sua própria existência significa dizer que não há nenhuma determina-
ção da história, que a história é contingência e que o homem é um ser livre.
A noção de escolha e liberdade estão relacionadas à ideia de uma escolha situada
(eu diria historicamente situada), que só é possível numa condição de compartilha-
mento dos homens no mundo, compondo-se como a clivagem entre subjetividade/
objetividade. Para nossa temática, interessa menos responder se Sartre conseguiu
de fato uma justa medida entre subjetividade/objetividade que perceber que a noção
39
de responsabilidade deixa ver uma experiência temporal nova - que se abre a par-
tir do reconhecimento de um futuro ameaçado - que requer considerar, diante da
ruptura, a necessidade de se assumir a responsabilidade pela conexão entre passado,
presente e futuro.
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41
EXISTE UMA “ÉTICA DA HISTÓRIA”?
ÉTICA, TEORIA DA HISTÓRIA E NOSSAS
RELAÇÕES COM O PASSADO
JOÃO R. M. OHARA
13 KOSELLECK, Reinhart. Historia Magistra Vitae – Sobre a dissolução do topos na história moderna em mo-
vimento. In: idem. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Trad. de Wilma Patrícia
Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006, p. 41-60.
42
exemplos dos quais poderíamos aprender e que poderiam nos orientar para a ação
no presente. O passado teria se tornado um “país estrangeiro” e as antigas lições que
dele tirávamos se adequavam mal a um presente cada vez mais marcado pela expe-
riência do inédito, do sem-precedentes.14 Apesar de sugestivo, esse argumento tem
sido reavaliado. Mediante a permanência da expressão “história mestra da vida” no
pensamento histórico brasileiro no século XIX, Valdei Araujo argumentou que ela
“parece demonstrar novos usos em um contexto distinto da experiência clássica/an-
tiga do tempo.”15 Junto de outros estudiosos da historiografia antiga, Juliana Bastos
Marques contestou a tese de Koselleck a respeito de uma ruptura entre a historiogra-
fia antiga e a moderna.16 Christophe Bouton sugeriu que o advento da modernida-
de transformou, mais do que dissolveu, a função didática ou pragmática da história.
Em suas palavras, “a relação prática com o passado introduzida com o modelo da história
como a “Guia para a Vida” – formar, informar, julgar, inspirar, justificar – continua a ser
empregado de diversas maneiras, desde o desejo de tirar proveito do conhecimento his-
tórico até a educação dos cidadãos e a luta contra o quietismo social e a tradição.”17 Assim,
mesmo considerando as transformações da experiência do tempo impostas pela moder-
nidade, a história ainda parece exercer certa função didático-pragmática no presente.
É também no contexto dessas transformações identificadas por Koselleck e dis-
cutidas por seus críticos que se situa um outro aspecto da longa busca por um conhe-
cimento seguro do passado. Mediante a nova consciência sobre a historicidade das
14 A expressão “o passado é um país estrangeiro” aparece no começo de The Go-Between, de L. P. Hartley, e foi
tomada de empréstimo por David Lowenthal para dar nome ao seu livro (hoje, também um clássico) – LOWEN-
THAL, David. The Past is a Foreign Country. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. Sobre a experiência
do “sem-precedentes”, ver SIMON, Zoltán Boldiszár. History in Times of Unprecedented Change: A Theory for the
21st Century. London: Bloomsbury, 2019.
15 ARAUJO, Valdei Lopes de. Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX brasileiro.
In: NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAUJO, Valdei Lopes de. Aprender com a História? O
Passado e o Futuro de uma Questão. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2011, p. 131-147, p. 141.
16 MARQUES, Juliana Bastos. A historia magistra vitae e o pós-modernismo. História da Historiografia, Ouro
Preto,v. 6, n. 12, p. 63-78, 2013. Em seu artigo, além de Arnaldo Momigliano, ela se apoia em GRETHLEIN, Jonas.
Historia Magistra Vitae in Herodotus and Thucydides? The exemplar use of the past and ancient and modern
temporalities. In: LIANERI, Alexandra (ed.). The Western Time of Ancient History: Historiographical encounters
with the Greek and Roman pasts. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 247-263; e em ROLLER, Ma-
tthew. The exemplary past in Roman historiography and culture. In: FELDHERR, Andrew (ed.). The Cambridge
Companion to the Roman Historians. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 214-230.
17 BOUTON, Christophe. Learning from History: The Transformations of the topos historia magistra vitae in
Modernity. Journal of the Philosophy of History, Leiden, v. 13, n. 2, p. 183-215, 2019, p. 202.
43
épocas, aqueles que acreditavam na possibilidade de conhecermos adequadamente
o que se passou se debateram longamente com o problema da objetividade e, mais
fundamentalmente, com o problema dos valores. Afinal de contas, como poderia
haver conhecimento confiável do passado se nossa visão do mesmo permanecia em-
bebida nos nossos valores, diferentes e potencialmente incompatíveis com aqueles
que estudamos?18 Assim, somos convidados a reconsiderar também aquela renúncia
declarada pelos historiadores no processo da institucionalização da disciplina entre
o fim do século XVIII e o XIX.
Conhecendo a história da nossa disciplina, não nos surpreende o espanto com
que os historiadores reagiram à reaparição destacada de expressões como “julga-
mentos da história”, “lado certo/errado da história” e similares. Em um de seus
livros mais recentes, Joan Scott notou que “esses apelos ao julgamento da história
[a] fizeram perceber quão poderosa é a fantasia dessa noção, quão fortemente a sua
promessa messiânica resiste até para secularistas céticos como [ela]”.19 Apesar dos
contínuos esforços por parte dos historiadores em separar aquilo que compete à
“história” (conhecer o passado de maneira sistemática, metódica e confiável) e aqui-
lo que compete à “memória” (a fabricação de laços comunitários e das identidades),
muitos não parecem convencidos dessa distinção – ou, pelo menos, permanecem
confusos a respeito dessas diferenças abstratas. Daí a dificuldade de lidar com os
episódios cada vez mais frequentes em que os vivos lutam por um “acerto de contas”
com o passado. Instados a se pronunciarem sobre a derrubada de estátuas de escra-
vocratas e genocidas, sobre a adequação do termo “fascismo” à ascensão do novo
populismo da extrema-direita, ou sobre a restituição de artefatos e obras de arte
pilhadas durante o período colonial, só então muitos historiadores parecem ter se
dado conta das fragilidades da separação cuidadosa que haviam estabelecido entre
aquilo que podemos conhecer do passado e os significados do passado no presente. 20
18 Ver TORSTENDAHL, Rolf. Fact, Truth, and Text: The Quest for a Firm Basis for Historical Knowledge Around
1900. History and Theory, v. 42, n. 3, p. 305-331, 2003; PAUL, Herman. Distance and Self-Distanciation: Intellectual
Virtue and Historical Method around 1900. History and Theory, v. 50, n. 4, p. 104-116, 2011; DASTON, Lorraine.
Objetividade e Imparcialidade: Virtudes Epistêmicas nas Humanidades. In: idem. Historicidade e Objetividade.
Trad. de Derley Menezes Alves e Francine Iegelski. São Paulo: LiberArs, 2017, p. 127-143; BLOXHAM, Donald.
History and Morality. Oxford: Oxford University Press, 2020.
19 SCOTT, Joan W. On the Judgment of History. New York: Columbia University Press, 2020, p. XII.
20 Apenas para efeito de análise, esse enquadramento assume que a renúncia proclamada pelos historiadores
nos séculos XIX e XX correspondeu a um efetivo abandono da crença no aspecto pragmático expresso pela ideia
de “história mestra da vida”.
44
É esse o contexto em que o problema dos valores, em geral, e da ética, mais especi-
ficamente, parece ter voltado à pauta das discussões entre historiadores.
21 Sobre semelhanças e diferenças entre a historiografia antiga e a moderna, contraste minha posição com MO-
MIGLIANO, Arnaldo. The Classical Foundations of Modern Historiography. Berkeley: University of California Press,
1990. Sobre as atribuições de “paternidade” da história, ver PAUL, Herman. Fathers of History: Metamorphoses
of a Metaphor. Storia della Storiografia, Roma, n. 59-60, p. 251-267, 2011; BERGER, Stefan. ‘Fathers’ and Their Fate
in Modern European National Historiographies. Storia della Storiografia, Roma, n. 59-60, p. 228-247, 2011.
22 Ver IGGERS, Georg G. Historicism: The History and Meaning of the Term. Journal of the History of Ideas,
[s.i.], v. 56, n. 1, p. 129-152, 1995; BEISER, Frederick C. The German Historicist Tradition. Oxford: Oxford University
Press, 2012; PAUL, Herman e VELDHUIZEN, Adriaan van (eds.). Historicism: A Travelling Concept. Londres:
Bloomsbury Academic, 2021. Considero menos convincentes, mas importantes, as posições de Jörn Rüsen, em
quem se inspira Estevão Martins – ver MARTINS, Estevão de Rezende. Historicismo: o útil e o desagradável. In:
VARELLA, Flávia Florentino et al. (orgs.). A Dinâmica do Historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo
Horizonte: Fino Traço, 2011, p. 15-48.
23 Sobre a história das ciências, o manual de Steven Shapin permanece uma boa referência – ver SHAPIN,
Steven. The Scientific Revolution. Chicago: The University of Chicago Press, 1996. Sobre a formação da história
nesse contexto de ansiedades sobre sua cientificidade, são valiosas as coletâneas: MARTINS, Estevão de Re-
zende (org.). A História Pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Editora
Contexto, 2010; MALERBA, Jurandir (org.). Lições de História: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2010.
45
gradualmente o espaço da pesquisa histórica moderna.24 É o primeiro desses elemen-
tos que importa mais para avaliarmos a tese de Koselleck.
Para os antigos gregos e romanos, o conhecimento do passado era exemplar
e instrutivo. Quando Heródoto se propôs a proteger do esquecimento os feitos
notáveis de gregos e estrangeiros ou quando Tucídides declarou a utilidade do
seu relato verdadeiro aos que, no futuro, passariam por eventos similares, o que
temos em vista é uma concepção de história capaz de instruir e orientar no pre-
sente a partir de experiências passadas. 25 Ainda que a fórmula geral só tenha sido
mais claramente elaborada no período helenístico e latino, já nos “pais fundadores”
encontramos uma ideia de natureza humana que permitia justapor o presente e
o passado de modo que pudéssemos, no presente, aprender com as experiências
passadas. Mesmo que suas sensibilidades históricas pudessem pensar algum grau
de mudança, esta seria sempre tão lenta a ponto de que os desafios do presente po-
diam ser mais ou menos facilmente comparados aos desafios de outrora. 26 Como as
bases desse aprendizado eram a imitação e o exemplo, ele era eficaz na medida em
que o desafio no presente compartilhasse com eventos passados um conjunto de
pressupostos básicos relevantes para a ação. Em seu texto, Koselleck nos apresen-
tou a longa trajetória desse modo de nos relacionarmos com o passado desde a sua
formulação antiga até o período revolucionário francês, passando pelo pensamento
cristão no período medieval. 27
O próprio Koselleck reconhecia que “embora tenha conservado sua forma ver-
bal, o valor semântico [dessa] fórmula variou consideravelmente ao longo do tempo”
e que era difícil “esclarecer a diferença que sempre existiu entre o mero emprego
do lugar comum e seu efeito prático”. 28 Em todo caso, escreveu, “seu uso remete a
uma possibilidade ininterrupta de compreensão prévia das possibilidades humanas
24 Algumas boas referências sobre esse período da história da historiografia europeia são PORCIANI, Ilaria e
RAPHAEL, Lutz (eds.). Atlas of European Historiography: The Making of a Profession, 1800-2005. Basingstoke:
Palgrave Macmillan, 2015; DELACROIX, Christian, DOSSE, François e GARCIA, Patrick. Correntes Históricas na
França: Séculos XIX e XX. Trad. de Roberto Ferreira Leal. Rio de Janeiro: Editora FGV; São Paulo: Editora Unesp,
2012. Ver também os volumes 3 e 4 da The Oxford History of Historical Writing, coordenada por Daniel Woolf.
28 Ibid., p. 42.
46
em um continuum histórico de validade geral.”29 Bastando que considerássemos cer-
tos pressupostos e condições como estáveis e compartilhados, poderíamos recorrer
às experiências passadas em busca de lições valiosas para a ação presente. Na sua
definição mais clara sobre o conteúdo semântico do topos, Koselleck escreveu que
“a história pode conduzir ao relativo aperfeiçoamento moral ou intelectual de seus
contemporâneos e de seus pósteros, mas somente se e enquanto os pressupostos
para tal forem basicamente os mesmos.”30 Com a Revolução Francesa e o advento
da modernidade, teríamos passado por uma ruptura nesses pressupostos. A partir
de então, a experiência antiga do tempo teria dado lugar a uma outra, a moderna,
e a ideia de que os exemplos do passado pudessem iluminar o presente mediante a
sua imitação teria perdido sua plausibilidade.31
Um primeiro problema se apresenta quando consideramos a inadequação des-
sa hipótese ao caso brasileiro, em que a expressão permaneceu em uso corrente.
Em uma leitora generosa, Valdei Araujo sugeriu que a hipótese de Koselleck ainda
tinha algum valor explicativo e poderia ser facilmente ajustada ao falar de um
estreitamento do topos, mais do que de dissolução. “Mais do que continuidade
por inércia, resistência ou limitações estruturais de matriz societária como a es-
cravidão, a presença da expressão historia magistra vitae no século XIX brasileiro
parece demonstrar novos usos em um contexto distinto da experiência clássica/
antiga do tempo”, escreveu Araujo.32 Para ele, “não é a história em geral que perde
sua função magistral, mas o livro de história e sua leitura que passam a exigir um
tipo novo de relação de aprendizagem; pois vai aumentando a consciência de que
a história com a qual se deve aprender não é a que está no livro, mas o processo
histórico real que deve ser constantemente representado” – um deslocamento se-
mântico difícil de rastrear em um idioma (o português) que não contava com ter-
mos distintos para essas duas modalidades diferentes, tal como contava o alemão
(Geschichte e Historie).33
29 Ibid., p. 43.
33 Ibid., p. 145.
47
Mesmo no contexto europeu, de que falou originalmente Koselleck, também é
questionável a hipótese de que o topos da “história mestra da vida” perde sua plausi-
bilidade a partir da ruptura entre as experiências antiga e moderna do tempo – assim
o apontaram, cada um a seu modo, Juliana Bastos Marques e Christophe Bouton. Para
Marques, é só no século XX que o referencial clássico do aprendizado pelo exemplo
se tornaria obsoleto, enquanto Bouton argumentou que alguns casos paradigmáticos
(como as discussões sobre educação histórica, a exemplaridade negativa do Holocausto
ou o “dever de memória”) sugerem que o topos ciceroniano ainda tem alguma rele-
vância.34 Ainda que consideremos as nuances que o próprio Koselleck adiantou em seu
texto de 1967, vão ficando claros os limites e problemas da sua hipótese geral.
Bouton, em particular, mostrou com clareza que concepções pragmáticas da his-
tória persistiram, ainda que reformuladas, bem depois do Sattelzeit – em Droysen,
Nietzsche, Marc Bloch e Henri-Irénée Marrou.35 O topos ciceroniano teria se recon-
figurado frente às novas experiências do tempo. Se antes era o caráter estático da
natureza humana que tornava possível pensar em um mundo compartilhado da ex-
periência, agora a história ensinava justamente através da possibilidade de mudança:
“Para os revolucionários franceses, a história era uma “Guia para a Vida” e para a ação
porque ela expunha possibilidades passadas da existência humana, as virtualidades
que, para algumas, ainda não tinham sido realizadas”, enquanto nos discursos revo-
lucionários dos séculos XIX e XX, “a referência ao passado (revolucionário) nos forne-
ce informações úteis (função informativa). Ela ilumina alternativas presentes, lembra
as pessoas de possibilidades não realizadas (função pragmática). Ela serve como fonte
de inspiração (função psicológica) e/ou de legitimação (função política) em relação ao
modo de mudança, criativo, ao invés de imitativo”.36 Uma vez que a imitação não era
mais possível em função da consciência da historicidade do passado e do estilhaça-
mento de um mundo compartilhado da experiência humana, o aprendizado também
se tornou analógico. No lugar das regras gerais para a ação,
34 MARQUES, 2013, p. 71-72; BOUTON, 2019, p. 211, 213-215. Bouton ainda menciona que o próprio Koselleck
qualificou suas teses de 1967 em um novo texto, em 1971, e no seu longo verbete sobre o conceito de História,
de 1975. Ver BOUTON, 2019, p. 204-205.
48
aquilo que podemos chamar de “juízo histórico-prático” busca exemplos no pas-
sado, situações análogas capazes de iluminar um caso presente particular. Ao
invés de subsumir o particular no geral, ele recomenda refletir no presente à luz
do passado, isso é, comparando o particular (presente) com o particular (passa-
do), sem necessariamente tirar da comparação conclusões mais gerais.37
Uma das formas de pensarmos nos aspectos éticos da história envolve considerar
as diversas relações que estabelecemos com o passado. Como notou Mark Day, elas
não se reduzem ao aspecto cognitivo – isso é, nossas relações com o passado não se
reduzem a relações de conhecimento – e a cognição está emaranhada a vários desses
outros aspectos.39 Para nossos propósitos, focarei exclusivamente naquilo que Day
chamou de relações “práticas” com o passado, “aquelas relações que privilegiam o
historiador enquanto ator, ao invés de ou – talvez de modo mais interessante – em
conjunto com a posição do historiador enquanto alguém que conhece”. 40 Em primeiro
37 Ibid., p. 209.
38 Esse aspecto é fundamental para compreendermos aquilo que Hayden White chamou de nossa “condição
irônica” – uma consciência profunda da historicidade do presente e do passado que tende à descrença em
projetos transformadores e, portanto, à paralisia. Ver WHITE, Hayden. Metahistory: the historical imagination
in nineteenth-century Europe. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1973 e WHITE, Hayden. The
Practical Past. Evanston: Northwestern University Press, 2014.
39 DAY, Mark. Our Relations to the Past. Philosophia, [s.i.], v. 36, p. 417-427, 2008.
49
lugar, temos justamente a ideia de que poderíamos aprender algo com o passado –
não no sentido estrito da imitação antiga, mas “como uma demanda a situar eventos
passados que sejam ou iguais em aspectos relevantes ou análogos a eventos presen-
tes de particular interesse prático.”41 A seguir, temos o passado como provedor de
padrões de referência para nossas práticas presentes – “O que é pintar bem depen-
de do trabalho dos antigos mestres; o que é raciocinar dialeticamente depende das
conquistas de Platão, Aristóteles e Hegel” e assim por diante. Finalmente, temos
o reconhecimento da relação inescapável entre o conhecimento e nossa existência
inescapavelmente corpórea, ou seja, na conexão entre “conhecimento de como” (kno-
wledge-how) e “conhecimento de quê” (knowledge-that). 42
Na primeira modalidade, como já havia adiantado Christophe Bouton, a função
didático-pragmática da história não fica inviabilizada pela impossibilidade da imita-
ção do exemplo, mas se reconfigura mediante à consciência da historicidade do pre-
sente e do passado que implica na diferenciação dos mundos da experiência humana.
Em outras palavras, consideramos que, apesar das diferenças, certas situações espe-
cíficas no passado podem subsidiar nosso juízo sobre outras situações específicas no
presente através de analogias e outras formas de comparação. Ao invés da imitação
do exemplo, as analogias “iluminam o presente” justamente pelo reconhecimento
de semelhanças e diferenças (continuidades e descontinuidades) entre o passado e o
presente – reconhecimento este que dá a ver não só os limites e as inadequações da
experiência passada, mas também as virtualidades e potencialidades ainda abertas
para a ação presente. 43
Na segunda modalidade, notamos que diversas referências normativas do pre-
sente estão como que ancoradas no passado. Nas palavras de Day, “práticas passadas
(incluindo, mas de forma alguma limitada à [prática] artística, filosófica, histórica)
proveem as referências para o que é agir bem.”44 Ainda que o advento da modernidade
42 Ibid., p. 423-424.
43 Nesse aspecto, Marcus Telles oferece uma leitura provocativa de Louis Mink, considerando a relação entre
as redescrições do passado e a abertura para a possibilidade de “outros mundos”. TELLES, Marcus. “Não pode
haver estórias não contadas”: consciência e processualidade na filosofia da história de Louis Mink. In: OHARA,
João Rodolfo Munhoz (org.). Da Explicação à Narrativa: teoria e filosofia da história no mundo anglo-saxônico.
Vitória: Editora Milfontes, 2021, p. 59-96.
50
tenha instaurado uma ruptura fundamental entre passado e presente, de que nos
falou Koselleck, e aquilo que Foucault identificou em Kant como “a atitude da mo-
dernidade”, isso é, “um modo de se relacionar ao contemporâneo” caracterizado pela
“crítica permanente do nosso ser histórico”45 , nossos juízos sobre a ação ainda recor-
rem com frequência ao passado na busca de referências que os tornem possíveis. Daí,
por exemplo, que as noções estéticas passadas figurem sempre em discussões críticas
ou afirmativas sobre o belo, ou que um histórico de intervenções militares em outros
países seja relevante quando uma potência invoca as ideias de “autodeterminação
dos povos” e “soberania” no presente. O passado não é a única (e talvez sequer seja a
mais importante)46 ancoragem dos nossos juízos presentes e as referências que nele
buscamos podem ser tanto “positivas” (o agir bem) quanto “negativas” (o agir mal),
mas ele permanece relevante, no mínimo, enquanto uma das referências disponíveis
para o juízo presente.
Finalmente, o terceiro aspecto passa pelo reconhecimento da nossa existência
inevitavelmente corpórea, de que decorre o argumento de que “o conhecimento ex-
plícito do historiador se baseia no conhecimento implícito, praticamente incorpora-
do”. 47 Day sugeriu que
45 FOUCAULT, Michel. Qu’est-ce que les Lumières? In: idem. Dits et Écrits 1954-1988, IV, 1980-1988. Paris: Galli-
mard, 1994, p. 568 e 571. Comparar também a versão em língua inglesa, traduzida por Catherine Porter: FOU-
CAULT, Michel. What is Enlightenment? In: RABINOW, Paul (ed.). The Foucault Reader. New York: Pantheon
Books, 1984, p. 39, 42.
48 Ibid., p. 423.
49 Ver GUMBRECHT, Hans Ulrich. Production of Presence: what meaning cannot convey. Stanford: Stanford
University Press, 2004; ANKERSMIT, Frank. Sublime Historical Experience. Stanford: Stanford University Press,
2005; RUNIA, Eelco. Moved by the Past: discontinuity and historical mutation. New York: Columbia University
51
mos uma relação dialética entre o que conhecemos do passado e nossas experiências
sensoriais e afetivas daquilo que persiste do passado no presente (materialmente,
mas também imaterialmente). De um lado, aquilo que conhecemos torna possível
um conjunto de experiências afetivas (os afetos ativados na presença de lugares de
profundo sofrimento, por exemplo); de outro, dar-se conta das experiências torna
possível novas redescrições.
Essas três modalidades ultrapassam muito os limites que a historiografia teria
imposto a si mesma desde o século XVIII. Cioso da historicidade do seu objeto, e
ciente dos limites que ela impõe ao seu conhecimento, boa parte dos historiadores
parece ainda reticente sobre a possibilidade de atuar mais diretamente sobre as rela-
ções práticas que podemos estabelecer com o passado.50 Em muitos casos, prevalece
entre historiadores e filósofos da história a ideia de que “a libertação política não
virá da nossa própria historiografia terapêutica que é tão boa quanto as suas concor-
rentes. Só a verdade provável, o conhecimento do passado fundado na historiografia
científica e a sua compreensão filosófica podem nos libertar.”51 Desse ponto de vista,
um caminho possível seria o de que a historiografia (preocupada exclusivamente
com a cognição) tão simplesmente fornece os materiais para que os seus leitores
possam, por conta própria, tirar daí alguma lição, algum referencial normativo ou
estabelecer relações afetivas com os restos do passado. No entanto, nesse caso, não
podemos deixar de nos perguntar pela possibilidade de isolar a nossa cognição des-
ses outros aspectos.
Em certo sentido, o “fardo da história” de que falou Hayden White na década
de 1960 é um fardo que ainda pesa. Para o “jovem White”, “a história só pode ser-
vir para humanizar a experiência se permanecer sensível ao mundo mais geral do
Press, 2014; TELLES, Marcus. A Relação entre Representação e Experiência: um estudo crítico da “filosofia existen-
cialista da história”. 2019. Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Pós-graduação em História Social,
USP, São Paulo, 2019; KATTAGO, Siobhan. Encountering the Past within the Present: modern experiences of time.
London: Routledge, 2020.
50 Uma exceção notável: GULDI, Jo e ARMITAGE, David. Manifesto pela História. Trad. de Modesto Florenzano.
Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
51 TUCKER, Aviezer. Our Knowledge of the Past: A Philosophy of Historiography. Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 2004, p. 262. Compare, por exemplo, com a posição de Roger Chartier, para quem a “história
deve dar a todos os instrumentos críticos necessários para desmascarar mitos históricos e revelar falsificações
históricas. Ela deve propor uma representação controlada e precisa do passado.” CHARTIER, Roger. Writing the
Practices. French Historical Studies, [s.i.], v. 21, n. 2, p. 255-264, 1998, p. 257.
52
pensamento e da ação, de onde ela parte e ao qual retorna.”52 Muito tempo depois, o
“velho White” já não parecia tão esperançoso com os historiadores quando recorreu
à distinção entre passado prático e passado histórico em busca de uma história ain-
da embebida do seu aspecto pragmático.53 Em suas palavras, “é preciso dizer que o
renascimento do romance histórico [...] tem de ser colocado dentro do contexto da
discussão, no pós-Segunda Guerra, [...] da necessidade de se ‘chegar a um acordo com
o passado’, não só na Europa, mas também no resto do mundo colonial”.54 Essa litera-
tura do pós-guerra colocava em evidência “a necessidade de se pensar uma vez mais
sobre a utilidade, o patrimônio ou o valor, as vantagens e as desvantagens, dos tipos
de conhecimento do passado produzidos pelos novos quadros de historiadores pro-
fissionais estabelecidos no final do século XIX a serviço do Estado-nação europeu”.55
Para White, é na literatura, e não na historiografia, que ainda encontraríamos o
espaço propício para essas relações práticas com o passado – ou, nos seus termos, o
espaço para o passado prático. Isso porque, se “o velho modo retoricamente estru-
turado da escrita da história abertamente promovia o estudo do passado como uma
propedêutica para uma vida na esfera pública”,56 a nova historiografia profissionali-
zada da modernidade exigiu que
o passado fosse estudado, como foi dito, ‘por si só’ ou enquanto ‘uma coisa em
si mesma’, sem qualquer motivo ulterior do que um desejo de verdade (factual,
que fique claro, ao invés de doutrinária) sobre ele e sem qualquer inclinação
para tirar lições de seu estudo e importá-las para o presente a fim de justificar
ações e programas para o futuro. Em outras palavras, a história, em seu estatuto
de ciência para o estudo do pretérito, teve de purgar-se de qualquer interesse no
passado prático [...].57
52 WHITE, Hayden. The Burden of History. In: idem. Tropics of Discourse: Essays in Cultural Criticism. Baltimo-
re: The Johns Hopkins University Press, 1986, p. 50.
53 WHITE, Hayden. O Passado Prático. ArtCultura, Uberlândia, v. 20, n. 37, p. 9-19, 2018. O artigo original em
inglês é de 2010 e foi retomado em uma coletânea publicada em 2014. White faleceu em 2018.
54 Ibid., p. 13.
56 Ibid., p. 14.
57 Ibid., p. 15.
53
Alguns dos leitores de White, como María Inés La Greca e Arthur Lima de Avila,
avaliam que ainda seríamos capazes de repensar a historiografia de modo a recu-
perar nela seus aspectos práticos sem, com isso, abandonar de todo a ambição de
adquirir conhecimento sobre o passado.58 Nessas propostas, os insights narrativistas
(particularmente aqueles de White) sobre a estrutura narrativa do conhecimento his-
tórico mostram de maneira bastante clara que aquilo que damos a conhecer sobre
o passado depende de maneira fundamental dos enredamentos que produzimos no
presente – não em um sentido solipsista, mas reconhecendo que esses enredamentos
inescapáveis estão, eles mesmos, sujeitos ao feedback do mundo social.
Quer os historiadores reavaliem suas práticas e dogmas disciplinares ou não, nos-
sas relações práticas com o passado nos alertam para esse primeiro sentido de uma
dimensão ética da história. Ainda que não acreditemos mais compartilhar com os
humanos do passado um mesmo mundo da experiência, nem por isso deixamos de
estabelecer com o passado certas relações de caráter prático. Faz sentido, aqui, a ob-
servação de Valdei Araujo de que a dissolução do topos ciceroniano de que falava
Koselleck aponta tão somente para uma crescente “consciência de que a história com
a qual se deve aprender não é a que está no livro”.59 Daí que falemos mais em relações
práticas com o passado do que em relações práticas com a história.60
A história confunde em uma palavra o acontecido e o que conhecemos dele, e
remete, hoje, à forma moderna desse conhecimento a que nos referimos mais espe-
cificamente por “historiografia”. Essa historiografia (a história dos historiadores, do
passado histórico) tem sido inseparável das relações práticas que estabelecemos com
o passado – pensemos nas discussões sobre reparação pela escravidão ou pelo colo-
nialismo, por exemplo. Assim, talvez os historiadores não estejam tão equivocados
quando evocam a capacidade libertadora de um conhecimento seguro sobre o que se
passou. Seu equívoco é negar que esse conhecimento seguro seja ele mesmo code-
pendente das nossas relações práticas com o passado.
58 LA GRECA, María Inés. Hayden White and Joan W. Scott’s feminist history: the practical past, the political
present and an open future. Rethinking History, [s.i.], v. 20, n. 3, p. 395-413, 2016; AVILA, Arthur Lima de. Indisci-
plinando a historiografia: do passado histórico ao passado prático, da crise à crítica. Revista Maracanan, Rio de
Janeiro, n. 18, p. 35-49, 2018.
60 Ver HARTOG, François. La disparition de l’histoire ? Recherches de Science Religieuse, Paris, v. 109, n. 4, p. 739-
752, 2021.
54
RESPONSABILIDADE E CONFIANÇA
Duas intervenções nos permitem abordar um outro aspecto em que podemos falar
de uma ética da história. Em 2000, Paul Ricoeur iniciou sua apresentação da 22ª
Conferência Marc Bloch dizendo que “É uma expectativa do leitor do texto histórico
que o autor lhe propõe uma ‘narrativa verdadeira’ e não uma ficção. A questão que se
coloca é saber se, como e até que ponto esse pacto tácito de leitura pode ser honrado
pela escrita da história.”61 Em 2004, perguntando-se sobre se “os historiadores, en-
quanto historiadores, têm uma responsabilidade ética”, Jonathan Gorman argumen-
tou que “ser um historiador é essencialmente uma questão de buscar conhecimen-
to histórico como parte de uma obrigação voluntariamente assumida de oferecer a
verdade àqueles que têm direito a ela” e, portanto, “os leitores de obras de história
têm uma expectativa normal e legítima de que receberão verdades históricas quan-
do um historiador, enquanto historiador, alega que as provê. Isso dá aos leitores um
direito mínimo, mas suficiente de esperar por aquela verdade.”62 Em ambos os casos,
qualquer que seja o significado que atribuímos aos termos “narrativa verdadeira” ou
“verdade histórica”, lidamos com a ideia de que os leitores do texto de história assu-
miriam que aquilo que o historiador lhes apresenta é aquilo que ele considerou, em
um dado momento, como o melhor resultado possível do seu trabalho. Aquilo que
era um pressuposto para Ricoeur e só mais um elemento no argumento de Gorman
se torna aqui o nosso objeto.63 Gostaria de sugerir que o leitor só pode esperar que
o historiador lhe ofereça uma “narrativa verdadeira” se (1) o historiador ocupa uma
posição social que lhe confere certa “autoridade epistêmica” em relação ao nosso
conhecimento do passado e (2) o leitor supuser que o historiador cumpre seu papel
de boa-fé. É essa conjunção de elementos que nos permite colocar o problema da
responsabilidade moral do historiador.
61 RICOEUR, Paul. L’écriture de l’histoire et la représentation du passé. Annales HSS, Paris, v. 55, n. 4, p. 731-747,
2000, p. 731.
62 GORMAN, Jonathan. Historians and their Duties. History and Theory, Middletown, v. 43, n. 4, p. 103-117, 2004,
p. 115 e 112.
63 Escrevi uma versão anterior, mas mais detida dessa questão em OHARA, João Rodolfo Munhoz. Ética,
Escrita e Leitura da História: os problemas da expectativa e da confiança. Revista de História, São Paulo, n. 178,
[s.p.], 2019. Desde então, venho refinando a análise conceitual e apresento aqui parte desses desenvolvimen-
tos posteriores.
55
Há diversas formas de abordarmos a atribuição, a certos indivíduos, de algum
tipo de autoridade epistêmica. Do ponto de vista da epistemologia, somos confron-
tados com o fato de que não é possível sermos intelectualmente autônomos em
todos os aspectos de nossas vidas e, portanto, somos forçados a dividir o trabalho
intelectual e atribuir a outros a tarefa de investigar certos aspectos do mundo.64 Do
ponto de vista da história social do conhecimento, essa divisão do trabalho intelec-
tual envolve o surgimento e o processo crescente de especialização das disciplinas e
o correlato estabelecimento de grupos sociais, com suas organizações e dinâmicas
particulares.65 No caso da história, Michel de Certeau argumentou há muito que é
impossível compreender o funcionamento do conhecimento histórico sem levar em
conta a conjunção das condições sociais da sua produção, das práticas investigativas
dos historiadores e da discursividade dos seus resultados.66 Em um dado arranjo so-
cial, atribuímos ao historiador certa autoridade epistêmica na medida em que lhe é
atribuído o papel de produzir e transmitir conhecimento sobre o passado. Como já
escrevera Certeau, o historiador transforma a linguagem dos mortos em algo com-
preensível pelos vivos – uma maneira figurativa de dizer que o historiador procura
tornar inteligível no presente aquilo que parece, pelo menos à primeira vista, como
um caos de acontecimentos passados. Situado nesse lugar socialmente reconhecido,
ele tem também a oportunidade de conhecer os arquivos (onde estão suas fontes de
evidências) e a literatura especializada dos seus pares (em que pode confrontar as
suas conclusões àquelas dos seus colegas), o que lhe dá vantagens relativas em rela-
ção ao acesso e manuseio das evidências que dão apoio às suas afirmações. Daí que
64 Ver HARDWIG, John. Epistemic Dependence. The Journal of Philosophy, [s.i.], v. 82, n. 7, p. 335-349, 1985;
idem. The Role of Trust in Knowledge. The Journal of Philosophy, [s.i.], v. 88, n. 12, p. 693-708, 1991; COADY, C. A.
J. Testimony: A Philosophical Study. Oxford: Clarendon Press, 1992; GOLDBERG, Sanford. Relying on Others: An
Essay in Epistemology. Oxford: Oxford University Press, 2010. Levou tempo até que a filosofia analítica levasse a
sério algumas das implicações dessa dependência epistêmica – particularmente aquelas que concernem formas
de injustiça epistêmica. Ver FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford:
Oxford University Press, 2007. Aquilo que os anglófonos chamam de “filosofia continental” já apontava para as
relações estreitas entre conhecimento e poder, como nos influentes trabalhos de Michel Foucault.
65 Na história das ciências, temos o clássico SHAPIN, Steven. A Social History of Truth: Civility and Science in
Seventeenth-Century England. Chicago: The University of Chicago Press, 1994. Para a história da historiografia,
um dos exemplos mais importantes é SMITH, Bonnie G. Gênero e História: Homens, Mulheres e a Prática His-
tórica. Trad. de Flávia Beatriz Rossler. Bauru: EDUSC, 2003.
66 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Trad. de Maria de Lourdes Menezes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fo-
rense Universitária, 2008.
56
se lhe atribua uma autoridade epistêmica: pelo menos em princípio, o historiador
está em melhores condições de avaliar os méritos de uma dada afirmação sobre o
aspecto do passado que ele estuda.67
Além da atribuição de uma autoridade, a expectativa do leitor em relação àqui-
lo que o historiador lhe oferece depende ainda de uma suposição de boa-fé. Essa
condição pode parecer estranha quando consideramos que uma das características
importantes da historiografia moderna é o seu uso das fontes documentais e dos
aparatos paratextuais de referência. Como notara Certeau, “pelas ‘citações’, pelas
referências, pelas notas e por todo o aparelho de remetimentos permanentes a uma
linguagem primeira (que Michelet chamou ‘crônica’)”, o historiador estabelece a
credibilidade do seu trabalho sobre a autoridade do arquivo.68 Anthony Grafton ex-
pressou aquela que é, provavelmente, a posição-padrão dos historiadores ao escre-
ver que “apesar de tudo, as culturalmente contingentes e eminentemente falíveis
notas de rodapé oferecem a única garantia que nós temos de que afirmações sobre
o passado derivam de fontes identificáveis. E esse é o único fundamento que temos
para confiar nelas.”69 Todo esse aparato envolve certa noção de “accountability” – a
capacidade de cobrar do historiador satisfações pela referência feita – e, portanto,
também atua para reduzir da nossa dependência da boa-fé do autor. Claro que esse
direcionamento geral não é exclusivo da história. Parte significativa das ciências
modernas envolve justamente a possibilidade de replicação ou, pelo menos, algu-
ma possibilidade de verificação das evidências e dos resultados. No entanto, como
Grafton e outros prontamente reconhecem, as notas de rodapé e outros aparatos crí-
ticos não resolvem a questão, restando sempre uma necessidade, ainda que mínima,
de presunção de boa-fé.
67 Isolar esse aspecto é particularmente importante para avaliarmos posteriormente, em modelos mais com-
plexos, aspectos de injustiça na distribuição desigual de autoridade epistêmica: se, em princípio, dois histo-
riadores especializados na mesma temática seriam igualmente capazes de avaliar certas afirmações sobre o
passado (na área em que eles são especialistas), a distribuição desigual de autoridade epistêmica já aponta
para a interferência de outros aspectos nas nossas atribuições de autoridade e confiabilidade. Minha leitura do
problema aplicado especificamente à historiografia parte de FRICKER, 2007, DAUKAS, Nancy. Epistemic Trust
and Social Location. Episteme, Cambridge, v. 3, n. 1-2, p. 109-124, 2006 e ORIGGI, Gloria. Epistemic Injustice and
Epistemic Trust. Social Epistemology, London, v. 26, n. 2, p. 221-235, 2012.
68 Ibid, p. 101.
69 GRAFTON, Anthony. The Footnote: A Curious History. Rev. ed. Cambridge (US): Harvard University Press,
1999, p. 233.
57
Ainda que as notas sempre indicassem precisamente a localização do material-
-fonte que subsidia uma dada afirmação,70 o acesso a esse material nem sempre é
livre ou simples. E mesmo que o fosse, a extração de informações relevantes e a
interpretação dessas informações frequentemente exige algum tipo de expertise de
que a maioria dos não-especialistas não dispõe – seja uma expertise técnica, no caso
de cálculos complexos ou do manejo de instrumentos de precisão, seja uma experti-
se de domínio, como no caso da erudição (ou seja, o conhecimento amplo de outras
evidências relevantes).71 Na prática, as notas de rodapé cumprem um papel parcial-
mente performativo. Elas indicam os materiais e sinalizam que o trabalho foi efeti-
vamente realizado. Nas palavras de Grafton: “as notas de rodapé existem, na verdade,
para realizar duas outras funções. Primeiro, elas persuadem: elas convencem o leitor
de que o historiador realizou uma quantidade aceitável de trabalho, o suficiente para
ficar dentro da [margem de] tolerância da área. [...] Segundo, elas indicam as princi-
pais fontes que o historiador realmente usou.”72 Confrontado com documentos que
não conhece guardados em arquivos distantes, ou com livros escritos em idiomas
que não domina, resta ao leitor confiar.
Aqui, para pensar essa confiança, é fundamental retomar o insight de Michel de
Certeau sobre o caráter coletivo do trabalho historiográfico. Nas suas palavras:
70 Assim o assumimos para fins de argumento, mas bem sabemos que esse não é o caso.
71 Ver HARDWIG, 1985, p. 337-339. Ver também a anedota narrada por Anthony Grafton sobre a rusga entre H. E.
Davis e Edward Gibbon referente às notas de rodapé de Declínio e Queda do Império Romano – para Gibbon, nas
palavras de Grafton, “só um leitor expert – não um Davis – poderia realmente partir das citações e argumentos
até o raciocínio e a pesquisa que os havia produzido”. GRAFTON, 1999, p. 101.
72 Ibid., p. 22.
58
somente a existência dessa instância social reguladora.74 Essa presunção depende
do fato de que o próprio reconhecimento do historiador enquanto historiador está
ligado ao juízo dos seus pares – aqueles que efetivamente têm a capacidade de avaliar
uns aos outros.75
Essa conjunção entre uma atribuição social de autoridade epistêmica e de pre-
sunção de boa-fé é fundamental para que o leitor possa ter a expectativa de receber
do historiador uma “narrativa verdadeira”. Ambos os elementos decorrem da divisão
social do trabalho intelectual: na primeira, atribuímos a autoridade epistêmica me-
diante o reconhecimento de que, em função do lugar social que ocupa, o historiador
está em melhores condições epistêmicas de avaliar os méritos de afirmações sobre o
passado, ao menos em princípio. Na segunda, presumimos que ele age de boa-fé na
medida em que seu trabalho está sujeito ao crivo público dos seus pares. Na falta de
uma dessas condições, toda a ideia de que o leitor do texto de história tem a expecta-
tiva de ler uma “narrativa verdadeira” perde o sentido.
O papel fundamental que a confiança desempenha nessas relações aponta para
duas consequências: em primeiro lugar, a de que os historiadores assumem volunta-
riamente uma responsabilidade em relação aos seus leitores; em segundo, a de que
quaisquer abalos nessa relação de confiança são problemáticos para nossa capacidade
coletiva de produzir e transmitir conhecimento sobre o passado. A primeira dessas
consequências nos coloca nos limites entre a epistemologia e a ética: embora a de-
pendência estabelecida entre leitores e historiadores seja fundamentalmente epistê-
mica, o profundo entrelaçamento entre o epistêmico, o moral e o político de que fala-
mos anteriormente afeta também a relação entre historiadores e seus leitores. Assim,
o conhecimento que o historiador provê (em termos de “narrativas verdadeiras”) está
74 Ver FRICKER, Elizabeth. Trusting others in the sciences: a priori or empirical warrant? Studies in History and
Philosophy of Science, [s.i.], v. 33, n. 2, p. 373-383, 2002; LEVY, Neil. In Trust We Trust: Epistemic Vigilance and
Responsibility. Social Epistemology, London, v. 36, n. 3, p. 283-298, 2022. Esse modelo-padrão na epistemologia
social e na filosofia da ciência frequentemente assume que os custos (econômicos, profissionais, sociais) do
desvio de conduta e da fraude são suficientemente altos para a comunidade e para o indivíduo a ponto de coibir
a má-fé e sustentar as práticas de vigilância epistêmica coletiva.
75 Uma situação que nos conduz ao problema “novato-expert”, quando, confrontados com divergências entre
experts e sem poderem avaliar diretamente as suas afirmações, não-experts se veem obrigados a buscar sinais
secundários de confiabilidade. Ver GOLDMAN, Alvin. Experts: Which Ones Should You Trust? Philosophy and
Phenomenological Research, [s.i.], v. LXIII, n. 1, p. 85-110, 2001 e DE CRUZ, Helen. Believing to Belong: Addressing
the Novice-Expert Problem in Polarized Scientific Communication. Social Epistemology, London, v. 34, n. 5, p.
440-452, 2020.
59
intimamente ligado às curiosidades, aos anseios, aos desejos e aos temores do seu
presente e, portanto, um fracasso na dimensão epistêmica do seu trabalho é também
um fracasso na sua dimensão moral e política. Boas histórias das mulheres foram e
são fundamentais nos e para os movimentos feministas, assim como boas histórias
das relações raciais foram e são fundamentais nos e para os movimentos em prol da
igualdade racial, por exemplo.76 De forma inversa, histórias ruins (apologéticas, frau-
dulentas) foram fundamentais para a propaganda do fascismo e de outros regimes
totalitários.77 Como discutimos aqui, quando produz conhecimento sobre o passado,
o historiador entra naquilo que Ricoeur (e também Certeau) chamou de “pacto tácito
de leitura” – e esse pacto não se reduz à sua dimensão cognitiva.
A segunda consequência nos conduz a problemas bastante práticos: da parte dos
historiadores, é do seu interesse cultivar práticas e relações sociais que promovam a
confiabilidade do seu trabalho. Nesse sentido, insistir em garantias de conhecimento
que não correspondem àquilo que podemos realmente garantir, longe de reforçarem
a confiança, abalam-na.78 Honestidade intelectual envolve transmitir o grau adequa-
do de segurança que temos sobre cada elemento das nossas histórias e reconhecer
que, frequentemente, isso é o melhor que podemos fazer. Por outro lado, quando
confrontados com ataques direcionados mais à sua reputação do que às suas afirma-
ções, o recurso a fórmulas fáceis sobre o caráter cognitivo do seu trabalho (como nos
lemas empiristas da “pesquisa documental”) surte pouco efeito, uma vez que não é
o cognitivo que está em jogo, mas sim o moral. Nesses ataques, o problema não é a
ideia do historiador incompetente, mas a do historiador mentiroso, fraudulento – em
uma inversão cruel do problema de que o negacionismo frequentemente também
não é um problema de cognição, mas de moral.
76 Ver SCOTT, Joan W. Back to Basics. History and Theory, Middletown, v. 49, n. 1, p. 147-152, 2010.
77 Aqui, mais uma vez, retomo a observação de Certeau que conecta a normatividade do texto histórico (his-
tórias boas ou ruins, bem ou malsucedidas de um ponto de vista epistêmico) ao conjunto de práticas e valores
compartilhados pela comunidade de historiadores.
78 Sobre isso, temos muito a aprender com o trabalho de Naomi Oreskes, para quem a defesa da ciência passa
inclusive pelo reconhecimento dos seus limites, da incerteza e da dificuldade fundamental em adquirir conhe-
cimento sobre o mundo. Ver ORESKES, Naomi. Why Trust Science? Princeton: Princeton University Press, 2019.
60
CONSIDERAÇÕES FINAIS
79 Refiro-me, em certo sentido e com as devidas divergências, ao final de FLORESCANO, Enrique. La función
social del historiador. In: idem. La Historia y el historiador. México: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 63-88.
61
epistemologia, buscando entender se é possível, o que é e como adquirir ou produzir
o conhecimento histórico. A “ética da história” nos alerta justamente para aquilo que
torna possível a existência de um grupo de indivíduos cujo trabalho é conhecer e dar
a conhecer o passado – ou, como colocou Gorman, para aquilo que dá propósito a
esse trabalho. Assim, nesse segundo sentido, existe uma “ética da história” quando
nos preocupamos com as responsabilidades que assumimos voluntariamente ao nos
engajarmos enquanto historiadores.
Pode haver – provavelmente há – outros sentidos em que a expressão faça sentido.
Por exemplo, Edith Wyschogrod e Anton Froeyman argumentaram que o historiador
também entra em uma relação ética com os mortos, e não somente com os vivos. 80
Mesmo que isso pareça contrariar as intuições de quase todos os sistemas de filosofia
moral de que dispomos, a ideia não soa absurda se levamos em consideração que con-
tar a história da humanidade é, com mais frequência do que gostaríamos, contar his-
tórias de horror e sofrimento em escalas colossais.81 Bennett Gilbert e Natan Elgabsi
exploraram uma série de implicações morais do narrativismo linguístico.82 Por sua
vez, Antoon de Baets conduz há vários anos investigações sobre as ameaças feitas a
historiadores em diversos países.83 O processo de subjetivação do historiador e das
suas diferentes figurações também vem atraindo considerável atenção, como nos
trabalhos de Temístocles Cezar, Evandro Santos, Rodrigo Turin e Maria da Glória de
Oliveira, entre tantos outros.84 Todos esses casos podem caber sob a expressão “ética
da história” por articularem seus temas e suas abordagens àquilo que poderíamos
80 WYSCHOGROD, Edith. An Ethics of Remembering: History, Heterology, and the Nameless Others. Chicago:
The University of Chicago Press, 1998; FROEYMAN, Anton. History, Ethics, and the Recognition of the Other: A
Levinasian View on the Writing of History. London: Routledge, 2016.
81 Ver TODOROV, Tzvetan. The Morals of History. Trad. de Alyson Waters. Minneapolis: University of Minneso-
ta Press, 1995; BLOXHAM, Donald. History and Morality. Oxford: Oxford University Press, 2020.
82 GILBERT, Bennett e ELGABSI, Natan. An Existential Philosophy of History. Revista de Teoria da História,
Goiânia, v. 24, n. 1, p. 40-57, 2021.
83 DE BAETS, Antoon. Defamation Cases Against Historians. History and Theory, Middletown, v. 41, n. 3, p. 346-
366, 2002.
84 CEZAR, Temístocles. Ser Historiador no Século XIX: O Caso Varnhagen. Belo Horizonte: Autêntica, 2018; SAN-
TOS, Evandro. Fragmentos de Ética: Figurações do Historiador Oitocentista em Alexandre Herculano. História
da Historiografia, Ouro Preto, v. 11, n. 26, p. 101-121, 2018; TURIN, Rodrigo. Uma nobre, difícil e útil empresa: o
ethos do historiador oitocentista. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 2, p. 12-28, 2009; OLIVEIRA, Maria da
Glória de. O Nobre Sacerdócio da Verdade: reflexões sobre o ofício do historiador no Brasil oitocentista. Lusíada.
História, Lisboa, n. 9/10, p. 191-207, 2013.
62
considerar como o seu conteúdo semântico – trabalham com o ethos de algum aspec-
to pertinente à história, por exemplo. Há muito sendo feito e muito mais por fazer no
que se refere à “ética da história” entendida tanto nos dois sentidos que discuti aqui
quanto nessas outras direções possíveis, e o mais importante é que todas essas agen-
das avançam nossa percepção cada vez mais sensível das nossas múltiplas relações
com o passado.
63
A TEORIA HETEROLÓGICA DA HISTÓRIA:
UMA HERANÇA CERTEAUNIANA PARA
A TEORIA DA HISTÓRIA HOJE
CRISTIANO BARROS
64
diante das urgências que se impõem ao discurso histórico em nossos dias. Realçar
os aspectos heterológicos do modo certeauniano de pensar e a partir deles refletir
sobre a teoria da história hoje. São esses os dois esforços que o leitor encontrará nas
páginas a seguir.
85 O estudo mais detalhado desse diálogo pode ser consultado na primeira parte do quinto capítulo de minha
tese de doutorado, defendida no PPGH-UFF em 2021, intitulada Michel de Certeau, a teologia e a história. Refi-
ro-me ao subcapítulo O que Certeau fez da história, retomado parcialmente na primeira parte do presente texto
com alterações e acréscimos.
65
textos reunidos sobre esse título (CERTEAU, 1986) e a existência de um projeto em
andamento sobre o assunto, o qual ele não veio a concluir (GIARD, 1991, p. 213).
João Ohara já havia atentado sobre a importância dos insights heterológicos em
L’absent de l’histoire para a teoria da história em L’écriture de l’histoire (OHARA, 2013,
p. 15). Em outra ocasião, Ohara creditou à ideia de heterologia o ponto mais distin-
tivo do conceito de história forjado por Certeau. Para ele, metáforas em L’écriture de
l’histoire (morto, fantasma, vozes) mostram que Certeau pensava a história como um
trabalho com a alteridade (OHARA, 2015, p. 102).
Faço minhas as palavras de Ohara. Nas páginas seguintes buscarei propor uma
interpretação que de alguma maneira vai nessa direção aberta por ele. Quanto à sua
afirmação de que a proposta heterológica em L’absent de l’histoire é uma análise “que
flerta com o freudismo de Lacan” (OHARA, 2013, p. 15), eu apenas especificaria que
esse flerte é com um olhar estrutural e com uma linguagem tipicamente lacanianos
sobre Freud. Dito de outro modo, penso ser Freud a referência psicanalítica capital
para a teoria heterológica da história.87
Não uso o termo “teoria” para designar a produção deliberada de um corpo de
conceitos interdependentes e intercalados em função de uma tese maior. Não há
uma intencionalidade sistematizante nos textos pelos quais passaremos. Mesmo as-
sim, eles trazem preocupações, orientações e argumentos comuns, tácitos ou não.
Quando Certeau trata do fazer história, do ausente da história, da operação historio-
gráfica ou da relação entre história e ficção, premissas teóricas vão sendo recupera-
das, nuançadas e aprofundadas.
Sem desconsiderar as particularidades de cada um dos textos estudados ou as cir-
cunstâncias específicas de sua produção e publicação, interessa-me particularmente
essa coerência implícita nas retomadas nuançadas e revisadas de certas ideias à me-
dida que Certeau avançava suas incursões. Sem pretender esgotar as possibilidades
87 O psicanalista Claude Rabant notou que Certeau tendia a colocar a ficção ao lado da escritura e a fábula ao
lado da fala. A primeira relação, mais associada a Freud; a segunda, a Lacan (RABANT, 2002, p. 23). Não deve-
mos exagerar essa separação, pois o próprio Certeau via a ética lacaniana da fala ligada a uma escrita poética e
à elucidação da prática literária (CERTEAU, 1982a, p. 251). De todo modo, a ficção analítica freudiana, o retorno
da alteridade recalcada e a concepção espectral do tempo serão centrais na teoria heterológica da história, es-
pecialmente no que concerne à escritura. Afirmar isso em nada desconsidera a importância do ensino de Lacan
para Certeau e seu papel nesses textos (“falta”, “Outro” – também caro à teologia mística, a Levinas –, a visão
estrutural sobre inconsciente em Freud, etc). Essa posição apenas destaca a operatividade que a leitura de Freud
desempenhou em sua teoria da história.
66
teóricas desse reemprego, proponho tratar um aspecto regular que em uma de suas
variadas ocorrências levou Certeau a nomear a história como “heterologia”. É isso
que chamo teoria heterológica da história, ou seja, a coerência implícita no reempre-
go multiforme da alteridade como fundamento epistêmico, ético-político e estético
da historiografia.
Essa teoria heterológica da história deixa rastros no que Certeau entende por “fa-
zer história” ( faire de l’histoire). Tal expressão incorpora aspectos que permitem di-
mensionar o paradoxo da heterogeneidade/homogeneidade na prática histórica. A
esse embaraço, Certeau contrapõe um conceito de história definido pela compreen-
são do passado como ausência (l’absent de l’histoire), pela organização do trabalho em
torno de uma “presença faltante” (présence manquante) e pela interferência de uma
“alteridade alterante” (altérité altérante). Essa história heterológica, por fim, desdobra-
-se no conceito de “operação historiográfica” (opération historiographique) e na condi-
ção fronteiriça da história entre a ciência e a ficção.
Para Certeau, não devemos confundir “fazer história” com a aplicação precisa de
regras características de determinado procedimento científico. Esse rigor continua
sendo imprescindível, mas não é suficiente para caracterizar uma prática enquanto
histórica (CERTEAU, 1973, p. 156). Com essa expressão, ele enfatiza o ato produtor, a
fabricação, por meio de um procedimento, do histórico em um texto, como Freud fez
com o manuscrito do caso Haitzmann (CERTEAU, 1970a; Id., 1975a, p. 339-364.). Fazer
história é adquirir, por meio do trabalho, a consciência de que algo passou, é enfren-
tar o que não é mais, logo, produzir uma diferença em relação ao presente (CERTEAU,
1970b, p. 192; Id., 1973, p. 157; Id., 1975a, p. 339).
Nesse sentido, há uma interdependência entre a produção do passado como ou-
tro e a diferenciação do próprio presente. Uma sociedade dá a si mesma uma defini-
ção e recorta suas próprias pertinências ao distinguir-se do passado que ela mesmo
diferencia. O discurso histórico proporciona um contraste por meio do qual uma
sociedade vivencia a si mesma enquanto presente. Segundo palavras de Certeau, ele
“historiciza o atual”, “presentifica uma situação vivida” e “explicita uma identidade
social” (CERTEAU, 1975b, p. 40, 88, grifo do autor).
A alteridade do passado é crucial tanto ao fazer singularmente histórico quan-
to à experiência histórica que esse tipo de prática fornece às sociedades ocidentais.
Por meio da erudição ou de determinada análise estrutural, um ato produtor ins-
creve a diferença entre um “fato” ou uma “ordem” passada e presente. Todavia, o
67
heterogêneo é compreendido e retomado na homogeneidade da explicação de outra
sociedade, acabando por ser reduzido a fragmentos incluídos na história que uma
sociedade conta a si mesma.
Nesse ponto está o cerne do problema posto pela teoria heterológica da história:
o discurso histórico supõe uma alteridade do passado como condição de seu fazer,
mas ao mesmo tempo a elimina, integrando-a no tecido social e linguístico de sua
sociedade. Certeau descreve esse paradoxo nos seguintes termos:
Pois a missão social que lhe outorga o presente tem, precisamente, o objetivo de
restabelecer o outro no campo de uma compreensão presente e, por conseguin-
te, de eliminar a alteridade que parecia ser o postulado do empreendimento. O
outro seria, convertido em objeto, o elemento que o discurso histórico transfor-
ma em significantes e reduz ao inteligível para suprimir-lhe o perigo.88
Certeau atribuiu uma nova pertinência teórica a essa redução do outro ao mesmo
na prática contemporânea da história. Ele não se satisfez em apontar a relação entre
a produção do heterogêneo do passado histórico e a homogeneidade da linguagem
da sociedade presente. Ele foi mais longe ao constatar que uma ferida negativa é a
condição de qualquer pretensão positiva de quem faz história:
À essa altura a definição mesma de história como heterologia vai podendo come-
çar a ganhar seus contornos. A história é uma heterologia porque ela se constitui a
partir da relação com um outro ausente de tipo particular: “aquele que ‘passou’” (celui
88 “Car la mission sociale qui lui alloue l’[...] présent a précisément pour objectif de ramener l’autre dans le champ d’une
compréhension présente, et par conséquence d’éliminer l’altérité qui semblait être le postulat de l’entreprise. L’autre [...]
serait [...], mué en objet, l’élément que le discours historique transforme en signifiants et réduit à de l’intelligible pour en
effacer le danger” (CERTEAU, 1973, p. 174).
89 “Dans les morceaux qu’organise à l’avance l’imaginaire de sa société, il opère des déplacements, il ajoute d’autres
pièces, il établit entre elles des écarts et des comparaisons, il discerne à ces indices la trace d’autre chose, il renvoie ainsi
à une construction disparue” (CERTEAU, 1975a, p. 340).
68
qui « a passé ») (CERTEAU, 1973, p. 173, grifo do autor). A morte do outro o põe fora do
alcance, faz dele em si mesmo inacessível. Essa vida passada (o morto) é irredutivel-
mente diferente, dessa existência outra restando apenas vestígios. Embora entreguem
rastros dessa alteridade do passado, a linguagem desses mortos diz que eles não estão
ali, não são este ou aquele signo, não correspondem a tal ou tal relação estabelecida
(CERTEAU, 1970b, p. 189, 190, 192; Id., 1973, p. 7, 8). O que quer que o historiador enten-
da ou faça da história, o passado como morto, diferente e ausente é o seu objeto: o que
ele estuda não é mais, é outra coisa e não está em lugar algum enquanto tal.
Diante desse ausente da história, o historiador organiza uma presença faltante.
Seu trabalho é produzido em função desse outro, mas este é igualmente a razão da
falha original que seu empreendimento não pode superar. Ele está verdadeiramente
compromissado com esse referente que escapa, mesmo que jamais possa reabsorvê-
-lo em seu discurso. Figura estritamente necessária à sua oficina, é essa falta que ele
tem por missão representar. (CERTEAU, 1973, p. 9, 156; Id, 1975a, p. 118, 340).
Indicar a organização da história em nome de uma presença faltante retoma o
problema aberto pela intervenção freudiana na história, embora em termos mais
associados a Lacan.90 A ciência histórica postula um morto, mas sua própria prática a
contradiz quando pretende ressuscitá-lo no discurso. A presença faltante está justa-
mente nessa tensão entre algo indispensável, mas que não pode ser enunciado. Essa
falta desdobra a conclusão a que Certeau tinha chegado a partir de sua análise sobre
Freud, ou seja, a constatação de um “objeto perdido” (objet perdu), cena primitiva
apagada, mas ainda atuante na organização do discurso (CERTEAU, 1975a, p. 74).
Uma maneira de avaliar o significado dessa ferida original do conhecimento his-
tórico é articulá-la à maneira como Certeau pensa a diferença do passado por meio
da imagem de uma alteridade alterante. Certeau expressa essa imagem através de
Robinson Crusoé e Jules Michelet, considerados por ele, respectivamente, um dos
últimos mitos ocidentais e o poeta da historiografia moderna.
O célebre naufragado, Robinson Crusoé, torna-se chefe da ilha quando impõe
uma razão técnica classificatória à sua desordem. Essa colonização é subitamente
interrompida quando se depara com o vestígio humano deixado marcado na areia. A
90 E bastante conhecida a explicação lacaniana do desejo como falta. Para Lacan, o desejo resulta da subtração
da satisfação à demanda. Também é sua a formulação “o desejo do homem é o desejo do Outro” (LACAN, 1966,
p. 698; Id., 1973, p. 223).
69
desordem do método e um fascínio/horror ambivalentes são então desencadeados: “A
ética tecnicista se modifica em um poema erótico e alucinatório do outro”.91 Porém,
esse arroubo onírico logo será superado com a chegada do nativo, salvo da morte,
tornando-se servo. É quando o controle sobre a ilha retorna às mãos de Robinson
Crusoé: “Sexta-Feira, ‘meu Sexta-Feira’”, fabula Certeau.92
De acordo com ele, tal desejo ambivalente do outro encontra-se articulado na
historiografia contemporânea. Embora ela frequentemente tente rejeitar o fato, isso
está presente em uma de suas referências maiores, Jules Michelet, essa espécie de
Daniel Defoe historiógrafo cujos contornos a interpretação heterológica certeaunia-
na pincela. Michelet teria praticado a história como uma erótica, sem eximi-la da
responsabilidade de ser uma técnica: “É o que, relido, Michelet volta a nos ensinar
quando ele faz disso a narrativa do corpo que não fala e a alucinação (o retorno, a
‘ressurreição’ literária) do morto”.93 Desse modo, esse corpo (o outro ausente) é aquilo
do que o historiador se ocupa sem ser capaz de ressuscitar (há algo de irremediável
nessa perda). Eis a ambivalência marcada em seu trabalho: “uma morte é o fantasma
que o historiador não pode nem esquecer, nem suportar”.94
Como Robinson Crusoé, o historiador também se depara com os vestígios do ou-
tro deixados na areia. Contudo, diferente do primeiro, o segundo tem – ou deveria ter
–consciência que o outro nunca voltará. Ele fica estupefato diante das marcas de uma
alteridade inquietante à ordem de sua sociedade, retornando sempre alterado dessa
ilha distante e do contato com os vestígios do outro. Sexta-Feira é para ele objeto
perdido de uma “metáfora do ausente” (métaphore de l’absent) forjada por seu trabalho,
sinal da morte que sempre retorna em seu próprio discurso (CERTEAU, 1973, p. 179).
Há uma violência alterante capaz de irromper na racionalidade homogeneizante,
capacidade do outro escapar e violentar uma ordem expressiva estabelecida, suposta
ou imaginada sobre ele. Essa alteridade é alterante porque ela é capaz de ressurgir
mesmo onde parece ser eliminada, se inscrevendo no trabalho que acreditava tê-la
absorvido (CERTEAU, 1973, p. 174).
91 “L’éthique technicienne se change en un poème érotique et hallucinatoire de l’autre” (CERTEAU, 1973, p. 178.
93 “Relu, Michelet nous le réapprend lorsqu’’il en fait le récit du corps qui ne parle pas et l’’hallucination (le retour, la «
résurrection » littéraire) du mort” (CERTEAU, 1973, p. 179, grifo do autor).
94 “Une mort est le fantasme que l’historien ne peut ni oublier ni supporter” (CERTEAU, 1973, p. 179).
70
Portanto, é em função dessa problemática da alteridade que Certeau classificará
o modo de proceder do historiador. Suas conclusões sobre o ausente, a presença
faltante e a alteridade alterante são seguidas na prática do trabalho histórico pela
noção de “operação historiográfica”. Um fazer heterológico da história é a condição
de possibilidade de uma operacionalidade propriamente histórica no universo das
ciências humanas.
Certeau define a operação histórica/historiográfica pela “combinação de um lugar
social, de práticas ‘científicas’ e de uma escritura”95:
A história funciona dentro de uma sociedade. Ela é definida por sua participação
em um lugar social no qual é estabelecido o possível e o impossível da pesquisa em
determinado tempo e espaço. Logo, sua prática é dependente do permitido e do in-
terdito à produção de conhecimento em uma situação epistemológica na qual está
inserida. Embora o lugar não seja suficiente para entender a história, é condição para
que ela não seja uma produção lendária, ideológica ou sem pertinência no seio de
uma sociedade (CERTEAU, 1975a, p. 94-95).
Além de ser inerente à uma situação epistemológica socialmente dada, a história
é uma prática. Tendo em vista que os documentos conotam o passado, o historiador
procede ao reconhecimento, multiplicação e reunião dos rastros dessa alteridade que
chegam ao presente. Com o delineamento desse espaço de signos dispersos tornados
indícios de realidades históricas faltantes, ele está apto para estabelecer arrumações,
conjugações, construções, em suma, instaurar um sistema de relações (CERTEAU,
1973, p. 156, 157; Id., 1975a, p. 73, 118, 140).
A isso corresponde a combinação do papel da erudição e das análises estrutu-
rais. Nesse domínio o fazer heterológico da história aparece nitidamente. Embora
95 “[...] combinaison d’un lieu social, de pratiques « scientifiques » et d’une écriture” (CERTEAU, 1975a, p. 79, grifo do autor).
96 “Envisager l’histoire comme une opération, ce sera tenter, sur un mode nécessairement limité, de la comprendre
comme le rapport entre une place (un recrutement, un milieu, un métier, etc.), des procédures d’analyse (une discipline)
et la construction d’un texte (une littérature)”. (CERTEAU, 1975a, p. 78, grifo do autor).
71
o historiador recorra a ferramentas conceituais de tipo estruturais, ele remete ao
ausente desse sistema de relações representado em sua análise: “essa conexão entre
‘estrutura’ e ‘ausência’ é o próprio problema do discurso historiográfico”.97
Portanto, os rastros do outro não têm por função ser o elo perdido que, encon-
trado, garantiria à análise restaurar determinado sistema do passado, mas o meio de
reenviar à alteridade que deve alterar a própria linguagem unitária da explicação do
vivo sobre a morto. Isso pode ser afirmado por intermédio da demonstração do papel
estratégico e crítico atribuídos por Certeau à prática da história.
Falar em estratégia da história significa indicar uma maneira propriamente his-
tórica de proceder. Mais especificamente, refere-se à especificidade da história quan-
do esse ramo do conhecimento já não é mais detentor da racionalidade explicativa
dos dados que ele próprio produz como históricos. À época de Certeau, isso significa-
va estipular o que singularizava a história quando ela parecia perder sua autonomia,
assumindo uma posição auxiliar para outras disciplinas.
De acordo com Certeau, a operação histórica assume esse interesse externo como
sendo sua tarefa própria. Sua prática se torna “o meio de fazer aparecer diferenças rela-
tivas às continuidades ou às unidades das quais parte” (CERTEAU, 1975b, p. 79, grifo
do autor). Ela lança mão de construções teóricas de outras disciplinas para “descobrir
o heterogêneo que seja tecnicamente utilizável”.98 O resultado específico da análise
histórica não é a aplicação de modelos, mas o seu emprego tendo em vista a mani-
festação de desvios e a capacidade de transformá-los em problemas tratáveis: “se a
diferença é manifestada graças à extensão rigorosa de modelos construídos, ela é sig-
nificante graças à relação que mantém com eles a título de um desvio”.99
Portanto, esse trabalho tem por objetivo fazer emergir uma alteridade e por meio
dela alterar as formalizações dadas nos sistemas interpretativos estáveis nos domí-
nios científicos do presente. Isso pode ser visto inclusive no procedimento mais pro-
priamente característico da história, o do estabelecimento dos “fatos” históricos.
97 “Cette connexion entre « structure » et « absence » est […] le problème même du discours historiographique” (CER-
TEAU, 1973, p. 157).
98 “[...] découvrir de l’hétérogène qui soit techniquement utilisable” (CERTEAU, 1975a, p. 107, grifo do autor).
99 “[...] si la différence est manifestée grâce à l’extension rigoureuse de modèles construits, elle est significante grâce à
la relation qu’elle entretient avec eux au titre d’un écart” (CERTEAU, 1975a, p. 108, grifo do autor).
72
A figura do historiador aparece atenta ao excepcional (détail qui fait exception) na refle-
xão epistemológica de Certeau. Essa é a maneira pela qual é possível verificar seu esforço
em operacionalizar, na prática histórica, os rastros do outro ausente: “o ‘fato’ do qual se
trata doravante não é aquele que oferece ao saber observador a emergência de uma reali-
dade. Combinado com um modelo construído, ela tem a forma de uma diferença”.100
Essa estratégia já traz implícita um estatuto particular da história em relação à ra-
zão contemporânea. Ela tem a função de ser uma crítica, particularizada em três as-
pectos. Primeiro, estabelece desvios significativos (écarts significatifs), fazendo surgir
exceções pertinentes nas diversas esferas da documentação que produzam algo de
negativo e exijam um maior rigor no controle da aplicação de métodos econômicos,
sociológicos, semióticos, etc.
Segundo, faz do particular o “limite do pensável” (limite du pensable). Isso quer
dizer que ela indica as vias pelas quais as regularidades são sempre relativas a cortes
subjacentes, seja um detalhe biográfico, uma baixa salarial ou um gesto aberrante,
exemplos do desnível necessário à irrupção do que se mantém impensado.
Terceiro, o conhecimento histórico instaura a “figuração ambivalente do passado
e do futuro” ( figuration ambivalente du passé et du futur): ele representa aquilo que
falta no passado, imprimindo uma falha na coerência científica do presente e dan-
do lugar a uma possível ultrapassagem que o abre a prática científica a um porvir
(CERTEAU, 1975a, p. 115-119).
Por fim, o aspecto no qual a feição heterológica da história é apresentada mais
explicitamente: enquanto uma historiografia. O primeiro ponto a considerar a esse
respeito é levar em conta o vínculo inseparável mantido pela história com a constru-
ção de um texto, quer dizer, com uma representação literária.
Estabelecer esse vínculo não significa reduzir a história à literatura, pois a escrita
historiadora lança mão de uma representação de tipo específico: “a representação –
mise-en-scène literária – só é histórica se ela se articula com um lugar social da opera-
ção científica e se ela é institucional e tecnicamente ligada a uma prática do desvio em
relação aos modelos culturais ou teóricos contemporâneos”.101
100 “[...] le « fait » dont il s’agit désormais n’est pas celui qui offrait au savoir observateur l’émergence d’une réalité.
Combiné à un modèle construit, il a la forme d’une différence” (CERTEAU, 1975a, p. 111-112, grifo do autor)
101 “La représentation – mise en scène littéraire – n’est « historique » que si elle s’articule sur un lieu social de l’opéra-
tion scientifique, et si elle est, institutionnellement et techniquement, liée à une pratique de l’écart par rapport aux
modèles culturels ou théoriques contemporains” (CERTEAU, 1975a, p. 119, grifo do autor).
73
Um segundo aspecto a considerar é a variedade de autores com os quais Certeau
dialoga nessa reflexão do aspecto literário da história. Roland Barthes, A. J. Greimas,
Émile Benveniste e G. R. Elton, para citar alguns.102 Porém, no plano heterológico
referente ao caráter escriturário da história, sua dívida maior é com a filosofia de
Jacques Derrida e com a psicanálise freudiana.
A herança da filosofia derridiana aparece no fato de que a escrita do historiador
é uma escritura. Seguir a trajetória dos rastros deixados pelo outro significa cons-
cientizar-se que o passado não voltará jamais: “a voz está perdida para sempre”, diz
Certeau.103 Isso indica a própria situação da historiografia quanto à sua pretensão de
representar o outro: “a historiografia é uma escritura, não uma fala”.104 Tal afirmação
retoma a distinção derridiana entre voz e escritura, ou seja, a contraposição entre
a referência unitária à uma presença e a apagamento da origem. De acordo com
Certeau, essas análises feitas por Derrida em De la Grammatologie “permitem precisar
o estatuto da historiografia”.105
Certeau distingue essa maneira de compreender a escrita da história da mera
entrega ao subjetivismo ou ao relativismo, como certos críticos poderiam objetar.
Ao fazer essa distinção, ele busca se afastar de Paul Veyne, “maravilhoso decap-
tador de abstrações”, como o descreveu ironicamente certa vez (CERTEAU, 1975b,
p. 80). 106
Essa condição escriturária diz mais respeito a uma ambivalência característica do
trabalho da história, uma vez que essa operação mantém uma relação necessária do
texto com o real e com a morte (CERTEAU, 1973, p. 158). O passado foi e não é mais;
a um só tempo é o real almejado pela história e o passado morto; mas justo porque
morto, é também inapreensível enquanto pura presença, tornando possível a emer-
gência de outra coisa em seu lugar, a saber, o discurso historiográfico.
102 No que diz respeito à relação entre o discurso histórico e a semiótica, cf. a parte Le discours de l’histoire do ca-
pítulo Faire de l’histoire (CERTEAU, 1975a, p. 65-70). No que tange mais propriamente ao caráter literário do discur-
so histórico, ver a terceira parte (Une écriture) do capítulo L’opération historiographique (CERTEAU, 1975a, p. 119-142).
104 “L’historiographie est une écriture, non une parole” (CERTEAU, 1973, p. 158).
105 “[...] permettent de préciser le statut de l’historiographie” (CERTEAU, 1973, p. 158, nota 7).
106 Sobre a redução da história às decisões subjetivas, ao prazer do historiador e às regras do gênero literário,
como a reflexão epistemológica de Veyne teria proposto, ver o artigo Une épistémologie de transition: Paul Veyne
(CERTEAU, 1972, p. 1317-1327).
74
Por outro lado, essa abertura do presente permitida pela morte do passado ten-
de a dissimular a falta que a possibilitou. A importância dada ao desvio na esfera da
prática parece ser suplantada por uma atitude inversa à sua capacidade de articular
uma alteridade do passado alterante do presente. O realismo do discurso histórico
identifica o objeto e a narração, fazendo desse morto a figura objetiva da historicida-
de dos vivos.
O historiador enfatiza a presença do real em seu texto por meio de esforços refe-
renciais e de enunciados constatativos. Ao fazê-lo, não deixa de estar em funciona-
mento a produção de um efeito de realidade, discurso performativo ao qual a escrita
histórica não escapa (CERTEAU, 1975a, p. 133). Isso poderia ser pensado a partir de
um certo modo de interpretação dos documentos, do uso da cronologia, dos tipos de
citação, do apelo ao nome próprio, do discurso impessoal, etc.
No entanto, o mais relevante à questão heterológica relativa ao assunto é a ma-
neira como uma ficção histórica intenta exumar os mortos e representá-los no texto.
Ao tornar-se o seu legista e fazer de sua escrita a mostra do corpo dissecado, o his-
toriador termina por excluir o outro ausente, representando-o em função de uma
pedagogia dos vivos:
Esse jogo entre o morto e o vivo, ou entre a história e a ficção, ganha uma nova
dignidade na abordagem freudiana. A “ficção teórica” construída por Freud em
Moisés e o Monoteísmo estabelece a escrita como uma forma de relação heterológica
com o passado. A lucidez de Freud nessa seara é uma alternativa à maneira por vezes
ingênua da representação histórica remeter (eliminar) ao seu outro.
Freud designa como “lendas” as ficções que denegam seu estatuto ao pressupo-
rem falar do real. À ficção e ao romance, Freud atribui uma função teórica, fazendo
delas a própria forma da seriedade científica (CERTEAU, 1981b, p. 111-112, 125).
107 “L’écriture ne parle du passé que pour l’enterrer. Elle est un tombeau en ce double sens que, par le même texte, elle hono-
re et elle élimine. Ici, le langage a pour fonction d’introduire dans le dire ce qui ne se fait plus. Il exorcise la mort et il la case
dans le récit qui lui substitue pédagogiquement quelque chose que le lecteur doit croire et faire” (CERTEAU, 1975a, p. 140).
75
A historicidade dos temas tratados é o que levou Freud à ficção, fossem em ca-
sos clínicos ou documentos de outra natureza. Esse foi o meio pelo qual buscou dar
conta de alterações do modelo patológico estrutural, das modificações inseridas na
posição do analista pelo sofrimento do outro, ou do vestígio de algo diferente en-
contrado nos sistemas históricos explícitos ou implícitos aos quais estavam ligados
seus materiais.
Portanto, a escrita literária não é redutível nem estranha à seriedade da cientifici-
dade: “Desse ponto de vista, o romance é a relação que a teoria mantém com a apari-
ção acontecimental de seus limites”.108 Essas falhas, lacunas e contradições adentram
a narrativa freudiana, violentando a identidade suposta pelo relato.
Uma vez que o corte é aqui o próprio princípio do funcionamento, é a relação da
narrativa com a morte o que a lucidez de Freud põe em cena, esse judeu que estava
diante do horror do totalitarismo e do antissemitismo, lembra Certeau (CERTEAU,
1975a, p. 372-373). Para Freud, a morte já está na origem, é um “fora do texto” (hors-
-texte) que condiciona o discurso (CERTEAU, 1975a, p. 376).
A escrita não cessa de buscar curar essa ferida e enganar a morte. Contudo, ela
apreende apenas os substitutos de um conteúdo impossível de capturar, “alteração
fundadora” (altération fondatrice) repetida na sucessão de lugares (CERTEAU, 1975a, p.
376). O evento repete-se no texto apenas se apagando, sendo a escritura “o próprio
trabalho da diferença”.109
Nesse sentido, essa escrita “é ‘romance’ em função de suas relações confessadas
com seu outro”.110 Freud conserva, com a tradição mosaica, uma relação de suspeita e
de filiação, de distância e de obrigação. Sua escrita se produz no enlace da “alteração
da identidade” (altération de l’identité) e da “lei da dívida” (loi de la dette): “a Escritura se
produz no lugar e na língua do outro”.111
Certeau fala a língua da psicanálise freudiana com sotaque estrangeiro, de histo-
riador. Ele intervém nela para tratar questões que são autorizadas pelo lugar do qual
108 “De ce point de vue, le roman, c’est le rapport que la théorie entretien avec l’apparition événementielle de ses limites”
(CERTEAU, 1981b, p. 113).
110 “[...] est « roman » du fait de ses relations avouées avec son autre” (CERTEAU, 1975a, p. 369).
111 “[...] l’Écriture se produise dans la place et dans la langue de l’autre” (CERTEAU, 1975a, p. 380-381, grifo do autor).
76
fala, a instituição histórica. Suas próprias questões são alteradas nesse diálogo com
o outro. Nesse texto sobre o “Moisés egípcio”, ele retoma o que estava tensionado
na escrita como componente da operação histórica, variando o tratamento da elimi-
nação do morto como pedagogia do vivo pela via mais vividamente heterológica do
retorno do recalcado e da inquietante familiaridade.
Valendo-se de Emmanuel Levinas em Totalité et infini, Certeau associa uma filoso-
fia implícita e não confessada à historiografia. O logos do desvelamento do ser, agora
feito compreensão dos fatos históricos, torna o outro em mesmo ao apreendê-lo.
O romance freudiano teria modificado essa lógica, inserindo o trabalho escritu-
rário da diferença no discurso científico e didático da história: “Freud reintroduz o
outro no lugar”.112 A ficção histórica pode recalcar, como a historiografia tende a fazê-
-lo, ou dar lugar a essa estranheza já marcada em toda escrita da história.
De acordo com Certeau, essa marca pode assumir a forma de sobrevivências que
não deveriam estar lá, em níveis estratificados agindo uns sobre os outros. Ela tam-
bém pode insinuar-se em outros tipos de falhas, violentando as fronteiras de unida-
des homogêneas frequentemente postuladas pelo discurso histórico.
Em história religiosa, por exemplo, em uma sociedade que não pensa mais se-
gundo os mesmos princípios de seu objeto, deve-se considerar a dívida, o retorno e
as deformações que trazem de volta, por meio de ficções, esse “recalcado religioso”
(refoulé religieux): “Esse fantasma ‘deslocado’ assombra a nova morada”.113
Esse retorno do excluído na ficção histórica leva Certeau a questionar a “história
canibal” (histoire cannibale). Ela “devora” o passado para falar em seu lugar, em nome
de um progresso que autoriza saber, melhor do que os próprios textos antigos, o
que eles dizem. Em primeiro lugar, isso significa supor que eles dizem o que sabem,
ignorando sua alteridade. Em segundo lugar, isso é acreditar que o que sabem não
reaparece alterando o discurso que o assimila à distância:
112 “Freud réintroduit l’autre dans la place” (CERTEAU, 1975a, p. 413, grifo do autor).
113 “Ce revenant « déplacé » hante la nouvelle demeure” (CERTEAU, 1975a, p. 416).
77
um outro nome) do recalcado – “inquietante familiaridade” no próprio lugar de
uma razão e de uma produção científicas. [...] Um e outro – o ocupante e o fantas-
ma – são recolocados em jogo no mesmo texto: a teoria presente reencontra o que,
inassimilável, retorna do passado como exterioridade colocada no texto.114
114 “Il y a leurre parce que ces discours se trompent eux-mêmes en n’avouant pas la dette fondamentale que, dans la
distance, ils ont à l’égard de ce qui, tu, était dans les traditions (et reste chez eux) su. [...] mais cet écart, exode du « fils »
et moyen de sa victoire à la place du « père », ne saurait empêcher non plus le retour (sous un autre nom) du refoulé – «
inquiétante familiarité » dans la place même d’une raison et d’une production scientifiques. [...] L’un et l’autre – l’occu-
pant et le revenant – sont remis en jeu dans le même texte : la théorie présente rencontre ce qui d’inassimilable revient
du passé comme extériorité placée dans un texte” (CERTEAU, 1975a, p. 418, grifo do autor).
115 “Espectrologia” é uma das traduções possíveis para o neologismo hantologie, cunhado por Jacques Derrida
em Espectros de Marx (1993). Berber Bevernage explorou a contribuição dessa proposta de Derrida à história, em
seu livro dedicado à tensão entre o tempo irreversível do discurso histórico moderno e o passado irrevogável
em contextos de justiça de transição (2012). Ethan Kleinberg também defendeu um conceito de tempo histórico
e de historiografia pautados na face espectrológica da desconstrução, no livro Haunting history: for a deconstruc-
tive approach to the past (2017).
78
ESPECTROS DE CERTEAU
UMA REAVALIAÇÃO HETEROLÓGICA DE NOSSO TEMPO
O trabalho intelectual de Certeau, padre jesuíta, não saiu ileso da agitação no mundo
católico da segunda metade da década de 1960. Aquele foi um tempo de mudanças
oficializadas pelo concílio Vaticano II (1962-1965). A secularização no interior da cul-
tura católica avançava num ritmo sem precedentes na história do catolicismo. Uma
onda contestatória invadira as ruas de Paris em maio de 1968, luta do desejo para não
deixar pedra sobre pedra no castelo da autoridade, inclusive no da instituição religio-
sa. Embates político-teológicos agitavam os católicos em países latino-americanos
aonde Certeau passava a ir com frequência, como o Brasil.
Foi nessa atmosfera efervescente que ele começou a problematizar o modo como
havia sido historiador em escritos de natureza mais acentuadamente teológica ou
mesmo naqueles mais propriamente historiográficos. Ele passava questionar a in-
suficiência da erudição e a apologia cristã que haviam dado o tom ao seu trabalho
com o passado histórico. Esse questionamento abriu caminho para novos modos de
praticar o ofício do historiador e para contribuições teóricas à história, apresentadas
há pouco pelo viés da perspectiva heterológica.
Como Clio teima em continuar soando sua trombeta, devemos nos perguntar so-
bre qual solo histórico estamos nós mesmos ancoradas, tendo em vista tomar cons-
ciência das urgências que se impõem a nossos espíritos hoje. Esse é um passo impor-
tante para traçar a atualidade da heterologia certeauniana, ou seja, sua pertinência
para as nossas intervenções diante dos problemas atuais. Esse esforço me permitirá
indicar algumas possíveis tarefas de uma teoria da história orientada pela perspecti-
va heterológica.
Transformações ocorridas ou aprofundadas a partir dos anos 1970 estão relacio-
nadas à reconfiguração da situação mundial que havia sido estabelecida no pós-guer-
ra.116 O surgimento de novas tecnologias da informação, a globalização, o impacto
das crises do petróleo, os desafios à manutenção do Estado de bem-estar social em
países desenvolvidos e o colapso da União Soviética são alguns dos fatores ligados à
reestruturação global do capitalismo, do trabalho e da vida.
116 A maioria das informações que apresento a seguir a esse respeito são baseadas em Hobsbawm (1994) e Castells (1996).
79
Dentre as muitas características dessa nova situação mundial, talvez uma das
mais evidentes seja a hegemonia da lógica político-econômica do neoliberalismo,
sem precedentes na história contemporânea. O enfraquecimento das políticas basea-
das no keynesianismo e da ameaça histórica ao capitalismo com o declínio da URSS
andam de mãos dadas com a disseminação do ideário neoliberal. Esse processo paga
tributo à atuação de empresas transnacionais e de organismos internacionais como
FMI, o Banco Mundial e a OTAN. O papel desse último foi posto mais uma vez em
evidência na lastimável guerra em curso entre Rússia e Ucrânia, ainda que a pobre
cobertura midiática sobre o assunto, via de regra, silencie a corresponsabilidade da
Organização – e da Ucrânia – na escalada que levou ao conflito entre os países vizi-
nhos do leste europeu.
Outras mudanças acompanharam a difusão do neoliberalismo no contexto da
transformação geopolítica mundial e da reestruturação financeira/informacional do
capitalismo. Com o Toyotismo, por exemplo, flexibilizou-se o gerenciamento dos
processos e a concentração das atividades nas empresas; com o avanço da lógica pri-
vada do capital sobre a lógica pública do trabalho, as políticas de Estado se desloca-
ram das garantias trabalhistas e da proteção social para o estímulo à competitividade,
à produtividade e à concorrência internacional nos mercados locais. E esse respeito,
no Brasil, a reforma trabalhista, a reforma previdenciária e a mudança na política de
preços da Petrobrás são bons exemplos.
Poderíamos ainda falar do aumento da dependência de países subdesenvolvidos
a países desenvolvidos, da substituição de postos de empregos por sistemas de in-
teligência artificial, do declínio do sindicalismo, da flexibilização e precarização do
trabalho, do constante sentimento de insegurança empregatícia, do desprezo cres-
cente por parte de alguns quanto àqueles que não adotaram a insegurança pelo viés
discursivo da oportunidade...
Esses aspectos de nossa época evidenciam um traço bastante relevante para
nossa reflexão, isto é, a relação entre os fluxos atuais do capitalismo, a flexibiliza-
ção do trabalho e uma nova forma de organizar o tempo. Richard Sennett alertou
para essa íntima ligação em seu A corrosão do caráter: consequências pessoais do tra-
balho no novo capitalismo.117
117 Remeto, nos parágrafos seguintes, particularmente ao primeiro capítulo de A corrosão do caráter, intitulado
Deriva (SENNETT, 1998, p. 13-33).
80
Antes das formas flexíveis se difundirem, o trabalho seguia sem grandes altera-
ções ao longo do tempo; a conquista de melhorias na vida doméstica, no consumo e
na poupança ocorriam progressivamente; e as regras de proteção dos empregos e de
aposentadoria davam certa previsibilidade ao trabalhador. Assim, um tempo linear,
cumulativo, previsível e de longo prazo regia a experiência do trabalho em países
desenvolvidos, após a recuperação econômica no pós-guerra.
Nas últimas décadas, esse modo de organizar o tempo do trabalho vem cedendo
espaço a outro. A linearidade, a cumulatividade, a previsibilidade e o longo prazo dei-
xaram de ter valor positivo. O desprezo pela estabilidade, pelo conformismo e pela
burocracia pôs em seus lugares a valorização das constantes mudanças de emprego,
a busca pelo retorno rápido, a tomada destemida de riscos e a impaciência quanto a
tudo que não é imediato.
Dessa maneira, uma das mudanças elementares trazidas pela reestruturação do
capitalismo foi um novo modo de relação com o tempo do trabalho, como Sennett
chamou atenção. Essa modificação gerou inquietações até mesmo nas novas gera-
ções profundamente integradas à nova lógica, sobretudo no que diz respeito às vi-
vências familiares e comunitárias dessas pessoas.
Um exemplo dessa situação geral está na narrativa de um dos personagens men-
cionados em A corrosão do caráter. Rico, como Sennett o nomeia no livro, atribui de-
terminadas qualidades para o sucesso profissional. Todavia, elas são bastante dife-
rentes daquelas que ele valoriza em outras esferas de sua vida. Embora Rico defenda
enfaticamente as diretivas do curto prazo da qual falamos acima, elas acabam sendo
disfuncionais para ele próprio quando o assunto são seus anseios pessoais:
“[...] essas formas de comportamento flexível não lhe serviram em seus papéis de
pai ou membro de uma comunidade; ele quer manter relações sociais e oferecer
orientação durável. É contra o corte dos laços de trabalho, a deliberada amnésia
dos vizinhos e o fantasma de ver os filhos como ratos de shopping center que ele
afirma a ideia de valores duradouros” (SENNETT, 1998, p. 29, grifo do autor).
81
são virtudes de longo prazo? À deriva na extrema fragmentação de fatos sem liga-
ção, a “experiência do tempo desconjuntado” corrói isso que Sennett chama “caráter”,
quer dizer, as qualidades que estão para além do instante passageiro e que permitem
forjar laços entre as pessoas.
Esse cenário de transformações históricas e de modificação geral em nossa rela-
ção com o tempo não aparece somente no diagnóstico de Sennett. Muitos autores se
depararam com um ou outro desses elementos, ofereçam eles interpretações coin-
cidentes ou não às do sociólogo estadunidense. Os “tempos líquidos” de Zygmunt
Bauman (2007), o “presentismo” de François Hartog (2003) e o “atualismo” de Mateus
Pereira e Valdei Araújo (2018) são alguns dos esforços dedicados a tornar inteligível o
papel do tempo nos desafios impostos à nossa época.
Byung-Chul Han também acrescentou novos sintomas ao prontuário do come-
ço de nosso século XXI, em seu ensaio Sociedade do cansaço. O filósofo, análogo a
Sennett, acredita que o trabalho, a vida e o mundo jamais foram tão transitórios
como em nossos dias. Diante da sequência frenética de momentos passageiros, não
há nada que garanta o sentimento de duração. Um sentimento de pertencimento
talvez pudesse nos salvar do desconforto que isso gera, mas também sofremos da
carência de vínculos nesses tempos de crescente atomização social. No entanto, a
dimensão transitória do tempo é ela própria indício de outra coisa mais elementar do
funcionamento do capitalismo recente. Há uma nova forma de violência atuando no
tipo de temporalidade e de sociabilidade ligadas à flexibilização e à desregulamen-
tação. Trata-se do fenômeno da autoexploração, típico de uma sociedade baseada no
imperativo do desempenho.
Mecanismos disciplinares tradicionais não deixam de ter papel relevante, talvez
mais do que Byung-Chul Han estaria disposto a concordar. De qualquer maneira, a
novidade está no fato de a ênfase da dominação neoliberal consolidar-se no elemento
psicológico do trabalho, cada vez mais difundido em todos os âmbitos da vida.
A maximização da produção tem muito mais sucesso quando deixa de recorrer
explicitamente a mecanismos disciplinares, deslocando seus estímulos à difusão de-
senfreada de valores como iniciativa, proatividade, risco e empreendedorismo. A ab-
solutização da lógica da produção e do trabalho deve seu sucesso em grande medida
à adoção da hiperatividade em todas as esferas da vida. O sujeito disciplinado fou-
caultiano tornou-se uma “máquina de desempenho”, segundo formulação de Byung-
Chul Han (HAN, 2010, p. 70).
82
Essa sociedade do desempenho extirpou a negatividade e fez do excesso de posi-
tividade seu fundamento. Han não usa os termos no sentido corrente de otimismo e
pessimismo, embora esses possam ser um de seus reflexos quando o assunto é polí-
tica. Ele os explora em certo sentido filosófico: positividade seria a capacidade de algo
confirmar o que pensamos ou somos, sem a necessidade de impor-lhe uma recusa
efetiva; e negatividade seria a capacidade de algo negar o que pensamos ou somos,
podendo haver a contraposição efetiva de uma recusa.
A sociedade do desempenho é pobre de negatividade, isto é, de alteridade e estra-
nhamento. Mesmo o que não é idêntico a nós, o que é diferente, carece de alteridade,
pois esse outro não possui estranheza, não representa perigo e não provoca reação
de nossa parte. A relação do turista com o país estrangeiro, do nativo com o imigran-
te ou do curioso com o exótico não é a de um eu espantado diante da evidência da
outridade. O diferente aqui não diz respeito ao desconhecido, ao incontrolável e ao
irredutível. Só o outro que escapa à toda pressuposição, autoconfirmação ou apazi-
guamento estéril é capaz de suscitar medo e reação.
O exemplo mais sensível desse excesso de igual é o apagamento da diferença radi-
cal entre explorado e explorador. O sujeito do desempenho, em seu excesso de positi-
vidade, não percebe qualquer coerção externa. Seu modo de ser já não distingue clara-
mente vítima e algoz, senhor e escravo, empregado e patrão. Ele explora a si mesmo e
confunde sua autoexploração com liberdade. Concorrendo desenfreadamente consigo
mesmo e não conseguindo localizar um ponto exterior que permita a interrupção des-
sa violência da positividade, essa figura subjetiva do neoliberalismo acaba por sucum-
bir no cansaço e esgotamento excessivos, insígnias psíquicas de nossa época.
Portanto, uma transitoriedade excessiva, uma fragilidade nos vínculos e uma ca-
rência de negatividade são os desafios impostos à nossa reflexão no contexto atual.
Qual é o valor da heterologia certeauniana diante dos aspectos indicados nesse breve
levantamento histórico? Quais desdobramentos ela permite produzir no plano da
teoria da história?
Ora, não foi Michel de Certeau quem fez da alteridade o nervo da história? A
teoria heterológica da história às vezes pressupõe, às vezes enfatiza exatamente esse
tipo de diferença radical da qual parece carecer nossa sociedade cada vez mais vio-
lentada pelas exigências do desempenho. Além disso, a outridade do passado mar-
cada no ausente da história, na presença faltante e na alteridade alterante indica um
modo espectral de pensar o tempo, apontando experiências alternativas à entrega às
83
durações sucessivas extremamente imediatistas, curtas, fragmentadas e aceleradas
do cotidiano de muitos de nós. Com isso, penso também ser plausível lançar a teoria
da história no terreno das vinculações comunitárias urgentes em nossos dias.
Tomar a heterologia como princípio de inteligibilidade implica pressupor a exis-
tência de um outro sempre mais outro. Mais do que aquele diferente já dado diante
de nossos olhos, a ênfase se desloca para o diferir da diferença. Com isso, tenho em
mente o inesperado incontrolável atual ou potencial, mesmo ali onde localizações,
identificações e expectativas já produziram efeitos em nosso olhar sobre o outro.
Uma consequência da tomada da outridade como princípio seria nos perguntar-
mos sobre as resistências às nossas formas uniformizantes de pensar o diferente. De
partida, cabe questionar o excesso de positividade da própria afirmação do excesso
de positividade compartilhado acima. Essa afirmação, embora justa em certa medida,
não sofreria ela própria do mal que ela diagnostica? Se a resposta for positiva, signi-
fica que ela própria está acometida de certa pobreza de negatividade. Dito de outro
modo, ela lança um olhar sem estranheza sobre o nosso tempo, sem deixar que ele
resista a essa apreensão.
Pensemos na Primavera Árabe, nos indignados espanhóis, no Occupy Wall Street,
nas jornadas de junho de 2013, dentre outras manifestações que eclodiram aqui e
acolá na última década. Elas não seriam, de algum modo, formas de estranhamento
e rejeição às imposições da sociedade do desempenho? As marchas das mulheres
argentinas pelo direito ao aborto legal, gratuito e seguro não seriam uma resposta
“negativa” ao perigo da sociedade patriarcal? Consideremos as alianças entre pers-
pectivas indígenas e não indígenas. No documentário Guerras do Brasil.doc, Ailton
Krenak dispara: “Nós estamos em guerra. Eu não sei por que você tá me olhando
com essa cara tão simpática. Nós estamos em guerra. O seu mundo e o meu mundo
tão em guerra”. O que mais significaria para nós essa afirmação senão uma imagem
anticolonial da alteridade no sentido mais forte do termo?118
Esse questionamento poderia ainda averiguar se as tecnologias de disciplina
e desempenho se alternam, modificam e fortalecem mutuamente antes e após a
118 Aqui, a negatividade deve se voltar contra minha própria afirmação. Preciso tomar o remédio que receito.
Não posso deixar de levar em conta o perigo de aprisionamento da alteridade do pensamento indígena com
essa minha colocação, uma vez que estou o interpretando a partir de termos filosóficos ocidentais. Mas é um
risco que devo assumir conscientemente em nome da tentativa de levar em conta os diferentes mundos atra-
vessados em nosso mundo conjunto.
84
reestruturação global do capitalismo. Ou ainda analisar o papel da internet e das
redes sociais no contrafluxo da neoliberalização dos afetos, em movimentos como a
Primavera Árabe por exemplo. Seja qual for o caminho adotado, sistematizar varia-
ções do excesso de positividade e catalogar as falhas aí causadas pelas fissuras da ne-
gatividade permitiria tomar as forças produtivas de nosso próprio momento histórico
como nutrientes para a construção de saídas às urgências de nossa época.
Esse desdobramento arrisca uma primeira tarefa contemporânea da teoria da his-
tória heterologicamente orientada: confrontar reflexões filosóficas pertinentes com
aspectos característicos de nossa história imediata, tendo em vista não apenas pro-
duzir um laboratório de experimentação historiográfica para essas reflexões, mas
também elaborar novas reflexões filosóficas historicamente situadas a partir das di-
ferenciações decorrentes dessa experimentação. O que está em jogo é o reemprego
historicamente orientado de conceitos, argumentos e métodos filosóficos, embora
esse exercício também possa ocorrer por meio da teoria literária, da psicanálise, da
sociologia, etc.
A heterologia pensa a história como um trabalho com a ausência do passado, pre-
sença faltante da historiografia, alteridade que altera a representação colocada em
seu lugar. Em outros termos, o conceito heterológico de história toma o passado
como outro que resiste às apreensões do presente, objeto perdido cuja realidade ele
não pode deixar de desejar e que retorna violentando suas tentativas de presentifica-
ção. Essa heterologia pressente algo que me parece ter se tornado uma tendência na
teoria da história nas últimas duas décadas.
A tendência que gostaria de indicar tem uma genealogia complexa que aqui só
há espaço para apontar. Ele remonta à tentativa de Nietzsche em pensar o contem-
porâneo e o extemporâneo da história da filosofia. Passa pelo estabelecimento de
modos de relação com a tradição para além do binarismo fidelidade/autonomia, es-
forço visto em nomes como Heidegger, Arendt, Gadamer, Ricœur, Derrida, dentre
outros. Ela culmina na reflexão mais nitidamente detida num tópico elementar da
teoria da história, ou seja, as experiências do tempo. Nesse caso, tenho em mente
particularmente intelectuais de diferentes orientações filosóficas que se dedicaram
a entender o tempo histórico para além da distância irremediável entre passado e
presente, como muitas vezes pressupõe o discurso histórico moderno. Hans Ulrich
Gumbrecht, Eelco Runia, Frank Ankersmit, Berber Bevernage e Ethan Kleinberg são
alguns dos nomes nessa seara.
85
Uma das contribuições de Certeau a esse respeito se encontra no caráter espec-
tral do conceito heterológico de história, como já indiquei no fim da primeira parte
deste capítulo. Faço alusão ao adjetivo “espectral” para designar a intuição de que a
história assombra o presente, quer isso seja isso enunciado explicitamente ou esteja
implicado em outras frentes nos textos de Certeau. Minha intenção não é cartografar
essa contribuição, mas herdá-la, falar a partir dela.
Uma sociedade dá um presente a si mesma ao diferenciar-se de algo que ela
estabelece como não sendo mais, porém essa diferença do passado é apagada ao ser
explicada pelos caracteres de uma outra ordem cultural, alheia à sua linguagem. A
modernidade ou contemporaneidade de uma experiência depende de um outro au-
sente sem a qual sua justa caracterização seria impossível (o novo só o é em relação
ao antigo), mas o discurso histórico articula mil estratégias para tornar presente esse
passado ausente.
No entanto, a estranheza do passado supostamente reabsorvido frustra a ambição
presentificante em relação à história. A ausência irredutível do outro reaparece como o
fantasma da diferença que sussurra a não conformidade do presente às suas represen-
tações autorreferenciais. Os indícios da negatividade no interior do conjunto que ele
próprio atribui a si como sendo sua identidade são as assombrações que o aterrorizam.
Isso traz consequências para o trabalho da teoria da história, pois o passado pre-
sentificado já acomodaria o embrião de seu próprio limite, às vezes sinalizando a cor-
rosão potencial de certas fundações por meio das quais uma sociedade fantasia a si
mesma. Indo ainda mais longe, poderíamos perguntar se esse estranho tão diferente
de nós, vírus para a saúde de nossa identidade, não nos seria mais familiar do que
gostaríamos de imaginar, ou até mesmo, em alguns casos específicos, se o passado
realmente passou.
No caso de uma resposta positiva a essas questões, o passo óbvio seria aventar
que a historiografia e a teoria da história poderiam contribuir para o exorcismo dos
demônios que obsediam nossas sociedades. Nesse caso, o passado assombroso po-
deria ganhar diferentes formas: a da repetição do que passou, em decorrência do
esquecimento; a dos elementos naturalizados como atributos do nosso tempo, em-
bora frágeis diante da devida historicização; ou a dos efeitos do passado histórico
sobre nossas sociedades. Porém, essas variações, apesar de seus méritos próprios, não
poderiam fornecer uma compreensão espectral da história se, em última instância,
pressupusessem que o passado passou, irremediavelmente.
86
Meditemos um momento sobre a esfera da religião, pois ela nos dará indicações
relevantes para a delimitação dessa outra via posta em pauta. Como bem sabemos,
nosso tempo não pensa mais a si em termos necessariamente religiosos. O conhe-
cimento foi secularizado paulatinamente a partir da modernidade. Nesse processo,
a religião tornou-se o passado histórico do presente epistemológico. Contudo, não é
preciso grandes esforços para encontrar exemplos de como essa diferença passada
ressurge em certos domínios, inclusive no campo do conhecimento. Basta citarmos,
a título de Brasil, o papel da teologia neopentecostal na pressão da bancada evangé-
lica sobre as políticas públicas da educação básica e superior.
Diante disso, sou levado a me perguntar se de fato a religião realmente deixou de
ser uma marca do conhecimento e das instituições em nosso mundo. Com isso, não
quero negar o processo de secularização ou mesmo questionar seu valor. Também
não é meu objetivo entrar no debate sobre a sociedade “pós-secular”. Meu interesse
é apenas estar aberto às tensões e disputas que não se esgotam quando uma deter-
minada perspectiva predomina. Será a religião de fato um aspecto passado de nosso
espaço público? O retorno do religioso recalcado não seria o redesenho histórico de
algo que permaneceu latente apesar da aparente vitória da secularização?
No caso brasileiro, via de regra, esse papel da religião acarreta problemas graves
na esfera pública. Todavia, essa tendência profundamente questionável não resume
as manutenções, implicações e ressignificações da religião na vida de muitos bra-
sileiros. Penso aqui no lugar ocupado pelas religiões de matriz africana na luta de
uma parte da população pela efetivação de direitos básicos. A religiosidade foi um
dos alicerces da sobrevivência da cultura ancestral na história da diáspora africana. A
religião ocupou lugar importante dentre as estratégias de resistência diante das inú-
meras violências infligidas à população escravizada. Essa função não está viva entre
seus descendentes ainda hoje, em pleno século XXI?
O que me chama mais atenção em casos como esse é a capacidade da história
fornecer uma orientação para o presente, inclusive em seus aspectos religiosos. Não
vemos aqui uma experiência irremediavelmente passada que só se repete no presen-
te como farsa. A cultura histórica não tem a função de ser o fármaco para nossas pa-
tologias anacrônicas. Mais do que a negatividade das falsas continuidades do nosso
tempo, o passado histórico fornece algo para o funcionamento mais inclusivo, iguali-
tário e alegre de nossa sociedade. Ao invés de instrumento sagrado para o ritual que
afugenta nossos demônios, a história se converte no próprio espirito invocado para
87
aterrorizar as certezas do nosso tempo. Creio que essa e outras iniciativas em anda-
mento são fermentos criativos para uma teoria da história marcadamente espectral.
Se ao repensar a potência da negatividade em nossos dias tomei como referência
o terreno minado e fértil de nossa história imediata, aqui a tarefa se aproxima da
história do tempo presente. Com essa expressão, indico os processos históricos apa-
rentados de alguma maneira ao presente. O papel desse passado no presente pode
ser impulsionado pela contiguidade temporal, pela sobrevivência de testemunhas
oculares, por fatores intergeracionais ou pela circulação da cultura histórica.
Contudo, também chamo atenção para uma história mais ampla, heterogênea e
contraditória, englobando àquela e a outros conjuntos presumivelmente não aparen-
tados conosco. Nesse caso, somente começamos a cogitar algum tipo de proximidade
histórica quando ampliamos nosso campo de visão. Para isso ocorrer, é preciso per-
mitir-se enxergar os mundos outros que já estavam dados entre nós, numa distância
relativa ou abismal muitas vezes criada por nós mesmos. Em muitas experiências o
passado não passou, não é puramente ausente ou não está drasticamente dissociado
do presente. A variedade das formas de vida atuais é a força impulsionadora de outros
modos de pensar nossa relação com a história.
Isso significa apostar na possibilidade de localizar, atualizar ou inventar moda-
lidades de relação não restritas ao corte desorientador entre diferentes tempos. Tal
iniciativa não deve ser confundida com o apelo inocente a formas históricas de coor-
denar experiência e expectativa, como aquelas historiadas por Reinhart Koselleck
(1979) e François Hartog (2003). Elas implicariam a adoção de certos pressupostos que
só são aceitáveis hoje acriticamente, como a autoridade irrestrita do passado, a conti-
nuidade progressiva, o destino teleológico ou o aprisionamento em um determinado
tempo. A cautela com ciladas reacionárias e messiânicas é um pressuposto do esforço
aqui proposto, quer dizer, o de abrir mão do divórcio forçoso entre durações histó-
ricas, não excluindo categoricamente distâncias e proximidades menores, maiores,
parciais ou totais entre elas.
Esse exercício de ampliação e ressignificação dos nossos modos de relação com a
história tem a capacidade de fazer emergir diferenças potencialmente alterantes de
nossas sociabilidades? Seria otimismo em demasia acreditar que esse projeto pode fa-
vorecer não somente a produção de formas menos desarticuladas de relação temporal,
mas também o estímulo a novas formas de vinculação comunitária? Independente
das respostas, esse é outro tópico que me parece urgente ao pensamento histórico
88
contemporâneo. Uma historiografia, teoria da história ou filosofia da história seriam
tão mais contemporâneas quanto elas agregassem elementos à vida comunitária.
Essa pauta escorregadia precisaria levar a abertura aos espectros da história às suas
últimas consequências ético-políticas.
Certamente, isso exigiria de nós uma boa dose de modéstia, sem esperar que o
historiador e o filósofo pudessem ser algum tipo de guru comunitário, ou mesmo
que tivessem o direito de alguma palavra final sobre os rumos da vida comum. Por
outro lado, somente com um malabarismo muito sofisticado poderíamos dissociar
nossa produção teórica da sociedade da qual fazemos parte. E cá para nós, a grande
maioria de nós não é tão artístico para a desenvoltura que esse tipo de arte exigiria...
Portanto, mais vale sermos lúcidos acerca de nossas intenções, possibilidades e limi-
tes, se dispondo a participar da forma mais criteriosa e crítica possível na empreitada
conjunta da tentativa de salvar nossas circunstâncias, para aludir à parte menos co-
nhecida da célebre frase de Ortega y Gasset.119
Esse lugar social expandido de nossa operação historiográfica e de nossa ma-
neira de pensar a história talvez possa encontrar sua vocação na metamorfose dos
espectros da história em parceiros que nos contam sucessos, fracassos e sonhos não
materializados, de alguma maneira estimulantes para os nossos próprios anseios co-
letivos. Em alguns momentos não é desejável ou aceitável exorcizar os fantasmas que
afligem a plenitude autossuficiente do nosso presente, porque em última instância
isso seria apagar nossas próprias diferenças inerentes. Nesse caso, talvez seja mais
proveitoso multiplicá-los numa ontologia heterológica, partilha de um mundo histó-
rico que é o deles, o nosso, o dos outros e o dos que ainda virão.
Quem sabe isso pudesse facilitar aos membros de uma comunidade atual ou vin-
doura, incluindo aí o estudioso da história, tomar parte das disputas em torno do
que é mal e do que é bom, do que é feio e do que é belo, do que é falso e do que é
verdadeiro. Essa atividade poderia ainda acrescentar elementos ao universo de refe-
rência próprio dos engajamentos acerca daquilo o que é digno de conservação e de
transformação. Por fim, quem sabe ela nos ajudaria a melhor distinguir os fantas-
mas promissores, vindos pelo bem de nossa comunidade, daqueles que denunciam
as traições dos nossos esquecimentos, os simulacros travestidos de autênticos, os
119 A frase, na íntegra, é a seguinte: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo” (ORTEGA
Y GASSET, 1914, p. 322)
89
acertos de contas ainda pendentes, as reparações ainda devidas e os mortos não vela-
dos que assombram a alegria, a autonomia, a igualdade e a justiça.
Essas páginas tiveram por objetivo honrar a contribuição heterológica de Certeau
à teoria da história. É verdade que precisei levá-la além de suas fronteiras originais
para dar conta de minha proposta no contexto do livro no qual este capítulo se insere.
Evidentemente, essa ousadia implica o risco de que nossa herança certeauniana já
comporte algum grau de rasura, traço esse marcante da própria forma de ler prati-
cada por Certeau. Acima de tudo, esse risco me parece um preço justo a pagar diante
da gravidade das urgências que, se não são completamente novas, impõem-se a nós
hoje mais do que nunca.
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92
FICÇÃO E REALIDADE À ESPREITA
DO HISTORIADOR E DO ESCRITOR
93
HISTÓRIA E LITERATURA:
PANORAMA CRÍTICO120
120 O presente texto de Costa Lima foi apresentado em uma sessão dos Webinários do Instituto de História da
Universidade Federal Fluminense. Cf. COSTA LIMA, Luiz. Webinários do IHT. História e literatura: panorama
crítico. Debatedores: Ana Carolina de Azevedo Guedes (PUC-Rio) e Maycon da Silva Tannis (PUC-Rio). 29 de
setembro de 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7xCFK41UlhQ.
94
do próprio historiador: “O descobrimento dos acontecimentos, o interesse no cha-
mado núcleo duro dos fatos (...) provocaram a atitude metodológica de não admitir
que, nas modalidades de fontes possíveis, fossem incluídos, por exemplo, os sonhos”.
E mais adiante no mesmo ensaio: “O historiador parte de antemão de que a atestação
verbal abrange o todo da realidade que procura conhecer” (Koselleck, R.: 2021, 113
e 122). Da estrita obediência ao fato resulta o segundo e oposto extremo – que não
encontro endossado por nenhum outro historiador. A ele, Koselleck chama de “a
ficção do fático” (op. cit., 124). Para o emérito historiador, a ficção surge na história
da impossibilidade de seu agente dar conta das inúmeras variáveis constitutivas dos
vários ângulos de visão oferecidos pelo momento histórico abordado. Dessa varieda-
de, bem como da impossibilidade de o historiador contar com todos os testemunhos
do momento histórico que analisa decorre que sua escolha implica um traço forte de
ficção – por certo, não uma ficção desejada, mas imposta pela própria maneira como
o historiador cumpre a sua tarefa. Porque ela se estabelece a partir da exaltação do
fato, sua designação é bem a ficção do fático.
Acentue-se, ademais, que a caracterização acima é feita por um historiador que
não pretendia falar mal de sua especialidade. Se, por conseguinte, seu enunciado
procura acentuar a especificidade de sua disciplina, é ela alcançada por diferenciá-la
tanto da ciência stricto sensu, quanto das modalidades do tenho chamado de ficção
interna (a ficção estritamente literária) e a externa (aquela que, tendo uma primeira
inscrição discursiva, por exemplo, filosófica, como em Pascal, ou científica, como em
Freud, recebe por acréscimo uma distinção por sua distinta formulação literária).
A essa caracterização impactante opõe-se uma segunda, que não posso ter como
positiva, mas sim de que lamento a propagação, tanto entre profissionais, quanto
entre os media Cito apenas um certo J. H. Plumb, que, em The Death of the past (1969),
argumentava que, nos termos de Lionel Trilling, “o próprio passado está prestes a ser
extirpado da consciência do homem moderno” (cf. Trilling, L.: 2014, 152). Nas pala-
vras do próprio Plumb: “A sociedade industrial não precisa do passado. Sua orienta-
ção intelectual se volta para a exploração e para o consumo. (...) O passado (...) se torna
objeto de curiosidade, de nostalgia, de sentimentalismo” (apud Trilling, L.: op. cit.).
Impressionante que seja a pauperização a que a história é reduzida, ela ainda se
tornará mais rasa dentro do que tem sido chamado de presentismo. Muito menos que
uma doutrina, o presentismo é uma atitude prática. Para seus adeptos, que importa
que se perca a articulação do presente vivido com o passado e o futuro, se o decisivo
95
é exploração e consumo? Para não me demorar, apenas acrescento: assim unidimen-
sionalizado, que pode ser tal indivíduo senão um emérito conservador, na política,
nos costumes, na manutenção dos hábitos de sua classe? Não parece ocasional que
à difusão do presentismo tem correspondido o surgimento da direita radical – não
confundida com um nazismo redivido -que se vem mostrando nos Estados Unidos,
na Hungria, na Polônia, no Brasil. Se o presentismo traz a aparência de “up to date”,
não estranha que seja contemporânea da declaração do direito à guerra, inclusive
com a ameaça do uso de armas nucleares, proclamado pelo homem forte da Rússia.
Aqui, damos por encerrado o resumo que me pareceu indispensável e passamos ao
argumento que pretendo desenvolver.
Poucos anos depois de principiar o questionamento da mímesis, compreendi que a
falha saliente da teorização tradicional a que me opunha era decorrente de não captar
o elo existente onde o fenômeno da mímesis é mais forte, i. e., na literatura e na pintu-
ra - o elo constituído por mímesis e ficção. E como a cláusula verbal com que a ficção
se mostra – a cláusula do como se – aparece de início na Primeira carta aos Coríntios, do
apóstolo Paulo, é por ela que devo começar: “Eis o que vos digo, irmãos: o tempo se faz
curto. Resta, pois, que aqueles que têm esposa, sejam como se não a tivessem. (...) Pois
a figura deste mundo se dissipa” (Paulo, Primeira carta aos coríntios, 7, 29).
Que tempo se fez curto, segundo o apóstolo senão o tempo do mundo, quando
cada homem devia escolher sua mulher e cada mulher o seu homem? E porque
há de ser “como se não a tivessem” senão por efeito da escatologia cristã de que
este mundo será em breve abolido, para que em seu lugar se anuncie o mundo da
Parusia. Nos termos do pensador a que estaremos recorrendo, Oddo Marquard:
“(...) O mundo existente de agora é desde agora desrealizado pelo prometido mundo
celeste; e os cristãos devem viver antecipadamente o não-ser vindouro do mundo
agora existente pelo modus do ‘como se’: a ficção do não ter (...) é a antecipação
da negação escatológica do mundo” (Marquard, O.: 2022, 182). É nos termos de
Marquard que se formula a abertura do problema: “A tendência que leva à fundamen-
talização do fictício deriva da escatologia bíblica; porquanto a negação escatológica do
mundo não só (diretamente) à negação, desde logo fictícia, do mundo prexistente
(pois não há o real), como provoca – pois permanece presente como temor real – a
seguir também (indiretamente) a restauração contraescatológica do mundo escato-
logicamente negado, tão só sob o modo da ficção: ou seja, pela inversão do ‘os mé’
no ‘como se’ “ (op. cit., idem).
96
Embora o próprio Marquard não tenha a teologia como especialidade, de imedia-
to sigo sua argumentação. Ele diferencia a maneira como a Idade Média e os Tempos
modernos leram a negação escatológica do mundo. Na Idade Média, o poder tempo-
ral da Igreja assegurava a certeza da parusia, o que, em troca, tornava explicável que,
incerto, o mundo houvesse de ser assegurado. Daí a enunciação do pensador: “(...) A
realidade se torna natureza por sua maximização de realidade (...)” (Marquard, O.: op.
cit. 183). Inverte-se a situação, nos Tempos modernos: a realidade “se converte em
fato (Faktur), no limite do fictício: a realidade é produzida por meio de ficções, é um
produto da ficção”(op. cit., idem).
Se, em tempos religiosamente afirmados, a negação escatológica motiva a con-
versão da realidade em natureza, portanto, o provisório em incontestável, a perda
de força temporal da Igreja motiva a identificação mental da realidade com a ficção.
Marquard torna ainda mais decisivo seu juízo ao relacionar tal identificação com o
problema da existência de Deus. Suas palavras são claras e incisivas: “A defesa contra
(a) ameaça (expressa pela negação escatológica) só tem êxito pela persuasão de que
Deus efetivamente não existe. (...) Sucede assim, como réplica radical da negação escato-
lógica do mundo, que o ateísmo metodológico passa por fim para o ateísmo real: para este a
ficção não é a não-existência de Deus senão que Sua existência; por isso sempre a partir da
tendência que favorece a defesa contra a negação escatológica do mundo, surge agora
a luta contra os que se dedicam a essa ficção: os teólogos e os metafísicos” (op. cit., 185).
Marquard ainda ressalta a suficiência de seu argumento ao assinalar que a dú-
vida metódica cartesiana “já opera com o fito de superar a posição indestrutível de
Deus”, assim como, séculos adiante, a epoché fenomenológica husserliana terá escopo
semelhante. É possível dizer-se que a relação entre a negação de Deus e a ficcionali-
dade do mundo converte-se em ainda mais persuasiva por juízo que apenas resumo.
O filósofo alemão recorre ao acervo de Leibniz, e a Kant: “Leibniz (mais precisamente,
o Deus de sua Theodicée) foi o primeiro em admitir, ou seja a legitimar, os mala – as im-
perfeições – como condições de possibilidade”. Recorre mais fortemente a Kant, por ter
sido a partir dele que se inicia “a trilha vitoriosa” do princípio da necessidade. Isso
porque “antes do princípio da necessidade, bona e mala eram princípios iguais: mala,
assim como bona, são justificados por sua necessidade para o ótimo; desde então, há
o ‘mal legitimado’ como condição de possibilidade. (...) Se, afinal de contas, o mal pode
ser legitimado como condição de possibilidade de um ótimo, então o mesmo cabe para o
mal gnoseológico” (op. cit., 187 – 8). Por conseguinte, Kant, concluímos por nossa conta,
97
seculariza as palavras de Paulo; já não se diz que o mundo é de pouca dura, senão que
habitado por um princípio de necessidade em que o mal pode ser a condição para o
muito bom. Ora, como tal contradição lógica poderia ser aceita se a sua ambiência, o
mundo, fosse afirmada como fictícia? (Ou seja, sua maleabilidade demonstraria sua
inconsistência interna).
Sem avançarmos pela reflexão de Marquard – afinal seu livro se encontra dispo-
nível em português – preferimos efetuar uma guinada: deixamos de seguir o desdo-
bramento da tese teológica para convertê-la em de cunho sociológico. Utilizaremos
para tanto outro tipo de fonte: Le Neveu de Rameau, o romance que Diderot prova-
vavelmente começou a escrever em 1761 e que, tendo primeiramente aparecido, em
1804, em tradução para o alemão, da autoria de Goethe, só teria editada sua textua-
lidade fidedigna, em 1890. (Fique claro que o termo ‘ficção’ não aparece nas voltas
do romance). Seu título refere-se ao sobrinho do famoso músico Rameau, sobrinho
cujo nome, Jean-François, sequer é enunciado. O verdadeiro protagonista é também
músico, mas sem fama, trapaceiro, miserável e, com frequência, faminto. O sobrinho
não se mascara e reconhece suas “qualidades”, assim enumeradas: “(...) Sou ignorante,
tolo, louco, impertinente, preguiçoso, aquilo que nós, borgonheses, chamamos de
rematado fora-da-lei, velhaco, guloso (...)” (Diderot, D.: ?, 205). Tal acúmulo de im-
propérios não significava que fosse mal recebido pelos que frequentava. O sobrinho
nada esconde ao recordar: “(...) Eu vivia com pessoas que se haviam afeiçoado a mim,
justamente porque eu possuía, em grau muito raro, todas estas qualidades” (op. cit.,
idem); “Não me perdiam de vista um momento sem lamentá-lo. Eu era o pequeno
Rameau, o lindo Rameau, Rameau, o louco, o impertinente, o ignorante, o pregui-
çoso,o guloso, o palhaço, o grande animal. Não havia um desses epítetos familiares
que não me valesse um sorriso, um carinho, uma pancadinha no ombro, um tapa, um
pontapé (...)” (op. cit. 206).
Aquele que com ele dialoga, o Moi face ao Lui, declara que ignorava tal estado de
coisas: “É curioso. Até hoje, sempre pensei que as pessoas as escondessem de si pró-
prias, ou as perdoassem em si, desprezando-as nos outros” (idem, 205). O contraste
em o Moi, apresentado como um ingênuo, e o sobrinho, o Lui, é fundamental para
captar-se o que este sabe sobre si – o que, em princípio, pareceria supérfluo – quanto
e sobretudo acerca da insinceridade avassaladora na sociedade. O Moi tenta convencer
o sobrinho que, com a inteligência que demonstrava ter, com sua habilidade de ator e
sua qualidade de músico, ainda tinha a possibilidade de integrar-se ao lado próspero
98
da sociedade. Mas Jean-François, embora se queixe dos sofrimentos pelos quais um
miserável passa, sabe que a voz a que se dirige é a de um autêntico ingênuo. O so-
brinho é aquele que não se deixa enganar sobre os verdadeiros sentimentos e valores
suscitados na sociedade. Assim, por exemplo, falando de violonistas famosos, assinala
que, em suas execuções, atuam como verdadeiros atores, que oferecem a imagem
mesma do suplício e provocam quase o mesmo sofrimento (cf. op. cit., 213). A extensão
da conversa é absoluta, ela de fato atravessa todo o romance e não tem propriamente
fim. As posições de um e outro pouco mudam, se é que pode-se dizer que há alguma
mudança. Alguma mudança se aparenta por parte do ingênuo Moi: “O que eu percebo
claramente em todo esse enredo é que há poucos ofícios honestamente exercidos, ou
poucas pessoas honestas em seus ofícios” (op. cit., 225). A mudança por parte do so-
brinho antes faz parte de sua habilidade de dar a entender alguma coisa para, afinal,
torcer para seu ponto de vista constante. Não será preciso visualizar outro momento
senão na resposta imediato à passagem acima: “Bem, não as há absolutamente; em
compensação, há poucos tratantes fora de suas lojas; e tudo andaria bastante bem sem
certo número de pessoas que chamamos de assíduos, exatos, que cumprem rigorosa-
mente seus deveres, estritos, ou, o que dá no mesmo., sempre em suas lojas, cuidando
do ofício de manhã à noite, e não cuidando de outra coisa. São também os únicos que
se tornam opulentos e que são estimados” (idem, ibidem). Ao aceitar que há os assí-
duos e exatos, pareceria que o sobrinho se dispunha a admitir que, em um mundo de
tratantes, haveria os justos. Mas a cláusula da assiduidade e exatidão é estabelecida
para que se assinale que são estes precisamente que alcançam a opulência e a estima.
A imagem da sociedade oferece a óptica invertida do princípio kantiano da necessida-
de: o caminho do mal não é a condição para o alcance do ótimo senão que a prática de
condutas virtuosas é a condição para a opulência e a estimas pública.
Na verdade, ainda somos injustos com o interlocutor do sobrinho ao dizermos
que ele escapa de sua honesta ingenuidade. A passagem referida foi bastante leve
para que tivesse tal efeito. Daí decorrem as formulações lapidares; todas elas deriva-
das do anônimo Jean-François, a exemplo de: “por mais que faça, ninguém se deson-
ra quando é rico” (op. cit., 229). Podemos deixá-las à discreção do leitor, desde que se
compreenda que elas encontram sua culminância em: “Eu sou eu mesmo, e continuo
a ser o que sou, mas ajo e falo como convém” (op. cit., 248).
O interlocutor não se aproximaria de tal auge, mas não se poderia pensar que, se
continuasse a existir fora da ficção literária, seria capaz de perceber-se dentro do mesmo
99
capuz? Mas não saio da leitura antes de assinalar uma derradeira passagem. O interlo-
cutor e o sobrinho reconhecem que La Bruyère e Molière são grandes autores. O sobri-
nho assinala que os relê com frequência. O sobrinho confirma sua incrível perspicácia
ao acrescentar: “São bem melhores do que se pensa; mas quem os sabe ler? (op. cit., 248).
O Moi não perde a oportunidade para deixar uma pitada de algum otimismo:
“Todo mundo, segundo a medida de seu espírito” (idem, ibidem). A discordância assu-
me o tom de desafio. O sobrinho rebate: “Quase ninguém. Poderia me dizer o que se
procura neles?”; O Moi confirme sua pisada macia: “O prazer e a instrução”. Apenas
assinalo o começo da intervenção mais larga do sobrinho: “Aprendo neles tudo o que
se deve fazer tudo e tudo o que não se deve dizer” (ibidem, ib.).
Sem que abandone Le Neveu de Rameau, deixo a minha leitura e a comparo com
a de outro autor.
Dizem-me que a tradução do Sincerity and authenticity, do ensaísta norte-ameri-
cano, Lionel Trilling tem tido muitos leitores. Seu autor estabelece o contraste entre
as visões da sociedade estabelecida em Le Neveu de Rameau e no capítulo VI.B. “Der
sich entfremdete Geist. Die Bildung” (“O Espírito alienado de si mesmo. A cultura”),
da Fenomenologia do espírito, de Hegel. A menor informação que se tenha sobre o pen-
samento hegeliano será suficiente para reconhecer-se que a posição hegeliana sobre
o romance de Diderot não poderia ser senão oposta. De todo modo, detenho-me um
instante na orientação do capítulo da Fenomenologia. Seu enunciado inicial declara
que “a essência tem a determinidade simples do Ser para a consciência, a qual, en-
quanto imediatamente orientada para a consciência, constitui os costumes” (cap. cit.,
II, 35). Já o mundo exterior à consciência é o negativo da consciência-de-si. Isso não
o impede de ser essência espiritual, compenetração do ser da individualidade. No
entanto, enquanto negativo à consciência, tem um ser peculiar e a consciência-de-si
nele não se reconhece (op. cit., 38).
Sem oferecer alguma orientação melhor, limito-me a dizer que relacionar a es-
sência com o ser, a consciência e os costumes e, a seguir, o mundo exterior com o ne-
gativo da consciência-de-si, sem que isso o impeça de oferecer a compenetração do
ser e da individualidade, contém, i.e., já supõe, a projeção do método dialético do fi-
lósofo. O trabalho de Hegel consistirá em converter o a priori estabelecido a partir da
essência em algo concretamente operacional, i. e., (aparentemente) verificável. Se o
consegue e/ou em que medida é uma tarefa de que nos escusamos. Basta a recorrên-
cia superficial à terminologia exposta no princípio do capítulo para compreender-se
100
que não poderia tomar Le Neveu de Rameau senão como um material útil à sua pre-
tensão interpretativa, enquanto intrinsecamente antagônico a ela. Para Hegel, as vo-
zes que se confrontam no romance dialógico, o Moi e o Lui,expressam os extremos
que, combinados, dão lugar à Cultura. No interior do diálogo, o Moi é tratado como
a “consciência honesta”, que, nos termos de Trilling, “suscita o desdém impaciente
de Hegel” e consiste na relação de quem fala “com as coisas e em sua submissão à
moral tradicional” (Trilling, L.: op. cit., 51). O Lui, ao contrário, é “o bufão, o parasita
lisonjeiro, o mímico compulsivo, aquele que não possui um eu para com o qual deve
ser verdadeiro; é ele quem representa o Espírito que passa para o próximo estágio de
desenvolvimento” (op. cit., 57). Assim visto, Le Neveu de Rameau é a manifestação ao
vivo do que impulsiona o Espírito em seu desenvolvimento. Basta pensar-se simplo-
riamente na dialética para compreender-se que Hegel lê o romance como se Diderot
o tivesse feito sob encomenda para que ele demonstrasse a cultura como produto da
suprassunção (Auf hebung) da honestidade estéril e a dissimulação sem limites. Nada
estranha que Hegel fale expressamente em Diderot apenas de passagem (cf. Hegel,
op. cit, 57-8). Sem falar no nome do sobrinho, a passagem apenas começara quan-
do escreve que a maior verdade do discurso esteve em ter tido “o descaramento de
enunciar (que a) impostura é a maior verdade” (idem, 57) – pois esta afirma o negativo
da consciência-de-si.
O que será acrescentado pode ser tomado como um confronto da interpretação
de Trilling? Não, desde logo por ser evidente que Hegel lê Le Neveu de Rameau como
o material feito para a constatação do espírito como a conjunção de opostos, a sub-
sunção dos extremos pelo meio-termo. Portanto que só assim sua leitura seria expli-
cável. Por certo, será impossível saber qual a intenção de Diderot em apresentar a voz
da honestidade superficial como sendo a sua, a voz do Moi. Alguém dirá: mas ainda
há alguma dúvida? Há mais do que dúvida: não se esqueça que, hábil romancista,
Diderot sabe se emprestar a si uma honestidade que chegava às raias da mediocri-
dade, ao mesmo tempo que doava seu interlocutor, o sobrinho de Rameau, de uma
inteligência estonteante; Coube ao filósofo entendê-lo como expressão de valores
vindos da nobreza e que foram aburguesados (Trilling, L.: op. cit., 55), contraposta
ao indivíduo que tem a lucidez de perceber a própria canalhice. Para ele, então, o ro-
mance expõe dois focos de valores dissemelhantes, cuja função seria esclarecida por
seu método. Trilling acata a leitura e acompanha a qualidade do capítulo hegeliano,
como se não houvesse o que mais dizer.
101
De minha parte, me pergunto: até que ponto Le Neveu de Rameau é passível de ser
lido como A Fenomenologia pretende. Consideremos concretamente uma passagem.
Em um momento de sua incessante discussão, o Moi mantém seu caráter de hones-
tidade e sinceridade ao declarar: “Pensemos no bem de nossa espécie. Se não somos
bastante generosos, perdoemos ao menos a natureza por haver sido mais sábia do
que nós” (op. cit., 201). A que o sobrinho contrapõe: “Mas se a natureza fosse tão
poderosa quanto sábia, por que não os teria feito bons como os fez grandes?” A con-
testação do Moi perde por um instante a opacidade do apenas honesto para anotar:
“Não vê (...) que se tudo aqui embaixo fosse excelente não haveria nada excelente?”. O
sobrinho está de acordo e acrescenta: “O importante é que o senhor e eu sejamos, e
que sejamos o senhor e eu” (continuação de 201). Excepcionalmente, o Moi Abandona
o conforto de sua postura usual e antecipa o acordo com o Kant da necessidade, no
entanto convertido na importância decisiva dos átomos individualizados.
Em suma, tanto Hegel quanto Trilling julgam que a ficção, presente seja no cur-
so da sociedade, seja na ordem discursivo-ficcional, é uma entidade una, o que lhes
permite julgar a ficcionalidade do romance do mesmo modo como a julgaram no curso
da sociedade. Por isso ambos se consideram no direito de sujeitar o ficcional a seus
propósitos. Cabe então perguntar? Por que isso seria impróprio? E respondo: porque
na ficção literária o autor manipula o material que compreende ser-lhe transmitido
pela sociedade, sem que tenha a pretensão de ser fiel a ela. A ficção literária capta as
molduras que, para uma sociedade, formam a sua realidade e joga com elas. Mas
não escuto que me contestam? Não se tem aqui partido do suposto que o sobrinho
de Rameau apreendeu a realidade verdadeira da sociedade francesa – mais precisa-
mente, do período em que viveu? Sim, por certo, assim o afirmei e o repito. Não se
esqueça do que se assinalou no início deste ensaio com Koselleck: em um de seus
polos, a escrita da história trabalha – mesmo sem o seu propósito ou até contra ele
– com um filão ficcional. O engenho ficcional de Diderot o torna capaz de intuir o
verdadeiro perfil da sociedade em que viveu, a extrema dominância da insinceridade
inserida nos intercursos sociais. Mas, se assim concordamos, por que o filósofo e o
historiador não teriam o direito de ler na ficção o que lhes parecesse correto? Sem
que possa, por questão de tempo, desenvolver devidamente a resposta, recorremos
ao que Wolfgang Iser chamou de os vazios do tempo ficcional. Recorro apenas ao mí-
nimo para compreendê-los. Em princípio, os vazios não se destacam em uma leitura
linear, ou seja, horizontal, porque resultam da exploração da verticalidade contida
102
nos signos. Texto algum, exceto os estrepitosamente horizontais – por exemplo, a
troca de palavras quando da compra de uma passagem de trem ou de ônibus – deixa
de ter algum vazio. Contudo a leitura do texto ficcional será grosseira se se limitar a
glosar o que já foi dito em sua horizontalidade. Por isso, Iser acrescenta que o texto
ficcional não está completo antes que o leitor intervenha. É ao leitor que caberá con-
cretizar parte dos vazios contidos na composição que o autor realizou. A produção
adequada da leitura supõe a interação do que o autor formulou com a exploração de
vazios realizada pelo leitor. Quando pois contestamos a leitura realizada por Hegel e
endossada por Trilling é porque, em vez daquela combinação, privilegiaram “vazios”
por eles mesmos fabricados.
No caso de Hegel é fácil compreendê-lo: seu método dialético impunha a leitura
das intervenções dos personagens dialogantes como pistas a serem completadas na
constituição da Cultura. O que vale dizer, o Moi, no romance dialógico de Diderot, ha-
via de exprimir os valores que tinham de ser do próprio Diderot, e a inteligência agu-
da do Lui, tinha de ser efetivamente do sobrinho de Diderot. No caso de Trilling, a
suposição era mais ampla: ele precisamente de dar um peso igual às vozes contrapos-
tas para sustentar o desdobramento de seu ensaio, até, inclusive, o penúltimo capítulo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Diderot, D.: Le Neveu de Rameau ( ), in Oeuvres, pref., notas, bibliogr. por André Billy, Paris,
Bibliothèque de la Pléiade, 1965, trad. cit.de Antônio Bulhões e Miécio Tati: Obras romanes-
cas, II, São Paulo, Difusão europeia do livro, 1962
Hegel, G. W. F.: Phänomenologie des Geistes (1807), trad. de Paulo Menezes: Fenomenologia do
espírito, II, Petrópolis, Vozes
Koselleck, R.: “Fiktion und geschichtliche Wirklichkeit” (1976), republic. em Vom Sinn
und Unsinn der Geschichte. Aufsätze und Vortrage aus vier Jahrzehnten, Frankfurt am Main,
Suhrkamp Verlag, 2010, trad. cit, em Uma latente filosofia do tempo, São Paulo, Unesp, 2021
Marquard, O.: Aesthetica und Anaesthetica.Philosophische Überlegungen (1989), Paderborn,
Munique, Viena, Zurique, trad. cit.: Estética e anestética, Goiânia, 2022
103
Paulo: Primeira carta aos coríntios, ed. cit: A Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, nova
edição revista, 2000
Trilling, L.: Sincerity and authenticity (1971), trad. cit.de Hugo Langone: Sinceridade e autenti-
cidade. A Vida em sociedade e a afirmação do eu, Rio de Janeiro, É realizações editora, 2014
Wellek, R.: “The Fall of literary history”, in Poetik und Hermeneutik, vol. V: Geschichte –
Ereignis und Erzählung, organ. de R. Koselleck e W.- D. Stempel, Wilhelm-Fink Verlag,
Munique, 1973
104
TEORIA DA HISTÓRIA ENTRE LITERATURA,
MITO E MEMÓRIA121
FRANCINE IEGELSKI122
121 Artigo escrito no âmbito do projeto “Experiência histórica, ficção e verdade na literatura latino-americana
(1940-1960)”, financiado pelo programa Jovem Cientista do Nosso Estado, da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro. Processo E-26/202.828/2019.
122 É professora de Teoria e Filosofia da História da Universidade Federal Fluminense. É autora, entre outras
publicações, do livro Astronomia das constelações humanas. Reflexões sobre o pensamento de Claude Lévi-S-
trauss e a história. Integra o laboratório Observatório do Tempo presente, da UFF. [email protected]
105
Esse ensaio parte de minhas experiências de leitura do romance Dois irmãos
(2000), de Milton Hatoum, que problematiza ideias sobre a história e os fenômenos
humanos num contexto marcado pela ditadura militar no Brasil (1964-1985). Aliás, a
história da própria República brasileira já nasce em meio a diversas controvérsias e
acordos entre as elites. Por diversas vezes, Hatoum mencionou o impacto que a sua
leitura do romance de Machado de Assis, Esaú e Jacó, publicado em 1904, teve para
a escrita de Dois irmãos. Esaú e Jacó, por sua vez, fora escrito no contexto político da
passagem do Império para a República. No livro que faz referência à história bíblica,
Machado de Assis conta as desavenças dos irmãos gêmeos Pedro e Paulo. O primeiro
assume a defesa da Monarquia, enquanto Paulo se torna um ardoroso militante da
República. Entretanto, embora eles mantenham uma forte inimizade até o fim de
suas vidas, a política é um ponto que os une; pois, na narrativa irônica de Machado
de Assis, as perspectivas dos irmãos gêmeos sobre o país não eram tão inconciliáveis
assim, a transição da Monarquia para a República não trouxe profundas transfor-
mações na vida brasileira, a política continuou a ser um assunto das elites. Ademais,
tinham eles desacordo em relação a um acordo fundamental: 1888. Diz o narrador
de Esaú e Jacó: “A diferença única entre eles [Pedro e Paulo] dizia respeito à signifi-
cação da reforma [emancipação dos escravos], que para Pedro era um ato de justiça,
e para Paulo era o início da revolução”. Como analisou José Murilo de Carvalho em
Os Bestializados, a implantação da República resultou na vitória do ideário liberal oli-
gárquico. Assim, desde a sua origem, a República brasileira se estruturou a partir da
exclusão da maioria da população do país dos espaços de poder, especialmente aquela
que foi submetida ao regime escravista.
O livro de Hatoum também encena com profundidade encontros e desencon-
tros culturais, uma vez que conta a história de personagens imigrantes árabes em
Manaus. O próprio Hatoum é um descendente de imigrantes libaneses que vieram
para o Brasil em meados do século XIX e início do XX. Esse ponto é um índice para
se entender melhor as estratégias de comunicação de um escritor que se vale das
ambiguidades de um pertencimento duplo (ser árabe e brasileiro) para compor as
multiplicidades de sentidos dos seus romances. Em Dois irmãos, a Amazônia aparece
por meio de personagens e pela própria trama do romance que retoma um antigo
mito ameríndio. Hatoum realiza um mergulho particular no universo da linguagem
para, a partir daí, desafiar a própria realidade em que vive.
106
ENTRE HISTÓRIA E MITO
107
aqueles acontecimentos medonhos dos anos 1960 e 1970. Para poder reinventar o
passado pela memória era necessário um distanciamento. Em vez de ficção, alegou
então que suas experiências traumáticas da época da ditadura ganhavam mais a for-
ma de crônicas. Por inúmeras vezes, Hatoum afirmou que a memória é a principal
matéria de sua ficção.
“...El olvido es una de las formas de la memoria”: com essa referência a Jorge
Luis Borges no início de seu ensaio dos anos 1990, Hatoum abre uma possibilidade
interessante de interpretação do que ele mesmo escrevera sobre sua obra. A alegada
dificuldade de escrever uma ficção que levasse em conta as experiências da ditadura
militar, por sua presença não-distanciada, talvez indique um caminho para entender,
como é apontado no ensaio, a escolha por uma narrativa que tematiza um tempo e
um lugar já perdidos e irrecuperáveis e que é também uma remissão às experiências
do próprio autor quando morou em Manaus, na infância. Os primeiros livros de
Hatoum ficaram conhecidos pelo modo original como o autor transpôs para a litera-
tura, pelo modo como ele reinventou na ficção, a vida amazônica. A distância, para
Hatoum, possibilitaria a diminuição dos impactos do presente e uma relação mais
criativa e emocionada com a memória. A distância entre o momento da escrita e o
da época narrada, ou a distância de algo que outrora fora familiar, traz, para o autor,
a ultrapassagem das fronteiras familiares e dos limites que poderiam fazer de seus
primeiros romances, inclusive de Dois irmãos, uma ficção que abordasse somente as
particularidades regionais do Amazonas.
Dois irmãos conta a história dos gêmeos rivais Yaqub e Omar, filhos de uma fa-
mília de imigrantes árabes de Manaus. Desde a primeira vez que li o livro, notei que
um problema muito debatido na antropologia havia ganhado ali densas significações.
Este problema diz respeito à interpretação de um amplo conjunto de mitos amerín-
dios que tem como enredo justamente as aventuras e desventuras de irmãos gêmeos.
O tema da “impossível gemealidade”, expressão usada nas ciências humanas para
abordar o assunto, foi estudado notadamente pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss
no livro História de lince, publicado em 1991, no contexto das comemorações dos 500
anos do “Descobrimento” da América, em ele que ressaltou a violência e a devastação
sofridas pelos povos indígenas no encontro com os Brancos. Lévi-Strauss colocou no
centro de sua investigação o famoso mito tupinambá dos falsos gêmeos, registrado
pelo viajante francês André Thevet no século XVI. Os antigos Tupinambá perten-
ciam à grande família tupi-guarani e viveram em quase toda a costa brasileira no
108
momento do Descobrimento. A prática de canibalismo tupinambá ganhou grande
destaque na pena de religiosos e viajantes do século XVI, como André Thevet, José
de Anchieta, Gabriel Soares de Souza, Jean de Léry, Hans Staden, Pero de Magalhães
Gândavo, entre outros. A versão de Thevet tem fortes conexões com mitos colhidos
na América do Norte cerca de trezentos ou quatrocentos anos depois, os chamados
mitos da história de lince. Lévi-Strauss ressaltou a grande difusão dos mitos da his-
tória de lince nas Américas, desde o Brasil e o Peru, passando pela América do Norte,
em diferentes registros dos séculos XVI, XVII, XIX e XX.
O mito tupinambá dos falsos gêmeos foi colhido por Thevet entre 1550 e 1555 e
publicado no Rio de Janeiro em seu livro Cosmografia universal, em 1575. Vou resumir
muito sucintamente uma pequena passagem desse mito (este é um fragmento, não
todo o mito registrado) que também foi estudado pelo antropólogo Alfred Métraux
nos anos 1920, em seu livro A religião dos Tupinambá. Entre os Tupinambá, contava-se
a história de uma mulher, esposa legítima de Maíra-ata (o deus), que foi enganada e
seduzida por um indivíduo mais pobre, o Gambá. Ela já estava grávida de Maíra-ata
e, depois da relação com o Gambá, deu à luz a gêmeos. Os irmãos eram filhos de pais
diferentes (por isso eram falsos gêmeos), um era filho de Maíra-ata, o outro era filho
de Gambá. Os gêmeos tinham características antitéticas, um era corajoso, o outro
covarde; e provocavam diferentes tipos de acontecimentos para a comunidade, um
trazia o bem, o outro ocasionava desgraças. Os falsos gêmeos eram amigos e partici-
param de vários desafios juntos para provar serem filhos de Maíra-ata.
Os mitos que contam as sagas de gêmeos não são exclusivos das populações indí-
genas que vivem nas Américas; mas, para Lévi-Strauss, entre as populações do Novo
Mundo, eles são uma espécie de manifestação das características específicas do pen-
samento ameríndio, a saber, o seu dualismo em desequilíbrio – que não deve ser con-
fundido com a natureza binária do pensamento humano – e a abertura para o outro.
Nas mitologias americanas, como é o caso deste mito tupinambá, o que movimenta a
história é justamente a desigualdade entre os falsos gêmeos. O pensamento amerín-
dio se amolda às desigualdades sem a intenção de alterá-las, conferindo um valor ne-
gativo para a simetria, preferindo o desequilíbrio ao equilíbrio. Lévi-Strauss ponde-
rou que, se os europeus tivessem reagido como os ameríndios ao Descobrimento – se,
em vez de se manterem “ensimesmados”, eles tivessem se aberto para a diferença –,
a história da humanidade teria sido diferente, o saldo deste acontecimento provavel-
mente teria sido menos catastrófico, a começar para as próprias populações indígenas.
109
As diferentes maneiras de europeus e indígenas reagirem ao impacto da dife-
rença tiveram desdobramentos no modo como ambos enfrentaram o evento do
Descobrimento. Não é novidade dizer que os europeus que chegaram nas terras do
Novo Mundo demoraram a enxergar naquele acontecimento algo de fato inédito.
Eles, antes, viam nas gentes e nas paisagens americanas a confirmação dos relatos
dos Antigos sobre mundos, seres e lugares fantásticos; já os Astecas e os Incas, no
México e no Peru, não ofereceram resistência à chegada dos invasores, em sua mi-
tologia havia lugar para os Brancos, havia inclusive o prenúncio deste advento. Há
o célebre exemplo do deus tolteca Quetzalcoatl que, integrado pela cultura asteca,
anunciou que viriam pelo mar seres parecidos com ele, de pele branca, grandes e
com barba. Ao contrário dos europeus, os indígenas, desde o princípio, receberam o
estrangeiro como sendo o “outro”, assimilaram a diferença enquanto diferença.
DOIS IRMÃOS123
123 A partir do problema que estabeleci nesse texto, apresentei um projeto de Iniciação Científica intitulado
“História, mito e memória. Um estudo sobre o romance Dois irmãos, de Milton Hatoum (2000)”, no qual orien-
tei por dois anos Fabrício Lucas Sampaio Moreira Almeida com bolsa do CNPq e a quem agradeço pelo frutuoso
diálogo dos últimos anos.
110
para o Líbano. A cicatriz feita por Omar marcou para sempre o rosto de Yaqub – “cara
de lacrau”, “bochecha de foice”, eram alguns dos apelidos que ganhou –, não deixan-
do dúvidas de quem era um, quem era o outro. Mesmo que Zana, a mãe dos irmãos,
repetisse que os dois eram iguais, eram gêmeos, ela mesma devotou, durante toda
a vida, uma enorme predileção por Omar. Halim, marido de Zana e pai dos gêmeos,
tinha ciúmes do amor que existia entre o Caçula e a mãe, tinha ódio de Omar. Outro
problema antropológico, o do incesto, está presente em toda a narrativa, ele aparece
também nas insinuações de Nael sobre as relações entre Rânia, a irmã de Omar e
Yaqub, e os dois rivais. Mimado pela mãe, Omar se tornou adepto de uma vida sem
responsabilidades e a única esperança de Halim ficou sendo Yaqub, que também lhe
trouxe muito desgosto. Na verdade, desde o nascimento, Halim lamentou a aparição
dos gêmeos, pois entendia que eles atrapalhavam sua vida sexual com a esposa.
No início da história, Omar era o mais forte, o mais audaz, o notívago de várias
mulheres e amores. Yaqub era tímido, rude, com pendor para o cálculo. Yaqub renun-
ciou à sua juventude para estudar, ficava trancado no quarto, solitário, pois queria sair
de Manaus, queria conquistar o mundo. A narrativa se encaminha de forma a inver-
ter a posição inicial dos dois gêmeos: na medida em que a história avança, a força de
Omar passa a ser decadência, foi acorrentado pelo pai qual um cachorro no cofre, vi-
rou bicho, nu, catando as frutas podres no quintal; já o silêncio de Yaqub se tornou êxi-
to, progresso na nova vida em São Paulo, ele se casou com Lívia, uma vitória sobre o
Caçula. Mas Yaqub nunca esqueceu a humilhação sofrida na adolescência, tornou-se
um homem ressentido e cruel, um lambe-botas da ditadura, ganhando prestígio e po-
der com a ascensão dos militares nos anos 1960. Já Omar, cheio de ímpetos e mimos,
tornou-se um ardoroso crítico à ditadura militar. As atitudes desmedidas de Omar
não foram menos danosas que os projetos ambiciosos de Yaqub. Tanto que, para se
vingar do irmão, Yaqub se beneficiou da relação que tinha com os militares. Omar
recebeu uma condenação política, foi preso e torturado por mais de dois anos pela
relação com Laval, o professor-poeta com ideias socialistas que foi preso em praça
pública em Manaus e assassinado pelos militares nos primeiros dias de abril de 1964.
Domingas, a empregada da família dos gêmeos e mãe do narrador Nael, dizia
que os dois irmãos nasceram perdidos. Habitante da floresta, Domingas, quando
criança, depois de viver em um orfanato de freiras, foi entregue a Zana e Halim
para ser criada. Como acontecia com muitas indígenas em Manaus, cresceu como a
empregada da casa da família. Em 1964, Nael fez 18 anos. Pela narrativa, o narrador
111
busca compreender seu passado, quer saber sobre sua origem. Nael queria descobrir
quem dos dois gêmeos era seu pai, se Yaqub ou Omar. É pelas memórias de Halim,
Domingas e Zana que Nael foi encontrando os fios para tecer a história daquela famí-
lia de imigrantes árabes em Manaus que, de uma maneira enviesada, era a sua pró-
pria história. Todos estes personagens, cujas memórias foram fontes para as histórias
de Nael, estavam mortos no momento em que ele escrevia o livro. A casa da família
em que sua mãe trabalhou a vida toda vai se tornando ruínas. Por isso Nael escrevia,
para falar de um tempo que morria também dentro dele. Em uma confissão ao filho,
Domingas contou a violência que sofreu por parte de Omar, que a pegou à força num
dia em que voltava bêbado de alguma noitada.
Nael cresceu entre dois mundos, dividido entre a casa dos patrões e o cheiro
de baratas do quartinho da empregada. Nael, assim como Yaqub, queria fugir de
Manaus. Sua relação com Omar sempre fora conflituosa. No início, tinha medo de
ser filho de Omar e, depois, decepciona-se com Yaqub. A confissão de Domingas
deixava lugar para a dúvida sobre quem era o pai de Nael... Vale dizer que Domingas
também gostava de Omar, gostava do contraste, das diferenças entre os dois irmãos.
Às vezes Nael pensava ser filho de Yaqub, às vezes temia ser filho de Omar, às vezes
era como se viesse dos dois, e, no final, era como se não viesse de ninguém. Como
sua mãe, não era filho de ninguém. Nael, no final do romance, escreveu com certa
amargura: “Hoje penso: sou e não sou filho de Yaqub, e talvez ele tenha compartilha-
do comigo essa dúvida. O que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos
realizaram: nenhum teve filhos. Alguns de nossos desejos só se cumprem no outro,
os pesadelos pertencem a nós mesmos”.
Por que, enfim, aproximar Dois irmãos do tema da impossível gemealidade, pre-
sente nos mitos ameríndios? O fio condutor do romance é a diferença entre Yaqub e
Omar: Hatoum explora justamente a impossível coexistência entre dois personagens
que eram fisicamente idênticos e tinham tudo para serem amigos, mas são inimigos
desde o princípio. Hatoum buscou, pelo trabalho com a linguagem, um efeito estético
entre dois termos (no caso, os dois irmãos) que permaneceram, em todo o romance,
em correlação e oposição. Penso que seja possível dizer que Hatoum incorporou em
sua história dos gêmeos rivais aspectos do pensamento ameríndio com a finalidade
de dar um efeito de realidade à ficção, de trazer mais complexidade e profundidade à
sua história. Os dois irmãos expressam, um em relação ao outro – por seus diferentes
temperamentos, desejos e posições políticas – uma disparidade, nunca conseguiram
112
encontrar um equilíbrio, um ponto que fosse possível apaziguar as diferenças. Em
outras palavras, o par Yaqub/Omar é um duplo que desdobra uma série de oposições e
histórias que não se resolvem na narrativa; eles são os irmãos assimétricos, inimigos
da nossa literatura.
Hatoum explorou a dúvida sobre quem era o pai do narrador Nael. No mito co-
lhido por Thevet, os falsos gêmeos rivais têm características antitéticas porque são
filhos do marido legítimo (Maíra-ata) e do trickster (o Gambá). Yaqub e Omar (“ver-
dadeiros” gêmeos rivais do romance de Hatoum) são filhos de um único pai, Halim;
Nael não tem pai e, ao mesmo tempo, vive a ambiguidade de poder ser filho dos dois
irmãos rivais. Se o par Yaqub/Omar pode ser inscrito do lado da vida mais confortá-
vel de uma família de imigrantes árabes que vive em Manaus, Domingas, a mãe de
Nael, está do lado dos explorados, dos habitantes arrancados da floresta. Apesar de
ter levado uma vida isolada, separada do ambiente em que nasceu, ela tentou manter
viva sua relação com a natureza e os animais, esculpia em madeira miniaturas de
bichos e os guardava, fazendo deles coleção. No mito tupinambá, os dois persona-
gens paternos (marido e gambá) dão origem a dois heróis (falsos gêmeos rivais). No
romance de Hatoum, um único personagem (Nael, o narrador) vive sob o signo de
uma origem paterna dupla: Yaqub/Omar (que são gêmeos “verdadeiros”). Nael era
também o nome do pai de Halim.
Apesar das substanciais divergências teóricas que importantes críticos literários e
filósofos tiveram sobre o gênero do romance, como Georg Lukács, Walter Benjamin
e Theodor Adorno, eles convergiram sobre o entendimento de que o romance mo-
derno somente é possível na era burguesa. O romance é compreendido como um gê-
nero literário que expõe as contradições e as transformações da sociedade capitalista.
Para Benjamin, uma das grandes diferenças entre o romance e a narrativa oral é que
tanto a escrita do romance quanto a sua leitura são atos solitários, diferentemente
das formas narrativas de tradição oral, como a lenda, o conto e o próprio mito, em
que as histórias contadas são uma espécie de execução coletiva, uma performance
que precisa do grupo. Lévi-Strauss sublinhou a incrível estabilidade do mito tupi-
nambá registrado por Thevet mais de quatro séculos depois, em versões colhidas por
etnógrafos já no século XX no Nordeste do Brasil e no Paraguai. Mas há casos, como
na América do Norte, em que a transformação do mito da história de lince leva à sua
morte, dando lugar a outras formas narrativas, como o romance, a lenda e a histó-
ria. É como se o romance de Hatoum fosse uma transformação do mito tupinambá
113
registrado por Thevet. Não há, em Dois irmãos, animais que falam nem humanos que
se transformam em animais ou animais que se transformam em humanos. Este é
um romance realista/naturalista, mas seu enredo, sua trama, parecem evocar, de ma-
neira metaforizada, uma forma de pensamento antiga e em plena atividade, presente
entre os moradores da Amazônia e em outras partes das duas Américas.
O romance Dois irmãos está entre a história e o mito. O par assimétrico Yaqub/
Omar permite que se estabeleça relações tanto com a história dos falsos gêmeos, fi-
lhos de Maíra-ata e de Gambá, quanto com o conflito entre as forças políticas opostas
do regime militar brasileiro, entre os seus defensores e opositores. Este romance nos
apresenta uma perspectiva original sobre a nossa relação com o passado e o presente.
Hatoum reinventou, pela imaginação e pela memória, o passado de sua própria ex-
periência – ele nasceu em Manaus e viveu, na juventude, o período da ditadura mili-
tar – para dar vida, na ficção, à história da família de Yaqub e Omar. Ambientada em
Manaus, a história de Hatoum ecoou antiquíssimas tradições narrativas anteriores
ao momento do surgimento do romance.
114
ou a anti propaganda do mercado e até mesmo o silêncio em relação a uma obra vai
delinear o modo como a lemos no presente e no futuro. Mas há um aspecto da relação
entre texto e contexto que tem sido muito pouco levado em conta nos estudos histó-
ricos. É o fato de os textos elaborarem com sua linguagem, e de modo original, uma
visão de conjunturas que também são históricas. Como certa vez disse em entrevista
Antonio Candido sobre as relações entre história e literatura, interessa também saber
como a carne de vaca virou croquete, ou seja, como o autor textualizou o contexto e
como o texto, no caso, a ficção, pode dizer coisas novas sobre diferentes contextos.
A verdade é que a história sempre esteve às voltas com a literatura. Entre os sé-
culos XVIII e XIX, houve importantes debates acerca das diferenças entre aqueles
se dedicaram a mostrar o que “realmente aconteceu” pela história, pelos fatos nus e
crus, e aqueles que se consagraram à ficção, às narrativas inventadas. É curioso notar
que esses debates sobre as movediças relações entre realidade e ficção dos séculos
XVIII e XIX e também, depois, aqueles que ressurgiram na segunda metade do sécu-
lo XX, costumam retomar a Poética, de Aristóteles, para afirmar a maior relevância da
poesia sobre a história, ou para contestar essa valorização. Para Aristóteles, a poesia,
por tratar do geral e do que poderia acontecer, tem um valor filosófico superior à his-
tória, uma vez que a história trataria do particular e somente daquilo que aconteceu.
Alguns historiadores, como Reinhart Koselleck, defendem que a própria formação da
noção de história como disciplina integrou história e poesia, pois a história teria se
aproveitado da verdade mais geral da poesia, assim como a poesia integrou cada vez
mais aspectos da particularidade histórica.
Contudo, nos finais do século XIX, a história precisou se desenlaçar da literatura
para se afirmar como um tipo de conhecimento sólido e confiável, detentora de um
método crítico que a integrava ao conjunto das outras ciências que também esta-
vam em pleno processo de formação. Como apontou Ricardo Benzaquen de Araújo, a
história moderna, surgida da crise dos modelos clássicos, pretendeu se colocar num
espaço de enunciação que estaria acima de qualquer controvérsia política ou moral
e o historiador foi se convertendo em uma autoridade. Isso ocorreu graças ao afinco
dos historiadores metódicos, como Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos e
dos historiadores ligados à revista dos Annales. Tanto os primeiros quanto os últimos
mantiveram um forte distanciamento da literatura, pois a história científica parecia
ficar em risco quando ela espreitava. Esse contexto perdurou até ao menos os anos
1960, momento da chamada Linguistic turn, a Virada Linguística, quando filósofos e
115
cientistas de todas as áreas, especialmente nos Estados Unidos, discutiram as rela-
ções entre linguagem e conhecimento. Na história, voltaram à baila temas como a
narrativa, a subjetividade do conhecimento histórico, ou a relação entre texto e con-
texto. Para lembrar um exemplo clássico das polêmicas advindas do período, cito o
livro Meta história, de Hayden White, em que o autor estudou os discursos históricos
e filosóficos do século XIX como formas escritas em prosa. Para ele, a meta-estrutura
dos textos de história tinha mais relação com a forma narrativa do que com os con-
ceitos teóricos explicitados por os seus autores.
Mesmo com todo o barulho acerca do debate sobre a dimensão realista do conhe-
cimento histórico oriundo da Virada linguística, nos anos 1980 não será exatamente
uma história que pensa os problemas relativos à linguagem que se colocará com a
configuração da nova história cultural. A história social das diferentes práticas cultu-
rais propôs investigar a materialidade dos processos culturais e, por conseguinte, os
espaços e os modos concretos de construção de mensagens e ideias, assim como os
seus mecanismos de distribuição, apropriação e assimilação. Essa história social das
práticas culturais opera, então, um distanciamento crítico da concepção de cultura
que vigorou nos anos 1960 e 1970, especialmente a que tinham os praticantes da his-
tória das mentalidades. As pesquisas se atentam para as relações entre as formas de
edição, os repertórios de textos e os seus públicos, dando espaço para se compreender
de que modo as relações de poder configuram a produção intelectual.
A história, como todas as ciências, se transforma o tempo todo. Os anos 1980 fi-
caram marcados, para alguns observadores, como a virada epistemológica da história,
momento em que ela se volta sobre si mesma, como interpretou François Hartog; e
também, como indicou Gérard Noiriel, esse contexto reflexivo está ligado à “crise de
identidade” da própria disciplina. Desde então, cresceram as preocupações, vindas
dos historiadores, sobre as incertezas e as mudanças na pesquisa e na reflexão histó-
rica. No século XXI, diferente da conjuntura da modernidade que afirmou a história
como o meio privilegiado de inteligibilidade dos fenômenos humanos, a história,
escreveu Temístocles Cézar, parece ter deixado de ter o monopólio sobre a explicação
do passado. A memória tem sido cada vez mais conclamada a mostrar a sua versão
da história, tem havido uma disputa sobre o significado do passado por diferentes
atores. Negacionismos de todo o tipo e o debate nas redes sociais sobre algum perío-
do da história do país, a exemplo da ditadura militar, seguem independentemente da
intervenção de um historiador. É verdade também que cada vez mais a comunidade
116
historiadora tem se colocado a tarefa de ação no debate público. A mobilização do
passado para fins políticos, a comemoração, a multiplicação de museus e os debates
sobre questões identitárias são marcas de nosso tempo.
A descrença na história tem relação com os contextos políticos, econômicos e
sociais de crise do capitalismo que foi potencializada enormemente com a pandemia
de COVID-19. Habitamos o tempo presente como quem habita ruínas, os escombros
de um mundo que já se foi e que ainda está aí. A história não pode passar incólume
a todo esse processo. Ela, a disciplina da história, está em período de mutação, como
se pode observar em diferentes campos de investigação dos historiadores, a exemplo
da história do tempo presente. Nesse sentido, menciono o livro História do Tempo
Presente. Mutações e ref lexões (FGV, 2022) que organizei em parceria com Angélica
Müller, e no qual discutimos os desafios que marcam a atividade do historiador hoje,
como os novos tipos de conteúdo, informações e desinformações, que circulam te-
nazmente nas plataformas e meios de comunicação digital; as perturbações climá-
ticas; as novas formas de temporalidade e cronologias; o papel social do historiador
em conjunturas políticas polarizadas e as contribuições originais da produção histo-
riográfica latino-americana para esse período que estamos vivendo.
Vemos, ao mesmo tempo, uma forte valorização da ficção na cultura em geral.
Ivan Jablonka notou esse fenômeno: tudo é romance. O romance está por todo o lu-
gar e de todas as maneiras, prolifera-se nas plataformas de streaming, nas séries de
TV, nas edições de livros digitais de autores independentes ou de grandes editoras,
passou a ser consumido de maneira massificada e não somente na forma de texto.
O próprio romance de Hatoum que aqui analisamos, Dois irmãos, ganhou uma bela
versão gráfica, em quadrinhos, feita em 2015 por Fábio Moon e Gabriel Bá. Também
foi adaptado para o audiovisual, em formato de minissérie na Rede Globo, dirigida
por Luiz Fernando Carvalho, em 2017.
Com os desafios atuais vividos pela disciplina da história e a proliferação do ro-
mance, surge a impressão de que opor a história à literatura nos permitiria salvaguardar
de alguma maneira uma ideia ou busca pela verdade que não esteja imersa no terreno
desestabilizador da ficção. Mas talvez, e esse é o meu ponto, algo que acho que vale
a pena pensar, o terreno desestabilizador da ficção nos ajude a refletir mais e melhor
sobre a história. Pensar a história com a ficção e pensar a ficção com a história. Menos
sobreposições de uma sobre a outra, mais imbricações de dois terrenos cujas bordas,
cujas fronteiras, sempre se mostraram historicamente muito cambiantes e maleáveis.
117
Acredito que o comentário aqui feito em relação ao romance de Hatoum seja um exem-
plo do que pode significar esse exercício de produção de um conhecimento histórico
em diálogo com a literatura. A interpretação de um romance leva em conta o modo
como diferentes contextos estão textualizados na ficção e como essa ficção permite
que vejamos de maneira inédita certos contextos. Esse tipo de reflexão se beneficia
do legado dos debates feitos pela crítica literária (por nomes como Walter Benjamin,
Antonio Candido, Erich Auerbach, Luiz Costa Lima, Emir Rodríguez Monegal e Davi
Arrigucci Jr. entre outros) e pela história intelectual (por nomes como François Hartog,
Carlos Altamirano, Dominick LaCapra, Elias Palti, Maria Elisa Noronha de Sá) ao longo
de todo o século XX e dessas primeiras décadas do século XXI.
Em 1986, o editorial da Revue de synthèse, então sob direção de Jean-Claude Perrot,
trouxe uma contribuição importante para a história intelectual. O texto visa articular
a reflexão histórica e a observação do presente e atualizar as evoluções de todas as
ciências, no espírito de síntese que marcou a ambição de seu fundador, Henri Berr. E
possível ler na nota editorial “Aos leitores”:
118
música de Paulinho da Viola, publicado na coletânea de ensaios Zigue-zague, em que
ele analisa as canções de Paulinho pelo tema da prudência e da tragédia para pensar
o destino humano. De outro, parece estar em sintonia com o que a quarta geração
dos Annales vai chamar, a partir de 1989, de “história social das diferentes práticas
culturais”. O conceito de práticas sociais diferenciadas remete à materialidade dos
processos culturais e, por conseguinte, aos espaços e aos modos concretos de cons-
trução de mensagens e ideias e dos mecanismos e figuras de sua distribuição, apro-
priação e assimilação.
Como sucede com todas as outras construções intelectuais, à literatura pertence
o “chão” histórico que engendrou suas ficções. Ademais, para se pensar o contexto
intelectual em que os escritores escrevem é útil, em geral, considerar suas corres-
pondências, manuscritos, cadernos de campo. Tudo depende, mais uma vez, do tipo
de questionário, do tipo de problema perseguido pelo historiador. Mas acontece que
ficção e história se encontram na literatura e não há como separar o “joio do trigo”,
uma vez que na literatura tudo é ficção e, por essa razão, a literatura é uma fonte de
reflexão privilegiada para a história. Ela, a literatura, nos permite pensar problemas
centrais da teoria da história, como o mito, a violência, a memória, o esquecimento,
a violência, o trauma, a morte e a realidade.
Vale a pena mencionar aqui também o fato de muitas vezes a literatura anteci-
par interpretações que a historiografia foi assumindo muito posteriormente. Em El
reino de este mundo (1949), por exemplo, Alejo Carpentier conta, pela ficção, a histó-
ria da Revolução Haitiana que deu lugar à instauração da Primeira República Negra
das Américas, ocorrida na transição do século XVIII para o século XIX, e que trouxe
a consequente expulsão dos franceses da ilha. A saga dos personagens históricos
Mackandal, herói revolucionário, e de Henri Christophe, cozinheiro, homem negro
que depois se torna algoz de seu próprio povo, passando a ser o rei do palácio de
Sans souci, é contada a partir de o ponto de vista do escravizado. Ou seja, Carpentier
recriou os acontecimentos extraordinários que entre 1750 e 1830, aproximadamente,
precederam e se seguiram à revolução haitiana.
O escritor cubano buscou romper com os padrões interpretativos, também do-
minantes na historiografia, de que a Revolução Haitiana era uma replicação cari-
benha da Revolução Francesa. Pode-se dizer que em grande medida ele conseguiu
operar essa mirada porque apresentou, já no primeiro capítulo do romance (“As ca-
beças de cera”), o olhar do escravo Ti Noel, personagem fictício, sobre a condição
119
da escravidão no Haiti. Ti Noel havia aprendido a olhar os colonizadores do mesmo
modo que seu amigo Mackandal o havia ensinado enquanto eles trabalhavam na
fazenda e nos moinhos de cana de Monsieur Lenormand de Mezy. Ti Noel sonhava
ver as cabeças dos senhores brancos servidas em grandes travessas à mesa, como
eram servidas as cabeças descoloridas dos bezerros; Ti Noel sonhava ser governado
por soberanos africanos, não por reis brancos covardes, donos de ridículas cabe-
leiras, incapazes de fazer qualquer coisa sem que um serviçal o auxiliasse. Ti Noel,
assim, parece mais próximo à interpretação de uma historiadora como Carolyn
Fick que, sobretudo nos anos 2000, passa a produzir trabalhos sobre a Revolução
no Haiti a partir de paradigmas de Liberdade e Igualdade não coincidentes com a
Revolução Francesa, do que à explicação feita por Cyril Lionel Robert James em seu
livro Os jacobinos negros, de 1938.
A literatura latino-americana, seja a de meados do século XX, que muitas vezes
pensa o real pelo seu caráter insólito e fantástico, como o fez Carpentier, seja a do sé-
culo XXI, que se instaura no realismo e recorre deliberadamente à memória, como o
fez Hatoum, são potentes fontes de reflexão sobre o nosso passado e as nossas expe-
riências políticas traumáticas. Esses livros de literatura engendram novas percepções
não somente sobre o que foi o nosso passado, mas também como se configura nosso
presente e como podemos ver uma ponta do futuro.
***
120
Deus acima de todos”, aparece como uma remissão direta à ditadura militar. Hoje é
possível perceber que os militares foram a eminência parda do golpe do impeach-
ment, de 2016, perpetrado contra a presidente Dilma Rousseff, mesmo partido de
Lula (PT), reeleita para um segundo mandato.
Os militares voltaram ao centro da vida política nacional. Mas há bem pouco
tempo atrás, há menos de dez anos, com a aparente consolidação do processo de
redemocratização, muitos acharam que eles tinham voltado aos quartéis. A história
mostrou que não foi bem assim. Ao estudarmos a história da República, veremos
que o golpe militar de 1964 foi um processo político que se institucionalizou na vida
do país e que, até o momento, segue presente inclusive no interior de nossa atual
Constituição, pois, apesar de avanços, graças a emendas populares que garantiram
importantes conquistas sociais, a Constituição de 1988 manteve intocado o legado
autoritário da ditadura. O artigo 142 da Constituição manteve a tutela militar sobre
o Estado. O objetivo central das corporações militares, segundo o texto oficial, des-
tina-se “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa
de qualquer destes, da lei e da ordem”. Os militares também mantiveram o seu foro
exclusivo, a Justiça Militar, e a Polícia no Brasil seguiu sendo militarizada.
Esses são elementos relevantes para se compreender a razão pela qual parte de
apoiadores de Bolsonaro se sente legitimada para defender nas ruas a volta à dita-
dura, a intervenção militar e o fechamento do Congresso. Alguns chegam a negar a
existência de uma ditadura nos anos 1960. É verdade que esses grupos não são uma
massa expressiva, mas são um corpo organizado e persistente que contava com a
simpatia desse governo. A ditadura militar é uma ferida aberta em nossa história.
Há, por sua vez, forças, muitas vezes subterrâneas, populares, de resistência a essa
aventura autoritária que Bolsonaro capitaneia e busca desenvolver em seu proveito.
Em junho de 2022, o indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom
Phillips foram assassinados quando faziam um trabalho em defesa das comunidades
indígenas na Amazônia e em combate à pesca ilegal. Eles foram mortos enquanto fa-
ziam a travessia de barco pela região do Vale do Javari, em mais um capítulo trágico de
nossa história do tempo presente. Esse acontecimento foi tratado com sarcasmo pelo
então presidente Bolsonaro que definiu a viagem dos dois como uma “aventura não
recomendada”. Pereira foi um reconhecido estudioso e defensor de grupos indígenas
isolados e de recente contato, e estava licenciado desde 2020 da Fundação Nacional do
Índio, instituição na qual ingressou por concurso público em 2010. A Amazônia que
121
Bruno Pereira tão bem conhecida, com todas as suas contradições, violências e rique-
zas, centro importante e pulsante em que vivem diferentes populações ameríndias, foi
ficcionalizada por Hatoum. Seus livros, em especial Relato de um Certo Oriente e Dois
irmãos, estão saturados de aspectos da cultura indígena, vide o mito dos falsos gêmeos
rivais que analisei aqui, e das condições adversas da deterioração das cidades e flo-
restas nesta região. Esses textos de ficção traduzem, pela linguagem, a experiência do
passado e atualizam, assim, em diferentes versões, o presente. A literatura tem esse
poder de modificar a compreensão que temos do presente e do passado. Nas palavras
de Octavio Paz, ela decifra “o universo somente para cifrá-lo de novo”.
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124
PRIMO LEVI E A TAREFA DO HISTORIADOR
Os afogados e os sobreviventes, obra publicada por Primo Levi pela primeira vez em
1986, é um livro que me acompanha há algum tempo. Todavia, foi apenas mais re-
centemente, quando o relia para a minha pesquisa, que prestei atenção na seguinte
passagem, situada logo no seu início:
124 Este texto é resultado de uma pesquisa financiada pelo CNPq com uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa.
125 Usarei as edições brasileiras da obra de Levi sempre que possível. Faço eu mesmo as traduções dos originais
em italiano somente quando estes não tiveram ainda tradução feita (ou conhecida por mim) em língua portuguesa.
125
para esta última pergunta, pois não demorei a perceber, no próprio texto de Os afo-
gados e os sobreviventes, que “os melhores historiadores do Lager” eram Hermann
Langbein, Eugen Kogon e Hans Marsalek, presos respectivamente em Auschwitz,
Buchenwald e Mauthausen (LEVI, 1990, p. 23). Mas foi bem menos simples tentar
entender como poderia haver, para Levi, uma perspectiva mais adequada sobre o ex-
termínio quando ele mesmo menciona, em outros momentos do livro, a dificuldade
e o limite de se falar sobre o Lager. Um exemplo dentre alguns126: “À parte a piedade
e a indignação que suscitam, elas [as memórias dos sobreviventes] devem ser lidas
com olho crítico. Para um conhecimento nos Lager, os Lager mesmo nem sempre
eram um bom observatório” (LEVI, 1990, p. 4, grifo meu). Ora, mas esses “melhores
historiadores” também eram sobreviventes. Como seria o seu “observatório”?
Meu primeiro passo, portanto, foi o de tentar perceber as características da his-
toriografia de Langbein, Kogon e Marsalek, mais precisamente sobre como poderia
definir o seu antifascismo e como seria essa escrita humildade de cronista. Acabei,
porém, alterando o rumo da minha investigação ao perceber nas páginas de Os afo-
gados e os sobreviventes outras passagens referentes à história. Reproduzo-as abaixo:
a.“O gueto de Varsóvia, após a famosa insurreição da primavera de 1943, foi des-
truído, mas o esforço sobre-humano de alguns combatentes-historiadores (his-
toriadores de si mesmo!), fez com que, entre escombros de muitos metros de
espessura (...) outros historiadores reencontrassem o testemunho de como, dia
após dia, se vivia e se morria naquele gueto” (LEVI, 1990, p. 2).
b.“(...) numa distância dos anos, hoje se pode bem afirmar que a história dos Lager
foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam
seu fundo” (LEVI, 1990, p. 5)
c.“A história popular, e também a história tal como é ensinada tradicionalmente nas
escolas, se ressentem dessa tendência maniqueísta que evita os meios-tons e a
complexidade” (LEVI, 1990, p. 17).
126 Outros momentos nos quais Levi fala da dificuldade de se representar a experiência no Lager são os seguin-
tes: “(...) não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas (...) Nós, sobreviventes, somos uma minoria
anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem
o fez (...) não voltou para contar, ou voltou mudo” (LEVI, 1990, p. 47). Linhas depois, ele volta ao argumento: “a de-
molição levada a cabo, a obra consumada, ninguém a narrou, assim como ninguém jamais voltou para contar sua
morte. Os que submergiram, ainda que tivessem papel e tinta, não teriam testemunhado, porque sua morte come-
çara antes da morte corporal” (LEVI, 1990, p. 48) e arremata: “Falamos nós em lugar deles, por delegação” (idem).
126
d. “(...) faz parte de uma nossa dificuldade ou incapacidade para perceber as expe-
riências alheias (...). Tendemos a assimilá-las àquelas mais “habituais”, como se
a fome de Auschwitz fosse a de quem perdeu uma refeição, ou como se a fuga de
Treblinka fosse assimilável à fuga de um cárcere comum. É tarefa do historiador
sanar a discrepância, que é tão mais ampla quanto mais tempo houver transcor-
rido desde os eventos estudados” (LEVI, 1990, p. 96).
127 Para comentários sobre a biblioteca de Primo Levi sobre a Shoah, consultar GORDON (2012, pos. 1495-1501).
128 Poucos meses antes de sua morte, ele pronunciou-se sobre a Historikerstreit, a “querela dos historiadores”
ocorrida na Alemanha, tendo, de um lado, Ernst Nolte e Andreas Hillgruber, e, de outro, Jürgen Habermas,
entre outros. O artigo traz um título metafórico (“Buraco negro de Auschwitz”), e foi publicado em janeiro de
1987 no “La Stampa”, principal jornal de Turim, cidade onde Levi nasceu e morou por quase toda a sua vida. Não
pretendo aqui entrar nos detalhes da sua argumentação, e gostaria apenas de ressaltar a firmeza do posiciona-
mento de Levi contra as teses revisionistas de Nolte e Hillgruber. Sem deixar de ser claramente crítico contra
a política de Stalin e da URSS, Levi estabelece distinções claras entre a política de extermínio da Alemanha na-
zista e o sistema dos Gulags, e conclui que as atrocidades cometidas pelo regime de Hitler “(...) não encontram
equivalente nos tempos modernos” (LEVI, 2016a, p. 158). É clara a perspectiva de Levi, na qual o paralelismo
entre os regimes de Hitler e de Stalin deve ser feito sim, mas para especificar e apontar para a singularidade por
ineditismo da política nazista de extermínio
127
Hermann Langbein), além de uma brevíssima recomendação de leitura (Il terribile
segreto, de Walter Laqueur). Não devem também ser dispensados os comentários de
Levi sobre produções audiovisuais de sucesso, como a minissérie Holocausto. A par-
tir de alguns desses textos, mais precisamente os prefácios aos livros de Poliakov e
Langbein e o comentário sobre a minissérie, tentarei ver se é possível responder à
questão sobre a “tarefa do historiador”.
Minha intenção não vai além de um experimento, e sustenta-se sobre um pressu-
posto: o de que as vítimas, como muito bem disse Saul Friedländer, devem ser vistas
como sujeitos129, e não como massa anônima passível de ser entendida como “objeto”.
Ao afirmá-lo, Friedländer provavelmente pensava nos relatos testemunhais dos anos
de perseguição e extermínio, e como esse tipo de relato “pode desencadear nossa pró-
pria reação emocional e abalar nossa concepção anterior e bem protegida de aconte-
cimentos históricos extremos” (FRIEDLÄNDER, 2012, p. 28). Pedindo a devida vênia,
gostaria de ampliar um pouco o alcance dessa voz, e ver o que ela diz também sobre as
representações em geral e, mais precisamente, sobre o discurso historiográfico. Além
de desencadearem inevitáveis emoções, sobreviventes também estimulam reflexões:
“como se negociar relações transferenciais com o objeto de estudo (...)?”, propõe com
precisão Dominick LaCapra (1992, p. 110) a propósito da representação do Holocausto.
Eu me pergunto se uma forma de estabelecer essa negociação não seria fazer do objeto
do estudo um sujeito do conhecimento não só da própria experiência, mas um sujeito
capaz de comentar a historiografia que faz dessa experiência um objeto.
Talvez não haja muito material de sobreviventes falando de obras historiográfi-
cas, mas meu objetivo aqui não é identificar padrões ou comparar perspectivas. Por
ora, me contento com Primo Levi, até mesmo porque ele não foi somente um sofis-
ticado e sensível testemunho, mas também um homem interessado na produção de
conhecimento, tendo demonstrado, ao longo de sua vida, atividade intelectual atra-
vés de vários outros textos esparsos, nos quais expressou, por exemplo, posturas críti-
cas sobre vários assuntos, inclusive, na relação da sociedade com o conhecimento130.
129 Diz Friedländer em seu depoimento para Stéphane Bou: “Os judeus não tinham meios nem poder para in-
fluenciar o seu destino final. É verdade. Mas reagiam, apesar de tudo. Tentavam compreender o seu isolamento
na Europa que os exterminava nesse momento (...) As vítimas não eram uma massa informe, mas participantes,
que, como é óbvio, não podiam alterar ´as regras do jogo´, mas que podiam tentar interpretá-lo” (FRIEDLÄN-
DER, 2017, p. 124).
130 Um bom exemplo desse tipo de intervenção de Primo Levi se encontra em “Os anos do não entender”
128
Não vejo sentido, portanto, em deixar de lado esse material apenas porque ele é
quantitativamente pequeno, mesmo porque, se há bons estudos sobre o conceito
de história em Primo Levi (WOOLF, 1998; BIDUSSA, 2000; ÅHR, 2011; LEVI,F. e
SCARPA, 2015), até onde sei, não se foi abordado de maneira mais frontal a sua
análise específica de obras historiográficas.
Gostaria, portanto, de começar a abordar esse material a partir de um artigo de
maio de 1979, “As imagens da minissérie Holocausto”131 . Como está claro, não é um
texto sobre historiografia, mas, ainda assim, é importante, pois nele Levi mostra
precisamente o obstáculo a ser enfrentado pela “tarefa do historiador”. Lendo-o,
verificamos como é ponderado o juízo de Levi sobre os produtores de Holocausto,
série de imenso sucesso: “é visível neles a preocupação de não cair no estereótipo,
é a busca de conferir individualidade aos personagens. No entanto, é insuficiente
a espessura histórica da trama (...)” (LEVI, 2016a, p. 101, grifo meu). Destaco o elogio,
mas me interessa também mostrar a crítica, a saber, a ausência de “espessura histó-
rica”, ou seja, de uma narrativa capaz de identificar “(...) as longínquas e complexas
raízes do nazismo, do antissemitismo nazista e do antissemitismo popular” (LEVI,
2016a, p. 102), tais como o impacto da derrota na Primeira Guerra, as tentativas
revolucionárias e a violência dos movimentos de extrema-direita, a hiperinflação
de 1923, a instabilidade política da República de Weimar (cf. LEVI, 2016a, p. 102). O
problema, então, era que “(...) a minissérie televisa não alude a tais coisas”, e, com
isso, “o espectador sai com a impressão de que o nazismo brotou do nada, obra
demoníaca de fanáticos frios como Heydrich ou de facínoras sinistros com a suás-
tica na manga, ou então foi fruto de alguma malvadeza intrínseca e vaga dos ale-
mães” (LEVI, 2016a, p. 102). Levi, porém, sabe que “(...) não é justo pretender demais”
(LEVI, 2016a, p. 102), pois, “(...) a ferocidade e a incomensurabilidade do holocausto
despejado pelos nazistas (...) continham em si um enigma que nenhum historiador
até agora decifrou” (LEVI, 2016a, p. 103, grifo meu).
(LEVI, 2016b, p. 1504-1506), um breve porém atualíssimo texto para tempos de ansiosas opiniões em redes so-
ciais, que contém uma crítica contundente sobre o impulso precipitado em usar conceitos disponíveis para lidar
com fenômenos complexos, tornando toda e qualquer explicação mais simples, tão sedutora quanto redutora.
131 Antes de escrever sobre a série, Levi também publicou um texto chamado “Um Holocausto que ainda pesa
sobre a consciência do mundo”, no qual fala do livro homônimo que lhe serviu de base, cuja autoria é de Gerald
Green (LEVI, 2016b, 1447-1449). Para um visão de Levi sobre o cinema, consultar o artigo de Andrea Rondini (2007).
129
Todavia, as reservas de Levi não se aplicam somente para o plano da explicação
causal, racional e necessariamente complexa do evento, mas também em um plano
estético e formal, sobre o qual ele escreveu o seguinte: “muito haveria para dizer so-
bre a formulação geral de Holocausto e sobre a sua conformidade à verdade histórica”,
mas “(...) é possível reconhecer elementos que parecem ´citados´ de origens ilus-
tres. A revolta do gueto é uma página dos Miseráveis: não faltam as barricadas, nem
Gavroche, nem a fuga pelo esgoto” (LEVI, 2016a, p. 103). Victor Hugo não é o único
autor vislumbrado por Levi nas imagens da minissérie. Shakespeare também estaria
presente: “A mulher de Erik, Marta, é implacável como Lady Macbeth ao incitar a am-
bição de seu ambíguo marido e a empurrá-lo de um crime a outro até o fim” (LEVI,
2016a, p.104). Ou seja: trata-se de gerar uma identidade pelo reconhecimento, mas
esse reconhecimento é possível através da “identificação acrítica” (unchecked identifi-
cation), para usar o termo empregado por Dominick LaCapra: “A identificação acrítica
implica a confusão do si e do outro que pode trazer consigo a incorporação da expe-
riência e da voz da vítima” (LaCAPRA, 2001, pos. 479). Ampliando para o nosso caso o
espectro de identificação acrítica para a ação dos algozes132 , ao espectador da minis-
série seria exigido, segundo Levi, o trabalho de identificação de referências clássicas
(contanto que as tivesse), cuja função seria adequar os eventos atrozes a um modelo
já conhecido de heroísmo ou vilania. Neste sentido, podemos dizer que a minissérie
supera a distância entre presente e passado, entre o espectador e o evento histórico,
mas muito provavelmente não da maneira desejada por Levi. Uma superação da dis-
crepância entre presente e passado dá-se, na minissérie, através de uma adequação
do evento ao repertório de imagens do espectador. O pressuposto parece-me ser o de
que esse mesmo repertório provê precedentes (Victor Hugo, Shakespeare...). Portanto,
aprendemos que a discrepância a ser superada não o será através da identificação me-
diante reconhecimento de precedentes.
132 Não se trata aqui, é claro, de anuência com a ação dos algozes, mas sim de pressupor já saber entendê-las,
de julgar haver um repertório cultural capaz de explicar as atrocidades criminosas dos perpetradores.
130
“AUSCHWITZ ESTÁ FORA DE NÓS, MAS EM TORNO
DE NÓS, ESTÁ NO AR”
131
de documentos testemunhais, o relato de um sobrevivente de um Sonderkommando
antecede o de um professor universitário francês e de uma deportada alemã; após
esses, Poliakov montou um mosaico de relatos testemunhais sobre Rudolf Höss, o
comandante de Auschwitz (aí incluído o produzido pelo próprio registrado em sua
autobiografia escrita no cárcere), criando quase uma montagem ou uma colagem,
cujo contraste produz um efeito assustador. Permito-me transcrever algumas: “em
todas as nossas discussões Höss se mostrou normal, mas apático, dá prova de certa
consciência tardia de suas crimes, mas suscita a impressão de que não teria jamais
pensado neles se ninguém lhe tivesse perguntado a respeito” (apud POLIAKOV, 1968,
p. 186). Essas são palavras do psiquiatra estadunidense Gustav M. Gilbert, que tra-
balhou em Nuremberg durante os julgamentos, onde produziu um diário do qual
Poliakov citou o trecho acima. Após isso, temos as palavras de Höss sobre si mesmo:
“eu era uma engrenagem inconsciente da imensa máquina de extermínio do Terceiro
Reich. A máquina desmontou, peça por peça (...), continuam, todavia, a me considerar
uma besta feroz, um sádico cruel, como o assassino de milhões de seres humanos”,
e complementa: “as massas (...) não poderiam jamais entender que eu também tenho
um coração” (apud POLIAKOV, 1968, p. 188). Igualmente espantosos são os regis-
tros do diário de Joseph Kremer, um médico alemão professor na Universidade de
Münster e que trabalhou em Auschwitz. Suas anotações registravam fatos absoluta-
mente discrepantes de um dia para o outro. Na entrada de 05 de dezembro de 1942,
Kremer anota: “à tarde assisti a uma ´ação especial´ sobre as internadas no campo
feminino, as piores que jamais vi. O dr. Thilo tinha razão, nesta manhã, ao me di-
zer que nos encontramos no anus mundi”. No dia seguinte, o registro não vai além
de uma banalidade: “hoje, terça-feira, almoço excelente: creme de tomate, metade
de um frango com batatas (...) sorvete de baunilha” (apud POLIAKOV, 1968, p.44).
Poliakov dá a seguinte interpretação para essa oscilação vertiginosa:
(...) seria fácil atribuir uma sensibilidade do gênero a qualquer componente pe-
culiar do caráter alemão; nos parece preferível levar em conta a influência da
atmosfera de morte do campo, quintessência do nazismo, que contaminava tam-
bém – como veremos – os prisioneiros, judeus e não judeus (POLIAKOV, 1968,
p. 45, grifo meu).
132
O comentário de Poliakov sobre o caráter da agência histórica do extermínio me
permite passar ao prefácio de Levi. Um primeiro trecho a ser destacado é uma obser-
vação sobre os limites e as possibilidades do conhecimento histórico:
(...) tudo, ou quase tudo, já se sabe sobre “o essencial”, sobre os pormenores, até
mesmos os mais ocultos, da organização dos campos de concentração (...) No
entanto, bem pouco se sabe do “porquê”: continuam enigmáticas as razões e as
causas, próximas ou distantes, de ter surgido neste continente civilizado uma
gigantesca fábrica de morte e de ela ter funcionado com atroz eficiência até o
colapso alemão (LEVI, 2016a, p. 45).
Quando li pela primeira vez o texto do prefácio, me impressionou ver como ex-
pressões usadas em 1968 se repetiriam em textos de um acadêmico do nível de Saul
Friedländer, como a sua introdução à coletânea Probing the limits of representation,
mais precisamente quando ele define o extermínio de judeus na Europa como um
evento limite porque precisamente foi “(...) a mais radical forma de genocídio en-
contrada na história: a tentativa deliberada, sistemática, industrialmente organizada
e largamente bem sucedida de exterminar todo um grupo humano dentro da so-
ciedade ocidental” (FRIEDLÄNDER, 1992, p.3). Para além dessa semelhança, há, no
juízo de Levi sobre o conhecimento histórico, uma insatisfação com o conhecimento
empírico. Não está nos “pormenores” a essência da explicação, do “porquê”: as ex-
plicações de “historiadores, sociólogos e psicólogos” “(...) podem ser argutas, mas
nenhuma satisfaz realmente” (LEVI, 2016a, p. 45).
Todavia, esse limite na explicação apresenta sutilezas, e a primeira delas podemos
ver na sequência do prefácio: “o que ocorreu em Auschwitz é algo que não pode se
compreender, aliás, talvez não se deva compreender” (LEVI, 2016a, p. 46). A explicação
vem na sequência: “´compreender´ uma intenção ou um comportamento humano
significa (...) contê-lo em nós, conter em nós o seu autor, pôr-nos em seu lugar, iden-
tificar-se com ele” (LEVI, 2016b, p. 46, grifo meu), pois as “palavras e ações” de “asque-
rosos exemplares humanos” (Himmler, Goering, Goebbels, Eichmann, Höss) são “(...)
extra-humanas, anti-humanas, sem precedentes históricos, mal e mal comparáveis aos
episódios mais cruéis da luta biológica da existência” (LEVI, 2016b, p. 46).
Portanto, ao menos nesse prefácio, a compreensão histórica depende de um re-
conhecimento, e esse reconhecimento é possível pela comparação com precedentes
133
históricos, algo que Antoine Prost, em seu manual de Teoria da História, define como
“raciocínio por analogia” (PROST, 2008, p.142-145). Mesmo a comparação com uma
esfera biológica mais ampla seria precária. Parece-me muito significativo, inclusive,
que o prefácio sobre Poliakov, embora possa ser considerado nada mais do que um
texto de ocasião, tenha recebido a atenção do mesmo Prost (2008, p.149), que citou
precisamente essa passagem nas qual Levi fala da impossibilidade da identificação.
Aqui, fica evidente como a compreensão, entendida como a operação metodológica
de reconstrução de intenções subjetivas, fica comprometida.
Pelas passagens citadas até aqui, fica-se com a impressão de que Levi aponta mais
problemas do que virtudes no livro de Poliakov – o que seria algo incomum em se tra-
tando de um prefácio. Mas não é bem assim. Há também a recomendação da leitura
do livro: “(...) mostra-se necessária toda a obra de Poliakov, em especial essa coletânea,
que constitui a sua síntese. Auschwitz está fora de nós, mas em torno de nós, está no
ar” (LEVI, 2016b, p. 47). Gostaria de sublinhar a metáfora usada por Levi: Auschwitz
está no “ar”, no “ar” como uma “peste”: “a peste acabou, mas a infecção grassa: seria
tolo negar. Neste livro estão descritos seus sinais” (LEVI, 2016b, p. 47). Levi os inter-
preta, sobretudo, eticamente, como indícios de “desconhecimento da solidariedade
humana, indiferença obtusa ou cínica à dor alheia, abdicação do intelecto e do senso
moral diante do princípio de autoridade, e, principalmente, na raiz de tudo, covardia”
(LEVI, 2016b, p. 47), e identifica os sintomas como “peste” nas absolvições totais e par-
ciais de crimes nazistas nos tribunais da Alemanha e da Áustria, na vida de Mengele
e de Bormann na América do Sul, nos crimes de Stalin, e nas guerras da Argélia e do
Vietnã (LEVI, 2016a, p. 47). Portanto, se, para Levi, reconstruir as intenções daqueles
“intragáveis exemplares humanos” é não somente intelectualmente difícil, mas etica-
mente indesejável, por outro lado, esses mesmos “exemplares” se metamorfosearam
e se transplantaram para outros ambientes do mundo contemporâneo.
Mais do que não poder compreender, portanto, a historiografia não deve com-
preender, ou seja, não gerar identificação com uma experiência sem precedentes. Até
aqui aparentemente o argumento de Levi antecipa perfeitamente o apresentado no
comentário sobre a minissérie Holocausto. Mas há uma diferença: essa ausência de
identificação não implica um afastamento em relação ao passado. É importante ter
cuidado com uma ideia de distanciamento objetivo que, por vezes, fica pressuposta
na afirmação da impossibilidade de identificação. Auschwitz “não está em nós (...) está
fora do homem” porque seus autores “(...) são diligentes, tranquilos, comuns, banais;
134
as discussões, declarações e testemunhos deles (...) são frios e vazios” (LEVI, 2016b, p.
46). Mas como não se reconhecer no comum e no banal? Não há identificação, mas
também não há distanciamento. Não há identificação, mas, de alguma maneira, por
ser circundante e atmosférico, parece ser ao mesmo tempo familiar e invisível. Não
tem precedente, mas não está extinto.
Mais de quinze anos após o texto sobre Poliakov, temos outro prefácio para um livro
de historiografia. Falo do texto escrito por Levi para a edição italiana de Menschen
in Auschwitz (“Humanos em Auschwitz”), do austríaco Hermann Langbein, origi-
nalmente publicada em 1972 e traduzida para o italiano em 1984. Mesmo que tenha
sido considerado “um dos melhores historiadores do Lager” por Levi, Langbein não
foi um acadêmico. Sua trajetória foi, sobretudo, política, tendo pertencido ao Partido
Comunista Austríaco, do qual se afastaria, e desempenhado papéis importantíssi-
mos no Comitê Internacional de Auschwitz (IAK) e nos Processos de Auschwitz, em
Frankfurt, no início da década de 60 (STENGEL, 2012). Levi conhecia e admirava a
sua trajetória, e dedica a Langbein algumas palavras em sua antologia ainda inédita
no Brasil, La ricerca delle radici (“A pesquisa das raízes’), livro de 1981 no qual ele reu-
niu e comentou rapidamente trechos de livros prediletos133 . Um trecho de Menschen
in Auschwitz é o único de historiografia escolhido para integrar a obra. O título do
breve comentário de Levi chama-se “Para ajudar a entender”. É breve e vale a pena
traduzi-lo na íntegra.
As páginas que seguem são a conclusão de um livro que está em meu coração,
que me parece fundamental e que gostaria de ter escrito: mas eu não teria sido
capaz de fazê-lo, porque em Auschwitz meu horizonte era muito estreito. Não o
133 Levi deixa de lado algumas referências por ele mesmo reconhecidas como essenciais, como Dante e Ales-
sandro Manzoni, e monta um painel formado por, entre outros, o Livro de Jó, Odisséia, Moby Dick, “Fuga da
morte” e Darwin. O livro foi resultado de uma encomenda feita em 1980 por Giulio Bollati a escritores como
Levi, Italo Calvino, Leonardo Sciascia, entre outros importantes nomes da literatura italiana. O objetivo era criar
antologias destinadas ao público escolar, na qual seria feita uma coleta de textos escolhidos a partir de prefe-
rências pessoais de quem os selecionou. Dentre os citados acima, apenas Levi cumpriu a encomenda, embora
todos a tenha aceito com entusiasmo. (BELPOLITI, 1997, p. VII).
135
era o de Hermann Langbein, austríaco, prisioneiro político, figura excepcional
como resistente: a sua experiência como combatente na Espanha abriu-lhe cami-
nho para o comitê clandestino de defesa que existia dentro do Lager: a sua astúcia
o havia alçado de patamar até o cargo de secretário-escriturário de um alto ofi-
cial médico da SS. O seu papel duplo o expõe a um perigo grave e constante, mas
lhe permite recolher uma quantidade ilimitada de notícias de histórias pessoais.
O título do livro, Seres humanos em Auschwitz, é denso de significado: o autor o
escreveu com um objetivo declarado, não para acusar nem para comover, mas
para ajudar a entender. Levou até o fim uma tarefa desagradável; muitos anos
depois da liberação, não se contentou em consultar os memoriais e em entre-
vistar os poucos sobreviventes entre os prisioneiros, mas levou adiante a in-
vestigação sobre a outra parte, sobre os culpados daquela época, e se esforçou
em entender (e de nos fazer entender) por quais caminhos o homem possa ser
induzido a aceitar certos “deveres”. O resultado surpreende: não há demônios,
os assassinos de milhões de inocentes são gente como nós, têm o nosso rosto, se
nos assemelham. Não têm sangue diferente do nosso, mas seguiram, conscien-
temente ou não, um caminho arriscado, o caminho do obséquio e do consenso,
que é sem retorno (LEVI, 2016b, p. 221).
136
considera ter adquirido uma distância do próprio passado, mas, ainda assim, o seu
perspectivismo é claramente assumido no início de seu livro: “cada um de nós traz
consigo uma lembrança muito pessoal: a lembrança daquele que passou fome crôni-
ca se diferencia fortemente do que teve algum serviço no campo: Auschwitz do ano
de 1942 é essencialmente diverso de Auschwitz do ano de 1944” (LANGBEIN, 1980,
p. 18). Portanto, podemos dizer, a partir da palavra observatório, que o conhecimento
histórico, tal como Levi vê praticado por Langbein, é perspectivado.
Como esse perspectivismo se mostra ao longo de Menschen in Auschwitz? Mesmo
não tendo como analisá-lo com profundidade neste momento, é possível percebê-lo,
em primeiro lugar, na própria construção do livro, marcado por algumas caracterís-
ticas como: a exposição das condições concretas que determinaram a perspectiva do
próprio autor e a exposição de outras perspectivas científicas, como as do sociólogo
H. G. Adler134 . O perspectivismo também é estético: ora Langbein escreve de forma
acadêmica, estabelecendo diálogo com interlocutores e citando longas passagens de
livros, ora o faz utilizando recursos literários, relembrando seus diálogos à época
que bem poderiam fazer parte de um texto dramático a ser encenado nos palcos ou
projetado em uma tela de cinema (LANGBEIN, 1980, p. 187-188). Em meio a essa plu-
ralidade de vozes e linguagens, Levi repete o dito nos comentários em La ricerca delle
radici e destaca novamente a atenção dada por Langbein à “constelação de algozes”
(LEVI, 2016a, p. 143): “sobre eles Langbein se debruça, com severa curiosidade, não só
para condená-los ou absolvê-los, mas num desesperado esforço para entender como
se pode chegar a tanto (...)” (LEVI, 2016a, p. 143), e completa, com algo especialmente
importante para a reflexão ética sobre a historiografia: “talvez seja o único dos histo-
riadores modernos que dedicou tanta atenção a este tema. Sua conclusão é inquietan-
te. Os grandes responsáveis também são Menschen [seres humanos]; a matéria-prima
que os constitui é a nossa” (LEVI, 2016a, p. 143).
A composição dessa matéria já havia sido anunciada no comentário de La ricerca
delle radici: “o caminho do obséquio e do consenso”. No prefácio o argumento se re-
pete: os homens da SS “(...) cumpriam seu abominável ofício mais com indiferença
134 Adler viu em ação em Auschwitz um caso extremo de exercício de poder pela difusão e incorporação em
membros da SS do “Füherprinzip”, o princípio do Führer, o exercício de um poder desmedido mesmo quando
se ocupa um lugar de pouco destaque na hierarquia política (LANGBEIN, 1980, p. 80-81); ou, ainda, da concep-
ção psicológica de que o estado mental de um prisioneiro acabava sendo reduzido ao de uma criança (LAN-
GBEIN, 1980, p. 82).
137
obtusa do que com convicção ou prazer” (LEVI, 2016a, p. 133-134), o que os levava a ter
“(...) um poder de vida e morte para o qual não estavam preparados e os embriagava”
(LEVI, 2016a, p. 134). Essa é a descrição das características dessa matéria, mas essa
não é individualizada, ou seja, não é um atributo essencial de uma pessoa ou grupo.
Ao menos é o que nos permite ver no texto de Langbein. Traduzo aqui da edição ita-
liana prefaciada por Levi:
(...) que ninguém ouse formular a sua sentença apressadamente. Uma infinidade
de pessoas não teria se comportado de maneira diversa dos guardas de Auschwitz se
fossem enviadas para trabalhar ali; assim como a grande parte daquelas pessoas
que foram declaradas culpadas por serem peças da engrenagem do extermínio
jamais haviam pensando em perseguir e matar se não tivessem sido introduzidas
na atmosfera de Auschwitz. Pode ser que isto interesse só, e em pequena escala,
aos juristas, os quais devem medir a culpa efetiva de cada indivíduo. Mas para
quem viu o quão frequentemente o acaso determinou quem deveria estar envol-
vido nos crimes de massa os parâmetros dos juízos podem não ser suficientes
(LANGBEIN, 2015, p. 528, grifos meus).
135 Para um estudo sobre o papel do acaso na obra de Levi, consultar a conferência de Robert S. C. Gordon
(2019) e o estudo de Patrizia Piredda sobre Levi como leitor de Heisenberg. Neste trabalho, entre outros temas,
Piredda discute a tensão entre um Levi capaz de perceber o conhecimento como registro perspectivado de
indeterminações e sua formação positivista (PIREDDA, 2020).
138
histórica de cada indivíduo e de cada grupo: “a quem cabe a culpa do mal cometido
(ou que se permitiu que fosse cometido?). Ao indivíduo que se deixou convencer ou
ao regime que o convenceu?” (LEVI, 2016b, p. 134). A resposta é: “a ambos”. E, por isso,
Levi dá uma explicação decisiva. Cada caso deve ser estudado com cuidado, e isso
“(...) porque nós não somos totalitários, e as rotulagens genéricas, de que os regimes
totalitários gostam, é coisa que nos repugna” (LEVI, 2016b, p. 134).
O conhecimento histórico produzido por Langbein seria, a partir dos comen-
tários de Levi tanto em La ricerca delle radici como no prefácio, não somente pers-
pectivado, mas também crítico em relação a si mesmo: a perspectiva não é uma
projeção sobre uma matéria inerte e passiva, mas uma aproximação cautelosa e
pontual, preocupada com as singularidades e avessa às generalizações136 . Seria essa,
portanto, a tarefa do historiador a ser cumprida: a impossibilidade da compreensão
por analogia, indicada no prefácio ao livro de Poliakov, ganha contornos mais ní-
tidos nas palavras de Langbein: “todo parâmetro proveniente da vida normal deve
ser desconsiderado no campo de extermínio (...) nada em Auschwitz era inimaginá-
vel. Nenhum extremo era violento demais. Tudo era possível. Literalmente tudo”
(LANGBEIN, 1980, p. 109-110, grifo meu). Portanto, toda e qualquer concepção
construída deveria ser colocada sob constante revisão, pois, “como em Auschwitz
tudo era imprevisível, nada poderia ser excluído, e, de ponto de vista lógico – mes-
mo partindo da perspectiva dos algozes – muita coisa permaneceu sem explicação”
(LANGBEIN, 1980, p. 105). Seja no prefácio, seja no texto do livro, a “tarefa do
historiador” se realiza ao evitar as generalizações, dedicando-se a análises caso a
caso, mas não por um princípio teórico determinado a priori, mas porque é essa a
qualidade intrínseca do tipo de ação precedente testemunhada em Auschwitz. Para
fugir da postura totalitária de estereotipar o outro, é necessário considerar que o
ato desse outro não tinha precedente nem para ele mesmo, o que, deve ficar claro,
não o isenta de responsabilidade. Eticamente, porém, um apavorante reconheci-
mento também parece integrar a tarefa do historiador, pois conhecer os perpetra-
dores implica conhecer a suscetibilidade às circunstâncias nas quais o “caminho
do obséquio e do consenso” torna-se uma opção prevalente. Poderia a discrepância
136 Curiosamente, o próprio Levi, segundo Langbein, cometeu um erro ao generalizar o comportamento de
presos políticos alemães, que teriam, sem exceção, manifestado algum tipo de sentimento nacionalista quando
as instalações do campo começaram a ser bombardeadas (LANGBEIN, 1980, p. 185-186).
139
entre passado e presente ser sanada na medida em que podemos reconhecer a sus-
cetibilidade ao acaso como uma estrutura meta-histórica?
Se não tenho resposta para a pergunta acima, ao menos é possível assinalar a diferen-
ça entre os dois prefácios. De um lado, a impossibilidade – e a recusa ética – da iden-
tificação; do outro, a necessidade igualmente ética de reconhecer em si a “matéria
constitutiva” do algoz. A mudança é considerável, e visível nas metáforas: “Auschwitz
não está em nós, está no ar”, de um lado, “a matéria prima com a qual são constituí-
dos é a nossa”, de outro. Como explicar essa mudança? Essa tensão dialética, de uma
dialética do reconhecimento, ressoa também em uma entrevista dada por Levi nos
anos 80 para o escritor Ferdinando Camon.
(...) esta comparação do mundo com o Lager, em nós – nós “tatuados”, nós “mar-
cados” – suscita uma revolta: não, não é assim, não é verdade que a Fiat seja um
Lager, que um hospital psiquiátrico seja um Lager: não há câmera de gás na Fiat;
se está muito mal no hospital psiquiátrico, mas não há o forno, há um caminho
de saída, se recebem os parentes (...) Todavia, (...) podem valer como metáfora. Eu
mesmo o escrevi em É isto um homem? que o Lager era um espelho da situação
externa, mas um espelho deformante (...) (LEVI, 2018, p. 837, grifos meus)137
A discrepância entre passado e presente poderia ser sanada por uma metáfora
como a do espelho deformante? Consigo pensar em dois caminhos para desenvolver
a pergunta. Um deles é o de tentar perceber que a visão de Levi sobre conhecimento
é a de um químico. Isso fica nítido em seu ensaio “A assimetria e a vida”, escrito em
1984, um texto tanto mais interessante porque voltado ao fenômeno da quiralidade:
“(...) os cristais da cópia direita-esquerda apresentam uma curiosa assimetria: uns
não eram sobrepostos aos outros, mas eram sua imagem especular, assim como a mão
direita é a imagem especular da mão esquerda” (LEVI, 2016a, p. 236, grifo meu). Para
137 Vale notar que, apesar da posição de Levi, sua obra foi referência para a luta antimanicomial na Itália. Para
isso, ver o ensaio de Massimo Bucciantini (2019).
140
Levi, o fenômeno tem validade universal: “a assimetria direita-esquerda é intrínseca
à vida: coincide com a vida; está presente, infalivelmente, em todos os organismos,
dos vírus aos líquens, do carvalho ao peixe e ao homem” (LEVI, 2016a, p. 237). Todavia,
não tenho competência para entrar no terreno das discussões sobre o tema, mesmo
porque jamais poderia fazer melhor do que os bons estudos já disponíveis sobre o as-
sunto (BELPOLITI, 2016; CERRUTI, 2019; PIREDDA, 2020; MORI, 2021). Ainda assim,
gostaria de compartilhar certa inquietação com a seguinte frase de Levi: “a quiralida-
de poderia ter raízes universais (...) poderia residir no nível subatômico, aquele onde
nenhuma linguagem é válida salvo a matemática, onde a intuição não chega e onde
as metáforas falham” (LEVI, 2016a, p. 244). Nesse caso, o conhecimento histórico
precisaria ter como referência as ciências exatas, e aí seria o elemento do acaso em
Auschwitz – o inimaginável de que fala Langbein – ilustração do princípio da incer-
teza de Heisenberg, no qual “a desordem emerge naturalmente a partir da ordem”?
Não sei. Sei que, se for o caso, a ideia de ausência de precedente perde força, uma
vez que Auschwitz seria a demonstração de um princípio138. Deixo aberta a questão,
mesmo porque, repito, está fora das minhas possibilidades resolvê-la. Uma outra
possibilidade de tentar refletir sobre a mudança das metáforas poderia ser a de ver a
visão de Levi como uma forma de reagir criticamente à tese influente do renomado
historiador Renzo de Felice. Em Intervista sul fascismo (“Entrevista sobre o fascismo”),
livro publicado em 1975 e de considerável sucesso fora do círculo de especialistas
(GORDON, 2012, pos. 3117), é defendida a ideia de que “(...) entre o fascismo italiano
e o nazismo as diferenças são enormes; são dois mundos, duas tradições, duas his-
tórias de tal forma diferentes, que é difícil reuni-las em um discurso unitário” (DE
FELICE, 2018, p. 24). Infelizmente, não tenho como comprovar efetivamente o quan-
to e se Levi conhecia o livro de Renzo de Felice ou suas perspectivas de interpretação.
De qualquer maneira, a preocupação de Levi em aproximar o presente italiano com
o passado nazifascista é algo comprovado até mesmo na correspondência entre Levi
e Langbein, datada de 1972 e analisada por Martina Mengoni (MENGONI, 2015, p.
154-155). Um estudo dessa correspondência, presente na Wiener Library em Londres,
138 Patrizia Piredda defende claramente a ideia de que a influência da mecânica de Heisenberg sobre a visão
de conhecimento de Levi não é de tal forma ampla a ponto de influenciar seu juízo sobre outros assuntos: “não
se pode escrutinar o mundo do Lager (...) como se escrutina o mundo das moléculas, porque a este, diferente-
mente dos seres humanos, uma vez lhe faltando vontades e paixões, se comportam do mesmo modo, ou então
sofrem variações em apenas pouquíssimos casos” (PIREDDA, 2020, p 70). Tendo a concordar com a autora.
141
muito provavelmente ajudaria a dar um pouco de sustentação ao que até agora apre-
sento como algo ainda frágil. Portanto, me contento por ora em ter identificado, a
partir dos prefácios de Levi para obras de historiografia, como a tarefa do historiador
pode ser a de manter a tensão do reconhecimento e da espessura de uma matéria que
ora nos circunda, ora está em nós.
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144
AS CIÊNCIAS HUMANAS
E A ABORDAGEM DA
HISTÓRIA INTELECTUAL
145
APROXIMAÇÕES ENTRE OS SERTÕES (1902),
DE EUCLIDES DA CUNHA E TRISTES TRÓPICOS
(1955), DE CLAUDE LÉVI-STRAUSS
A fim de promover uma reflexão sobre as relações entre teoria da história e as ciências
humanas pelo tema da viagem, é de interesse do capítulo estabelecer caminhos de
entrada em dois grandes livros de e sobre viagem: Os sertões (1902), do escritor Euclides
146
da Cunha, e Tristes trópicos (1955) - Tristes tropiques, no original -, do antropólogo Claude
Lévi-Strauss. Visto que a temática temporal é um dos principais eixos norteadores das
leituras, o trabalho visa oferecer condições de aproximação entre as obras no que diz
respeito ao deslocamento espacial enquanto catalisador das interrogações acerca da
história e dos paradoxos que o trabalho etnográfico suscita na observação e na escrita.
Embora os autores não sejam historiadores stricto sensu, as interrogações sobre a histó-
ria podem partir daqueles que François Hartog chama de outsiders (HARTOG, 2006, p.
10). Nesse sentido, Euclides da Cunha e Claude Lévi-Strauss também como outsiders da
história que abrem espaço para questões tanto à disciplina como ao seu domínio.
Há de se notar que a curiosidade acerca de diferentes modos de organização em
sociedade é um traço característico de narrativas que dissertam sobre viagens muito
antes da consagração da etnografia como disciplina140. Walter Benjamin considera
a figura do viajante como um dos primeiros “mestres da arte de narrar”, por ser ele
capaz de imprimir à narrativa sua marca, tal como um oleiro marca suas mãos à ti-
gela de barro. Todavia, o narrador de Benjamin é situado em uma tradição predomi-
nantemente oral, sendo o “fim das narrativas” o seu prognóstico, em detrimento da
ascensão do romance e da difusão intensa e massiva de informação.
Não pretendendo aqui verificar se a hipótese é verdadeira ou não, o que nos
importa é ater-nos à figura de contraste desse narrador artesanal das experiências:
o narrador que, segundo Benjamin, opera justamente pela falta de experiências.
Contemplando no texto Experiência e pobreza (1987) o impacto inquestionável e ines-
gotável das guerras para a humanidade, há nesses momentos de crise a aparição de
figuras que possuem como característica “uma desilusão radical com o século e ao
mesmo tempo uma total fidelidade a esse século” (BENJAMIN, 1987, p. 115).
Livros que dispensam apresentações, mas a título de um breve panorama, Os ser-
tões debruça-se sobre os problemas da recém fundada República e da nacionalidade
brasileira a partir de sua viagem ao sertão de Belo Monte, na Bahia, como corres-
pondente do jornal O Estado de S. Paulo, para cobrir a quarta e última expedição da
Guerra de Canudos (1896-1897), finalizando sua obra cinco anos depois (1902). Tristes
trópicos sobrevoa por diferentes lugares, passando brevemente pelo exílio em Nova
140 Martin Lienhard faz referência à Odisséia, de Homero; Anábase, de Xenofonte, sinalizando que, se conside-
ramos etnografia como a “descrição da vida de outras sociedades [...], a etnografia manifesta a sua existência na
civilização ocidental, desde o começo da cultura da escrita” (LIENHARD, 1999, p. 103).
147
York, durante a II Guerra, concentrando-se na experiência e estada no Brasil como
professor da jovem Universidade de São Paulo, durante a década de 1930, integrando
a missão francesa, e em suas incursões com as sociedades indígenas e a lapidação
de seu trabalho como etnólogo. Os livros concretizam-se, portanto, a partir da ex-
periência da viagem, não resumindo-se ao relato integral, mas inclinados na tenta-
tiva de capturar elementos para projeções possíveis acerca de suas inquietações, seja
Euclides, com o destino das populações sertanejas e o desenrolar da República, ou
Lévi-Strauss, instigado por uma busca de interpretação sistemática das culturas, ao
mesmo tempo deparando-se com as chagas da civilização nas populações indígenas
brasileiras e também com a situação de exílio que viveu durante a II Guerra.
A escolha pelos livros se circunscreve por serem marcados por momentos histó-
ricos da formação e da sociedade brasileira, debruçando-se sobre o processo civili-
zatório e os choques culturais sucessivos ao país, pondo em confronto “a formação,
consolidação ou ampliação da sociedade nacional e de suas fronteiras de ocupação
e a presença dos excluídos desse processo, ou nele incluídos de modo subalterno”
(AGUIAR; CHIAPPINI, 2001, p. 7), emergindo visões de um Brasil-processo (AGUIAR;
CHIAPPINI, 2001, p. 11). Considerados pela crítica como livros sui generis, eles des-
pertam interesse para a história intelectual por serem responsáveis pela repercussão
e notoriedade de seus autores no cenário intelectual de seus respectivos países. A
leitura atesta os mais diversos encontros de gêneros textuais, não sendo possível e
nem pretendido classificá-los mediante critérios rígidos. O entrelugar do relato de
viagem, da escrita nos âmbitos etnológicos, geológicos, antropológicos, históricos,
filosóficos, literários, políticos, coloca-os em uma emaranhada teia textual.
É a partir dessa famosa profecia popular141 que iremos nos deter nos dois personagens
geográficos predominantes nos livros: o Atlântico e o sertão. Tendo em vista que a
viagem de Lévi-Strauss contempla um deslocamento continental e Euclides viaja para
141 Adaptada da versão transcrita por Euclides: “o certão virará praia e a praia virará certão” (CUNHA, 1905:
171). Segundo Euclides, “Os dizeres destas profecias estavam escritos em grande número de pequenos cadernos
encontrados em Canudos” (CUNHA, 1905, p. 171).
148
o interior de seu próprio país, temos indícios do panorama intelectual europeu e bra-
sileiro da passagem do século XIX para o XX que Martin Lienhard delineou. Enquanto
na Europa, especialmente na França, a formação e consolidação do campo da etno-
grafia vinculava-se a um trabalho de campo preferencialmente distante da terra natal
do pesquisador, na América Latina os problemas circunscritos pelos estudiosos orien-
tavam-se para os entraves da modernização do país, a explicação do “atraso nacional”.
Tristes trópicos expõe o encontro de Lévi-Strauss e a América, inspirado por figu-
ras como Jean de Léry, Hans Staden, Gabriel Soares de Sousa, André Thevet e Michel
de Montaigne. Por intermédio de um telefonema de Célestin Bouglé, no outono de
1934, propondo uma vaga de professor de sociologia na recém fundada Universidade
de São Paulo (USP), a viagem ao Brasil configura-se como a possibilidade de concre-
tização do afastamento necessário para o conhecimento de novas sociedades, já que
a ida para a Universidade de São Paulo fora motivada pelas projeções acadêmicas no
tocante à prática etnográfica. Efusivo, Lévi-Strauss escreve:
[...] ainda revejo, com a maior nitidez, as imagens que logo evocou essa proposta
inesperada. Os países exóticos apareciam-me como o oposto dos nossos, em
meu pensamento [...] Muito me surpreenderia se me dissessem que uma espé-
cie animal ou vegetal podia ter o mesmo aspecto nos dois lados do globo. Cada
animal, cada árvore, cada fiapo de capim devia ser radicalmente diferente, exibir
já à primeira vista sua natureza tropical (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 49).
[...] Melhor do que Atenas, o convés de um barco a caminho das Américas oferece
ao homem moderno uma acrópole para a sua prece. Doravante, a ti nós a recu-
saremos, anêmica deusa, preceptora de uma civilização emparedada! [...] índios
cujo exemplo, por intermédio de Montaigne, Rousseau, Voltaire, Diderot, enri-
queceu a substância com que a escola me nutriu, Huroniano, Iroquês, Caraíba,
Tupi, eis-me aqui! (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 82)
[...] Eis a América, o continente impõe-se. [...] O que me cerca por todos os lados
e me esmaga não é a diversidade inesgotável das coisas e dos seres, mas uma só
e formidável entidade: o Novo Mundo (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 85).
149
muito tempo” (CUNHA, 1905, p. 27). A curiosidade em torno de Canudos é destaque
em inúmeros jornais, como na coluna de Machado de Assis em A Semana, de 31 de
janeiro de 1897, na qual o escritor sugere que “um repórter paciente e sagaz, meio fo-
tógrafo ou meio desenhista” fosse até Canudos “para trazer as feições do Conselheiro
e dos principais subchefes, a fim de colher a verdade inteira sobre ela” (ASSIS, 1955,
p. 403-404). O próprio Euclides da Cunha confecciona, poucos meses antes da ida ao
sertão de Belo Monte, dois artigos sobre a Guerra de Canudos sob o título A nossa
Vendeia142 , publicados no jornal A província de S. Paulo.
É como “ficção geográfica” que, para Berthold Zilly, Canudos faz parte do terri-
tório nacional, no qual o meio, os homens – aqui tanto como categoria antropológica,
como os personagens -, os eventos irrompem como “entidades e forças típicas, cole-
tivas, mas também concretas e vivas” (ZILLY, 2002, p. 355). Todos os elementos, ani-
mados e inanimados “passam a ser portadores de sentimentos e ações, sendo a antro-
pomorfização um importante recurso estilístico” (ZILLY, 2002, p. 355). Se tomarmos
como nota a discussão delineada pelo geógrafo Antonio Carlos Robert Moraes, a qual
diz respeito ao caráter de realidade simbólica do sertão, e não enquanto uma mate-
rialidade da superfície terrestre, ou seja, em uma relação com o homem143, vemos que
o sertão de Euclides da Cunha é fortemente marcado “pela oposição a uma situação
geográfica que apareça como sua antípoda. (...) Daí ela sempre se apresentar numa
formulação dualista. (...) A dualidade mais repetida no pensamento social brasileiro
opõe o sertão ao litoral” (MORAES, 2002, p. 363).
Consonante a essa dualidade, Moraes alerta que tal binômio em sua maioria é
construído a partir de um olhar externo, por interesses que atribuem àquele espaço
juízos e valores que visam transformá-lo, mesmo que algumas concepções integrem
uma visão positiva do “sertão”, ainda assim a equação dessa positividade será encara-
da como um potencial adormecido, havendo a necessidade de ações transformadoras
(MORAES, 2002, p. 363). O olhar externo é marcado fundamentalmente pela diferen-
ça, que incide sobre os lugares, e também sobre seus habitantes. “A diferença é, assim,
paisagística, mas, sobretudo, cultural” (MORAES, 2002, p. 365).
143 Claude Lévi-Strauss, em Tristes trópicos, comenta sobre a língua brasileira e a tradução que faz de sertão por
brousse: para ele, ‘mato’ “refere-se a um caráter objetivo da paisagem: a brousse, no seu contraste com a floresta; ao
passo que ‘sertão’ refere-se a um aspecto subjetivo: a paisagem em relação ao homem (LÉVI-STRAYSS, 1996: 172).
150
Decididamente era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um ob-
jectivo superior à funcção estupida e bem pouco gloriosa de destruir um povo-
ado dos sertões. Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra mais de-
morada e digna. Toda aquella campanha seria um crime inutil e barbaro, se não
se aproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma propaganda tenaz,
contínua e persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa
existência aquelles rudes compatriotas retardatários (CUNHA, 1905, p. 522).
Além desse efeito, Leopoldo Bernucci atenta para a utilização do locus amoenus
como maneira de “demonstrar que a descrição da paisagem não está dada para re-
presentar fielmente a realidade” (BERNUCCI, 1995, p. 45). Nesse sentido, como o
autor lembra, esse recurso não trata de comprovar ou não o universo imaginário
d’Os sertões, mesmo porque, independente se o texto fala sobre objetos ‘possíveis’, ou
sobre um “referente” demarcado, toda a construção textual terá que necessariamen-
te considerar todos os enunciados como “constitutivos de entidades não existentes”
(BERNUCCI, 1995, p. 45). Nesse sentido, ao falar sobre Monte Santo, por exemplo, o
contraste entre o “martyrio da terra” (CUNHA, 1905, p. 16) e “o el-dorado maravilhoso,
a mina opulentissima occulta no deserto” (CUNHA, 1905, p. 147), há uma represen-
tação estética “que depende do real para tornar-se imaginária” (BERNUCCI, 1995, p.
45), movendo-se de um domínio ao outro. Na leitura aproximativa de Bernucci entre
Victor Hugo e Euclides da Cunha, podemos nos apoiar na interpretação do autor para
perceber o uso do locus amoenus em Tristes trópicos: assim como o deserto, que, para
Euclides, se apresenta como “barbaramente estereis; maravilhosamente exuberantes”
(CUNHA, 1905, p. 50), a floresta encarna “o mistério, o silêncio e o segredo”.
Tão densa quanto nossas cidades, [a floresta] era povoada por outros seres for-
mando uma sociedade que, seguramente, nos mantivera à margem mais do
que os desertos por onde avançávamos alucinados. [...] Um mundo de plantas,
de flores, de cogumelos e de insetos ali prossegue livremente uma vida própria
na qual depende de nossa paciência e de nossa humildade sermos admitidos.
Algumas dezenas de metros de floresta bastam para abolir o mundo exterior,
um universo cede lugar a outro, menos condescendente com a vista, mas onde
a audição e o olfato esses sentidos mais próximos da alma, não têm do que se
queixar. Bens que julgávamos desaparecidos renascem: o silêncio, o frescor e a
paz (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 363).
151
Tristes trópicos compõe a coleção “viagens filosóficas”, publicada pela editora Plon,
sob a organização de Jean Malaurie, que convidou Lévi-Strauss por ter ficado impres-
sionado com as fotografias que ilustram a tese complementar A vida social e familiar
dos nambiquaras (1948). Com um espaço de tempo relativamente curto entre a publi-
cação da tese As estruturas elementares do parentesco (1948) e Tristes trópicos, Vincent
Debaene percebe, desde os anos 1930, uma curiosidade bibliográfica que denomina
de “dois livros” do etnógrafo. Esse fenômeno é percebido na maioria dos etnógrafos
franceses que realizaram trabalhos de campo e escreveram suas monografias acadê-
micas e, posteriormente, publicaram um “segundo livro” com aspirações literárias,
pois a etnografia, segundo Debaene, estava compromissada com o “rompimento”
com as narrativas de viagem.
Em análise feita por Roberto DaMatta (1993), concebemos como diferença central
entre as narrativas de viagem e a etnografia a ausência na segunda da “experiência da
viagem para que se saliente apenas o ponto de chegada como experiência” (DAMATTA,
1993, p. 38). Ao atribuir à viagem e à sua narrativa o espaço do desenrolar de aven-
turas, principalmente no que diz respeito ao que acontece com aquele que narra, há
uma “liberdade individual de alterar a ordem de certos eventos” (DAMATTA, 1993,
p. 39). É no mínimo irônico Tristes trópicos, enquanto um livro de relato de viagem,
ser inaugurado com a famosa frase: “Odeio as viagens e os exploradores” (LÉVI-
STRAUSS, 1996, p. 15). Recuperando a discussão de Walter Benjamin em Experiência
e pobreza, o autor destaca um sintoma da “pobreza de experiência” justamente pelo
fenômeno das inúmeras publicações de livros no mercado literário sobre as grandes
guerras. Relacionamos o diagnóstico do fenômeno editorial às declarações de Lévi-
Strauss para com o aumento dos livros de viagem:
152
[...] Por um paradoxo singular, minha vida aventureira mais me devolvia o an-
tigo universo do que me abria um novo, ao passo que este que eu pretendera
dissolvia-se entre meus dedos (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 403).
153
uma aventura pela linguagem e denunciando o crime que a nacionalidade praticou
contra ela mesma. A menção direta a alguns jornais da época145 com opiniões declara-
das contra Antonio Conselheiro, visto pela ótica de motivações monarquistas, como
a crítica direta às ações do exército republicano reservaram consequências direta na
vida do autor, sendo inclusive demitido enquanto adjunto de ensino da Escola Militar
e perdendo a patente de primeiro-tenente após a publicação do livro.
Instigante como a viagem n’Os sertões é o que sustenta os argumentos de Euclides,
por ter ido a Belo Monte, enquanto que a viagem em Tristes trópicos configura-se
como espaço de elaborações pessoais na metáfora de um “saco para esvaziar”:
Apesar do aparente objetivo despretensioso, o livro foi recebido pela crítica, se-
gundo Emmanuelle Loyer, como um objeto inclassificável, embora encarado prin-
cipalmente enquanto pertencente à tradição da viagem filosófica, de Montaigne a
Montesquieu (LOYER, 2018, p. 392). Ademais, interpretado ora como uma literatura
avessa ao romance moderno, como a expressão do antigo regime das belas letras,
livro de ciência, escrita política, etc146., a confluência de diferentes olhares atesta a
perplexidade imputada à intelectualidade francesa. Clifford Geertz mobilizou uma
cara imagem ao próprio pensamento de Lévi-Strauss para caracterizar Tristes trópicos:
a imagem do caleidoscópio. Estendendo a metáfora para Os sertões, iremos, então,
passar pelas veredas temporais desses caleidoscópios.
145 Euclides mobiliza matérias dos jornais Gazeta de Notícias (7 de março de 1897), O País e O Estado de S. Paulo
para ver: CUNHA, 1905: 300-301).
154
II. TEMPO E HISTÓRIA N’OS SERTÕES
E EM TRISTES TRÓPICOS
Das diversas imagens que um caleidoscópio suscita, Emmanuelle Loyer aponta para
uma direção muito estimulante à pesquisa: a leitura de Tristes trópicos na chave prous-
tiana. O relato de retorno impõe a relação do tempo com as esperanças e as inquie-
tações, na epifania da rememoração. Michel Leiris escreve que Tristes trópicos de-
monstra na recusa do tempo cronológico, uma “experiência de apropriação do fluxo
do tempo” (LEIRIS, 1956, p. 38), à maneira da “iluminação proustiana” (LEIRIS, 1956, p.
38), emergindo enquanto livro que aposta que a memória “não é a apenas a faculdade
de esquecer ou rememorar, mas, profundamente, uma faculdade de decantação, com-
preensão e significação” (LEIRIS, 1956: LOYER, 201, p. 383). Tristes trópicos não como
um relato do vivido, mas um relato do lembrado. Na leitura de Walter Benjamin a
Marcel Proust, há um afastamento do auto biográfico, apesar de sua vida ser o cenário
principal dos livros, na busca por integrar a experiência individual de sua própria re-
memoração com uma experiência maior, em um sentido coletivo (BENJAMIN, 1994).
Que ocorreu, afinal, senão a fuga dos anos? Rolando minhas recordações em seu
fluxo, o esquecimento fez mais do que gastá-las e enterrá-las. (...) “Cada homem”,
escreve Chateaubriand, “traz em si um mundo composto de tudo o que viu e
amou, e onde ele entra em permanência, ao mesmo tempo em que percorre e
parece habitar um mundo estrangeiro. (...) De forma inesperada, entre mim e a
vida o tempo alongou seu istmo; foram necessários vinte anos de esquecimento
para me levarem ao tête-à-tête com uma experiência antiga cujo sentido me
fora recusado, e a intimidade, roubada, outrora, por uma perseguição tão longa
quanto a Terra (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 44).
A construção dos textos traz para a discussão a experiência em comum das via-
gens como palco de suas defrontações com o outro e com suas próprias culturas.
Levando em seu bolso a Histoire d‘un voyage faict en la terre du Brésil (1578), de Jean
de Léry, instigado e inspirado por relatos de viajantes a respeito do Atlântico, Lévi-
Strauss, ao desembarcar no litoral brasileiro, dará início a um itinerário ao interior
do Brasil que o levará a pelo menos 3 mil quilômetros adentro. Passando por grandes
cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, cidades em construção como Goiânia, aos
155
biomas do cerrado e do pantanal, ao estabelecer contatos com as primeiras socieda-
des indígenas de sua carreira, Lévi-Strauss constata o seu círculo intransponível:
No final das contas, sou prisioneiro de uma alternativa: ora viajante antigo, con-
frontado com um prodigioso espetáculo do qual tudo ou quase lhe escapava
– pior ainda, inspirava troça e desprezo -, ora viajante moderno, correndo atrás
dos vestígios de uma realidade desaparecida (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 44).
156
Vivendo quatrocentos annos no littoral vastissimo, em que pallejam reflexos
da vida civilisada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a Republica.
Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideaes modernos, deixando
na penumbra secular em que jazem, no amago do paiz, um terço da nossa gen-
te. Illudidos por uma civilisação de emprestimo; respingando, em faina cega de
copistas, tudo o que de melhor existe nos codigos organicos de ouras nações, tor-
namos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligerio com as exigencias
da nossa propria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de
viver e o daquelles rudes patricios mais estrangeiros nesta terra do que os im-
migrantes da Europa. Porque não nos separa um mar separam-nos tres seculos...
(CUNHA, 1905, p. 205-206).
Por essa chave, Luiz Fernando Valente considera haver, n’Os sertões, uma “am-
bígua e paradoxal continuidade” (VALENTE, 2009, p. 138) entre ciência e literatura.
Apesar de Euclides declarar-se distante do que chama de “literatura imaginosa, de
ficções, onde desde cedo se exercita e se revigora o nosso subjetivismo” (CUNHA,
2000, p. 102) e declarar que “o consórcio da ciência e arte, sob qualquer um de seus
aspectos, é hoje a tendência mais elevada do pensamento humano” (CUNHA, 1966,
p. 653), Luiz Fernando argumenta que por não praticar a transposição literal das ten-
dências europeias, a escrita d’Os sertões requer a ficcionalização, pois somente através
dessa vereda que Euclides pode aprofundar sua indagação e começar a imaginar pos-
síveis soluções para as contradições de sua reflexão sobre o Brasil. Analisado por esse
prisma, Valente defende que o recurso à ficção - acrescentamos para além do recurso
à ficção, o recurso da linguagem majoritariamente sertaneja - pode ser entendido
como “uma alternativa ao processo de colonização intelectual do Brasil pela Europa,
e uma afirmação da diferença nacional” (VALENTE, 2009, p. 138).
Como Nicolazzi situa em sua tese147, o início do século XX foi marcado pelo pro-
fundo sentimento de ‘deslocamento’, configurado pela impressão de um lapso entre
sociedade e história, “entre o lento e descontínuo desenvolvimento social e o pro-
cesso acelerado do tempo” (NICOLAZZI, 2008, p. 3). Se Os sertões é um “refluxo para
o passado” (CUNHA, 1905), é porque há uma profunda sensação de ruptura entre
presente e passado. Porém, mais do que esse diagnóstico, Nicolazzi argumenta que o
147 NICOLAZZI, Fernando Felizardo. Um estilo de história: a viagem a memória, o ensaio, sobre Casa-grande &
senzala e a representação do passado. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2004-2008.
157
livro colaborou para o deslocamento do olhar para si mesmo. Ao trabalhar sob o pris-
ma da distância, o efeito de alteridade dá “a impressão de que olhar para o interior
equivalia a vislumbrar uma exterioridade” (NICOLAZZI, 2008, p. 126).
Operando segundo um jogo antagônico de inversão, Euclides, de acordo com
Nicolazzi, mune-se desse recurso para poder dar conta de tamanha diferença e pro-
duzir um saber eficaz sobre o sertão. E é seguindo essa construção da distância no
tempo e no espaço que para Nicolazzi concretiza-se o procedimento intelectual ne-
cessário, uma vez que, “na apreciação dos factos o tempo substitue o espaço para a
focalisação das imagens: o historiador precisa de certo afastamento dos quadros que
contempla” (CUNHA, 1905, p. 301). Por conta de tal distanciamento que é possível a
Euclides escrever sobre tais eventos, denunciando o fracasso e a covardia da missão
civilizadora, “pois estando num outro tempo, ou mesmo fora dele, a brutalidade ali
encontrou seu abrigo propício, apresentando-se com a mão pesada na força da dego-
la” (NICOLAZZI, 2010, p. 279). Afinal, como explica Euclides, para os carrascos “não
havia temer-se o juízo tremendo do futuro” (CUNHA, 1905, p. 567), já que o tempo
ali obedecia à outra prerrogativa: “a História não iria até alli” (CUNHA, 1905, p. 567).
Por fim, conclui Nicolazzi que “Os sertões é todo ele atravessado pela alteridade, sem
conseguir jamais se desvencilhar da figura do duplo que o acompanha: outro lugar,
outra gente, outro tempo” (NICOLAZZI, 2010, p. 280).
148 Sobre as aproximações entre Facundo e Os sertões, ver: GARÁTE, Miriam. Olhares cruzados: entre Sarmiento
158
Sarmiento, escritor (1998), Piglia aponta que o mundo cindido é o núcleo central de
Facundo, sendo a relação da oposição entre civilização e barbárie a complexa chave
de entrada para manter esses dois mundos unidos, união essa construída no texto
a partir da “diferença pura” (PIGLIA, 2010, p. 23). N’Os Sertões impera essa nego-
ciação constante entre os modos letrados e orais, entre a aferição empírica- teórica
e a sensorialidade, num duplo movimento em que “o escritor está na fronteira”
(PIGLIA, 2010, p. 23). Estando na fronteira, Piglia nota que o “e”, de civilização e
barbárie, não é ingênuo ou casualmente utilizado, mas estrategicamente manejado
para explorar essa sobreposição. Não é civilização ou barbárie. Situando-se nesse
limite, Facundo e Os Sertões não são lidos como romance, mas “como um uso polí-
tico do gênero” (PIGLIA, 2010, p. 26).
Acrescentemos o prisma de análise sugerido por Carlos Altamirano, em seu ar-
tigo Ideias para um programa de história intelectual (2007), ao escrever sobre a tradição
literária latino-americana durante o século XIX, afirmando serem textos de combate,
ordenando-se ao redor da política e da vida pública, sendo os principais impulsionares
da literatura das ideias em nossos países (ALTAMIRANO, 2007, p. 14). Argumentando
com um ensaísta argentino, H. A. Murena, considera que, na América Latina, “há uma
grande tradição literária que não é, paradoxalmente, literária” (ALTAMIRANO, 2007, p.
14), sendo na verdade uma tradição de fazer a arte da política a partir da arte de escrever.
Essa interpretação é cara ao pensar Os sertões, pois Altamirano indica que essa
tradição literária teve que defrontar problemas fundamentais e clássicos para a or-
dem política, podendo esquematizá-las a partir de duas questões, ou perguntas, su-
cessivas. A primeira dizia respeito à autoridade legítima após as independências, vis-
to que a presença da Coroa não se fazia mais presente. A segunda surge quando já
se experimentaram as dificuldades práticas para resolver a primeira, que seria sobre
uma ordem legítima que, ao mesmo tempo, é uma ordem possível. Paralelo a essas
preocupações, somaram-se outros núcleos de reflexão na literatura das ideias de nos-
sos países, sendo o núcleo principal circunscrito na pergunta sobre nossa identidade.
Segundo Altamirano, “a tarefa de definir quem somos foi frequentemente a opor-
tunidade para o diagnóstico de nossos males, ou seja, para denunciar as causas de
deficiências coletivas” (ALTAMIRANO, 2007, p. 15).
e Euclides da Cunha. 1995. 262f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da
Linguagem, Campinas, SP. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/269500
159
Outro traço percebido nas letras brasileiras do início do século marcado por esse
corte na ordem do tempo entre cultura e civilização é a feitura do que Nicolazzi
chama de um discurso sobre a ausência. Nesse eixo interpretativo, sem nos determos
longamente nessa concepção e nos desdobramentos na intelectualidade brasileira, é
pertinente no atual estágio da pesquisa indicar uma possível bifurcação do uso e da
produção desse discurso: em Euclides, assim como na maioria dos escritores brasi-
leiros do início do século, há a elaboração de “uma imagem da pátria por aquilo que
ela tinha de lacunar, por aquilo que lhe faltava”, enquanto que em Tristes trópicos a
ausência evocada por Lévi-Strauss é literal: pela “função profunda da antropologia
como ciência dos últimos dias” (LOYER, 2018, p. 390).
O dilema das ciências etnológicas estaria circunscrito tanto pela pretensão em re-
constituir um passado cuja história não se pode atingir – drama da etnologia -, quan-
to em querer fazer a história de um presente sem passado – drama da etnografia
(HARTOG, 2006, p. 13). Imerso nessa armadilha do viajante moderno, Tristes trópicos
reserva esse encontro singular entre decepção e fruição. Fruições que operam, segun-
do Beatriz Perrone-Moisés (PERRONE-MOISÉS, 2009), como o pensamento selvagem,
ou seja, a partir de códigos sensoriais. Sensações olfativas, gustativas, táteis e auditivas:
dos perfumes das frutas, do solo molhado, da cidade de São Paulo, dos mercados, dos
sabores da erva mate, dos ‘corós’, da rapadura, dos sons do pantanal, o rugido de on-
ças, o canto das araras, o pôr do sol, o frescor traduzido em uma embriaguez olfativa”
(LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 83), concebendo o Brasil como um perfume queimado:
160
O Brasil esboçava-se em minha imaginação como feixes de palmeiras torneadas,
ocultando arquiteturas estranhas, tudo isso banhado num cheiro de defumador,
detalhe olfativo introduzido sub-repticiamente, ao que parece, pela homofonia
observada de forma inconsciente entre as palavras Brésil e grésiller [“Brasil”
e “crepitar”], e que, mais do que qualquer experiência adquirida, explica que
ainda hoje eu pense primeiro no Brasil como num perfume queimado (LÉVI-
STRAUSS, 1996, p. 50).
Aqui um outro traço proustiano observado por Frank Lestringant: a busca remi-
niscente que o acompanha lembra a famosa madeleine de Proust. A madeleine do et-
nólogo, para Lestringant, seria o creosoto, usado para conservar os cantis dos cupins
e do bolor, em que o que o surpreende é a indicação sutil que a etimologia da palavra
traz à sua interpretação: a palavra creosoto, formada pelas palavras gregas kreas, a
“carne”, e sózein, “salvar”, literalmente detém a podridão da carne. Metaforicamente,
assim, a leitura de Tristes trópicos e a própria etnologia são entendidas como tarefa
e tentativa de impedir o desaparecimento do passado (LESTRINGANT, 2000, p. 98).
Ainda que reiteremos a recusa em limitar os livros em um domínio discursivo es-
pecífico, é inegável um outro traço diferenciador entre etnografia e relato de viagem
que Roberto DaMatta adiciona ao seu esquema: o objetivo, na etnografia, de enfren-
tar um problema. Nesse sentido, se dizemos que Os sertões e Tristes trópicos são livros
de e sobre viagem, é porque eles se configuram pelo caráter sintomático que essas
viagens operam tanto na interpretação dos grupos estudados, mas principalmente
pela reflexão dos próprios pressupostos da viagem e escrita para a compreensão do
problema, uma vez que este é delimitado pelo o que a sociedade lhe permite naquele
momento (DAMATTA, 1993, p. 40).
Dentro de algumas centenas de anos, neste mesmo lugar, outro viajante, tão de-
sesperado quanto eu, pranteará o desaparecimento do que eu poderia ter visto e
que me escapou. Vítima de uma dupla inaptidão, tudo o que percebo me fere, e
reprovo-me em permanência não olhar o suficiente (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 44).
161
levi-straussiano: como uma sociedade se abre à história? (HARTOG, 2006, p. 20) A
partir das discussões levantadas por François Hartog em Crer em História (2013), o
conceito de “civilização” é o elemento central do regime moderno de historicidade,
por ser um conceito futurista e um conceito normativo, na medida em que se forjava
como destino (caminha-se para ela) e por sua mensuração gradativa (existem níveis de
civilização). O mesmo vale, segundo Hartog, para o conceito de “modernização”, que
prescrevia a importância à aceleração, entendendo-a como “a forma contemporânea
de civilização” (HARTOG, 2016, p. 208). Se o problema do evolucionismo engendrou
interpretações problemáticas a respeito das experiências temporais divergentes ao
regime moderno de historicidade, é justamente Claude Lévi-Strauss quem lançará
luz ao debate com o artigo Raça e história (1952), no qual inverte-se o problema da
distância no espaço como diferença no tempo, pois “tratar-se-á de perceber que as
sociedades não se acumulam numa linearidade de sucessão cronológica, mas sim
se justapõe na expansão de espaços distintos, mas contemporâneos” (NICOLAZZI,
2010, p. 272). Na aspiração pela “grandeza indefinível dos começos” (LÉVI-STRAUSS,
1996, p. 420), Hartog lê Lévi-Strauss não como um intelectual “antihistórico”, mas
enquanto engajado no combate à equivalência entre a noção de história e humanida-
de, “que nos pretendem impor com o objetivo inconfesso de fazer da historicidade o
último refúgio de um humanismo transcendental” (HARTOG, 2006, p. 16). Portanto,
não é na defesa da destruição da ideia de progresso, mas de “passá-la da posição de
categoria universal [...] para a de modo particular de existência” (LÉVI-STRAUSS, 368
apud HARTOG, 2006, p. 16).
Ainda que partilhem do paradoxo do narrador sem experiências, de Walter
Benjamin, e a escrita de seus textos integrem um panorama de “salvaguardar” e “de-
nunciar” violências pretensamente justificadas por axiomas do “processo civilizató-
rio” às “coletividades sociais inteiras” (DEBAENE, 1999, p. 106), os livros consagram,
pelo encontro entre literatura e etnografia, uma das saídas para seus problemas.
162
Nas etnografias, contudo, o drama humano está sempre circunscrito a um con-
junto de regras e a uma certa configuração humana que se busca esclarecer.
Nelas se exercita ‘traduzir’, no sentido preciso de contextualizar motivos e ações.
(DAMATTA, 1993, p. 45).
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149 No tópico intitulado “No sertão”, Lévi-Strauss escreve: [...] “onde estão as terras malditas do Brasil pintadas
por Euclides da Cunha em Os sertões, a serra do Norte haveria de se revelar um cerrado semidesértico e uma
das zonas mais ingratas do continente” (LÉVI-STRAUSS, 1996: 277).
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165
HISTÓRIA INTELECTUAL, HISTORIOGRAFIA
E TEORIA DA HISTÓRIA. QUANDO O FAZER
E O PENSAR A HISTÓRIA SE ENCONTRAM
FELIPE BRANDI150
O sucesso que a teoria da história tem conhecido no Brasil nas últimas duas décadas é
salutar e encorajante. O campo tem se expandido velozmente, dinamizando o nosso
ensino da história, seduzindo um número crescente de alunos, gerando publicações
de qualidade, inspirando uma profusão de pesquisas na pós-graduação, conquistan-
do um lugar de destaque em nossos congressos e impulsionando o aparecimento de
novas revistas. Praticamente todos os departamentos de História no Brasil abrem
suas portas a este anseio teórico que vem ganhando a nossa historiografia, ofertando
cada vez mais cursos orientados para a teoria, a metodologia e a história da historio-
grafia. No entanto, precisamos nos curvar ante a evidência: este sucesso do campo
da teoria entre nós é também excepcional. Queremos dizer com isso: circunscrito,
inhabitual, num contraste flagrante com as orientações que, no plano internacional,
parecem hoje prevalecer entre as grandes tradições historiográficas. Aparentemente
forte e consolidada, esta voga teórica entre os historiadores brasileiros pode se reve-
lar circunstancial, transitória e vulnerável.
Partindo desta constatação do sucesso atual da teoria da história entre nós qua-
se como uma espécie de “excepcionalidade brasileira” no cenário historiográfico
internacional, procuraremos nas páginas que se seguem colocar algumas questões,
150 Doutor em História e Civilização pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Felipe Brandi é pesqui-
sador, no quadro de um contrato CEECIND/01564/2021, do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Facul-
dade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. O IHC é financiado por fundos nacio-
nais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito dos projectos UIDB/04209/2020
e UIDP/04209/2020.
166
muito gerais, que talvez nos ajudem a pensar e a questionar o aparente sucesso da
teoria no ensino da História no Brasil. O objetivo aqui não será o de traçar uma
história da(s) teoria(s) da história, muito menos o de esboçar uma teoria da teoria da
história. Muito mais modesto, o nosso objetivo será simplesmente o de propor um
olhar sobre este sucesso da teoria no Brasil dos últimos vinte anos, relembrando os
laços que este campo mantém com as pesquisas de história intelectual e de história
da historiografia.
167
estudo da teoria ocupa ao mesmo tempo nos escritos e no ensino de disciplinas como
a antropologia, a sociologia, a linguística e a ciência política, há muito familiarizadas
com a literatura filosófica e com os debates de teor epistemológico.
Dentro do campo da disciplina histórica, as pesquisas na área de história inte-
lectual constituem, provavelmente, o setor onde melhor se pode perceber a aliança
fecunda entre a prática empírica da história e a reflexão teórica. E isso, possivelmente
pelo fato da história intelectual ser uma abordagem que atravessa, de ponta a ponta,
todo o campo da história, cortando os seus mais diferentes setores; uma abordagem
cujo objeto é, ademais, o amplo universo das ideias, tendo como principal material
de trabalho este vasto leque de realidades imateriais que são as representações, os
modos de expressão, a moral e, enfim, os sistemas de pensamento (doutrinas filosó-
ficas, ideias teóricas, descobrimentos científicos). Neste sentido, a história intelectual
reduz um pouco a distância que tende a separar as pesquisas empíricas e os trabalhos
na área de teoria, uma vez que ela tem por vocação fomentar pesquisas dedicadas a
estudar a maneira com que funcionam os sistemas de pensamento, assim como o
impacto, a repercussão destes sistemas sobre a cultura de dada sociedade.
Na encruzilhada entre historiadores “práticos” e “teóricos”, a história intelectual
pode, sem dúvida, servir como uma espécie de canal por onde é possível vislumbrar
um trânsito entre as pesquisas de teoria e os trabalhos empíricos, assim como um
diálogo entre seus respectivos especialistas. No entanto, devemos reconhecer que é
sobretudo a separação entre estes que hoje impera no campo da história. Esta reserva
dos historiadores frente à teoria repercute igualmente sobre os estudos de historio-
grafia – outro campo florescente entre nós, embora deixado comummente de lado
pelas grandes escolas históricas internacionais. No momento mesmo em que os his-
toriadores profissionais resolveram se apoderar da história das ciências, da história
da literatura e da história da arte, defendendo a necessidade de se pensar cada um
desses campos em sua inscrição numa duração, é surpreendente notar como esses
mesmos historiadores se levantaram contra quem ousasse tentar, desta vez, histori-
cizar o saber que produziam. Novamente, outras ciências sociais já haviam tomado
a dianteira, dispostas a examinar, sem receios nem melindres, a história de suas dis-
ciplinas, enquanto que a história da historiografia continuava relegada ao estatuto
de curiosidade marginal dentro das mais renomadas escolas históricas. Apanágio da
história, única disciplina capaz de utilizar os seus próprios métodos e ferramentas no
estudo de si mesma e, se desdobrando, acolher em seu seio uma história da história,
168
tal correspondência demasiado direta, demasiado estreita existindo, no caso da disci-
plina histórica, entre o objeto do seu conhecimento e o conhecimento de seu objeto
talvez tenha sido encarada menos como um trunfo ou uma riqueza do que como um
inconveniente aos olhos dos historiadores profissionais. Paradoxo? Entre estes últi-
mos, muitos são, na realidade, aqueles dispostos a aderir, espontânea e prontamente,
à posição de Louis Althusser, para quem, recordemo-lo, “o conhecimento da história
é tão histórico quanto o conhecimento do açucar é açucarado”(Althusser, 1965, p. 132).
Ora, nenhuma visão poderia ser assim tão contrária aos princípios fundamentais so-
bre os quais está erguido qualquer estudo de história da historiografia. Se as demais
ciências sociais e, inclusive, as ciências exatas são desde há muito reconhecidas como
filhas de seu tempo, e não mais encaradas como saberes desencarnados, como então
explicar esta relutância por parte dos historiadores em aplicar esta mesma consta-
tação ao seu campo, em admitir a historicidade da sua prática e de suas conquistas?
Em 1984, em seu texto de abertura à monumental empresa dos Lugares de memória,
Pierre Nora reconhecia que “a historiografia é iconoclasta e irreverenciosa” (Nora,
1984, p. XXI). Alguns anos mais tarde, outro historiador francês, desta vez o medie-
valista Georges Duby, na conclusão de sua autobiografia intelectual, apontava para
o estudo da historiografia, da história da história, como uma das orientações mais
promissoras das pesquisas históricas, precisamente porque parecia-lhe capaz de per-
turbar os hábitos dos historiadores, de solapar muitas de suas certezas e, sobretudo, a
confiança excessiva que depositam no rigor de sua ciência (Duby, 1991, p. 219). De fato,
como assinalam Duby e Nora, a história da historiografia tem, em princípio, tudo
para provocar os historiadores de ofício. Pois com ela, é a própria disciplina histórica
que se revela permeada pelos conflitos do século, e obrigada a reconhecer que ela
não obedece, como sonharam os arautos da historiografia científica, a um desenvol-
vimento autônomo, rigorosamente cumulativo e tributário exclusivamente da lógica
interna de sua própria razão. Ao contrário, o que as pesquisas de história da historio-
grafia nos ensinam é que o saber dos historiadores deve ser apreendido em sua ins-
crição dentro de um conjunto, jamais fixo, jamais estático, de representações mentais,
atravessado de um extremo ao outro por interesses e preocupações políticas, cercado
pelas grandes ideologias. E isso não é tudo. Talvez ainda mais perturbador, aos olhos
dos historiadores, seja o fato de que o interesse pelos estudos de teoria e de historio-
grafia tenderam a fortalecer a convicção, entre os próprios pares, de que o desenvol-
vimento do saber histórico não implica necessariamente a conquista progressiva de
169
um privilégio de verdade. As ferramentas do historiador se aperfeiçoam, os meios
de investigação se aprimoram; no entanto, apesar destes avanços palpáveis, estamos
hoje conscientes de que o historiador de amanhã não estará impreterivelmente mais
próximo da “verdade” do que o estiveram os historiadores do passado, nossos pre-
decessores. As questões levantadas pelos historiadores se transformam, se renovam,
mas permanece intransponível a distância que os separa deste “real” passado cuja
lembrança eles se empenham em perpetuar.
Eis o conteúdo inegavelmente polêmico e desestabilizador das pesquisas de teo-
ria e de historiografia. Tanto a atração que elas exercem entre muitos de nossos
estudantes, quanto as objeções e o repúdio que elas suscitam entre os historiadores
que se autoproclamam “empíricos” têm a sua origem precisamente no fato de levan-
tarem este tipo de interrogação de natureza epistemológica. Com efeito, as pesqui-
sas de teoria (e, neste caso, também de história da historiografia) são inseparáveis
de um desassossego epistemológico. Elas se originam e se alimentam dos sucessi-
vos desafios epistemológicos que abalaram, ao longo dos anos, a disciplina histórica.
Acumulando-se ao longo do último século, tais desafios, que forçaram os historiado-
res a se mostrarem inventidos, renovando e complexificando gradualmente o campo
da história, se intensificaram no último terço do século XX, abalando definitiva-
mente certezas há muito tidas como estabelecidas. Desta intensificação dos desafios
epistemológicos nas últimas décadas, provém sem dúvida alguma o atual sucesso
das áreas de teoria da história e de história da historiografia entre nós.
170
contraposição ao modelo das ciências naturais. Em meio a estes autores podemos ci-
tar, entre outros, Johann Gustav Droysen151 (1808-1884), Wilhelm Dithey152 (1833-1911),
Wilhelm Windelband153 (1848-1915), Eduard Meyer154 (1855-1930), Heinrich Rickert155
(1863-1936), e ainda, desta vez na Itália, Benedetto Croce156 (1866-1952). Do ponto de
vista de uma história da teoria da história, o que há em comum a este conjunto de
autores é o fato de submeterem a matéria história a uma análise crítica e filosófi-
ca, não com intuito de examinar categorias gerais como as de evolução, acaso, ação,
destino, progresso, decadência, mas no esforço de identificar, ao contrário, os traços
distintivos e os fundamentos de uma ciência histórica voltada para o estudo do indivi-
dual. A força e a originalidade desta produção representa, sem sombra de dúvida, uma
inflexão na história da reflexão sobre o conhecimento da história, e o seu impacto
foi considerável, fazendo-se sensível inclusive entre autores pertencendo a países de
tradições intelectuais pouco afeitas a questionamentos filosóficos sobre a história157.
A partir do final da Segunda Guerra Mundial e ao longo de toda a segunda meta-
de do século XX, o campo da teoria da história se contraiu, ao passo em que os estu-
dos históricos realizavam extraordinários avanços e se renovavam vigorosamente158 .
Certo, o campo esteve longe de desaparecer totalmente, dando ao contrário sinais
constantes de vitalidade. Pode-se inclusive dizer que, ao longo da segunda metade
do século XX, a produção na área da teoria da história foi, tanto quanto escassa, no-
tável. Este é, por exemplo, o caso da obra de Reinhart Koselleck e do extraordiná-
rio sucesso planetário alcançado, a partir dos anos 1970, pela história dos conceitos
152 De W. Dilthey, cf. em particular a sua introdução às ciências do espírito (Dilthey, 1883), e o seu estudo sobre
a Construção do mundo histórico nas ciências do espírito (Dilthey, 1910).
157 Este é, notadamente, o caso inglês, onde R.-G. Collingwood (Collingwood, 1946) se colocou como um dos
promotores da Teoria da história entre seus pares; e o caso francês, onde o aporte dos teóricos alemãs foi recu-
perado por Raymond Aron (Aron, 1948 e Aron, 1938) e por Henri-Irénée Marrou (Marrou, 1954) , mas permane-
ceu ignorado pelos historiadores profissionais, com a excepção do livro de Paul Veyne (Veyne, 1971).
158 Cabe assinalar, aqui, a excepção do caso soviético, onde a teoria da história conservou um papel de destaque,
tanto no ensino quanto na pesquisa da história, graças à importância da posição ocupada pelo materialismo
histórico na U.R.S.S.
171
(Begriffsgeschichte) que ajudou a promover. Mas a principal expressão do vigor con-
servado pelo campo, circunscrito, da teoria talvez seja a criação, em 1960, da revista
History and Theory, verdadeiro dispositivo de comunicação servindo de tribuna para
a promoção das pesquisas internacionais na área. Publicada em Middletown, History
and Theory se destaca pela notável qualidade dos trabalhos que acolhe e pela abertura,
sem temores, para contribuições com questionamentos abertamente filosóficos so-
bre a prática e a construção do conhecimento da história. Há sessenta anos, a revista
exerce um papel sem igual, ditando a agenda internacional dos debates no campo da
teoria da história.
O sucesso de uma revista como History and Theory não nos deve, no entanto, en-
ganar. Apesar da indiscutível fineza analítica e das invejáveis conquistas, coletivas ou
individuais, realizadas no campo da teoria da história ao longo dos últimos sessenta
anos, é forçoso reconhecer que este último continua relegado a uma posição perifé-
rica, paradoxal no seio da disciplina história – uma posição pouco condizente, a dizer
verdade, com a qualidade dos trabalhos realizados e com o imenso investimento in-
telectual por parte de seus praticantes159. Como explicar, então, tal situação? Na reali-
dade, ela se deve ao fato de que, amiúde, grande parte dos historiadores profissionais
não vêem com bons olhos aqueles, entre os seus colegas, que se mostram dispostos a
proclamar que o conhecimento que produzem é subjetivo, que contestam as preten-
sões de cientificidade da história, que denunciam os pontos de fragilidade do saber
histórico, negam o caráter cumulativo do mesmo e, enfim, demonstram como este
saber é, em última análise, determinado socialmente. A maioria dos historiadores
ainda se recusa a admitir que as suas pesquisas são tributárias de condicionamentos
sociais. Daí o incômodo que representam os trabalhos nas áreas de teoria e de histo-
riografia, uma vez que, sob a lente destas, o historiador mostra-se em toda a sua nu-
dez, aparecendo ele mesmo não como produtor, mas antes como produto da história,
envolto e enredado nas ideologias de seu tempo.
Esta divergência na forma mesma de pensar a natureza do conhecimento pro-
duzido pela história é a razão para permanência, ainda em nossos dias, da antiga
159 Com o intuito de remediar esta situação, foi criado, em 2012, o chamado International Network for Theory
of History, cuja recente atividade se destaca justamente pelo seu projeto de congregar profissionais de um
campo desagregado onde a maior parte dos pesquisadores trabalha em relativo isolamento, contribuindo assim
para impulsionar um setor que, apesar da sua extensa produção e da qualidade de seus resultados, permanece
à margem de outros setores da disciplina histórica há muito institucionalizados.
172
partição, à qual já fizemos alusão acima, separando o historiador “teórico” e o histo-
riador tout court – o historiador empírico, o “artesão”, deliberadamente distanciado
da reflexão crítica sobre o papel social da história e a natureza do conhecimento que
ele acredita produzir. Dentro desta última categoria, muitos são aqueles que man-
têm, hoje em dia, uma posição análoga à de Louis Halphen, que lamentava o caráter
excessivamente abstrato das pesquisas na área de teoria da história, descrita por ele
como um “[c]ampo indefinido de reflexões, onde os espíritos os mais diversos se
movem obstinadamente, sem que seja sempre possível distinguir com precisão o
benefício que a própria ciência histórica pode daí retirar” (Halphen, 1946, p. 83). Com
efeito, se Halphen admite que os problemas outrora levantados pelos alemãs Dilthey,
Rickert ou Simmel estão entre os mais delicados jamais colocados aos historiadores,
ele no entanto deplora que a forma de levantar e de tratar estes mesmos problemas
fundamentais seja tão abstrata e envolta em impenetrável obscuridade (Cf. Halphen,
1946, p. 84). A teoria da história estaria, a seu ver, condenada ao desinteresse dos
historiadores profissionais por estar desconectada da prática concreta dos mesmos.
Outro reflexo deste abismo que separa os historiadores empíricos e os teóricos pode
ser encontrado na revista, por outro lado excelente, Storia della storiografia, emanação
direta da Comissão de história da historiografia do Comitê internacional de ciências
históricas que foi constituída por ocasião do 15o Congresso das ciências históricas
em Buscarest. Primeira revista internacional no campo da história da historiografia,
a revista Storia della storiografia está fundada sobre uma rejeição da teorização, as
análises historiográficas sobre a história dos estudos históricos devendo, para serem
aceitas para publicação, evitar a tentação de teorizar160 . Tenaz fora do Brasil, esta anti-
ga partição historiador teórico/artesão não está, embora diluída, totalmente ausente
entre nós. Em muitos dos departamentos de história em nosso país, os professores
da área de teoria podem se sentir, muitas vezes, como relegados a um setor lateral, à
parte do corpo docente. Eles continuam lutando para convencer seus colegas de que
o estudo da teoria não se reduz a uma simples curiosidade intelectual, mas represen-
ta um enriquecimento palpável tanto para o departamento quanto para a formação
dos alunos como futuros historiadores.
160 Cf. Storia della storiografia, nº 1, 1982, e especialmente os estatutos da Comissão de história da historiografia
do Comitê internacional das ciências históricas (p. 143).
173
Esta situação crítica e também, podemos chamá-la assim, precária do campo da teo-
ria da história no plano internacional é, na realidade, não apenas surpreendente, mas
paradoxal, uma vez que inúmeros são os frutos de obras teóricas que, apesar de julga-
dos por muito tempo como perturbadores, estão atualmente incorporados por qualquer
historiador, seja qual for a tradição historiográfica ou a escola histórica a que pertença.
Com efeito, qual profissional da história recusaria reconhecer, em nossos dias, que a
história não é escrita de uma vez por todas e que os historiadores são, antes de mais
nada, atores sociais, inscritos em seu presente e, assim, presas das ideologias de seu
próprio tempo? Qual historiador hoje recusaria admitir abertamente que a sua própria
pesquisa, por mais original que ela pretenda ser, está inevitavelmente moldada pelo
pertencimento a um lugar institucional e pela sua inscrição numa tradição intelectual
determinada? e que todo relato histórico é, enfim, em primeiro lugar, um documento
do presente, pois nos diz, ainda que involuntariamente, mais acerca do momento em
que foi escrito do que da época que pretende descrever? Enfim, as reservas de alguns
historiadores empíricos com relação à teoria nos parecem tanto mais injustificadas
que o atual sucesso da teoria da história deveria poder ser encarado, em última análise,
como a própria expressão do estádio de maturidade atingido pela disciplina histórica.
Sem dúvida alguma, apesar da resistência tenaz dos historiadores “empíricos”
aos aportes da teoria, grande parte dos temas hoje discutidos nos grandes congressos
internacionais de história provêm diretamente dos questionamentos outrora forja-
dos por autores teóricos. Entre estes temas de destaque, podemos a título de exemplo
mencionar o problema da oposição entre subjetividade e objetividade, entre real e
reconstituição, mas também os usos do passado e a instrumentalização política da
história, a intenção de verdade e os procedimentos retóricos de persuasão próprios ao
discurso do historiador, a distância epistemológica entre o pesquisador e o seu objeto,
a causalidade, a busca por regularidades, as experiências do tempo, os modos de pe-
riodização e a dualidade continuidade/ruptura, assim como, enfim, as instâncias de
acreditação e a autonomia disciplinar da história. Todos esses “grandes temas” teóri-
cos fazem atualmente parte do repertório de questões com as quais os historiadores,
sejam eles “teóricos” ou “empíricos”, lidam em suas pesquisas. Com efeito, é possível
afirmar que a teoria da história demonstra a sua vitalidade, enquanto contribuição
para a reflexão crítica dos historiadores sobre o seu próprio saber, na medida mesma
em que ela toma como objeto problemático tudo aquilo que, no presente ou no pas-
sado, deu origem a certezas julgadas inabaláveis.
174
Em qualquer disciplina, a área de teoria responde, antes de mais nada, a um ape-
tite de conhecimento, a um desejo de se compreender melhor as regras e o funciona-
mento de determinada atividade científica. E constitui, deste modo, um componente
– melhor: uma dimensão – indispensável de qualquer ciência. A teoria da história é,
por sua vez, uma forma de interrogar a própria história e os seus profissionais. Com
efeito, ela toma os historiadores como objetos e procura considerar atentamente os
procedimentos de base da sua atividade intelectual, no inuito de melhor compreen-
der o que eles investigam e o que fazem dos resultados de suas pesquisas. Ao estudar
o pensamento e a obra constituída de historiadores do passado, o objetivo do pesqui-
sador teórico é o de compreender os objetivos científicos almejados por estes mes-
mos historiadores, extrair o significado de que são investidos certos “fatos” dentro
de seus respecitvos sistemas de hipótese. No entanto, seria um engano imaginar que
a teoria da história se limite aos problemas de epistemologia, dando as costas a tudo
o que diz respeito à infraestrutura da produção do conhecimento histórico. O seu
campo se estende sobre uma vasta área que cobre a história intelectual e a sociologia
do conhecimento – o que lhe permite debruçar-se igualmente sobre as demarcações
institucionais e os recortes disciplinares, sobre os círculos e associações eruditas,
como é o caso de academias e outras sociedades científicas, e sobre todas as questões
relativas à logística da pesquisa, desde a organização material do trabalho histórico,
a deontologia e as regras respeitadas na operação historiográfica até os elos entre a
pesquisa e os poderes públicos, sem esquecer das redes de sociabilidade, os circuitos
de difusão das pesquisas, as revistas e o mercado editorial, e enfim o alcance da pa-
lavra do historiador e o perfil sociológico do seu público.
Para tentar tornar estas considerações menos abstratas, talvez seja útil descrever,
ainda que de modo sumário, a pesquisa que desenvolvi sobre a obra do medieva-
lista francês Georges Duby, uma vez que esta pesquisa se inscreve numa herança
tripla: a da teoria da história, a da história da historiografia e a da história inte-
lectual. Tentando situá-lo dentro de um cenário historiográfico mais amplo (o da
escola histórica francesa da segunda metade do séc. XX), o meu objetivo em minha
175
pesquisa foi o de mostrar como Georges Duby construiu, ao longo de um quarto de
século, um projeto de história social que, centrado na dialética entre o material e o
mental, acabou por se apresentar como um modelo para (e como um apelo em defe-
sa da) exploração histórica das realidades imateriais. Com efeito, a obra de Georges
Duby pertence a um momento específico da evolução dos estudos históricos na
França, marcado pelo esforço de toda uma geração de historiadores em definir as
vias pelas quais as representações mentais seriam incorporadas como verdadeiros
objetos da história. Em minha pesquisa, procurei entender como se formou e como,
ao longo de 30 anos, foi pouco a pouco se transformando este projeto pessoal de
história social que atravessa de ponta à ponta a obra de Georges Duby, conferin-
do-lhe uma coerência impecável. Tal projeto de história social próprio à sua obra
caracteriza-se pelo esforço por traduzir, para os termos de uma problemática pro-
priamente historiadora, algumas das grandes questões que atormentavam as ciên-
cias sociais francesas de meados do século XX, tais como o problema da formação
das relações de dominação numa sociedade hierárquica, da produção dos sistemas
ideológicos e da ascendência da violência simbólica sobre os estratos inferiores do
corpo social, assim como, enfim, o problema da vitória e da perenização de mode-
los desiguais de sociedade. Frente a esse conjunto de questões, Georges Duby bus-
cou uma resposta que expressasse a posição e o ponto de vista próprios aos estudos
históricos. Em outras palavras, procurou forjar uma resposta que estivesse fundada
exclusivamente nos instrumentos tradicionais da prática do historiador (perfil em-
pírico da pesquisa, crítica dos testemunhos, inscrição do objeto numa duração e
observação de suas transformações através de cortes longitudinais, atenção à ação
perturbadora dos acontecimentos, assim como ao valor da cronologia e à precisão
contextual, etc.). Para ele, era imperativo que os historiadores enfrentassem estes
desafios coletivos das ciências sociais de seu tempo, mas de maneira a propôr uma
solução que servisse como um modelo de pesquisa a ser exportado aos especialistas
de outras ciências humanas, legitimando o papel da História como uma espécie de
“ciência piloto” em meio às disciplinas vizinhas.
O problema que eu procurei enfrentar foi o de tentar saber onde este projeto de
história social iria desembocar e o de entender em que medida ele permitiria (ou
não) rejuvenescer a abordagem destes grandes temas das ciências humanas france-
sas. Para tanto, procurei compreender como Duby brigou para que as suas propos-
tas fossem reconhecidas, como uma conjuntura intelectual movediça o obrigou a
176
reajustar continuamente o seu programa e, enfim, como este seu projeto acabou por
se converter num processo contra a chamada história das mentalidades (setor que o
próprio Duby, 20 anos antes, havia ajudado a promover).
A minha proposta foi, então, a de partir em busca do seu “quadro teórico”, por
assim dizer. Por “quadro teórico”, refiro-me às principais referências que definiam a
sua grade interpretativa, aos modelos historiográficos disponíveis e em voga na sua
época, à sua maneira pessoal de trabalhar e de conceber o ofício do historiador, etc.
Na realidade, a minha tentativa consistiu em ler a obra de Georges Duby não pelo
que ela dizia da Idade Média, pelas suas teses e interpretações de medievalista, mas
ao contrário, pelo uso que ela fazia do instrumental teórico disponível na França da
segunda metade do séc. XX, pela sua forma de interagir com o trabalho de outros
historiadores, de flertar com o pensamento de outros cientistas sociais, num esfor-
ço por propor uma leitura da sua obra enquanto contribuição ao pensamento das
ciências sociais francesas. Ao mesmo tempo em que procurei nos dados contextuais
informações que me ajudassem a penetrar na obra de meu autor, tentei retirar igual-
mente desta última “entradas” possíveis que me permitissem jogar luz sobre a vida
intelectual francesa da segunda metade do século XX. Deste ponto de vista, é possível
se distinguir uma abordagem centrípeta e uma abordagem centrífuga da historio-
grafia. A primeira estuda um contexto intelectual preciso na tentativa de, fechando
pouco a pouco o seu foco, conhecer melhor a produção de seus historiadores. Num
movimento inverso, a segunda tem como objetivo conhecer uma sociedade e uma
época determinadas e, para chegar até elas, coloca como seu ponto de partida o estu-
do da maneira como esta mesma época e esta sociedade produziam história e, de um
modo geral, se relacionavam com o seu passado.
Em minha pesquisa sobre a obra de Georges Duby, procurei construir a minha
abordagem dentro de uma perspectiva da história da historiografia, definida ao
mesmo tempo como uma forma de história intelectual – mas uma história intelec-
tual pensada como inseparável de uma interrogação teórica acerca da história. Isto
é, uma história intelectual que procura pensar historicamente e questionar criti-
camente a escrita dos historiadores, o exercício da imaginação pelos mesmos e o
conjunto das representações do passado, e que abarca tanto as filosofias da história
quanto a sociologia da ciência. Neste sentido, a história da historiografia me parece
merecer ser vislumbrada, sobretudo, como já propôs o historiador Krzysztof Pomian,
como um ramo de uma história ainda mais ampla: a história do conhecimento (cf.
177
Pomian, 1975). A tripla herança (de teoria da história, de história da historiografia
e de história intelectual) da qual é tributária a minha pesquisa se situa, na realida-
de, no nível dos princípios que regem à própria abordagem. Entre estes princípios,
destacam-se: a) o de sempre respeitar as intenções do autor estudado e o de jamais
trair o espírito da obra; b) o de submeter todos os textos estudados a uma leitura
crítica, a qual toma estes mesmos textos não apenas como “atos do discurso” e
como mensagens transmitidas, mas também como testemunhos e como “revela-
dores” de uma época e de um contexto intelectual específico. Neste sentido, o que
busca o historiador da historiografia, enquanto historiador das ideias e da ciência,
não é tanto aquilo que o autor estudado disse, mas sim o intervalo, a distância en-
tre aquilo que ele pretendia dizer aos seus contemporâneos e a forma como estes
últimos o entenderam. Isso não é tudo. Entre os princípios que regem esta aborda-
gem compósita, situada no cruzamento da teoria, da história da historiografia e da
história intelectual, está igualmente o esforço de apreender a obra em sua unidade
e em sua coerência interna, de modo a desvelar, ao mesmo tempo, o “pensamento
constituído” do autor (o seu sistema teórico, tal como o autor o elaborou e o divul-
gou) e o seu “pensamento constituinte” (a trama de ideias não sistematizadas, mas
que atravessam de forma latente os seus escritos) 161. No caso específico de Duby, tal
unidade é difícil de ser reconstituída, dada as dimensões de sua obra. A apreensão
de tal unidade exige trabalhar de perto os seus principais livros e artigos, sem dei-
xar no entanto de lado aqueles textos de dimensão mais modesta, as intervenções
em colóquios, os prefácios e as resenhas, as entrevistas na imprensa, no rádio e na
televisão, assim como, por fim, as diversas peças que constituem os seus arquivos.
Apenas do estudo combinado deste material heteróclito, pode o historiador esperar
reconstituir, como uma unidade coerente, a obra que pretende conhecer.
Dois problemas metodológicos se colocam, no entanto: o primeiro diz respeito à
relação dos textos individuais de um autor com o corpus de sua obra; o segundo, ao
problema da relação – complicada, confusa, mas constitutiva do campo da história
intelectual – texto/contexto.
No que se refere ao primeiro problema, o desafio maior que se coloca ao pes-
quisador é claramente o de se estipular a unidade e a coerência de um corpus, que o
161 Sirvo-me da oposição “pensamento constituído”/ “pensamento constituinte” proposta por Luiz Costa Lima
em sua introdução a Costa Lima, 1968.
178
torne expressão da identidade de um pensamento. A obra de um autor, o corpus de
seus escritos como uma espécie de metatexto. No entanto, tal unidade e tal coerên-
cia, identificadas pelo pesquisador ao longo de toda a sua investigação, não excluem
necessariamente fragmentação, descontinuidade e divisões internas do corpus; ao
contrário, esta unidade e tal coerência são extraídas de um duplo movimento de
leitura que repousa sobre a análise fina da continuidade (temática, teórica, metodo-
lógica) dos sucessivos escritos do autor estudado, mas também sobre uma análise,
não menos fina, das inflexões e “rupturas” internas entre os mesmos. Assim sendo,
o investigador é convidado não apenas a destacar o parentesco e a filiação entre tex-
tos dispostos em momentos sucessivos de uma obra, mas também a partir em busca
de unidades discretas no interior da mesma – i.e., parcelas dotadas de significação
própria, e que, uma vez combinadas e juxtapostas, oferecem uma visão complexa das
diferentes etapas e dos problemas plurais que compuseram a continuidade evolutiva
do pensamento do autor. No caso de minha pesquisa sobre a obra de Georges Duby,
centrada na leitura do livro As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo (Duby, 1978),
procurei mostrar como este livro pode ser encarado como o ponto culminante do seu
projeto de história social cujas primeiras pedras foram colocadas, vinte e cinco anos
antes, em sua tese sobre a sociedade da região de Mâcon nos séculos XI e XII (Duby,
1953). Neste sentido, a leitura que procurei propôr enfocava não somente a continui-
dade subterrânea deste programa construído ao longo de um quarto de século, mas
também as diferentes etapas (quer sucessivas, quer concomitantes) que pontuaram
esta evolução. Entre estas etapas distintas, poderia indicar, apenas para ilustrar, a) o
período de maturação da reflexão de Duby sobre as classes sociais no Mâconnais du-
rante os anos de preparação de sua tese (1945-1952); b) o período de seus estudos sobre
a formação da aristocracia feudal, em seu diálogo com Léopold Génicot (1961-1969);
e, simultanemente, c) o da sua abertura da história social na direção das representa-
ções mentais (1956-1969); e enfim d) as duas etapas que marcam a maturação de seu
projeto nos anos 1970: d.1) a etapa da “revisão” do modelo de sua tese entre 1970 e
1973; e d.2) a da escolha do tema das “três ordens” como estudo de caso do problema
da relação entre ideologias e realidade social (1970-1978). Esta dupla leitura (contínua
e descontínua) do corpus deve permitir ao historiador das ideias e da historiografia
destacar o modo com que a coerência do pensamento do autor estudado pode ser
encarada tanto através da atenção dada à forma com que os seus diferentes textos se
entralaçam e se engendram uns aos outros, quanto à maneira com que esses mesmos
179
textos vão, pouco a pouco, infletir e renovar a interrogação que o próprio autor vinha
progressivamente construindo.
Quanto ao segundo problema, o da relação texto/contexto, o desafio inicial que
se coloca ao historiador das ideias e ao teórico da história é o de definir, para cada
caso em particular, os contornos do texto a ser abordado, isto é o seu “perímetro
semântico”, e o de ajustar a sua leitura, o seu enfoque, em função do contorno assim
fixado. Aqui, uma vez mais, o teórico da história, assim como o historiador das ideias
e da historiografia, se encontra diante da antiga oposição entre uma leitura “inter-
nalista” e uma leitura “externalista” da obra que pretende analizar. O grande perigo
que ameaça os nossos estudos reside, no entanto, na adoção de posições extremadas
e na dificuldade de se encontrar um ponto de equilíbrio entre ambas abordagens.
De fato, há muito o estudo das ideias, das teorias e da produção historiográfica sofre
com um antigo preconceito que tende a reservar, de forma canhestra, a abordagem
“externalista” aos historiadores, e a abordagem “internalista” aos filósofos. Esta visão,
bastante simplista, permanece presente entre os historiadores profissionais. Para
muitos deles, o “internalismo” está para o “externalismo”, assim como a filosofia
estaria para a história. O efeito deste tipo de postulado sobre os estudos de teoria,
de historiografia e de história intelectual é evidente, e evidentemente nefasto. Ora,
se desejamos, de fato, partir em busca do funcionamento de uma obra, apreender
o pensamento (constituído e constituinte) de seu autor, estudar a formação dos con-
ceitos e dos debates teóricos passados que ainda hoje nos são caros, não poderemos
jamais prescindir de uma abordagem que privilegie, invariavelmente, uma leitura
fina, cuidadosa e interna de uma obra e de seus textos. Isso não significa, no entanto,
que a análise deva se fechar por completo nesta leitura interna e dispensar qualquer
informação de natureza extra-textual suscetível de enriquecer a apreensão do texto.
Antiga discussão constitutiva de toda história intelectual, e que Lovejoy, há mais
de oitenta anos, já colocava em seu texto inaugural no Journal of the History of Ideas
(Lovejoy, 1940). A apreensão de um texto apenas pode sair enriquecida e intensifica-
da se, à leitura interna e focada do texto, forem adicionadas novas informações rela-
tivas ao seu autor, à sua data de redação e de publicação, assim como às referências
às realidades extra-discursivas feitas pelo próprio autor do texto. Ademais, a atenção
aos elementos extra-textuais se mostra tanto mais enriquecedora à análise de uma
obra na medida em que o pesquisador teórico e o historiador das ideias são capazes
de situar esses textos frente a um debate intelectual ou a uma confrontação política.
180
Com efeito, cabe ao historiador das ideias e das representações situá-las cuidadosa-
mente – ainda quando propõe empreender uma leitura “internalista” – dentro de
um contexto ou, mais propriamente, de “contextos”, pois na realidade cada texto se
inscreve em contextos plurais e movediços. A atenção dada a esta inscrição especí-
fica de um texto em seus contextos permite ao historiador evitar o anacronismo de
interpretação, o qual se produz quando atribuímos aos autores do passado e às obras
que estudamos intenções que lhes foram totalmente estrangeiros – mais ainda: in-
tenções que estes mesmos autores não poderiam ter tido em sua época. Daí a impor-
tância de estudar o pensamento de um autor sem jamais perder de vista o significa-
do original, específico que os conceitos por ele utilizados tinham em seu tempo. O
grande desafio, para o historiador das ideias, sendo o de não apreender os conceitos
da obra de um autor (“civilização”, “cultura”, “liberdade”, “igualdade”, “progresso”,
“decadência”) como conceitos transhistóricos, i.e. como se esses conceitos tivessem
sido utilizados por ele em sua época com o mesmo significado que eles têm para nós
em nossos dias. Como se vê, as pesquisas de história intelectual, de história da histo-
riografia e de teoria da história compartilham um mesmo risco: o de transferir sem
cuidado para o passado nossas categorias contemporâneas, as quais se revelam fran-
camente inapropriadas quando inseridas num contexto que não o nosso. O perigo
de uma análise anacrônica das ideias é o de produzir a sensação, enganosa, de que
os historiadores de hoje e os autores do passado entenderiam da mesma forma os
mesmos conceitos, atribuiriam a esses conceitos exatamente o mesmo significado.
E acabariam não sendo mais do que interlocutores, dois parceiros contemporâneos
que debatem, de igual a igual, sob o entendimento comum destas mesmas noções.
Uma história anacrônica das ideias e da historiografia é aquela que, incapaz de res-
tituir a coloração própria do passado, acaba por converter os autores e os debates que
estuda num espelho de seu próprio presente.
Ora, a tarefa do historiador das ideias e do historiador teórico deve precisamente
ser, ao contrário, a de sublinhar, tanto quanto possível, a maneira como o significado
dessas noções se encontra em evolução permanente e difere do entendimento que
nos é familiar. Quanto às abordagens “internalista” e “externalista”, elas merecem
ser, no fim das contas, encaradas menos como contrárias do que como complemen-
tares. Colocados a serviço de uma leitura intensiva e cuidadosa de uma obra, os dados
extra-textuais não apenas enriquecem a sua interpretação, como também servem
de barreira à abordagem anacrônica das ideias. A apreciação do “valor” de uma obra
181
– seja ela estética, literária ou teórica – só será comprometida se os dados contextuais
manuseados forem demasiado grosseiros ao ponto de reduzir a leitura interna do
texto em proveito de um contextualismo simplista e mecânico. Eis aí uma dificul-
dade que assombra a todo o momento o historiador das ideias e da historiografia.
Dificuldade ligada à noção, confusa, imprecisa, de “contexto” – que não é (e não deve
ser em hipótese alguma entendido como) um dado natural. Trata-se de uma cons-
trução intelectual. De um artefato, construído a partir dos dados extra-textuais que
devem ser criteriosamente selecionados por serem julgados capazes de revestir de
uma maior inteligibilidade o objeto particular que está a ser estudado. Em si memo,
um contexto nada explica. Dominick LaCapra estava certo ao alertarnos sobre o ris-
co do historiador hipostasiar o contexto (LaCapra, (1980) 1983, p. 35). No campo da
história intelectual, da história da historiografia e da teoria da história, o recurso a
uma explicação contextual não deve ser jamais uma espécie de ponto de chegada, de
solução ao problema formulado; ao contrário, é a própria possibilidade de se recorrer
ao contexto numa explicação textual que deve se colocada como o problema a ser en-
frentado e solucionado pelo historiador.
182
avanços concretos da ciência histórica na direção da infinita disputa das interpre-
tações. Ora, o que é de toda a forma inegável é a radicalidade da inversão de pers-
pectiva provocada pelas pesquisas nas áreas de teoria e, mais especificamente, de
historiografia. No século XIX, o historiador se ocultava atrás dos fatos; ainda hoje,
ele se esconde atrás da sua documentação. Neste sentido, os estudos de historio-
grafia promovem uma nova atitude e uma perspectiva diametralmente oposta: no
interior dos trabalhos na área de historiografia, o que agora importa são menos os
fatos em si mesmos do que os relatos que deles foram feitos. Doravante, é o próprio
historiador quem surge posicionado à frente dos acontecimentos que relata. Eis a
reviravolta “iconoclasta e irreverenciosa” promovida pelos estudos de história da
historiografia. Por sua exigência de introduzir o ponto de vista do observador na
observação, o maior temor que os estudos de historiografia e de teoria inspiram
talvez seja o de revelar-nos a todos esta verdade incômoda de que aquilo que o his-
toriador encontra no termo de suas pesquisas não é, ao fim e ao cabo, outra coisa
do que o reflexo de sua própria imagem.
O “MOMENTO INTROSPECTIVO”
Mas talvez caiba indagar aqui quais as forças motoras que levaram os historiadores
a estudar a si mesmos. Desde os anos 1980, os historiadores parecem ter entrado
numa “era crítica”, num momento que podemos chamar de ref lexivo ou, melhor, de
introspectivo. Como já mencionado mais acima, a última década do século XIX e as
duas primeiras décadas do século XX viram a publicação de todo um conjunto impor-
tante de ensaios que marcaram, de forma decisiva, a reflexão sobre a especificidade
do conhecimento próprio às disciplinas históricas e sobre a distância que separa es-
tas últimas das ciências naturais. Se autores como Dilthey, Meyer, Windelband ou
Croce já haviam, na virada do século passado, criticado o positivismo então reinante,
denunciando as falhas nas suas buscas de leis gerais e em seu tratamento da causa-
lidade, do acaso e do livre arbítrio, a disciplina histórica verá as suas pretensões de
cientificidade uma vez mais contestadas por uma nova onda de debates que se que-
bra estrondosamente sobre os historiadores no decorrer da década de 1970. Desta vez,
retirar-se-á da história a segurança de que as suas certezas estão efetivamente assen-
tadas sobre as operações que fundam a positividade do seu saber. Em outras palavras,
183
as certezas históricas passam a ser questionadas em sua própria natureza literária. A
história estaria ameaçada de se ver reduzida ao discurso e às suas propriedades retó-
ricas? a um ramo das letras?
O debate em torno do problema de se saber se a história pertence ao domínio da
arte e da literatura ou ao domínio da ciência não era novo. Este era tema amplamen-
te discutido pelos neokantianos já citados na virada do século XX. No entanto, uma
nova atenção ao estudo da linguagem e à maneira como a função poética ao mesmo
tempo determina o tipo de intriga dado ao relato histórico e modela os objetos do
conhecimento da história pegará os historiadores profissionais desprevenidos, aba-
lando de forma durável as suas mais caras convicções epistemológicas. Essa “vira-
da linguística” (linguistic turn), como ficou conhecida, encontrou na obra de autores
como Hayden White162, Arthur Danto163, Dominick LaCapra164, entre outros, um ar-
senal teórico particularmente sofisticado frente ao qual os historiadores se encon-
traram indefesos. Afastados da filosofia das ciências, pouco inclinados às discussões
de teoria, estes últimos se viram obrigados a compensar, em tempo relativamente
curto, o seu atraso teórico, mergulhando assim nas bibliografias filosófica e literária,
na esperança de formular uma resposta convincente a este desafio “narrativista” que
eles agora não mais poderiam fingir ignorar. Em desvantagem devido ao seu desin-
teresse pela teoria, os historiadores agora se curvavam ante uma avanlanche de teses
audaciosas, que indicavam que o conhecimento que produziam estava governado por
procedimentos retóricos e que a própria circunscrição de um fato histórico requer
previamente um quadro narrativo que o prefigure. Produtor de incertezas, o debate
da virada linguística teve um efeito considerável sobre a historiografia internacio-
nal. Este debate no entanto deu, já no começo dos anos 1980, uma nova vitalidade
ao campo da teoria da história, que ganhava assim um pouco de legitimidade e de
reconhecimento, à medida em que os historiadores foram levados, a gosto ou a con-
tragosto, a se familiarizar com argumentos de epistemologia, tropologia, estilística e
teoria literária no intuito de responder aos seus desafiantes. A historiografia entrava,
assim, em seu momento reflexivo.
162 Cf. White, 1973 (trad. pt. 1995) e White, 1978 (trad. pt. 2001).
184
De fato, o sucesso da teoria da história no Brasil desde finais dos anos 1990 tem as
suas raízes neste contexto polêmico característico dos anos 1980165, como um dos pro-
dutos desses desafios epistemológicos que abalaram a disciplina histórica neste mo-
mento, solapando muitas certezas julgadas até então seguras. Hoje, sob o efeito direto
deste contexto polêmico e do choque provocado pelas teses narrativistas, o estatuto
da história como disciplina aparece muito mais complexo, mais difícil de se definir do
que o havia sido, por exemplo, ao longo das três primeiras décadas que se seguiram à
Segunda Guerra Mundial. A teoria da história, enquanto instrumento de análise e de
compreensão da atividade intelectual dos historiadores, se viu ela também arrastada
por esta complexificação, obrigada a renovar depressa o seu questionário de maneira
a acompanhar as transformações da disciplina histórica. Como acontece com tudo no
campo da história, a teoria é constantemente renovada pela sua própria prática. Esta
dificuldade crescente de se apreender o novo estatuto de sua disciplina desde os últi-
mos quarenta anos contribuiu claramente para que os historiadores empreendessem
um recuo reflexivo. E é legítimo esperar, deste movimento introspectivo dos historia-
dores, deste esforço de reintroduzir o ponto de vista do observador na observação, que
alcancemos uma melhor compreensão dos desafios mais recentes que esta configura-
ção muito mais complexa da história em nossos dias tende a suscitar.
Explorando os usos políticos do passado, as relações entre história, memória e
trauma, as experiências plurais de tempo ou a poética do discurso histórico, as pes-
quisas na área de teoria se apresentam hoje munidas de um conjunto de problemáti-
cas e de ferramentas conceptuais cada vez mais finas. E elas continuam avançando,
alimentadas pela convicção de que uma disciplina tende a se revelar mais saudável
na medida em que os seus praticantes se debruçam sobre os condicionamentos e os
limites do saber que produzem, sobre as regras às quais está submetido o seu campo
do conhecimento. E nós podemos voltar a Louis Althusser, já citado mais acima, mas
para fazer desta vez nossa outra afirmação sua, segunda a qual “uma ciência só pro-
gride, isto é vive, através de uma atenção extrema dada aos seus pontos de fragilidade
teórica. Neste sentido, ela deve menos a sua vida ao que ela sabe do que ao que ela
não sabe: sob a condição absoluta de identificar isso que ela ignora, e de formulá-lo
com o rigor de um problema” (Althusser, 1965, p. 31).
165 Como ilustração exemplar do impacto do debate no Brasil e das respostas logo forjadas pelos intelectuais
brasileiros, cf. o texto clássico de Costa Lima, 1988, republicado em Costa Lima, 1989.
185
EM DEFESA DA REFLEXIVIDADE
O panorama traçado acima pode dar a entender que o campo da teoria da história
navega de vento em popa, tendo a sua vitória já assegurada. No entanto, nada seria
mais falso. Na verdade, o campo da teoria, que vem realizando, há pelos menos duas
décadas, um avanço significativo em nosso país, parece estar encolhendo dentro
das historiografias européias e norte-americana. As razões do sucesso dos estu-
dos de história da historiografia e de teoria da história no Brasil são certamente
complexas. Elas mereceriam ser objeto de uma pesquisa de fôlego e não podem ser
apreendidas rapidamente aqui. Mas a interrogação permanece e merece ser colo-
cada: quais as causas e as motivações desta aliança fecunda entre história e teoria
no Brasil – aliança incomum, inclusive temida, fora de nossas fronteiras, excepção
feita de algumas historiografias latino-americanas, como a mexicana, a argentina
ou a colombiana, que também dão provas de um investimento fecundo na área? O
lugar de destaque que a teoria vem ocupando nas últimas duas décadas terá sido
respaldada por uma eventual maior proximidade, em nossas universidades, entre
historiadores e filósofos? Ora, este não parece ser o caso mais frequente nas univer-
sidades do país. Podemos, então, levantar uma outra hipótese, e nos perguntar se o
investimento forte na área de teoria no Brasil terá sido um efeito indireto do fato
da nossa historiografia, desde o começo do século XX, não ter dado uma centrali-
dade absoluta, como foi e continua sendo rigorosamente o caso das historiografias
norte-americana e européia, à erudição ostentatória? Não terá a teoria da história
vigorado de tal maneira em nossos departamentos pelo fato mesmo de que a nossa
historiografia repousa sobre uma tradição onde a escrita da história jamais esteve
atravancada sobremaneira pela preocupação de exibir cultura clássica e erudição?
Nossos estudantes que se voltaram para o campo da teoria nos últimos vinte e cinco
anos não o terão feito como uma forma de compensar uma carência de erudição,
uma lacuna na sua formação em estudos clássicos, vitais à disciplina histórica, mas
que requerem no entanto, do joven universitário e aprendiz pesquisador, uma enor-
me sede de cultura, uma impaciência de conhecimento e uma aprendizagem longa,
de muitos anos, direcionada à aquisição de habilidades técnicas especializadas na
arte da leitura minuciosa de bibliografias muito exigentes e de textos antigos? Se
podemos falar de uma profissionalização crescente da teoria no Brasil desde finais
186
dos anos 1990, com um número cada vez maior de departamentos por todo o país
dispostos a dedicar um espaço menos modesto à teoria na formação dos alunos,
acolhendo para isso doutores especializados na área, o mesmo não se pode dizer
das escolas históricas européias e norte-americana. Não apenas porque tal profis-
sionalização é aí inexistente, mas porque são sensíveis os sinais de desinteresse pela
produção deste campo. O momento introspectivo e reflexivo aparece aí ameaçado,
e o que se vê é um cenário de deserção e de desinvestimento. E isso, não obstante
o sucesso contínuo de revistas como History and Theory ou o êxito, já mencionado
acima, do recente International Network for Theory of History. É certo, o nosso
presente está caracterizado pela profusão de publicações, de eventos, de iniciativas
em todas as áreas, sob as modalidades as mais diversas e com os resultados os mais
desiguais. Especialmente no plano digital. Mas esta superabundância não nos deve
enganar. Apesar da proliferação de eventos científicos dedicados aos estudos de his-
tória da historiografia e de teoria da histótia, do surgimento de um número cada vez
maior de revistas na área e do aumento indiscutível das publicações, estas últimas
raramente captam a atenção dos grandes editores. De modo que uma abundante
produção permanece pouco visível, ignorada, diluída e ofuscada em meio à massa
impressionante de lançamentos e de realizações cujo frenesi distingue o nosso mo-
mento presente. Para além das publicações, os cursos especializados permanecem
reduzidos dada a falta de reconhecimento institucional da área. Com isso, a própria
formação de estudantes, garantia da renovação dos quadros e da sobrevivência do
setor, se vê gravemente comprometida. Esta situação crítica, que assola a teoria da
história na Europa e nos Estados Unidos, deve nos incitar a pensar a oportunidade
que a historiografia brasileira aceitou dar às pesquisas de natureza teórica, mas tam-
bém a avaliar a fragilidade deste sucesso da teoria entre nós, sempre prontos para
seguir os ditames estrangeiros, e sobretudo, enfim, a impedir que repousemos à
sombra dos louros alcançados.
Pois, de fato, ainda que a teoria da história pareça prosperar no seio das pesquisas
de história no Brasil, cabe aos profissionais da área reavalariem criticamente o alcan-
ce – sem dúvida limitado – de seu discurso, refletirem sobre novas formas de levar a
sua produção para mais perto dos historiadores “empíricos” e, enfim, questionarem
alguns traços dos debates teóricos que podem vir a ser prejudiciais para o próprio
sucesso do campo, tal como a tendência perigosa de restringir as discussões da área
a uma audiência demasiado fechada, a sedução do hermetismo, as derivas rumo ao
187
esoterismo e o risco da jargonofasia que assombra, de um modo geral, o campo da
teoria e, não raro, compromete a divulgação da sua produção, julgada rebarbativa.
Com efeito, uma sede de conceitos, uma avidez de impenetrablidade parece rondar
o discurso teórico, como se complexidade implicasse, necessariamente, dificuldade,
afectação, ausência de clareza. Como se complicação e teoria fossem, de algum modo,
sinônimos. Num contexto onde a teoria se vê, fora do Brasil, por toda parte ameaçada,
seria sem dúvida alguma salutar que nos movessemos na direção de uma aproxima-
ção maior entre a nossa produção teórica e as pesquisas empíricas, um esforço para
tornar os resultados das reflexões teóricas relevantes para os historiadores “práticos”.
E isso apenas será alcançado quando os “teóricos” aceitarem voltar a sua atenção para
a qualidade de sua escrita, para o cuidado formal de seu discurso, reconhecendo o
interesse de criticar severamente uma despreocupação com a clareza que, no fundo,
não é mais do que expressão de um descaso pretencioso pela didática.
O criticismo próprio ao campo da teoria e que lhe é vital só pode existir se acom-
panhado de autocriticismo. Teóricos da história e historiadores da historiografia, não
devemos jamais perder de vista que a história empírica e a pesquisa teória estão, uma
e outra, uma como a outra, movidas por um mesmo impulso, por uma mesma vonta-
de de investigação, por uma mesma determinação a pôr à prova antigas certezas, por
uma mesma convicção de que as ideias que nos servem de pointo de partida em nos-
sas pesquisas são hipóteses de trabalho a serem testadas, por uma mesma exigência
de inspecionar o conjunto de provas disponíveis e de escorar as nossas conclusões no
respeito dos fatos observados. Com efeito, talvez a grande ameaça que pesa sobre o
campo da teoria da história no Brasil resida na sua tendência a fechar-se sobre si mes-
mo. Tal fechamento já se insinua. Os sinais são visíveis. Ora, se observarmos o campo
da teoria no Brasil dos últimos vinte anos, é possível constatar, logo de cara, que as
pesquisas nesta área aparecem, elas mesmas, arrastadas pela dispersão teórica que
tem marcado a produção das ciências sociais desde os anos 1980. De modo que con-
viria falar não em teoria da história, mas em “teorias da história”, dada a profusão e a
diversidade das pesquisas neste setor. Esta dispersão teórica, que na realidade atinge
o conjunto das ciências humanas e sociais há quarenta anos e da qual as pesquisas na
área de teoria dificilmente conseguiriam escapar, apresenta duas faces e não deve ser
encarada necessariamente como um dado negativo. Por um lado, tal dispersão repre-
senta uma riqueza do campo da teoria, multiplicando os enfoques e os recortes temá-
ticos, e recusando, pelo menos em princípio, qualquer ortodoxia. Por outro lado, ela
188
produz uma sensação de anarquia, por ser o campo demasiado heteróclito e compósi-
to. O cenário atual é efervescente, estimulante, repleto de possibilidades, mas parece
muitas vezes desorganizado, sobremaneira eclético, pouco estruturado, fragmentado.
Se olharmos mais de perto, podemos constatar que tal dispersão, e a impressão
de anarquia que ela produz, é promovida pelo próprio processo de especialização
acelerado que vem levando todos os setores da história e das ciências vizinhas a se
compartimentar, cada um deles impulsionado a se fechar como um departamento
epistemológico coeso e relativamente isolado (e isolável). É certo, esta especializa-
ção crescente vem sendo duramente denunciada há anos. Lucien Febvre, já em 1936,
a qualificava de “ f léau” da história e das ciências humanas (Febvre, 1992, p. 59), ge-
rando a atomização da história em parcelas estanques. Enquanto condição natural
e necessária do progresso do conhecimento, tal especialização muito avançada se
torna uma ameaça no momento em que 1) ela nos leva a esquecer que esses com-
partimentos que ela cria são artificiais e não correspondem à natureza da matéria
histórica; e 2) reforça o distanciamento dos pesquisadores, chegando até a impedir
a comunicação entre eles. E este me parece ser, provavelmente, uma das principais
ameaças que hoje pesam sobre o campo da teoria. Talvez mais do que nunca, o
historiador-teórico deve resistir à tentação da compartimentação e do fechamento
sobre si mesmo. Nos campos da história intelectual e também, mais recentemente,
da história da historiografia, vê-se uma rejeição crescente do “internalismo”, iden-
tificado como um traço excessivamente “filosófico” (logo, insuficientemente “his-
toriador”). Nas pesquisas de história da historiografia, o atual privilégio dado às
grades de interpretação sociologizantes, assim como a irrefreável tendência à valo-
rização, às vezes até inescrupulosa e fetichista, dos arquivos privados são expressões
inequívocas de uma vaga empirista que vem se impondo sobre os estudos históricos.
O “momento reflexivo” da historiografia estaria com os seus dias contados? A vaga
empirista é, sem dúvida, um dado evidente do contexto atual e se ergue como um
obstáculo preocupante às pesquisas teóricas. O historiador-teórico deve procurar
responder a este avanço, levantar barreiras para defender o valor de suas pesqui-
sas. Mas é importante que este mesmo historiador-teórico esteja também atento
para não cair no extremo oposto, recusando de forma dogmática ou por simples
pedantismo o lado empírico da pesquisa, se enroscando numa terminologia própria,
rebarbativa, avêssa à troca com os especialistas de outros setores da história, supon-
do inclusive que a teoria adquire – como alguns poucos são perigosamente levados
189
a crer – “vida própria”, escapando a qualquer condicionamento sócio-histórico ou,
ainda, a qualquer determinação ligada às transformações internas do próprio campo
mais amplo da disciplina histórica.
Teóricos da história e historiadores da historiografia, é hora de estabelecermos
passarelas com os historiadores empíricos, com os especialistas de outros setores da
disciplina, e não de erguermos muralhas à nossa volta, produzindo discursos hermé-
ticos, recheados de jargão desnecessário, sob pretexto de tecnicidade. Nós, historia-
dores, somos mal filósofos. Não controlamos a bibliografia filosófica. E, muitas ve-
zes, as nuances dos debates especializados nos escapam. Produzimos discursos com
pretensões e ares filosóficos. Mas o tipo de filosofia que praticamos (ou que temos a
pretensão de praticar) é uma filosofia desajeitada.
Os historiadores das ideias sabem muito bem, desde há muito, que a história in-
telectual aparece regida por um amplo movimento de oscilação, de gangorra, onde
algo em voga numa dada geração é contestado pela geração seguinte, que decide se
afastar da posição de seus predecessores e se apegar precisamente a temas e a en-
foques que haviam sido, ao contrário, depreciados pela geração precedente. Dentro
deste padrão dialético que move a história intelectual, compreendemos talvez um
pouco melhor o atual refluxo deste “momento reflexivo” da historiografia como
uma espécie de reação, mas que pode afetar – seriamente – as conquistas alcançadas
nas áreas de teoria e de história da historiografia desde os anos 1980. Certamente,
um gesto em direção à ampliação do discurso teórico para além do circulo restrito
dos especialistas da área de teoria seria um movimento benéfico frente às amea-
ças que pairam sobre um campo da disciplina histórica há pouco valorizado entre
nós e abertamente menosprezado fora de nossas fronteiras. Na França, nos Estados
Unidos e em diferentes outras historiografias ocidentais, o simples uso das etiquetas
“Historiografia” e “Teoria da história” pode ter um efeito deletério sobre um projeto
de pesquisa ou sobre uma candidatura num concurso, prejudicando diretamente
o seu autor, rejeitado de antemão como estranho à família dos historiadores. E no
entanto, as lições dos trabalhos de teoria e de história da historiografia promove-
ram um avanço extraordinário em nossa maneira de pensar e de praticar a história.
Elas nos familiarizaram com esta verdade profunda, segundo a qual toda história
– esteja ela voltada para um passado há muito extinto ou para tempos mais recen-
tes – é a expressão de seu presente epistemológico, do presente de sua escrita. Mais
ainda: estas lições comprovaram a necessidade de reflexividade acadêmica como
190
um componente essencial, indispensável em qualquer disciplina investida de uma
intenção de conhecimento. Tal reflexividade, que pode hoje nos parecer fortemente
enraizada, é seguramente uma das grandes conquistas das pesquisas históricas nos
últimos quarenta anos. Mas por quanto tempo ainda? À medida que os campos da
teoria e da história da historiografia tendem a minguar e que uma nova sede de
empirismo parece se espalhar sobre a disciplina histórica, temos o direito de nos
perguntar se o “momento reflexivo” dos historiadores, iniciado nos anos 1980, não
foi mais do que um interlúdio fugaz. Aqui no Brasil, onde o campo da teoria ainda
prospera, esta reflexividade talvez nunca tenha sido tão imprescindível. Ela merece
ser defendida a todo o custo.
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192
ESCREVER A HISTÓRIA
DO TEMPO PRESENTE
193
TEMPORALIDADES DA ELEIÇÃO BRASILEIRA
DE 2018: O BOLSONARISMO E O DISCURSO
DA PONTA DA PRAIA
“Ninguém duvida que haja uma ordem do tempo, mais precisamente, ordens”
(HARTOG, 2019, p.17). Em acordo com Hartog (2019), resta-nos ainda aprofundar
reflexões e investigações sob quais ordens vivemos e como elas se manifestam. Em
“Regimes de Historicidade” (2019), François Hartog propôs o presentismo como novo
regime de experiência do tempo, despontando como topos alternativo ao tempo his-
tórico moderno de Reinhart Koselleck (2006). Se parte do brilhantismo da tese de
Koselleck (2011) residia na noção de que o Sattelzeit, o salto temporal que marcou a
entrada de uma nova ordem do tempo, se situa na modernidade europeia, a obra de
Hartog (2019) inovou ao reconfigurar o jogo das temporalidades para pensar as espe-
cificidades do tempo presente, a partir das balizas temporais das guerras mundiais e
da derrubada do comunismo soviético.
A pergunta se vivemos sob uma ordem moderna ou presentista do tempo é ins-
tigante, mas deve ser também recolocada a partir de espaços-outros e experiências-
-outras além das francesas e alemãs. A fim de reconstruir o jogo do espaço e do
tempo para além da modernidade europeia (ou do seu fim), proponho refletir sobre
a articulação das temporalidades, a partir de um fenômeno do tempo presente, si-
tuado do outro lado do Atlântico. Tal fenômeno desafia a produção de inteligibilida-
de sobre as temporalidades, uma vez que se manifesta como impulso distópico de
desfiguração das instituições democráticas e de afronta ao próprio conhecimento
194
histórico. Refiro-me ao bolsonarismo, um fenômeno do tempo presente brasileiro
que transcende a própria figura do presidente Jair Bolsonaro e vem constituindo uma
linguagem própria.
Como já exposto por alguns autores (SILVA, 2020; SOLANO, 2019b), esse movi-
mento tem mobilizado o agir político por meio de posições abertamente anti-demo-
cráticas, jargões nacionalistas, narrativas antagonistas e enquadramento incendiário.
Um dos marcos mais emblemáticos da afirmação do Bolsonarismo foi certamente
o pronunciamento eleitoral de 21 de outubro de 2018 (anexo), conhecido como “dis-
curso da Ponta da Praia”, no qual o então candidato Jair Bolsonaro afirmou para
uma lotada Avenida Paulista que faria uma “limpeza nunca visto (sic) na história do
Brasil”. A alusão ao botar abaixo, rompendo com o que estava posto para construir
um “novo Brasil” foi largamente utilizada pela campanha eleitoral de Jair Bolsonaro,
manipulando bem a imagem de um candidato outsider, anti-hegemônico e fora das
estruturas tradicionais da política brasileira.
Essa pulsão por mudança que contagiou o eleitorado brasileiro em 2018 chama a
atenção tanto por seu conteúdo conservador e autoritário, quanto pela sua inspiração
determinística em relação ao futuro. Como discurso eleitoral, tradicionalmente, este
pronunciamento não fugiu à regra de delimitação de um horizonte de ação política
e de galvanização de um sentimento de esperança para seus potenciais eleitores. Por
outro lado, representou o ápice das menções de contenção conservadoras que expli-
citaram o desejo de retrocesso da democracia.
Esta tensão relacional entre mudança e tradição, redesenhada pelo Bolsonarismo
durante a eleição, me desperta a questão de como se deu a construção entre as di-
mensões temporais neste discurso, que reuniu o léxico mais radical da campanha
de Jair Bolsonaro. Coloco a problemática, portanto, de como funciona o tempo his-
tórico na construção de futuros distópicos. O foco no desejo de mudança e de rup-
tura com o que estava posto insere o bolsonarismo dentro do tempo histórico do
progresso mundanos, tal qual definido por Reinhart Koselleck (2006)? Ou seja, seria
o bolsonarismo um movimento cuja seta temporal aponta para a construção de um
futuro aberto? Ou será que a tensão entre a expectativa por mudança e o desejo da
preservação de certas tradições ensaia outra relação entre passado e futuro? Talvez
uma relação presentista?
Este capítulo propõe refletir sobre a questão de como pensar as instâncias tempo-
rais da experiência histórica em fenômenos do tempo presente. Pretendo questionar
195
analiticamente se a relação entre espaço de experiência e horizonte de expectativa
que surgiu com o mundo moderno é adequada para interpretar a historicidade do
bolsonarismo durante as eleições. Em outras palavras, busco observar se o princípio
de temporalização dos conceitos históricos, que, segundo Koselleck (2011), surgiu em
meados de 1750-1850, serve como ferramenta heurística para compreender o vocabu-
lário social e político da linguagem eleitoral do bolsonarismo. Mais especificamente,
se este pronunciamento dispõe de conceitos sociais e políticos voltados para um tipo
de filosofia da história baseada teleologicamente no princípio de aperfeiçoamento da
História, orientado para o futuro aberto ao novo. Ou se, por outro lado, aproxima-se
de uma ordem na qual o presente se coloca como onipotente e onipresente, tal qual
definiu François Hartog (2019).
A fim de compreender a articulação entre as dimensões temporais da linguagem
eleitoral bolsonarista, este capítulo se desenvolve em três movimentos. Ele parte do
contexto situado do discurso na curta duração, posteriormente passa pela estrutura
discursiva dicotômica na qual o discurso opera e a maneira como esses pólos dia-
logam com tradições incrustradas na sociedade brasileira e, por fim, se volta para a
interpretação da relação entre as dimensões temporais do pronunciamento. Nesse
sentido, o capítulo se divide em três seções: a primeira que analisa aspectos gerais do
discurso da ponta da Praia: o seu contexto, os principais tópicos levantados e qual a
sua posição estratégica em relação à campanha presidencial; a segunda que identifica
a existência de um eixo dicotômico entre o “nós” e o “eles” e desenvolve como essa
divisão opera nesta produção discursiva; a terceira que propõe refletir sobre a ade-
quação do jogo dialético koselleckiano entre as categorias de espaço de experiência e
horizonte de expectativa na linguagem bolsonarista.
196
candidato, o vídeo de formato curto atendia à sua estratégia de circulação de material
de campanha em disparo em massa pelas redes sociais. Esse pronunciamento feito
durante passeata expressiva da direita foi importante para a sua vitória, pois ocorreu
a uma semana do segundo turno das eleições. Havia uma busca óbvia de fortalecer
sua base eleitoral e também de cooptar mais eleitores para confirmar o resultado
favorável que já era apontado nas pesquisas de intenção de voto.
No primeiro turno, Jair Bolsonaro (PSL) havia ficado em primeiro lugar, com
46,03% do votos, e disputaria o 2º turno com Fernando Haddad (PT) que conseguiu
29,28% dos votos. No momento em que Jair Bolsonaro proferiu esse discurso, a últi-
ma pesquisa publicada pelo Instituto Datafolha apontava que ganharia com 59%, en-
quanto Fernando Haddad ficava com 41% dos votos167. Apesar do rápido crescimento
de Haddad nas pesquisas em relação ao primeiro turno, Bolsonaro ainda liderava com
uma margem expressiva e a preocupação esperada era manter seus votos e impedir
que o outro candidato crescesse, a partir da conquista dos votos indecisos ou nulos.
A uma semana do segundo turno e liderando as pesquisas, cumpria, portanto,
produzir um discurso que sinalizasse força e compromisso com valores desenvolvi-
dos em sua campanha para manter sua fração eleitoral. A crise de representatividade
que se desenhava desde os protestos de Junho de 2013 e o crescimento do anti-petis-
mo na sociedade brasileira, especialmente após a Operação Lava-Jato, deram as ba-
ses para a narrativa de 21 de outubro. Segundo pesquisa do Instituto Datafolha, cujo
levantamento foi feito nos dias 17 e 18 de outubro de 2018, o desejo de renovação e
mudança no poder liderava como a principal razão de voto em 30% dos eleitores de
Bolsonaro. A rejeição ao Partido dos Trabalhadores vinha a seguir, citada espontanea-
mente por 25% dos eleitores como motivo para votar em Bolsonaro, e na sequência
apareciam as propostas na área de segurança do então candidato, mencionadas por
17% da população168. Nesse sentido, as pulsões por alternância de poder, renovação,
segurança e pela repulsa ao Partido dos Trabalhadores estavam disseminados na
sociedade. Restou à campanha de Jair Bolsonaro acirrar essas pulsões, reforçando
167 A pesquisa do Instituto Datafolha publicada no dia 19 out. 2018 está disponível em: https://datafolha.folha.
uol.com.br/eleicoes/2018/10/1983421-bolsonaro-59-mantem-vantagem-sobre-haddad-41.shtml
168 A pesquisa do Instituto Datafolha publicada no dia 22 out. 2018 está disponível em: https://datafolha.folha.
uol.com.br/eleicoes/2018/10/1983550-desejo-de-mudanca-e-rejeicao-ao-pt-alavancam-candidatura-de-bolso-
naro.shtml
197
performances que já fazia desde sua atuação como deputado federal: a caricatura de
um líder forte, honesto, disposto a ordenar o país com mãos pesadas. A novidade es-
tava na estratégia de elevar o tom anti-petista e se colocar como um outsider da polí-
tica brasileira: alguém que tinha experiência na política, mas nunca teria participado
do sistema corrupto vigente e, por isso, seria o mais apto a enfrentá-lo.
Na perspectiva da curta duração, o discurso de 21 de outubro pode ser compreen-
dido como um evento que responde às circunstâncias de 2018, mas também está
inserido no quadro mais amplo dos fatores estruturais que se desenham no longo
processo civilizacional brasileiro (o racismo, o mandonismo, o conservadorismo e o
anticomunismo históricos) e, internacionalmente, desde fins do século XX (a hege-
monia do grande capital, a precarização dos mercados de trabalho e a decadência do
Estado de Bem-Estar Social). Como evento, ele é somente um dos muitos atos de fala
produzidos por Bolsonaro, durante as lutas políticas que levaram a ascensão da ex-
trema direita no Brasil pelo voto. Sozinho ele não explica a vitória de Bolsonaro, mas
tampouco pode ser reduzida a sua importância na curta duração, enquanto enuncia-
do que escancarou a retórica autoritária do candidato, desafiando publicamente as
próprias regras do sistema eleitoral.
De forma geral, tratou-se de um pronunciamento de conteúdo belicoso, dicotô-
mico e anti-democrático. Na imprensa, ficou marcado pelo uso do termo “Ponta da
Praia”, uma referência explícita a um dos locais de desova de prisioneiros da ditadu-
ra militar (1964-85) em uma base da Marinha na Restinga de Marambaia no Rio de
Janeiro. Segundo Carlos Fico169, o termo, com o tempo, foi ampliado por militares li-
nha dura para designar lugar clandestino para interrogatório com tortura e eventual
morte. Sua adoção conota, portanto, apologia à tortura e ao assassinato em relação
aos adversários políticos.
Uma das principais características deste discurso, é a adoção de vocabulário eli-
minacionista e de demonstração de força. Além do termo “Ponta da Praia”, os mar-
cadores que dão ênfase a esse viés são a própria palavra limpeza (“será uma limpeza
nunca antes ‘visto’ na história do Brasil”), a palavra faxina (“Só que a faxina será
agora muito mais ampla”) e alguns marcadores verbais como “banir”, “apodrecer”,
169 Publicado na matéria “Bolsonaro fez referência a área de desova de mortos pela ditadura” do jornal Folha
de S. Paulo de 29 dez. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/bolsonaro-fez-refe-
rencia-a-area-de-desova-de-mortos-pela-ditadura.shtml. Acesso em: 23 jul. 2021.
198
“cortar”, “enquadrar” e “submeter”. Esse vocabulário, ao mesmo tempo que interes-
sava à sua base eleitoral mais radicalizada, também acenava aos adeptos da bandeira
anti-corrupção em popularidade.
Por outro lado, verifica-se que o discurso também faz uma tentativa de suavizar
ou ocultar certos radicalismos com o qual Jair Bolsonaro era identificado. Temas
polêmicos de ordem moral que Bolsonaro não exitava em repetir durante toda a
campanha não foram explorados neste pronunciamento, como o “kit gay”, o “mar-
xismo cultural” e a “ideologia de gênero”. Na passagem, “nós respeitamos todas as
religiões”, há um desvio em relação a falas anteriores de cunho conservador religioso
mais radical. É uma evidência de que Bolsonaro acenava para grande parte da popu-
lação, especialmente católica e não praticante, que não se identificava com o excesso
de conservadorismo ou com sua aproximação com o pentecostalismo. Na passagem
“nós não queremos socialismo, nós queremos distância de ditaduras do mundo todo”,
também há uma tentativa, ainda que torpe, de negar sua identificação com o signo
da ditadura, criando um jogo de linguagem em que ditadura é sinônimo exclusivo de
socialismo. Neste sentido, o discurso, apesar de profundas bases autoritárias, tam-
bém mitigou certas posições, principalmente as de ordem moral, tomadas anterior-
mente por Jair Bolsonaro.
199
Nós Eles
200
“polícia civil e militar”). São a esses agentes que o enunciado se direciona e são eles os
esperados para fazer a transformação colocada por Bolsonaro. Na construção do lado
amigo, o “nós” nomeia tanto grupos concretos (“vocês da Paulista”), quanto grupos
generalizados (“povo e nação”), fazendo com que muitas vezes seus interlocutores se
reconheçam em unidades de ações que lhe discriminam. Esse movimento é possível
porque Jair Bolsonaro mescla conceitos gerais com particulares, concebendo uma
pátria que seja apenas a sua, um Brasil que seja apenas o “verdadeiro” e um povo que
seja apenas a “maioria”. A designação à seu modo produz efeitos sobre o social, uma
vez que rearranja politicamente quem deve fazer parte ou não das categorias que
aciona e ressignifica sob quais princípios essas categorias devem ser concebidas.
Essas unidades de ação, por sua vez, só tomam efeito prático porque se articu-
lam com conceitos e valores que são compartilhados culturalmente. A produção do
“nós” e do “eles” não adquire força apenas no ato de nomear. O discurso mobiliza
a ação, quando comunica com as tradições incrustradas na sociedade brasileira,
mesmo que o faça para reinterpretá-las. No caso do discurso de 21 de outubro, ele
se sustenta em três forças de construção do léxico bolsonarista: o patriotismo, o
militarismo e o anticomunismo.
Quanto ao patriotismo, a identificação com o autor extrapola os limites deste
enunciado. Bolsonaro desde sua trajetória como deputado federal se empenhou em
construir uma imagem de defensor dos valores patrióticos. A associação com sím-
bolos nacionalistas – bandeiras, uniformes militares, jargões - foi amplamente uti-
lizada em suas campanhas. Da mesma maneira, mesmo em suas falas polêmicas,
Bolsonaro as fazia em nome do Brasil, como no episódio de 1994 em que pregou o
fuzilamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso por estar cometendo
“um crime contra o país”. Além disso, dentre seus parcos projetos propostos, fazia
constantemente alusões patrióticas de efetividade discutível, como no projeto de lei
1.736 de 1996, em que proíbia o uso de vocábulos estrangeiros na identificação de es-
tabelecimentos comerciais e em rótulos de produtos, prática descrita como “atentado”
contra a língua portuguesa. O discurso da Ponta da Praia funciona, portanto, porque
está pré-condicionado ao histórico do autor e, por conseguinte, serve como mais um
espaço de reafirmação de uma narrativa que já havia se estabelecido antes: a de que
Bolsonaro estava comprometido com a defesa da nação.
O patriotismo do discurso de Bolsonaro é, contudo, de tipo único e vigente no
Brasil: aquele que se cruza com os valores do militarismo. Nota-se que dentre os
201
diversos grupos que compõem a sociedade brasileira, Jair Bolsonaro se direciona
especificamente para as Forças Armadas e as Polícias Civil e Militar. A autoincum-
bência de tornar as Forças Armadas “altiva” e de dar “retaguarda jurídica” para as
polícias civil e militar evidencia a valorização de um sistema político em que preva-
lecem o poder dos órgãos de coerção. Quem deve fazer “valer a lei” na sua lógica é
a polícia, passando por cima das instituições civis e de princípios pilares do Estado
Democrático de Direito como a presunção de inocência. Tal imaginário se pauta na
construção falaciosa das Forças Armadas como maior instituição de prestígio e de
credibilidade junto à sociedade brasileira, um ente incorruptível que deve agir como
espécie de “moderador” - eufemismo para golpismo interventor - nos momentos de
desvios republicanos. O desejo de conferir poderes anti-democráticos aos militares,
por sua vez, se associa, neste pronunciamento, com outra narrativa de fundo que se
refere à tradicional luta contra o comunismo nos meios castrenses.
Segundo Adriano de Freixo (2020), pode-se dizer que o anti-comunismo militar
remonta, pelo menos, à década de 1930, quando surge como ideologia capaz de unifi-
car as Forças Armadas e de acabar com suas divisões internas. A Revolta Comunista
de 1935 e a narrativa construída sobre ela pelas lideranças militares e pela ditadura
do Estado Novo (1937-1945) desempenhou um papel central para a consolidação de
um sentimento anti-comunista. O ápice desta ideologia se deu, contudo, durante a
experiência ditatorial de 1964 a 1985, cuja ascensão dos militares ao poder elevou ao
máximo a perseguição política interna ao campo da esquerda. Além disso, logo nos
primeiros anos do regime
Nos últimos anos, a ascensão das forças conservadoras no Brasil revigorou essa
ideologia anti-comunista, que já estava presente desde o século passado. Nas Forças
Armadas, ela vem sendo nutrida principalmente pelo conjunto de conhecimentos
transmitidos nas escolas militares, sob notório déficit democrático. Na sociedade,
disseminou-se principalmente durante a campanha de Dilma Rousseff de 2010, uma
202
vez que a principal estratégia de ataque da oposição foi fomentar antigos temores dos
segmentos conservadores, recuperando o passado guerrilheiro de Dilma Rousseff e
acusando a candidata de apoiar causas contrárias à moralidade religiosa. Motta (2018)
afirma que, embora esta estratégia não tenha impedido a vitória dos petistas, ela
representou uma inflexão, pois fortaleceu a agenda dos grupos conservadores e o
sentimento anti-comunista.
O anti-comunismo que vigora atualmente não é, contudo, o mesmo de 1964, pois
recebeu nova roupagem e sua perspectiva foi ampliada para outros setores da socie-
dade. O Outro ameaçador do Bolsonarismo possui uma anatomia especifica. Ele é
uma espécie de animal dismórfico que junta sob espectros diferentes figuras asso-
ciadas ao petismo, comunismo e esquerdismo. Esse movimento só é possível porque
há uma derivação de conceitos completamente distintos que se tornam iguais, for-
mando um espantalho diferente do que o construído na ditadura. A transformação
de um único partido em liderança ou guarda-chuva de todas as ideologias e movi-
mentos de esquerda é uma das novidades. Como consequência, esquerdismo, pe-
tismo e comunismo se tornam sinônimos políticos que compõem o único espectro
ideológico do Brasil, já que o discurso patriótico de Bolsonaro reproduz a noção de
ideologia como falsa consciência. Na sua lógica, não explícita neste discurso, mas
presente em muitos outros enunciados, o ideológico são sempre os outros, já que o
patriota não tem partido170.
No pronunciamento de 21 de outubro, o anti-petismo assume papel central, pois
é o conceito que proporciona identidade ao inimigo. Na construção do “eles”, é pro-
duzido um alargamento que contempla todo o campo progressista. Neste lado, ca-
racterizado como o lado perdedor, designam-se representações heterogêneas da es-
querda como se fossem uma só: quadros do Partido dos Trabalhadores, movimentos
sociais como MST e MTST e o espectro do Socialismo, citado de forma difusa. Há,
inclusive, menções a atores que não se relacionam com o campo progressista, como
o veículo de imprensa Folha de S. Paulo, cuja posição durante os governos dos citados
(anexo) Lula da Silva e Fernando Haddad foi notadamente opositora. Na linguagem
bolsonarista, basta ser de oposição para receber o status de “comunista”.
170 Não por acaso, a máxima “meu partido é o Brasil” estampou camisas verde-e-amarelas de seus eleitores no
dia 25 de outubro.
203
O petismo é, portanto, a caracterização inimiga mais endossada neste discurso, se
sustentando na premissa difundida com maior força desde a Operação Lava-Jato de
que o PT seria um ator-chefe das práticas de corrupção no país. Neste ponto, ressalta-se
a forma extremamente agressiva com que Bolsonaro caracterizou membros específi-
cos do Partido dos Trabalhadores (Lula da Silva, Fernando Haddad e Lindbergh Farias)
tornando-os sinônimos de marginalidade, contravenção e desordem. Na relação de
alteridade deste discurso, subentende-se, por fim, que apesar de constituir pólos ine-
gociáveis em conteúdo, eles são inseparáveis, pois a existência do lado salvacionista
depende do combate ao lado criminoso e, portanto, da existência do Outro ameaçador.
204
Essas categorias, segundo Koselleck (2006), fornecem uma chave para mostrar o
tempo histórico em mutação, na medida em que a própria tensão decorrente do jogo
dialético entre elas produz o tempo histórico. Nesse sentido, resume-se que espaço
de experiência é a categoria de conhecimento sobre o tempo que elabora os aconteci-
mentos passados, enquanto o horizonte de expectativa se volta para o ainda não expe-
rimentado, para o que apenas pode ser previsto. São categorias de diferente natureza.
As experiências são espaciais porque são reunidas, elas se aglomeram, se superpõem
e se impregnam umas nas outras para elaborar um todo, “em que muitos estratos
de tempo anteriores estão simultaneamente presentes, sem que haja referência a
um antes e depois” (KOSELLECK, 2006, p.311), já as expectativas estão no horizon-
te, porque são adquiridas, resultando na promoção de medos, esperanças, angústias,
análises racionais e prognósticos. Estas categorias não são independentes ou opostas,
pois elas estão em permanente contato e tensão. Ao retrocederem, esperanças e
decepções repercutem nas experiências; as experiências, por sua vez, liberam novos
prognósticos e os orientam. Tal qual nos diz Koselleck, “é a tensão entre experiência
e expectativa que, de uma forma sempre diferente, suscita novas soluções, fazendo
surgir o tempo histórico” (KOSELLECK, 2006, p.313).
Na articulação entre essas duas categorias, o tempo histórico da modernidade se
caracteriza, segundo o autor, pelo jogo no qual as experiências não servem mais de base
para as expectativas ou minimamente as expectativas se desvinculam das experiências.
A busca pela perfeição da modernidade, dotada pela chave do progresso, leva à formu-
lação de expectativas que ainda não podiam ser concebidas, surgindo conceitos tanto
mais impregnados de expectativas, quanto mais esvaziados de experiências. Assim, no
tempo histórico da modernidade desenhado por Koselleck (2006), o futuro guia na me-
dida em que ele entra em choque com o passado. Isto é, na medida em que se deseja su-
perar o passado, pois a luz que guia a humanidade para o aperfeiçoamento está em um
futuro aberto para a novidade. É neste ponto em que argumento que o pronunciamento
da Ponta da Praia entra em choque com a chave analítica descrita por Koselleck (2006),
ensaiando outra relação entre as dimensões temporais da interpretação histórica.
Ao analisar esse pronunciamento tomando a predominância lexical de palavras
escolhidas estrategicamente para o convencimento eleitoral, podemos cair no obje-
tivo desejado pelo enunciador, que era a promoção da ideia de que seria um outsider
na política brasileira, porta-voz das demandas por mudança que saíam nas pesquisas
eleitorais. Toma-se a seguinte passagem:
205
Petralhada, vai tudo vocês (sic) pra ponta da praia. Vocês não terão mais vez em
nossa pátria porque eu vou cortar todas as mordomias de vocês. Vocês não terão
mais ONGs para saciar a fome de mortadela de vocês. Será uma limpeza nunca
visto (sic) na história do Brasil. Vagabundo vai ter que trabalhar. Vai deixar de fa-
zer demagogia junto ao povo brasileiro. Vocês verão as instituições sendo reco-
nhecidas. Vocês verão umas Forças Armadas altiva (sic), que estarão colaborando
com o futuro do Brasil. Vocês, petralhada, verão uma polícia civil e militar, com
retaguarda jurídica pra fazer valer a lei no lombo de vocês. Bandidos do MST,
bandidos do MTST, as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo. Vocês
não levarão mais o terror ao campo ou a cidade. Ou vocês se enquadram e se
submetem às leis ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba. Amigos
de todo o Brasil, este momento não tem preço. Juntos, eu disse juntos, nós fare-
mos um Brasil diferente.
206
S.Paulo” retomam práticas típicas do período da ditadura militar: encarceramento do
candidato opositor, permissividade jurídica à violência policial, eliminação dos ad-
versários políticos, exclusão das minorias, perseguição à imprensa e criminalização
dos movimentos sociais. Portanto, o futuro desejado é iluminado pelo regresso ao
passado da ditadura militar de 1964-85. Esta construção temporal do Bolsonarismo
contraria o axioma da Filosofia da História que resulta do iluminismo, descrita por
Koselleck, na qual “se a história inteira é única, também o futuro deve ser único, por-
tanto diferente do passado” (KOSELLECK, 2006, p.319). O futuro bolsonarista vai na
direção oposta: é retroativo, uma espécie de passado futuro.
O desejo de retorno ao passado, contudo, não se confunde com o quadro de pre-
dominância do espaço de experiência na História Magistra Vitae (“A História Mestra
da Vida”). O passado da experiência bolsonarista é valorizado, mas não tem função
didática. A valorização do espaço de experiência se baseia em uma operação referen-
cial de contraste com o presente, uma vez que o presente é concebido como um espa-
ço de contínua contaminação. A expressão da dominação conspiracionista difundida
neste pronunciamento de Bolsonaro (“vocês achavam que tava tudo dominado?”)
expressa uma persistente necessidade de eliminar o que está constantemente se in-
filtrando nas instituições. Segundo Rodrigo Patto Sá Motta (2000), essa construção
do imaginário da infiltração anti-comunista está presente no Brasil desde a década
de 1930 e se fortaleceu durante a ditadura militar de 1964-85:
207
exposto na seção anterior (“militares”, “amigos da Paulista”, “família”, etc) “salvar”
novamente a pátria do “perigo vermelho” (“vocês da Paulista […], vocês estão salvan-
do a nossa pátria”), que age como uma doença ou um câncro nas instituições. A ação
dos militares interventores e de seus apoiadores políticos é concluída, portanto, como
infinitamente imprescindível. Se o presente está dominado pela constância do mal
transgressor, no caso, a ação comunista (comumente confudida com o amplo campo
da esquerda brasileira), o retorno ao passado deve necessariamente impor uma ação
programática de destruição, isto é, a “limpeza nunca visto (sic) na história do Brasil”.
O termo “limpeza” neste discurso age como um mecanismo de ação programáti-
ca, como um operador de passagem entre este presente putrefato e sujo para um fu-
turo “limpo”, futuro este iluminado pelo passado da ditadura militar. Seu significado
neste pronunciamento é destrutivo e sua função é de agir como meio para promover
a desfiguração da democracia. Sobre o caráter destrutivo do Bolsonarismo, Renato
Lessa define que o termo “destruição” “é como uma seta apontada para as circunstân-
cias que levaram à desconfiguração da malha normativa que, desde a Constituição de
1988, prefigurou uma forma de vida entre nós” (LESSA, 2021, s.p.). Diferente do fascis-
mo histórico, contudo, o Bolsonarismo não parte do princípio de incluir o conjunto da
sociedade na órbita do Estado. Sua destruição se dá por outro caminho. Seu objetivo é:
Em acordo com Lessa (2020; 2021), assumo que a destruição toma um papel im-
portante no modo de vida bolsonarista e adiciono a premissa de que ela acaba por
mediar a relação entre espaço de experiência e horizonte de expectativa. Para isso,
faço contudo duas ressalvas: a primeira é que a exortação para o ato destrutivo da
democracia já está presente no pronunciamento de 2018, mas é incabível afirmar que
o conjunto de desmontes e ameaças ao Estado Democrático de Direito conduzido
posteriormente no Governo Bolsonaro já estava organizado em um plano de ação
infalível desde o período eleitoral. É preciso escapar às teleologias. A segunda é que
se admite que todo o movimento do Bolsonarismo não precisa necessariamente se
208
encaixar na ordem temporal desenhada aqui, que podemos nomear de regime des-
trutivo de historicidade. Inclusive, durante o cenário pandêmico, é provável que ou-
tro regime de historicidade tenha se desenvolvido, mais orientado pelo predomínio
do presente do que do passado. O incentivo ao trabalho (“O Brasil não pode parar”)
para garantir a sobrevivência do agora em detrimento da expectativa de preservação
da vida é uma pista para elucidar esta relação.
A opção de nomear regime destrutivo de historicidade é uma escolha teórica ba-
seada na definição proposta por François Hartog (2017) de “historicidade”, em vez de
“temporalidade”. Trata-se da assunção de que o tempo não é externo à ação humana.
O tempo é experimentado e também produto da própria reflexão histórica. De forma
que as categorias “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” são entendidas
neste capítulo como construções do conhecimento científico, cujo jogo da moderni-
dade não mais explica as relações que se dão no fenômeno aqui analisado. No entanto,
tampouco o regime de historicidade bolsonarista experimentado durante a eleição
pode ser inserido na construção teórica do “presentismo”, definida por Hartog (2017),
uma vez que o presente não é, nesse caso, o guia, mas pelo contrário, é uma dimensão
a se superar. A destruição do presente é a chave para alcançar o passado.
De qualquer maneira, no pronunciamento da Ponta da Praia, se desenha uma
ordem temporal distinta daquela do tempo histórico da modernidade. A tarefa da
ação política para o Bolsonarismo não é superar a separação entre espaço de expe-
riência e horizonte de expectativa, como os modernos. A tarefa para o Bolsonarismo
é superar a separação entre o presente contaminado e o espaço de experiência mí-
tico que envolve a memória da ditadura militar. A fórmula da estrutura temporal
da modernidade de “quanto menor a experiência, tanto maior a expectativa” não se
encaixa no discurso bolsonarista, ao menos não nesse pronunciamento. Seu telos não
é o progresso, nem o desenvolvimento econômico ou social, que se fazem presentes
na maioria das campanhas eleitorais. É uma sociedade ritualizada sob a “lei do mais
forte”, sob a disciplina militar com seus ideais regulatórios, organizados sob preceitos
morais rígidos, a partir do desmantelamento das instituições democráticas. O apego
com o passado ditatorial e a pulsão pela regressão civilizatória são, portanto, eviden-
tes como ações programáticas e dominam as vozes conservadoras e autoritárias do
Brasil no tempo presente.
209
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seja o que for que estejamos experimentando desde a eleição de 2018 na política
brasileira, parece certo que vivemos após um tempo de ruptura. Particularmente
esta eleição trouxe à público um rol de conceitos e práticas novas, repaginadas ou, ao
menos, se já existiam eram anteriormente insignificantes em outros pleitos presi-
denciais da Nova República. Junto à esses conceitos e práticas, surgem também novas
formas de se experimentar o tempo histórico e, em seguida, de se produzir inteligibi-
lidade sobre os fenômenos em andamento. Cabe aos e às pesquisadoras tentar juntar
as peças deste quebra-cabeça inacabado, ao mesmo tempo em que questionamos
certas categorias do conhecimento histórico que começam a se tornar insuficientes
como ferramentas heurísticas do tempo presente.
Neste capítulo, busquei compreender melhor como funciona a produção da expe-
riência temporal do bolsonarismo, me voltando para um dos discursos mais radicais
da eleição de 2018, o discurso da Ponta da Praia. Este discurso representou o ápice das
pulsões autoritárias e conservadoras do então candidato, ao mesmo tempo em que
acenava por um “Brasil diferente” para uma população desacreditada na representati-
vidade política. A leitura dessa relação temporal exigiu a descrição da situabilidade do
pronunciamento e de sua estrutura discursiva, a fim de melhor traçar os operadores
que mobilizam o discurso e, por conseguinte, a operação do tempo. Isto é, no pri-
meiro momento foi analisado em que fase da corrida eleitoral o pronunciamento se
inseria e quais foram seus elementos retóricos mais marcantes para, posteriormente,
explorar o modelo dicotômico que fundamentou o discurso, tornando inteligíveis a
divisão de um lado “amigo” e outro “inimigo” em dois pólos inegociáveis.
Na leitura da relação entre o “nós” e o “eles”, observou-se que a relação de alte-
ridade opera não somente efeitos de diferenciação, como ela cria unidades de ação
política, pelas quais Bolsonaro insta a população a agir a partir da identificação com
grupos identitários. Isso só foi possível, porque o “nós” se baseia em conceitos de
tradições incrustradas na sociedade brasileira, como o patriotismo, o militarismo e o
anti-comunismo. Neste discurso, os dois pólos, apesar de inegociáveis em conteúdo,
eram fundamentalmente dependentes, pois o lado salvacionista só pode existir para
combater o lado criminoso, o Outro ameaçador.
Essa construção dicotômica elucida a maneira como este pronunciamento ar-
ticula o tempo histórico, pois se baseia na constância de um mal transgressor no
210
tempo presente e numa operação de “salvação”, em termos práticos, como destrui-
ção e desfiguração da democracia. Em contradição ao paradigma de funcionamento
do tempo histórico da modernidade, defendi que o pronunciamento da “Ponta da
Praia” dá mais ênfase à instância do passado do que do futuro, apesar do seu seu
caráter eleitoral e de sua suposta retórica disruptiva. Sua especificidade reside no
telos bolsonarista, baseado na projeção de uma sociedade moralizada pela eliminação
dos adversários políticos e das estruturas tradicionais da democracia. Seu horizonte
de expectativas é dirigido pela reaglomeração das experiências do autoritarismo de
1964-85 e das tradições conservadoras brasileiras.
A renovação política na linguagem bolsonarista é limitada pelo passado, pois ao
mesmo tempo que o pronunciamento busca romper com o presente “dominado” do
governo do Partido dos Trabalhadores, ele enaltece a memória da ditadura militar
brasileira, tanto pela referência valorativa do espaço de aprisionamento de presos
políticos (“Ponta da Praia”), quanto pela menção simpática às práticas do período
ditatorial. Neste sentido, o pronunciamento tem uma espécie de caráter utópico às
avessas, na medida em que faz promessas de futuro com o passado como bússola
para a ação política. Propus, portanto, o termo “regime destrutivo de historicidade”,
a fim de sobressaltar a centralidade da ação de destruição na experiência do tempo
bolsonarista. Parece-me que esse regime nem obedece ao jogo moderno proposto
por Koselleck, tampouco a uma ordem presentista do tempo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
211
KOSELLECK, Reinhart. Introduction and Prefaces to the Geschichtliche Grundbegriffe.
Contributions to the History of Concepts. Trad: Michaela Richter Vol. 6, ed.1. 35 pp, 2011.
KOSELLECK, Reinhart. Histórias de conceitos: estudos sobre a semântica e a pragmática da
linguagem política e social. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020.
LESSA, Renato. Homo Bolsonarus. Serrote, julho, 2020, Rio de Janeiro, pp 46-65.
LESSA, Renato. A destruição: Bolsonaro, a palavra podre e a desfiguração da democracia.
Revista Piauí: São Paulo, edição 178, jul. 2021. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/
materia/a-destruicao/ Acesso em: 23 jul. 2021.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no
Brasil (1917-1964). 2000. Tese (Grau em História Econômica). Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O lulismo e os governos do PT: ascensão e queda. In: FERREIRA,
Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Republicano (vol.5). O tempo
da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016: Quinta República (1985-
2016). 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
SILVA, Daniel S. The pragmatics of chaos: parsing bolsonaro’s undemocratic language.
Trabalhos em Linguística Aplicada, 59 (1), jan-Abr. 2020
SOLANO, Esther. A bolsonarização do Brasil. In: Sergio Abranches e Alii. Democracia em
Risco? 22 ensaios sobre o Brasil de hoje. São Paulo, Companhia das Letras, 2019a, pp 307-321.
FONTE ICONOGRÁFICA
Video do Youtube: Via transmissão de celular, Bolsonaro fala com população na Av. Paulista.
Youtube, Canal de Jair Bolsonaro, 21 out. 2018 (10m41s). Disponível em: <https://youtu.be/
H9wxneOnIOI> Acesso em: 17 set. 2020. Acesso em 23 jul. 2021.
ANEXO
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Nós somos a maioria. Nós somos o Brasil de verdade. Juntos com este povo bra-
sileiro construíremos uma nova nação.
Não têm preço as imagens que vejo agora, da Paulista e de todo o meu querido Brasil.
[pausa em que os manifestantes gritam: “um, dois, três, quatro, cinco, mil, que-
remos Bolsonaro presidente do Brasil”]
Perderam ontem, perderam em 2016 e vão perder a semana que vem de novo.
[gritos de exaltação]
Só que a faxina agora será muito mais ampla.
Essa turma, se quiser que ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós.
Ou vão pra fora ou vão pra cadeia. [gritos de exaltação]
Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria.
Nós acreditamos no futuro do nosso Brasil. E juntos, em equipe, construíremos o
futuro que nós merecemos.
Temos o melhor povo do mundo, a melhor terra do planeta, e vamos com essa
nova classe política construir realmente aquilo que nós merecemos.
Estou aqui porque acredito em vocês, vocês estão aí porque acreditam no Brasil.
Ninguém vai sair dessa pátria, porque essa pátria é nossa.
[pausa em que os manifestantes gritam “Brasil”]
Não é dessa gangue, que tem a bandeira vermelha e tem cabeça lavada. Sem in-
dicações políticas, faremos um time de ministros que realmente atenderá às neces-
sidades do nosso povo. Podem ter certeza. Vocês podem confiar em nós, porque nós
confiamos em vocês. O Brasil será respeitado lá fora. O Brasil não será mais motivo
de chacota junto ao mundo. Aqui não terá mais lugar para corrupção.
E, seu Lula da Silva, se você estava esperando o Haddad ser presidente pra assinar
o decreto de indulto, eu vou te dizer uma coisa: você vai apodrecer na cadeia.
[pausa para gritos de exaltação, aplausos e gritos de “mito” na Avenida Paulista]
Brevemente você terá Lindbergh Faria pra jogar dominó no xadrez.
Aguarde. O Haddad vai chegar aí também. Mas não será pra visitá-lo, não. Será
pra ficar alguns anos ao teu lado.
Já que vocês se amam tanto, vocês vão apodrecer na cadeia. Porque lugar de ban-
dido que rouba o povo é atrás das grades.
Você achava que tava tudo dominado? Não tava não.
Esse povo sempre se levantou, nos momentos mais difíceis da nação, para, exa-
tamente, salvá-la. Vocês da Paulista, vocês que fazem manifestação em todo o Brasil,
213
não tenho palavras para agradecê-los neste momento. Vocês estão salvando o meu, o
seu, o nosso Brasil.
Petralhada, vai tudo vocês (sic) pra ponta da praia. Vocês não terão mais vez em
nossa pátria porque eu vou cortar todas as mordomias de vocês [gritos de exaltação e
aplausos]. Vocês não terão mais ONGs para saciar a fome de mortadela de vocês.
Será uma limpeza nunca visto (sic) na história do Brasil.
Vagabundo vai ter que trabalhar. Vai deixar de fazer demagogia junto ao povo
brasileiro. Vocês verão as instituições sendo reconhecidas. Vocês verão umas Forças
Armadas altiva (sic), que estarão colaborando com o futuro do Brasil.
Vocês, petralhada, verão uma polícia civil e militar, com retaguarda jurídica pra
fazer valer a lei no lombo de vocês.
Bandidos do MST, bandidos do MTST, as ações de vocês serão tipificadas como
terrorismo. Vocês não levarão mais o terror ao campo ou a cidade. Ou vocês se en-
quadram e se submetem às leis ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba.
Amigos de todo o Brasil, este momento não tem preço. Juntos, eu disse juntos,
nós faremos um Brasil diferente. Meu muito obrigado a todos do Brasil que con-
fiaram o seu voto em mim por ocasião do primeiro turno. Ainda não ganhamos as
eleições, mas este grito em nossa garganta será posto pra fora no próximo dia 28.
Conclamamos a todos vocês que continuem mobilizados e participem ativamen-
te por ocasião das eleições do próximo domingo, de forma democrática.
Sem mentiras, sem fake news, sem Folha de S.Paulo [gritos de exaltação]. Nós
ganharemos esta guerra. Queremos a imprensa livre, mas com responsabilidade. A
Folha de S.Paulo é o maior (sic) fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba pu-
blicitária do governo. Imprensa livre, parabéns. Imprensa vendida, meus pêsames.
Somos amantes da liberdade, queremos a democracia e queremos viver em paz.
Nós amamos as nossas famílias, nós respeitamos as crianças, nós respeitamos todas
as religiões, nós não queremos socialismo, nós queremos distância de ditaduras do
mundo todo.
Amigos da Paulista e do Brasil, meu muito obrigado a todos vocês, e vamos, jun-
tos, trabalhar pra que no próximo domingo aquele grito que está em nossa garganta,
que simboliza tudo o que nós somos, seja posto pra fora.
Brasil acima de tudo e Deus acima de todos. À vitória! Valeu, abraço meu Brasil.[o
apresentador no carro de som responde: parabéns, Jair, parabéns. Você é o nosso líder].
214
CATALOGAÇÃO NA FONTE
Responsável: Hugo da Silva Carlos CRB: 8/738
214 p. il.
PPGH/UFF, Niterói, 2022
ISBN: 978-65-87277-22-6
( CDD ) 907.2
PPGH/UFF
Usina Editorial
Niterói/ 2023
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