Antonio Sorela Castillo
Rubén Miranda Gonçalves
Thiago Oliveira Moreira
Directores
Derechos
Humanos
en debate:
Reflexiones sobre
su alcance en un
mundo globalizado
Todos los derechos reservados a los directores de la obra. Ninguna parte de la misma
podrá ser reproducida sin el consentimiento expreso de los directores.
Los directores no son responsables de las opiniones, comentarios o manifestaciones de
los/las autores/as en los artículos publicados.
© Antonio Sorela Castillo (Director)
© Rubén Miranda Gonçalves (Director)
© Thiago Oliveira Moreira (Director)
© Los/las autores/autoras, por su capítulo
1ª edición: 2024
ISBN: 978-84-09-59456-6
Academia Líder de Formación Avanzada
Morelos, México
2
ÍNDICE
Las acciones afirmativas en materia electoral para la población de los
pueblos y comunidades originarias en México ………. 09
Antonio Sorela Castillo
El principio de igualdad política en la mujer indígena…………...…… 27
Ixel Mendoza Aragón
Refugiados ucranianos en Polonia: Aspectos jurídicos de la vacunación
obligatoria y la reproducción asistida (surrogacy) un año después del
estallido del conflicto armado en Ucrania……………………...…… 39
Beata Stępień Załucka
The right to a court and the institution of a pre-judgement hearing -
comments on the background of Polish civil
proceedings………………………………………………………………………. .50
Tomasz Szanciło
A aplicação da Lei nº 13.146/2015 (LBI) pela justiça eleitoral: a
acessibilidade está sendo observada?……........………………………. 64
Linaldo de Oliveira Lima & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
Análise crítica da implementação dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável da ONU sob a perspectiva da educação inclusiva da pessoa
com deficiência 77
Maria Elizabeth Lins & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
Exame da reserva de vagas nas casas legislativas para pessoas com
deficiência como ação garantidora do exercício do direito político 93
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira & André Ricardo
Fonsêca da Silva
3
“Jurisprudencia terapéutica en México, capítulo Chiapas” 110
Eberth Roblero Castillo
Responsabilidade civil ambiental em face da natureza propter rem da
obrigação. 121
Letícia Furtado Oliveira Menezes & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Democracia e participação política dos indígenas: análise das eleições
municipais de 2020 de Marcação – PB…........v ...137
Linaldo de Oliveira Lima
O papel fundamental da função social do contrato na preservação da
dignidade da pessoa humana e dos direitos civis ....................................153
Letícia Mayara Araújo da Silva, Maria Gabriela Silva Alves & Fábio Luiz de
Oliveira Bezerra
Contratações públicas como instrumento de políticas de fomento ao
desenvolvimento econômico e social ……………………....165
André Martins Pereira Neto, Marilene Pontes Pereira & Maria Marconiete
Fernandes Pereira
Perspectiva de gênero no Superior Tribunal de Justiça..… …...178
Milena de Araújo Costa & Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras
Pensão por morte após reforma da previdência brasileira de 2019:
inconstitucionalidade e retrocesso social?…… ……….195
Pedro Eduardo Oliveira da Silva & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Inteligência artificial: viés no aprendizado da máquina à luz da
responsabilidade civil ....…………………….210
Raysla Raquel Dias Guilherme
4
Revisão judicial de cláusulas contratuais: exame da intervenção mínima
vs. revisão judicial na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Norte (TJRN) ……..……..…….………………...226
Filipe do Nascimento Barros Vilela & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Fake news e propaganda eleitoral nas eleições de 2022: o entendimento
do TSE ..240
Felipe Medeiros Mariz & Rodrigo Vieira Costa
Sistema de cotas nas eleições proporcionais: exame da viabilidade da
reserva de vagas nas casas legislativas do brasil para pessoas com
deficiência como ação garantidora do direito político…………………....254
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira & André Ricardo
Fonsêca da Silva
Direito à informação da pessoa com TEA no âmbito do sistema jurídico de
proteção ao consumidor……..…………....……………... 270
Anderson Andrade de Araújo & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
As empresas e os direitos humanos: em busca de elementos
estruturantes para a proteção da dignidade da pessoa ………………. 283
Wilson Engelmann & Raquel Von Hohendorff
Ensino de direitos humanos nas escolas de direito e formação
integral............................................................................................................296
Wilson Engelmann & Raquel Von Hohendorff
Resíduos sólidos e o consumo sustentável........................................... .311
Boisbaudran de Oliveira Imperiano & Rogério Roberto Gonçalves de Abreu
Crianças e adolescentes refugiadas venezuelanas desacom-panhadas no
Brasil: um estudo acerca da (re) inserção social e familiar................... ...327
Lílian Sena da Silva & Flavia de Paiva Medeiros de Oliveira
5
Medidas coercitivas na tutela executiva e a patrimonialidade das
obrigações: análise do julgamento da ADI 5.941………... 341
Ana Julia Lopes Palmeira, Arthur Morais Rodrigues Cavalcanti Alves & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
Assunção de dívida como instrumento de concretização do direito
humano ao sufrágio passivo……..…......……………………... 352
Felipe Augusto Souza Morais, Maria Emília de Lima Miranda & Fábio Luiz de
Oliveira Bezerra
A democracia intrapartidária como determinante das candidaturas
coletivas.……………………… .368
Gabriel Vieira Terenzi & Fernando de Brito Alves
Casos Gomes Lund e Herzog: os efeitos do descumprimento das
sentenças proferidas pela Corte IDH devido à lei de anistia …..........….379
Ana Beatriz Cavalcante da Nóbrega & Silvya Erasmo Macêdo de Medeiros
O princípio da eficiência administrativa e a concretização do direito
fundamental à saúde.................................................................................. 393
Diego de Medeiros Santos & Vladimir da Rocha França
A inclusão da pessoa com deficiência no âmbito empresarial através do
teletrabalho……..………………….… 408
Rossana Bitencourt Dantas & Flavia de Paiva Medeiros
Parâmetros de regulação econômica durante a pandemia de Covid-19 à
luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988............ ..422
Vitória Nathalia dos Santos
A Segurança Social Portuguesa e o Direito da Segurança Social…….. 435
Patrícia Pinto Alves
6
O trabalho análogo à escravidão em atividades rurais no Brasil e o
princípio da dignidade humana………………………… ..448
Alice Ruiz Nardi & Aline Ruiz Nardi
Aposentadoria por tempo de contribuição após reforma da previdência
brasileira de 2019: análise da vulnerabilidade previdenciária dos
empregados rurais.........................................................................................464
Julius César Gurgel de Araújo Lima & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
A influência da Convenção Internacional de Belém do Pará na construção
do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do Conselho
Nacional de Justiça brasileiro e sua efetividade 479
Heloísa Gomes da Silva, Beatriz de Sousa Perez & Cátia Rejane Mainardi
Liczbinski
Dromologia e a usuarialização do ser: a velocidade e a efetivação dos
direitos humanos no plano virtual 493
Diego de Medeiros Santos & Ubirathan Rogerio Soares
Utilização algorítmica de dados transnacional e democracia: os impactos
nos processos políticos e nos direitos humanos à proteção de dados e à
particição política 503
Marco Bruno Miranda Clementino & Maíra Arcoverde Barreto Pinto
Efetividade da proteção dos migrantes nas relações empregatícias no
ordenamento jurídico brasileiro 518
Carla Cecília Marcelino Alves
Bluewashing e a publicidade enganosa 533
Maria Clara Tavares Santana da Silveira & Fabrício Germano Alves
Análise da participação ativa das pessoas com deficiência nas eleições
paraibanas de 2018 e 2022 547
Flávia de P. M. de Oliveira, Célia V. A. da Costa & Luis H. Mendes de Melo
7
Profissionalização das empresas familiares como instrumento de
sustentabilidade e crescimento econômico 559
Manuelina Pires Barbosa & Hélcia Macedo Carvalho Diniz e Silva
O direito das mulheres a uma vida livre da violência como norma de jus
cogens a partir da interpretação da Corte Interamericana de Direitos
Humanos 570
Layla de Oliveira Lima Linhares, Thiago Oliveira Moreira & Érica Verícia Canuto
de Oliveira Veras
A aplicação do direito interamericano dos direitos humanos pela justiça
federal no Rio Grande do Norte 589
Hermínia Boracini Bichinim Costa Silva, Joel Vidal de Negreiros Neto & Thiago
Oliveira Moreira
A análise estatística e a perspectiva jurimétrica do contencioso tributário
como fundamento para incentivo da transação tributária 604
Danilo Marques de Queiroz
O papel das normas de direitos humanos em face das mudanças
climáticas: a posição adotada pelo sistema interamericano de proteção
aos direitos humanos 619
Joel Vidal de Negreiros Neto, Hermínia Boracini Bichinim Costa Silva & Thiago
Oliveira Moreira
Plano de defesa para domínio de cidades como estratégia de proteção
dos direitos humanos 630
Romildson Farias Uchôa & Lucélio Ferreira Martins Faria França
8
Las acciones afirmativas en materia electoral para la población
de los pueblos y comunidades originarias de México
Dr. Antonio Sorela Castillo 1
Introducción
Ha costado mucho el reconocimiento, promoción, protección, respeto y
garantía de los derechos humanos de todas las personas, especialmente en
América, no podemos soslayar que se ha avanzado en políticas públicas y
acciones afirmativas para lograr una igualdad formal para grupos
históricamente discriminados (mujeres, comunidad LGBTITTTQ+, personas
indígenas, afrodescendientes, migrantes, etc.), empero, esa igualdad no se ha
materializado para todas y todos, es por ello que los poderes legislativos ha
tenido que implementar acciones para lograr esa igualdad real, han sido varias
reformas, tales como en materia laboral, penal, familiar, administrativa,
migratoria y por supuesto en la materia que involucra la presente investigación,
es decir, materia electoral, sin embargo, aún con muchos avances seguimos
teniendo un gran deuda con la población indígena.
Aún y cuando la historia reconoce que la población de los pueblos y
comunidades originarias es la verdadera dueña de nuestro territorio, lo cierto es
que hasta hace algunos años eso parecía que no se reconocía, las políticas
que se implementaban era dirigidas a la eliminación de los pueblos originarios,
se trataba de excluirlos de todas las formas, eliminar sus lenguas, tradiciones,
costumbres, indumentaria, etc., pero derivado instrumentos universales y
regionales de derechos humanos se obligo a los países en a armonizar sus
normas internas con dichas instrumentos internacionales, reconocer los
derechos de los pueblos y comunidades originarias, principalmente reconocer
el derecho a libre autodeterminación, a participar en la vida política teniendo la
posibilidad de aspirar a cualquier cargo político, y es cuando así se empieza a
materializarse esa igualdad real, sin embargo, esas acciones se han ido
implementándose de menor a mayor protección, veremos por ejemplo en el
caso de México que desde el año 2017 aún y cuando se mostro avances en
este tema lo cierto es que los partidos políticos y la ciudadanía utilizaron estas
acciones para su beneficio, defraudando los objetivos loables, es decir, fueron
gente oportunista quienes accedieron a cargos que eran exclusivos para
personas de las comunidades originarias y se hicieron pasar como indígenas
sin serlo, es por ello que este trabajo intenta exponer los avances y los retos
que tenemos para lograr que nuestras poblaciones indígenas tengan
representación verdadera en el poder ejecutivo y legislativo, que erradiquemos
las conductas fraudulentas, que conozcamos los lineamientos que el Instituto
Nacional Electoral ha adoptado, así como las sentencias emitidas en esta
1
Sorela Castillo, Antonio, profesor de la Universidad Internacional de la Rioja, España,
Postdoctor por la Universidad de las Palmas de Gran Canaria, España.
9
Las Acciones Afirmativas en materia Electoral para la (…)
materia, precisando como se pueden autodeterminarse como indígena y pueda
participar en las próximas elecciones.
1.1 Pueblos y comunidades indígenas
Son aquellos conformados por personas que descienden de las poblaciones
que habitaban el actual territorio mexicano antes de la conquista española y la
época colonial. Los pueblos y comunidades indígenas se caracterizan por
conservar sus propias instituciones sociales, económicas, culturales y políticas,
o parte de ellas. (Artículo 1 del Convenio 169 de la OIT sobre Pueblos
Indígenas y Tribales en Países Independientes)
La Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos reconoce que
nuestro país es una nación pluricultural, es decir, la conforman diversas
culturas e identidades que se sustentan originalmente en los pueblos
indígenas. Artículo 2 de la Constitución Política de los Estados Unidos
Mexicanos 2).
1.1.1 Derechos de la población originaria
La población originaria son titulares de todos los derechos humanos
reconocidos en la Constitución y por los instrumentos internacionales de los
que el Estado mexicano es parte, abarcando las prerrogativas de manera
individual como a nivel colectivo, es decir, la población indígena deben gozar
de los derechos como personas en lo individual y como pueblo.
Si bien de manera general todas las personas tienen derecho a la alimentación,
a los servicios de salud, , a una vivienda digna, a un medio ambiente sano, a la
educación, el esparcimiento, la práctica del deporte y por supuesto a los bienes
y servicios, pero de manera exclusiva la población originaria de acuerdo a lo
dispuesto por artículo 2 de la CPEUM, en el Convenio 169 de la Organización
Internacional del Trabajo sobre Pueblos y lo determinado en la Declaración de
las Naciones Unidas sobre los Derechos de los Pueblos Indígenas, tienen entre
otras las siguientes prerrogativas:
♦ Libre determinación
♦ Autonomía para decidir sobre sus formas internas de convivencia y
organización social, económica, política y cultural.
♦ No discriminación.
♦ El derecho colectivo de vivir en libertad, paz y seguridad como pueblos
distintos, sin ser sometidos a ningún acto de genocidio ni a ningún otro
acto de violencia, incluido el traslado forzado de niños del grupo a otro
grupo.
♦ A no sufrir la asimilación forzada o la destrucción de su cultura.
♦ A pertenecer a una comunidad o nación indígena, de conformidad con
las tradiciones y costumbres de la comunidad o nación de que se trate.
♦ A manifestar, practicar, desarrollar y enseñar sus tradiciones,
costumbres y ceremonias espirituales y religiosas;
2
Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, promulgada el 05 de febrero de 1917.
10
Antonio Sorela Castillo
♦ A mantener y proteger sus lugares religiosos y culturales y a acceder a
ellos privadamente; a utilizar y vigilar sus objetos de culto.
♦ A revitalizar, utilizar, fomentar y transmitir a las generaciones futuras sus
historias, idiomas, tradiciones orales, filosóficas, sistemas de escritura y
literaturas, y a atribuir nombres a sus comunidades, lugares y personas
y mantenerlos.
2. Antecedentes del reconocimiento de los Derechos políticos de la población
originaria
Encontramos que los derechos de la población originaria se han ido
reconociendo poco a poco, desde el reconocimiento de su libre
autodeterminación y autonomía, en caso de México encontramos seis
momentos en la historia.
1.1.1 Acuerdos de San Andrés Larraizá (1996)
El Estado se comprometió a fortalecer su representación política y participación
en las legislaturas y en el gobierno, con respeto a sus tradiciones, para
garantizar la vigencia de sus formas propias de gobierno interno.
1.1.2 Reforma al Art. 2 de la Constitución Política de los Estados Unidos
Mexicanos (2001)
Reconocimiento de los derechos políticos en los municipios y en las
comunidades. y en el 3er Transitorio: Redistritación electoral.
1.1.3 Redistritación que incorpora la variable indígena (2004)
Proceso Electoral 2006-2009, en la cual se delimito a 300 distritos
uninominales, y de los cuales fueron 28 distritos indígenas (INEGI, 2000).
1.1.4 Primer antecedente de redistritación.
El Estado de Chiapas fue la primera entidad dentro de su proceso electoral
1995-1996 en garantizar que 10 escaños del Congreso local fueran reservados
para personas indígenas.
1.1.5 La acción afirmativa adoptada en el Proceso Electoral Federal 2017-
2018.
En este proceso se permitió que llegaran a la Cámara de Diputados Federal 13
personas que se registraran como integrantes de los pueblos y comunidades
indígenas.
1.1.6 La acción afirmativa adoptada en el Proceso Electoral Federal 2020-
2021.
Este antecedente más próximo se logro un total de 36 personas postuladas a
través de la acción afirmativa indígena, 21 por el principio de mayoría relativa y
11
Las Acciones Afirmativas en materia Electoral para la (…)
15 por el principio de representación proporcional, de las cuales veintidós
fueron mujeres y catorce hombres.
3. Sistema Normativo Internacional y Nacional sobre los Derechos de las
Personas Originarias
Existen diversas normas que tutelan derechos de la población originaria, desde
hace varios años se ha exigido a nivel Universal, Regional y por supuesto en
plano nacional que se reconozcan de manera especifica las prerrogativas para
lograr acceder en plano de igualdad a todas las esferas que históricamente
habían tenido prohibidas.
1.2.1 Sistema Normativo Internacional
En plano internacional debemos diferencias los instrumentos suscritos a nivel
internacional y a nivel regional, es decir, a nivel interamericano en materia de
derechos humanos, por lo que dividiremos por una parte los instrumentos que
derivan de los pactos celebrados ante los organismos de las Naciones Unidas y
por otra parte los instrumentos del Sistema Interamericano de Derechos
Humanos.
1.2.1.1 Declaración Universal de Derechos Humanos 3
El ideal de este instrumento fue y sigue siendo lograr que e todas las naciones
se reconozcan, respeten y garanticen los derechos humanos mínimos vitales
que se encuentran dentro de sus 30 artículos que lo conforman, en especial al
mencionar en su articulo 1 y 2 la posibilidad de gozar de manera igualitaria de
estos derechos y sin discriminación alguna, y por respecto a los derechos
políticos electorales los encontramos regulados en el artículo 20.
Articulo 1. Todos los seres humanos nacen libres e iguales en dignidad y
derechos y, dotados como están de razón y conciencia, deben comportarse
fraternalmente los unos con los otros.
Articulo 2. 1. Toda persona tiene todos los derechos y libertades proclamados
en esta Declaración, sin
distinción alguna de raza, color, sexo, idioma, religión, opinión política o de
cualquier otra índole, origen nacional o social, posición económica, nacimiento
o cualquier otra condición. […].
Articulo 20. 1. Toda persona tiene derecho a participar en el gobierno de su
país, directamente o por
medio de representantes libremente escogidos.
2. Toda persona tiene el derecho de acceso, en condiciones de igualdad, a las
funciones
públicas de su país.
3
Declaración Universal de Derechos Humanos, adoptada el 10 de diciembre de 1948.
12
Antonio Sorela Castillo
1.2.1.2 Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos 4
Uno de instrumentos universales más importantes es sin duda este pacto,
específicamente en materia de derechos político electorales, en el cual se
determina que todas las personas sin distinción tienen el derecho de participar
en los asuntos públicos, acceder a las funciones públicas y por supuesto votar
y ser votadas, tal como lo observamos en el siguiente artículo:
Art 25. Todos los ciudadanos gozarán, sin ninguna de las distinciones
mencionadas en el artículo 2, y sin restricciones indebidas, de los siguientes
derecho y oportunidades:
a) Participar en la dirección de los asuntos públicos, directamente o por medio
de representantes libremente
elegidos;
b) Votar y ser elegidos en elecciones periódicas, auténticas, realizadas por
sufragio universal e igual y por voto secreto que garantice la libre expresión de
la voluntad de los electores;
c) Tener acceso, en condiciones generales de igualdad a las funciones públicas
de su país.
1.2.1.3 Declaración de las Naciones Unidas sobre los Derechos de los Pueblos
Indígenas 5
Si bien los dos primeros instrumentos se refieren de manera general a los
derechos que todas y todos debemos gozar y en particular en materia político
electoral, ahora corresponde analizar instrumentos que fueron adoptados para
proteger de manera específica a los pueblos y comunidades originarias.
La Asamblea General de la Organización de las Naciones Unidas aprobó la
Declaración de las Naciones Unidas sobre los Derechos de los Pueblos
Indígenas, instrumento ratificado por México.
Art 3. Los pueblos indígenas tienen derecho a la libre determinación. En virtud
de ese derecho determinan libremente su condición política y persiguen
libremente su desarrollo económico, social y cultural.
Art 4. Los pueblos indígenas, en ejercicio de su derecho de libre determinación,
tienen derecho a la autonomía o al autogobierno en las cuestiones
relacionadas con sus asuntos internos y locales, así como a disponer de los
medios para financiar sus funciones autónomas.
De acuerdo a los artículos antes transcritos observamos que se tiene
reconocido a favor de la población originaria el derecho a la libre
determinación, la posibilidad de libremente determinar su condición política y
perseguir libremente su desarrollo económico, social y cultural, así como el
4
Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, adoptado el 10 de abril de 1966.
5
Declaración de las Naciones Unidas sobre los Derechos de los Pueblos Indígenas, aprobada
el 13 de septiembre de 2007.
13
Las Acciones Afirmativas en materia Electoral para la (…)
derecho a la autonomía o el autogobierno en las cuestiones relacionadas con
sus asuntos internos y locales.
1.2.1.4 Convenio No. 169 de la OIT sobre pueblos indígenas y tribales en
países independientes
Ahora bien, se ha quedado de manifiesto que la población originaria tienen los
mismo derechos que todas las demás personas, también sobre derechos en
particular que solamente esta población goza, pero también debemos
mencionar que por diversos fenómenos han orillado que dicha población tenga
que emigrar abandonando su territorio, es por ello que se convierten en
personas trabajadoras migrantes, por tal motivo, dentro del selo de la OIT se
elaboró un convenio que protegiera a la comunidad originaria, tal como lo
observamos en los siguientes fundamentos:
Artículo 4.
1. Deberán adoptarse las medidas especiales que se precisen para
salvaguardar las personas, las instituciones, los bienes, el trabajo, las culturas
y el medio ambiente de los pueblos interesados.
2. Tales medidas especiales no deberán ser contrarias a los deseos
expresados libremente por los pueblos interesados.
3. El goce sin discriminación de los derechos generales de ciudadanía no
deberá sufrir menoscabo alguno como consecuencia de tales medidas
especiales.
Artículo 5
Al aplicar las disposiciones del presente Convenio:
a) deberán reconocerse y protegerse los valores y prácticas sociales,
culturales, religiosos y espirituales propios de dichos pueblos y deberá tomarse
debidamente en consideración la índole de los problemas que se les plantean
tanto colectiva como individualmente;
b) deberá respetarse la integridad de los valores, prácticas e instituciones de
esos pueblos;
c) deberán adoptarse, con la participación y cooperación de los pueblos
interesados, medidas encaminadas a allanar las dificultades que experimenten
dichos pueblos al afrontar nuevas condiciones de vida y de trabajo.
Artículo 8
1. Al aplicar la legislación nacional a los pueblos interesados deberán tomarse
debidamente en consideración sus costumbres o su derecho consuetudinario.
2. Dichos pueblos deberán tener el derecho de conservar sus costumbres e
instituciones propias, siempre que éstas no sean incompatibles con los
derechos fundamentales definidos por el sistema jurídico nacional ni con los
derechos humanos internacionalmente reconocidos. Siempre que sea
necesario, deberán establecerse procedimientos para solucionar los conflictos
que puedan surgir en la aplicación de este principio.
3. La aplicación de los párrafos 1 y 2 de este artículo no deberá impedir a los
14
Antonio Sorela Castillo
miembros de dichos pueblos ejercer los derechos reconocidos a todos los
ciudadanos del país y asumir las obligaciones correspondientes.
1.2.1 Sistema Normativo Interamericano
El sistema interamericano recoge los estándares mínimos previstos en los
instrumentos antes mencionados, especialmente los derechos reconocidos en
la DUDH y el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, por lo que
solamente analizaremos los fundamentos relacionados con los derechos de la
población originaria en materia política electoral.
1.2.1.1 Convención Americana de Derechos Humanos
Artículo 23. Derechos Políticos
1. Todos los ciudadanos deben gozar de los siguientes derechos y
oportunidades:
a) de participar en la dirección de los asuntos públicos, directamente o por
medio de representantes libremente elegidos;
b) de votar y ser elegidos en elecciones periódicas auténticas, realizadas por
sufragio universal e igual y por voto secreto que garantice la libre expresión de
voluntad de los electores, y
c) de tener acceso, en condiciones generales de igualdad, a las funciones
públicas de su país.
2. La ley puede reglamentar el ejercicio de los derechos y oportunidades a que
se refiere el inciso anterior, exclusivamente por razones de edad, nacionalidad,
residencia, idioma, instrucción, capacidad civil o mental, o condena, por juez
competente, en proceso penal.
Este instrumento determina la posibilidad que tiene toda persona sin
discriminación alguna de participar en los negocios públicos de su país y sobre
todo de poder votar y también ser votado, por lo que en el caso de la
comunidad originaria ya desde este instrumento se advierte que los Estados
garantizarán la participación en los procesos electorales, sin embargo, los
poderes públicos han omitido su responsabilidad de lograr la justiciabilidad en
este grupo de prerrogativas especialmente para la población originaria.
4. Obligaciones y deberes que con los pueblos y comunidades originarias en
México
De acuerdo a lo que reza el párrafo primero del artículo 1º de la CPEUM 6 se
reconoce como titulares de los derechos humanos a todas las personas, así
también, por cuanto hace al párrafo tercero 7 del numeral antes mencionado, se
establecen en principio las obligaciones que tiene todas las autoridades en el
ámbito de sus competencias dentro del territorio mexicano de promover,
6
Ídem, art. 1, párrafo primero.
7
Ibídem, art. 1, párrafo tercero.
15
Las Acciones Afirmativas en materia Electoral para la (…)
proteger, respetar y garantizar los derechos humanos, sin olvidar los deberes
que tiene el propio Estado para prevenir, investigar, sancionar y reparar las
violaciones a los derechos humanos 8; de esta manera es claro que en la
republica mexicana de acuerdo a su máxima norma el estado debe garantizar
el acceso efectivo integro de los derechos a favor de todas las personas
incluyendo a la población originaria.
4.1 Acciones afirmativas en materia de derechos políticos electorales a favor de
la población originaria.
Es muy importante establecer cuando menos un concepto de acciones
afirmativas, con el objeto de evitar falsas concepciones, analizando lo que la
profesora Anna M. Fernández Poncela nos ayuda a comprender, diciéndonos
que:
“Pueden definirse como aquellas acciones cuyo objetivo es borrar o hacer
desaparecer la discriminación existente en la actualidad o en el momento de su
aplicación, corregir la pasada y evitar la futura, además de crear oportunidades
para los sectores subordinados. Se trata de políticas concretas que sirven al
objetivo más amplio de igualdad de oportunidades. Y son necesarias para
vencer las resistencias al cambio, las dificultades, obstáculos y limitaciones que
se levantan por doquier sembradas a diestra y siniestra en el largo y difícil
camino hacia una igualdad de oportunidad verdadera” 9
4.1.1 La acción afirmativa adoptada en el Proceso Electoral Federal 2017- 2018
Acuerdo INE/CG508/2017 aprobado por el Consejo General del INE 10, en
donde se determinan los criterios aplicables para el registro de
candidaturas para el proceso electoral federal 2017-2018.
En dicho acuerdo, el INE identificó veintiocho 28 distritos electorales
federales en los que el cuarenta por ciento 40% o más de la población se
identificaba como indígena; por lo que, para garantizar la representación
de las comunidades originarias, el INE obligó a que los partidos
políticos postularan personas indígenas en 12 de los referidos distritos.
Ahora bien, inconformes diversos partidos políticos y ciudadanos promovieron
ciertos medios de impugnación en contra del acuerdo antes mencionado; por lo
que la Sala Superior confirmó la implementación de la acción
afirmativa, pero modificó su contenido, en virtud que consideró
pertinente que, para garantizar el acceso a las diputaciones de mayoría
relativa, la acción afirmativa debía acotarse para que los
partidos políticos tuvieran que postular candidaturas indígenas en los 13
distritos electorales que superaban el 60% de población indígena.
8
Ibídem, art. 1, párrafo tercero.
9
Fernández Poncela, Anna María. Publicación Feminista Mensual, FEM, Las acciones
afirmativas en la política, año 21, No. 169, abril 1997.
10
Acuerdo INE/CG508/2017 aprobado por el Consejo General del INE. 08 de noviembre de
2017
16
Antonio Sorela Castillo
Derivado de ello, se permitió que llegaran a la Cámara de Diputados en ámbito
federal 13 personas que se postularon autoadscribiendose como indígenas,
ahora bien, después que tomaron protesta hubo inconformidad de parte de las
asociaciones indígenas y especialmente de la población originaria que no
sabían que alguien se postulo diciendo que era indígena y argumentaron que
no los conocían ni los reconocían como sus representantes.
En este proceso obligo incorrectamente a que los partidos políticos llegaran a
los pueblos y comunidades originarias a buscar constancias, más no a
candidatas y candidatos, bajo un total acto incorrecto en donde ya llevaban el
nombre de las personas candidatas, solo buscaban el aval de las autoridades
indígenas, también se observo un negocio para las autoridades que expidieron
constancias algunos sin tener la facultad pero aceptaban por dadivas o
promesas de los partidos políticos.
Es importante mencionar que en postulación de candidaturas indígenas, se
detectaron ciertas incidencias desde la sesión especial del registro de
candidaturas quedando registradas en acuerdos del Consejo General y que de
forma recurrente fueron del conocimiento del tribunal Electoral del Poder
Judicial de la Federación.
4.1.2 La acción afirmativa adoptada en el Proceso Electoral Federal 2020-2021.
Acuerdo INE/CG572/2020 aprobado por el Consejo General del INE 11, por el
que estableció los criterios para el registro de candidaturas a las diputaciones
federales para el proceso electoral federal 2020-2021.
De acuerdo a la acción afirmativa a favor de la población originaria, el INE
consideró necesario ampliar su aplicación, según lo siguiente:
♦ Principio de mayoría relativa, los partidos debían de postular
candidaturas indígenas en 21 de los 28 distritos electorales indígenas.
♦ Principio de representación proporcional, los partidos debían de
postular un total de nueve fórmulas de personas indígenas, en los
primeros diez lugares de sus listas de asignación de cada
circunscripción electoral.
No obstante el aumento de personas que hoy en día ocupan la 36 curules en la
cámara de diputaxs, lo cierto es que la población originaria y las asociaciones
indígenas no avalaron en su totalidad a quienes tomaron protesta, dijeron que
eran personas usurpadoras que están ocupando espacios que deberían para
las y los auténticos indígenas.
No podemos soslayar que no obstante de las inconformidades de la población
11
Acuerdo INE/CG572/2020 aprobado por el Consejo General del INE de18 de noviembre de
2020.
17
Las Acciones Afirmativas en materia Electoral para la (…)
originaria, si observamos avances con estas acciones afirmativas, y
especialmente porque aún y cuando tomaron protesta estas personas, algunos
partidos políticos presentaron ciertos recursos de apelación, correspondiente a
la sala superior resolver tales recursos, teniendo como resultado el
confirmar su aplicación para ambos principios de elección popular, empero,
determinó que el INE tenía que establecer cuáles serían los 21 distritos en
donde los partidos sólo podían postular candidaturas indígenas. En
cumplimiento a la sentencia, el Consejo General emitió el acuerdo
INE/CG18/2021, por el que modificó los lineamientos.
Una vez transcurrida la jornada electoral, el INE emitió el acuerdo por el
INE/CG1443/2021 que realizó el cómputo de la elección, declaró su validez, y
realizó la asignación de diputaciones de representación proporcional.
Bajo este tenor, se logro un total de 36 personas postuladas a través de la
acción afirmativa indígena, 21 por el principio de mayoría relativa y 15 por el
principio de representación proporcional, de las cuales veintidós fueron mujeres
y catorce hombres. lo que representó el siete punto dos por ciento (7.2%) de la
integración total de dicho órgano legislativo y representó un incremento del
176.92% respecto de la anterior legislatura.
4.1.3 Lineamientos de autoadscripción indígena INE/CG830/2022 12, el Consejo
General del INE el 29 de noviembre de 2022 emitió los lineamientos de
adscripción calificada para las candidaturas mediante acción afirmativa
indígena en virtud del cumplimiento a la ejecutoria SUP-REC-1410/2021 y
acumulados en donde varios ciudadanos indígenas promovieron sendos
medios de impugnación en contra de la asignación de las diputaciones de
representación proporcional.
Específicamente veremos que el contenido de los lineamientos es el siguiente:
46. A efecto de dar cumplimiento a lo ordenado por la Sala Superior del TEPJF en
la sentencia dictada en el recurso de reconsideración identificado con el
número de expediente SUP-REC-1410/2021 y acumulados, lo conducente es,
emitir los Lineamientos que permitan verificar de manera certera
el cumplimiento de la autoadscripción indígena calificada, a efecto de que
desde el momento del registro se cuente con elementos objetivos e idóneos
que permitan acreditarla.
47. Para tales efectos, teniendo como fundamentos y motivos lo hasta aquí
expuesto en el presente Acuerdo, este Consejo General considera que en los
Lineamientos deberá establecerse lo siguiente:
a) Que la solicitud de registro de las personas candidatas a cargos federales por
el principio de mayoría relativa postuladas a través de la acción afirmativa
indígena deberá ser presentada ante el Consejo Local o Distrital, según
corresponda, a efecto de que la Vocalía Ejecutiva o la persona que ésta
designe cuente con la mayor prontitud con los elementos necesarios
para verificar los requisitos de elegibilidad de la persona candidata, así como
para corroborar la autenticidad de las constancias de adscripción calificada
12
Lineamientos de autoadscripción indígena INE/CG830/2022 aprobados por el Consejo
General del INE, 29 de noviembre de 2022.
18
Antonio Sorela Castillo
indígena y constatar que se acredita el vínculo con el pueblo y la comunidad
indígena. No obstante, dichas solicitudes podrán presentarse supletoriamente
ante el Consejo General.
b) Que, en el caso de las personas postuladas por el principio de representación
proporcional, la solicitud de registro deberá presentarse ante el Consejo
General.
c) Que la solicitud de registro deberá acompañarse de una carta de
autoadscripción en la que la
persona candidata señale:
- El pueblo y la comunidad indígena a la cual pertenece, desde qué fecha y cuál
es la localización de esa comunidad indígena;
- Si es hablante de una lengua indígena, y cuál de ellas;
- Cuáles son los motivos por los que se autoadscribe a ese pueblo y comunidad;
- De qué manera mantiene un vínculo con las instituciones sociales,
económicas, culturales y políticas distintivas de la comunidad a la que
pertenece.
La comunidad que refiera deberá estar comprendida dentro del distrito, entidad
o circunscripción, según el cargo de que se trate, por el cual pretende ser
postulada la persona y estar preferentemente registrada en el Sistema Nacional
de Información Estadística de los Pueblos y Comunidades Indígenas del INPI.
d) Que a la solicitud de registro también deberá acompañarse la constancia de
adscripción calificada indígena expedida por una autoridad existente en la
comunidad o población indígena a la que pertenece y por la cual pretende
postularse, misma que deberá estar preferentemente registrada dentro de
dicho Sistema Nacional de Información.
e) Que la constancia de adscripción calificada indígena deberá emitirse por
alguna de las autoridades de la comunidad a la que pertenece la persona que
se pretende postular como candidata, conforme al siguiente orden de prelación:
- Asamblea General comunitaria o su equivalente;
- Asamblea de autoridades indígenas, tradicionales o comunitarias;
- Autoridad comunitaria;
- Autoridad agraria indígena.
f) Que, en caso de que en la comunidad no exista alguna de las autoridades
mencionadas, la autoridad electoral podrá verificar el vínculo de la persona
candidata con la comunidad a la que pretende representar, a través de lo
siguiente:
- Realización de una asamblea comunitaria;
- Testimoniales de las personas integrantes de la comunidad;
- Análisis de la documentación que integra la solicitud de registro
- Autoridades municipales;
- Asociaciones civiles de personas indígenas.
g) Que la constancia de adscripción calificada indígena deberá presentarse en
original y contener requisitos mínimos tales como: la fecha de expedición, que
no podrá ser mayor a seis meses de antelación a la solicitud de registro,
nombre, firma o huella dactilar, en su caso, sello y cargo de quien la expide, así
como el domicilio para su localización y número telefónico u otro medio
de contacto.
h) Que la constancia de adscripción calificada indígena debe señalar a partir de
qué elementos se considera que la persona que se postula tiene un vínculo
efectivo con la comunidad indígena, es decir:
19
Las Acciones Afirmativas en materia Electoral para la (…)
- Si pertenece a la comunidad indígena;
- Si es nativa de la comunidad indígena;
- Si acredita tener como lengua materna una lengua indígena;
- Si habla alguna lengua indígena y cuál de ellas;
- Si es descendiente de personas indígenas de la comunidad;
- Si ha desempeñado algún cargo tradicional en la comunidad, cuáles y en qué
periodo;
- Si ha desempeñado algún cargo de representación de la comunidad de
conformidad con su sistema normativo indígena;
- De qué manera participa activamente en beneficio de la comunidad indígena;
- De qué manera demuestra su compromiso con la comunidad indígena;
- Si ha prestado servicio comunitario y en qué ha consistido;
- Si ha participado en reuniones de trabajo tendentes a mejorar las instituciones
o resolver conflictos en la comunidad;
- Si ha sido miembro de alguna asociación indígena para mejorar o conservar
sus instituciones;
- Qué otras actividades ha desarrollado a favor de la comunidad y en qué
periodo;
- Y los demás elementos que la comunidad o autoridad indígena, tradicional o
comunitaria considere necesarios para acreditar la pertenencia de la persona a
la comunidad.
i) Que la constancia de adscripción calificada indígena deberá acompañarse de
copia del documento emitido por la instancia de decisión comunitaria, ya sea
acta de asamblea o su análogo.
j) Que en el supuesto de las personas que sean postuladas tanto por el principio
de mayoría relativa como por representación proporcional, deberán acreditar su
autoadscripción indígena calificada con las mismas constancias para ambas
solicitudes de registro.
k) Que, de ser el caso que la constancia de adscripción calificada indígena no
cumpla con los requisitos establecidos en los Lineamientos, el Instituto
formulará requerimiento al partido político o coalición a efecto de que en el
plazo de 48 horas subsane la inconsistencia identificada, apercibido de que en
caso de no hacerlo no se registrará la candidatura correspondiente.
l) Que, en respuesta al requerimiento mencionado en el inciso anterior, no podrá
presentarse constancia de comunidad o autoridad distinta a la presentada, sino
que deberá perfeccionarse la constancia ya exhibida o complementarla con
otros elementos que enriquezcan la argumentación que se haya vertido en la
misma.
m) Que en caso de impugnación de la candidatura indígena, la Vocalía Ejecutiva
Local o Distrital o la persona que esta designe, llevará a cabo diligencias de
verificación para aportar elementos en el informe circunstanciado que brinde al
TEPJF, para ello deberá realizar la diligencia de entrevista con la autoridad
emisora de la constancia de adscripción calificada indígena, para determinar
cómo se acredita el vínculo con el pueblo y la comunidad a la que dice
pertenecer la persona candidata, de conformidad con el formato que al efecto
emita la DEPPP. Para dicha verificación, la Vocalía podrá estar acompañada
de personas intérpretes/traductoras de lenguas indígenas.
n) Que las diligencias de verificación de las constancias de adscripción calificada
indígena que, en su caso, se realicen, se llevarán a cabo preferentemente de
lunes a viernes entre las 9:00 y 18:00 horas (hora local). No obstante, las
20
Antonio Sorela Castillo
visitas a los pueblos y comunidades indígenas se concertarán previamente con
las autoridades correspondientes de cada lugar; por lo que dicho horario pueda
ampliarse e inclusive las diligencias pueden realizarse en sábados y domingos.
o) Que, en el caso de que la constancia haya sido emitida por la Asamblea
General Comunitaria o equivalente, o la Asamblea de autoridades indígenas,
tradicionales o comunitarias, la entrevista se realizará con las personas que
hayan suscrito el acta de dicha asamblea o con al menos tres personas de la
comunidad.
p) Que las personas que fueron electas como Diputadas o Diputados en alguno
de los distritos indígenas en que en los últimos dos PEF no fue obligatorio
postular personas de esa adscripción, en caso de buscar su reelección,
deberán acreditar el vínculo con la comunidad indígena a la que pretenden
acreditar conforme a los requisitos que han sido descritos.
q) Que en la determinación que adopten los Consejos del INE deberán valorarse
todas las constancias que obren en el expediente de solicitud de registro, las
que se alleguen con motivo de los requerimientos formulados a los PPN o
coaliciones y, en su caso, las que se hayan desahogado ante la procedencia de
una diligencia de verificación de la constancia de adscripción indígena
calificada y documentos que la acompañan, además de los documentos que
obren en los archivos del INE para determinar si se acredita el vínculo efectivo
de la persona candidata con el pueblo y la comunidad indígena.
r) Que de resultar que con la constancia de adscripción indígena y
documentación que obre en el expediente no se acredite la autoadscripción
indígena calificada de la persona, se negará el registro de la candidatura
correspondiente y el PPN o coalición contará con 48 horas para sustituir la
candidatura. La nueva candidatura que se presente deberá cumplir con los
requisitos establecidos en los Lineamientos; de no ser así, dado que se trata de
una acción afirmativa de cumplimiento obligatorio, se amonestará al PPN o
coalición y se le otorgará un plazo adicional de 24 horas para presentar una
nueva solicitud. En caso de que en este último plazo no presente una solicitud
de registro que cumpla con los requisitos establecidos, el PPN o coalición se
quedará sin esa candidatura
s) Que únicamente en los casos en que en la comunidad indígena no exista una
autoridad que pueda expedir la constancia de adscripción calificada indígena,
una asociación civil eventualmente puede acreditar o hacer constar la
adscripción indígena calificada de determinada persona; sin embargo, las
afirmaciones deben estar robustecidas de otros elementos sustanciales que
permitan sustentar lo que pretenden hacer constar. Asimismo, a efecto de
evitar que se integren asociaciones civiles especialmente para emitir este tipo
de constancias, la asociación civil debe tener al menos dos años de antigüedad
a la fecha de expedición de la constancia, estar integrada por personas
indígenas y, conforme al acta constitutiva de la asociación civil, el objeto social
debe estar vinculado con la promoción de la igualdad de oportunidades de las
personas indígenas, la eliminación de cualquier práctica discriminatoria, el
impulso de su desarrollo en el ámbito económico, social, político, educativo,
la mejora de sus condiciones, la protección de sus tradiciones y herencia
cultural, el apoyo a sus actividades productivas, entre otros.
t) Que, toda vez que el Ayuntamiento electo mediante el sistema de partidos
políticos no constituye propiamente una autoridad tradicional al interior de una
comunidad indígena, la misma sólo tendrá legitimación para expedir
21
Las Acciones Afirmativas en materia Electoral para la (…)
constancias en las que se pudiera acreditar el vínculo con la comunidad a la
que pertenece la persona candidata, siempre y cuando no exista en
la comunidad otra autoridad que pueda expedir dicha constancia y que la
conformación poblacional del municipio tenga al menos un 40% de personas
que se autoadscriban como indígenas.
u) Que las solicitudes de sustitución de candidaturas deberán cumplir con los
mismos requisitos y seguir el mismo procedimiento que las solicitudes de
registro establecidos en los Lineamientos, con la salvedad de que las primeras
deberán ser presentadas invariablemente ante el Consejo General, en términos
de lo establecido en el artículo 241 de la LGIPE.
v) Que, conforme a lo establecido en el artículo 239, párrafo 8, en relación con el
240, párrafo 2 de la LGIPE, así como conforme al principio de máxima
publicidad, la Secretaría Ejecutiva y las Vocalías Ejecutivas Locales y
Distritales del Instituto, según corresponda, tomarán las medidas necesarias
para hacer pública la lista de candidaturas indígenas registradas en las
comunidades indígenas a las que pertenezcan, así como las respectivas
sustituciones.
El INE hizo un trabajo arduo para lograr tener estos lineamientos, tarea que no
fue fácil, pues para ello tuvo que realizar una consulta y lograr determinar
cuales serian los requerimientos mínimos de acreditación de un o una
candidata indígena, lo cierto es que si vemos un cambio progresivo con las
anteriores acciones afirmativas implementadas en los procesos 2016-2017 y
2020-2021, por supuesto que no quiere decir que con esto se vaya a resolver
los problemas de usurpación, desafortunadamente falta consultar a gran parte
de la población originaria y ver como se puede blindar para evitar más acciones
fraudulentas en contra de los pueblos y comunidades originarias.
Dichos lineamientos establecen caules serán los documentos, elementos y
procedimientos que deberán seguir los ciudadanos y partidos políticos
nacionales para acreditar la autoadscripción calificada de las personas que
postulen para el cumplimiento de la acción afirmativa indígena a nivel federal,
así se establece la metodología que observarán las instancias del INE para
verificar el cumplimiento de de calificación de la autoadscripción calificada.
Así tambien, es este instrumento determina que la persona que las personas
candidatas deben acreditar tener un vínculo efectivo con el pueblo y la
comunidad a la que pertenecen; ahora bien, me parece que se comete un error
al referir este concepto, en virtud que lo que se debería de acreditar es la
pertenencia, esta es uan las criticas que asociaciones indígenas y personas de
la academia hacen.
Es importante mencionar que el insturmento en estudio prevé una prelación de
las autoridades autorizadas para emitir las contancias de autoadscripción
calificada, y se reconoce como máxima autoridad a la asamblea general siendo
esta la primera en orden de prelación, no obstante que en caso que en los
pueblos y comunidades no tengan como práctica habitual la celebración de
asambleas generales pero existan otras autoridades en este caso se reconoce
la posibilidad de que sean emitidas las contancias, así también en caso
excepcionales se reconoce la posibilidad de las asociaciones indígenas de
22
Antonio Sorela Castillo
poder expedir las constancias especialmente cuando las mujeres o migrantes
no tengan la posbilidad de ser reconocidas en sus pueblos o comunidades.
Por otra parte, el trabajo que hizo el INE ne torno a proteger a un grupo
históricamente discrimiando como son las mujeres, en virtud que se reconoce
que en muchas poblaciones no se permite que las mujeres participen en cargos
que han sido reservados para los hombres, por ello en el caso de este grupo se
determina que basta con acreditar un elemento para acreditar el vinculo
efectivo, es decir, a diferencia de los hombre que cuando menos deberán
acreditar dos elementos.
Los lineamientos tiene por objeto garantizar que las personas candidatas y por
supuesto en caso de ser electas por esa acción afirmativa
realmente representen los intereses de pueblos y comunidades indígenas a las
que pertenecen y no se repita los fraudes en los procesos anteriores.
No obstante lo anterior, los Lineamientos fueron controvertidos ante la Sala
Superior en 19 de julio de 2023 dicha autoridad jurisdiccional al resolver el
Juicio para la Protección de los Derechos Político Electorales del Ciudadano
número SUP-JDC-56/2023, entre otros, modificó esos Lineamientos.
4.1.4 Juicio para la Protección de los Derechos Político-Electorales del
Ciudadano, SUP-JDC-56/2023 13
La Sala Superior del Tribunal Electoral del PJF emite sentencia en la modifica
el Acuerdo INE/CG830/2022 del Consejo General del INE por el que, en
acatamiento a las sentencias dictadas por la Sala Superior en los expedientes
SUP-REC-1410/2021 y acumulados y SUP-JDC-901/2022, por lo tanto,
resuelve 2 cuestiones de suma importancia.
1.- Se modifique el acuerdo y los Lineamientos, a efecto de que se hagan las
incorporaciones precisadas en la ejecutoria.
La primera, tiene que ver con la difusión al interior de los pueblos y
comunidades. La parte actora expresa su inquietud porque los lineamientos
garanticen que las personas indígenas, a través de sus asambleas generales
comunitarias, estén informadas de las acciones afirmativas en materia
indígena, de su derecho a participar en una candidatura, de las normas que
rigen el registro y del proceso en su conjunto. Principalmente, de los derechos
y atribuciones que tiene la Asamblea General para el otorgamiento de la
constancia de autoadscripción indígena.
Los lineamientos prevén que, una vez aprobado el registro de las candidaturas,
las vocalías ejecutivas locales y distritales del INE, según corresponda,
realizarán un proceso de máxima publicidad entre los pueblos y comunidades
indígenas que asegure que éstas cuenten con la información para analizar,
debatir o reflexionar, en su caso, la autoadscripción calificada de una persona
13
Sentencia de la Sala Superior del Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación SUP-
JDC-56/2023 del 19 de julio de 2023.
23
Las Acciones Afirmativas en materia Electoral para la (…)
indígena.
Sin embargo, no se prevé un proceso previo al registro en el que se brinde la
información que enuncia la parte actora. En consecuencia, esta Sala Superior
considera que, como una vía para garantizar tanto la apropiación de las
acciones afirmativas para personas indígenas como su adecuada
implementación, la socialización de información que solicita la parte actora es
viable y se ajusta a los objetivos que llevaron a esta Sala Superior a ordenar la
emisión de los lineamientos.
En consecuencia, esta Sala Superior ordena al INE que retome las vías de
comunicación implementadas para la realización de la consulta que se llevó a
cabo en el marco de la elaboración de los Lineamientos, a fin de que se den a
conocer con oportunidad y adaptabilidad cultural las medidas que se
implementen en cada proceso electivo.
La segunda petición de la parte actora tiene que ver con que los partidos
tengan mejores elementos para comprender la cultura indígena, sus formas
internas de gobierno y su auto organización. En particular, que comprendan el
lugar que tiene la Asamblea en la cosmovisión indígena, su integración y sus
atribuciones. Una de ellas, el reconocimiento de las personas indígenas que
pertenecen a la comunidad y sus cualidades para ser reconocidas y
designadas para desempeñar cargos de responsabilidad o representación de la
comunidad.
Si bien en el numeral 7 de los Lineamientos se prevén las obligaciones de las
coaliciones y los partidos políticos nacionales, la Sala Superior encuentra que
difundir esa información entre los partidos coadyuva al cumplimiento adecuado
de las acciones afirmativas para personas indígenas, por lo que el INE deberá
comunicar a los partidos lo solicitado por la parte actora. Ello, con los medios
que considere pertinentes en tanto se implementen antes del registro de las
candidaturas.
Ahora bien, respecto a los efectos. La Sala Superior determina que el INE
incorpore a sus Lineamientos que, en cada proceso electoral:
1. Sumado al proceso de difusión de candidaturas registradas previsto en los
numerales 19 y 20 de los Lineamientos, deberá retomar las vías de
comunicación implementadas para la realización de la consulta que se llevó a
cabo en el marco de la elaboración de los referidos Lineamientos, a fin de que
se den a conocer con oportunidad y adaptabilidad cultural las medidas de
acción afirmativa indígena que se implementen en cada proceso electivo.
En caso de elecciones locales, se da vista de esta sentencia a los treinta y dos
OPLES para que, en su caso, lleven a cabo acciones encaminadas a diseñar
una metodología adecuada para comunicar a las comunidades y pueblos
indígenas cuáles son las acciones afirmativas que les corresponden y cuál es
su proceso de implementación.
En estos procesos se deberá dar prioridad a las Asambleas Generales
Comunitarias y garantizar que se den a conocer las acciones afirmativas en
24
Antonio Sorela Castillo
materia indígena; el derecho a participar en una candidatura; las normas que
rigen el registro y del proceso en su conjunto, así como los derechos y
atribuciones que tiene la Asamblea General para el otorgamiento de la
constancia de autoadscripción indígena.
2.- Se vincula al INE y se da vista a los treinta y dos OPLES para que lleven a
cabo las acciones precisadas en el último considerando de la sentencia.
El INE deberá comunicar a los partidos políticos, previo al registro de las
candidaturas, mediante los medios que considere pertinente, elementos para
comprender la cultura indígena, sus formas internas de gobierno y su auto
organización.
En particular, aquellos medios que sean necesarios para que comprendan el
lugar que tiene la Asamblea General Comunitaria en la cosmovisión indígena,
su integración y sus atribuciones, entre ellas, el reconocimiento de las personas
indígenas que pertenecen a la comunidad y sus cualidades para ser
reconocidas y designadas para desempeñar cargos de responsabilidad o
representación de la comunidad.
Asimismo, deberán informar a los partidos políticos acerca del sistema de
prelación establecido en los Lineamientos y sus obligaciones para auxiliar a las
personas que pretendan postular en una candidatura reservada a una acción
afirmativa indígena para la documentación y justificación de la imposibilidad de
obtener la constancia de autoadscripción calificada por parte de la Asamblea
Comunitaria, así como de las demás autoridades siguiendo el orden de
prelación.
Así también, se da vista la sentencia a los treinta y dos Organismo Públicos
Locales Electorales a fin de que, a partir de sus facultades, en su caso, diseñen
medidas similares.
Conclusiones
Primera.- Las acciones afirmativas en los procesos 2018 y 2021 no se logro
completamente llevar a los escaños políticos a la población originaria, fueron
los oportunistas y defraudadores integrantes de partidos políticos quien
ocuparon esos estaciones reservados.
Segunda.- Los 4 criterios autoadscripción calificada indígena derivados de la
sentencia de 2017 fueron muy generales y bajo los cuales cualquier persona
pudo participar bajo la acción afirmativa, asimismo la forma de comprobación
del vinculo efectivo con comprobantes objetivos resultaron manipulables y por
consiguiente ineficaces.
Tercera.- Los nuevos lineamientos del INE en torno a la acreditación de la
autoadscripción calificada deja vacíos y sin duda la posibilidad para las y los
defraudadores puedan ostentarse como indígenas y ocupar un espacio
reservado para las personas originarias.
25
Las Acciones Afirmativas en materia Electoral para la (…)
Cuarta. Los partidos políticos desafortunadamente seguirán visitando los
pueblos y comunidades originarias a buscar constancias, más no a candidatas
y candidatos, solo buscaban el aval de las autoridades indígenas.
Quinta.- La población originaria deberá capacitarse y saber los alcances que
tiene reconocerle la autoadscripción calificada de quien pretenda participar
para ocupar un cargo político de acuerdo a la acción a afirmativa a favor de la
población originaria.
Sexta.- Los órganos políticos electorales del país deberán acatar lo ordenado
en la sentencia SUP-JDC-56/2023, es decir, deberán establecer lineamientos
en torno a las acciones afirmativas a favor de la población originaria y todo lo
que implica las campañas de difusión, capacitación y asesoría, lo ideal es que
lo hicieran en sus lenguas maternas y por supuesto en lengua de señas
mexicanas.
Bibliografía
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noviembre de 2017.
Acuerdo INE/CG572/2020 aprobado por el Consejo General del INE de18 de
noviembre de 2020.
Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, promulgada el 05 de
febrero de 1917.
Declaración de las Naciones Unidas sobre los Derechos de los Pueblos
Indígenas, aprobada el 13 de septiembre de 2007.
Declaración Universal de Derechos Humanos, adoptada el 10 de diciembre de
1948.
Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, adoptado el 10 de abril de
1966.
Fernández Poncela, Anna María. Publicación Feminista Mensual, FEM, Las
acciones afirmativas en la política, año 21, No. 169, abril 1997.
Sentencia de la Sala Superior del Tribunal Electoral del Poder Judicial de la
Federación SUP-JDC-56/2023 del 19 de julio de 2023.
26
El principio de igualdad política en la mujer indígena
Ixel Mendoza Aragón 1
La democracia en México se instauró formalmente hace casi dos siglos, con la
primera Constitución mexicana de 1824, en esta constitución la nación mexicana
adopta un gobierno de forma de república representativa popular federal; con esta
proclamaciónse inauguran los derechos políticos de los mexicanos.
Desde su instauración, la democracia en México ha venido evolucionando para tratar
de dar cuenta de las nuevas realidades que devienen del contexto histórico,
incorporando nuevos elementos normativos, a fin de lograr la incorporación total de
la ciudadanía mexicana en la vida política.
El principio democrático, por sus propios orígenes y por su percepción pragmática
requiere necesariamente de la realización del principio de igualdad; ambos principios
van de la mano en un Estado democrático, en tanto más igualdad exista, más
democracia se ejerce; eso nos lleva a valorar las desigualdades existentes en el
Estado para determinar el grado de democracia de este.
La desigualdad es un carácter innato a nuestra naturaleza, algunos somos más altos
o más bajos, de piel más clara o más oscura, somos hombres o mujeres, tenemos
características que nos hacen diferentes a nuestros demás semejantes, sin embargo,
estas desigualdades innatas, son comprensibles en el contexto de la naturaleza, pero
inaceptables en nuestro carácter de entes sociales y políticos.
Una de las grandes problemáticas de nuestras sociedades, ha sido extrapolar
nuestras diferencias naturales, convirtiéndolas en desigualdades sociales que
desembocan en una discriminación injustificada que permea a casi toda nuestra
actividad social y sobre todo en el ámbito político, lo que reduce sensiblemente el
gradode democracia de un Estado.
La igualdad política es un elemento necesario para la consecución del principio
democrático, democracia e igualdad se encuentran íntimamente ligados, son
dependientes mutuamente; solo mediante la igualdad política es posible la
realización total de la democracia; esta infiere que todas las personas
pertenecientes a una comunidad, puedan participar activamente en el gobierno que
dirigirá su vida pública, mediante el ejercicio de sus derechos políticos, ya sea
ejerciendo el derecho al voto o el derecho a ser elegible a un cargo de elección
popular, sin olvidar el derecho de los ciudadanos a formar parte del gobierno en
función de sus aptitudes o de ejercitar aquellas prerrogativas políticas que se
consagran en la Constitución.
La desigualdad en razón de género es uno de los problemas más recurrentes de la
democracia, la diferencia natural entre hombres y mujeres ha sido trasladada al plano
1
Profesora de la Universidad Autónoma del Estado de Morelos.
27
El principio de igualdad política, en la mujer indígena
político; en las culturas desarrolladas bajo un régimen patriarcal, generalmente, por
tradición, se ha considerado a la mujer un ente inferior al hombre, ideología que aún
permea en las sociedades contemporáneas.
Esta problemática arraigada tan profundamente en el Estado mexicano ha tenido
como consecuencia la escasa participación de la mujer en la vida política del país;
en la actualidad, por la presión que durante décadas han ejercido las mujeres para
la reivindicación de sus derechos políticos y por las obligaciones contraídas por el
Estado mexicano en los instrumentos de derecho internacional, como tratados,
convenios, protocolos, etc., se ha asumido esta problemática creando normas jurídica
internas, que aunadas a la normatividad internacional han contribuido para la
incorporación de las mujeres en la vida política del Estado.
Otro de los factores que inciden en la consecución del principio democrático, es la
discriminación política por origen, las sociedades modernas han desdeñado la
participación de las personas de origen indígena en la vida política del Estado; los
pueblos indígenas tradicionalmente han creado sus propias formas de gobierno y
autodeterminación, así como sus costumbres propias para la elección de las
personas que gobernaran esas comunidades.
Hasta fechas recientes el Estado, en concordancia con la regulación internacional,ha
reconocido estas características de los pueblos indígenas, estableciendo el respeto
y la garantía de la autodeterminación de los pueblos indígenas, pero también
promulgandonormas que permitan la participación activa de las personas con origen
indígena en la vida política del Estado.
Las acciones que ha tomado el Estado Mexicano, están referidas en un primer plano
al reconocimiento de la autodeterminación de los pueblos indígenas, mediante el aval
de los sistemas normativos indígenas, por los cuales realizan la elección de sus
gobernantes; en un segundo plano mediante la implementación de la obligatoriedad
de incorporar mujeres y personas indígenas en las postulaciones de los partidos
políticos en el sistema de elecciones legisladas.
Estos dos factores, la desigualdad por género y la desigualdad por origen, aun
cuando ya han sido abordados por el Estado, han propiciado la marginación y la
discriminación de la mujer indígena de la vida política del país.
En las comunidades indígenas se hace más evidente y aún se vive bajo un sistema
patriarcal, en el que el rol de la mujer en la comunidad se circunscribe al ámbito familiar
y en algunos casos al ámbito social, pero es completamente relegada del contexto
político.
Recientemente en el sistema de elecciones legisladas, se han tomado medidas para
incorporar a la mujer indígena a la vida política del Estado, mediante el
establecimiento de la obligatoriedad de incluir a personas indígenas en las
postulacionesde los partidos políticos, en algunos casos, se agrega la obligatoriedad
de la paridad degénero en dichas postulaciones, con lo que se garantiza el ejercicio
del derecho a ser votado de la mujer indígena.
28
Ixel Mendoza Aragón
En ese mismo tenor se han implementado las cuotas en los cargos de elección
popular para personas que acreditan ser indígenas, de la misma forma, en algunos
casos, estas cuotas están sujetas a la paridad de género, de esta forma se garantiza
el acceso de la mujer indígena a las posiciones de toma de decisiones.
Una situación diferente se vive en las comunidades indígenas en que se han
reconocido los sistemas normativos indígenas, este sistema se reconoce para la
elecciónde las autoridades municipales cuya población es esencialmente indígena,
se ha establecido en la norma, el reconocimiento y respeto a los usos y costumbres
de esos municipios y los modelos normativos por los cuales eligen a sus
gobernantes.
Los derechos político – electorales de la mujer
La lucha por los derechos político-electorales de las mujeres ha sido intensa y
constante; en México, los derechos a votar y ser votado de las mujeres se
implementó el 12 de febrero de 1947, en el ámbito municipal, tras una larga serie de
peripecias y sinsabores, no obstante que el Estado mexicano fue creado con la
primera constituciónde 1824.
En las últimas décadas la representación de las mujeres en los puestos de elección
popular en México ha aumentado significativamente, en cumplimiento de los
instrumentos internacionales que tutelan los Derechos humanos y los derechos
políticos de la mujer y por la presión que han ejercido desde la década de los
setentas los movimientos feministas que buscan la reivindicación de la mujer en
todos los aspectos de la vida pública y social.
En el año 2021 se celebraron elecciones federales y se eligieron 248 mujeres y 252
hombres para la integración de la cámara de Diputados, en lo que toca a la cámara
de senadores fueron electos 62 mujeres y 66 hombres.
En los sistemas normativos internos la participación política de las mujeres es
distinta a la del régimen de partidos. En las comunidades indígenas el ejercicio de
los derechos políticos está supeditado a un sistema cívico-religioso de cargos o de
escalafón, construido desde una visión patriarcal, en la que las mujeres tienen
escasas probabilidades de participar desde el cargo más bajo hasta llegar a
presidentas de su comunidad o pueblo. En dicho sistema, para acceder a un cargo
se necesita que la asamblea comunitaria nombre a las autoridades municipales,
tomando como base su participación y trayectoria en los distintos puestos que ha
ocupado.
La larga lucha por el reconocimiento y la reivindicación de los derechos de los
pueblos indígenas ha logrado reducir, en alguna medida, la brecha diferencial entre
las comunidades indígenas y las sociedades contemporáneas, por lo menos en
materia de participación política, sin embargo, aún queda abordar la especificidad
de los derechos de las personas indígenas.
La diversidad y la diferencia tienen que concebirse no sólo entre los pueblos
indígenas y las sociedades nacionales latinoamericanas, sino entre los propios
pueblos indígenas que mantienen condiciones distintas para el efectivo ejercicio y
defensa de sus derechos. Estas diferencias entre pueblos y tribus, pueblos en
29
El principio de igualdad política, en la mujer indígena
aislamiento voluntario y poblaciones urbanas, poblaciones migrantes y poblaciones
desplazadas, obligan a distintos abordajes, enfoques y estrategias para procurar el
tutelaje y el ejercicio de sus derechos, incluso dentro de un mismo país. Estas
respuestas particulares a las diversas condiciones en que se encuentran las
sociedades y los individuos indígenas aún no hanlogrado establecerse en América
Latina, donde el trabajo con la especificidad en materia de defensa de derechos
humanos indígenas es todavía un proceso inacabado y un compromiso pendiente
(BUSTILLO MARÍN, R. Y GARCÍA SÁNCHEZ).
La falta de reconocimiento a la vulnerabilidad específica de las mujeres indígenaspor
razones de género y la inexistencia de mecanismos efectivos para proteger y
promover sus derechos, dentro y fuera de sus colectivos de pertenencia,
constituyen importantes barreras contra el cumplimiento incluso de los derechos
reconocidos, de este sector de la población. Obviar y desconocer las relaciones de
cooperación y conflictoentre los varones y las mujeres de distintas generaciones,
incluyéndolos indistintamenteen la figura de “la comunidad” como entidad política,
como se hace en muchos de los instrumentos de tutela de derechos indígenas,
constituye una forma de invisibilizar las contradicciones y presiones internas y
externas sobre este sector y contribuye a reproducir su subordinación.
Aunque no se trata de ignorar ni negar la condición subordinada de las mujeres
indígenas en sus familias, sus organizaciones y sus pueblos, esta situación debe
ponerseen contexto, al tiempo que se requiere un registro más preciso –que aún no
existe paramuchos de los pueblos indígenas en la región- sobre las formas en que
la demanda de inclusión y ejercicio de derechos por parte de las mujeres se esgrime
externamente, a veces por la sociedad, a veces por el estado mismo, para
descalificar las instituciones yel propio derecho indígena, colocando a las mujeres
en la falsa disyuntiva de defender sus derechos o los de sus pueblos. Así, “si bien
es cierto que las mujeres indígenas seenfrentan a poderosas ideologías de género
arraigadas en el discurso de la tradición, que obstaculizan su participación política
en cargos públicos y favorecen su exclusión enla toma de decisiones, también es
cierto que, en los últimos tiempos, las mujeres organizadas han desarrollado
estrategias para discutir las tradiciones y abrir espacios en las instituciones
comunitarias, y las han llevado a cabo con ritmos y maneras diferenciadas.”
(SIERRA, M. T., Las mujeres indígenas ante la justicia comunitaria Perspectivas
desde la interculturalidad y los derechos, Revista Desacatos, núm. 31, septiembre-
diciembre 2009, pp. 73-88).
La lucha por el reconocimiento de los derechos específicos de las mujeres
indígenas, está atravesada por la precariedad de sus condiciones de vida, es
notable ladesventaja de la mujer indígena en temas como la salud, la educación,
propiedad de latierra ingresos, recursos productivos inserción laboral, participación
política y el ejerciciode sus derechos, entre otros, esto indica que constituyen uno
de los sectores sociales más desprotegidos del Estado, esto se debe no solo a las
desventajas que se señalan sino también a la dominación patriarcal que somete a
30
Ixel Mendoza Aragón
la mujer indígena.
Lo que es preocupante es que a pesar de tener un marco jurídico interno e
internacional para prevenir y sancionar la discriminación, como dice la doctora en
literatura Lucia Melgar en su ensayo discriminación sobre discriminación “la
sociedad mexicana sigue arrastrando una pesada carga de prejuicios que inciden en
las conductas y relaciones sociales e interpersonales de manera negativa. La
herencia colonial, el clasismo, la misoginia y un temor general hacia el otro son
algunos de los factores sociales y culturales que han impedido la construcción de
una sociedad igualitaria e incluyente. (MELGAR, L. Discriminación sobre
discriminación: una mirada desde la perspectiva de género, Suprema Corte de
Justicia de la Nación, México 2012, p. 7)
Las difíciles condiciones de vida que enfrentan estas comunidades y la desigualdad
estructural de género obstaculizan el desarrollo de las niñas y mujeres en su entorno
social. Debido a la desigualdad en sus propias comunidades y a la discriminación
sexista, racistas y clasista que enfrentan fuera de ellas, mujeres indígenas que han
querido mejorar sus vidas y la de otras mujeres de sus municipios han sufrido
violencia, persecución y han puesto en riesgo su vida y su salud.
El sistema electoral legislado ha logrado medianamente equilibrar la desigualdad
entre hombres y mujeres en el ejercicio de sus derechos político-electorales, ya sea
mediante la normatividad o mediante la instauración de acciones afirmativas y
políticas públicas, pero en el contexto del sistema normativo indígena, pocos
avances se han logrado, en este sistema está prácticamente prohibida, por tradición,
la participación dela mujer en la elección de sus autoridades.
El acceso a la mujer indígena a las posiciones de toma de decisiones en sus
comunidades y municipios ha estado plagado de grandes dificultades, sobre todo
familiares y sociales, debido precisamente a esa falta de autonomía que no les
permite actuar por voluntad propia, incluso en defensa de sus derechos.
Para la mujer a quien se le ofrece la candidatura de la presidencia municipal, un
paso importante a dar es la negociación con su familia, principalmente con el esposo
y los hijos e hijas, luego con sus padres, hermanos, hermanas y familia extensa. Es
importante que ellos la apoyen porque de otra forma difícilmente triunfará. Salvo
raras ocasiones, no aceptan un cargo contra la voluntad del marido. La mayoría de
mujeres casadas tiene que pedir permiso o buscar la anuencia de su cónyuge. Ésta
es una diferencia entre un hombre y una mujer. El hombre informa su decisión de
participar en una candidatura y la mujer pide permiso y negocia, en la familia, su
deseo de contribuir políticamente con el municipio. Las mujeres que aspiran a las
presidencias municipales o llegan a ellas conocen poco de la historia “secreta” del
municipio. ¿Cómo se hacen las cosas? ¿Cuáles son los valores sobrentendidos que
en el cabildo han ejercido los varones?, ¿cuál es el doble discurso que se
acostumbra para mantener a las fuerzas vivas tranquilas?, ¿qué tipo de alianzas se
deben perseguir? En resumen, no tienen una capacitación previa en los códigos del
poder político. a veces las mujeres tienen sólo una leve impresión de los hilos
ocultos del poder, intuyen, pero no los conocen bien, porque son formas masculinas
de actuar y resolver conflictos, que no son explícitas y se dan como valores
31
El principio de igualdad política, en la mujer indígena
sobrentendidos para los hombres (DALTON, M. Democracia e igualdad en conflicto:
las presidentas municipales en Oaxaca, Tribunal Electoral del Poder Judicial de la
Federación y Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología
Social, México, 2012).
No conocer la historia por no haber estado cerca o dentro del municipio, va en
detrimento de las alcaldesas y las sitúa en posición débil. Éste es el origen de
algunos conflictos que se les presentan una vez en el cargo y que han llegado
incluso al relevo de presidentas. Por eso, en ocasiones, la elección de una mujer a
la presidencia, en lugar de ser un logro, podría ser una trampa para su amor propio
y seguridad. En el municipio prevalecen problemas, tradiciones y costumbres en las
que las mujeres no han participado porque su campo de acción es el privado y no
el público y, por tanto, se han mantenido al margen de la actividad municipal
(DALTON, M. Democracia e igualdad en conflicto: las presidentas municipales en
Oaxaca, Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación y Centro de
Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social, México, 2012).
Se han logrado avances en algunas comunidades indígenas en torno a los derechos
de las mujeres indígenas, a pesar de las objeciones culturales; en México, el estado
de Oaxaca es un referente en el impulso de la participación política de las mujeres
indígenas
El estado de Oaxaca es una entidad federativa en México que cuenta con el mayor
número de municipios indígenas, 417 municipios de 570 que conforman la entidad
federativa, que se autodeterminan a través de usos y costumbres, es en este estado
en que más se han logrado avances en la participación de la mujer indígena en la
política.
En las últimas décadas el estado de derecho en México ha sufrido transformaciones
en algunos casos radicales, las reformas constitucionales que han entrado en vigor
han transmutado el Estado, redirigiendo su teleología y actualizando la filosofía
subyacente de la propia constitución, para armonizarla con el concierto mundial que
definen los instrumentos internacionales de los que México es parte.
La reforma más importante se suscitó en el año 2011 con el reconocimiento de los
derechos humanos y sus garantías e incorporando los tratados internacionales al
derecho interno, con ellos los principios hermenéuticos de los derechos humanos,
como el principio pro persona, el principio de interpretación conforme, así como los
principios de observancia de los derechos humanos como lo son la
interdependencia, la universalidad, indivisibilidad y progresividad.
El punto medular de esta reforma constitucional lo constituye el reconocimiento de
los derechos humanos; en el texto anterior se establecía que el Estado otorgaba las
garantías individuales, en este esquema el Estado se presentaba con una filosofía
completamente apegada a la doctrina iuspositivista, un Estado completamente
paternalista e impositivo, en el que los individuos gozaban de las garantías
individuales que el Estado graciosamente le concedía; en el texto actual se
32
Ixel Mendoza Aragón
reconocen los derechos humanos de las personas, tanto los reconocidos en la
propia Constitución, como en los tratados internacionales, este reconocimiento
implica necesariamente un cambio radical en la filosofía subyacente de la
Constitución y del Estado, alejándose de los postulados rígidos del iuspositivismo y
adentrándose por lo menos un poco en un humanismo sin precedentes en el Estado
Mexicano.
El reconocimiento de los derechos humanos en México, implica que el Estado
reconoce la existencia de los derechos humanos, no como una concesión estatal,
sino como las prerrogativas que tienen las personas por el solo hecho de ser
personas, con esto se colige que los derechos humanos son previos al Estado y que
el Estado ahora los reconoce.
La inclusión de los principios en el orden constitucional, en palabras de Robert
Alexy, optimizan el Estado de Derecho, permitiendo que los postulados relativos a
los derechos humanos permeen todo el orden jurídico.
Otra de las grandes transformaciones en México lo constituyó la reforma
constitucional del 2001 relativa a los pueblos indígenas, en la que se reconoce la
pluriculturalidad del Estado mexicano, proporcionando mayores prerrogativas a los
pueblos y a las personas indígenas.
El reconocimiento constitucional de los derechos de los pueblos indígenas ha sido
un proceso que enfrenta dos visiones del México contemporáneo: la que considera
que somos un país mestizo, es decir, monocultural; y la que considera que somos
una sociedad pluricultural. La primera está basada en un proyecto de nación que
negaba implícitamente la diversidad cultural, y la segunda se funda en la
constatación histórica de la heterogeneidad cultural (GONZÁLEZ GALVÁN, J. AL.
La Reforma Constitucional en Materia Indígena,Revista Cuestiones
Constitucionales, Número 7, julio-diciembre 2002 , UNAM, P. 253).
Los derechos humanos tradicionales consideran a la persona en lo individual como
único y absoluto sujeto de derechos. El reconocimiento de los derechos sociales
rompió con esta tradición y la actualizó al considerar como sujetos de derechos a
personas colectivas, a grupos humanos, en este caso a los sindicatos y ejidos
(Constitución mexicana de 1917). El reconocimiento que hace ahora la reforma a
los pueblos indígenas como sujetos de derechos reactualiza dicha tradición al
considerar sus características culturales y su situación de desigualdad. (GONZÁLEZ
GALVÁN, J. AL. La Reforma Constitucional en Materia Indígena,Revista Cuestiones
Constitucionales, Número 7, julio-diciembre 2002 , UNAM, P. 255).
Esta reforma constitucional se constituye en la base y fundamento de las reformas
de las normas secundarias y de la implementación de las políticas públicas y
acciones afirmativas, tendientes a incorporar a la vida política a las comunidades
indígenas; se estatuye el reconocimiento pleno a la libre determinación de los
pueblos y comunidades indígenas.
Los pueblos y comunidades indígenas tienen reconocidos y garantizados su
derecho a concebir, aprobar y aplicar sus propios sistemas normativos. La condición
negociada para aceptar lo anterior fue que el derecho indígena debe respetar los
33
El principio de igualdad política, en la mujer indígena
derechos humanos establecidos, en particular los de las mujeres indígenas. Las
resoluciones serán validadas por los tribunales del Estado. Esto deberá entenderse
como la posibilidad que tiene el afectado por la resolución de acudir a una instancia
que la revise. Esta instancia judicial del Estado deberá integrarse con personal que
conozca el idioma y la cultura indígenas (como ya existe en Quintana Roo: Ley de
Justicia Indígena). GONZÁLEZ GALVÁN, J. AL. La Reforma Constitucional en
Materia Indígena,Revista Cuestiones Constitucionales, Número 7, julio-diciembre
2002 , UNAM, P. 257).
En esta reforma se establece la metodología de reconocimiento de las personas
indígenas teniendo como eje la conciencia de su identidad indígena; esta
disposición se ha erigido en el principio de reconocimiento de las personas
indígenas, a través de la auto adscripción indígena.
Estas reformas son los pilares de la incorporación de los pueblos indígenas en el
concierto político del país y el reconocimiento de la ciudadanía plena de las
personas indígenas, sin embargo, continúan siendo inacabadas, no solo por la
incompletitud de la norma, sino por las condiciones sociales en que se implementan.
El reconocimiento de los pueblos indígenas corresponde a las entidades
federativas, en cumplimiento de las disposiciones constitucionales, este
reconocimiento se debe fundamentar en los postulados constitucionales, pero se
debe regular de manera más precisa en la normatividad secundaria.
En ese mismo sentido, la regulación para la acreditación del carácter indígena de
una persona, corresponde a las entidades federativas, sin embargo, no se han
establecido las reglas claras y concretas para el reconocimiento de la identidad
indígena.
En la práctica, la laxitud de las normas relativas al reconocimiento de las
comunidades indígenas y de las personas indígenas ha sido motivo de abuso por
parte de los partidos políticos y de los candidatos postulados, auto adscribiéndose
como indígenas de manera fraudulenta, a fin de acceder a las cuotas de asignación
de cargos de elección popular exclusivas para personas indígenas, lo cual reduce
sensiblemente la oportunidad de las personas de origen indígena a participar en la
vida política del país, violentando sus derechos político-electorales.
El reconocimiento de las comunidades indígenas y la implementación del principio
de autodeterminación reviste dos formas diferenciadas de participación política de
los pueblos indígenas y por ende de las personas de origen indígena.
El sistema electoral legislado y el sistema normativo indígena, son los dos
mecanismos de participación política-electoral que reconoce la Constitución
mexicana; el primero regulado a través de la Constitución y las normas secundarias
complementadas por las acciones afirmativas y el segundo regulado a través de los
usos y costumbres de cada municipio reconocido como indígena
En primer sistema -sistema legislado- se han logrado grandes avances en la
incorporación de los pueblos indígenas, implementando normas y acciones
afirmativas que obligan a los partidos políticos y a los candidatos independientes a
34
Ixel Mendoza Aragón
postular personas indígenas; así mismo se ha establecido un sistema de cuotas, en
algunos casos incluyendo la paridad de género, en la asignación de cargos de
elección popular que son designados vía la representación proporcional, a fin de
que la proporción de personas indígenas de determinado territorio se encuentran
debidamente representados en los cuerpos colegiados de elección popular, cámara
de diputados, cámara de senadores y cabildos y en algunos casos en las
presidencias municipales.
A este sistema le ha restado eficiencia la carencia de una regulación más específica,
a fin de garantizar que las personas que son realmente indígenas, sean las que
puedan acceder a esos cargos de elección popular.
Se considera que el sistema legislado debe incorporar mecanismos más eficientes
que permitan atribuir el carácter de indígena a las personas que realmente lo son, a
quienes su sentido de identidad los compromete con una comunidad indígena; para
este fin es necesario que se cree un organismo público que tenga como finalidad
crear y mantener el censo y reconocimiento de las poblaciones indígenas y de sus
pobladores, que permita garantizar la adjudicación de los derechos diferenciados
que proporcionan las políticas públicas y las acciones afirmativas a quienes
realmente lo requieren.
En el segundo sistema -sistema normativo indígena- con el reconocimiento y
juridificación del principio de autodeterminación de los pueblos indígenas, se han
logrado avances en el reconocimiento de los derechos de las comunidades
indígenas, pero es necesario abordar el tema de la especificidad de los derechos.
A lo largo de esta investigación se ha puesto en evidencia que el sistema normativo
indígena, fundado en los usos y costumbres de las comunidades indígenas, no da
cuenta de los derechos específicos, sobre todo de la mujer indígena; los sistemas
normativos indígenas, no contemplan la participación activa de la mujer, la
transmisión del poder otorgada a través de los mandos, regularmente solo se realiza
entre varones, contingentemente se permite la participación de la mujer en las
asambleas en que se realiza la elección de las autoridades, pero las mujeres
regularmente no son elegibles para esos cargos.
Se considera que si bien la Constitución mexicana reconoce y avala el principio de
autodeterminación de los pueblos indígenas, también restringe el ejercicio de ese
principio, teniendo como parámetro el marco constitucional, dentro de este
parámetro es un elemento esencial la igualdad de género en la participación política,
por tanto, aun cuando en las comunidades indígenas se reconozcan los usos y
costumbres en su autodeterminación, el Estado debe propiciar y garantizar la
participación activa de la mujer indígena en la autodeterminación de la población de
la que hacen parte.
La intromisión del Estado en los usos y costumbres de los pueblos indígenas, en
este caso, se encuentra plenamente justificada, en virtud de que se trata de los
derechos humanos de las mujeres indígenas, los cuales no pueden ser contrariados
por los sistemas normativos indígenas.
Se considera necesario que, para avalar los procesos de elección mediante el
35
El principio de igualdad política, en la mujer indígena
sistema normativo indígena, el Estado debe condicionarlo a la acreditación de la
participación de las mujeres indígenas en esos procesos, no solo en su derecho al
voto, sino también en su derecho a ser votadas, es decir, que hubiesen participado
como candidatas.
El panorama que se presenta en el sistema electoral legislado, es alentador, la
experiencia nos indica que existe una mayor participación de la mujer indígena en
la vida política del país; en tanto que en el sistema normativo indígena, la
prospectiva no es muy halagadora, los usos y costumbres de los pueblos indígenas
proscriben la participación de la mujer, por lo que el Estado debe propiciar y crear
las condiciones para cambiar en ese rubro la cosmovisión de los pueblos indígenas;
este trabajo debe ser asumido desde una perspectiva multidisciplinaria, no solo
desde la óptica jurídica, es esencial plantearlo desde la visión social.
Las medidas que se han tomado para una participación igualitaria en la vida política
de México, aunque eficaces en algunos puntos, deben ser temporales, la finalidad
real es la participación de las personas en la vida política, consideradas como tales,
personas, en algún momento debemos arribar a la lógica de la visión de la persona
como concepto de unidad de género y proscribir la lógica de la participación de
hombres y mujeres diferenciados por su género.
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Ixel Mendoza Aragón
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38
Refugiados ucranianos en Polonia: Aspectos jurídicos de la
vacunación obligatoria y la reproducción asistida (surrogacy) un año
después del estallido del conflicto armado en Ucrania
Beata Stępień Załucka 1
1. Introducción
El estallido de la guerra a gran escala entre Ucrania y Rusia ha provocado un
aumento repentino del número de refugiados en Polonia. Al mismo tiempo, la
expresión repentino probablemente no refleje totalmente las cifras. En el primer mes,
más de 200.000, y un año después ya 3.000.000 de refugiados, la mayoría mujeres y
niños. Aquí cabe señalar que la población de Polonia es de 38 millones de habitantes.
Por tanto, los refugiados ucranianos representan hoy del 10%.
Este estado de cosas hizo que la Ley de 13 de junio de 2003 sobre la concesión
de protección a los extranjeros en el territorio de la República de Polonia se volviera
insuficiente en términos de normativa legal. La Ley de 12 de marzo de 2022 sobre la
asistencia a los ciudadanos ucranianos en relación con el conflicto armado en el
territorio de Ucrania se convirtió en una respuesta a las necesidades en este ámbito.
Esta ley establece toda una serie de normas jurídicas que conceden a los refugiados
libertades y derechos en el territorio de la República de Polonia en la misma medida
que a los ciudadanos polacos, con la salvedad de que no se les conceden derechos
que sólo corresponden a los ciudadanos, como el derechos electorales . Por lo tanto,
no hay campos ni otras concentraciones masivas de refugiados en Polonia; son
residentes de Polonia, viven donde quieren, trabajan y funcionan en las mismas
condiciones que los ciudadanos polacos. Este proceso ha sido posible por varias
razones. En primer lugar, como naciones compartimos valores comunes, estamos
unidos por la cultura, la religión y la historia, aunque esta no siempre fue fácil. Sin
embargo, un año después del estallido de la guerra, no sólo se hacen patentes las
similitudes entre las naciones, sino también las diferencias. Estas diferencias
1
Abogada Dra. hab. Prof. UR. Beata Stępień-Załucka. Instituto de Estudios Jurídicos. Universidad de
Rzeszow. Correo electrónico: [email protected] - ORCID: 0000-0003-1802-680X
39
Refugiados ucranianos en Polonia: Aspectos jurídicos de (...)
provocan a veces diversos problemas, el apareció en entre los que se encuentran la
vacunación y la reproducción asistida - surrogacy. Por lo tanto, en este documento se
examinarán estas dos cuestiones. Dos tesis clave que se expondrán y demostrarán
son, en primer lugar, que la normativa sobre vacunación vigente hasta la fecha es
insuficiente para aplicar la obligación de vacunar a los refugiados ucranianos en
Polonia y, en segundo lugar, que en el ámbito de la reproducción asistida, cuando los
dos sistemas jurídicos -el polaco y el ucraniano- entran en contacto, el primero queda
soslayado.
2. La vacunación obligatoria y la cuestión de los refugiados ucranianos en
Polonia
La primera cuestión clave se refiere a la vacunación obligatoria. La atención
médica en Polonia está estructurada de tal manera que se prepara un llamado
calendario de vacunación para los niños, en base al cual cada niño se somete a una
vacunación específica para una enfermedad determinada a una edad específica. 2
La obligación de vacunar viene impuesta por la Ley de 5 de diciembre de 2008 sobre
prevención y lucha contra las infecciones y enfermedades infecciosas del ser
humano. 3 No vacunar a un niño contraviene la ley y, además, y además priva al niño
y al progenitor de determinados derechos, la vacunación condiciona la posibilidad de
que el niño asista, por ejemplo, a la guardería. 4 Sin embargo, en oposición a esta
normativa, ha surgido un movimiento antivacunación que fomenta la no vacunación
de los niños. 5 Este movimiento ha dado lugar a casos contra padres que, en contra de
la obligación, no han vacunado a sus hijos. El último caso que sentó precedente a este
respecto tuvo lugar ante el Tribunal Constitucional el 9 de mayo de 2023, caso número
SK 81/19, en el que el Tribunal no negó la vacunación obligatoria de los niños en su
2
Ordenanza el Ministro de Salud 1 del 18 de agosto de 2011 sobre las vacunas obligatorias, Diario P.
2022.no 2172.
3
Diario.P. 2008 no 234 pos. 1570
4
J. Zajdel-Całkowska, Wykonywanie szczepień ochronnych – przymus, obowiązek czy wolna wola?,
„Kurier Medyczny” 2020, no, 8, p. 3; U. Drozdowska, Ustawowa konstrukcja obowiązku szczepień
ochronnych u dzieci na tle prawa polskiego – uwagi de lege lata i de lege ferenda, „Bialystok Legal
Studies Białostockie Studia Prawnicze” 2022 vol. 27 no 3, p. 119 y n.; D. Michalska-Sieniawska,
Obowiązek szczepień – nowe wyzwanie dla praw człowieka,
https://nil.org.pl/uploaded_files/1604408331_04-michalska-sieniawska.pdf (15.06.2023).
5
K. Konopka, Pandemia dezinformacji – prawno-psychologiczny punkt widzenia wobec internetowych
ruchów antyszczepionkowych i altmedowych,
https://repozytorium.uwb.edu.pl/jspui/bitstream/11320/13827/1/K_Konopka_Pandemia_dezinformacji.p
df; A. Demczuk, Fenomen ruchu antyszczepionkowego w cyberprzestrzeni …, czyli fake news i
postprawda na usługach hipotezy Andrew Wakefielda,” Studia de Cultura”:2018, no 10(4), p. 92.
40
Beata Stępień Załucka
sentencia. 6Sin embargo, reconoció que la fecha de vencimiento de las vacunaciones
preventivas obligatorias, así como el número de dosis de determinadas vacunaciones
preventivas obligatorias, se especifican en el Programa de Vacunación para un año
determinado, deben ser anunciadas por el ministro encargado de la sanidad, mediante
un reglamento y no, como es el caso, por el Inspector Jefe de Sanidad en forma de
anuncio. La sentencia del Tribunal Constitucional modifica así en la práctica el hecho
de que el calendario de vacunación será determinado por el Ministro de Justicia y
figurará probablemente en un anexo al reglamento o en el propio reglamento. El
Tribunal sostiene que una comunicación no tiene la misma fuerza jurídica que un
reglamento o una ley, es decir, no figura en la jerarquía de actos jurídicos de la
Constitución polaca.
Sin embargo, para la cuestión objeto del artículo, lo más importante es que el
Tribunal no menoscabó en modo alguno la esencia de la inmunización obligatoria. Lo
que esto significa desde la perspectiva de la República de Polonia y la cuestión de los
refugiados.
El problema clave reside, como suele ocurrir, en la práctica. ¿Por qué? Bueno,
normalmente los tutores de los niños en el marco de un jardín de infancia o que
cumplen con la educación obligatoria inscriben al niño y rellenan el equivalente a una
tarjeta sanitaria infantil.
Al rellenarla, hacen una declaración sobre sobre la vacunación protestoras a
las que se ha sometido el niño. A veces disponen de una cartilla sanitaria en la que se
detalla todo ello. Sin embargo, la gran mayoría no dispone de esta cartilla. Esta
carencia se debe a que abandonaron sus hogares para salvar sus vidas y las de sus
hijos de la guerra. A menudo, estas personas metieron todas sus pertenencias en una
bolsa o maleta comercial, sin las básicas cosas necesario en la vida diaria. Por lo
tanto, no es de extrañar que pocos de ellos pensaran en las cartillas sanitarias
infantiles.
Por lo tanto, en la gran mayoría de los casos, la información básica sobre la
vacunación de los niños procede de las declaraciones de los padres
Al matricular a un niño en un jardín de infancia o en una escuela, los niños
empiezan en estas instituciones. El problema, sin embargo, es que algunos de estos
niños no tienen realmente las vacunas pertinentes que los padres declararon haber
6
Sentencia del Tribunal Constitucional de 9 de mayo de 2023, ref. n.º SK 81/19, Diario. P. 2023, pos.
909.
41
Refugiados ucranianos en Polonia: Aspectos jurídicos de (...)
recibido. Y no se trata sólo de atribuir a los refugiados el deseo de "engañar al sistema"
y no vacunar a su hijo, hay que tener en cuenta que el conocimiento de la vacunación
es un conocimiento médico específico y que, de hecho, el propio padre puede no tener
conocimiento de contra qué se ha vacunado realmente su hijo, lo que es
especialmente relevante con las vacunas llamadas compactas, es decir, en las que
una vacuna protege contra varias enfermedades. También hay que tener en cuenta
que existen diferencias en la vacunación infantil en Ucrania y Polonia. En primer lugar,
el calendario de vacunación es diferente, pero también hay una tasa de vacunación
infantil mucho más baja que en Polonia. 7
Esta situación se debe a varios factores, en primer lugar el hecho de que no
todas las vacunas que son gratuitas para niños o adultos en Polonia debido al
reembolso estatal lo son en Ucrania, pero estos factores son muchos. Otros factores
son la popularidad y el conocimiento de las vacunas. Estos son significativamente más
bajos en Ucrania que en Polonia. Además, en Ucrania, al no existir una política
gubernamental para "vacunar" a la población, se percibe una especie de aquiescencia
a la no vacunación. Esto, a su vez, está provocando el regreso a Polonia de
enfermedades como el sarampión y la tos ferina, que van en aumento y no se
registraban en Polonia desde hace mucho tiempo.
Esta situación plantea la cuestión de cómo prevenir el retorno de enfermedades
que han sido erradicadas por la vacunación. Estas cuestione es de especial relevancia
en el contexto de la citada sentencia SK81/19. Para saber cómo llegar a una situación
en la que esta sentencia se aplique realmente en la práctica en relación con los
refugiados.
Por el momento, existen varias soluciones, obviamente su posible
consideración se refiere a la situación en la que el niño no dispone de una cartilla
sanitaria u otro certificado oficial de las vacunaciones realizadas.
7
Dlaczego ukraińskie mamy niechętnie szczepią swoje dzieci,
https://www.medexpress.pl/ochrona-zdrowia/dlaczego-ukrainskie-mamy-niechetnie-szczepia-swoje-
dzieci-86357/, (15.06. 2023); A. Misiurewicz-Gabi, Niska wyszczepialność Ukrainy – czy jest się czego
obawiać?, https://www.termedia.pl/mz/Niska-wyszczepialnosc-Ukrainy-czy-jest-sie-czego-obawiac-
,46240.html (15.06. 2023); K. Nowakowska, Szczepienia dzieci z Ukrainy: Kto nie ma potwierdzenia,
powinien przyjąć nową dawkę, https://serwisy.gazetaprawna.pl/zdrowie/artykuly/8413953,szczepienia-
dzieci-z-ukrainy-przepisy-sytuacja-epidemiczna.html, (15.06. 2023).
42
Beata Stępień Załucka
La primera es seguir confiando en las declaraciones de los padres refugiados.
Esta solución es la menos intrusiva para los derechos y libertades civiles, pero también
la más arriesgada para el público en general.
Otra solución consiste en realizar análisis (de sangre) obligatorios para
determinar el nivel de anticuerpos y, a continuación, vacunar a aquellos niños cuyo
nivel de anticuerpos indique que no han sido vacunados contra una enfermedad
concreta o cuyo nivel indique que deben ser revacunados. Esta solución, es mucho
más intrusiva en los derechos y libertades del individuo, pero también ofrece la mayor
garantía de seguridad para la población con respecto a la posibilidad de contraer
determinadas enfermedades. Esta solución minimiza el riesgo.
3. El problema de las madres asistida - ( y surogacy) ucranianas en Polonia
3. 1 La maternidad asistida en los docrina polaco
El ámbito de investigación esbozado requiere en primer lugar una elaboración
de quién se entiende por el término maternidad asistida - (surogacy) , lo que a su vez
requiere una referencia al concepto de maternidad. Basándonos en la ciencia,
podemos distinguir entre tres tipos de maternidad: genética - (provisión de gametos o
vínculo genético con un hijo), biológica - llevar un embarazo y dar a luz a un hijo, y
sociológica - criar y mantener a un hijo.
La maternidad es, por tanto, un concepto heterogéneo y uno de sus tipos es la
maternidad subrogada. En principio, el papel de la madre de alquiler se reduce al de
la madre biológica. Sin embargo, en la práctica la maternidad subrogada también
puede adoptar otras formas, dependiendo del origen del óvulo:
1. madre de alquiler completa, la llamada maternidad subrogada tradicional, que
acepta ser inseminada por inseminación artificial con semen de la pareja de otra mujer,
la madre social;
2. madre portadora, denominada maternidad subrogada gestacional - acepta que se
transfiera a su organismo el embrión resultante de la fecundación de un óvulo de otra
mujer - la madre social;
3. madre donante de óvulos - permite que un óvulo tomado de ella sea fecundado
mediante fecundación in vitro y transferido al cuerpo de otra mujer, que tras el
nacimiento del niño será su madre social. 8
8
K. Ciulkin-Sarnocińska, Uniwersytet w Białymstoku Wydział Prawa Surogacja w ujęciu
karnoprawnym i kryminologicznym, Białystok 2019, p. 29.
43
Refugiados ucranianos en Polonia: Aspectos jurídicos de (...)
La coctrina forma la definición de maternidad asistida. M. Mikluszka entiende
este término como "'alquilar' el útero de una mujer que gesta un embarazo y tras el
parto entrega el niño a otra mujer, la mayoría de las veces a una madre genética, es
decir, aquella de la que procede el óvulo fecundado con el esperma de su marido". 9 P.
Witczak-Bruś afirma, a su vez, que una madre de alquiler es una mujer que recibe en
su útero un óvulo fecundado in vitro de otra mujer y que, tras el nacimiento del niño,
lo devuelve a sus padres". Por su parte, K. Ciulkin-Sarnocińska considera que la
maternidad asistida es un determinado tipo de práctica por la que una mujer se queda
embarazada de otra con la intención de entregarle el niño tras el nacimiento". Por lo
que, para la autora, aquí son cruciales dos condiciones, en primer lugar, permanecer
embarazada para otra mujer y, en segundo lugar, esta intención de entregarle el niño
tras su nacimiento. 10 Olak A. Krauz A da una definición interesante al afirmar que "Una
madre de alquiler es una madre subrogada que, a cambio de una remuneración,
acepta en su útero un óvulo fecundado in vitro de otra mujer que tiene dificultades
para concebir o dar a luz su propio embarazo". 11
3.2 Disposiciones legales contra la gestación subrogada en Polonia
La maternidad asistida (surogacy) no está regulada en Polonia, pero existen
numerosas disposiciones legales que dificultan su aplicación. Porque la legislación
polaca es extremadamente restrictiva al respecto y penaliza los casos de Adopción
Pagada, tal y como se recoge en el artículo 211a, que establece que
"§ 1. Quien, con el fin de obtener un beneficio pecuniario, 12 se dedique a
organizar la adopción de niños contraviniendo las disposiciones de la Ley,
9
M. Mikluszka, Zagraniczne procedury tzw. macierzyństwa zastępczego (surrogacy motherhood) w
świetle zasady handlu ludźmi – zagadnienia węzłowe, https://iws.gov.pl/wp-
content/uploads/2018/08/IWS-Mikluszka-M.-Zagraniczne-procedury-tzw.-macierzy%C5%84stwa-
zast%C4%99pczego-surrogacy-motherhood-w-%C5%9Bwietle-zasady-handlu-lud%C5%BAmi-
%E2%80%93-zagadnienia-w%C4%99z%C5%82owe.pdf, (15.06. 2023);
10
Ciulkin-Sarnocińska, Surogacja w ujęciu karnoprawnym i kryminologicznym, Białystok 2019, p.
29.
11
A. Olak, A. Krauz, Surogatka to już zawód, banał czy globalne społeczne zapotrzebowanie,
„Kultura Bezpieczeństwa Nauka – Praktyka – Refleksje” 2016, No 21, p. 182.
12
En la doctrina y la jurisprudencia, la cuestión de la comercialidad, es decir, la recepción de beneficios
financieros, es controvertida. En este aspecto, suscita dudas la justificación de la resolución de 12 de
junio de 1992, IIICZP 48/92, OSNCP 1992, nº 10 punto 179, en la que el Tribunal Supremo afirmó que
la Convención sobre los Derechos del Niño (artículo 21, letra e)) no excluye la posibilidad de cobrar una
remuneración u honorarios por la mediación en la adopción. Al mismo tiempo, los honorarios percibidos
no deben ser "inapropiados", es decir, indicativos del carácter puramente comercial de los servicios
prestados. M. Mozgawa, Comentario al artículo 211 bis del Código Penal - Sistema de Información
Jurídica, Lex/Lex Omega 01/2014.
44
Beata Stępień Załucka
será castigado con una pena de privación de libertad de 3 meses a 5 años.
§ 2. La misma pena se impondrá a quien, siendo persona con patria potestad
sobre un niño, consienta la adopción de ese niño por otra persona
1) con el fin de obtener un beneficio pecuniario o personal, ocultando este
propósito al tribunal que decide en el procedimiento de adopción y, si el progenitor
consiente la adopción del niño en el futuro sin nombrar al adoptante, al tribunal que
acepta la declaración de consentimiento,
2) con la omisión del procedimiento de adopción.
§ 3. La misma pena se impondrá a quien consienta en la adopción de un niño
por sí mismo en las condiciones mencionadas en el § 2." 13
En el ordenamiento jurídico polaco existe el principio mater semper certa est,
pater est, quem nuptiae demonstrant, que establece que "la madre siempre está
segura sobre el padre indica el matrimonio". Por lo tanto, según el citado paremma la
mujer que dio a luz al niño, pero de la que no procede necesariamente el material
genético, se considera la madre del niño, tal como establece el artículo 619 de la Ley
de 25 de febrero de 1964, - Código de la Familia y de la Tutela. 14Así pues, este artículo,
al introducir una definición jurídica de la maternidad, ignora la verdad genética y se
basa únicamente en la biología del hecho de "llevar un embarazo" y dar a luz. En
consecuencia, de lege lata no es posible considerar madre a una mujer que fue
donante de una célula reproductora.
Además, en 2015 el legislador modificó la ley para que ya no sea posible
la llamada adopción por indicación.
El resultado de este trabajo es la introducción en el sistema del artículo 119 1a,
Código de Familia y Tutela, que ha tenido el efecto de limitar el círculo de personas
que pueden ser designadas como padres adoptivos sólo a los familiares de los padres
del niño con su consentimiento presentado ante el tribunal, la persona designada
también puede ser el cónyuge de uno de los padres.
3.3 La maternidad asistada - (surogacy) ucraniana en la práctica polaca
Al principio de la consideración de este aspecto, es importante saber que,
desde la perspectiva de los últimos 15 años, Georgia y 5 años de Ucrania en Europa
13
Acto del 6 de junio de 1997 el código penal, Diario P. 1997 No 88, pos. 553.
14
Acto del 25 de febrero de 1964 Código de Familia y Tutela, Diario P. 1964 No 9, pos. 59.
45
Refugiados ucranianos en Polonia: Aspectos jurídicos de (...)
se han convertido en países en los que la maternidad asistida - (surogacy) e incluso
la aplicación de un acuerdo sobre la transferencia de un niño nacido por una mujer
que no era su madre genética era posible. De ahí que multitud de ciudadanos de
países europeos buscaran en estos dos países "adquirir" un hijo como propio. El
procedimiento consistía, respectivamente, en inseminar a una mujer ucraniana con el
óvulo, para las personas que, por diversas razones, no podía adquirir ese hijo de la
forma tradicional con su cónyuge o pareja, o para matrimonios. Tras el nacimiento de
un niño basado en un acuerdo de transferencia, los padres que adquirieron el niño de
una madre de alquiler contratada para dar a luz a ese niño fueron inscritos en el
certificado de nacimiento del niño como padres.
El estallido de la guerra provocó la llegada a Polonia de un gran número de
madres de alquiler. Y aquí surgió el problema clave: ¿y ahora qué? porque las madres
de alquiler ucranianas dieran a luz a niños en Polonia y surgió un problema clave, ya
que las madres biológicas no querían ser madres en absoluto porque estaban dando
a luz a niños para otra persona. 15
En Polonia el nacimiento de un niño por un vientre de alquiler ucraniano también
significa que la madre asistada -(surrogate mother) aparece realmente en el
certificado de nacimiento del niño como la madre. Según las disposiciones anteriores,
tampoco es posible "transferir" legalmente a un niño en Polonia. Esto no significa, sin
embargo, que tal transferencia no es possible. Lo es, solo que el chorro es ligeramente
más complicado. Consiste en que las madres de alquiler ucranianas, después de
registrar al niño en Polonia, van a Ucrania y luego el niño es registrado allí por los
padres que tienen la intención de criarlo y luego con los nuevos padres el niño cruza
la frontera hacia Polonia. Sin embargo, es importante que el niño tiene un nuevo
certificado de nacimiento y un nuevo nombre, padres que lo han "adquirido".. Sin
embargo, esto es diferente tener un certificado de nacimiento diferente y padres
diferentes. Esto no significa otra cosa que eludir la ley polaca en la práctica, lo que da
lugar a un procedimiento extremadamente peligroso.
Pues no está permitido burlar la ley. Esto no es apropiado en ningún país
democrático. Sin embargo, se plantea la cuestión de cómo contrarrestar estas
15
A. Carthaus, Wojna w Ukrainie. Nieprzewidziane problemy surogatek, https://www.dw.com/pl/wojna-
w-ukrainie-nieprzewidziane-problemy-surogatek/a-61268806 (15.06. 2023)., A. Białas, Wojenne
surogatki. Wstrząsające losy ukraińskich matek zastępczych, https://www.onet.pl/informacje/adam-
bialas/wojenne-surogatki-dramatyczne-losy-ukrainskich-matek-zastepczych/wcctp59,30bc1058 (15.06.
2023).
46
Beata Stępień Załucka
situaciones. La respuesta a esta pregunta no es sencilla, porque cada país puede
tener su propia legislación y ésta puede configurarse libremente, siempre, claro está,
que cumpla las normas internacionales. No obstante, la legislación ucraniana puede
permitir la maternidad asistada (surogacy), al igual que la polonia puede no permitir
para la adopción un niño con indicación como parentes, extraños personas.
Naturalmente, esto plantea la cuestión de si, por lo tanto, puede resolverse esta
disputa. Pues bien, por el momento, la posesión de un certificado de nacimiento
ucraniano por parte de un niño en el que se indiquen los padres es una base para que
las autoridades polacas acepten el estado de cosas que consta en el documento.
Por lo tanto, a día de hoy, sin el desarrollo de posiciones comunes entre los
países en cuanto a la resolución de esta cuestión, todavía es posible eludir la ley
polaca y tener hijos traídos a través de la frontera polaca por sus nuevos padres, que
de hecho nacieron en Polonia como hijos de madres de alquiler ucranianas.
4. Conclusión
La guerra en Ucrania ha traído consigo muchos cambios. Estos son visibles en
Polonia. Sin embargo, una cosa sigue siendo la misma: el deseo de ayudar a los
demás. Esta voluntad es significativa en la medida en que toda la sociedad polaca
ayuda, y se deriva del hecho de que Polonia y Ucrania tienen mucho en común. Sin
embargo, después de un año de guerra, no sólo las similitudes, sino también las
diferencias se están haciendo evidentes, incluidas las diferencias en la forma en que
las sociedades ven la cuestión de la vacunación obligatoria o en sus sistemas legales
con respecto a la maternidad asistada (surogacy) y la adopción por iicación. Sin
embargo, estos ámbitos no deben en ningún caso conducir al distanciamiento, sino
todo lo contrario. Estos ámbitos deben constituir un campo de debate mutuo que
desemboque en un compromiso seguro para las sociedades y los sistemas jurídicos.
Bibliografía
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47
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https://nil.org.pl/uploaded_files/1604408331_04-michalska-sieniawska.pdf
(15.06.2023).
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https://www.termedia.pl/mz/Niska-wyszczepialnosc-Ukrainy-czy-jest-sie-
czego-obawiac-,46240.html (15.06. 2023);
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Información Jurídica Lex/Lex Omega 01/2014.
K. Nowakowska, Szczepienia dzieci z Ukrainy: Kto nie ma potwierdzenia, powinien
przyjąć nową dawkę,
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Beata Stępień Załucka
https://serwisy.gazetaprawna.pl/zdrowie/artykuly/8413953,szczepienia-dzieci-
z-ukrainy-przepisy-sytuacja-epidemiczna.html, (15.06. 2023).
A. Olak A. Krauz, Surogatka to już zawód, banał czy globalne społeczne
zapotrzebowanie, „Kultura Bezpieczeństwa Nauka – Praktyka – Refleksje”
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J. Zajdel-Całkowska, Wykonywanie szczepień ochronnych – przymus, obowiązek czy
wolna wola?, „Kurier Medyczny” 2020, no, 8,
49
The right to a court and the institution of a pre-judgement
hearing - comments on the background of Polish civil
proceedings
Tomasz Szanciło 1
1. Wprowadzenie
The right to a court is one of the fundamental human rights expressed in
several acts of international law: article 6 of the Convention for the Protection of
Human Rights and Fundamental Freedoms, concluded at Rome on 4 November
1950, as amended by Protocols Nos. 3, 5, 8 and supplemented by Protocol No.
2 2, article 14 of the International Covenant on Civil and Political Rights, opened
for signature in New York on 19 December 1966 3 and article 47 of the Charter of
Fundamental Rights of the European Union of 7 December 2000 4. It’s also
reflected in Article 45(1) of the Constitution of the Republic of Poland of 2 April
1997 5. This right isn’t absolute, as both international law and Polish law provide
for its limitations. However, the limitations should be of such a kind as not to
exclude or even seriously restrict the very essence of the right to a court. Against
the background of Article 6(1) of the ECHR, it’s stressed that the condition for the
effectiveness of the waiver of the guarantees provided for in this provision is its
explicitness and the awareness of its consequences, while at the same time not
infringing the right of a party to legal assistance from a qualified representative 6.
1
Doctor of Law, professor at the European University of Law and Administration in Warsaw
(Poland), judge at the Supreme Court of the Civil Chamber; ORCID 0000-0001-6015-6769.
2
OJ 1993, No. 61, item 284 as amended; hereinafter: ECHR.
3
OJ 1977, No. 38, item 167 (Annex).
4
OJ EU C No. 83 of 30 March 2010.
5
Journal of Laws No. 78, item 483 as amended.
6
See W. Peukert, in: J.A. Frowein, W. Peukert, Europäische Menschenrechtskonvention. EMRK-
Kommentar, Kehl-Strasbourg-Arlington 1985, p. 144; judgments of the ECtHR: of 6 December
1988 in Barberà, Messegué and Jabardo v Spain, Application No. 10590/83; of 24 June 1993 in
Schuler-Zgraggen v Switzerland, Application No. 14518/89; of 18 October 2006 in Hermi v Italy
[GC], Application No. 18114/02.
50
Tomasz Szanciło
One such limitation is the pre-judgement institution applicable in civil
proceedings before the Polish Supreme Court 7. It refers to two extraordinary
appeals filed with this court, in particular the cassation complaint (in addition to
that, also the complaint for declaring the illegality of a final judgment, however,
it’s filed relatively rarely). The pre-judgement gives the Supreme Court the right
to refuse to accept these appeals for examination, and thus to terminate the case
without substantive examination of the indicated complaints. A sort of selection
of cases is made, except that the indicated appeals are available against final
judgments. As far as the cassation complaint is concerned, which in practice is
filed much more frequently than the complaint for declaring the illegality of a final
decision, it’s available against judgments of the court of second instance: a
judgment (in procedural proceedings) or a decision on the merits (in non-
procedural proceedings), but not in every case (there are object-related
limitations). Thus, the pre-trial is another limitation of the possibility to appeal to
the Supreme Court.
It must not be forgotten that the Supreme Court isn’t a court of third
instance. The minimum standard arising from the Constitution of the Republic of
Poland is the two-instance nature of court proceedings, i.e. ensuring that the
parties may appeal against the substantive rulings of the court of first instance.
The Supreme Court is an extraordinary court - a court of law, which doesn’t
adjudicate on the merits of the case, but rather examines the appeal. It doesn’t
determine the facts, but only decides whether the court of second instance, in
applying or interpreting the provisions of law, has made such material errors as
to justify the annulment of the appealed judgment or decision. The substantive
examination of the case belongs to the court of first instance and then, following
an appeal, to the court of second instance.
2. The essence of the right to a court
The right to a court, in terms of any piece of legislation, boils down to the
statement that everyone is entitled to a fair and public hearing within a reasonable
time before an independent and impartial court established by law. This is a
positive aspect of this right, but at least Article 77(2) of the Polish Constitution
7
This isn’t a code term, but the jurisprudence and doctrine have adopted this name for the
institution in question (it’s therefore a legal language term).
51
The right to a court and the institution of a pre-judgement hearing (...)
contains a negative aspect of the right to a court, as a statute may not close off a
judicial path for anyone to assert infringed freedoms or rights. A permissible limit
of state interference in the sphere of the right to assert constitutionally guaranteed
rights and freedoms before a court is therefore set 8. The right to a court must
therefore be seen as a directive addressed to the legislator, derived from the
principle of a democratic state of law, the validity of which in the system compels
the need to adapt previous provisions excluding judicial protection of citizens’
rights to the constitutional principle, an interpretative guideline 9.
Bearing in mind the position of the Polish Constitutional Tribunal, it should
be emphasised that the legislator should introduce such legal regulations which
ensure that a case is heard by a court at the request of the interested party and
which determine the specific court most adequate to hear a given type of case.
Public authorities are obliged to take measures to protect the right to a court. In
doing so, it’s prohibited to enact legislation that would deprive anyone of a judicial
remedy to assert violated freedoms and rights 10. The right in question derives
from the Constitution of the Republic of Poland, which contains a certain objective
system of values, and it’s therefore incumbent on the legislator to legislate in such
a way that it’s possible to protect and realise these values to the fullest possible
extent 11. However, despite the fact that Article 77(2) of the Constitution of the
Republic of Poland sets out the prohibition of closing the judicial route, it doesn’t
exclude certain types of restrictions on access to court itself, particularly
procedural restrictions. Such a situation is encountered in the framework of civil
cases 12.
According to established case law and doctrinal views, the right to a court
has the following aspects (components):
1) the right of access to court - the right to initiate the procedure before the
court (effective initiation of proceedings before the court by an individual);
8
H. Pietrzkowski, Prawo do sądu wybrane zagadnienia, „Przegląd Sądowy” 1999, No 9-12, p. 7.
9
M. Wyrzykowski, Zasada demokratycznego państwa prawnego, in: W. Sokolewicz (ed.), Zasady
podstawowe polskiej Konstytucji, Warsaw 1998, p. 81.
10
See judgments of the Constitutional Tribunal: of 9 June 1998, K 28/97, OTK 1998, No 4, item
50; of 23 March 1999, K 2/98, OTK 1999, No 3, item 38; of 11 May 2011, SK 11/2009, OTK-A
2011, No 4, item 32.
11
Judgment of the Constitutional Tribunal of 8 October 2002, K 36/2000, OTK-A 2002, No. 5,
item 63.
12
See judgment of the Constitutional Tribunal of 11 May 2011, SK 11/2009, OTK-A 2011, No 4,
item 32.
52
Tomasz Szanciło
2) the right to an adequate and fair judicial procedure, in accordance with
the requirements of fairness and publicity, and thus to ensure that the parties
have procedural rights adequate to the subject matter of the proceedings and in
accordance with the requirements of a fair trial; this means that the parties to civil
proceedings must have a real opportunity to present their arguments and the
court is obliged to consider them, which entails:
- the right to be heard,
- the duty to allow the parties to participate in the proceedings,
- the duty to disclose clearly the reasons for its decision, which is intended
to prevent its arbitrariness,
- ensuring the predictability of the outcome for the parties 13.
Obviously, the above components are not absolute, as with regard to the
first one, the barrier is e.g. the obligation to pay court costs (with the possibility of
their exemption) or the possibility to obtain free assistance of an ex officio
attorney only under certain conditions, while in the case of the second
component, there is e.g. the possibility to exclude publicity of the proceedings on
the grounds of: morality, state security and public order, protection of private life
of the parties or other important private interest 14, with the proviso that the
judgment itself is made public also when the trial is closed to the public. Also in
the light of Article 6(1) ECHR, restrictions on the right to a trial must pursue a
legitimate aim or there must be a reasonable relationship of proportionality
between the means employed and the aim pursued 15. The national legislator has
a certain degree of freedom in this respect, and thus may introduce barriers to
access to court, with the proviso that these restrictions may not affect a citizen’s
access to court in such a way that the very essence of this right is violated.
The position of jurisprudence has become firmly established that Article
45(1) of the Constitution of the Republic of Poland doesn’t cover access to the
Supreme Court, and the provisions of the Constitution of the Republic of Poland
13
See, e.g., judgments of the Constitutional Tribunal: of 16 March 1999, SK 19/98, OTK 1999, No
3, item 36; of 2 October 2006, SK 34/2006, OTK-A 2006, No 9, item 118; of 11 September 2007,
P 11/2007, OTK-A 2007, No 8, item 97; of 20 November 2007, SK 57/2005, OTK-A 2007, No 10,
item 125.
14
B. Gronowska, Wolności, prawa i obowiązki człowieka i obywatela, in: B. Kacała, Z. Witkowski
(ed.), Prawo konstytucyjne, Toruń 2015, s. 170.
15
See ECtHR judgment of 15 February 2000 in Garcia Manibardo v. Spain, Application No.
38695/97.
53
The right to a court and the institution of a pre-judgement hearing (...)
provide the legislator with the freedom to create means of appeal against
judgements made in the second instance. An element of the right to a court isn’t
the right to lodge an appeal to the Supreme Court in civil or criminal cases, and
therefore a party has no claim to the state to shape the applicable provisions in
such a way as to ensure that the case is heard by the Supreme Court 16.
Nonetheless, to the extent that the legislature provides for access to the Supreme
Court, the proceedings before that Court may be subject to evaluation from the
point of view of the standards of the right to a court of law 17. In other words,
although access to the Supreme Court isn’t an element of the right to a court, if
the legislator has decided to allow the parties to challenge decisions of the court
of second instance, even under certain conditions, the right to a court should be
preserved in this respect.
3. The institution of pre-judgement - general comments
Within the above framework, it’s necessary to consider the institution of
pre-judgement, the appearance of which in the legal system and thus in the
judicial power in Poland since 1 July 2000 has been enforced to a large extent by
practice, namely by a significant increase in appeals filed with the Supreme Court.
As it’s emphasised, its existence is in fact a kind of "limitation" of the admissibility
of the appeal for the parties to the Supreme Court, allowing the refusal to accept
the cassation complaint for examination 18. An additional requirement for an
effective appeal has been introduced. The essence of the pre-judgment comes
down to a discretionary assessment by the Supreme Court, acting alone in a
closed session, as to whether a cassation complaint filed in a civil case should
be examined on its merits by a three-person panel of that court. There is no
appeal against this decision of the Supreme Court (the decision to accept or
refuse to accept the cassation complaint for examination). If the cassation
16
See, e.g., judgments of the Constitutional Tribunal: of 6 October 2004, SK 23/02, OTK-A 2004,
No 9, item 89; of 16 January 2006, SK 30/05, OTK-A 2006, No 1, item 2; decisions of the
Constitutional Tribunal: 11 September 2013, TS 83/13, OTK-B 2013, No 6, item 606; of 9 October
2014, TS 277/13, OTK-B 2014, No 5, item 453.
17
P. Grzegorczyk, K. Weitz, in: M. Safjan, L. Bosek (ed.), Konstytucja RP. Tom I. Komentarz do
art. 1-86, Warsaw 2016, art. 45, Side No. 62.
18
See, e.g., T. Ereciński, Selekcja kasacji w sprawach cywilnych z perspektywy
prawnoporównawczej, w: ARS et usus. Księga Pamiątkowa ku czci Sędziego Stanisława
Rudnickiego, Warsaw 2005, p. 93 and next; T. Zembrzuski, Skarga kasacyjna. Dostępność w
postępowaniu cywilnym, Warsaw 2011, p. 91 and next.
54
Tomasz Szanciło
complaint is accepted for examination, the panel that will consider it on its merits
is bound by this, and thus can’t refuse to accept it for examination (this doesn’t
exclude, however, the rejection of the complaint).
A cassation complaint - as an extraordinary remedy – isn’t of a universal
nature, which is determined by the special scope of control and the restrictions of
rationis materiae and rationis valoris character 19. It provides an opportunity to
remove from legal circulation judgments rendered in invalid or manifestly
defective proceedings. It’s therefore a specific remedy, the essence of which is
based on the protection of the public interest through unification of common court
jurisprudence, adjudication of cases of significant importance for court
jurisprudence and development of law, and adjudication of cases of precedent
character, rather than a generally available remedy against judgments that don’t
correspond to the intentions of the parties 20. In other words, it isn’t always in the
public interest to accept a cassation complaint for examination. The pre-
judgement isn’t a "cognizance of the cassation complaint", but only constitutes
an activity that conditions its examination on the merits 21. At this stage, therefore,
the Supreme Court doesn’t enter the substantive sphere of the contested
decision. This preliminary examination of the cassation complaint therefore also
serves to shape the legal system.
It’s important in this regard that the applicable national peculiarities of the
cassation procedure in terms of guarantees of the right to a court have been
repeatedly confirmed and endorsed by both the Polish Supreme Court and the
European Court of Human Rights 22. This follows from the interpretation of Article
6 of the ECHR, the wording of which doesn’t impose a uniform template for the
shaping of the procedure before the authorities of the various states, and
therefore allows for the lawfulness of differentiated first and second instance
procedures in relation to the highest 23. Moreover, this also corresponds to the
19
T. Ereciński, in: M. Jędrzejewska, K. Weitz, T. Ereciński, J. Gudowski, Kodeks postępowania
cywilnego. Komentarz. Część pierwsza. Postępowanie rozpoznawcze. Część druga.
Postępowanie zabezpieczające, Warsaw 2009, p. 686.
20
See, e.g., decisions of the Supreme Court: of 11 December 2008, V CSK 275/2008; of 26
February 2010, III CSK 299/2009.
21
Resolution of a panel of 7 judges of the Supreme Court of 17 January 2001, III CZP 49/00,
OSNC 2001, No 4, item 53.
22
See, e.g., decision of ECtHR of 7 May 2002 in Walczak v. Poland, Application No. 77395/01;
resolution of the full composition of the Criminal Chamber of the Supreme Court of 9 October
2000, I KZP 37/2000, OSNKW 2000, No. 9-10, item 78.
23
A. Redelbach, Sądy a ochrona praw człowieka, Toruń 1999, p. 247-248.
55
The right to a court and the institution of a pre-judgement hearing (...)
recommendations of the Council of Europe, which approves of national
restrictions on access to the highest court, as a result of limiting the number of
instances and introducing measures to discourage parties from abusing their right
to appeal 24. Restrictions on the admissibility of an appeal are therefore familiar to
various legislations, not only Polish law.
4. Reasons for accepting a cassation complaint for examination
4.1. Application for admission of a cassation complaint for examination
Due to the operation of the pre-judgement institution, the applicant must
include in the cassation complaint a request for its admission for examination and
justify it (Article 3984 § 2 of the Code of Civil Procedure). In accordance with
Article 3989 § 1 of the Code of Civil Procedure. The Supreme Court accepts a
cassation complaint for examination if one of the following conditions occurs:
1) there is a significant legal issue in the case;
2) there is a need to interpret legal provisions giving rise to serious doubts
or causing discrepancies in the jurisprudence of the courts;
3) the proceedings are invalid;
4) the cassation complaint is obviously justified.
It’s evident that the admission of the cassation complaint for examination
takes place only on qualified grounds, the catalogue of which is closed. It isn’t
sufficient to refer to any circumstances which, in the opinion of the applicant,
justify the acceptance of the cassation complaint for examination. It must contain
a professional legal argument referring to the pre-judgement prerequisites
indicated in Article 3989 § 1 of the Code of Civil Procedure indicating which of
them occur in the case and justifying the position of the applicant in this respect.
If the cassation complaint doesn’t contain such a request and justification, the
party (its representative) shall be summoned to supplement the formal deficiency
of this appeal, on pain of its rejection.
The use of vague and indefinite concepts ("substantial issue", "serious
doubts", "obvious justification") favours a more flexible regulation of the cassation
24
See decision of the Supreme Court of 15 February 2008, I CSK 538/2007; T.
Ereciński, Selekcja kasacji…, p. 93 and next.
56
Tomasz Szanciło
pre-judgement 25. The criteria for accepting a cassation judgement more or less
involve an element of judgement and as such fall within the Supreme Court’s
discretionary competence 26. Of course, the applicant may rely on more than one
ground in the complaint, but it should be noted that it’s generally excluded to
combine the condition of obvious reasonableness of the complaint with the
existence of legal doubts in the case (legal issue, need for interpretation of
provisions). This is because it isn’t possible to have a situation in which the
judgment is manifestly defective and at the same time there is such a serious
legal doubt in the case that it requires the intervention and resolution of the
Supreme Court 27. What is in dispute, after all, cannot be „obvious”.
Moreover, a cassation complaint can’t be based on ostensible grounds
and allegations, i.e., among other things, it can’t be an attempt to circumvent the
courts’ findings of fact and assessment of evidence. In a cassation review, the
Supreme Court doesn’t review the assessment of evidence itself, but only its
legality. The appellant may challenge the manner in which the evidence was
gathered in violation of the provisions governing the evidence procedure; in such
a case, it is the appellant’s duty to cite those provisions and to explain what effect
the violation had on the outcome. Pursuant to Article 3983 § 3 of the Code of Civil
Procedure the grounds for a cassation complaint can’t be allegations concerning
the establishment of facts or assessment of evidence. This is because the
Supreme Court is bound by the findings of fact constituting the basis of the
appealed decision (Article 39813 § 2 in fine of the Code of Civil Procedure).
The reasons for accepting the cassation complaint for examination will be
briefly discussed below. It should be emphasised at this point that the institution
of the pre-judgement applies, provided that the cassation complaint isn’t subject
to rejection (e.g. due to being filed out of time or subject matter inadmissibility).
25
T. Zembrzuski, in: P. Rylski (ed.), Kodeks postępowania cywilnego. Komentarz, Legalis 2022,
the 17th thesis to Article 3989.
26
T. Wiśniewski, in: T. Wiśniewski (ed.), Kodeks postępowania cywilnego. Komentarz. Tom II.
Art. 367-50539, Warsaw 2021, thesis 3 to Article 3989.
27
See, e.g., decisions of the Supreme Court: of 26 November 2013, I UK 291/13; of 9 April 2014,
V CSK 383/13; of 23 February 2023, I CSK 5148/22.
57
The right to a court and the institution of a pre-judgement hearing (...)
4.1. An important (substantial) legal issue
An important legal issue within the meaning of Article 3989 § 1(1) of the
Code of Civil Procedure is a new issue, not yet resolved in case law, the
resolution of which may contribute to the development of the law. Referring to this
prerequisite for accepting a cassation complaint for examination requires, as is
clear from the case law of the Supreme Court, the formulation of this issue with
the citation of specific legal provisions related to it and the presentation of
arguments proving divergent legal assessments 28. Moreover, the view has
become established in the case law of the Supreme Court that the indication of
the reason specified in the cited provision imposes on the applicant the obligation
to present an issue of an abstract nature together with the arguments leading to
divergent legal assessments, to show that it hasn’t been resolved in previous
case law and that the explanation of it’s important not only for the resolution of
this particular case, but also for other similar cases, contributing to the
development of the law. It can’t be casuistic in nature and serve to provide the
applicant with an answer as to the legal classification of specific elements of the
factual basis of the contested decision 29. Thus, there is no relevant legal issue in
the case, nor is there a need for statutory interpretation if the Supreme Court has
already taken a position on the legal issue or statutory interpretation and
expressed its view in previous judgments and there are no circumstances
justifying a change of that view 30.
The existence of a substantial question of law in a case should, in principle,
meet the requirements for a question submitted by a court of second instance in
the event that serious doubts arise (Article 390 § 1 of the Code of Civil Procedure)
which can’t be resolved by means of generally accepted rules of interpretation of
the law 31. A legal issue, apart from the fact that it must concern a matter giving
28
See, e.g., decisions of the Supreme Court: of 7 June 2005, V CSK 3/05; of 25 May 2021, II
CSK 96/21.
29
See, inter alia, decisions of the Supreme Court: of 11 January 2002, III CKN 570/01, OSNC
2002, No 12, item 151; of 30 April 2015, V CSK 598/14; of 15 April 2021, I CSK 720/20; of 15
March 2023, I CSK 6274/22.
30
See, e.g., decision of the Supreme Court of 19 March 2012, II PK 294/11.
31
See, e.g., decisions of the Supreme Court: of 24 October 2012, I PK 129/12; of 8 May 2015, III
CZP 16/15.
58
Tomasz Szanciło
rise to a genuinely substantial (and therefore serious) doubt, must meet additional
requirements 32:
1) be formulated on the basis of circumstances falling within the facts of
the case, resulting from the findings of fact made by the court;
2) be presented in a general and abstract manner so as to enable the
Supreme Court to give a universal answer, not amounting to mere subsumption
and resolution of a specific dispute;
3) be related to the case at hand.
The applicant may therefore not merely raise a question which, in his or
her opinion, the Supreme Court should answer, but should address all of the
above elements.
4.2. The need to interpret the law
Invoking the pre-judgement premise provided for in Article 3989 § 1(2) of
the Code of Civil Procedure requires indicating the provision of law the
interpretation of which raises doubts, defining the scope of the necessary
interpretation, demonstrating that the interpretation doubts are of a serious nature
and require the Supreme Court to take a stance, and if the basis for the motion
in this respect is the assertion of discrepancies existing in judicial decisions
resulting from different interpretations of a provision, it’s necessary to indicate the
divergent decisions, analyse them and demonstrate that the discrepancy results
from different interpretations of the provision 33. Without explaining and
demonstrating what interpretative doubts arise in relation to the interpretation of
the provisions indicated, the Supreme Court shall refuse to accept the cassation
complaint for examination 34. The mere belief of the applicant party as to the
"relevance" or "validity" of a problem that arises against the background of a
specific decision in the proceedings before the court of second instance can’t
constitute a premise for the admission of a cassation complaint for examination,
32
J. Paszkowski, in: T. Szanciło (red.), Kodeks postępowania cywilnego. Komentarz. Tom I. Art.
1–45816, Warsaw 2023, p. 1755.
33
See, e.g., decisions of the Supreme Court: of 15 October 2002, II CZ 102/02; of 28 March 2007,
II CSK 84/07; of 12 December 2008, II PK 220/08; of 24 February 2012, II PK 274/11; of 15 April
2021, IV CSK 617/20.
34
A. Niedużak, A. Sikorski, in: E. Marszałkowska-Krześ, I. Gil (ed.), Kodeks postępowania
cywilnego. Komentarz, Legalis 2023, thesis 6 to Article 3989.
59
The right to a court and the institution of a pre-judgement hearing (...)
nor can it be reduced to a mere polemic against the position on the interpretation
of the law adopted by that court.
4.3. Invalidity of proceedings
Grounds (reasons) for the invalidity of proceedings are listed in Article 379
of the Code of Civil Procedure - these are situations where:
1) the court path was inadmissible;
2) a party lacked legal or procedural capacity, a body appointed to
represent it or a legal representative, or the party's attorney was not duly
authorised;
3) a case is pending between the same parties for the same claim or if
such a case has already been finally adjudicated;
4) the composition of the adjudicating court was contrary to law or if a judge
excluded by law took part in the examination of the case;
5) a party was deprived of the possibility to defend its rights;
6) the district court has ruled on a case in which the regional court has
jurisdiction regardless of the value of the subject matter of the dispute.
This reason for accepting the cassation complaint for examination differs
from the others in that, irrespective of whether the appellant has invoked in the
cassation complaint the invalidity of the proceedings due to the occurrence of one
of the above circumstances, the Supreme Court considers ex officio, within the
limits of the appeal, the issue of the invalidity of the proceedings before the court
of second instance 35. By contrast, an examination of the invalidity of the
proceedings before the court of first instance is possible if a plea in cassation is
formulated concerning the failure of the court of second instance to consider the
invalidity of the proceedings before the court of first instance 36.
The invalidity of the proceedings shall constitute an autonomous and
sufficient ground for accepting the cassation complaint for examination 37. A party
may invoke any of the above grounds for invalidity of proceedings and the
35
See, e.g., judgments of the Supreme Court: of 21 November 1997, I CKN 825/97, OSNC 1998,
No 5, item 81; of 10 May 2000, III CKN 416/98, OSNC 2000, No 12, item 220; of 7 June 2013, II
CSK 720/12; decisions of the Supreme Court: of 12 June 2020, V CSK 22/20; of 9 October 2020,
I CSK 32/20.
36
See, e.g., judgment of the Supreme Court of 13 September 2012, V CSK 384/11.
37
See T. Zembrzuski, Dostępność skargi kasacyjnej w procesie cywilnym, Warsaw 2008, p. 294.
60
Tomasz Szanciło
occurrence of one of them obliges the Supreme Court to accept the cassation
complaint for examination. If there is a nullity of proceedings in the case, but it’s
not indicated by the appellant either under the cassation ground of violation of
procedural law or as a premise justifying acceptance of the complaint for
examination, the Supreme Court should react ex officio and accept the complaint
for examination when the other premise indicated by the appellant doesn’t
occur 38.
4.4. Manifestly founded cassation complaint
According to well-established case-law, an application for the admission
of a cassation complaint to examination on the basis of a manifestly well-founded
ground of appeal means that the appellant must set out precisely what it
considers to be the manifestly well-founded nature of the action in the particular
case, citing the provisions whose infringement has caused it and the reasons why
that infringement has led to a manifestly incorrect decision. In other words, if the
premise of the application for admission of the cassation complaint to
examination is the applicant’s assertion that the action is manifestly well-founded,
the applicant should include in the grounds of the application a legal argument
indicating in what that „manifestness” is expressed and provide arguments in
support of that assertion. At the same time, while the fact that the ground for the
cassation complaint is well-founded is sufficient for it to be upheld, in order for it
to be accepted for examination it is necessary to demonstrate a qualified form of
infringement of substantive or procedural law consisting in its obviousness,
apparent prima facie through the use of basic legal knowledge 39.
The prerequisite for the admission of a cassation complaint isn’t a manifest
infringement of a specific substantive or procedural rule of law, but a situation in
which the infringement has resulted in a manifestly incorrect decision 40. The
applicant, presenting - as a circumstance justifying the cassation of an appeal in
38
M. Manowska, in: M. Manowska (ed.), Kodeks postępowania cywilnego. Komentarz. Tom I.
Art. 1-47716, Lex/el 2022, thesis 5 to Article 3989.
39
See, e.g., decisions of the Supreme Court: of 15 April 2021, IV CSK 617/20; of 25 August 2021,
II CSK 155/21; of 5 April 2023, I CSK 6859/22.
40
See decision of the Supreme Court of 8 October 2015, IV CSK 189/15 and the case law cited
therein.
61
The right to a court and the institution of a pre-judgement hearing (...)
cassation - a „manifest error in law”, should therefore demonstrate the qualified
nature of that infringement 41. In other words, this breach should be flagrant.
5. Summary
As presented, the pre-judgement is a very important tool for the selection
of appeals brought before the Supreme Court. Of course, it has raised doubts
and objections against the background of the implementation of the right to a
court and the right to a fair trial. However, it’s assumed - also bearing in mind the
position of the Polish Constitutional Court 42 – that it’s a rational regulator of
access to the Supreme Court that doesn’t violate constitutional rights and
guarantees. In doing so, it doesn’t limit the right of a party to initiate a cassation
review, but creates a limitation "within" the cassation proceedings. The pre-
judgement, allowing rationalisation of the decision to accept cassation complaints
for examination, allows the Supreme Court to focus on the most serious and
precedent-setting cases, and to abandon the method of limiting the impact of
cassation complaints by radically increasing the value of the object of the
appeal 43.
As there is a so-called attorney-client privilege before the Supreme Court,
so the parties must be represented by a professional attorney 44, the obligation to
invoke one of the pre-judgement grounds doesn’t appear to be unduly
burdensome. It shouldn’t be forgotten that the Supreme Court isn’t a third
instance, and the review of the appealed decision comes down to determining
whether there has been an infringement of substantive law through its
misinterpretation or misapplication, or an infringement of procedural rules, if that
infringement could have had a significant impact on the outcome of the case.
41
See, e.g., decisions of the Supreme Court: of 8 March 2002, I PKN 341/01, OSNP 2004, no 6,
item 100; of 10 January 2003, V CZ 187/02, OSNC 2004, no 3, item 49; of 15 April 2021, IV CSK
617/20.
42
See, e.g., judgment of the Constitutional Court of 31 March 2005, SK 26/02, OTK-A 2005, No.
3, item 29.
43
T. Ereciński, in: T. Ereciński (ed.), Kodeks postępowania cywilnego. Komentarz. Tom III.
Postępowanie rozpoznawcze, Warsaw 2016, thesis 1 to Article 3989.
44
Apart from certain exceptions, i.e. when it comes to proceedings for exemption from court costs
and for the appointment of an ex officio representative, or when a party, its body, its legal
representative or its representative is a judge, a public prosecutor, a notary public or a professor
or a doctor habilitated in legal sciences, and when a party, its body or its legal representative is
an advocate, a legal adviser or an adviser to the General Prosecutor's Office of the Republic of
Poland, and in intellectual property matters a patent agent.
62
Tomasz Szanciło
Meanwhile, in practice, the parties often treat the cassation complaint as a means
of initiating another, third instance, in order for the Supreme Court to hear the
case under the rules applicable to courts of first and second instance. However,
this isn’t the role of this remedy. The constitutional and statutory tasks of the
Supreme Court include, first and foremost, supervising the activities of the
ordinary and military courts in the area of adjudication, ensuring uniformity of
jurisprudence and resolving legal issues. It’s to these objectives that the
adjudication of cassation complaints must also be subordinated. The pre-
judgement pursues these objectives, all the more so as the prerequisites for
accepting a cassation complaint for examination have been defined relatively
broadly.
63
A aplicação da Lei nº 13.146/2015 (LBI) pela justiça eleitoral: a
acessibilidade está sendo observada?
Linaldo de Oliveira Lima 1
Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira 2
1 INTRODUÇÃO
A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) 3, também conhecida como Estatuto da
Pessoa com Deficiência (PcD), considera pessoa com deficiência aquela que
tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as
demais pessoas (art.2º).
Nesse contexto, surge a seguinte indagação: A Justiça Eleitoral (JE), por
meio de suas normas internas, efetivamente implementou a Lei Brasileira de
Inclusão no processo eleitoral?
Com o intuito de responder a essa questão, a presente pesquisa foi
dividida em duas partes, baseada em pesquisa bibliográfica (revisão da
literatura), com análises qualitativas e quantitativas de informações estatísticas
provenientes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e dos normativos internos da
Justiça Eleitoral.
A hipótese é de que as normas internas da Justiça Eleitoral
implementaram a LBI, notadamente a Resolução nº 23.659/2021 do Tribunal
Superior Eleitoral 4.
Inicialmente, a fim de compreender a evolução normativa e a adequação
das diretrizes da Justiça Eleitoral às demandas de inclusão desses indivíduos,
foi analisada a evolução normativa interna da Justiça Eleitoral relacionada à
participação das pessoas com deficiência, abordando tanto as legislações
1
Bacharel em Direito, especialista em Direito Eleitoral e mestrando em Direito pelo Centro
Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).
2
Professora doutora do mestrado em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ)
e docente titular da Universidade Estadual da Paraíba e do UNIPÊ.
3
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Brasília, DF: Presidência da República, 2023.
4
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução TSE nº 23.659/2021. Dispõe sobre a gestão
do Cadastro Eleitoral e sobre os serviços eleitorais que lhe são correlatos.
64
Linaldo de Oliveira Lima & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
internas anteriores à LBI quanto aquelas posteriores à sua promulgação. Em
seguida, analisou-se as políticas internas adotadas pela Justiça Eleitoral para
promover a inclusão das pessoas com deficiência.
Diante da carência de estudos na literatura relacionados a avaliação do
grau de implementação e aplicabilidade da Lei Brasileira de Inclusão pela Justiça
Eleitoral, o presente estudo teve como objetivo investigar a evolução normativa
interna da JE em relação à participação e acessibilidade das pessoas com
deficiência no processo eleitoral. Além disso, buscou-se identificar as políticas
internas adotadas pela JE para promover a inclusão efetiva desses indivíduos,
com intuito de compreender o seu alcance e eficácia no processo eleitoral.
2 EVOLUÇÃO NORMATIVA RELATIVA ÀS PCD NA JUSTIÇA ELEITORAL
Neste ponto, foram analisados instrumentos normativos como resoluções,
portarias e outras regulamentações internas, buscando-se identificar as medidas
adotadas para garantir a inclusão efetiva das PcD no processo eleitoral. Para
embasar essa análise, foram utilizados dados estatísticos e informações oficiais
do TSE.
2.1 Eleitorado das Pessoas com Deficiência no Brasil e no Exterior
A acessibilidade eleitoral, segundo Dias (2020) 5, não se limita ao direito
de votar com facilidade, tem como objetivo a superação, dentre outros, dos
obstáculos arquitetônicos dos locais de votação, do preconceito e ignorância
social que diminuem as chances das PcD serem eleitas, bem como da falta de
propagandas partidárias e eleitorais e de informes oficiais, que contenham
audiodescrição, língua de sinais e legenda. A acessibilidade é uma condição
prévia para que a PcD possa viver de forma independente e participar da
sociedade em igualdade de condições.
A Lei Brasileira de Inclusão, ao tratar da acessibilidade das PcD, diz que
é direito que garante à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida viver
de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação
social (art. 53). A LBI ainda registra que compete ao Poder Público garantir a
5
DIAS, J. Acessibilidade Eleitoral e os Direitos Políticos das Pessoas com Deficiência.
Resenha Eleitoral, Florianópolis, SC, v. 24, n. 2, p. 165–170, 2020.
65
A aplicação da Lei nº 13.146/2015 (LBI) pela (...)
dignidade da pessoa com deficiência ao longo de toda a vida. A dignidade da
PcD passa naturalmente pela igualdade material.
De acordo com D' Albuquerque (2017) 6, ao tratar da interligação da
dignidade da pessoa com deficiência com o princípio da igualdade material,
defende que seja garantido àquele que possui deficiência um tratamento
diferenciado, com o fim de assegurar essa dignidade, que possui eficácia positiva
e negativa. Na eficácia positiva, existe a afirmação da dignidade através de
obrigações impostas ao Poder Público e ao particular e, como eficácia negativa,
a restrição ao exercício de determinados direitos, evitando-se
discricionariedades.
Nesse contexto, a Justiça Eleitoral tem o papel fundamental de promover
a dignidade desse público em igualdade de condições com as demais pessoas
no processo eleitoral, especialmente assegurando o direito de votar e de ser
votado. E, para uma compreensão abrangente da participação das pessoas com
deficiência no processo eleitoral, é relevante apresentar o quantitativo de
eleitores e eleitoras com deficiência nas eleições de 2022. Os dados estatísticos
fornecidos pelo Tribunal Superior Eleitoral revelam a representatividade desse
grupo e auxiliam na análise da inclusão e acessibilidade no contexto eleitoral.
De acordo com os dados estatísticos do TSE (2022) 7, 156.454.011
pessoas estavam aptas a votar nas eleições de 2022. As eleitoras e os eleitores
com deficiência no Brasil e no exterior representavam 1.271.381 pessoas e
desse total, 427.729 pessoas apresentaram deficiência de locomoção, 186.647
pessoas tinham deficiência visual, 111.813 pessoas com deficiência auditiva e
614.911 pessoas não especificaram as deficiências.
O TSE, ao demonstrar a evolução do eleitorado com deficiência, nas três
últimas eleições gerais, abrangendo os eleitores que votam no Brasil e no
exterior, identificou os seguintes quantitativos: em 2014, 425.651 pessoas; em
2018, 939.915 pessoas; e, em 2022, 1.271.381 pessoas, o que demonstra um
6
D' ALBUQUERQUE, T. R. L. O estatuto da pessoa com deficiência e as novas perspectivas em
torno da mudança da capacidade civil. 2017
7
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Estatística do eleitorado geral 2022. Tribunal Superior
Eleitoral, 2022.
66
Linaldo de Oliveira Lima & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
aumento significativo das PcD, especialmente de 2014 para 2018 (após a
entrada em vigor da LBI), indicando majoração superior a 120% 8.
Os tipos de deficiências são declarados pelas pessoas aos cartórios
eleitorais, no Brasil e no exterior, e o eleitor pode declarar mais de um tipo de
deficiência no momento do preenchimento do Requerimento de Alistamento
Eleitoral (RAE), conforme previsão da Resolução TSE nº 23.659/2021. Os dados
do TSE abrangem, ainda, limitações dos eleitores que possam afetar o exercício
do voto, como a mobilidade reduzida.
2.2 As Resoluções do TSE dirigidas à acessibilidade das PcD
A Resolução TSE n. 21.008/2002, que dispõe sobre o voto dos eleitores
com deficiência, estabelece a criação de seções eleitorais especiais destinadas
a eleitores com deficiência (art. 1º) 9. Essas seções especiais deveriam ser
instaladas em local de fácil acesso, com estacionamento próximo. A mencionada
resolução prevê que as urnas eletrônicas em seções especiais para deficientes
visuais devem conter dispositivo que permita ao eleitor conferir o voto
assinalado, sem prejuízo do sigilo do sufrágio.
No ano de 2012, foi instituído o programa de acessibilidade da Justiça
Eleitoral, por meio da Resolução TSE nº 23.381/2012 10. Este programa destina-
se à implementação gradual de medidas para a remoção de barreiras físicas,
arquitetônicas, de comunicação e de atitudes, a fim de promover o acesso, amplo
e irrestrito, com segurança e autonomia de pessoas com deficiência ou com
mobilidade reduzida no processo eleitoral (art. 2º).
Conforme Machado e Louro 11, o foco não está mais na deficiência, nos
impedimentos, mas nos obstáculos, nas barreiras enfrentadas por essas
pessoas, prejudicando sua participação social e pleno desenvolvimento. As
pessoas com deficiência tornam-se titulares de direitos, capazes de decidirem o
destino de suas vidas e de atuarem ativamente na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas.
8
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Estatística do eleitorado geral 2022. Tribunal Superior
Eleitoral, 2022.
9
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução TSE nº 21.008/2012.
10
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução TSE nº 23.381/2012.
11
MACHADO , A. J.; LOURO SODRÉ, J. I. O Exercício dos Direitos Políticos pela Pessoa com
Deficiência Intelectual. Resenha Eleitoral, Florianópolis, SC, v. 23, n. 2, p. 35–66, 2019.
67
A aplicação da Lei nº 13.146/2015 (LBI) pela (...)
No programa de acessibilidade criado pela mencionada Resolução, ficou
estabelecido que as urnas eletrônicas, que contam com teclas com gravação do
código Braille, deveriam estar habilitadas com sistema de áudio para
acompanhamento da votação. Os Tribunais Regionais Eleitorais, portanto,
devem disponibilizar fones de ouvido, nas seções eleitorais especiais e naquelas
onde houver solicitação específica do eleitor cego ou com deficiência visual.
A citada resolução prevê que a Justiça Eleitoral, Tribunais e Cartórios
Eleitorais realizem parcerias com instituições representativas da sociedade civil,
objetivando o incentivo ao cadastramento de mesários e colaboradores na
eleição com conhecimento de Libras, tanto nas seções eleitorais especiais como
naquelas onde houver inscrição de eleitor surdo ou com deficiência auditiva.
Com o fim de resguardar a acessibilidade aos locais de votação, a resolução
determina a elaboração de ação dos Tribunais Regionais Eleitorais com as
Zonas Eleitorais, com a seguinte orientação:
Art. 30 Objetivando a plena acessibilidade nos locais de votação, os
Tribunais Regionais Eleitorais, em conjunto com as respectivas Zonas
Eleitorais, elaborarão plano de ação destinado a:
I - expedir, a cada eleição, instruções aos Juízes Eleitorais, para
orientá-los na escolha dos locais de votação de mais fácil acesso ao
eleitor com deficiência física (art. 135, § 6º, do Código Eleitoral c/c art.
1º da Resolução-TSE nº 21.008/2002).
II - monitorar periodicamente as condições dos locais de votação em
relação às condições de acessibilidade;
III - providenciar, na medida do possível, a mudança dos locais de
votação que não ofereçam condições de acessibilidade para outros
que as possuam;
IV - alocar as seções eleitorais que tenham eleitor deficiência ou
mobilidade reduzida em pavimento térreo;
V - determinar a liberação do acesso do eleitor com deficiência ou
mobilidade reduzida aos estacionamentos dos locais de votação e/ou
a reserva de vagas próximas;
VI - eliminar obstáculos dentro das seções eleitorais que impeçam ou
dificultem o exercício do voto pelos eleitores com deficiência ou
mobilidade reduzida, por exemplo, não instalando urna eletrônica em
tablados em nível acima do piso, mantendo as portas dos locais
abertas por completo para facilitar o acesso por cadeirantes, dentre
outros;
VII - celebrar acordos e convénios de cooperação técnica com
entidades públicas e privadas responsáveis pela administração dos
prédios onde funcionem as seções eleitorais, com vistas ao
planejamento e à realização das adaptações/modificações das
estruturas físicas necessárias à garantia da acessibilidade;
VIII - celebrar acordos e convênios de cooperação técnica com
entidades públicas e privadas representativas de pessoas com
deficiência, objetivando o auxílio e acompanhamento das atividades
necessárias à plena acessibilidade e aperfeiçoando as medidas para o
seu atingimento.
68
Linaldo de Oliveira Lima & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
Parágrafo único. A construção, ampliação ou reforma de edifícios
pertencentes à Justiça Eleitoral observará, obrigatoriamente, os
requisitos de acessibilidade previstos nos regramentos da Associação
Brasileira de Normas Técnicas em vigor (ABNT NBR 9050:2004).
O Tribunal Superior Eleitoral elaborou o Relatório de diagnóstico da
acessibilidade na Justiça Eleitoral nas Eleições de 2014 12, no qual foi possível
identificar, por meio de preenchimento de formulário específico, a forte adesão
dos Tribunais Regionais Eleitorais à Resolução TSE nº 23.381/2012. Do total de
18 artigos do normativo, mais de 60% superaram a média de adesão de 13
artigos, com destaque para os TREs do Rio Grande do Norte (17), Ceará (16) e
Espírito Santo (16).
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ aprovou a Resolução nº
230/2016 13, que trata da gestão do Cadastro Eleitoral, orientando a adequação
das atividades dos órgãos do Poder Judiciário e de seus serviços auxiliares às
determinações exaradas pela Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e pela Lei Brasileira de
Inclusão da Pessoa com Deficiência por meio – entre outras medidas – da
convolação em resolução a Recomendação CNJ 27 14, de 16/12/2009, bem como
da instituição de Comissões Permanentes de Acessibilidade e Inclusão (BRASIL,
2016; BRASIL, 2009).
A Recomendação CNJ nº 27 orienta os Tribunais a adotarem medidas
para remover barreiras físicas, arquitetônicas, de comunicação e atitudinais, a
fim de garantir o amplo acesso de pessoas com deficiência às suas
dependências, serviços e carreiras. A recomendação também enfatiza a
importância da conscientização de servidores e jurisdicionados sobre a
acessibilidade como um direito fundamental e propõe a criação de comissões de
acessibilidade para planejar, desenvolver e monitorar projetos e metas voltados
para a promoção da acessibilidade às pessoas com deficiência 15.
O TSE instituiu, por meio da Portaria nº 330/2018, a Comissão
Permanente de Acessibilidade e Inclusão (CPAI) com o objetivo de propor,
orientar e acompanhar em nível estratégico as ações de acessibilidade e
12
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Relatório de diagnóstico da acessibilidade na Justiça
Eleitoral nas Eleições de 2014.
13
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 230/2016.
14
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 27 de 16/12/2009.
15
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 27 de 16/12/2009.
69
A aplicação da Lei nº 13.146/2015 (LBI) pela (...)
inclusão 16. Essas ações devem ser voltadas à eliminação de quaisquer formas
de discriminação, bem como a remoção de barreiras de qualquer natureza que
dificultem o acesso autônomo e seguro às instalações e aos serviços do TSE por
pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida.
Em 2021, foi aprovada a Resolução CNJ nº 401 17 (revogou a Resolução
CNJ nº 230/2016), que dispõe sobre o desenvolvimento de diretrizes de
acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiência nos órgãos do Poder
Judiciário e de seus serviços auxiliares. Além disso, foi regulamentado o
funcionamento de unidades de acessibilidade e inclusão, no qual foram
apontadas as atividades que deveriam ser implementadas no Poder Judiciário
para promover a acessibilidade.
No mesmo ano, a Resolução nº 23.659/2021 18 do Tribunal Superior
Eleitoral trouxe importantes avanços para o atendimento da PCD. No seu art. 1º,
IV, dispõe sobre a expansão e especialização dos serviços eleitorais com vistas
ao adequado atendimento a pessoas com deficiência. O art. 3º, VII, por sua vez,
garante a isenção da sanção decorrente do não cumprimento das obrigações
eleitorais de alistamento ou de comparecimento às urnas, em razão de
deficiência ou condição que torne impossível ou demasiadamente oneroso o
cumprimento daquelas obrigações.
O art. 14 do mencionado normativo assegura como direito fundamental
das pessoas com deficiência - incluindo aquelas declaradas relativamente
incapazes para atos da vida civil, sob curatela ou que optaram pela tomada de
decisão apoiada - a implementação de medidas que promovam seu alistamento
e o exercício de seus direitos políticos, garantindo igualdade de condições com
os demais cidadãos.
As pessoas com deficiência têm garantidos direitos específicos no
contexto eleitoral. Elas possuem a liberdade de escolher um local de votação
acessível durante processos de alistamento, transferência ou revisão e podem
selecionar um local de votação diferente do original, desde que esteja dentro dos
limites da circunscrição eleitoral, em um prazo estabelecido. Além disso, têm a
16
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Portaria nº 330, de 3 de abril de 2018. Institui a Comissão
Permanente de Acessibilidade e Inclusão (CPAI), no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
17
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 401/2021.
18
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução TSE nº 23.659/2021. Dispõe sobre a gestão
do Cadastro Eleitoral e sobre os serviços eleitorais que lhe são correlatos.
70
Linaldo de Oliveira Lima & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
possibilidade de serem assistidas por alguém de sua escolha ao votar, sem a
necessidade de notificação prévia.
É expressamente proibida a criação de seções eleitorais exclusivamente
para esse público. Solicitações de suspensão de direitos políticos baseadas em
deficiência ou em decisões que declarem incapacidade civil não serão
processadas. Adicionalmente, todas as comunicações relativas a esses direitos
devem ser acessíveis, alinhadas com as normas de inclusão nacionais e
protocolos técnicos aplicáveis.
A cada eleição, o Tribunal Superior Eleitoral edita resolução, tratando dos
atos preparatórios do processo eleitoral e, para o pleito de 2022, foi aprovada a
Resolução 23.669/2021 19, determinando que os Tribunais Regionais Eleitorais
devem expedir instruções às juízas e aos juízes eleitorais, orientando-os
na escolha dos locais de votação, de maneira a garantir acessibilidade às
pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida.
3 AS POLÍTICAS INTERNAS ADOTADAS PELA JUSTIÇA ELEITORAL
Desde a introdução da urna eletrônica, no contexto das eleições
municipais de 1996, a Justiça Eleitoral empreendeu esforços para implementar
recursos que viabilizassem o exercício do voto por todos os cidadãos brasileiros.
Tanto a promoção da acessibilidade nos locais de votação quanto as adaptações
efetuadas nas urnas ao longo do tempo, têm como desiderato primordial
salvaguardar o direito inalienável ao sufrágio 20.
As urnas eletrônicas foram projetadas para atender às necessidades das
pessoas com deficiência visual: (1) o teclado do terminal do eleitor apresenta os
algarismos dispostos em sistema braile; (2) é possível utilizar fones de ouvido,
proporcionando aos eleitores cegos ou com deficiência visual a recepção de
sinais sonoros que indicam o número selecionado 21. Além destas
funcionalidades enumeradas, nas Eleições de 2022, foi adicionada a inclusão do
sistema de interpretação em Libras, em todas as urnas eletrônicas, bem como o
19
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução TSE nº 23.669/2021. Dispõe sobre os atos
gerais do processo eleitoral para as Eleições 2022.
20
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Urnas eletrônicas têm adaptações para deficientes
visuais.
21
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Urnas eletrônicas têm adaptações para deficientes
visuais.
71
A aplicação da Lei nº 13.146/2015 (LBI) pela (...)
aprimoramento de duas ferramentas já existentes: a) a sintetização de voz, que
transforma o texto em áudio para auxiliar os eleitores com deficiência visual; e
b) a melhoria na qualidade geral do áudio da urna eletrônica 22.
O Tribunal Superior Eleitoral implementou, desde dezembro de 2017, a
ferramenta Rybená 23, que permite aos surdos, deficientes visuais, pessoas com
deficiências intelectuais, idosos, disléxicos e outras pessoas com dificuldade de
leitura e de compreensão de textos, a possibilidade de entendimento dos
conteúdos web. Trata-se de tecnologia assistida para traduzir textos em
português para libras e voz.
De acordo com o relatório de acessibilidade do Tribunal Superior Eleitoral,
ano-base 2020 24, constata-se que, em 2018, havia 49.073 seções com
acessibilidade cadastradas no sistema unificado nacional da Justiça Eleitoral; já
em 2020, esse número foi de 128.451, um significante aumento de mais de 260%
em apenas 2 anos.
Em 2020, o Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba (TRE-PB) realizou o
curso conversação em libras para atendimento ao eleitor 25, por meio de ensino
à distância (EAD), com a certificação de 135 servidores. O TRE-PB implementou
a padronização de fontes acessíveis, que proporcione boa visualização, em
todas as unidades que produzam material de divulgação, assegurando maior
acessibilidade ao conteúdo digital.
Em 2022, o Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba, por intermédio da
Coordenadoria de Sistemas – COSIS, desenvolveu o sistema "Sou PcD" com o
objetivo de aprimorar a garantia do pleno exercício do voto e da cidadania nos
locais de votação para eleitores que requerem maior acessibilidade. Esse
sistema encontra-se disponível no site eletrônico do TRE-PB, permitindo a
realização da revisão dos dados cadastrais sem a necessidade de alterar o local
de votação atual. Nessa revisão, as Pessoas com Deficiência (PcD) podem
informar suas deficiências específicas, possibilitando os ajustes necessários de
22
BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral de Roraima. Justiça Eleitoral vai disponibilizar fones
de ouvido aos deficientes visuais.
23
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Nova Rybená do TSE reflete ações do Tribunal para
ampliar a representatividade. Tribunal Superior Eleitoral , 2022.
24
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Relatório de diagnóstico da acessibilidade na Justiça
Eleitoral ano-base 2020.
25
BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral. TRE-PB encerra Curso de Conversação em Libras.
Tribunal Regional Eleitoral, 2020.
72
Linaldo de Oliveira Lima & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
acessibilidade nos locais de votação. Isso visa assegurar o direito ao voto com
total autonomia e comodidade, garantindo que todos os eleitores tenham
igualdade de condições no exercício desse direito fundamental 26.
A Comissão de Acessibilidade, Inclusão e Diversidade (CMAID) do TRE-
PB participou de evento promovido pela Associação de Pais e Amigos dos
Excepcionais de João Pessoa-PB (APAE-JP), realizado nos dias 21 a 28 de
agosto de 2023 (“Semana Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual e
Múltipla de 2023”) 27. A Justiça Eleitoral promoveu a divulgação do sistema “Sou
PcD”, demonstrando a importância dessa nova ferramenta no processo inclusivo
da participação democrática e autônoma dos eleitores com algum tipo de
deficiência.
A Justiça Eleitoral tem efetivamente desempenhado seu papel na
promoção da participação das PcD no processo eleitoral, adotando medidas
concretas para facilitar o acesso destes eleitores aos locais de votação e garantir
a disponibilidade de informações acessíveis e compreensíveis aos eleitores em
geral, contribuindo para uma sociedade mais inclusiva e democrática.
4 CONCLUSÃO
Os dados revelam que a JE tem demonstrado um crescente compromisso
em assegurar a participação equitativa das pessoas com deficiência no âmbito
eleitoral. Através de uma evolução normativa significativa, a JE implementou a
Lei Brasileira de Inclusão, especialmente com a Resolução nº 23.659/2021,
garantindo o exercício dos direitos políticos desses indivíduos. Tal evolução
normativa reflete o comprometimento da JE em promover a inclusão e igualdade
de oportunidades.
A urna eletrônica, além de já contar com funcionalidades como o sistema
em Braille e de áudio, estava pronta para atender às necessidades das pessoas
com deficiência nas Eleições de 2022. Uma das novidades foi a implementação
do sistema de interpretação em Libras em todas as urnas eletrônicas,
26
BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral. TRE-PB convoca eleitores e eleitoras com deficiência
para Revisão Cadastral. Tribunal Regional Eleitoral, 2022.
27
BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral. TRE-PB realiza Ação de Cidadania em evento da
Apae-JP. Tribunal Regional Eleitoral, 2023.
73
A aplicação da Lei nº 13.146/2015 (LBI) pela (...)
assegurando e promovendo a inclusão e garantindo que os eleitores com
deficiência auditiva possam exercer seu direito ao voto de forma autônoma.
Assim, além das mudanças normativas, observa-se a implementação de
políticas internas pela JE para efetivar a inclusão das pessoas com deficiência.
Essas políticas compreendem ações concretas para assegurar a acessibilidade
no momento do voto, fornecer informações adequadas e eliminar quaisquer
barreiras que possam prejudicar a participação desses cidadãos. A plena
concretização dos direitos políticos das pessoas com deficiência requer a
continuidade e o aprimoramento das medidas adotadas pela JE, bem como uma
constante avaliação e monitoramento dos resultados alcançados.
Dessa forma, esta pesquisa destacou a importância da evolução
normativa interna da Justiça Eleitoral e das políticas implementadas para
promover a inclusão das pessoas com deficiência no processo eleitoral. O estudo
contribuiu para a compreensão do grau de implementação da LBI pela JE e
enfatiza a relevância de uma abordagem inclusiva, que leva em consideração as
necessidades específicas desse grupo, garantindo sua participação efetiva no
processo democrático. A continuidade desses esforços e o aprimoramento das
práticas são fundamentais para alcançar uma inclusão plena e igualitária no
contexto eleitoral. Pode-se concluir que o aumento considerável do eleitorado
com deficiências significa que a legislação dirigida à inclusão das PcD,
especialmente a LBI, tem sido implementada pela JE, contribuindo para uma
maior inclusão dessa população no processo democrático brasileiro.
REFERÊNCIAS
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https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2301. Acesso em: 29 de jun. de 2023.
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https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3987. Acesso em: 29 de jun. de 2023.
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74
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adaptações para deficientes visuais. Tribunal Regional Eleitoral de São
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com deficiência para Revisão Cadastral. Tribunal Regional Eleitoral,
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e-eleitoras-com-deficiencia-para-revisao-cadastral. Acesso em: 20 de jun.
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em Libras. Tribunal Regional Eleitoral, 2020. Disponível em:
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75
A aplicação da Lei nº 13.146/2015 (LBI) pela (...)
https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/prt/2018/portaria-no-330-de-
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em:
https://www.tse.jus.br/++theme++justica_eleitoral/pdfjs/web/viewer.html?f
ile=https://www.tse.jus.br/transparencia-e-prestacao-de-
contas/governanca-gestao/arquivos/relatorio-de-acessibilidade-
2014/@@download/file/Relatorio_de_acessibilidade_2014.pdf. Acesso
em: 29 de jun. de 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Relatório de diagnóstico da
acessibilidade na Justiça Eleitoral ano-base 2020. Disponível em:
https://www.tse.jus.br/++theme++justica_eleitoral/pdfjs/web/viewer.html?f
ile=https://www.tse.jus.br/transparencia-e-prestacao-de-
contas/governanca-gestao/arquivos/tse-acessibilidade-na-justica-
eleitoral-ano-base-
2020/@@download/file/Anexo_1813460_Acessibilidade_DiagramadoSE
PREV_OK._final__2_.pdf. Acesso em: 29 de jun. de 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução TSE nº 21.008/2012. Disponível
em: https://www.tse.jus.br/legislacao/codigo-eleitoral/normas-editadas-
pelo-tse/resolucao-nb0-21.008-de-5-de-marco-de-2002-brasilia-2013-df .
Acesso em: 29 de jun. de 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução TSE nº 23.381/2012. Disponível
em: https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2012/resolucao-no-
23-381-de-19-de-junho-de-2012. Acesso em: 29 de jun. de 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução TSE nº 23.659/2021. Dispõe
sobre a gestão do Cadastro Eleitoral e sobre os serviços eleitorais que lhe
são correlatos. Brasília: Tribunal Superior Eleitoral, 2021. Disponível em:
https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2021/resolucao-no-23-
659-de-26-de-outubro-de-2021. Acesso em: 20 de jun. de 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução TSE nº 23.669/2021. Dispõe
sobre os atos gerais do processo eleitoral para as Eleições 2022.
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D' ALBUQUERQUE, T. R. L. O estatuto da pessoa com deficiência e as novas
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DIAS, J. Acessibilidade Eleitoral e os Direitos Políticos das Pessoas com
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2020. DOI: 10.53323/resenhaeleitoral.v24i2.19. Disponível em:
https://revistaresenha.emnuvens.com.br/revista/article/view/19. Acesso
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MACHADO , A. J.; LOURO SODRÉ, J. I. O Exercício dos Direitos Políticos pela
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SC, v. 23, n. 2, p. 35–66, 2019. DOI: 10.53323/resenhaeleitoral.v23i2.30.
Disponível em:
https://revistaresenha.emnuvens.com.br/revista/article/view/30. Acesso
em: 6 jul. 2023.
76
Análise crítica da implementação dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável da ONU sob a perspectiva da educação inclusiva da
pessoa com deficiência
Maria Elizabeth Lins 1
Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira 2
1 INTRODUÇÃO
A nova Agenda 2030, mantendo a importância da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, busca, agora sob a perspectiva da sustentabilidade, dar
continuidade aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Composta por 17
objetivos e 169 metas para serem alcançadas até 2030, a Agenda dedica sete
referências específicas às pessoas com deficiência, assegurando qualidade e
inclusividade na educação, oportunidades de aprendizagem, integração no mercado
de trabalho, empoderamento e inclusão social, acessibilidade em transportes públicos
seguros, globalização do acesso a espaços públicos inclusivos e disponibilidade de
dados confiáveis 3. A implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS) é uma questão de relevância global, e sua análise crítica, especialmente no
contexto da educação inclusiva para Pessoas com Deficiência (PCD) no ensino
fundamental brasileiro, apresenta desafios e oportunidades únicas.
Diante da busca por uma sociedade mais equitativa e consciente, examinar
como os ODS são incorporados e impactam a inclusão das PCD nas escolas torna-
se essencial. Portanto o nosso objetivo geral, no presente artigo, é examinar as
convergências entre os ODS, especificamente o ODS 4, e a efetivação da educação
inclusiva no Brasil, apontando sucessos, obstáculos e lacunas a serem considerados
1
Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo Centro Universitário de João Pessoa –
UNIPÊ. E-mail: [email protected].
2
Professora doutora do mestrado em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) e
docente titular da Universidade Estadual da Paraíba e do UNIPÊ.
3
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
10 de dezembro de 1948 proclamada pela resolução 217 A (III). Disponível em
http://www.pnud.org.br/popup/download.php?id_arquivo=1. Acesso em: out., 2023.
77
Análise crítica da implementação dos Objetivos de Desenvolvimento (...)
para promover uma educação acessível e de qualidade para todos. Dessa forma, tem-
se como problema: os ODS fomentam a educação inclusiva das pessoas com
deficiência?
A pesquisa utiliza revisão bibliográfica em plataformas como Google
Acadêmico e Scielo, abrangendo o período de 2015 a 2023. A análise qualitativa se
concentra em conceitos de educação inclusiva e deficiência, com referências legais
na Constituição Federal e Lei Brasileira de Inclusão. Os resultados destacam a
necessidade de políticas e culturas inclusivas para promover o desenvolvimento de
todas as pessoas, incluindo aquelas com deficiência.
O texto encontra-se estruturado em cinco seções. A primeira, expõe a evolução
do conceito de deficiência e os marcos regulatórios da inclusão dessas pessoas no
âmbito educacional; a segunda, examina o direito à educação na Lei Brasileira da
Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) e os desafios para a inclusão das pessoas
com deficiência; a terceira apresenta o marco evolutivo para a elaboração do ODS da
Agenda 2030 referente a educação de qualidade para todos; a quarta, aborda a
educação inclusiva da pessoa com deficiência à luz do objetivo de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) 4 da Agenda 2030; e, por fim, a quinta seção apresenta as
considerações finais da autora sobre os temas abordados.
2 A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O ACESSO À EDUCAÇÃO INCLUSIVA:
MARCOS REGULATÓRIOS
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022, aponta que existem ao menos
18,6 milhões de pessoas com mais de dois anos de idade com deficiência no Brasil,
o que corresponde a aproximadamente 9% da população 4 (IBGE, 2022). Outros
documentos, como o próprio censo realizado em 2010, apontam que esse número
pode ser duas vezes maior. Trata-se de uma parcela significativa da população, que
não pode ser ignorada, ou seja, é preciso compreender quem são e onde estão essas
pessoas, buscando promover políticas e ações inclusivas.
4 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios – 2022. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho
/17270-pnad-continua.html. Acesso em: 14 dez. 2023.
78
Maria Elizabeth Lins & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
O art. 1º da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, estabelece que essas pessoas são “aquelas que têm impedimentos de
longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com
diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em
igualdade de condições com as demais pessoas” 5. Essa definição é baseada no
modelo social de deficiência, em se considera que o ambiente possui relação direta
com as possibilidades e o grau de liberdade e autonomia conferidos à pessoa com
deficiência.
No entanto, esse conceito baseado no modelo social é relativamente recente.
Até o século XIX, por exemplo, o conceito de deficiência era baseado exclusivamente
em um modelo médico, sendo frequentemente associado à incapacidade e
inferioridade, resultando em tratamento discriminatório e segregação. Termos como
idiotas, imbecis, cretinos e retardados, eram utilizados e serviam para definir e
classificar doenças, quadros patológicos e as síndromes, principalmente as que
comprometem a inteligência 6.
Somente em meados do século XX é que houve um progresso significativo na
compreensão e no tratamento das pessoas com deficiência, como se pode destacar
a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que em seu artigo 1° estabelece que
“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados
de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade” 7. Ainda na referida Declaração, há menção expressa à pessoa com
deficiência, embora designada como “inválida”, com base no modelo médico do
conceito de deficiência, nos termos do art. 25:
Art. 25 - Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a
si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à
5 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência, de 13 de dezembro de 2006. Nova York: Assembleia Geral das Nações
Unidas, 2006. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2006/09/1283621. Acesso em: 15 dez. 2023.
6 CAMPOS, S. R.; SOUZA, M. T. S. Percurso sócio-histórico da educação inclusiva. In: SOUSA, I. V.
(Org.). Educação inclusiva no Brasil: história, gestão e políticas. Jundiaí: Paco Editorial, p. 37-45,
2019.
7
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
10 de dezembro de 1948 proclamada pela resolução 217 A (III). Disponível em
http://www.pnud.org.br/popup/download.php?id_arquivo=1. Acesso em: out., 2023.
79
Análise crítica da implementação dos Objetivos de Desenvolvimento (...)
segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou
outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle (ONU,
1948).
As legislações começaram a abordar a proteção dos direitos e o bem-estar das
pessoas com deficiência e, nas décadas de 1960 e 1970, vários movimentos de
direitos civis começaram a ganhar força, reivindicando a igualdade de direitos, a
acessibilidade e a inclusão social, de modo que conceito médico de deficiência, que
se concentrava apenas nas limitações físicas ou mentais, passou a ser questionado,
já que “anomalias físicas ou mentais, deformações congênitas, amputações
traumáticas, doenças graves e de consequências incapacitantes, sejam elas de
natureza transitória ou permanente, são tão antigas quanto a própria humanidade 8.
Nas décadas de 1980 e 1990, houve um reconhecimento crescente da
deficiência como influenciada por barreiras sociais e ambientais, não apenas pela
condição individual. Essa mudança culminou na visão social da deficiência,
fundamentada nos direitos humanos e na inclusão social. Agora, a deficiência é
compreendida como uma construção social, em que as barreiras e a exclusão social
são os principais impedimentos à participação plena na sociedade 9.
No entanto, embora os ordenamentos jurídicos em todo o mundo tenham
avançado, é importante ressaltar que as leis e os conceitos em relação às pessoas
com deficiência estão em constante evolução e ainda existem muitas barreiras para
efetivação dessas normas. Essa evolução reflete um movimento em direção a uma
abordagem mais inclusiva e baseada em direitos, reconhecendo a importância de
remover as barreiras sociais e promover a igualdade para as pessoas com deficiência.
No ordenamento jurídico brasileiro, foi adotado o mesmo conceito estabelecido
pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, citado
anteriormente, ratificada pelo Decreto nº. 6.949, de 25 de agosto de 2009 e pela
Portaria SEDH nº 2.344, de 03 de novembro de 2010. Mais tarde, a Lei Brasileira de
Inclusão (Lei nº 13.146/2015) reproduziu, ipsis litteris, no seu art. 2º, o conceito
adotado pela referida convenção. Desde então, por força deste regulamento e por
serem considerados pejorativos, os termos “deficiente” ou “portador de necessidades
8
SILVA, O. M. da. A Epopéia Ignorada: A História da Pessoa Deficiente no Mundo de Ontem e de Hoje.
São Paulo: CEDAS, 1987.
9
Campos; Souza, 2019.
80
Maria Elizabeth Lins & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
especiais” não são mais utilizados. O conceito moderno de pessoa com deficiência,
absorvido pela legislação brasileira, foi fundamental para a criação de políticas
voltadas especificamente para essa população, principalmente no que se refere à
educação inclusiva. O art. 28 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência
dispõe que: “incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar,
incentivar, acompanhar a avaliar:– o sistema educacional inclusivo em todos os níveis
e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida” (...) 10.
Na proposta da educação inclusiva, todos os alunos, com ou sem deficiência,
têm a oportunidade de conviver e aprender juntos, ou seja, seu objetivo é eliminar
qualquer obstáculo que limite ou dificulte o processo de aprendizagem e a participação
do aluno no processo educativo, promovendo a diversidade entre as crianças na
busca por uma mudança no paradigma educacional 11. Trata-se de uma política de
justiça social que alcança todos os alunos, sem distinção. A inclusão tem como
objetivo demonstrar que as pessoas são igualmente importantes em determinado
contexto e, com isso, as diversidades ou diferenças acabam enriquecendo o meio
escolar, possibilitando novas aprendizagens para alunos com e sem Necessidades
Educacionais Especiais - NEE, ou ainda para aqueles que por qualquer motivo tenham
dificuldade em se adaptar ao sistema escolar.
3 DIREITO À EDUCAÇÃO NA LBI E DESAFIOS PARA INCLUSÃO DA PESSOA
COM DEFICIÊNCIA NO ENSINO FUNDAMENTAL BRASILEIRO
A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) também denominada Estatuto da Pessoa com
Deficiência, foi elaborada a partir do marco teórico e organizacional instaurado pela
CDPD 12 a fim de assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos
direitos e das liberdades fundamentais pela pessoa com deficiência, visando a sua
inclusão social e sua cidadania, passando a beneficiar mais de 18 milhões de
brasileiros que possuem algum tipo de deficiência, de acordo com os dados do
IBGE 13. O capítulo IV e, especialmente, os artigos 27, 28 e 30 tratam do direito à
educação da pessoa com deficiência e pautam sobre ações afirmativas que
10 BRASIL. Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 15 des. 2023.
11 CAMARGO, E. P. Inclusão social, educação inclusiva e educação especial: enlaces e desenlaces.
Ciência & Educação, v. 23, n. 1, p. 1-6, 2017.
12
ONU, 2006.
13
IBGE, 2022.
81
Análise crítica da implementação dos Objetivos de Desenvolvimento (...)
assegurem a oferta de sistema educacional inclusivo em todos os níveis e
modalidades, de acordo com suas características, interesses e necessidades de
aprendizagem, com destaque para o primeiro, no sentido de que:
A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema
educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a
vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus
talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas
características, interesses e necessidades de aprendizagem 14.
Estabeleceu, ainda, o dever do Poder Público, dentre outros, de instituir projeto
pedagógico que institucionalize o atendimento educacional especializado (AEE),
assim como os demais serviços e adaptações razoáveis, para atender às
características dos estudantes com deficiência e garantir o seu pleno acesso ao
currículo em condições de igualdade, promovendo a conquista e o exercício de sua
autonomia 15.
Observa-se, ademais, que o parágrafo único do artigo 27 da LBI emana dos
preceitos da Lei nº 8069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com o
propósito de abranger as providências, a salvaguarda e a asseguração da dignidade
das crianças e dos adolescentes, bem como aponta o compromisso do Estado, da
família, da comunidade escolar e da sociedade em garantir uma educação de
excelência às pessoas com deficiência, protegendo-os de qualquer forma de violência,
negligência e discriminação 16.
É de suma importância enfatizar que esse preceito constitucional, reafirmado
pelo ECA, deve transformar a LBI em uma ferramenta eficaz para garantir o direito da
pessoa com deficiência à educação inclusiva. Nesse contexto, é crucial evitar que a
inclusão em ambientes comuns seja considerada uma ameaça por si só, tornando
necessárias garantias antecipadas e específicas. Deste modo, o artigo 28 da LBI
reafirma seu objetivo em definir as responsabilidades do poder público para assegurar
um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como
promover aprendizado ao longo da vida, condensado pontos fundamentais presentes
14
BRASIL, 2015.
15
Id., 2015.
16
Id.,2015.
82
Maria Elizabeth Lins & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva
(MEC - 2008), na Resolução CNE/CB Nº4/2009, na Resolução CNE/CB Nº4/2010 e
na Lei Nº13.005/2014, que estabelece o Plano Nacional de Educação (PNE).
As responsabilidades mencionadas incluem a especificação da oferta de
serviços e recursos de acessibilidade, a institucionalização do Atendimento
Educacional Especializado (AEE) no projeto político-pedagógico da escola. Além
disso, o artigo também aborda questões como a oferta de formação de professores,
pesquisas, planos para o atendimento educacional especializado, recursos e serviços,
a disponibilização de professores e outros profissionais de apoio ao AEE, bem como
a garantia de acessibilidade no espaço físico escolar. Também enfatiza a necessidade
de articulação intersetorial das políticas públicas para a inclusão educacional 17.
Além disso, a LBI determina o cumprimento das obrigações estabelecidas pelo
caput do artigo 28 pelos estabelecimentos de ensino particulares, inclusive proibindo
a cobrança adicional de taxas de qualquer natureza em mensalidades, anuidades e
matrículas, referentes ao atendimento escolar de pessoas com deficiência. Essa
medida estabelece multa de 03 (três) a 20 (vinte) salários-mínimos ao gestor escolar
ou autoridade competente que recusar a matrícula de aluno com transtorno do
espectro autista ou qualquer outro tipo de deficiência. É importante observar que
inserir estudantes com deficiência em sala de aulas tradicionais sem esses
aprimoramentos e modificações não constitui inclusão, ou seja, que:
A inclusão do aluno deficiente sensorial no ensino regular, é muito mais do
que a simples socialização, representa o combate à separação, o respeito e
a consideração da existência das diferenças humanas. A prática da exclusão
é uma grande colaboração à constatação de que uma escola da forma como
está, quer padronizar pessoas, em critérios dominantes 18.
Para isso, é crucial enfatizar a necessidade de um trabalho de sensibilização
entre sociedade, profissionais e políticas públicas. Esse direito precisa ser
conquistado legal e socialmente. Pois, a inclusão não se restringe apenas à escola,
17
BRASIL, 2015.
18
FERREIRA J. R. Reformas educacionais pós LDB: a inclusão do aluno com necessidades
especiais no contexto da municipalização. IN: SOUZA, D. B; FARIA, L. C. M. (Orgs)
Descentralização, municipalização e financiamento da Educação no Brasil pós LDB. Rio de Janeiro,
DP&A, p. 372-390, 2003.
83
Análise crítica da implementação dos Objetivos de Desenvolvimento (...)
mas abrange toda a sociedade. Ela deve ser debatida e discutida em todos os
segmentos sociais, pois envolve a escola, a comunidade e as políticas
governamentais 19. Nesse sentido, corroboramos com Bulgarelli (2010) quando afirma
que a inclusão se inicia com a construção de ambientes que promovem justiça, com
criatividade, soluções consideradas inovadoras para as adversidades que afetam a
sociedade.
As barreiras, que ainda são muitas, representam desafios significativos que
impedem ou dificultam a plena participação e aprendizado dessas pessoas no
ambiente escolar e não basta apenas existir as leis, decretos e resoluções,
obrigatoriedade de matrícula e rampas de acesso, há que se ter recursos nestas
escolas que vão receber essa clientela 20. Ressalte-se que dentre as diferentes
barreiras para a inclusão de pessoas com deficiência nas escolas, uma das mais
centrais é a barreira atitudinal, caracterizadas a partir de atitudes discriminatórias e
preconceituosas de colegas, professores e outros membros da comunidade escolar,
o que pode resultar em exclusão, estigmatização e isolamento das pessoas com
deficiência. O preconceito direcionado a esse grupo de pessoas é denominado
capacitismo, e é ele que faz com que muitas pessoas acreditem na falsa ideia de que
os estudantes com deficiência são menos capazes e podem atrasar a aprendizagem
dos demais.
4 MARCO EVOLUTIVO PARA A ELABORAÇÃO DA AGENDA 2030
O processo de construção da Agenda 2030 teve início em 2012, com a
Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável (conhecida
como Rio+20). Neste evento, os Estados-membros da ONU congregaram-se com o
propósito de delinear a agenda de desenvolvimento pós-2015, buscando incorporar
inovação e ampliar a participação dos diversos segmentos da sociedade no fomento
do desenvolvimento sustentável 21.
Este processo envolveu a renovação de compromissos práticos com os
objetivos de desenvolvimento e que resultou num documento político específico que
19PIOVESAN, F. Temas de Direitos Humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
20 CAMARGO, E. P. Inclusão social, educação inclusiva e educação especial: enlaces e desenlaces.
Ciência & Educação, v. 23, n. 1, p. 1-6, 2017.
21 HADDAD, P. R. Objetivos do Desenvolvimento Sus tentável (ODS) – Narrativas para a
construção do futuro. Belo Horizonte: Caravana Editorial, 2023.
84
Maria Elizabeth Lins & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
contém medidas claras e práticas para a implementação do desenvolvimento
sustentável. Desta reunião resultou o documento conhecido como "O Futuro que
Queremos". Este processo continuou gerando a criação, em 2013, do "Grupo Aberto
de Trabalho" pela Assembleia Geral da ONU, o qual tinha por finalidade discutir e
deliberar sobre propostas para 17 novos Objetivos, visando a substituição dos antigos
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) 22.
A formulação destes 17 novos objetivos foi igualmente concretizada por meio
de um amplo envolvimento da sociedade civil, do setor privado e de governos locais
e nacionais, representando uma participação sem precedentes tanto no processo de
formulação quanto no de implementação de metas internacionais.
Então podemos afirmar que o marco para elaboração da Agenda 2030 é
composto por uma série de instrumentos jurídicos, tratados internacionais,
declarações, resoluções e compromissos estabelecidos pelos Estados-membros da
ONU, sendo fundamentado em acordos multilaterais, incluindo os tratados de direitos
econômicos, sociais e culturais, os tratados de direitos civis e políticos e a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, sendo este último o documento fundador e gerador
dos demais Pactos e várias Convenções, Declarações e Planos de Ação neste
campo 23.
No contexto nacional, a transformação significativa nos direitos sociais e econômicos
não resultou apenas da Constituição Federal de 1988, mas também da conjunção dessa
promulgação com o engajamento do Brasil em Convênios, Conferências, Pactos e Planos de
Ação da ONU, visando concretizar os direitos humanos delineados na Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948. Os Estados-membros da ONU incorporam esses
compromissos em suas legislações, políticas e planos de ação, estabelecendo marcos
normativos que respaldam a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS) em nível nacional. Em resumo, esses instrumentos fornecem uma base jurídica sólida
para a elaboração progressiva dos ODS da Agenda 2030 da ONU, destacando princípios
como dignidade, igualdade, não-discriminação e colaboração entre Estados, setor privado,
sociedade civil e outras partes interessadas na promoção do bem-estar humano, prosperidade
econômica e sustentabilidade ambiental.
22 BARBIERI, J. C. Desenvolvimento sustentável: das origens à Agenda 2030. São Paulo: Vozes,
2020.
23
Haddad, 2023.
85
Análise crítica da implementação dos Objetivos de Desenvolvimento (...)
Para o Brasil, a Agenda 2030 e os ODS representavam uma excelente
oportunidade de se destacar no cenário internacional, além de promover o
aperfeiçoamento das políticas nacionais alinhadas as necessidades globais. Sendo
assim, logo após a assinatura do documento, em 2015, o Governo Federal passou a
desenvolver diversas estratégias para incorporar e territorializar os ODS no país, tais
como a criação da Comissão Nacional para os Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável (CNODS), que lida com a governança nacional da Agenda 2030, além da
adequação das metas à realidade nacional com a criação dos indicadores nacionais
para se proceder com o monitoramento e acompanhamento dos objetivos 24.
No campo da inclusão da pessoa com deficiência, os ODS trazem ao menos
sete referências específicas sobre as pessoas com deficiência, com objetivo de
assegurar a educação inclusiva e a oportunidade de aprendizagem, nos termos do
ODS 4; o emprego pleno, produtivo e de igual remuneração, conforme estabelece o
ODS 8; o acesso aos transportes públicos seguros e o acesso universal a espaços
públicos seguros e inclusivos, nos termos do ODS 11 e; a disponibilidade de dados
confiáveis, conforme preconiza o ODS 17 25.
5 O ODS 4 E SUA ANÁLISE À LUZ DA INCLUSÃO EDUCACIONAL DA PESSOA
COM DEFICIÊNCIA
A proposta deste capítulo é evidenciar o ODS 4 e suas metas correspondentes
à luz da inclusão educacional da Pessoa com deficiência no ensino fundamental
brasileiro que prevê: “Assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade e
promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”, realçando
aquelas que trazem referência específicas quanto às pessoas com deficiência
expressamente em seu texto, bem como apontando as lacunas nas demais metas que
abordam a educação de forma genérica e não citam especificamente o termo
referente a esta população vulnerável 26.
Dentre as Metas referentes ao tema ora proposto, destacam-se as Metas 4.5 e
4A, que passaremos a analisar a seguir. Inicialmente a Meta 4.5 preceitua:
24 BULGARELLI, R. Diversos somos todos. São Paulo: Cultura, 2010.
25
ONU, 2015.
26 SOUZA, M. F.; AVELAR, K. E. S.; MATTOS, E. H. M. A integração e inclusão de crianças com
deficiência nas escolas sob o viés dos objetivos do desenvolvimento sustentável da ONU. Revista
Augustus, v. 24, n. 49, p. 87-99, 2019.
86
Maria Elizabeth Lins & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
Até 2030, eliminar as desigualdades de gênero e raça na educação e garantir
a equidade de acesso, permanência e êxito em todos os níveis, etapas e
modalidades de ensino para os grupos em situação de vulnerabilidade,
sobretudo as pessoas com deficiência, populações do campo, populações
itinerantes, comunidades indígenas e tradicionais, adolescentes e jovens em
cumprimento de medidas socioeducativas e população em situação de rua
ou em privação de liberdade 27.
Este é o primeiro destaque textual nas metas que utiliza o termo “sobretudo as
pessoas com deficiência” e retoma a proteção que foi conferida pela CF/88,
notadamente no que se refere aos seus objetivos e princípios voltados à garantia de
um sistema educacional público, universal, gratuito e de qualidade, os quais se
refletiram nas metas adotadas no PNE 2014-2024, o governo assumiu em 2015, como
instrumento obrigatório, o dever de integrar o conteúdo do ODS 4 e suas respectivas
metas ao planejamento educacional brasileiro 28.
Nesse sentido, a união desse ODS com as metas preconizadas no principal
eixo de planejamento da política educacional brasileira, o Plano Nacional de Educação
(PNE), instituído mediante a Lei 13.005/2014, contribui para a criação de um conjunto
composto por 20 metas que, visam ser alcançadas até 2024. Essas metas denotam o
empenho brasileiro em universalizar a educação básica com excelência,
pressupondo, em certa medida, muitos dos elementos presentes nas metas correlatas
ao ODS 4. Este é o meio institucional que traçará o caminho para atingir o pleno
desenvolvimento sustentável no acesso, na equidade e na inclusão, bem como na
qualidade e nos resultados da aprendizagem, no contexto de uma abordagem de
educação ao longo da vida.
Por sua vez, a Meta 4.A se propõe a ofertar infraestrutura física escolar
adequada às necessidades da criança, acessível às pessoas com deficiências e
sensível ao gênero, que garanta a existência de ambientes de aprendizagem seguros,
não violentos, inclusivos e eficazes para todos. A novidade da Agenda 2030 para a
27
ONU, 2015.
28 COSTIN, C. Educar para um futuro mais sustentável e inclusivo. Estudos avançados, v. 34, n. 100,
p. 43-52, 2020.
87
Análise crítica da implementação dos Objetivos de Desenvolvimento (...)
Educação é o foco na expansão do acesso, na inclusão e na equidade, assim como
na qualidade e nos resultados da aprendizagem em todos os níveis, e desta maneira,
garantir uma educação inclusiva para todos por meio do desenvolvimento e da
implementação de políticas públicas transformadoras que respondam à diversidade e
às necessidades dos alunos e que lidem com as múltiplas formas de discriminação
com situações, inclusive emergenciais, que impedem a realização do direito à
educação 29.
Políticas e estratégias baseadas em evidências para lidar com a exclusão
podem incluir a eliminação das barreiras de custo, por exemplo, por meio de
programas de transferência de renda, da oferta de merenda escolar e serviços de
saúde, de serviços de transporte e de distribuição de materiais didáticos, de
programas de segunda chance/reingresso, de instalações escolares inclusivas, do
treinamento de professores em educação inclusiva e de políticas linguísticas para
combater a exclusão 30.
Podemos aferir que, das 10 Metas do ODS 4, apenas duas trazem textualmente
a referência às PCDs, o que pode suscitar crítica pelo uso genérico de palavras e
conceitos como “outros”, “todos os meninos e meninas”, “jovens e adultos”, deixando
de reforçar o cuidado com este importante segmento que podem limitar o acesso a
dados que demonstram o panorama da real situação da inclusão 31.
Assim podemos dizer que educação inclusiva é a garantia do direito à diferença
e que deve reconhecer que cada estudante, com ou sem deficiência, é único e,
portanto, com modo de aprender diferente em relação aos demais, sendo uma
perspectiva que tem como pressuposto que toda criança aprende e que esse percurso
singular. Assim, não há “alunos de inclusão”. Ou a inclusão diz respeito a todos os
alunos ou não é inclusão” 32.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É inegável o avanço ocorrido neste começo de Século XXI em nossa sociedade
ou até mesmo no mundo em relação aos direitos das pessoas com deficiência,
29 Souza; Avelar, Mattos, 2019.
30 PAIVA, T. O que falta para a escola brasileira praticar a educação inclusiva. Publicado em: 11
de setembro de 2018. Disponível em: https://educacaointegral.org.br/reportagens/o-que-falta-para-a-
escola-brasileira-praticar-a-educacao-inclusiva/. Acesso em: 25 ago. 2023.
31
Costin, 2020.
32
Paiva, 2018.
88
Maria Elizabeth Lins & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
culminando com a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
e a determinação do Brasil em ratificá-la, tendo como consequência ganhar o status
de norma constitucional. A Lei Brasileira de Inclusão, por sua vez, organizou direitos
existentes de modo esparso, em uma única norma, de modo que atualmente, há um
estatuto dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil. Como observamos, a
nova definição de deficiência resulta do não atendimento às demandas funcionais de
um indivíduo em seu ambiente físico e social, tornando crucial considerarmos essa
definição como uma responsabilidade social urgente. Para assegurar a plena inclusão
e efetivação dos direitos constitucionalmente consagrados para pessoas com
deficiência, visando a construção de uma “sociedade solidária, diversificada e livre de
preconceitos”, é imprescindível que a sociedade promova as mudanças necessárias
para viabilizar o exercício desses direitos e se prepare para abraçar a diversidade. A
Agenda 2030 e seu quarto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) atuam no
sentido de atender a essa demanda social.
Apesar dos avanços no âmbito jurídico-institucional, ainda nos encontramos
diante das dificuldades geradas por uma cultura que, ao longo de séculos, tem
coexistido com níveis alarmantes de analfabetismo, marginalização social e exclusão
que parecem indestrutíveis, portanto quaisquer medidas que tendem a diminuir o
apoio financeiro visando garantir o direito à educação de qualidade no Brasil não
apenas contradizem o compromisso global assumido em 2015, mas também
enfraquecem os pilares fundamentais da Constituição Federal de 1988 e seus
mecanismos de planejamento de ações afirmativas, investimento em infraestrutura
acessível, formação de profissionais capacitados e conscientização de toda a
comunidade escolar sobre a importância da inclusão e do respeito à diversidade.
Enquanto instrumento de força universal, podemos responder que os ODS
fomentam a educação inclusiva das pessoas com deficiência no Ensino Fundamental
brasileiro quando servem de princípio norteador para implementação de ações
afirmativas dentro das políticas de Estado, para muito além dos governos,
minimizando o reflexo de retrocessos que venham a impactar negativamente as ações
de direitos humanos. Até 2030, espera-se uma estatística ascendente dos
indicadores, nesse caso, é importante verificar em que medida o conteúdo do ODS 4
poderá trazer novos elementos de reforço que permitam o avanço em relação aos
objetivos e às metas internamente estabelecidos.
89
Análise crítica da implementação dos Objetivos de Desenvolvimento (...)
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desenvolvimento sustentável da ONU. Revista Augustus, v. 24, n. 49, p. 87-
99, 2019.
92
Exame da reserva de vagas nas casas legislativas para
pessoas com deficiência como ação garantidora do
exercício do direito político
Leandro dos Santos 1
Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira 2
André Ricardo Fonsêca da Silva 3
1 INTRODUÇÃO
A história da implantação do sistema de cotas no Brasil teve sua gênese
na constatação de que nossa sociedade sempre vivenciou situações históricas
de desigualdades que precisavam ser combatidas. Negros, quilombolas, índios
e mulheres passaram a ter visibilidade após uma realidade de exclusão que os
atingia não só pela falta de paridade de direitos em comparação com outros
indivíduos, mas, sobretudo, pelo desrespeito à dignidade enfrentado no dia a
dia, o que exigiu, em face dessa situação de inequívoca vulnerabilidade, ação
afirmativa que teve o objetivo de resguardar a cidadania destas pessoas a partir
da igualdade de direitos e de oportunidades.
Posteriormente, como será debatido neste artigo, as pessoas com
deficiência foram também incluídas num processo de valorização de dignidade
humana, que ainda não se encerrou, exatamente pelo fato de que, até hoje, são
enfrentadas situações cotidianas de discriminação. Assim, os sistemas de cotas
adotados no Brasil, a despeito de críticas contundentes, podem ser mais um
mecanismo de inclusão social.
Entretanto, a tutela de alguns direitos das pessoas com deficiência não
esgotou o rol das necessidades a elas inerentes e que precisam ser debatidas e
resolvidas. O caminho para a efetividade de uma ação afirmativa com esta
dimensão deve ser contínuo, enxergando aquilo que representa barreira para
1 Mestrando em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo Centro Universitário de João Pessoa - UNIPE
2 Doutora em Direito pela Universitat Valencia-Espanha
3 Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ
93
Exame da reserva de vagas nas casas legislativas para (...)
uma existência com visibilidade e dignidade.
Partindo destas premissas, a criação, no âmbito eleitoral brasileiro, de
cota destinada às pessoas com deficiência, que pelas próprias condições
pessoais estão alijadas do cenário das decisões políticas mais relevantes do
país, exatamente pela baixa ocupação dos cargos eletivos, deve ser entendido
como pressuposto essencial para a formatação de ambiente favorável ao debate
e enfrentamento das desigualdades derivadas desta condição especial.
Entende-se que, inseridas nas casas legislativas, será mais factível que
as pessoas com deficiência tenham mais oportunidades de levar ao centro das
decisões político-administrativas de governos e da sociedade em geral
propostas que possam gerar uma transformação social na luta contra a
desigualdade e, via de consequência, formatar um processo permanente de
inclusão dessa categoria de indivíduos vulneráveis.
Daí surge o problema que o artigo quer enfrentar; isto é: examinar se a
implantação de cota de vagas nas casas legislativas constitui efetiva política
pública para o exercício pleno dos direitos políticos pelas pessoas com
deficiência. A hipótese que lastreia esse artigo é de que a cota de vagas nas
eleições proporcionais brasileiras representa efetiva política pública de inclusão
e garantia do exercício pleno dos direitos políticos das pessoas com deficiência.
Identificados o problema e a hipótese, o artigo detalha aspectos históricos
da política pública de cotas no Brasil; explicita o tema do sistema de cotas, à luz
de princípios constitucionais, tais como o da igualdade e o da dignidade da
pessoa humana; aborda a composição dos órgãos diretivos dos partidos
políticos e o incentivo à participação político-eleitoral das pessoas com
deficiência; e, finalmente, examina se a implantação da cota de vagas nas
eleições proporcionais é política pública eficiente à garantia do exercício dos
direitos políticos pelas pessoas com deficiência.
94
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira & André
Ricardo Fonsêca da Silva
2 A PROTEÇÃO LEGAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
O presente artigo, ao examinar algumas leis atualmente inseridas no
ordenamento jurídico brasileiro, que tutelam direitos para combater situações
de exclusão, não tem a intenção de alcançar a totalidade das normas,
municipais, estaduais ou federais, que guardam relação com este tema da
defesa dos direitos políticos das pessoas com deficiência.
2.1 A Constituição Federativa do Brasil
Fazendo-se uma referência inicial à atual Constituição da nossa República,
vê-se que o Estado brasileiro estabeleceu a igualdade como valor supremo da
sociedade e a dignidade humana como a razão de ser do próprio Estado
Democrático de Direito. Especificamente sobre as pessoas com deficiência, a
Constituição prevê a garantia da não-discriminação (art. 7º, Inciso XXXI); o
direito à seguridade social (art. 204, inciso V); a inclusão (art. 208, inciso III); e a
garantia de assistência social (art. 203, inciso IV).
Em relação ao princípio da igualdade, que se caracteriza pelo fundamento
da promoção igualitária de todos os indivíduos, num viés de combate às
injustiças sociais, a doutrina destaca a igualdade material, que se distingue da
formal por permitir que certas pessoas possam ter tutela diferenciada de
proteção a partir de suas necessidades específicas. Busca-se, assim, a
igualdade plena, mediante a definição de ações afirmativas que possam gerar
inclusão para combater a exclusão.
2.2 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, teve como
consequência mais marcante a universalização dos direitos da pessoa humana
dentro de um sistema de proteção, através de Tratados Internacionais. A partir
deste postulado da Declaração, a Convenção sobre Direitos das Pessoas com
Deficiência, de 30 de março de 2007, na cidade de Nova Iorque, foi assinada e
posteriormente promulgada no Brasil pelo Decreto nº 6.949 de 25 de agosto de
2009.
95
Exame da reserva de vagas nas casas legislativas para (...)
É preciso, pois, reconhecer a relevância da defesa dos direitos das
pessoas com deficiência destacando a dignidade como valor inerente à pessoa
humana e compreender que a Declaração Universal dos Direitos do Homem é a
manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser
considerado humanamente (BOBBIO, 2022).
A Convenção apresenta 23 princípios que dão azo aos objetivos por ela
traçados, destacando-se: o reconhecimento da dignidade e o valor inerente a
todos os membros da família humana e os seus direitos iguais e inalienáveis
como base para a fundação da liberdade, justiça e paz no mundo; a
compreensão da universalidade, da indivisibilidade, da interdependência e da
inter-relação de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, bem
como a necessidade de garantir que todas as pessoas com deficiência os
exerçam plenamente, sem discriminação.
A luta iniciada a partir deste rol descrito pela Convenção, é pelo
reconhecimento da relevância das pessoas com deficiência no seio social; da
sua autonomia e independência individual, o que significa a liberdade de fazerem
as suas próprias escolhas, sendo ativamente incluído no processo de políticas e
programas, notadamente, naqueles que diretamente estejam a elas ligados.
Dentre tantos direitos previstos na Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência, destaca-se a participação na vida política, como está
inserido no art. 29 (29º de acordo com a numeração da Convenção), ponto fulcral
deste artigo. Neste horizonte, os Estados signatários da Convenção assumem a
obrigação de garantir às pessoas com deficiência os direitos políticos e a
oportunidade de os gozarem, em condições de igualdade com as demais
pessoas. A propósito deste pensamento, que revela o sentido da própria
democracia, deve ser ela um valor universal, significando a mais irrestrita
participação: na família, na escola, na comunidade, no sindicato, nos processos
de produção, na construção do saber e, logicamente, na política, nos partidos e
na organização do Estado (BOFF, 2015).
É possível pensar os direitos das pessoas com deficiência nesta
dimensão de prioridade e de concreticidade. Não basta descrever num texto de
96
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira & André
Ricardo Fonsêca da Silva
lei direitos mudos, sem voz. E quando houver voz, é indispensável o eco que
possa produzir equidade. As pessoas com deficiência querem e merecem
efetividade da proteção que lhes é dirigida.
À luz da mencionada Convenção faz-se mister avaliar como se daria a
inclusão política das pessoas aqui tratadas. A norma em questão fala em
procedimentos de eleição, instalações e materiais que deverão ser apropriados,
acessíveis e fáceis de compreender e utilizar, como já ocorre. A Justiça Eleitoral
brasileira tratou de regulamentar a facilitação do exercício do voto pela pessoa
com deficiência, tal como evidenciado pelo Programa de Acessibilidade
instituído pela Resolução-TSE nº 23.381/2012, o que representou um avanço.
Na concorrência dos cargos eletivos; isto é: quando as pessoas com
deficiência estiverem na disputa dos mandatos eletivos, a Convenção
estabelece a promoção de um ambiente em que elas possam participar efetiva
e plenamente na condução dos assuntos de interesses sociais, econômicos e
políticos, sem discriminação e em condições de igualdade com os demais e
encorajar a sua participação nos assuntos públicos.
Como dito, o rol das legislações voltadas à proteção das pessoas com
deficiência e que estão sendo tratadas neste artigo não esgota a proteção que
lhes é atribuída por outros diplomas legais. O que falta ou pode estar faltando,
na verdade, é uma vontade política séria para que a implementação dos direitos
previstos na Convenção seja a expressão do reconhecimento de uma dívida
social gigantesca e que precisa de solução definitiva.
2.3 Plano viver sem limites
Já em 2011, pelo Decreto nº 7.612, de 17 de novembro daquele ano, surge
o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Plano Viver Sem
Limites – que veio compor o ordenamento jurídico pátrio com o objetivo de
promover, por meio da integração e articulação de políticas, de programas e de
ações, o exercício pleno e equitativo de direitos das pessoas com deficiência,
nos termos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e seu Protocolo Facultativo, aprovados por meio do Decreto
97
Exame da reserva de vagas nas casas legislativas para (...)
Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, com status de emenda constitucional,
e promulgados pelo Decreto n º 6.949, de 25 de agosto de 2009 (BRASIL, 2011).
O referido Plano tratou de especificar as suas diretrizes, baseadas, em
resumo, na garantia de um sistema educacional inclusivo; na ampliação da
participação das pessoas com deficiência no mercado de trabalho; na prevenção
das causas de deficiência; na ampliação e qualificação da rede de atenção à
saúde da pessoa com deficiência; na ampliação do acesso das pessoas com
deficiência à habitação adaptável e com recursos de acessibilidade; e na
promoção do acesso, do desenvolvimento e da inovação em tecnologia
assistiva.
Portanto, acolher e proteger as pessoas com deficiência é expressão de
respeito, de solidariedade; é plena ação de reinserção social. Por fim, garantir
às pessoas com deficiência acessibilidade é uma forma de se permitir vida com
qualidade. Acessibilidade seria a mínima ação afirmativa visando defender
essas pessoas. É neste cenário que a doutrina destaca que a dignidade nasce
com a pessoa, é valor imprescindível, incindível e independente de qualquer
reconhecimento por parte do Estado, que deve ser protegida por se tratar de
direito natural, em respeito aos direitos e garantias individuais (SILVA;
MARIGHETO, 2022).
Interessante observar que, embora o Plano seja de 2011 – Decreto nº
7.612/201- e tenha ocorrido a revogação de alguns de seus artigos em 2019,
pelo advento do Decreto nº 9.784/2019, vê-se que essa revogação parcial
atingiu apenas os arts. 5º, 6º, 7º, e o art. 12, mantendo-se a base normativa
inicial, e com a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em 2015,
passaram a coexistir sistemas jurídicos que se completam, que dialogam na
visão e no propósito de proteger os interesses das pessoas com deficiência
Claro resta que o Plano Viver sem Limites, como justificado em sua
apresentação, é sobretudo um compromisso do Brasil com as prerrogativas da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, e que foi
ratificada com equivalência de emenda constitucional, significando, também,
que o País tem avançado na implementação dos apoios necessários ao pleno
98
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira & André
Ricardo Fonsêca da Silva
e efetivo exercício da capacidade legal por todas e cada uma das pessoas com
deficiência.
2.4 O Estatuto da Pessoa com Deficiência
Neste ponto do artigo, serão examinadas as disposições da Lei nº 13.146,
de 06 de julho de 2015, que se denominou Estatuto da Pessoa com Deficiência
Na forma do Capítulo IV, do Título III, o Estatuto da Pessoa com Deficiência
estatui que os sujeitos de direito por ela protegidos têm todos os direitos políticos
e a elas se deve dar oportunidade de exercê-los em igualdade de condições
com as demais pessoas.
Sobre o direito ao exercício do voto, acentua-se a necessidade de que o
procedimento da votação, seja em relação aos locais ou aos mecanismos
eletrônicos de captação do sufrágio, permita, de forma absoluta, acessibilidade
para todas as pessoas (incluindo, por óbvio, as PcD), com vedação expressa da
montagem de seções eleitorais exclusivas para elas, tal como retratado no art.
76, § 1º, inciso I, do Estatuto, disposição que foi reproduzida na Resolução nº
23.659/2021, § 3º, do art. 14.
Como se vê, o Estatuto tratou de garantir à pessoa com deficiência, no
momento do exercício do direito de votar, acessibilidade ao local da seção
eleitoral e meios que possibilitem a utilização da urna eletrônica. Ainda se
referindo ao exercício do direito de votar, nos termos do que preconiza o inciso
IV, do art. 76, é possível que à pessoa com deficiência seja dado auxílio para o
momento da votação. Neste caso, o eleitor ou eleitora deficiente terá o poder de
escolher a pessoa que irá ajudá-lo – Resolução-TSE nº 23.611/2019.
Noutro trilho, o inciso II, do art. 76 do Estatuto em análise, define política
de inclusão para o incentivo da pessoa com deficiência se candidatar e
desempenhar quaisquer funções públicas em todos os níveis de governo, o que
será abordado na sequência.
99
Exame da reserva de vagas nas casas legislativas para (...)
3 DIREITO POLÍTICO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E SUA
MATERIALIZAÇÃO POR INTERMÉDIO DA RESERVA DE VAGAS
Como mencionado anteriormente, no Plano Nacional de Proteção aos
Direitos das Pessoas com Deficiência, na Convenção sobre os mesmos direitos,
e ainda no âmbito do Estatuto sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
há disposições sobre o direito político das pessoas tuteladas nestes
instrumentos normativos.
Contudo, o que se quer debater neste artigo é o incremento da
participação política das pessoas com deficiência por intermédio da reserva de
vagas nas casas legislativas, diferenciando-se do sistema de reserva de vagas
no registro de candidaturas aplicado na cota de gênero, que foi instituída no §
3º, do art. 10 da Lei nº 9.504/97, com a redação que foi dada pela Lei nº
12.034/2009. Deste modo, o objetivo é tentar entender se a cota de vagas nas
casas legislativas constitui efetiva política pública para o exercício pleno dos
direitos políticos pelas pessoas com deficiência.
Não é difícil imaginar os obstáculos que uma pessoa com deficiência pode
enfrentar para garantir o exercício de seu direito político. A cota de gênero que
garante às mulheres participação mínima – 30% - no número de candidaturas
registradas perante a Justiça Eleitoral, nas eleições proporcionais municipais,
estaduais e nacionais pode ser invocada como razão de compreender as
dificuldades em torno das pessoas com deficiência participarem do ambiente
político-eleitoral em nosso País. É que, desde a implantação desse sistema de
discriminação positiva que envolve o gênero feminino, fazendo referência às
eleições na Paraíba, não há resultados concretos sobre o incremento da
participação da mulher no cenário político-eleitoral.
Alguns números relacionados às eleições estaduais em nosso Estado,
extraídos da base de dados do Tribunal Regional Eleitoral, dos anos de 2018 e
2022, para a composição da Assembleia Legislativa estadual, além das eleições
municipais de 2016 e 2020, nos três maiores colégios eleitorais – João Pessoa,
Campina Grande e Patos -, podem ser um referencial desta realidade de
(in)efetividade da cota de gênero. Veja-se: na eleição da Assembleia Legislativa
100
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira & André
Ricardo Fonsêca da Silva
da Paraíba, no ano de 2022, das 36 vagas existentes, apenas 6 foram ocupadas
por mulheres. Nas eleições de 2018, foram 5 mulheres eleitas. Em resumo: na
eleição de 2018, para a Assembleia Legislativa do nosso Estado, 5 mulheres
eleitas representam apenas a conquista de 13,9% das vagas. Na mesma eleição
de 2022, considerando a eleição de 6 mulheres, o percentual foi de 16,7%, o que
significa um predomínio absoluto das candidaturas dos homens que
preencheram mais de 80% dos cargos eletivos disputados.
Nas eleições municipais de 2016 e 2020, nos três colégios eleitorais
citados, a realidade é praticamente a mesma; isto é: João Pessoa, com 27 vagas
disponíveis, nas eleições de 2016, apenas 3 mulheres foram eleitas; na mesma
eleição em 2020, só uma mulher foi eleita. Em síntese, 3 mulheres eleitas
representam pouco mais de 10% das vagas da Câmara de Vereadores da
Capital paraibana. Já na eleição de 2020, o percentual é ínfimo: cerca de 4%.
Portanto, os homens dominam totalmente a representação política nas Câmara
de Vereadores da Capital. Em Campina Grande, na eleição de 2016, com um
quadro de 23 vagas em disputa, apenas uma mulher foi eleita, representando
cerca de 4% das vagas. Na eleição de 2020, apesar do incremento de
candidaturas femininas vitoriosas, 7, comparando-se com as eleições de 2016,
o percentual de eleitas fica situada próximo do mínimo das candidaturas
registradas, confirmando um predomínio masculino que ocupou 70% das vagas
existentes. Em Patos, na eleição municipal de 2016, com um quadro de 17 vagas
em disputa, 4 mulheres foram eleitas, perfazendo um percentual de pouco mais
de 20%, registrando, de igual modo, um predomínio masculino substancial, que
ocupou quase 80% das vagas. Na eleição de 2020, foram eleitas 3 mulheres,
que traduzem um percentual inferior a 20% das vagas, e mais uma vez os
homens dominaram a Câmara de Vereadores daquela cidade sertaneja.
Raciocinando da mesma forma, para uma reflexão sobre a situação de
exclusão das pessoas com deficiência, é lógico perguntar: No Estado da
Paraíba, qual é o percentual de pessoas com deficiência eleitas no último pleito
de 2022? Nas duas maiores cidades da Paraíba – João Pessoa e Campina
Grande -, qual o percentual de pessoas com deficiência eleitas para as câmaras
de vereadores, respectivas, nas eleições de 2020?
101
Exame da reserva de vagas nas casas legislativas para (...)
Embora a Justiça Eleitoral não disponha, ainda, de dados a permitir a
análise, estatisticamente falando, do crescimento ou não do número de pessoas
com deficiência ocupando os mandatos eletivos, é possível concluir, pela
ausência de informação em contrário, que essa participação é pequena, para
não dizer, insignificante, o que sugere que não houve uma expansão da ação
afirmativa que visa incrementar a participação delas no cenário da política
nacional.
Se a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência é de 2007; se o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência é de 2011; e se o Estatuto dos Direitos da Pessoa com Deficiência é
de 2015, logicamente seria inevitável que, nas eleições municipais de 2016 e
2020, e nas eleições estaduais de 2018 e 2022, razoável ou substancial
mudança tivesse ocorrido no preenchimento das vagas das eleições
proporcionais por pessoas com deficiência.
Na Assembleia Legislativa da Paraíba, composta de 36 deputados(as),
apenas uma candidata eleita declara sua condição de pessoa com deficiência,
no caso, a deputada Cida Ramos, como se anunciou no sítio da ALPB, em
matéria intitulada Especial Mês da Mulher, do ano de 2019.
Em João Pessoa, Capital, a Câmara de Vereadores tem 27 vagas de
vereador/vereadora (número elevado para 29, nos termos da alteração da Lei
Orgânica do Município ocorrido em 2023), e não se tem dado ou informação da
existência de qualquer parlamentar que tenha declarado sua condição de
pessoa com deficiência (www.joaopessoa.pb.leg.br). De igual modo, Campina
Grande, a segunda maior cidade do Estado, com uma Câmara de Vereadores
composta de 23 vereadores, não noticia que algum parlamentar tenha se
declarado como pessoa com deficiência (www.camaracg.pb.gov.br).
Qual a razão, pois, do aparente fracasso de toda a construção normativa
que procurou incluir as pessoas com deficiência no ambiente dos cargos
eletivos, a partir do realce dos direitos políticos? Qual a razão de anos de
incentivo ao reconhecimento dos direitos políticos das pessoas com deficiência
não ter gerado um efeito concreto no número de candidaturas vitoriosas?
102
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira & André
Ricardo Fonsêca da Silva
Nesta equação, que interliga cidadania com direitos civis, liberdade e
direitos políticos, a pessoa com deficiência só alcançará o resultado prático
pretendido quando houver junção de vontades. É por isso que as respostas a
estas indagações ora lançadas são complexas, mas alguns fatores podem
explicar a realidade da ineficiência dessa política inclusiva.
Dentre os espaços que, historicamente, apartaram do coletivo as pessoas
com deficiência, um deles se mostra simbolizado nas arenas de representação
política, composta quase que exclusivamente por pessoas sem deficiência
(OLIVER, 1990).
Num primeiro plano, é factível que haja falta de ambiente propício às
candidaturas dentro dos partidos políticos. Se a agremiação partidária não
estabelece internamente o objetivo de incentivar candidaturas de pessoas com
deficiência, definindo em seu regimento diretrizes para alcançar essa meta, a
consequência da omissão é o esvaziamento do interesse destas pessoas pelas
disputas políticas. Lançar-se candidato ou candidata sem o apoio do partido ou
confederação, a chance de vitória é mínima. Aliás, seria difícil até a obtenção de
vaga na respectiva convenção quando do momento da escolha das
candidaturas.
Uma vez candidato ou candidata, ultrapassada a barreira da indicação, a
pessoa com deficiência ainda percorrerá longo caminho para a consagração nas
urnas. O segundo degrau dos obstáculos para a participação da pessoa com
deficiência no processo eleitoral é receber os recursos do fundo partidário
respectivo. Os gastos de uma eleição, na moldura brasileira, são consideráveis.
Fala-se aqui apenas dos gastos legalmente permitidos e que serão objetos de
prestação de contas.
Em verdade, com a definição do fundo partidário, e tendo por base a
eleição de 2020, a Resolução n° 23.604/2019, do TSE, estabeleceu regra de
cota de 30% do montante recebido para as candidaturas de mulheres, mas não
definiu regra de divisão igualitária destes recursos com os demais partícipes. A
conclusão que se tem desta assimetria, que exige repartição equânime dos
103
Exame da reserva de vagas nas casas legislativas para (...)
recursos partidários, é que a pessoa com deficiência precisa enfrentar um
gigantesco abismo para levar sua candidatura à realidade e à vitória, na medida
que nem a garantia de recursos para gastos mais elementares ela pode ter.
O terceiro obstáculo para uma candidatura de pessoa com deficiência é
a falta de oportunidade para se ter visibilidade a partir de espaços nos guias
eleitorais. É verdade que o TSE, respondendo à Consulta (CTA 0600483-06)
sobre o tema, garantiu às mulheres, por exemplo, tempo mínimo nos guias
eleitorais como forma de expressar a ideia de igualdade de oportunidade.
Todavia, as pessoas com deficiência não foram agraciadas com idêntico direito
ou proteção.
O TSE lançou campanha, via publicação de cartilha, conforme divulgado
em seu sítio na internet – www.tse.jus.br -, como forma de incentivo à ampliação
dos espaços ocupados por mulheres em busca de uma sociedade mais justa e
igualitária. Aliás, como enfatizado na matéria, esse incentivo é feito, entre outros,
por meio de campanhas de estímulo à participação feminina na política, como
também pela disponibilização, no Portal da Justiça Eleitoral (JE), de um espaço
exclusivo dedicado às mulheres que fizeram e ainda fazem história na vida
política e na JE.
Em 2021, como registrado no seu sítio da internet, o TSE promoveu
iniciativa sobre a questão da acessibilidade das pessoas com deficiência nos
locais de votação, mas não há notícia de manifestação daquela Corte sobre a
participação ativa desses indivíduos na disputa eleitoral, via registro de
candidaturas.
Toda esta exclusão política, que afasta várias pessoas da participação
das eleições, não é uma constatação de hoje. Há tempo que se discutia a
necessidade do aumento da representatividade de grupos marginalizados em
espaços deliberativos, os quais, no caso de participação eleitoral, inserem-se
desde a promoção de candidaturas até à reserva de assentos em parlamentos
(YOUNG, 2006).
Se houve avanços no aspecto da acessibilidade; isto é: na facilitação do
exercício do direito de voto, as pessoas com deficiência ainda estão longe de
104
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira & André
Ricardo Fonsêca da Silva
uma efetiva participação na política, na tomada de decisões pela ocupação dos
mandatos eletivos. A grande questão é a capacidade eleitoral passiva; ou seja:
a possibilidade de ser votado e de se eleger. A participação política igualitária
entre todos os cidadãos respalda a legitimidade da própria democracia.
3.1 Especificamente sobre a cota de vagas nas casas legislativas
Nas eleições proporcionais brasileiras, para efeito da ocupação dos
mandatos de vereador(a), deputado(a) estadual ou federal, a legislação pátria
adotou sistema que leva em conta o quociente eleitoral e o quociente partidário,
como está formalmente descrito no Código Eleitoral – Lei nº 4.737/1965 - e nas
demais disposições sobre a matéria.
Chega-se ao quociente eleitoral a partir de um cálculo simples: divide-se
o número de cadeiras a serem preenchidas na respectiva casa pelo número de
votos válidos. Os votos válidos são aqueles que os candidatos ou respectivas
legendas recebem, com a exclusão de brancos e nulos. Uma vez encontrado o
quociente eleitoral, a segunda operação é a definição do quociente partidário,
cujo cálculo computa o número de votos obtidos pela agremiação partidária que,
então, será dividido pelo quociente eleitoral. Essa equação vai definir o número
de cadeiras a serem preenchidas pelo partido ou federação.
O sistema de cota de vagas, que se imagina e sugere, respeitando-se
qualquer crítica ao modelo, levaria em consideração a reserva de um percentual
a ser calculado sobre o número de vagas em disputa, que deveria ser ocupada
diretamente pelas pessoas com deficiência mais votadas, independentemente
do pertencimento partidário. Exemplo: se na Câmara de Vereadores fosse 10 o
número de vagas a ser preenchida, aplicando-se percentual de 30% desse total
de vagas, as 3 pessoas com registro de candidatura de PcD e que obtivessem
mais votos seriam eleitas, independentemente de cálculo de quociente eleitoral
ou partidário. As demais vagas, 7, seriam destinadas ao sistema proporcional
ora em vigor, na forma dos quocientes citados.
Fala-se aqui em 30% apenas para facilitar a compreensão sobre o
sistema de cota de vagas. Obviamente que o percentual poderá ser menor, até
105
Exame da reserva de vagas nas casas legislativas para (...)
para abrigar outras situações que precisam de igual tutela. Significa dizer que,
pelo modelo de cota ora sugerido, as 3 vagas da cota de pessoas com
deficiência seriam preenchidas no modelo de eleição majoritária; isto é: de todas
as candidaturas femininas, de todos os partidos, as 3 mais votadas ocupariam
as citadas vagas. Necessário, pois, substancial mudança da legislação eleitoral
para uma adequação da cota de vagas que se pretende criar no sistema eleitoral
brasileiro.
Lógico que a ideia da cota de vagas que se traz à colação neste trabalho
é meramente um exemplo, uma minuta de ideia, sujeita a amplo debate, que
demandaria longo estudo e processo legislativo democrático para a sua adoção.
Mas vale a reflexão. Vale o princípio que se defende, que é o da inclusão da
pessoa com deficiência no cenário político eleitoral. A forma de se definir a cota
de vagas e as regras de sua regulamentação passarão pelo crivo do Congresso
Nacional, inclusive, que poderia definir a temporalidade de sua vigência.
Não é demais lembrar que o Senado Federal, conforme notícia de seu
sítio na internet, aprovou no dia 14 de julho de 2021, projeto que estabelece um
percentual mínimo de cadeiras na Câmara dos Deputados e nas Assembleias
Legislativas estaduais e Câmaras de vereadores para as candidaturas
femininas. Então que se pense na cota mínima dessas cadeiras para as pessoas
com deficiência.
Seja qual for a forma de criação da cota de vagas para as pessoas com
deficiência em todas as Casas Legislativas do País, o mais relevante é o objetivo
que ela almeja, traduzido na compreensão de que a participação política das
pessoas com deficiência é necessária e urgente, pois integra a defesa da
cidadania, da dignidade da pessoa humana, operando como mecanismo de
legitimação da própria democracia, quando abre espaço de participação política
para todos os indivíduos, numa paridade de forças representativas.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi visto, qualquer ação afirmativa que constitua política de inclusão
para combater a situação de desigualdade representa importante mecanismo de
proteção à cidadania. O artigo debateu sobre os direitos políticos de pessoas
106
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira & André
Ricardo Fonsêca da Silva
com deficiência que não podem ser limitados ao direito de voto. A exclusão
decorrente da condição de PcD precisa ser enfrentada com ações e programas
muito mais eficientes do que a simples acessibilidade voltada ao ato de votar. As
pessoas com deficiência precisam ser inseridas no cenário político, ocupando os
mandatos eletivos, para ter meios adequados de promover o debate dos
problemas que as afligem, cuja solução depende desta presença nas casas
legislativas com direito a voz.
Mesmo na ampla proteção às pessoas com deficiência, seja por normas
e princípios constitucionais, seja por força de outros dispositivos da legislação
ordinária e até postulados de tratados internacionais incorporados ao
ordenamento jurídico pátrio, é preciso ter efetividade para que a inserção social
e política desses indivíduos seja concreta e que produza efeitos. O exercício dos
direitos políticos, pela ocupação dos mandatos eletivos é indispensável para a
cidadania plena das pessoas com deficiência e para uma democracia plural que
expresse a diversidade da sociedade contemporânea; isto é: um tempo de
direitos, um momento de conscientização contra a discriminação, uma época de
inclusão, principalmente daqueles que estão à margem das decisões políticas e
sem representatividade.
A alteração da legislação eleitoral para que as pessoas com deficiência
tenham cota de vagas nas eleições brasileiras, incrementando a participação
delas no plano político-eleitoral, e equilibrando a representação no Congresso
Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores, é uma
estratégia eficiente para possibilitar que esses indivíduos finalmente estejam
inseridos nos grupos de decisões político-sociais, numa ação afirmativa
extremamente positiva para a sociedade.
107
Exame da reserva de vagas nas casas legislativas para (...)
REFERÊNCIAS
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Gestão do Cadastro Eleitoral e sobre os serviços eleitorais que lhe
são correlatos. DJE-TSE, nº 204, de 5/11/2021. Disponível em:
www.tse.jus.br. Acesso em: 18. Ago. 2023.
BRASIL. Decreto nº 7.612, de 17 de novembro de 2011. Institui o Plano
Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Plano Viver sem
Limites. Diário Oficial da União: 18.11.2011. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 18.ago. 2023.
BRASIL. Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008. Aprova o texto da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu
Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de
2007. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 18.ago. 2023.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF.
Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 02.jul. 2023.
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Lumen Juris.
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108
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deficiencia-cresceu-30-em-2022. Acesso em 20.ago. 2023.
109
“Jurisprudencia terapéutica en México, capítulo Chiapas”
Eberth Roblero Castillo* 1
Al definir el derecho penal, podemos decir que éste, es la sistematización
de la acción coactiva de la soberanía del Estado, por lo que en tiempos modernos,
para la aplicación del mismo a la vida cotidiana, tenemos como objeto de estudio el
conjunto de normas y clasificación de los elementos relativos del delito (Artículo 9.-
Concepto de Delito.- El delito es la conducta típica, antijurídica y culpable), 2 como
lo son el principio de culpabilidad, principio presunción de inocencia, principio de
subsidiariedad, principio de mínima intervención, entre otros por citar; con la
finalidad de aplicar las penas y/o medidas de seguridad para prevenir, sancionar la
comisión de los delitos.
El 18 de junio de 2008, en México, se publicó en el Diario Oficial de la
Federación el Decreto de Reforma y Adición de diversas disposiciones de la
Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, en la que destaca el
establecimiento de los juicios orales para diversas materias, estableciéndose
entonces el sistema acusatorio y oral en el primer párrafo del artículo 20
constitucional, 3 del que advertimos, que centra su interés en la victima y en el
ofendido, así como observamos a un juez más independiente e imparcial, sujeto a
principios procesales como la publicidad, concentración, contradicción, continuidad
e inmediación, lo que permitió separar la acusación o bien, la procuración de justicia,
de la impartición de justicia (por ejemplo: Ministerio Público – Juez de Control 4), lo
1
* Licenciado en Derecho; Maestro en Derecho Civil; Maestro en Juicios Orales; Doctor en
Administración; y Doctor en Derecho Público; Funcionario Judicial, Docente Universitario y de
Posgrado.
2
Código Penal para el Estado de Chiapas.
3
Artículo 20.- El proceso penal será acusatorio y oral. Se regirá por los principios de publicidad,
contradicción, concentración, continuidad e inmediación.
4
-Juez que se encarga de velar por la legalidad y el respeto a los derechos fundamentales de las
partes y realiza diversas diligencias en las dos primeras etapas (de investigación e intermedia) del
proceso.-Definición de Instituto Mexicano para la Competitividad A.C.
110
Eberth Roblero Castillo
que representa un cambio de paradigma social, cultural, organizacional y de una
cosmovisión para todos los operarios jurídicos.
De esta manera entendemos que toda aquella persona que con su conducta
infrinja la ley; será sancionado tomando en cuenta su punibilidad, responsabilidad,
participación, imponiéndosele una pena que tiene como finalidad la salva de la paz
y orden público que guarda la sociedad, ordenando la reinserción social a través de
la internación en privación de la libertad de la persona que ha cometido un delito
penal principalmente contra la sociedad o bien, mediante mecanismos de solución
de controversias, el reo puede alcanzar beneficios como lo son la suspensión
condicional del proceso por adherirse a un programa como el de rehabilitación
mediante justicia terapéutica entre otros (fianzas sociales - Fundación Telmex, etc)
y a la aplicación de Criterios de Oportunidad 5 por parte de los Jueces penales; o
bien pueden acogerse a un acuerdo reparatorio entre víctima y ofendido que permita
dentro de la licitud, determinar la extinción de la acción penal por parte del Ministerio
Público y con ello el Juzgador dictar el sobreseimiento y dar por concluido el asunto.
Acorde a lo anterior, se hace fehaciente que la aplicación de penas al
infractor de la ley y de las medidas de seguridad que establece el Código Penal del
Estado de Chiapas; que en términos de la presente investigación, nos enfocaremos
y estudiaremos de conformidad a la fracción IV del artículo 30 del Código Penal para
el Estado de Chiapas, 6 sin embargo, la aplicación del derecho en México
actualmente no es dura o totalmente rígida, esto debido a que en la propia Carta
Magna se establece en los artículos 2do. segundo y 4to. cuarto en lo que interesa
literalmente lo siguiente:
“Artículo 2o. La Nación Mexicana es única e indivisible.
La Nación tiene una composición pluricultural sustentada originalmente en sus
pueblos indígenas que son aquellos que descienden de poblaciones que habitaban
5
Procedimientos para extinguir la acción penal según lo establecido por el artículo 256 del Código
Nacional de Procedimientos Penales en México.
6
Artículo 30.- Las medidas de seguridad u órdenes de protección que podrá aplicar la autoridad
jurisdiccional serán las siguientes:
I. …
IV. Tratamiento contra adicciones y de desintoxicación.
111
“Jurisprudencia terapéutica en México, capítulo Chiapas”
en el territorio actual del país al iniciarse la colonización y que conservan sus propias
instituciones sociales, económicas, culturales y políticas, o parte de ellas.
La conciencia de su identidad indígena deberá ser criterio fundamental para
determinar a quiénes se aplican las disposiciones sobre pueblos indígenas.
Son comunidades integrantes de un pueblo indígena, aquellas que formen una
unidad social, económica y cultural, asentada en un territorio y que reconocen
autoridades propias de acuerdo con sus usos y costumbres.
El derecho de los pueblos indígenas a la libre determinación se ejercerá en un
marco constitucional de autonomía que asegure la unidad nacional. El
reconocimiento de los pueblos y comunidades indígenas se hará en las
constituciones y leyes de las entidades federativas, las que deberán tomar en
cuenta, además de los principios generales establecidos en los párrafos anteriores
de este artículo, criterios etnolingüísticos y de asentamiento físico.
Artículo 4o.- La mujer y el hombre son iguales ante la ley. Ésta protegerá la
organización y el desarrollo de la familia.
…
Toda Persona tiene derecho a la protección de la salud. La Ley definirá las bases y
modalidades para el acceso a los servicios de salud y establecerá la concurrencia
de la Federación y las entidades federativas en materia de salubridad general,
conforme a lo que dispone la fracción XVI del artículo 73 de esta Constitución.
…
En todas las decisiones y actuaciones del Estado se velará y cumplirá con el
principio del interés superior de la niñez, garantizando de manera plena sus
derechos. Los niños y las niñas tienen derecho a la satisfacción de sus necesidades
de alimentación, salud, educación y sano esparcimiento para su desarrollo integral.
Este principio deberá guiar el diseño, ejecución, seguimiento y evaluación de las
políticas públicas dirigidas a la niñez.
…
El Estado otorgará facilidades a los particulares para que coadyuven al
cumplimiento de los derechos de la niñez.
Toda persona tiene derecho al acceso a la cultura y al disfrute de los bienes y
servicios que presta el Estado en la materia, así como el ejercicio de sus derechos
culturales. El Estado promoverá los medios para la difusión y desarrollo de la
112
Eberth Roblero Castillo
cultura, atendiendo a la diversidad cultural en todas sus manifestaciones y
expresiones con pleno respeto a la libertad creativa.
…”
De lo reproducido para esta investigación, se hace tangible que México
tiene como base social su interculturalidad, el derecho a la salud, y el respeto
irrestricto a los derechos de la niñez, lo que se traduce en una plataforma
constitucional de la justicia cotidiana, que permite a la justicia restaurativa solucionar
los conflictos penales a través de la reparación del daño a las víctimas, pero sin
perder de vista la justicia retributiva consistente en la proporcionalidad de la pena
impuesta conforme al daño causado.
Paralelo a lo anterior, es necesario reconocer, que en materia penal una vez
que el Órgano Jurisdiccional ha impuesto la pena a una persona que ha cometido
un delito, este queda obligado a su cumplimiento (también a cargo del Estado) pero
cuando la comisión del delito no es grave, encontramos que el culpable (con
sentencia condenatoria), puede acceder a beneficios que el propio sistema
normativo mexicano le concede, por ejemplo; el artículo 17 constitucional, expresa
entre otras cosas que, “Las leyes preverán mecanismos alternativos de solución de
controversias. En la materia penal regularán su aplicación, asegurarán la reparación
del daño y establecerán los casos en los que se requerirá supervisión judicial.” Por
lo que los mecanismos alternativos de solución de controversias son entonces el
sometimiento expreso y voluntario de las partes para la satisfacción de la reparación
del daño, por conducto de especialistas públicos que utilizan los procedimientos de
mediación, conciliación y arbitraje, según sea el caso presentado por las partes en
Litis, tal y como se encuentra establecido en el Estado de Chiapas, en el artículo
1ro. primero de la Ley de Justicia Alternativa para el Estado de Chiapas. 7
7
Artículo 1.- La presente Ley es de orden público, interés general y observancia obligatoria en el
Estado de Chiapas; tiene por objeto regular y fomentar los medios alternativos de resolución de
conflictos entre particulares, cuando éstos recaigan sobre derechos de los cuales pueden disponer
libremente, bajo el principio de autonomía de la voluntad y libertad contractual, así como para pactar
la reparación de los daños producidos por el delito, o restaurar las relaciones sociales afectadas por
la comisión de los hechos delictivos o por conductas antisociales
113
“Jurisprudencia terapéutica en México, capítulo Chiapas”
De similar forma, el Código Nacional de Procedimientos Penales vigente en
México, establece en sus artículos 184 y 185, 8 las salidas alternas y de terminación
anticipada que pone fin al conflicto penal; dentro de estas concepciones de
terminación del problema casuístico penal, encontramos la denominada Justicia
Restaurativa, que como ya mencioné en líneas precedentes, consistente determinar
la compensación del daño a las víctimas, contando necesariamente para ello con la
participación de ambas partes para el logro de acuerdos en torno al resultado
deseado por las víctimas y de los delincuentes.
Ahora bien, en cumplimiento a la aplicación de la fracción IV del artículo 30
del Código Penal para el Estado de Chiapas, 9 el Poder Ejecutivo Estatal por
conducto de la Procuraduría General de Justicia del Estado de Chiapas, con fecha
18 dieciocho de enero de 2017 dos mil diecisiete, emitió el acuerdo Número
PGJE/001/2017, que establecía el “PROCEDIMIENTO Y REQUISITOS PARA LA
PARTICIPACIÓN DE LOS OPERADORES EN LAS AUDIENCIAS DE
SEGUIMIENTO, VERIFICACIÓN DE CUMPLIMIENTO Y REVOCACIÓN DEL
PROGRAMA DE JUSTICIA TERAPÉUTICA, EN VIRTUD DE UNA SUSPENSIÓN
CONDICIONAL DEL PROCESO DECRETADA POR LOS JUECES DE CONTROL
O EN SU CASO, EL CRITERIO DE OPORTUNIDAD QUE APLIQUE EL FISCAL
DEL MINISTERIO PÚBLICO”; 10 en el cual, estableció que sería el Titular de la
Coordinación General del Centro Especializado para la Prevención y Tratamiento
de las Adicciones, quien en conjunto con el equipo multidisciplinario realizaran el
estudio minucioso de los participantes en el programa de Justicia Terapéutica y
seleccionaran a los posibles beneficiarios, una vez hecho lo anterior, a través del
departamento de Psicología del Centro Especializado, emitirá su valoración el cual
es presentado por el Coordinador al Juez de Control en materia de Justicia
8
Artículo 184. Soluciones alternas. Son formas de solución alterna del procedimiento:
I. El acuerdo reparatorio, y
II. La suspensión condicional del proceso.
Artículo 185. Formas de terminación anticipada del proceso. El procedimiento abreviado será
considerado una forma de terminación anticipada del proceso.
9
Ibídem.
10
https://www.fge.chiapas.gob.mx/Informacion/MarcoJuridico/PDFDocumento/78D2BA04-8A08-
4606-AAAF-F27CC9DC3889
114
Eberth Roblero Castillo
Terapéutica, señalará la fecha y hora de audiencia en la cual deberán estar
presentes, el Ministerio Público, el beneficiario su defensor y familiares, así como
los representantes Jurídicos y Psicológicos del Centro de Adicciones, para que en
conjunto presenten el caso al Juez y este determine sobre la permanencia en el
programa de Justicia Terapéutica o bien revoque la salida, del beneficiario del
programa.
Posteriormente, con fecha 30 treinta de noviembre de 2022 dos mil
veintidós, el Poder Judicial del Estado de Chiapas, emitió un “ACUERDO GENERAL
NÚMERO 01/2023, DEL CONSEJO DE LA JUDICATURA DEL PODER JUDICIAL
DEL ESTADO DE CHIAPAS, POR EL QUE SE CREAN LOS JUZGADOS
ESPECIALIZADOS EN JUSTICIA TERAPÉUTICA DEL PODER JUDICIAL DEL
ESTADO DE CHIAPAS” 11 esto derivado de que el Gobernador del Estado de
Chiapas celebró un acuerdo de colaboración interinstitucional, en los que
participaron de parte del Poder Ejecutivo el Instituto de Salud del Estado, la
Secretaría de Seguridad Pública, en conjunto con el Presidente del Poder Judicial
del Estado de Chiapas, en el marco del Programa de Justicia Terapéutica para el
Tratamiento de Adicciones, derivado de la exigencia internacional al respeto
absoluto de los derechos humanos, como bien lo establece el acuerdo al Comité de
Derechos Humanos de la ONU, “la obligación de tratar a personas con el respeto
debido a la dignidad inherente al ser humano comprende, entre otras cosas, la
prestación de los cuidados médicos adecuados”. 12 A lo que son inducidos a
sistemas de rehabilitación y reinserción, los reos que presentan esta situación de
vulnerabilidad.
En ese orden de ideas, dichos sistemas, se cristalizan como una política de
Estado, de conformidad al artículo 17 constitucional, al brindar la oportunidad a una
persona que cometió un delito no grave, vinculado al abuso o dependencia de
11
https://www.poderjudicialchiapas.gob.mx/archivos/manager/40FD52E6-1906-4805-AA10-
31438FC4CD6B.pdf
12
Comité de Derechos Humanos, caso “Kelly (Paul) c. Jamaica” párr. 5.7, 1991. En: Derecho
Internacional de los derechos humanos. Normativa Jurisprudencia y Doctrina de los sistemas
universal e interamericano, Oficina en Colombia del Alto Comisionado de las Naciones Unidad para
los Derechos Humanos, Bogotá 2004, P. 211.
115
“Jurisprudencia terapéutica en México, capítulo Chiapas”
drogas, a someterse a un tratamiento programático integral, que se efectuará bajo
observancia judicial continua y periódica, en coordinación con el sistema de Salud
y Seguridad Pública, logrando con ello la disminución de reincidencia delictiva en el
consumo de drogas y por ende la sobrepoblación en los centros penitenciarios de
reinserción social en el Estado.
Lo anterior, sugiere que todo aquel reo que sufra de abuso o dependencia
a estupefacientes, alcohol, o que despliegue conductas de violencia familiar,
lesiones leves y demás, o bien, que sea considerado primo delincuente de delitos
no graves; los que pueden en determinado momento, beneficiarse de la Justicia
Terapéutica.
La Justicia Terapéutica en México se regula a través de la Constitución
Política de los Estado Unidos Mexicanos, Código Penal Federal y Códigos Penales
Estatales, Ley Nacional de Ejecución Penal, Código Nacional de Procedimientos
Penales, Ley General de Salud, Ley General para la Prevención Social de la
Violencia y la Delincuencia, Estrategia Nacional de Prevención de Adicciones, Ley
Nacional de Mecanismos Alternativos de Solución de Controversias en Materia
Penal, Ley General del Sistema Nacional de Seguridad Pública; dentro de las que
encontramos, el ACUERDO REPARATORIO, establecido dentro de los numerales
186, 187 y 188 así como la SUSPENSIÓN CONDICIONAL, establecidas por los
artículos 192 al 193, todos del Código Nacional de Procedimientos Penales; y el
SUSTITUTIVO DE LA PENA localizado en los articulo 169 al 189 de la Ley Nacional
de Ejecución Penal.
En ese sentido, la Jurisprudencia Terapéutica va encaminada a la
reinserción social de los individuos culpables de un delito, en donde encontramos a
mujeres, hombres, personas indígenas, adultos mayores, niñez y adolescentes, y
demás grupos vulnerables como los pertenecientes a la comunidad LGBTTTIQ+ 13,
migrantes y de personas con discapacidad, entre otras por mencionar.
13
Lesbianas, Gays, Bisexuales, Travestis, Transgéneros, Transexuales, Intersexuales y Queer y el
más (+) corresponde a los grupos que se identifican diferente a los señalados.
116
Eberth Roblero Castillo
De tal manera vemos que la Justicia Terapéutica, ha permeado de igual
forma el Sistema Integral de Justicia Penal para Adolescentes, pues tiende a
mejorar la conducta de las personas menores de edad que entran en conflicto con
la Ley penal por estar vinculados a la adicción o dependencia al consumo de drogas,
esto derivado de la ratificación de la Convención sobre los Derechos del Niño por
parte de nuestro país en el año de 1989 mil novecientos ochenta y nueve, evitando
así sancionarlos con mayor severidad y afectar su desarrollo Psico-emocional de
los niños 14 considerados en la Ley Nacional del Sistema Integral de Justicia Penal
para Adolescentes, por lo que esa misma ley prevé, castigos no prolongados y
menos restrictivos, dejando casos excepcionales con pena privativa de libertad.
Consecuentemente, podemos manifestar a grandes rasgos, que los
(MASC) Mecanismos Alternativos de Solución de Conflictos, desjudicializan los
asuntos con la finalidad de llegar a convenios entre las partes por medio de
procedimientos ya mencionados, con la finalidad de poder acordar y dar por
terminado el conflicto penal, a diferencia de la Justicia Terapéutica o también
denominada Jurisprudencia Terapéutica, que esta se realiza sobre la judicialización
de los asuntos de carácter penal, en cualquiera de sus etapas del procedimiento,
pues su finalidad es evitar la revictimización de la víctima y poder lograr el pago de
la reparación del daño por parte del reo, esto a voluntad de las partes conflictuadas,
para evitar la reincidencia y prevención del delito.
Finalmente, debe quedar establecido que en México y en Chiapas, el
modelo de Justicia Terapéutica contiene un enfoque futuro que garantiza el debido
proceso, la dignidad humana 15 y los derechos humanos, pues está redefiniendo las
nuevas formas de ver el proceso penal, para lo cual es necesario la conformación,
de lo que denomino el bloque o la trilogía terapéutica, que resulta ser; 1.- El estudio
14
Artículo 5. Grupos de edad
Para la aplicación de esta Ley, se distinguirán los grupos etarios I, II y III:
I. De doce a menos de catorce años;
II. De catorce a menos de dieciséis años, y
III. De dieciséis a menos de dieciocho años.
15
Sobre la dignidad de la persona humana, vid. MIRANDA GONÇALVES, Rubén. “La protección
de la dignidad de la persona humana en el contexto de la pandemia del Covid-19”, Revista Justiça
do Direito, v. 34, n. 2 (2020), pp. 148-172.
117
“Jurisprudencia terapéutica en México, capítulo Chiapas”
de la excepción de la norma, 2.- Los sujetos procesales, y, 3.- Los operadores de
justicia (ya sean pertenecientes a la Procuración de Justicia-Fiscalía o a la
impartición de justicia-Jueces), siendo los últimos nombrados, sujetos a
capacitaciones constantes, con la última ratio, de evitar medidas represivas o
socializadas, siendo permisible la aplicación de la Justicia Terapéutica, por lo
establecido en el artículo 195 del Código Nacional De Procedimientos Penales, 16
pues en él se dota al Juzgador de la posibilidad de fijar el plazo de suspensión del
proceso, es decir, que previa valoración de las condiciones del reo, determina si
reúne o no los requisitos para ser sometido al tratamiento integral de la Justicia
Terapéutica, el cual es de fácil acceso de los posibles beneficiarios que se acogen
a dicho beneficio, y prevé la recaída de los beneficiarios en actos delictivos y de
adicción, pues es la forma más humanizada de lograr la paz y el bien común.
Los retos son grandes para México derivado de su composición pluricultural
sustentado en sus pueblos indígenas con sus usos y sus costumbres y aún más
para Chiapas, donde convergen 12 grupos indígenas, en el que mayormente existen
4 cuatro grupos como lo son: Tseltal (562,120 hablantes), Tsotsil (531,662
hablantes), Ch'ol (210,771 hablantes), Tojolabal (66,092hablantes) así establecidos
por el Instituto Nacional de Estadística y Geografía (INEGI) en el censo de población
16
Artículo 195. Condiciones por cumplir durante el periodo de suspensión condicional del
proceso. El Juez de control fijará el plazo de suspensión condicional del proceso, que no podrá ser
inferior a seis meses ni superior a tres años, y determinará imponer al imputado una o varias de las
condiciones que deberá cumplir, las cuales en forma enunciativa más no limitativa se señalan: I.
Residir en un lugar determinado; II. Frecuentar o dejar de frecuentar determinados lugares o
personas; III. Abstenerse de consumir drogas o estupefacientes o de abusar de las bebidas
alcohólicas; IV. Participar en programas especiales para la prevención y el tratamiento de
adicciones; V. Aprender una profesión u oficio o seguir cursos de capacitación en el lugar o la
institución que determine el Juez de control; VI. Prestar servicio social a favor del Estado o de
instituciones de beneficencia pública; VII. Someterse a tratamiento médico o psicológico, de
preferencia en instituciones públicas; VIII. Tener un trabajo o empleo, o adquirir, en el plazo que el
Juez de control determine, un oficio, arte, industria o profesión, si no tiene medios propios de
subsistencia; IX. Someterse a la vigilancia que determine el Juez de control; X. No poseer ni portar
armas; XI. No conducir vehículos; XII. Abstenerse de viajar al extranjero; XIII. Cumplir con los
deberes de deudor alimentario, o XIV. Cualquier otra condición que, a juicio del Juez de control, logre
una efectiva tutela de los derechos de la víctima. Para fijar las condiciones, el Juez de control podrá
disponer que el imputado sea sometido a una evaluación previa. El Ministerio Público, la víctima u
ofendido, podrán proponer al Juez de control condiciones a las que consideran debe someterse el
imputado. El Juez de control preguntará al imputado si se obliga a cumplir con las condiciones
impuestas y, en su caso, lo prevendrá sobre las consecuencias de su inobservancia.
118
Eberth Roblero Castillo
y vivienda 2020, 17 de donde observamos que dichos grupos utilizan la cánnabis o
cannabis como etnomedicinas o bien como parte de la cultura y tradiciones en los
rituales religiosos o de espiritualidad, que dotan de identidad a los hermanos
indígenas, por lo que no pasa por desapercibido para el Poder Judicial del Estado,
que en respeto a la interculturalidad, los usos y las costumbres, cuenta con la
creación de JUZGADOS DE PAZ Y CONCILIACION INDIGENA en los siguientes
municipios del Estado de Chiapas: NUEVO HUIXTÁN (MUNICIPIO DE LAS
MARGARITAS), CHALCHIHUITÁN, PANTELHÓ, SANTIAGO EL PINAR,
CHENALHÓ, MITONTIC, ZINACANTÁN INTERINO, AMATENANGO DEL VALLE,
SAN JUAN CHAMULA, OXCHUC, ALTAMIRANO, TENEJAPA, ALDAMA,
LARRAINZAR, HUIXTÁN, SAN JUAN CANCUC, CHANAL; los cuales garantizan
una justicia intercultural 18 según lo establece el artículo 13 de la LEY DE
DERECHOS Y CULTURA INDÍGENAS DEL ESTADO DE CHIAPAS, el cual
expresa literalmente lo siguiente:
“ARTICULO 13.- En materia penal, los Jueces de Paz y Conciliación Indígenas
podrán aplicar las sanciones conforme a los usos, costumbres y tradiciones de
las comunidades indígenas donde ocurra el juzgamiento, en tanto no se violen
los derechos fundamentales que consagra la Constitución General de la
República, ni se atente contra los derechos humanos.”
Pues con el funcionamiento de dichos Juzgados, que tienen la obligación de
juzgar respetando la cosmovisión, usos y costumbres de los pueblos originarios en
los procesos que sean de su competencia, 19 estableciendo una solución a las
17
https://cuentame.inegi.org.mx/monografias/informacion/chis/poblacion/diversidad.aspx?tema=me&e
=07
18
https://consejeriajuridica.chiapas.gob.mx/MarcoJuridicoPDF/Ley/LEY%20DE%20DERECHOS%2
0Y%20CULTURA%20INDIGENAS%20DEL%20ESTADO%20DE%20CHIAPAS.pdf
19
ARTICULO 16.- TRATANDOSE DE DELITOS QUE NO SEAN CONSIDERADOS COMO GRAVES
POR LAS LEYES VIGENTES, LAS AUTORIDADES JUDICIALES PODRAN SUSTITUIR LA PENA
PRIVATIVA DE LIBERTAD QUE SE IMPONGA A UN INDIGENA, EN LOS TERMINOS PREVISTOS
EN LA LEGISLACION PENAL, POR TRABAJOS EN BENEFICIO DE SU COMUNIDAD, SIEMPRE
QUE SE HAYA CUBIERTO EL PAGO DE LA REPARACION DEL DAÑO Y LA MULTA, EN SU
CASO, Y QUE EL BENEFICIO SEA SOLICITADO POR EL SENTENCIADO Y POR LAS
AUTORIDADES TRADICIONALES DE LA COMUNIDAD A LA QUE PERTENECE, SIN SUJECION
AL TIEMPO DE LA PENA IMPUESTA, NI AL OTORGAMIENTO DE CAUCION.
119
“Jurisprudencia terapéutica en México, capítulo Chiapas”
controversias que le son planteadas, materializando una justicia efectiva al permitir
que dichos pueblos originarios tengan acceso a los beneficios como lo es la Justicia
Terapéutica entre otros, desde el ámbito de la salud, por el uso o dependencia por
el uso de alguna droga o sustancia ilícita.
BIBLIOGRAFÍA
MIRANDA GONÇALVES, Rubén. La dignidad de la persona humana. Breve estudio
comparado desde el derecho público. In A dignidade da pessoa humana.
Entre a representatividade do significado jurídico e a efetividade no mundo
da existência. Ed. Brazil Publishing, Curitiba, 2019, pp. 239-257.
MIRANDA GONÇALVES, Rubén. La protección de la dignidad de la persona
humana en el contexto de la pandemia del Covid-19. In Justiça do Direito, v.
34, n. 2 (2020), pp. 148-172.
EN ESTOS CASOS, LAS AUTORIDADES TRADICIONALES DEL LUGAR TENDRAN LA
CUSTODIA DEL INDIGENA SENTENCIADO POR EL TIEMPO QUE DUREN LOS TRABAJOS
COMUNITARIOS Y DEBERAN INFORMAR A LA AUTORIDAD QUE CORRESPONDA SOBRE LA
TERMINACION DE ESTOS O, EN SU CASO, DEL INCUMPLIMIENTO POR PARTE DEL
SENTENCIADO, PARA LOS EFECTOS SUBSECUENTES.
120
Responsabilidade civil ambiental em face da natureza propter
rem da obrigação
Letícia Furtado Oliveira Menezes *
Fábio Luiz de Oliveira Bezerra **
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda a responsabilidade dos causadores de danos
ao meio ambiente, à luz da natureza propter rem da obrigação ambiental e do
princípio do poluidor pagador, mediante evidência da análise da obrigação de
recuperar a degradação ambiental, a qual, mesmo que sem a contribuição para
a deflagração do dano, recai sobre o titular do imóvel ou da propriedade em
questão.
Sob uma ótica socioambiental, é inegável a celeridade com a qual
ocorrem massivas e notórias transformações da realidade ecológica com uma
frequência cada vez mais intensa, mediante a intervenção humana
inescrupulosa ao longo da história. A concepção da Terra como um ser vivo uno,
defendida pelo cientista inglês James E. Lovelock 1, é ameaçada quando se
percebe que este mesmo planeta, lamentavelmente, respira por aparelhos.
A urgência da crise ambiental desnuda a imediata necessidade de
reestruturação e a devida responsabilização daqueles que destroem, direta ou
indiretamente, o patrimônio natural brasileiro e desequilibram a sua homeostase.
Nesse âmbito, torna-se improrrogável a adoção preliminar de
mecanismos e procedimentos técnicos destinados a impedir ou atenuar os
impactos negativos que incidam na deturpação do meio ambiente
ecologicamente equilibrado, por meio de uma visão preventiva. Sucessivamente,
*
Graduanda em Direito (UFRN), e-mail: [email protected].
**
Professor Adjunto (UFRN), Doutor em Direito, e-mail: [email protected].
1
LOVELOCK, James E. Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra. Coimbra: Edições 70, 2020.
121
Responsabilidade civil ambiental em face da natureza (...)
em casos de eventual necessidade, urge a perspectiva de responsabilidade civil
e reparação do dano causado, em especial, por decorrência do caráter propter
rem da referida obrigação.
Nesse contexto, a pergunta que motiva a presente pesquisa é a
seguinte: a caracterização da responsabilidade ambiental como obrigação
propter rem contribui para a efetivação do direito humano ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado?
Com esta visão, o artigo tem o objetivo geral de realizar uma avaliação
crítica acerca da aplicação da responsabilidade civil no âmbito ambiental,
mediante a abordagem sobre os impactos ecológicos hodiernos e a interligação
entre o princípio do poluidor-pagador e a natureza propter rem da obrigação civil
ambiental.
Como objetivos específicos, o estudo almeja analisar a responsabilidade
do adquirente de uma área degradada pela violação do meio ambiente por
antigos proprietários, e como a natureza propter rem tem concretizado o direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
A pesquisa nessa área da responsabilidade ambiental justifica-se pela
notória relevância em se concretizar o direito ao meio ambiente pelos diversos
instrumentos legais existentes, incluindo os instrumentos cíveis, como a
caracterização da obrigação como propter rem. Dessa forma, pode-se promover
e suscitar o debate vinculando atividade econômica e a consequente
necessidade de proteção ambiental, neste caso após o dano cometido. Em uma
época de inescrupulosa prática de devastação e exploração sem precedentes, é
fulcral o estudo acerca de mecanismos de efetiva responsabilização daqueles
que, direta ou indiretamente, relacionam-se com o cometimento do dano.
A partir de uma visão analítica e crítica, tem-se que a hipótese a ser
testada é a de que a obrigação propter rem adere à propriedade, ao transitar de
titular para titular, de maneira que cada um a seu tempo deve realizar prestação
ainda que não tenha sido o autor da degradação, fato este que incide na
solidariedade passiva entre eles, o que potencializa a concretização do direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
122
Letícia Furtado Oliveira Menezes & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Com intuito de responder à pergunta formulada, a pesquisa adota o
método hipotético-dedutivo, procedendo-se a uma análise descritivo-
interpretativa de documentos doutrinários, normativos – constitucionais e legais,
com abordagem qualitativa.
São basicamente duas linhas teóricas que serão analisadas na revisão
de literatura especializada e que constituirão a base para a resposta à pergunta
de pesquisa.
A primeira corresponde a abordagem histórico-social da importância da
responsabilização efetiva de caráter ambiental, utilizando-se de prerrogativas
conceituais e explicativas que versem desde a intensificação da produção em
massa, como consequência da Revolução Industrial iniciada na segunda metade
do século XVIII, até os massivos impactos ambientais oriundos do aumento
desenfreado da produção e exploração, sob à ótica de abordagem de
historiadores tais como Yuval Noah Harari 2. Outrossim, mediante os
apontamentos acerca da Sociedade do Risco ilustrada pelo sociólogo alemão
Ulrich Beck 3, urge a necessidade premente de abordagem sobre a
responsabilização efetiva daqueles que cometem dano ambiental.
A segunda linha teórica diz respeito ao estudo da obrigação propter rem
e responsabilidade civil, à luz dos escritos doutrinários de Nelson Rosenvald 4,
bem como a especialização centrada na responsabilidade do adquirente de uma
área degradada pela violação do meio ambiente por antigos proprietários,
atrelando ao princípio do poluidor pagador mediante, com amparo na doutrina
de Marchesan, Steigleder e Cappelli. 5
Em termos de estruturação, após a presente introdução, o artigo aborda
os impactos ambientais hodiernos e a importância da responsabilização efetiva
(tópico 2), seguida por um enfoque doutrinário e legislativo sobre a obrigação de
2
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2018.
3
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Rio de Janeiro: Editora
34, 2011.
4
ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 16. ed. Salvador: JusPodivm, 2022.
v. 2.
5
MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELLI, Silvia.
Direito ambiental. São Paulo: Editora Verbo Jurídico, 2013. p. 200.
123
Responsabilidade civil ambiental em face da natureza (...)
caráter propter rem e a sua consequente interligação com o princípio do poluidor
pagador (tópico 3), finalizando com a análise da hipótese de pesquisa e as notas
conclusivas (tópico 4).
2 A IMPORTÂNCIA DA RESPONSABILIZAÇÃO EFETIVA PELOS DANOS
AMBIENTAIS
Historicamente, o indivíduo compreende a noção de espacialidade
vinculada, de maneira íntima, à forma pela qual a natureza é entendida e
modificada ao longo do tempo. A partir de uma ótica físico-social, observa-se
que, com o desenvolvimento humano e a acentuação das necessidades, os
recursos naturais tornaram-se fonte primária e basilar para a sobrevivência dos
seres humanos.
Desse modo, tornou-se possível, de forma efetiva, a manipulação e
adequação de recursos naturais à realidade social, geográfica, alimentícia e,
posteriormente, econômica dos sujeitos. O relacionamento com o meio ambiente
e seus vieses passou a denotar um cenário cada vez mais íntimo e,
consequentemente, desnudou uma realidade de impactos ambientais mais
frequentes e nefastos, posto a demasiada intensificação em decorrência do
período da chamada Revolução Industrial. 6
Assim, a Revolução Industrial – em suas fases mais marcantes –
culminou em novos meios de conversão de energia e obtenção de recursos de
ordem natural, ao passo que gerou um processo intensivo de degradação e,
essencialmente de dano ambiental. Concomitantemente à atividade industrial,
evidenciou-se um crescente processo de urbanização e uma amplificação na
rede de transportes, bem como uma série de marcantes transformações no
âmbito social que promoveram modificações na mentalidade, cotidiano e na
relação homem-natureza.
6
“A Revolução Industrial consistiu em um período de notável desenvolvimento tecnológico que
teve início na Inglaterra a partir da segunda metade do século XVIII. O processo industrial
acentuou uma marcante e intensa transformação da concepção de utilização dos recursos
naturais, haja vista a premente urgência pela busca de elementos que servissem como matéria-
prima para as indústrias”. MARRIOT, Emma. A História do mundo para quem tem pressa. 14.
ed. Rio de Janeiro: Editora Valentina, 2015.
124
Letícia Furtado Oliveira Menezes & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Dessa forma, a veemente consequência ambiental pressupõe impactos
alarmantes no cenário social e, acima de tudo, refletem no âmbito ecológico,
conforme preconiza Harari 7:
De fato, a desordem ecológica pode ameaçar a sobrevivência do
próprio Homo Sapiens. O aquecimento global, o aumento do nível dos
oceanos e a poluição disseminada podem tornar a Terra menos
habitável para a nossa própria espécie, e o futuro, consequentemente,
pode testemunhar uma disputa cada vez maior entre a capacidade
humana e desastres naturais induzidos pelo homem. À medida que os
humanos usam sua capacidade para conter as forças da natureza e
submeter o ecossistema a suas necessidades, podem causar cada vez
mais efeitos colaterais imprevistos e perigosos.
A partir desse cenário de forte engrandecimento das consequentes
problemáticas ambientais em questão urge a necessidade de ampliação do
cenário de debates acerca da temática de cunho ambiental e ecológico. Logo,
após a ocorrência da Conferência de Estocolmo 8, merece evidência a realização
da Conferência ECO-92, sediada no Rio de Janeiro, a qual teve fundamental
impacto para a elucidação da importância da preservação do meio ambiente,
bem como os consequentes efeitos ocasionados pela devastação humana.
Como efeito direto da referida Conferência, houve notáveis e
importantes vinculações de cunho do Direito Internacional, ao expor que os
Estados deverão cooperar de forma ativa e rápida no tocante à
responsabilização e indenização por efeitos adversos no que diz respeito aos
danos ambientais. Nesse contexto, há o desenvolvimento de uma legislação
nacional que versa sobre responsabilidade e indenização às vítimas, qual seja,
7
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2018.
p. 362.
8
“A Conferência de Estocolmo, denominada oficialmente como Conferência das Nações Unidas
sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano, ocorreu entre 5 e 16 de junho de 1972 e
consiste em ser o primeiro encontro de caráter internacional para debate e discussão sobre
problemáticas de ordem ambiental. Contou com a participação de 113 países”. ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano.
In: Anais Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano. Estocolmo, jun. 1972.
125
Responsabilidade civil ambiental em face da natureza (...)
a Lei 9.605/1998, também denominada Lei dos Crimes Ambientais, a qual
passou a ter por enfoque a instituição de sanções contra lesões ambientais,
incluindo sanções criminais e administrativas.
Embora não tenha merecido um capítulo específico, como ocorreu com
as sanções criminais e administrativas, a responsabilidade civil por dano
ambiental está também disciplinada na Lei 9.605/1998. O art. 3º, por exemplo,
estabelece expressamente a responsabilidade civil da pessoa jurídica quando a
infração for cometida por decisão de seu representante legal ou de órgão
colegiado em seu benefício. O art. 8º e o art. 12 dispõem que a pena criminal
restritiva de direito consistente em prestação pecuniária será deduzida da
eventual reparação civil a que for condenado o infrator. Já o art. 20 prescreve
que na sentença penal condenatória será fixado o valor mínimo da reparação
civil dos danos ambientais.
A responsabilização civil ambiental consiste em uma ferramenta ativa
adotada pelo Direito com o fito de reparação de danos de caráter ambiental. É
um mecanismo reparador que, para além de tal atuação, permite também a
reflexão acerca das melhores atuações de conduta para ação prudente e
coerente.
A responsabilidade civil ambiental se aplica diretamente aos danos
causados ao meio ambiente. Sob essa premissa, classifica-se como sendo
essencialmente de ordem objetiva, sendo dispensada a comprovação de culpa
em atos praticados que impliquem dano de caráter ambiental. É suficiente,
portanto, a comprovação da ação ilícita, do dano e do nexo causal, isto é, a
conexão vinculativa entre efeito e causa, para a atribuição da responsabilidade
e a consequente imposição reparadora.
Assim, as céleres transformações, encaradas pelo sociólogo Ulrich Beck
como formadoras de uma “sociedade de risco” 9, traduzem-se em um cenário de
inescrupulosa produção de riquezas, ao passo que destroem, devastam e
9
Para Ulrich Beck existe uma notável e alarmante exportação invisível de perigos e riscos
ambientais, ou seja, eles cruzam fronteiras sem ser detectados. BECK, Ulrich. Sociedade de
risco: rumo a uma outra modernidade. Rio de Janeiro: Editora 34, 2011.
126
Letícia Furtado Oliveira Menezes & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
impactam na qualidade do ecossistema global, viabilizando a geração de riscos
socioambientais massivos e epidêmicos.
Nesse sentido, a responsabilidade civil ambiental consiste em um
fenômeno jurídico-social basilar para o debate e compreensão efetiva acerca dos
impactos nefastos ao meio ambiente no cenário hodierno. Tem-se que o dever
de reparação dos danos ambientais apresenta proteção de caráter jurídico-
constitucional (§3º do art. 225 da Constituição Federal de 1988) e, à luz de tais
concepções, desnuda um cenário de urgente busca pela manutenção da
homeostase natural a nível global.
As condutas e atividades encaradas lesivas ao meio ambiente devem
sujeitar os infratores, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, às sanções de
ordem penal, civil e administrativa – a depender do caso concreto em questão.
Logo, efetivar-se-á o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
asseverando aos cidadãos brasileiros a promoção de um direito humano de
terceira dimensão – pautado por um viés solidário de gerar uma vivência
harmoniosa de âmbito coletivo.
Reconhecer a importância da responsabilização civil ambiental no
tocante à reparação de danos permite, portanto, a concreta e real proteção de
um bem jurídico fundamental para a vivência qualitativa dos seres humanos, bem
como revela a imediata carência de reestruturação do patrimônio natural que
vem sendo, deploravelmente, tolhido e devastado – fato este que gera a
premente reparação.
3 A RESPONSABILIDADE AMBIENTAL COMO OBRIGAÇÃO PROPTER
REM E O PRINCÍPIO DO POLUIDOR PAGADOR
Sob uma ótica socioambiental, compreender e considerar, efetivamente,
a essencialidade da análise da deflagração de danos ambientais e a
consequente responsabilização daqueles que têm vinculação direta ou indireta
com tal ocorrência é basilar para a promoção concreta de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
127
Responsabilidade civil ambiental em face da natureza (...)
Consideram-se como pressupostos para a ocorrência da
responsabilidade civil por danos de caráter ambiental, conforme explanado
anteriormente: a ação, atividade ou conduta ilícita, contrária à legislação
ambiental ou que gerem risco à saúde e ao meio ambiente; dano ambiental; nexo
de causalidade entre a ação e o resultado danoso.
Nesse âmbito, no tocante ao grau de contribuição para o dano,
depreende-se, inicialmente, que, embora existam discussões doutrinárias
frequentes acerca da temática, sedimenta-se que a obrigação de recuperação
da degradação de caráter ambiental recai sobre o titular do imóvel ou da
propriedade em questão, mesmo que não tenha ocorrido, de fato, a contribuição
deste para a deflagração e ocorrência do dano. Isto é, a simples presença do
dano, independente de quem o cometeu, implicará a obrigação de repará-lo.
Tal concepção pauta-se mediante avaliação doutrinária, legislativa e
jurisprudencial à luz da conceituação de obrigação propter rem e sua implicação
no Direito Ambiental, sendo esta fundamentadora de decisões judiciais que
ampliaram, demasiadamente o rol de responsabilizações da área lesada.
Dessa forma, a obrigação propter rem se estabelece, conforme
preconiza Rosenvald 10
:
As obrigações propter rem são prestações impostas ao titular de
determinado direito real, pelo simples fato de assumir tal
condição. As obrigações mistas são simbióticas, pois
apresentam características comuns aos direitos obrigacionais e
reais. A pessoa assume uma prestação de dar, fazer ou não
fazer, em razão da aquisição de um direito real. Uma importante
situação de imbricação entre direito real e obrigacional instala-
se no momento da formação das obrigações propter rem ou ob
rem. Conhecidas também como obrigações mistas ou
ambulatórias, constituem uma figura peculiar, pois se inserem
entre os direitos reais e os direitos obrigacionais, assimilando
características de ambos.
10
ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 16. ed. Salvador: JusPodivm, 2022.
v. 2. p. 81-82.
128
Letícia Furtado Oliveira Menezes & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Assim, com relação à obrigação propter rem de caráter ambiental, fica
encarregado o proprietário de determinada área pelo cumprimento de uma série
de deveres, visando a asseguração de requisitos fundamentais que
acompanham o título da propriedade.
Nesse sentido, fixa-se a primazia da função socioambiental da
propriedade, presente no artigo 5º, inciso XXIII e no artigo 186 da Constituição
Federal de 1988, o qual coloca o proprietário em uma posição que objetiva
proteger os recursos ambientais encontrados no imóvel a ele pertencente – fato
este que se refere tanto a manutenção dos elementos existentes como a
consequente reparação em caso de dano.
Entretanto, é válida a menção que, em casos de aluguel, comodato ou
arrendamento de um imóvel, a obrigação permanece indissociada daquele que
detém o título de propriedade do imóvel, haja vista a funcionalidade da natureza
real dessas situações, ou seja, o ônus de conservação permanece inserido nas
obrigações do locador/comodante/arrendador.
Porém, todos aqueles que, por ação ou omissão, contribuem para a
ocorrência do dano ambiental respondem solidariamente, ou seja, mesmo que o
locatário/comodatário/arrendatário produza o dano de forma ativa, a outra parte
da relação jurídica contribui de forma passiva, mediante omissão, posto a falta
de fiscalização da propriedade e do uso a ela atribuído, que culminou em dano.
Dispõem Ana Maria Moreira Marchesan, Annelise Monteiro Steigleder e
Sílvia Cappelli 11 que a reponsabilidade civil consiste em ser um regime de
responsabilização de caráter objetivo, segundo o qual todos os sujeitos que
desempenharem uma atividade danosa ao meio ambiente, ou que gere
incolumidade de terceiros, deverão ser responsabilizados pelo risco, sem
necessariamente serem legitimados a presença de culpa ou dolo do agente para
a proposição de ação civil de ordem pública.
11
MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELLI, Silvia.
Direito ambiental. São Paulo: Editora Verbo Jurídico, 2013. p. 200.
129
Responsabilidade civil ambiental em face da natureza (...)
Tem-se disciplinado, por meio da Súmula 652 do Superior Tribunal de
Justiça, entendimento que, independentemente da qualificação jurídica do
degradador, este será responsabilizado civilmente, além de declarar que o
Estado também responde por omissão em casos de dano ambiental por
decorrência de falta de fiscalização efetiva ou de ações preventivas não
realizadas. Outrossim, em consonância com a Súmula 652, tem-se o seguinte
julgado: 12
Ambiental. Unidade de Conservação de Proteção Integral
(Lei9.985/00). Ocupação e construção ilegal por particular no Parque
Estadual de Jacupiranga. Turbação e esbulho de bem público. Dever-
poder de controle e fiscalização ambiental do Estado. Omissão. Art.70,
§ 1º, da Lei 9.605/1998. Desforço imediato. Art. 1.210, § 1º, do Código
Civil. Artigos 2º, I e V, 3º, IV, 6º e 14, § 1º, da Lei 6.938/1981 (Lei da
Política Nacional do Meio Ambiente). Conceito de poluidor.
Responsabilidade civil do Estado de natureza solidária, objetiva,
ilimitada e de execução subsidiária. Litisconsórcio facultativo.
(...)
4. Qualquer que seja a qualificação jurídica do degradador, público ou
privado, no Direito brasileiro a responsabilidade civil pelo dano
ambiental é de natureza objetiva, solidária e ilimitada, sendo regida
pelos princípios do poluidor-pagador, da reparação in integrum, da
prioridade da reparação in natura, e do favor debilis, este último a
legitimar uma série de técnicas de facilitação do acesso à Justiça, entre
as quais se incluem a inversão do ônus da prova em favor da vítima
ambiental. Precedentes do STJ.
5. Ordinariamente, a responsabilidade civil do Estado, por omissão, é
subjetiva ou por culpa, regime comum ou geral esse que, assentado
no art. 37 da Constituição Federal, enfrenta duas exceções principais.
Primeiro, quando a responsabilização objetiva do ente público decorrer
de expressa previsão legal, em microssistema especial, como na
proteção do meio ambiente (Lei 6.938/1981, art. 3º, IV, c/c o art. 14, §
1º). Segundo, quando as circunstâncias indicarem a presença de um
standard ou dever de ação estatal mais rigoroso do que aquele que
12
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça - STJ, REsp 1071741-SP, 2ª Turma, relator Ministro
Herman Benjamin, 24/03/2009, DJe 16/12/2010.
130
Letícia Furtado Oliveira Menezes & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
jorra, consoante a construção doutrinária e jurisprudencial, do texto
constitucional.
Nota-se o embasamento decisional fundamentado em princípio de notável
relevância para o Direito Ambiental Brasileiro: princípio do poluidor-pagador. Tal
conceituação expressa, conforme o artigo 3º da Lei 6.938/1981 (Política Nacional
do Meio Ambiente), que denomina poluidor “a pessoa física ou jurídica, de direito
público ou privado, responsável direta ou indiretamente por atividades
causadoras de degradação ambiental”.
O princípio do poluidor-pagador baseia-se, em síntese, na obrigação e
imposição do poluidor de arcar com os custos da reparação do dano causado ao
meio ambiente por ele, de forma direta ou indireta. Origina-se na Europa e se
encontra disciplinado nas definições da Declaração do Rio 92 e positivado pelo
ordenamento brasileiro no art. 225, § 3° da CF/1988 e art. 14 da Lei 6.938/1981.
Nessa ótica, o conceito de poluidor não encontra limitações somente na
pessoa autora direta do dano, haja vista que há uma expansão para todos que
tenham contribuído para o dano, inclusive o próprio Poder Público por ação ou
omissão – fato este que se interrelaciona, demasiadamente, com a visão de
atribuição de responsabilização civil objetiva, de forma a assegurar a
preservação para as presentes e futuras gerações.
Em consonância com a Lei 6.938/1981, há o estabelecimento positivado,
em seu parágrafo primeiro, acerca das penalidades previstas ao poluidor, não
necessariamente com a declaração de culpa, reparar os danos causados ao
meio ecológico e à terceiros. Cabe, portanto, ao Ministério Público da União e
dos Estados a promoção de ação de responsabilidade civil e criminal em
decorrência da deflagração de tais danos.
Tal cenário preconiza a importância do estabelecimento de mecanismos
ativos de responsabilização e consequente reparação das circunstâncias que
131
Responsabilidade civil ambiental em face da natureza (...)
provoquem uma grave desestabilização do ecossistema e repercuta, por
conseguinte, na homeostase dos seres vivos e na saúde da espécie humana.
A interligação entre responsabilidade civil objetiva integral e a
configuração do princípio do poluidor-pagador torna-se, de forma frequente,
matéria disciplinada pelas cortes superiores. Exemplifique-se com o Recurso
Especial 1.381.211/TO, em que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o
proprietário de área rural onde se iniciou incêndio responde pelos danos
ambientais causados ao meio ambiente e à propriedade rural vizinha: 13
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO CONDENATÓRIA POR DANOS
EXTRAPATRIMONIAIS E PATRIMONIAIS - INCÊNDIO INICIADO NA
ÁREA DE PROPRIEDADE DO RÉU QUE ATINGIU O IMÓVEL RURAL
DO AUTOR - SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA - CORTE LOCAL
QUE, AO RECONHECER A RESPONSABILIDADE CIVIL
AMBIENTAL DO RÉU (ART. 3º, INC. IV E ART. 14, § 1º, DA LEI
6.938/81), CONDENA-O AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR
DANOS PATRIMONIAIS, A SEREM QUANTIFICADOS EM
LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA - INSURGÊNCIA RECURSAL DA
PARTE RÉ. DANOS AMBIENTAIS INDIVIDUAIS OU REFLEXOS
(POR RICOCHETE) - RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA -
APLICAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 14, § 1º, DA LEI Nº
9.938/81, E, OUTROSSIM, EM VIRTUDE DA VIOLAÇÃO A DIREITOS
DE VIZINHANÇA - RECONHECIMENTO DO DEVER DE INDENIZAR
IMPUTÁVEL AO PROPRIETÁRIO DO IMÓVEL.
Pretensão ressarcitória deduzida com escopo de serem indenizados
os danos decorrentes de incêndio iniciado em propriedade vizinha,
ocasionado pela prática de queimada. Pedidos julgados improcedentes
pelo magistrado singular. Sentença reformada pela Corte de origem,
ao reconhecer a responsabilidade objetiva e solidária do proprietário
do imóvel lindeiro pelos danos decorrentes do incêndio, ainda que
praticado por terceiro (arrendatário ou gestor de negócios), tendo em
vista a aplicação dos ditames da responsabilidade civil ambiental.
(...)
13
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça - STJ, REsp 1381211-TO, 4ª Turma, relator Ministro
Marco Buzzi, 15/05/2014, DJe 19/09/2014.
132
Letícia Furtado Oliveira Menezes & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
2. O conceito de dano ambiental engloba, além dos prejuízos causados
ao meio ambiente, em sentido amplo, os danos individuais, operados
por intermédio deste, também denominados danos ambientais por
ricochete - hipótese configurada nos autos, em que o patrimônio
jurídico do autor foi atingido em virtude da prática de queimada em
imóvel vizinho.
(...)
3. Não obstante a análise do caso à luz dos ditames da
responsabilidade civil ambiental, a conclusão encerrada nas hipóteses
dos autos justifica-se, outrossim, sob a ótica do direito civil (em sentido
estrito), notadamente porque aplicável a responsabilidade objetiva
decorrente da violação de direitos de vizinhança, os quais coíbem o
uso nocivo e lesivo da propriedade.
4. Nos termos do enunciado nº 318 deste Tribunal Superior, "formulado
pedido certo e determinado, somente o autor tem interesse recursal em
arguir o vício da sentença ilíquida".
5. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE E, NA
EXTENSÃO, NÃO PROVIDO.
Sedimentando essa evolução jurisprudência, o STJ, em julgado recente
(DJe 26/09/2023), relativo ao Tema 1.204, firmou a seguinte tese jurídica:
As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo
possível exigi-las, à escolha do credor, do proprietário ou
possuidor atual, de qualquer dos anteriores, ou de ambos,
ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real
tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele
não tenha concorrido, direta ou indiretamente.
Importa realçar a exceção, constante na tese firmada pelo STJ, no sentido
de que somente não será responsabilizado o anterior proprietário que comprovar
que alienou o bem imóvel antes do início do dano ambiental. E isso porque,
durante o período em que foi proprietário, não causou nem contribuiu para
nenhum dano, o que não fica caracterizada a ação ilícita deste antigo
proprietário.
133
Responsabilidade civil ambiental em face da natureza (...)
Em síntese, o reconhecimento da importância da busca pela
asseguração de um meio ambiente qualitativo é um tema que permite uma
amplitude de discussões em âmbito teórico, mas que apresenta uma notável e
concreta aplicabilidade prática, em decorrência da frequente e real urgência de
tal problemática, sendo uma realidade que, lamentavelmente, encontra-se cada
vez mais comum frente às situações de constantes e inescrupulosas ações que
culminam em um dano ambiental.
4 CONCLUSÃO
Mediante o exposto, evidencia-se que o presente artigo, mediante uma
avaliação doutrinária, legislativa e jurisprudencial, culminou em uma análise
efetiva acerca das implicações vinculadas à responsabilidade civil ambiental a
partir da interligação entre o caráter propter rem obrigacional e o princípio do
poluidor-pagador.
Compreender de forma clara as implicações que tal responsabilidade
exerce no âmbito socioambiental brasileiro gera, essencialmente, a validação
dos fundamentos legais e principiológicos que sustentam e embasam a garantia
constitucional de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Nesse âmbito, tem-se como validada a pergunta inicial proposta como
fundamento metodológico do referido estudo, ao evidenciar que, de fato, a
responsabilidade ambiental como obrigação propter rem contribui para a
efetivação de direitos humanos fundamentais e a garantia de direitos de terceira
geração.
Em um cenário hodierno pautado por alarmantes e nefastas ocorrências
que implicam em danos ambientais no patrimônio natural e na fauna e flora, a
atribuição da responsabilidade permite a consequente reparação e, dessa forma,
gera a busca pela recuperação da área degradada, ao resgatar a manutenção
da vida sadia e conservação da fauna, flora e dos demais recursos naturais
basilares para a vida no planeta.
134
Letícia Furtado Oliveira Menezes & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
A responsabilização por dano ultrapassa a figura exclusiva daquele que
cometeu tal ato, sendo uma atribuição cabível a todos que, por ação ou omissão,
contribuem para a ocorrência do dano ambiental respondem de forma solidária.
Tal contexto evidencia uma crítica massiva e pertinente acerca da
valoração a ser atribuída a todos os cidadãos no tocante à efetivação de seu
papel enquanto sujeitos fiscalizadores da proteção ambiental, haja vista que,
somente assim, será possível a garantia de condições fundamentais para o
equilíbrio entre atividade econômica e a proteção ambiental. Cabe também ao
Poder Público, enquanto representante do povo, realizar e fixar ações de
políticas fiscalizadoras nas propriedades e Unidades de Conservação no país,
possibilitando a atenuação de impacto tão severos de ordem natural.
Foi proposta uma abordagem concreta acerca de uma problematização
social com notável repercussão jurídica, permitindo, em suma, a promoção de
debates acadêmicos acerca do tema, além de trazer luz às prerrogativas
protetivas e de reparação de danos ambientais que tanto impactam o cenário
contemporâneo; ficando evidente que atribuir responsabilidade de reparar o
dano contribui, de fato, para o atendimento às demandas socioambientais
hodiernas, de forma a alcançar a efetiva homeostase ecológica.
REFERÊNCIAS
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Rio de
Janeiro: Editora 34, 2011.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça - STJ, REsp 1381211-TO, 4ª Turma,
relator Ministro Marco Buzzi, 15/05/2014, DJe 19/09/2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça - STJ, REsp 1071741-SP, 2ª Turma,
relator Ministro Herman Benjamin, 24/03/2009, DJe 16/12/2010.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. Porto
Alegre: L&PM, 2018.
LOVELOCK, James E. Gaia: Um novo olhar sobre a vida na Terra. Coimbra:
Edições 70, 2020.
135
Responsabilidade civil ambiental em face da natureza (...)
MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro;
CAPPELLI, Silvia. Direito ambiental. São Paulo: Editora Verbo Jurídico,
2013.
MARRIOT, Emma. A História do mundo para quem tem pressa. 14. ed. Rio
de Janeiro: Editora Valentina, 2015.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Declaração de Estocolmo
sobre o Meio Ambiente Humano. In: Anais Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente Humano. Estocolmo, jun. 1972.
ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 16. ed. Salvador:
JusPodivm, 2017, v. 2.
136
Democracia e participação política dos indígenas: análise das
eleições municipais de 2020 de Marcação – PB
Linaldo de Oliveira Lima 1
1 INTRODUÇÃO
Ao longo dos séculos, a ideia de dar poder às pessoas para tomarem
decisões coletivas moldou a forma como as sociedades se organizam
politicamente. A representação dos povos originários no pleito eleitoral brasileiro
tem se tornado objeto de discussões tanto nas áreas sociais quanto políticas.
Este artigo tem como objetivo principal analisar a participação
democrática dos indígenas nas eleições de 2020, no município de Marcação -
PB. Já como objetivos específicos investigar a democracia participativa na
atualidade; identificar o quantitativo de indígena na localidade; e descrever os
dados estatísticos e do perfil dos candidatos eleitos para os cargos eletivos de
prefeito, vice-prefeito e vereador em Marcação - PB.
Nesse contexto, o estudo busca, com base em dados estatísticos do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), responder a seguinte indagação: Os indígenas que habitam
no município de Marcação – PB exerceram a sua capacidade eleitoral passiva
nas eleições 2020, tendo acesso aos cargos eletivos em disputa?
Com o fim de responder tal indagação, o artigo foi estruturado em duas
seções. A primeira, trata da democracia representativa e da população indígena
no citado município. Já a segunda, cuida especificamente da participação dos
povos indígenas, da etnia Potiguara, nas eleições municipais de 2020 do
município de Marcação – PB.
Historicamente, a representatividade indígena nos cenários políticos - seja
em âmbito nacional, estadual ou municipal - tem sido notavelmente limitada.
1
Bacharel em Direito, especialista em Direito Eleitoral e mestrando em Direito pelo Centro
Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).
137
Linaldo de Oliveira Lima
Contudo, nas eleições municipais de 2020, observou-se um aumento
significativo nas candidaturas oriundas dessa população. A relevância deste
estudo reside na análise detalhada da atuação e desempenho dos indivíduos
que, autodeclarando-se indígenas, concorreram a todos os cargos disponíveis
(prefeito, vice-prefeito e vereador) na localidade em foco. A ênfase recai sobre
aqueles que, além de se apresentarem como candidatos, alcançaram notável
êxito nas urnas, sinalizando uma possível mudança na dinâmica representativa
tradicional.
A metodologia adotada neste estudo envolveu uma abordagem
multifacetada. Inicialmente, foi realizada a revisão bibliográfica, abrangendo
revistas, periódicos e artigos científicos pertinentes ao tema, buscando
compreender as nuances e contextos associados à representatividade indígena
no cenário político. Complementarmente, adotou-se uma análise qualitativa,
centrada na coleta e interpretação de informações estatísticas. As principais
fontes de dados para essa análise foram o TSE e o IBGE, instituições
reconhecidas por sua confiabilidade e abrangência na disponibilização de dados
relacionados ao cenário eleitoral e demográfico do país, respectivamente.
Assim, este artigo está dividido em duas seções, além dessa introdução
e das considerações finais. A primeira seção trata da democracia representativa
e os indígenas e a segunda seção aborda especificamente sobre o município de
Marcação - PB e a participação indígena nas Eleições 2020. Esta última seção
possui dois tópicos: análise das eleições 2020 de Marcação - PB para os cargos
de prefeito e vice-prefeito (majoritária) e análise do pleito proporcional de 2020
em Marcação – PB.
2 A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E OS INDÍGENAS
A Constituição Federal de 1988 2, após mais de duas décadas de regime
militar ditatorial no Brasil, trouxe ao seu texto mudanças relativas à democracia,
estabelecendo que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado
Democrático de Direito. O texto constitucional, em seus artigos 1º e 14,
2
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência
da República, 2023.
138
Democracia e participação política dos indígenas: análise das (...)
consignou expressamente as formas de representação da política no cenário
político.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-
se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição.
[...]
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e
pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da
lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular.
O art. 1º da Carta Magna 3 assegura que o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. A democracia direta
será exercida pelos cidadãos, pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto,
mediante o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, conforme consta no texto
constitucional (art. 14).
De acordo com Conceição 4 (2018), a Constituição de 1988 possui as
seguintes formas de participação popular: o plebiscito, o referendo e a iniciativa
popular, os conselhos de políticas públicas nas áreas de saúde, assistência
social e políticas urbana e os planos diretores municipais. A autora afirma que
uma democracia plena só será possível com as possibilidades concretas dos
3
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência
da República, 2023.
4
CONCEIÇÃO, K. F. J. A invisibilidade do indígena no processo eleitoral brasileiro: as
organizações indígenas e a luta pela representação política. 2018. Brasília: Universidade de
Brasília, 2018.
139
Linaldo de Oliveira Lima
povos indígenas se elegerem. Por fim, ela aponta que o financiamento de
campanha, diante do seu alto custo no Brasil, é uma grande barreira enfrentada
nas eleições pela referida população.
Pereira e Carvalho Júnior 5 (2021) afirmam que os direitos políticos são
direitos fundamentais que viabilizam a existência da democracia e
proporcionam o pleno desenvolvimento humano. A participação das minorias na
condução da vida política do Estado é fundamental para a construção de uma
sociedade verdadeiramente diversa, pluralista e democrática.
A participação indígena no processo eleitoral vem sendo debatida em
diferentes frentes: na antropologia, na ciência social, na ciência política, nas
ciências jurídicas, entre outras. Isso demonstra o interesse no estudo da sub-
representação dessa população, que tem mudado nos últimos pleitos eleitorais,
sinalizando para o despertar do interesse do referido grupo minoritário nas
discussões políticas.
A representação indígena no cenário político brasileiro é bem recente.
Machado et al. 6 (2021), ao tratar da baixa representatividade política indígena,
relata quando e como o primeiro deputado federal, Mário Juruna, foi eleito no
Brasil:
A baixa representatividade política indígena pode ser ilustrada pelo fato
de que desde a declaração da independência do país até o início desse
século, apenas um deputado indígena, Mário Juruna (PDT), foi eleito
para o Congresso Nacional. [...]
Em 1982, atendendo ao convite do governador do Rio Leonel Brizola e
refletindo uma ânsia do movimento indígena iniciado na década
anterior de cristalizar em ações concretas o protagonismo e autonomia
de seus representantes, o cacique xavante Mário Juruna se candidata
a deputado federal pelo PDT. Apesar de morar com seu povo em aldeia
no Mato Grosso, Juruna é eleito deputado pelo Estado do Rio de
Janeiro. Juruna era uma celebridade nacional e internacional que se
tornou popular com ajuda da mídia, principalmente por circular em
Brasília com um gravador usado nas reuniões com políticos e
dirigentes do governo na luta pela demarcação das terras indígenas.
Sua eleição tem grande importância na história da sociedade brasileira
por simbolizar o primeiro indígena eleito no Congresso Nacional.
5
PEREIRA, C. C.; CARVALHO JÚNIOR, A. R. B. A Participação Política dos Índios: uma
tentativa de inclusão. Resenha Eleitoral, Florianópolis, SC, v. 24, n. 2, p. 139–164, 2021.
6
MACHADO, J.; MEDEIROS, G. R.; SANTANA, A. G.; et. al. Representação indígena na
política: a evolução de candidaturas indígenas entre as eleições municipais de 2016 e 2020.
Cadernos PROMUSPP. São Paulo, v.1, n.1, p.47-59
140
Democracia e participação política dos indígenas: análise das (...)
Em nível municipal, o primeiro vereador indígena eleito no Brasil foi
Manoel dos Santos, seu Coco, do povo Karipuna (povos indígenas da região do
baixo rio Oiapoque), em 1969, que exerceu o mandato na cidade de Oiapoque
(Amapá). Já o primeiro prefeito indígena eleito, em 1996, foi João Neves, do
povo Galibi-Marworno, que comandou o executivo do mesmo município 7 (Tuxá
e Tuxá, 2020).
A 31ª Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) 8, realizada em Brasília,
no período de 9 a 12 de dezembro de 2018, reuniu antropólogas e antropólogos
do Brasil para debater sobre a participação de indígenas em processos eleitorais,
com ênfase para os poderes executivo e legislativo em nível municipal. No
referido evento (RBA), foi criado um Grupo de Trabalho (GT 52), que contou com
a participação de vários estudiosos do tema na área de antropologia e que
resultou na edição de um livro, com o seguinte tema: Antropologia da Política
Indígena - Experiências e dinâmicas de participação e protagonismo indígena
em processos eleitorais municipais (Brasil-América Latina).
Os organizadores da referida obra, De Paula e Verdum (2020) 9, ao
tratarem da participação indígena ao longo das últimas décadas, afirmam o
seguinte:
Apesar da participação de pessoas que se identificam como parte de
um grupo étnico indígena em processos eleitorais possuir uma longa e
intensa trajetória histórica no país, quando o tema vem à baila,
normalmente nos lembramos somente do mandato de deputado
federal do xavante Mário Juruna, eleito pelo Rio de Janeiro para a
legislatura de 1983-1987. Já tivemos e temos atualmente dezenas de
prefeitos, vice-prefeitos e vereadores pertencentes a um grupo étnico
indígenas, com mandatos efetivamente conquistados espalhados
pelos quatro cantos do país. Em 2018, tivemos uma candidatura
indígena à vice-presidência da República e uma deputada federal
eleita, a advogada Joenia Batista de Carvalho, mais conhecida como
Joenia Wapichana, do estado de Roraima.
7
TUXÁ, D.; TUXÁ, F. Vote parente, vote! A participação indígena no sistema eleitoral
brasileiro. APIB, 2020.
8
VERDUM, R.; DE PAULA, L. R. GT 52. Política indígena na política não indígena:
Experiências de participação e protagonismo indígena em processos eleitorais.
9
VERDUM, R.; DE PAULA, L. R. Antropologia da política indígena: experiências e dinâmicas
de participação e protagonismo indígena em processos eleitorais.
141
Linaldo de Oliveira Lima
Nesse contexto, a importância do tema reside da necessidade de levar ao
conhecimento da população acerca da participação indígena no processo
eleitoral, seja como eleitor e, especialmente, como candidato. Como visto acima,
a candidatura do indígena Mário Juruna foi concretizada por meio de interesse
político do então governador Leonel Brizola e que tornou possível o
aprimoramento da democracia, ao incluir um representante de grupo minoritário
no cenário político nacional.
Londero 10 (2015) destaca que a democracia não deve se limitar à
participação por meio do voto, alertando para a importância de considerar as
especificidades dos diferentes grupos sociais na busca pela representatividade
efetiva:
Não se pode negar que o fortalecimento da democracia através da
criação de instâncias participativas deve levar em conta as
especificidades dos diferentes grupos sociais que formam nossa
sociedade. Nesse sentido, o modelo participativo que não diferencia a
participação das minorias dificultando a representação de seus
interesses limita a efetividade da democracia. Se a participação se dá
meramente pelo voto e o peso do voto está baseado na quantidade e
não na especificidade da causa a ser votada, a representatividade de
grupos minoritários fica prejudicada.
A participação democrática deve considerar as especificidades dos
grupos sociais, garantindo a representatividade e igualdade de todos os
cidadãos. É necessário repensar os mecanismos participativos, superando as
barreiras que limitam a voz das minorias e promovendo uma cultura democrática
inclusiva. Ao ampliar a participação de forma plena e representativa,
fortalecemos os princípios fundamentais da democracia na busca de uma
sociedade mais inclusiva.
Além da tutela da democracia, por meio da representação democrática,
promovida pela Constituição Federal de 1988, a Declaração das Nações Unidas
sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela Assembleia Geral da ONU
10
LONDERO, M. Democracia e participação política indígena no estado do Rio Grande do
Sul: a atuação do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (1993-2014). Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2015.
142
Democracia e participação política dos indígenas: análise das (...)
em 2007 11, é um marco no reconhecimento e proteção dos direitos dos povos
indígenas, incluindo sua participação democrática (Nações Unidas, 2008). Este
documento representa um compromisso global em reconhecer e respeitar os
direitos indígenas como parte dos direitos humanos universais. Embora seja um
avanço na promoção da justiça e igualdade para esses povos, a implementação
eficaz desses direitos permanece um desafio global, exigindo ação contínua dos
Estados membros da ONU e da sociedade civil.
3 O MUNICÍPIO DE MARCAÇÃO - PB E A PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NAS
ELEIÇÕES 2020
A Câmara dos Deputados 12, ao noticiar o crescimento de indígenas eleitos
nas eleições de 2020, ressaltou que, no estado do Amazonas, os indígenas
eleitos passaram de 30 (trinta) para 38 (trinta e oito); na Paraíba, de 13 (treze)
para 18 (dezoito); em Roraima, de 13 (treze) para 15 (quinze). Por outro lado, a
representação indígena diminuiu em outros estados, incluindo Pernambuco (de
18 para 14), Bahia (de 14 para 9) e Acre (de 9 para 6). A Paraíba, nesse contexto,
se apresenta como o segundo estado com a maior representação política
(candidatos eleitos) no país nas eleições municipais de 2020, perdendo apenas
para o estado do Amazonas (BRANDÃO, 2020).
No município paraibano de Marcação-PB, ao se analisar os dados
estatísticos do Tribunal Superior Eleitoral - TSE 13, resta evidenciada uma sutil
retração de 6.549 (seis mil, quinhentos e quarenta e nove) eleitores em 2016
para 6.476 (seis mil, quatrocentos e setenta e seis) em 2020. Esta diminuição de
73 (setenta e três) eleitores em quatro anos reflete estabilidade no contingente
de eleitores da referida localidade (BRASIL, 2021).
O presente trabalho tem como foco central a análise da participação da
população indígena nas eleições de 2020, especificamente no que tange aos
cargos em disputa no município de Marcação, estado da Paraíba. Para uma
11
NAÇÕES UNIDAS. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos
Indígenas. Rio de Janeiro: Nações Unidas, 2008.
12
BRANDÃO, F. Cresce número de prefeitos e vereadores indígenas. Câmara dos
Deputados, 2020.
13
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Estatística do eleitorado geral da eleição 2020. Tribunal
Superior Eleitoral, 2022.
143
Linaldo de Oliveira Lima
compreensão mais aprofundada deste fenômeno, é imperativo contextualizar a
origem e evolução administrativa de Marcação, bem como sua significância
demográfica no panorama nacional.
Assim, será abordada a trajetória histórica que culminou na constituição
do município, bem como uma análise comparativa da proporção de habitantes
indígenas de Marcação em relação a outros municípios brasileiros. Esta
abordagem permite não apenas entender a singularidade da participação
indígena em Marcação, mas também situá-la dentro de um contexto mais amplo
de representatividade indígena no cenário político nacional.
O Distrito de Marcação - PB, subordinado ao Município de Rio Tinto - PB,
foi criado pela Lei Ordinária nº 3.307, de 30 de abril de 1965. No dia 29 de abril
de 1994, por meio da Lei Estadual nº 5.913, foi elevado à categoria de município
(Prefeitura Municipal de Marcação, 2022) 14. Em termos demográficos, conforme
dados fornecidos pelo IBGE (2022), o município registrou um incremento
populacional de 7.609 habitantes em 2010 para 8.999 em 2022 15, representando
uma ampliação de aproximadamente 18% em um intervalo de doze anos.
No relatório do IBGE 16 relativo aos indígenas no Censo Demográfico de
2010, Marcação – PB figurou entre os 10 municípios que apresentaram maior
proporção de indígenas. O citado relatório demonstra a posição de destaca do
município paraibano no contexto nacional, sugerindo que este comportamento
poderia indicar crescimento considerado de autodeclarações de indígenas na
referida localidade.
De acordo com dados do relatório do IBGE 17, é possível observar que, no
ano de 2010, Marcação destacava-se significativamente em termos de
proporção de população indígena. O município ostentava a segunda maior
14
História de Marcação – PB. Prefeitura Municipal de Marcação, 2022.
15
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). População de
Marcação - PB no censo de 2022. IBGE, 2022
16
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Os indígenas no Censo
Demográfico de 2010: primeiras considerações com base no quesito cor ou raça. Rio de
Janeiro: IBGE, 2012.
144
Democracia e participação política dos indígenas: análise das (...)
proporção nacional, com um índice correspondente a 77,5% de sua população
total identificando-se como indígena (IBGE, 2012).
Ao examinar a população indígena situada em zonas urbanas, constata-
se que o município de Marcação ocupa a primazia no cenário nacional,
apresentando uma representatividade de 66,2%, seguido por São Gabriel da
Cachoeira – AM com 57,8% e por Uiramutã – RR com 56,9%. Tais dados, de
maneira clara, enfatizam a proeminência e a significância da coletividade
indígena na composição demográfica de Marcação-PB, abarcando tanto as
regiões rurais quanto as urbanas (IBGE, 2012).
Com efeito, em uma análise subsequente, voltada especificamente para
a população indígena situada em zonas rurais, observa-se que o referido
município mantém uma posição relevante, ocupando a sexta colocação no
cenário nacional. Com uma representatividade de 84,2%, este índice é notável
e reitera a densidade da presença indígena na região (IBGE, 2012).
Diante da expressiva presença indígena em Marcação, conforme
evidenciado pelas estatísticas demográficas, surge uma indagação pertinente:
tal proeminência demográfica teria se traduzido em uma representação política
equivalente nas eleições de 2020, especificamente nas disputas majoritária e
proporcional do mencionado município? Esta questão busca compreender se a
densidade populacional indígena encontrou paralelo na esfera política local
durante o referido pleito eleitoral.
3.1 Análise das eleições 2020 de Marcação - PB para os cargos de prefeito
e vice-prefeito
Em consulta ao Sistema de Candidaturas 18 (BRASIL, 2020) do TSE,
foram identificadas duas chapas majoritárias que concorreram nas eleições de
2020 em Marcação, na Paraíba. A primeira chapa, vitoriosa, era composta pelos
candidatos Eliselma Silva de Oliveira (prefeito) e Reginaldo Benjamim de Barros,
representando a coligação "O Progresso Não Pode Parar," que era formada
pelos partidos CIDADANIA e DEMOCRATA. A segunda chapa era composta
18
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais nas
Eleições de 2020 (majoritária).
145
Linaldo de Oliveira Lima
pelos candidatos Paulo Sérgio Ferreira de Araújo (prefeito) e Angélica de Oliveira
Barreto, que faziam parte da Coligação "Marcação de Frente Para o Futuro,"
composta pelos partidos Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB) e
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
Nas eleições municipais de 2020, um fato notável foi a reeleição de
Eliselma uma indígena ao cargo de prefeito. Ela já havia exercido o cargo de
vice-prefeita em 2012, e disputou a vaga contra o candidato Paulo Sérgio
Ferreira de Araújo, também autodeclarado indígena, e sua candidata a vice,
Angélica de Oliveira Barreto. A participação dos mencionados candidatos denota
a crescente representatividade dos líderes indígenas na política local,
evidenciando a valorização da diversidade étnica e cultural nas eleições
municipais de Marcação – PB (BRASIL, 2020).
Vale ressaltar, por oportuno, no referido pleito para o Executivo municipal,
a importância da reeleição de uma candidata indígena, notadamente no cenário
atual em que se encontra em forte debate acerca da tomada de novas políticas
afirmativas para a inclusão da mulher no cenário político, ainda tão desigual
comparado ao eleitorado nacional, majoritariamente feminino.
Conforme levantamento realizado pela Câmara dos Deputados 19
(Brandão, 2020), foi observada uma evolução na representatividade política dos
indígenas, especialmente no que concerne à eleição de prefeitos e vereadores.
Neste panorama, o Estado da Paraíba se destacou, alcançando a segunda
posição em termos de número de indígenas eleitos no pleito de 2020. Esta
posição é notável, sobretudo quando se considera o vasto espectro de unidades
federativas do Brasil. O Estado do Amazonas, com sua rica tradição e densidade
populacional indígena, foi o único a superar a Paraíba na representatividade
política indígena.
3.2 Análise do Pleito proporcional de 2020 em Marcação - PB
Nas eleições de 2020 para o cargo de vereador do município de Marcação
– PB, de acordo com dados extraídos da base de dados da Justiça Eleitoral
19
BRANDÃO, F. Cresce número de prefeitos e vereadores indígenas. Câmara dos
Deputados, 2020.
146
Democracia e participação política dos indígenas: análise das (...)
(TSE) 20, é possível constatar que 88,9% dos candidatos eleitos são indígenas,
enquanto 11,1% são pardos. Tal constatação demonstra um panorama relevante
de engajamento político por parte das comunidades indígenas, evidenciando
uma busca ativa por representação política. Vê-se, ainda, que 62.5% dos
candidatos indígenas eleitos possuem ensino médio completo, enquanto 25%
possuem curso superior e 12.5% possuem ensino fundamental completo
(BRASIL, 2020).
Pode-se constatar, outrossim, que o Partido Cidadania elegeu 44% dos
candidatos; o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido
Democratas elegeram 22% cada e o Partido Renovador Trabalhista Brasileiro
(PRTB) elegeu 11%. Todas as agremiações partidárias que participaram das
eleições de 2020 (PSDB, CIDADANIA, DEMOCRATAS E PRTB) elegeram
candidatos que se autodeclararam indígenas. Outro dado relevante é que a
Câmara de Vereadores reelegeu 2/3 dos candidatos (2016/2020). Assim, os
candidatos autodeclarados indígenas Gilmarcos da Silva Martins, Giovane
Candido Lima, Joseane Maria Alves Cunha de Lima, Rafael Santos Alfredo e
Samuel Gomes dos Santos foram reeleitos em 2020, ocorrendo uma ampliação
significativa da ocupação de vagas do parlamento mirim por indígenas (BRASIL,
2020).
Quanto ao candidato Marinaldo Aguiar Medeiros (pardo), destaca-se
como um dos reeleitos não indígenas, sendo relevante ressaltar a
representatividade civil não indígena em Marcação - PB, que foi eleito pelo
Partido Democratas para o cargo de vereador nas eleições de 2008, 2012 e 2016
(BRASIL, 2020) 21.
De acordo com os dados estatísticos do Tribunal Superior Eleitoral, em
2016 22, 24 (vinte e quatro) candidatos que se autodeclararam indígenas para
concorrer ao cargo de vereador, com 5 (cinco) candidatos indígenas eleitos. Já
nas eleições de 2020, apesar de os indígenas terem apresentado aumento
20
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Estatística do eleitorado do município de Marcação
da eleição 2020. Tribunal Superior Eleitoral, 2021.
21
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais nas
Eleições de 2020 (proporcionais). Tribunal Superior Eleitoral, 2020.
22
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Estatística do eleitorado do município de Marcação
da eleição 2016. Tribunal Superior Eleitoral, 2021.
147
Linaldo de Oliveira Lima
quantidade inexpressivo de candidaturas, 25 (vinte e cinco), foram eleitos 8 (oito)
indígenas. Em relação ao pleito majoritário, além da mulher indígena reeleita
para a majoritária, foram apresentadas duas candidaturas indígenas, Paulo
Sérgio Ferreira de Araújo, ao cargo de prefeito, e na mesma chapa dele, Angélica
de Oliveira Barreto, ao cargo de vice-prefeito (BRASIL, 2021) 23.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As eleições de 2020 no município de Marcação-PB demonstrou a efetiva
participação da população indígena para todos os cargos em disputa,
especialmente com a reeleição da prefeita e a conquista de oito das nove vagas
da câmara de vereadores.
A legislação brasileira tem evoluído no sentido de fomentar a inclusão das
minorias no cenário político brasileiro. Marcação foi elevada a condição de
município no ano de 1994, após a promulgação da última Constituição Federal,
e com a sua história recente tem dado exemplo para o Brasil na participação
política dos indígenas nos diferentes cargos eletivos. Apesar desse caso isolado
de sucesso na representação política dessa população, a situação não se mostra
como regra, o que reclama a criação de mecanismo em busca dessa maior
participação.
Para Pereira e Carvalho 24 (2020), a criação de cotas eleitorais pode ser
um importante instrumento de transformação da realidade indígena, ampliando
a participação e a representativa política, bem como uma maior atenção da
Justiça Eleitoral na tentativa de alinhar as normas eleitorais ao espírito da
Constituição, em respeito à diversidade cultural dos povos étnicos.
A Resolução Tribunal Superior Eleitoral nº 23.659/2021 25, em seu art. 13,
estabelece que é direito fundamental da pessoa indígena ter considerados, na
prestação de serviços eleitorais, sua organização social, seus costumes e suas
línguas, crenças e tradições. E, no § 3º do mesmo artigo, prevê que não se
23
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Estatística do eleitorado do município de Marcação
da eleição 2020. Tribunal Superior Eleitoral, 2021.
24
PEREIRA, C. C.; CARVALHO JÚNIOR, A. R. B. A Participação Política dos Índios: uma
tentativa de inclusão. Resenha Eleitoral, Florianópolis, SC, v. 24, n. 2, p. 139–164, 2021.
25
BRASIL. Resolução do Tribunal Superior Eleitoral nº 23.659/2021. Tribunal Superior
Eleitoral, 2021.
148
Democracia e participação política dos indígenas: análise das (...)
exigirá a fluência na língua portuguesa para fins de alistamento, assegurando-
se a cidadãos e cidadãs indígenas, o uso de suas línguas maternas e processos
próprios de aprendizagem.
Nesse contexto, a participação dessa parcela da população deve ser
assegurada no processo de alistamento eleitoral, momento em que a pessoa
adquire a sua capacidade eleitoral ativa, direito de votar, e, igualmente, no
exercício da sua capacidade eleitoral passiva, direito de ser votado, confirmando
a evolução da democracia com a participação dos grupos minoritários nas
discussões políticas no contexto nacional.
O eleitorado do município de Marcação - PB 26, apresentou uma ligeira
diminuição entre os anos de 2016 e 2020. Em 2016, o município tinha 6.549
(cinco mil, quinhentos e quarenta e nove) eleitores inscritos, enquanto em 2020
esse número caiu para 6.476 (seis mil, quatrocentos e setenta e seis). Isso
representa uma redução de 73 (setenta e três) eleitores em um período de quatro
anos, conforme dados do Tribunal Superior Eleitoral (2020).
Por outro lado, a representação indígena nas eleições municipais de
Marcação, no estado da Paraíba, é um indicativo incontestável da crescente
inserção desses povos no cenário político local. O aumento na quantidade de
candidatos indígenas eleitos entre os anos de 2016 e 2020 não apenas evidencia
uma tendência ascendente na aceitação e confiança depositada nos
representantes originários pelo eleitorado, mas também destaca a amplitude de
sua participação. As eleições de 2020 em Marcação serviram como um exemplo
emblemático da participação indígena tanto nas eleições majoritárias quanto nas
proporcionais. Este engajamento não apenas fortalece a estrutura democrática
local, mas também estabelece um marco, sublinhando a imperatividade da
inclusão e representatividade indígena no panorama político contemporâneo.
Em Marcação - PB, a significativa proporção de habitantes indígenas, que
figura entre as dez maiores do país, reforça a necessidade de uma
representação política proporcional à composição demográfica da região. A
26
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Estatística do eleitorado do município de Marcação
da eleição 2020. Tribunal Superior Eleitoral, 2021.
149
Linaldo de Oliveira Lima
presença marcante de candidatos e representantes eleitos de origem indígena
nas eleições de 2020 no referido município não é apenas um reflexo da
demografia, mas também a sua afirmação, onde a maioria tem seu espaço e voz
garantidos. Esta representatividade é essencial para assegurar que as políticas
e decisões tomadas no âmbito municipal estejam alinhadas com as
necessidades, aspirações e valores da população indígena, que compõe a
maioria na região.
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152
O papel fundamental da função social do contrato na
preservação da dignidade da pessoa humana e dos direitos
civis
Letícia Mayara Araújo da Silva *
Maria Gabriela Silva Alves **
Fábio Luiz de Oliveira Bezerra ***
1 INTRODUÇÃO
A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, a função social
ganhou destaque significativo no âmbito dos negócios jurídicos, elevando-se ao
status de um princípio contratual de extrema importância. Desde então, tornou-
se imperativo direcionar uma atenção cuidadosa para garantir a preservação da
dignidade da pessoa humana, dos direitos civis e do interesse social que permeia
as relações entre indivíduos privados. Logo, emerge a importância da função
social, cuja incumbência se consolida como uma defensora do bem coletivo,
garantindo que os direitos sociais prevaleçam sobre os direitos individuais.
Em um movimento legislativo que pretendia expressamente valorizar a
liberdade nas relações econômicas, foi promulgada a Lei 13.874/2019,
denominada de Lei de Liberdade Econômica (LLE), que instituiu a Declaração
de Direitos de Liberdade Econômica e estabeleceu garantias de livre mercado.
A LLE também alterou o Código Civil, incluindo o caput do artigo 421 1, retirando
a expressão “em razão de”, passando a função social a ser apenas limite da
liberdade contratual, não mais fundamento.
*
Bacharelanda em Direito (UFRN), e-mail: [email protected].
**
Bacharelanda em Direito (UFRN), e-mail: [email protected].
***
Professor Adjunto (UFRN), Doutor em Direito, e-mail: [email protected].
1
Atente-se para a redação originária: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão
e nos limites da função social do contrato” (grifou-se). Com a LLE, a redação ficou assim: “Art.
421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”.
153
O papel fundamental da função social do contrato na (...)
Embora haja críticas acerca das restrições significativas impostas ao
princípio da autonomia da vontade devido à abordagem intervencionista do
Estado presente no Código Civil brasileiro, não se pode negar a necessidade de
estabelecer limites à autonomia contratual, a fim de prevenir abusos entre as
relações particulares.
É nesse contexto de alteração legislativa e de busca por um equilíbrio
entre os sujeitos celebrantes de negócios jurídicos e os interesses sociais, sem
que seja prejudicado o bem-estar coletivo, que emerge a problemática do tema,
a ser enfrentado neste trabalho, a qual pode ser sintetizada na seguinte pergunta
de pesquisa: qual o impacto normativo desta alteração legislativa no princípio da
autonomia privada e no princípio da função social, na perspectiva dos direitos
humanos de natureza civil?
Com o propósito de responder a esta indagação, o presente trabalho tem
o objetivo geral de abordar o conteúdo normativo da função social após a
alteração promovida pela LLE em cotejo com o princípio da autonomia privada,
quanto aos reflexos nas relações negociais em que os celebrantes disciplinam
direitos civis.
De modo específico, o artigo pretende verificar a constitucionalidade
dessa diminuição do escopo da função social, realizada pela Lei da Liberdade
Econômica, frente ao assento constitucional da função social, compreendendo o
alcance do afastamento das regras da constitucionalização das obrigações nos
negócios jurídicos.
Tal questionamento se baseia no conflito entre essa norma e o princípio
da função social, que está intrinsecamente ligado à constitucionalização do
Direito Civil. Nesse sentido, é imprescindível que não se questione a supremacia
da Constituição Federal, uma vez que ela ocupa o topo da hierarquia do
ordenamento jurídico, estabelece regras e serve como fundamento para todos
os outros ramos do Direito. É ainda mais relevante destacar que o cumprimento
desse princípio não implica a aniquilação da autonomia da vontade.
154
Letícia Mayara Araújo da Silva, Maria Gabriela Silva Alves & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
É necessária a análise dessa problemática, já que é insustentável esse
cenário de divergência, pois rompe com um princípio fundamental da
Constituição Federal e, consequentemente, coloca em risco as garantias
fundamentais dos indivíduos, como a dignidade humana, e seus direitos civis.
Dessa forma, a partir dessa indagação, busca-se igualmente o objetivo de
desvelar possíveis transgressões dos direitos sociais decorrentes do advento de
uma perspectiva mais liberal das relações contratuais e examinar se a dignidade
da pessoa humana está sendo preservada.
De tal modo, é impreterível ressaltar que a hipótese a ser testada neste
trabalho é a de que alteração do art. 421 pela LLE não consiste em uma
inconstitucionalidade frontal, aquela que acarretaria inconformidade direta com
os preceitos fundamentais da carta magna. Ao invés disso, emerge a
necessidade premente de aplicar a técnica de interpretação conforme,
demandando uma compreensão e análise aprofundada do conteúdo normativo,
a fim de avaliar em que medida é permitido ao legislador concretizar os valores
constitucionais de forma autônoma, almejando-se tornar as relações contratuais
socialmente mais equitativas, pautadas na dignidade humana como valor
norteador.
Com a finalidade de obter resultados e respostas para a problematização
em questão, será utilizado o método descritivo, exploratório e avaliativo, por meio
de pesquisa documental, legal, jurisprudencial e bibliográfica, dispondo da
abordagem qualitativa e do aporte hipotético-dedutivo.
Assim, a fundamentação desse trabalho será marcada pela análise de
ideias de outros autores, seja favorável ou não, para assim ter a construção de
uma análise científica sobre o objeto de estudo. A linha teórica adotada, que
formará a base para que se possa chegar a uma resposta pergunta de pesquisa,
diz respeito à origem, evolução e conteúdo normativo da função social, com sua
aplicação nas relações negociais.
O desenvolvimento do presente trabalho seguirá uma estruturação
composta da presente introdução (tópico 1), seguida da análise do princípio da
função social (tópico 2), depois pela abordagem da LLE e seus reflexos nas
155
O papel fundamental da função social do contrato na (...)
relações negociais (tópico 3), e, por fim, fazem-se as notas conclusivas (tópico
4).
2 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL
A função social foi positivada no ordenamento jurídico brasileiro antes
mesmo da Constituição Federal de 1988 (CF/1988). De fato, o Estatuto da Terra
(Lei 4.504/1964) prescreve, em seu art. 2°, que “é assegurada a todos a
oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função
social, na forma prevista nesta Lei”. E o §1° do referido dispositivo legal
estabelece que o atendimento da função social da propriedade ocorre quando
cumprido os seguintes requisitos: a) favorece o bem-estar dos proprietários, dos
trabalhadores e de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de
produtividade; c) conserva os recursos naturais; d) cumpre a legislação
trabalhista.
Em um processo denominado pela doutrina de constitucionalização por
elevação 2, a função social passou a constar na CF/1988. De fato, enquanto o
inciso XXII do art. 5º da CF/1988 garante o direito de propriedade, o inciso XXIII
estabelece que a propriedade deve atender a sua função social. Vê-se que não
é apenas a propriedade rural, como estava no Estatuto da Terra, qualquer
propriedade, seja rural, seja urbana, deve cumprir a função social.
A função social é o contraponto da função econômica do contrato. Esta
quer dizer atender aos interesses dos contratantes, ao passo que a primeira
corresponde ao respeito de direitos da coletividade, não podendo infringir
interesses de outrem. Assim as propriedades devem ter alguma função seja
habitação, trabalho, lazer e outros, já que diante de tamanha desigualdade na
distribuição de terra do Brasil, é inadmissível a propriedade de terra está ociosa.
2
SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas
relações entre particulares. 1. ed. 4. tir. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 14. Em síntese, o
processo de constitucionalização por elevação consiste no deslizamento para cima, que dizer
para o texto constitucional, de princípio ou norma fundamental do direito civil que já existia em
legislação infraconstitucional.
156
Letícia Mayara Araújo da Silva, Maria Gabriela Silva Alves & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
Além disso, a função social da propriedade também é um princípio para
atividades gerais de ordem econômica, de acordo com o art. 170 da CF/1988,
no qual a ordem econômica é fundada pela valorização do trabalho, livre
iniciativa, assegurar a existência digna.
Nesse contexto, com o grau de mesma importância, tem-se o art. 182,
segundo parágrafo, da CF/1988, que estabelece que a propriedade urbana deve
cumprir a sua função social na medida em que segue o plano diretor. Por fim, o
art. 184 dispôs que “compete à União desapropriar por interesse social, para fins
de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social” 3.
É com base nesse princípio que os movimento sociais, como o
Movimento Sem Terra (MST) e Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST),
se apoiam, pois é um fundamento legal que permite a desapropriação das
propriedades que não estejam adequadas a função social, como uma forma de
buscar a igualdade social.
A função social também encontra base no Código Civil vigente, como da
função social do contrato, tema que será pontuado com mais detalhamento neste
trabalho, uma vez que a análise deste artigo é, principalmente, sobre a alteração
normativa desse princípio e seu impacto na autonomia privada e,
consequentemente, nos direitos humanos. Logo, para um melhor entendimento
da importância da aplicação desse princípio, é preciso examinar as bases do
Estado Liberal e do Estado Social.
O Estado Liberal surgiu após a Revolução Francesa e influenciou o
Código Napoleônico e, inevitavelmente, também o Código Civil brasileiro de
1916. Nesse cenário, a liberdade individual era superior ao coletivo, ou seja, a
autonomia da vontade era soberana e não permitia a interferência do Estado nas
relações entre particulares. Todavia, com o decorrer do tempo, tornou-se
insustentável esse panorama, uma vez que a liberdade de contratar, em razão
da desigualdade entre os celebrantes do contrato, estava ferindo a dignidade da
3
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,
1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em: 21 jun. 2023.
157
O papel fundamental da função social do contrato na (...)
pessoa humana. Desse modo, com a concepção de um Estado mais social, em
que era aceito a intervenção do Estado, já que os homens não estavam em
situação de igualdade e era necessário um mediador para atingir uma igualdade
material.
É nessa perspectiva que surge o Código Civil de 2002, com advento de
conceitos mais sociais e fundamentados na Constituição Federal de 1988.
Assim, como está disposto na redação originária do art. 421 do Código Civil, a
liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato, tornando-se assim um dos pilares da teoria contratual.
É importante ressaltar que a liberdade contratual não foi extinta, apenas
está limitada, para assim assegurar aos indivíduos a mitigação das
desigualdades sociais e proteção da sua dignidade. Um comentário pertinente
sobre esse ponto foi feito por James Eduardo Oliveira 4, no sentido de que
a função social do contrato é um dos mais qualificados
canais de aspersão dos valores e princípios constitucionais
no campo das relações negociais privadas. Mas é preciso
advertir que a função social apenas qualifica, e não destrói
a liberdade de contratar e a autonomia da vontade.
O art. 421 é polêmico, uma vez que a doutrina não é unânime sobre a
utilização da função social nos contratos. Uma autora que se posiciona em
discordância com esse dispositivo é Daisy Gogliano 5, segundo a qual a liberdade
de contratar é ceifada, por causa do limite da função social e porque há uma
analogia entre a função social do contrato e a função social da propriedade.
Sobre esse último ponto, Flávio Tartuce também se posiciona no sentido
de que “a origem da função social dos contratos está na função social da
propriedade” 6.
4
OLIVEIRA, James Eduardo. Código Civil Anotado e Comentado. 2. ed. Rio de Janeiro:
Editora Forense, 2010. p. 430.
5
GOGLIANO, Daisy. A função social do contrato: causa ou motivo. Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 99, p. 153-198, 2004.
6
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos. São Paulo: Método, 2007. p. 62.
158
Letícia Mayara Araújo da Silva, Maria Gabriela Silva Alves & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
Assim, na contemporaneidade, a concepção da função social dos
contratos busca permear as relações sociais, sendo, pois, um marco social
relevante, já que a sociedade se encontra protegida, pois não precisa
compactuar com acordos que valorizam o material em detrimento do valor
humano.
3 ANÁLISE DA LEI DE LIBERDADE ECONÔMICA (LEI 13.874/19)
Compreendidos os contornos da função social do contrato na redação
originária do Código Civil de 2002, importante explorar as transformações
decorrentes da promulgação da Lei da Liberdade Econômica, notadamente para
se avaliar a percepção inicial que se tem, no sentido de que ela vai de encontro
ao princípio da função social do contrato. Tal empreendimento emerge da
modificação do artigo 421 do Código Civil, que, ao limitar o fundamento
constitucional e restaurar a intervenção mínima, edifica um cenário em que há
um afastamento das ideias da Carta Magna.
3.1 AS ALTERAÇÕES DA LEI DE LIBERDADE ECONÔMICA
O Código Civil brasileiro de 2002 incorporou uma abordagem mais
intervencionista ao direito privado, inclusive no âmbito dos contratos,
estabelecendo um limite à autonomia das partes. Segundo a redação originária
do art. 421, “a liberdade contratual será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato”.
Em face do termo “em razão”, passou-se a defender que a função social
é também fundamento do contrato, não apenas limite. Há, por outro lado, quem
entenda que, não obstante o referido termo, o fundamento do contrato não pode
incluir a função social, esta seria apenas limite da autonomia privada, de maneira
que para satisfazer a função social bastaria que o acordo de vontades não
prejudique a coletividade.
Em decorrência desse contexto, após intensos debates no Congresso
Nacional sobre a Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019, editada pelo
159
O papel fundamental da função social do contrato na (...)
Presidente da República, converteu-a na Lei 13.874/2019, conhecida como Lei
da Liberdade Econômica.
A Lei da Liberdade Econômica promoveu uma modificação no termo da
liberdade de contratar, constante do caput do art. 421, eliminando a expressão
“em razão”, e deixando claro que a função social não é o fundamento do contrato,
mas apenas o limita. E acrescentou o parágrafo único pelo qual “nas relações
contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a
excepcionalidade da revisão contratual”.
Nota-se, de pronto, que essa novel legislação é uma tentativa de retorno
à regra absoluta da tradição liberal. Ou seja, o artigo 421, antes de ser
modificado, afirmava que a liberdade de contratar deveria ser exercida em razão
e nos limites da função social do contrato, com a alteração do caput, passou a
afirmar que a liberdade contratual não mais seria exercida em razão da função
social do contrato, mas sim nos limites da função social.
Segundo Flávio Tartuce 7, existe uma volta ao medo da função social do
contrato e da intervenção estatal, mesmo não existindo ameaça à liberdade
contratual por esse princípio constitucional. Essa compreensão encontra-se
consolidada de forma pacífica tanto na doutrina quanto na jurisprudência, o que
é corroborado pelo fato de haver mais de uma centena de decisões judiciais sem
que nenhuma delas tenha desconsiderado o pacta sunt servanda ou a
necessidade de cumprimento dos acordos estabelecidos.
Dessa maneira, é importante mencionar o acórdão do Superior Tribunal
de Justiça (STJ), que julgou o Recurso Especial 1.443.135/SP, em 24 de abril de
2018, 8 o qual considera que a liberdade contratual deve ser mitigada, mas não
eliminada, pela boa-fé e função social do contrato, corroborando o alinhamento
de diversos outros julgados do STJ com esse entendimento.
Ademais, vale ressaltar o incremento proporcionado pelo parágrafo único,
acrescentado ao artigo 421 do Código Civil por meio do artigo 7° da Lei de
7
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos. São Paulo: Método, 2007, p. 62.
8
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial 1.443.135/SP. Terceira Turma,
relatoria da Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 24.04.2018. DJe de 30.04.2018.
160
Letícia Mayara Araújo da Silva, Maria Gabriela Silva Alves & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
Liberdade Econômica. Tal adição realça a valorização do princípio da
intervenção mínima no contrato, princípio este muito relevante no Código Civil
de 1916. Assim, tem-se o objetivo de indicar o domínio da intervenção mínima e
excepcionalidade da revisão contratual, que possui uma característica genérica
e em desconformidade com o restante do Código Civil.
Nesse contexto, negligencia-se a possibilidade de os interesses
particulares afetarem negativamente a coletividade e a dignidade da pessoa
humana. Relevante examinar se essa limitação da função social na legislação
ofende os preceitos e princípios constitucionais sobre as relações civis e a
atividade econômica.
3.2 (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DE LIBERDADE ECONÔMICA
Conforme exposto na célebre obra “Teoria Geral do Direito e Estado”, do
renomado jurista Hans Kelsen 9, é estabelecida uma hierarquia entre as normas
no sistema jurídico, na qual a norma de menor hierarquia deve conformar-se à
norma de maior hierarquia, a fim de ser reconhecida como válida. Desse modo,
é imprescindível que a norma esteja em consonância com os princípios
estabelecidos pela legislação hierarquicamente superior.
Nesse sentido, emerge o conceito de inconstitucionalidade, cuja gênese
reside no princípio da supremacia da Constituição e na sua natureza rígida. Em
outras palavras, todas as demais normas devem harmonizar-se com a Magna
Carta, visto que esta representa o alicerce fundamental do sistema jurídico,
ficando abaixo dela as leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas,
as medidas provisórias, os decretos legislativos e as resoluções.
Logo, a inconstitucionalidade é sinônimo de antagonismo entre a lei
inferior e as regras e princípios da Carta Magna, o que é possível de ocorrer com
confronto de procedimento ou no conteúdo da norma.
9
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luis Carlos Borges. 3. ed., São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
161
O papel fundamental da função social do contrato na (...)
No que diz respeito à LLE, após examinados os contornos jurídicos da
função social, bem como as alterações legislativas no Código Civil acerca da
matéria, entende-se que a modificação do artigo 421 pela LLE não constitui uma
inconstitucionalidade frontal, aquela que resultaria em uma violação direta aos
princípios fundamentais da Constituição.
É certo que, ao restringir o papel fundamental da função social do
contrato, que é o alicerce primordial da constitucionalização do direito civil e o
princípio básico das relações contratuais, há, de certa forma, uma mitigação do
alcance originário, pois negligencia o enfoque nas comunidades em detrimento
das individualidades. Isso se aplica, a título de exemplo, aos direitos dos
consumidores e dos trabalhadores, uma vez que as partes mais vulneráveis não
são devidamente protegidas sem esse respaldo social e estatal.
O Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, representa a
aplicação da função social do contrato, ao regulamentar as relações de
consumo. Dado que existe uma parte mais fragilizada nessa relação, é de
interesse social que o direito daquele mais propenso a sofrer danos seja tutelado
pelo Estado, garantindo, assim, a justiça social preconizada no artigo 170 da
Constituição Federal. Entretanto, existem conflitos entre o CDC e a LLE, pois
com a nova lei, quando há uma parte mais vulnerável, como no caso da relação
entre consumidor e fornecedor, a autonomia das partes não pode ser
assegurada de maneira ampla e irrestrita.
Embora haja uma mitigação da função social, a LLE não atinge o núcleo
essencial desse princípio, não há uma afronta direta a preceitos constitucionais.
Há que se resolver eventuais conflitos não pela declaração de
inconstitucionalidade da LLE, mas sim pela aplicação da técnica de
“interpretação conforme”, ou seja, interpretar o dispositivo legal em conformidade
com os comandos constitucionais, para reafirmar a importância de limitar a
liberdade nas relações contratuais particulares, evitando abusos e
desigualdades e tornar esses negócios socialmente mais justos, com foco na
dignidade humana, para que cláusulas exorbitantes não sejam aceitas, sem a
necessidade de romper completamente a autonomia da vontade, mas adotando
os princípios da índole social.
162
Letícia Mayara Araújo da Silva, Maria Gabriela Silva Alves & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
4 CONCLUSÃO
Diante do exposto, é possível concluir que a promulgação da
Constituição Federal de 1988 conferiu destaque à função social como um
princípio contratual de extrema importância. Esse princípio visa garantir a
preservação da dignidade humana, dos direitos civis e do interesse social nas
relações entre indivíduos privados.
A Lei de Liberdade Econômica, no entanto, ao estabelecer uma maior
liberdade para as partes envolvidas, contradiz o propósito constitucionalmente
estabelecido e desafia a harmonização entre autonomia contratual e função
social.
A discussão sobre a inconstitucionalidade da Lei de Liberdade
Econômica surge em virtude desse conflito entre a norma e o princípio da função
social, que está intrinsecamente ligado à constitucionalização do Direito Civil. É
importante ressaltar a supremacia da Carta Magna, que ocupa o topo da
hierarquia do ordenamento jurídico, estabelecendo regras e servindo como
fundamento para os demais ramos do direito.
Embora a questão levantada não seja uma inconstitucionalidade frontal,
é necessária uma análise aprofundada do conteúdo normativo e a aplicação da
técnica de interpretação conforme, a fim de verificar em que medida é permitido
ao legislador concretizar os valores constitucionais de forma autônoma. Busca-
se, assim, estabelecer relações contratuais equitativas, baseadas na dignidade
humana como valor orientador.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado Federal, 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em: 21 jun. 2023.
163
O papel fundamental da função social do contrato na (...)
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial 1.443.135/SP.
Terceira Turma, relatoria da Ministra Nancy Andrighi. Julgado em
24.04.2018. DJe de 30.04.2018.
GOGLIANO, Daisy. A função social do contrato: causa ou motivo. Revista da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 99,
p. 153-198, 2004.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luis Carlos Borges.
3. ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998.
OLIVEIRA, James Eduardo. Código Civil Anotado e Comentado. 2. ed. Editora
Forense. Rio de Janeiro, 2010.
SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos
fundamentais nas relações entre particulares. 1. ed. 4. tir. São Paulo:
Malheiros, 2014.
TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos, a boa-fé objetiva e as recentes
Súmulas do Supremo Tribunal de Justiça. Repertório de Jurisprudência
IOB, São Paulo, v. 3, n. 13, p. 410, 1. quinz. jul. 2006.
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos. São Paulo: Método, 2007.
164
Contratações públicas como instrumento de políticas de
fomento ao desenvolvimento econômico e social
André Martins Pereira Neto 1
Marilene Pontes Pereira 2
Maria Marconiete Fernandes Pereira3
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 assegura o desenvolvimento nacional
como um dos seus objetivos fundamentais, dispondo que o desenvolvimento
nacional equilibrado será um dos norteadores da intervenção regulatória do
Estado. O legislador, a nova lei de licitações e contratos (Lei nº 14.133/2021),
elevou a condição do desenvolvimento nacional sustentável como um princípio
norteador das condutas dos agentes públicos quando da realização das
contratações públicas.
As contratações públicas movimentam 12% do PIB brasileiro por ano,
segundo informações do IPEA (2019). Esses contratos têm como finalidade
satisfazer interesses primários e secundários. O primeiro tem como propósito
resolver as necessidades atuais da Administração Pública para realização dos
diversos serviços públicos. Já o segundo, objetiva promover políticas públicas
para desenvolvimento econômico, social, ambiental e cultural.
O presente artigo visa investigar como as contratações públicas
brasileiras, com seu poder de compra, podem ser instrumento do
desenvolvimento econômico e social de uma região. No primeiro ponto, para
atender esse objetivo geral será abordado a importância do desenvolvimento no
1
Mestrando em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ), Especialista em
Licitações e Contratos pelo Centro de Ensino Renato Saraiva (CERS).
2
Mestranda em Direito Pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ), Especialista em
Ciências Criminais pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ), Especialista em Direito
Notarial e Registral pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ).
3
Doutora em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Ciências
Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Professora do Programa de Pós-Graduação em
Direito/Mestrado, do Centro Universitário de João Pessoa.
165
Contratações públicas como instrumento de políticas de (...)
âmbito das licitações e contratações sustentáveis como instrumento de políticas
públicas. Num segundo momento, identifica-se políticas de inclusão social, além
das dimensões econômicas presentes nos negócios públicos contratuais.
As licitações públicas, fundamentadas constitucionalmente, não apenas
servem para selecionar as propostas mais vantajosas para a Administração
Pública, mas também para influenciar e regular mercados. As aquisições
governamentais têm o potencial de promover práticas sustentáveis que vão além
do crescimento econômico, abrangendo a inclusão social e a preservação
ambiental. A evolução das leis de licitação reflete uma crescente conscientização
sobre a importância do desenvolvimento nacional sustentável, alinhado com os
compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
As contratações públicas sustentáveis surgem como um mecanismo vital
para impulsionar o desenvolvimento econômico e social. Através de critérios de
aquisição conscientes, o Estado pode estimular a igualdade de gênero e raça,
combater o trabalho infantil e as condições de trabalho desumanas, apoiar as
microempresas e empresas de pequeno porte.
Este artigo discutirá como as políticas de inclusão social, integradas nas
dimensões econômicas das contratações públicas, podem ser uma força
transformadora para a sociedade, promovendo um desenvolvimento que seja
socialmente inclusivo e economicamente viável.
A pesquisa qualitativa, de natureza dedutiva, utiliza fontes documentais e
bibliográficas para explorar como as contratações públicas sustentáveis podem
impulsionar o desenvolvimento socioeconômico, incentivando igualdade de
gênero e raça, combatendo o trabalho infantil e desumano, apoiando micro e
pequenas empresas, visando um desenvolvimento socialmente inclusivo e
economicamente viável.
2. A IMPORTÂNCIA DO DESENVOLVIMENTO NO ÂMBITO DAS
LICITAÇÕES E CONTRATAÇÕES SUSTENTÁVEIS COMO INSTRUMENTO
DE POLÍTICAS PÚBLICAS
As licitações públicas encontram seu embasamento constitucional no
inciso XXI do artigo 37, estipulando que as "obras, serviços, compras e
166
André Martins Pereira Neto, Marilene Pontes Pereira & Maria
Marconiete Fernandes Pereira
alienações serão processadas mediante licitação pública" 4. Para regulamentar
esse preceito constitucional, o legislador editou normas gerais de licitações, as
quais estabelecem diretrizes gerais para licitações e contratações nas
Administrações Públicas direta, indireta, autárquicas e fundacionais da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Essa medida está em
consonância com o inciso XXVII do artigo 22 da Constituição Federal, que
confere à União a competência para legislar sobre normas gerais de licitação.
Desta forma, a licitação consiste no processo destinado a escolher a
proposta mais benéfica para a Administração, garantindo a participação
abrangente dos interessados por meio de critérios predefinidos e a conformidade
com os requisitos legais estabelecidos 5. Em termos mais simples, a licitação
representa o percurso trilhado pela Administração Pública na busca pelo
fornecedor que atenderá a um interesse público específico 6.
O propósito primário do sistema legal das licitações e contratações
públicas é adquirir bens, realizar serviços e executar obras para atender os
interesses imediatos da Administração Pública. Essas contratações devem ser
realizadas de forma eficiente, visando a proposta apta a gerar o resultado mais
vantajoso para administração pública.
Contudo, diante do substancial montante econômico relacionado às
aquisições governamentais, o governo passou a identificar uma nova finalidade
para essas transações, voltada a orientar, influenciar e regular o mercado no
qual está inserido, sendo esses objetivos secundários 7. Através dessa medida o
Estado pode utilizar as contratações públicas como um instrumento de
implementação de políticas públicas ou a realização de valores constitucionais
voltados para a inclusão social, preservação do meio ambiente e
desenvolvimento econômico. Esta abordagem se caracteriza por um processo
evolutivo contínuo de transformação e melhoria, moldado pelas relações sociais
4
Brasil, 1988;
5
Justen Filho, 2010;
6
Torres, 2023;
7
Carvalho, 2017;
167
Contratações públicas como instrumento de políticas de (...)
que conferem legitimidade à ordem constitucional, bem como pelas novas
características e funções assumidas pelo Estado e pelo Direito em geral 8.
Na Lei n° 8.666/1993 já existiam hipóteses de dispensa de licitação para
fomento a determinados tipos de entidades, como aquelas destinadas à
recuperação social do preso 9, de exigência de demonstração de que não se
empregam menores de dezoito anos em trabalho noturno, perigoso ou insalubre
e, em qualquer trabalho, menores de dezesseis anos, salvo a partir de quatorze
anos na condição de aprendiz 10 ou de preferência por produtos nacionais 11 12
.
Com o advento da Lei nº 12.349/2010, a Lei n° 8.666/1993 passou a ter
como um dos seus objetivos o desenvolvimento nacional sustentável, assim
como foram inseridos critérios de preferência para produtos manufaturados e
para serviços nacionais. Essas alterações foram reflexo dos compromissos
mundiais firmados pelo Brasil a partir da Declaração de Estocolmo de 1972, que
abordou as questões relacionadas ao desenvolvimento e ao meio ambiente,
estabeleceu como direito fundamental o acesso a condições de vida apropriadas
em um ambiente de qualidade, assegurando uma vida digna e bem-estar em
seus ordenamentos internos, firmes na convicção de sua importância 13.
Posteriormente, a partir da Conferência do Rio de Janeiro de 1992, o
movimento do desenvolvimento sustentável experimentou um crescimento
pujante, em que se iniciou um novo ciclo de conferência sobre o desenvolvimento
e meio ambiente no âmbito da ONU, com objetivo de implementar as diversas
recomendações da Agenda 21, que só veio ser aprovada em 1997 14.
Atualmente, vigora a Agenda 2030 contendo os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODSs) construída a partir da Conferência Rio+20, em 2012. As
contratações públicas estão inseridas na meta 7, objetivo 12 da Agenda 2030,
8
Sarlet; Fensterseifer, 2017;
9
Art. 24, XIII, Lei nº 8.666/93;
10
Art. 27, V, Lei nº 8.666/93;
11
Art. 3º, §2º, Lei nº 8.666/93;
12
Carvalho, 2017;
13
Ferreira; Ferreira, 2006;
14
Barbiere, 2020;
168
André Martins Pereira Neto, Marilene Pontes Pereira & Maria
Marconiete Fernandes Pereira
que tem como propósito “promover práticas de compras públicas sustentáveis,
de acordo com as políticas e prioridades nacionais” 15.
A realização eficaz do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 12 é
fundamental para superar os desafios ambientais globais, incluindo a perda de
biodiversidade, as alterações climáticas e a poluição. Ao inserir procedimentos
de consumo e produção sustentáveis estamos oferecendo uma contribuição
significativa para a preservação ambiental e para a criação de um futuro mais
justo e saudável para as futuras gerações.
O Estado, visando satisfazer os interesses da sociedade, assume papel
de comprador de produtos e serviços, que variam de aquisições diversas a
prestação de serviços, e realização de obras. Essas contratações são pautadas
em princípios, assim como em objetivos legalmente instituídos. Dentre os
princípios e objetivos estabelecidos na legislação temos o do desenvolvimento
nacional sustentável.
Com a adoção desta política, a nova lei de licitações 16 foi promulgada,
elevando o desenvolvimento nacional sustentável de um objetivo a ser
alcançado para um princípio orientador das ações relacionadas às contratações
públicas. O desenvolvimento sustentável foi definido inicialmente pelo o relatório
Brundtland, como sendo “aquele capaz de satisfazer as necessidades presentes,
sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias
necessidades” 17. O desenvolvimento há de vir sempre acompanhado e orientado
por necessidades socioambientais e com fundamento na sustentabilidade
constitucionalmente prevista (artigo 225, caput, CRFB). Sendo assim, todo
desenvolvimento deve ser qualificado e entendido como desenvolvimento
sustentável” 18.
“O conceito de desenvolvimento tem evoluído durante os anos,
incorporando experiências positivas e negativas, refletindo as mudanças nas
15
Agenda 2030. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-
desenvolvimento-sustent%C3%A1vel.
16
Lei n° 14. 133/2021;
17
Comissão Mundial Sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1991;
18
Guia Nacional de Contratações Sustentáveis, 2023;
169
Contratações públicas como instrumento de políticas de (...)
configurações políticas e as modas intelectuais” 19. A rigor, a adjetivação do
desenvolvimento sustentável deve ser desdobrada em socialmente includente,
ambientalmente sustentável e economicamente sustentado no tempo 20. Desta
feita, só existirá desenvolvimento efetivo quando existir um projeto social
subjacente 21.
Por sua vez, contratações públicas sustentáveis “são procedimentos
administrativos formais na condução do processo de compras públicas que
contribuem para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, mediante
a inserção de critérios ambientais, econômicos e sociais nas aquisições de bens,
contratação de serviços e obras” 22.
A prática de contratação sustentável não deve ser vista como algo raro na
rotina da Administração Pública. Pelo contrário, mesmo que sua implementação
esteja progredindo gradualmente, a adoção de contratação sustentável pelo
setor público, [...] passou de uma exceção para se tornar a norma
predominante 23.
Para que isso aconteça, é essencial que ocorra uma transformação no
comportamento de consumo pelo Estado, evoluindo as contratações públicas de
uma postura com objetivos meramente primários para uma de consumidor
consciente, buscando a promoção eficaz de políticas públicas voltadas não
apenas para o equilíbrio ambiental, mas também para o desenvolvimento
econômico e social de uma região.
3. POLÍTICAS DE INCLUSÃO SOCIAL, ALÉM DAS DIMENSÕES
ECONÔMICAS PRESENTES NOS NEGÓCIOS PÚBLICOS CONTRATUAIS
O Estado tem papel importante nos mercados devido a seu poder de
compra, de regulação e fiscalização 24. Como comprador, o setor público
movimenta aproximadamente 12% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil
anualmente por meio de suas aquisições 25. Através de suas compras, a
19
Sachs, 2008, pág. 25.
20
Sachs, 2010;
21
Sachs, 2010;
22
Trajano, 2023, pág. 78;
23
Guia Nacional de Contratações Sustentáveis, 2023;
24
Alves, 2021;
25
IPEA, 2019.
170
André Martins Pereira Neto, Marilene Pontes Pereira & Maria
Marconiete Fernandes Pereira
Administração Pública pode exercer influência direta sobre o mercado a
promover práticas mais sustentáveis, visando o desenvolvimento econômico e
social de determinada região. Estamos falando de “políticas de emprego que
mudam a distribuição de renda primária, que mediante a criação de
oportunidades de trabalho decente, geram renda e proporcionam uma solução
duradoura ao problema social” 26. Esta abordagem deve ser priorizada em
relação às políticas assistencialistas compensatórias, pois, além de outros
motivos, o assistencialismo não oferece a dignidade que vem com o emprego 27.
Portanto, é evidente que o desenvolvimento, reconhecido como um valor
supremo, não se limita apenas ao crescimento econômico. Ele está
intrinsecamente ligado ao conceito de sustentabilidade, o que implica expandir
sua definição para incluir aspectos relacionados ao meio ambiente e aos direitos
humanos, entre outros valores fundamentais estabelecidos na Constituição
Federal 28. A inclusão social tem o objetivo de garantir a participação de grupos
específicos, contribuindo assim para o desenvolvimento sustentável de uma
região. Ela procura estabelecer igualdade nas relações sustentáveis, visando
aprimorar a vida na sociedade 29.
Com isso, por ocasião das contratações, a Administração Pública pode
promover o desenvolvimento sustentável em várias dimensões, reduzindo as
desigualdades morais, causadas pela organização social através de políticas
públicas e ações afirmativas em favor dos segmentos mais fracos e silenciosos
da nação 30. O Estado deve “direcionar esforços para devolver a sociedade um
resultado positivo dos usos dos recursos por ela consumidos na produção de
bens e serviços. O desenvolvimento sustentável deve convergir nas dimensões
ambiental, econômica e social” 31, sendo a duas últimas objetos do presente
estudo.
26
Sachs, 2008, pág. 41;
27
Sachs, 2008;
28
Finger, 2014;
29
Trajano, 2023;
30
Sachs, 2008;
31
Trajano, 2023, pág. 87.
171
Contratações públicas como instrumento de políticas de (...)
A perspectiva ambiental deve levar em conta fatores relacionados à
preservação e conservação do meio ambiente. Na dimensão econômica, as
ações devem estar voltadas a políticas públicas de desenvolvimento da
economia local e de mercado, assim como na valorização das pequenas e
microempresas. Finalmente, a dimensão social enfoca a dignidade humana,
obtida pela inclusão social e o respeito pelos direitos humanos e trabalhistas, a
ética social, o engajamento com a comunidade local e o impacto social das
organizações, incluindo políticas afirmativas de apoio às minorias e promoção
da igualdade de gênero e racial 32.
Como incentivo ao desenvolvimento econômico local, as contratações
públicas, desde que não causem prejuízo à competitividade do processo
licitatório e eficiência do respectivo contrato, podem estabelecer a utilização de
mão de obra, materiais, tecnologias e matérias-primas existentes no local da
execução, conservação e operação do bem, serviço ou obra 33. Nas contratações
governamentais deverá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado
para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção
do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a
ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação
tecnológica 34. Ao estabelecer preferência para ME’s e EPP’s, pode-se
estabelecer a prioridade de contratação para as microempresas e empresas de
pequeno porte sediadas local ou regionalmente 35.
O desenvolvimento econômico se manifesta de forma significativa por
meio da contratação de agricultores familiares locais ou regionais para o
fornecimento de alimentos destinados à merenda escolar. Esta política pública
não apenas fomenta o crescimento econômico, mas também promove o
desenvolvimento social, ao integrar os agricultores no mercado. Além disso,
contribui para a dignificação do trabalho agrícola, proporcionando aos
agricultores uma fonte de renda estável e reconhecimento por seu papel vital na
sociedade. Dessa forma, essa iniciativa é um exemplo claro de como políticas
32
Trajano, 2023;
33
§ 2º, Art. 25 da Lei n° 14.133/2021;
34
Art. 47 da Lei Complementar n 123/2006;
35
§ 3º, Art. 48 da Lei Complementar n 123/2006.
172
André Martins Pereira Neto, Marilene Pontes Pereira & Maria
Marconiete Fernandes Pereira
bem direcionadas podem gerar impactos positivos tanto na economia quanto na
estrutura social de uma região.
Do ponto de vista social, as compras públicas podem incorporar práticas
inclusivas e acessíveis, como a reserva de vagas para pessoas com deficiência
e indivíduos reabilitados pela Previdência Social. Isso pode incluir a contratação
de associações sem fins lucrativos formadas por pessoas com deficiência, que
prestam serviços executados exclusivamente por este grupo. Ademais, as
compras públicas podem estipular que um percentual mínimo da força de
trabalho envolvida na execução de contratos seja composto por mulheres
vítimas de violência doméstica ou por pessoas que estão ou estiveram no
sistema prisional. Essas medidas visam não apenas a inclusão social, mas
também o empoderamento de grupos frequentemente marginalizados,
promovendo a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho.
As políticas públicas voltadas para a defesa das minorias e a promoção
da igualdade de gênero e raça devem ser uma diretriz central nas contratações
públicas. Nesse sentido, constatou: “Por toda a parte, as disparidades de gênero
estão entre as formas mais enraizadas de desigualdade. Uma vez que essas
desvantagens afetam metade do mundo, a desigualdade de gênero é uma das
maiores barreiras ao desenvolvimento humano” 36.
É essencial que essas políticas incentivem os fornecedores a adotar
práticas de contratação equitativa, assegurando uma representação balanceada
de trabalhadores masculinos e femininos. Esta abordagem não só promove a
igualdade de gênero no ambiente de trabalho, mas também pode ser utilizada
como um critério decisivo em situações de empate entre licitantes. Essa
estratégia reforça o compromisso com a diversidade e a inclusão, e garante que
as práticas de contratação reflitam os valores de igualdade e justiça social.
Além disso, as contratações públicas têm como propósito secundário o
combate ao trabalho infantil e às condições de trabalho análogas à escravidão.
Essas medidas são fundamentais para assegurar que as práticas de contratação
36
RDH (PNUD), 2019.
173
Contratações públicas como instrumento de políticas de (...)
pública estejam alinhadas com os princípios éticos e legais, promovendo um
ambiente de trabalho justo e livre de exploração. A inclusão destas diretrizes
reforça o compromisso do setor público com a responsabilidade social e o
respeito aos direitos humanos, garantindo que todas as formas de trabalho
dentro das contratações públicas sejam conduzidas de maneira ética e legal. A
responsabilidade social e solidária advém da construção de um Estado
democrático de direito, compromissado na consolidação dos direitos
fundamentais, tendo um novo viés como horizonte o passado, o presente e o
futuro 37.
As políticas públicas de inclusão social nas contratações públicas são
essenciais para promover o desenvolvimento sustentável, abrangendo aspectos
econômicos e sociais. O Estado, através de seu poder de compra, influencia o
mercado, incentivando práticas que geram empregos dignos, apoiam
microempresas e empresas de pequeno porte, e asseguram a igualdade de
gênero e raça. Essas estratégias, além de combater o trabalho infantil e
condições análogas à escravidão, reforçam o compromisso com a
responsabilidade social, o respeito aos direitos humanos e a promoção da justiça
social, contribuindo significativamente para uma sociedade mais justa e
equilibrada.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, o desenvolvimento no âmbito das licitações e contratações
públicas sustentáveis emerge como um instrumento essencial de políticas
públicas, refletindo um compromisso com os princípios de desenvolvimento
nacional sustentável estabelecidos na Constituição Federal e reforçados pela
norma infraconstitucional, Lei nº 14.133/2021. Este sistema não apenas atende
às necessidades imediatas da Administração Pública, mas também orienta,
influencia e regula o mercado para promover desenvolvimento econômico,
social, ambiental e cultural. As contratações públicas, que correspondem a uma
parcela significativa do PIB brasileiro, têm o poder de impulsionar práticas
sustentáveis e inclusivas.
37
Marin & Marin, 2009.
174
André Martins Pereira Neto, Marilene Pontes Pereira & Maria
Marconiete Fernandes Pereira
A inclusão social, a equidade de gênero e raça, o combate ao trabalho
infantil e condições análogas à escravidão são aspectos fundamentais
incorporados nas políticas de contratação pública. Estas medidas não apenas
atendem aos requisitos legais e éticos, mas também refletem um esforço
consciente para garantir que as contratações públicas contribuam para uma
sociedade mais justa e equilibrada. A promoção de pequenas e microempresas,
a valorização do trabalho agrícola familiar e a inclusão de grupos marginalizados
são exemplos claros de como as contratações públicas podem gerar impactos
positivos abrangentes.
Essa abordagem evolutiva, moldada pelas relações sociais e as funções
assumidas pelo Estado e pelo Direito, enfatiza que o desenvolvimento
sustentável deve ser socialmente inclusivo e economicamente viável. Portanto,
as licitações e contratações públicas não só atendem aos objetivos imediatos da
Administração, mas também desempenham um papel crucial na promoção de
um desenvolvimento mais totalizante e sustentável.
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empresas, governos e organizações do terceiro setor. Viçosa/MG: Ed.
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2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em: 25 dez. 2023.
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da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 14 de dezembro de 2006.
Disponível
175
Contratações públicas como instrumento de políticas de (...)
em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp123.htm#art42.
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176
André Martins Pereira Neto, Marilene Pontes Pereira & Maria
Marconiete Fernandes Pereira
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI /
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TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas.
14 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Juspodivm, 2023.
177
Perspectiva de gênero no Superior Tribunal de Justiça
Milena de Araújo Costa 1
Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras 2
1 INTRODUÇÃO
A América Latina tem despontado no ranking das regiões mais violentas
para as mulheres, notadamente no que diz respeito aos índices de feminicídio e
violência doméstica. Com base nessa realidade e atendendo a recomendação
da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) disposta na Sentença
do Caso Márcia Barbosa de Souza e outros Vs. Brasil, na Recomendação Geral
n. 33 e n. 35 do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher e nas Resoluções n. 128, n. 255, n. 254, n. 364 e n. 492 do
Conselho Nacional de Justiça, o Brasil tem se posicionado a favor da adoção do
protocolo latino-americano de julgamentos com perspectiva de gênero.
Partindo do constitucionalismo transformador feminista multinível, o
propósito da presente pesquisa é analisar se o Superior Tribunal de Justiça (STJ)
cumpre efetivamente o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero
de 2021, cuja adoção vem sendo indicada no Brasil a partir de fevereiro de 2022
pelo Conselho Nacional de Justiça. Diante disso, indaga-se: O STJ realmente
cumpre o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero?
Na tentativa de responder tal questionamento, elegem-se como objetivos
da pesquisa, em primeiro lugar, o exame acerca da perspectiva de gênero como
elemento do constitucionalismo multinível. Posteriormente, a análise do
Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Por fim, a realização de
1
Bolsista CAPES/BRASIL. Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte – UFRN. Linha de Pesquisa: Direito Internacional e Concretização de
Direitos. Membra do Grupo de Pesquisa Direito e Gênero (PVE18414-2020 UFRN/PPGD).
2
Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Graduação e Mestrado).
Pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos pelo IGC/CDH da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. Doutora em Ciências Sociais pela UFRN. Mestre em Direito pela
UFBA. Promotora de Justiça/MPRN.
178
Milena de Araújo Costa & Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras
um estudo jurisprudencial para aferir se os casos do STJ estão sendo julgados
com Perspectiva de Gênero.
Na metodologia, adotou-se o método dedutivo e de estudo de caso, com
pesquisa em doutrina e jurisprudência. Serão examinadas teses julgadas pelo
STJ que tiveram (ou deveriam ter) julgamentos com Perspectiva de Gênero.
Assim, tais decisões vão ser colhidas do site de Jurisprudência em Teses do STJ,
através das edições denominadas “Julgamento com Perspectiva de Gênero”.
Outrossim, convém esclarecer que as decisões selecionadas vão dizer respeito
as edições publicadas até dezembro de 2023.
Diante disso, este artigo trata de um tema de grande relevância social,
levando em conta que é evidente a necessidade de que os operadores do
sistema jurídico tenham conhecimento sobre a Perspectiva de Gênero. Ao fim,
espera-se que o presente escrito possa contribuir trazendo análises que
justificam a utilização do referido Protocolo.
2 A PERSPECTIVA DE GÊNERO COMO ELEMENTO DO
CONSTITUCIONALISMO MULTÍNIVEL
O constitucionalismo multinível está fundado nos artigos 1.1 e 2 da
Convenção Americana de Direitos Humanos, que trata da obrigação de
reconhecer e proteger os direitos previstos no documento internacional, bem
como no dever de adequação das normativas internas, e nos ajustes
interpretativos oriundos das sentenças da Corte IDH, por força do controle de
convencionalidade 3.
Ingolf Pernice desenvolveu o conceito de Constitucionalismo Multinível a
partir da experiência europeia, onde houve um processo de organização de
poderes em diversos níveis de competência e atuação, que possuem efeitos
desde a perspectiva dos indivíduos, que como membros da comunidade local,
regional, nacional, europeia e global, têm sua vida afetada pelas ações das
3
CAMBI, Eduardo; PORTO, Letícia de Andrade; FACHIN, Melina Girardi. O Supremo Tribunal
Federal e a construção do constitucionalismo multinível. Suprema: Revista de Estudos
Constitucionais, Brasília, v. 1, n. 2, p. 113 150, jul./dez. 2021.
179
Perspectiva de gênero no Superior Tribunal de Justiça
instituições titulares dos poderes em todos os níveis 4. Esta articulação tem como
um dos principais meios o diálogo entre os diferentes planos protetivos para a
realização dos direitos humanos, o que demanda a relação entre sistemas
constitucionais, e destes com o Direito Internacional dos direitos humanos. 5
O Constitucionalismo Multinível de Ingolf Pernice possui cinco elementos
básicos: (a) o conceito pós-nacional de Constituição, (b) o processo constituinte
europeu como processo conduzido pelos cidadãos; (c) a Constituição da União
Europeia e as Constituições Nacionais; (d) as múltiplas identidades dos cidadãos
da União Europeia; e (e) a União Europeia como a União de cidadãos europeus. 6
Então, percebe-se que o constitucionalismo multinível imagina uma constituição
interamericana.
O modelo constitucional moderno foi projetado para um ambiente teórico
abstrato com um sexo bem definido: o masculino 7. Nesse sentido, aplicar as
normas constitucionais segundo lentes feministas – aqui compreendidas como
igualdade social, política e econômica entre os sexos implica uma virada
epistemológica que amplia a latitude e os fundamentos da teoria constitucional,
a fim de propor uma revisão crítica de suas estruturas. 8 No que se refere à
latitude, o constitucionalismo feminista propõe um desafio global ao
constitucionalismo de Estado, promovendo sua abertura a uma visão complexa,
4
PERNICE, Ingolf. La dimensión global del Constitucionalismo Multinivel. In: PÉREZ, José María
Beneyto. El modelo europeo: contribuciones de la integración europea a la gobernanza global.
Biblioteca Nueva, 2014.
5
ROCHA, Isly Queiroz Maia. Limites da Constitucionalização do Direito Internacional no Sistema
Interamericano: Uma Análise dos Modelos Teóricos do Pluralismo Constitucional e do
Constitucionalismo Multinível. Revista Vertentes do Direito, v. 8, n. 1, p. 132-159, 2021.
6
LINS, Ricardo Galvão de Sousa; MOREIRA, Thiago Oliveira; GURGEL, Yara Maria Pereira. O
constitucionalismo multinível de Ingolf Pernice: uma análise de pontos e contrapontos. Cadernos
de Dereito Actual, n. 15, p. 186-203, 2021.
7
BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Introduction: the idea and practice
of feminist constitutionalism. In: BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi (org.).
Feminist constitutionalism: global perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
p. 1-12.
8
ADICHI, Chimamanda Ngozi. Everybody should be feminist. 1 vídeo (30 min). TEDxEuston, 12
abr. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hg3umXU_qWc. Acesso em: 14
ago. 2023.
180
Milena de Araújo Costa & Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras
integrada, comparada e multinível. Significa reconhecer que o constitucionalismo
feminista está inserido no constitucionalismo multinível 9.
Segundo a premissa do constitucionalismo multinível, os Estados aderem
a sistemas internacionais e regionais (como o sistema interamericano de direitos
humanos) de modo que a produção jurisdicional e as normas internas se
comuniquem com aquelas vigentes no plano regional e internacional, assim
como as decisões regionais e internacionais, notadamente devido às cláusulas
constitucionais de abertura 10.
Pode-se perceber essa influência dialógica no Brasil para a promoção de
um constitucionalismo feminista com a adição do Protocolo para Julgamento
com Perspectiva de Gênero. O caso Campo Algodoeiro vs. México (2009), no
qual a Corte IDH responsabilizou o Estado do México pela tortura e morte de
mulheres na Cidade de Juarez, enunciando pela primeira vez o feminicídio, foi
relevante para a criação, no Brasil, da Lei n. 13.104/2015, a qual apenou de
forma mais gravosa o homicídio de mulheres devido à condição de gênero.
Também a decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) de
responsabilizar o Brasil no caso Maria da Penha foi determinante para a
elaboração do diploma legislativo inovador contra a violência doméstica contra
as mulheres.
Na América Latina, o constitucionalismo transformador feminista se
conecta ao pluralismo, já que as mulheres latino-americanas enfrentam várias
formas de subordinação, as quais são marcadas pela dominação de classe, de
raça e etnia, superioridade geográfica do espaço urbano sobre o rural, e que se
entrecruzam com hierarquias sociais do contexto latino-americano. 11
Corroborando com o supramencionado, no caso do Brasil, brasileiro, o
9
OLSEN, Ana Carolina Lopes; FACHIN, Melina Girardi. Perspectiva de gênero na Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Revista CNJ, Brasília, v. 6, n. Edição Especial Mulheres e
Justiça, p. 95-108, 2022.
10
SANTOLAYA, Pablo. La apertura de las Constituciones a su interpretación conforme a los
tratados internacionales. In: MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer; GARCÍA, Alfonso Herrera (coord.)
Diálogo Jurisprudencial em derechos humanos: entre tribunales constitucionales y cortes
internacionales. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 447-456.
11
LEGALE, Siddharta; OLIVEIRA, Raisa. Revisitando o feminismo interamericano. In:
PIOVESAN, Flávia; LEGALE, Siddharta; RIBEIRO, Raisa (org.). Feminismo interamericano:
exposição e análise crítica dos casos de gênero da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Rio de Janeiro: NIDH; UFRJ Livro, 2021.
181
Perspectiva de gênero no Superior Tribunal de Justiça
“Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero” elaborado pelo
Conselho Nacional de Justiça em 2021, com o objetivo de capacitar magistrados
e magistradas para a adoção de um enfoque sensível à discriminação de
gênero. 12 O Protocolo aborda as interseccionalidades da discriminação, com
atenção à pobreza, à divisão laboral e às relações de poder na sociedade.
Elucidados os aspectos gerais da perspectiva de gênero como elemento
do constitucionalismo multinível, passa-se ao estudo da implementação do
Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.
3 O PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO
O protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero respeita o
diálogo multinível com os sistemas internacionais de proteção na medida em que
adota o “modelo de protocolo latino-americano de investigação de mortes
violentas de mulheres por razões de gênero (feminicídio)”, cuja adesão do Brasil
ocorreu em 2016; e observa a recomendação da Corte IDH de adoção de
protocolos oficiais de julgamentos com perspectiva de gênero, para que casos
de violência contra a mulher sejam tratados de forma diferenciada”. Com tal
finalidade, o documento se divide da seguinte forma: 1) apresentação de
conceitos relevantes para julgar com perspectiva de gênero; 2) sugestão de
etapas a serem seguidas pelos julgadores no contexto decisório, como
ferramentas para auxiliá-los no exercício de uma jurisdição com perspectiva de
gênero; 3) apresentação de peculiaridades de cada Justiça especializada
(Federal, Estadual, Trabalhista, Militar e Eleitoral) com problemáticas recorrentes
de cada ramo.
O Brasil é signatário de acordos internacionais que garantem os direitos
humanos das mulheres tal como a eliminação de todas as formas de
discriminação e violência baseadas no gênero. São compromissos firmados
frente à comunidade internacional; os tratados e as convenções geram
12
OLSEN, Ana Carolina Lopes; FACHIN, Melina Girardi. Perspectiva de gênero na Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Revista CNJ, Brasília, v. 6, n. Edição Especial Mulheres e
Justiça, p. 95-108, 2022.
182
Milena de Araújo Costa & Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras
obrigações jurídicas para o país. 13 Dessa forma, a referência à sentença do Caso
Márcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil na Resolução n. 492/2023 do CNJ,
que estabeleceu a obrigatoriedade do “Protocolo para Julgamento com
Perspectiva de Gênero” para o Poder Judiciário nacional, bem como a
obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a
direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, é uma
amostra do potencial desse precedente para a difusão da importância da
abordagem interseccional para a proteção das mulheres negras ou pertencentes
a outros grupos vulnerabilizados no Brasil. 14
Em seu texto, o Protocolo faz uma importante distinção entre sexo
biológico, gênero, sexualidades e identidades de gênero. Ao estabelecer essa
distinção, defende que o gênero é um conceito mais adequado para se
estabelecer diferenciações sociais entre as pessoas. Estabelece como premissa
para um julgamento segundo a perspectiva de gênero, um julgamento
comprometido com a igualdade entre os gêneros, atento à dimensão cultural da
construção dos sujeitos de direito reconhecendo os efeitos negativos
decorrentes das desigualdades 15.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero fornece um guia
para magistradas e magistrados no Brasil a fim de que adotem em sua atividade
jurisdicional uma perspectiva de gênero atenta a todas as formas de
discriminação contra a mulher. A preocupação emancipatória desta atividade
pela via da aplicação do direito se alinha à proposta do constitucionalismo
transformador feminista multinível. Dessa forma, verifica-se uma sintonia entre o
aparato internacional e o nacional a fim de gerar uma maior proteção para as
mulheres a partir de uma abordagem alargada da perspectiva de gênero. 16
13
MONTEBELLO, Mariana. A proteção internacional aos direitos da mulher. Revista da EMERJ,
v. 3, n. 11, p. 155-170, 2000.
14
MENDONÇA, Carla Pedrosode; CARVALHO, Luciani Coimbra de. Interseccionalidade no Caso
Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil: A Necessidade de um Olhar para Além da Perspectiva de
Gênero. Direito Público, v. 20, n. 106, p. 299-325, 2023.
15
CNJ. Conselho nacional de Justiça. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero
2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-
final.pdf. Acesso em: 3 de ago. de 2023. p. 18.
16
OLSEN, Ana Carolina Lopes; FACHIN, Melina Girardi. Perspectiva de gênero na Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Revista CNJ, Brasília, v. 6, n. Edição Especial Mulheres e
Justiça, p. 95-108, 2022.
183
Perspectiva de gênero no Superior Tribunal de Justiça
Feitas tais considerações para a compreensão da implementação do
Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, passa-se a analisar a
jurisprudência do STJ para aferir se o referido Tribunal está julgando os seus
casos de acordo com o Protocolo supracitado.
4 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL PARA AFERIR SE O SUPERIOR TRIBUNAL
DE JUSTIÇA ESTÁ JULGANDO OS SEUS CASOS DE ACORDO COM O
PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO
A partir da orientação fixada na Recomendação n. 123 do Conselho
Nacional de Justiça, é dever de toda a magistratura brasileira realizar o
compromisso de efetivação dos direitos previstos na Convenção Americana e
nos tratados internacionais de direitos humanos. A seguir, serão analisadas as
teses e como se deu a aplicação qualitativa das decisões do STJ. Tais decisões
foram colhidas do site de Jurisprudência em Teses do STJ. A ferramenta
Jurisprudência em Teses apresenta, periodicamente, um conjunto de teses com
os julgados mais recentes do STJ sobre determinada matéria, que no caso em
questão, a matéria é Julgamentos com perspectiva de gênero.
Nesse sentido, foram selecionadas as três edições que constam na
Jurisprudência em Teses referente à Julgamentos com Perspectiva de Gênero.
A edição número 209 publicada em 24 de março de 2023 com entendimentos
extraídos de julgados publicados até 10 de março de 2023, edição intitulada
como Julgamentos com Perspectiva de Gênero; a edição número 210 publicada
em 04 de abril de 2023 com entendimentos extraídos de julgados publicados até
17 de março de 2023, edição intitulada como Julgamento com Perspectiva de
Gênero II e a edição número 211 publicada em 20 de abril de 2023 com
entendimentos extraídos de julgados publicados até 31 de março de 2023,
edição intitulada como Julgamentos com Perspectiva de Gênero III.
A edição de número 209 (Julgamentos com Perspectiva de Gênero) 17
conta com 10 (dez) teses. A primeira tese explicita que para a configuração da
17
STJ. Superior Tribunal de Justiça. Julgamentos com perspectiva de gênero: jurisprudência em
teses - n. 209. Brasília: 24 de março de 2023. Disponível em:
https://www.stj.jus.br/docs_internet/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudencia%20em
184
Milena de Araújo Costa & Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras
violência doméstica e familiar prevista no artigo 5º da Lei n. 11.340/2006 (Lei
Maria da Penha) não se exige a coabitação entre autor e vítima 18. A segunda
tese traz que a ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de
violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada 19.
Já a terceira tese informa que é inaplicável o princípio da insignificância
nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das
relações domésticas 20. A quarta tese explica que a prática de crime ou
contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente
doméstico impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos 21.
A quinta tese traz que a suspensão condicional do processo e a transação
penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da
Penha 22. A sexta tese explica que a vulnerabilidade, hipossuficiência ou
fragilidade da mulher têm-se como presumidas nas circunstâncias descritas na
Lei n. 11.340/2006. 23 A sétima tese diz que as medidas protetivas previstas na
Lei n. 11.340/2006 são aplicáveis às minorias, como transexuais, transgêneros,
cisgêneros e travestis em situação de violência doméstica 24.
A oitava tese expõe que a pessoa transgênero tem direito fundamental
subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no
registro civil independentemente da realização de cirurgia de
transgenitalização 25. A nona tese narra que a exposição pornográfica de
%20Teses%20209%20-%20Julgamentos%20Com%20Perspectiva%20de%20Genero.pdf.
Acesso em: 10 dez. 2023.
18
Julgados: AgRg no AgRg no AREsp 1800543/SP; AgRg no REsp 1931918/GO; HC 542828/AP;
HC 477723/SP; AgInt no AREsp 988650/SC; HC 357885/SP.
19
Julgados: AgRg no REsp 1838611/DF; AgRg no REsp 1926081/PR; AgRg no HC 713415/SC;
AgRg no HC 674738/SP; AgRg no HC 562527/PR; AgRg no HC 459677/RS.
20
Julgados: AgRg no REsp 1973072/TO; AgRg no HC 713415/SC; AgRg no AgRg no AREsp
1798337/SE; AgRg no AREsp 1724849/SE; AgRg no AREsp 1064767/ES; REsp 1675874/MS.
21
Julgados: AgRg no HC 775608/SC; AgRg no HC 735437/PR; AgRg no HC 741381/SP; AgRg
no AREsp 1467459/GO; AgRg no AREsp 1603946/DF; AgRg no AREsp 1483550/RS.
22
Julgados: AgRg no RHC 157235/SC; AgRg no REsp 1844880/DF; AgRg no REsp 1795888/DF;
AgRg no RHC 81982/BA; AgRg no AREsp 853692/SP; AgRg no REsp 1662511/RS.
23
Julgados: REsp 1913762/GO; AgRg na MPUMP 6/DF; AgRg no AREsp 1885687/GO; AgRg no
REsp 1823279/SP; AgRg no AREsp 1698077/GO; AgRg nos EDcl no AREsp 1638190/RJ.
24
Julgado: REsp 1977124/SP.
25
Julgados: REsp 1860649/SP; REsp 1561933/RJ; REsp 1626739/RS; REsp 1539583/DF; REsp
1796827/ES; REsp 1631644/MT.
185
Perspectiva de gênero no Superior Tribunal de Justiça
imagem, sem o consentimento da vítima, viola os direitos da personalidade 26. A
décima tese relata que se tipifica-se como "conduta escandalosa" o
comportamento praticado por servidor público que, dolosamente, produz e
armazena, sem consentimento, por meio de câmera escondida, vídeos de
alunas, de servidoras e/ou de funcionárias terceirizadas, no ambiente de
trabalho 27.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero destaca que
julgar com perspectiva de gênero é realizar o direito à igualdade, sendo assim,
um método que deve ser aplicado sempre, não apenas em demandas
relacionadas à temática das mulheres, mas também a população LGBTQIAPN+.
Dito isso, todas as teses da edição de número 209 advém de decisões julgadas
com perspectiva de gênero.
A edição de número 210 (Julgamentos com Perspectiva de Gênero II) 28
contém 11 (onze) teses. A primeira tese narra que a mulher que renunciou aos
alimentos na separação judicial tem direito à pensão previdenciária por morte do
ex-marido, comprovada a necessidade econômica superveniente. 29 A segunda
tese explica que é possível a remarcação de curso de formação ou de teste de
aptidão física em concurso público com o objetivo de proporcionar a participação
de candidata gestante ou lactante à época de sua realização. 30
Já a terceira tese expõe que o estabelecimento de critérios diferenciados
para promoção de militares, em razão das peculiaridades de gênero, não ofende
os princípios da igualdade e isonomia 31. A quarta tese relata que a diferenciação
de critério de altura mínima entre homem e mulher para ingresso, mediante
26
Julgado: REsp 1735712/SP; REsp 1728040/SP.
27
Julgado: REsp 2006738/PE.
28
STJ. Superior Tribunal de Justiça. Julgamentos com perspectiva de gênero: jurisprudência em
teses - n. 210. Brasília: 04 de abril de 2023. Disponível em:
https://www.stj.jus.br/docs_internet/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudencia%20em
%20Teses%20210%20-
%20Julgamentos%20Com%20Perspectiva%20de%20Genero%20II.pdf. Acesso
em: 10 dez. 2023.
29
Julgados: AgInt no TP 3961/PR; AgInt no REsp 1952080/SP; AgRg no AREsp 679628/PI; REsp
1505261/MG; AgRg no AgRg nos EDcl no REsp 1375878/PR; REsp 1897328/SP.
30
Julgados: EDcl no AgInt no RMS 59223/AP; RMS 51428/MA; AgInt no RMS 59223/AP; RMS
52622/MG; RMS 47582/MG.
31
Julgados: RMS 44576/MS; REsp 1211922/RJ; MS 11549/DF.
186
Milena de Araújo Costa & Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras
concurso, nas carreiras militares, por si só, não ofende o princípio da isonomia 32.
A quinta tese afirma que não é cabível o arbitramento de aluguel em desfavor da
coproprietária vítima de violência doméstica e familiar, que, em razão da
decretação de medida protetiva de urgência, detém o uso e gozo exclusivo do
imóvel que possui em cotitularidade com o agressor 33.
A sexta tese comunica que o resultado falso negativo de exame de DNA
realizado para fins de investigação de paternidade implica responsabilidade
objetiva do laboratório por danos morais à genitora 34. A sétima tese afirma que é
possível responsabilizar civilmente laboratório que distribui medicamento
anticoncepcional ineficaz, sem princípio ativo. 35
A oitava tese esclarece que é possível substituir a pena privativa de
liberdade, em regime fechado ou semiaberto, por prisão domiciliar para as
presas gestantes ou mães de menor ou de pessoa com deficiência, durante a
execução provisória ou definitiva da pena. 36 A sexta tese traz que a concessão
de prisão domiciliar à mulher com filho de até 12 anos incompletos não está
condicionada à comprovação da imprescindibilidade de cuidados maternos 37.
A décima tese explana que é possível o indeferimento da prisão domiciliar
às presas gestantes, mães de menor ou responsáveis por pessoa com
deficiência, após juízo de ponderação entre o direito à segurança pública e a
aplicação dos princípios da proteção integral da criança e da pessoa com
deficiência. 38 A décima primeira tese determina que é possível substituir a prisão
civil de devedora de alimentos em regime fechado por prisão domiciliar, pois a
restrição de liberdade deve compatibilizar a necessidade de obter recursos
32
Julgado: RMS 47009/MS.
33
Julgados: REsp 1966556/SP; REsp 1963348/SP.
34
Julgados: REsp 1700827/PR; AREsp 1591133/SC.
35
Julgados: AgRg no REsp 1192792/PR; REsp 1120746/SC; AgRg no Ag 1157605/SP; AREsp
1362756/SP; AREsp 204299/SP; REsp 1221645/SC.
36
Julgados: AgRg no HC 731648/SC; RHC 145931/MG; AgRg no HC 712487/SC; HC
417665/MG; RHC 175593/SP; HC 807315/PR.
37
Julgados: HC 770015/SP; AgRg no HC 769008/SP; AgRg no HC 747260/SC; AgRg no HC
731648/SC; AgRg no HC 705994/SP; HC 807315/PR.
38
Julgados: AgRg no HC 787289/SP; AgRg no HC 773166/SC; AgRg no HC 801180/SP; AgRg
no HC 798551/PR; AgRg no HC 726534/MS; AgRg no RHC 159053/MS.
187
Perspectiva de gênero no Superior Tribunal de Justiça
financeiros para quitar a dívida alimentar em relação ao credor e a de suprir as
necessidades básicas do outro filho, menor de 12 anos, sob sua guarda. 39
Na medida em que o constitucionalismo transformador feminista está
centrado na emancipação da mulher a partir do enfrentamento das barreiras
estruturais que geram discriminação, percebe-se que as teses da edição de
número 210 foram pautadas na igualdade e não discriminação, assim, as
decisões foram julgadas com perspectiva de gênero.
A edição de número 211 (Julgamentos com Perspectiva de Gênero III) 40
abarca 15 (quinze) teses. A primeira tese relata que nos casos de violência contra
a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor
mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da
acusação ou da parte ofendida 41. A segunda tese diz que no âmbito da violência
doméstica e familiar contra a mulher, a indenização por dano moral é in re ipsa
(presumida) 42.
A terceira tese consta que é admissível a condenação do advogado a
reparar os danos morais causados à parte adversária em virtude do uso, em
ação de investigação de paternidade, de ofensas gratuitas tendentes a
desqualificar a conduta, a imagem e a reputação da mãe biológica, dissociadas
de defesa técnica, por meio de um discurso odioso, sexista, machista e
misógino. 43 A quarta tese diz que a mulher em situação de violência doméstica
pode optar pelo foro de seu domicílio ou de sua residência para o ajuizamento
de ação de reconhecimento e dissolução de união estável. 44
39
Julgado: HC 770015/SP.
40
STJ. Superior Tribunal de Justiça. Julgamentos com perspectiva de gênero: jurisprudência em
teses - n. 211. Brasília: 20 de abril de 2023. Disponível em:
https://www.stj.jus.br/docs_internet/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudencia%20em
%20Teses%20211%20-
%20Julgamentos%20Com%20Perspectiva%20de%20Genero%20III.pdf. Acesso
em: 10 dez. 2023.
41
Julgados: AgRg no REsp 2028308/TO; AgRg no REsp 2012680/MS; AgRg no AREsp
2068756/TO; AgRg no HC 717608/GO; AgRg nos EDcl no REsp 2012164/RS; REsp
1675874/MS.
42
Julgados: AgRg no HC 717608/GO; REsp 1819504/MS; AgRg no REsp 1673181/MS; AgRg no
REsp 1675698/MS; AgRg no REsp 1697574/MS; RMS 56074/MS.
43
Julgado: REsp 1761369/SP.
44
Julgados: AgInt no CC 174492/PA; CC 174668/DF.
188
Milena de Araújo Costa & Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras
A quinta tese explica que o fator meramente etário, por si só, não é capaz
de afastar a competência da vara especializada, pois, para a incidência do
subsistema da Lei n. 11.340/2006, basta verificar se o crime foi praticado contra
a mulher de qualquer idade no âmbito da unidade doméstica, da família ou de
qualquer relação íntima de afeto. 45 A sexta tese enfatiza que é possível a
aplicação da Lei Maria da Penha no caso de violência doméstica praticada contra
empregada doméstica. 46
A sétima tese explicita que é possível aplicar a Lei Maria da Penha no
caso de violência praticada por neto contra avó. 47 A oitava tese traz que a prática
de crime em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando
vigente medida protetiva de urgência deferida em favor da vítima, autoriza a
exasperação da pena-base. 48 A nona tese explica que nos delitos praticados em
contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher não é possível a
consunção entre o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência
e o crime de ameaça. 49
A décima tese relata que a aplicação da agravante prevista no art. 61, II,
f, do Código Penal, de modo conjunto com outras disposições da Lei n.
11.340/2006 não acarreta bis in idem. 50 A décima primeira tese afirma que a
imputação simultânea das qualificadoras de motivo torpe e de feminicídio no
crime de homicídio praticado contra mulher em situação de violência doméstica
e familiar não caracteriza bis in idem. 51
A décima segunda tese diz que é inadmissível a utilização da tese da
"legítima defesa da honra" como argumento no feminicídio e nos crimes de
violência doméstica e familiar contra a mulher. 52 A décima terceira tese esclarece
45
Julgados: HC 728173/RJ; EAREsp 2099532/RJ; REsp 1652968/MT; AREsp 2171235/SE; RHC
124736/SP.
46
Julgados: AgRg no REsp 1900478/GO; HC 500314/PE.
47
Julgados: AgRg no AREsp 1819124/GO; RMS 64832/MT; AgRg no REsp 1861995/GO; AgRg
no AREsp 1626825/GO; HC 310154/RS.
48
Julgados: AgRg no AREsp 2096858/SE; AgRg no AREsp 1872560/TO; AgRg no REsp
1918046/SP; AgRg no HC 541094/SP; HC 452391/PR; REsp 2005005/MA.
49
Julgado: HC 616070/MG.
50
Julgados: AgRg no REsp 1991610/MS; AgRg no REsp 2014022/MS; AgRg no HC 756966/SC;
AgRg no AREsp 1954688/MS; AgRg no REsp 1911818/SP; AgRg no AREsp 1808261/SP.
51
Julgados: AgRg no AgRg no AREsp 1830776/SP; AgRg no AREsp 1166764/MS; REsp
1739704/RS; AgRg no REsp 1741418/SP; AgRg no HC 440945/MG; HC 430222/MG.
52
Julgados: RHC 136911/MT; AgRg no AREsp 2169750/MG.
189
Perspectiva de gênero no Superior Tribunal de Justiça
que para a caracterização do crime de estupro de vulnerável, basta que o agente
tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com menina menor
de 14 anos 53.
A décima quarta tese determina que presente o dolo específico de
satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com
menina menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável,
independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, assim não é
possível a desclassificação para o delito de importunação sexual. 54 A décima
quinta tese explana que os documentos nos quais conste o genitor, o cônjuge ou
o companheiro como lavrador são início de prova material razoável para o
reconhecimento da condição de rurícola da mulher, pois esta funciona como
extensão da qualidade de segurado especial daquele. 55
O constitucionalismo multinível coloca o Poder Judiciário no centro das
inovações transformadoras. As decisões judiciais, bem como a observância dos
precedentes, acompanhadas de políticas públicas adequadas, têm o poder de
modificação da realidade dos grupos vulneráveis. Dessa forma, é evidente que
o STJ julgou com perspectiva de gênero na edição de número 211.
O Protocolo, por si só, não é capaz de modificar relações opressoras e
violentas de gênero 56. É dessa forma que os magistrados precisam entrar em
atuação, julgando com perspectiva de gênero. De todo modo, a jurisprudência
do STJ demonstra um avanço para os julgamentos com perspectiva de gênero.
5 CONCLUSÃO
Inicialmente, adotou-se a perspectiva de gênero como elemento do
constitucionalismo multinível, posteriormente, fez-se uma explanação com a
53
Julgados: AgRg no AREsp 2240102/PI; AgRg no HC 795482/SP; AgRg nos EDcl no REsp
2012164/RS; AgRg no HC 649371/SP; AgRg no AREsp 2086318/AL; AgRg no REsp
1918000/MG.
54
Julgados: AgRg no HC 763374/SP; AgRg no AREsp 2252383/MG; AgRg no AREsp
2140734/RS; AgRg no AREsp 2217839/SP; AgRg no REsp 1982806/SC; AgRg no REsp
1966974/MS.
55
Julgados: AR 4340/SP; AR 4060/SP; AgRg no AREsp 552788/MS; AgRg no REsp 1448931/SP;
REsp 1970110/SP; REsp 1951324/SP.
56
CIRINO, Samia Moda; FELICIANO, Julia. Protocolo para julgamento com perspectiva de
gênero: abertura para uma mudança epistemológica no direito e na prática jurídica no Brasil.
Direito Público, v. 20, n. 106, 2023.
190
Milena de Araújo Costa & Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras
finalidade de apresentar e defender o uso da perspectiva de gênero no âmbito
do constitucionalismo multinível feminista. Em seguida, verificou-se como o STJ
tem julgado a respeito da perspectiva de gênero.
Diante do exposto, se pode reconhecer que a perspectiva de gênero é um
elemento essencial do constitucionalismo multinível. A desigualdade histórica e
estrutural que afeta as mulheres no continente latino-americano demanda uma
resposta das constituições, leis internas, documentos regionais e internacionais.
No caso do Brasil, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero
elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2021 demonstra a atenção do
órgão de controle da magistratura com os standards propostos pela Corte IDH.
De fato, segundo a perspectiva do constitucionalismo feminista multinível,
a tarefa de promover a igualdade entre mulheres e homens incumbe a todos. A
adoção de uma perspectiva de gênero no âmbito do sistema de justiça é uma
obrigação internacional que o Brasil assumiu ao ratificar os tratados
internacionais e interamericanos de direitos humanos das mulheres, nos quais
se obrigou a garantir um tratamento igualitário a homens e mulheres nos
tribunais de justiça e a eliminar toda forma de discriminação contra as mulheres
e as pessoas LGBTQIAPN+.
Diante do exposto, conclui-se que apesar do STJ ter apenas três edições
que constam na Jurisprudência em Teses referente à Julgamentos com
Perspectiva de Gênero, a edição número 209 (Julgamentos com Perspectiva de
Gênero), a edição número 210 (Julgamento com Perspectiva de Gênero II) e a
edição número 211 (Julgamentos com Perspectiva de Gênero III), nas teses
encontradas, percebeu-se a evolução dos julgamentos com Perspectiva de
Gênero no STJ a fim de proteger os direitos humanos das mulheres e das
pessoas LGBTQIAPN+, dessa forma, de acordo com as decisões encontradas,
o STJ está em constante evolução em relação a temática de gênero e cumpre
efetivamente o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.
REFERÊNCIAS
ADICHI, Chimamanda Ngozi. Everybody should be feminist. 1 vídeo (30 min).
TEDxEuston, 12 abr. 2013. Disponível em:
191
Perspectiva de gênero no Superior Tribunal de Justiça
https://www.youtube.com/watch?v=hg3umXU_qWc. Acesso em: 14 ago.
2023.
BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Introduction: the idea
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Jurisprudencia%20em%20Teses%20211%20-
193
Perspectiva de gênero no Superior Tribunal de Justiça
%20Julgamentos%20Com%20Perspectiva%20de%20Genero%20III.pdf.
Acesso em: 10 dez. 2023.
194
Pensão por morte após reforma da previdência brasileira de
2019: inconstitucionalidade e retrocesso social?
Pedro Eduardo Oliveira da Silva 1
Fábio Luiz de Oliveira Bezerra 2
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda as alterações nas regras do benefício de
pensão por morte, efetuadas pela Emenda Constitucional 103/2019,
denominada de Reforma da Previdência. Tal reforma trouxe consigo diversas
modificações no regramento previdenciário pátrio, tanto as regras do regime
próprio dos servidores públicos como também as do Regime Geral de
Previdência Social (RGPS), sendo considerada a maior reforma legislativa no
âmbito da previdência social do país.
Um dos benefícios amplamente modificados foi o benefício da pensão
por morte, que está previsto no ordenamento jurídico do Brasil desde a edição
do Decreto 4.682/1923, conhecido como Lei Eloy Chaves, que instituiu a
denominada “caixa de aposentadorias e pensões” nas empresas ferroviárias,
beneficiando seus próprios empregados, que em caso de seu falecimento, era
previsto a concessão de valor pecuniário a seus dependentes, como forma de
assegurar garantias mínimas a estes.
Desse modo, diante do avanço jurídico-social do país, é possível verificar
que, após a edição da Lei Eloy Chaves, o legislador direcionou uma maior
atenção para essa garantia previdenciária, e avançou na sua tutela, com
importantes legislações, a exemplo do Decreto 26.778/49, que incluiu outras
1
Bacharelando em Direito (UFRN), e-mail: [email protected].
2
Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Departamento de Direito
Privado. Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra. Ministra disciplinas de Direito Civil e
Direito e Legislação Social. Pesquisador do Grupo Pesquisa “Direito Internacional dos Direitos
Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade” (CNPq/UFRN). Juiz Federal, titular da
7ª Vara Federal/RN. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4850326871996552. E-mail:
[email protected].
195
Pensão por morte após reforma da previdência brasileira de (...)
classes na “caixa de aposentadorias e pensões” e previu o auxílio funeral, além
das outras legislações que contribuíram para formulação do benefício, que foi
recentemente alterado pela Emenda Constitucional 103/2019.
Outrossim, com a referida Reforma, houve amplas mudanças neste
benefício, que alteraram suas nuances, especialmente em relação ao valor
pecuniário a ser pago aos pensionistas do falecido, além de prever limitações
significativas ao formato do cálculo do valor devido, e também contenções a
possíveis cumulações, e alterações em relação ao valor da quota parte
correspondente aos dependentes do de cujus.
Assim, diante do contexto desta alteração constitucional, a pergunta de
pesquisa corresponde a saber se estas diversas modificações redutoras da
pensão por morte estão compatíveis com o princípio da proibição do retrocesso
social e com a Constituição Federal de 1988 (CF/1988).
Neste prisma, o objetivo geral do trabalho é avaliar de forma crítica a
Emenda Constitucional 103/2019 no que tange à pensão por morte, incluindo a
averiguação da necessidade da alteração das regras da pensão por morte e o
impacto que esta reforma trouxe à situação previdenciária do país.
Como desmembramentos desse propósito, o trabalho pretende: a)
identificar as alterações legislativas ordinárias (por lei) que ocorreram até o
advento da Reforma da Previdência; b) avaliar a implementação progressiva do
direito social previdenciário e verificar o conteúdo normativo do princípio da
proibição do retrocesso social; c) e, por fim, proceder ao exame de
compatibilidade da Reforma da Previdência em relação ao princípio da proibição
do retrocesso social e a CF/1988.
É imperioso destacar a importância de averiguar as questões
relacionadas às alterações no benefício da pensão por morte pois, tal benefício
é revestido de relevância, já que o fato gerador de sua concessão é a morte do
provedor da organização familiar, e que muitas vezes é um evento repentino,
que alcança seus dependentes, deixando-os desamparados financeiramente.
Portanto, investigar possíveis dissonâncias entre as alterações ocasionadas pela
196
Pedro Eduardo Oliveira da Silva & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Reforma e a Constituição Federal se apresenta como oportuno nesse cenário,
pois, assim será possível inferir se as modificações, de fato, prejudicam ou não,
os futuros pensionistas.
A hipótese a ser testada é a de que a reforma não gerou apenas uma
redução pontual, mas três reduções cumulativas (forma de cálculo da média,
coeficiente da cota parte e limitações para acumulação), que provocam uma
expressiva diminuição da pensão, que macula o princípio da proibição do
retrocesso social.
A pesquisa adota o método descritivo, exploratório e avaliativo, com
preponderância da análise descritivo-interpretativa de documentos doutrinários,
normativos (constitucionais e legais) e jurisprudenciais (especialmente as ações
diretas de inconstitucionalidades já ajuizadas), que versam sobre as questões
históricas e jurídicas da pensão por morte.
A revisão de literatura que dá substrato à resolução do problema de
pesquisa seguiu duas linhas teóricas. A primeira corresponde à característica do
direito social, que necessita de uma implementação progressiva por parte do
Estado. A segunda diz respeito à proibição do retrocesso, que decorre da
implementação progressiva, mas carece de conteúdo mínimo que possa ser
utilizado como controle de constitucionalidade.
O artigo está estruturado com esta introdução e mais três tópicos: o
tópico 2 cuida da análise do histórico da alteração legislativa previdenciária até
a Reforma da Previdência de 2019; o tópico 3 aborda a implementação
progressiva dos direitos sociais e o princípio da proibição do retrocesso; o tópico
3 diz respeito ao exame de compatibilidade da Reforma da Previdência de 2019
com o princípio da proibição do retrocesso.
2 HISTÓRICO NORMATIVO DA PENSÃO POR MORTE A PARTIR DA
CF/1988 ATÉ A REFORMA DA PREVIDÊNCIA DE 2019
A CF/1988 previu, no inciso V do art. 201, entre os benefícios da
Previdência Social a pensão por morte do segurado, a ser paga ao cônjuge,
companheiro ou demais dependentes. A pensão por morte sempre foi um
197
Pensão por morte após reforma da previdência brasileira de (...)
benefício fundamental do plano de previdência social, estando prevista inclusive
na legislação anterior à CF/1988, notadamente na Lei 3.807/1960.
Após a CF/1988, foi criado o atual Plano de Benefícios da Previdência
Social, por meio da Lei 8.213/91, em que a pensão por morte está disciplinada
nos arts. 74 a 79.
Desde então, esse benefício previdenciário passou por diversas
alterações legislativas, com as promovidas pela Lei 9.032/1995, Lei 9.528/1997,
Lei 12.470/2011, Medida Provisória nº 664/2014, Lei 13.135/2015, Lei 13.146/15
e Lei 13.846/2019, até que se chegasse ao modelo atual, com as regras
constitucionais trazidas pela Emenda Constitucional 103/2019.
De acordo com a redação originária do art. 75 da Lei 8.213/1991, o valor
do benefício correspondia a parcela referente a 80% do valor da aposentadoria
que o segurado recebia (ou, caso não estivesse aposentado, sobre o valor da
aposentadoria a que teria direito na data do falecimento), acrescido de 10% por
cada dependente, até o máximo de dois. Somente seria 100% (cem por cento)
em caso de acidente de trabalho.
Além disso, tal legislação previa que, quando o direito de um dependente
em receber a pensão viesse a cessar, sua parte seria revertida em favor dos
demais.
A Lei 9.032/1995 alterou o rol de dependentes das prestações
previdenciárias (art. 16 da Lei 8.213/1991), excluindo o filho emancipado,
mantendo apenas, quanto a filhos, o não emancipado, de qualquer condição,
menor de vinte e um anos ou inválido. Entende-se que essa exclusão do filho
emancipado foi adequada, pois a emancipação retira o vínculo de dependência
do filho para com os pais, inclusive estes perdendo o poder familiar.
A Lei 9.032/1995 alterou ainda o artigo 75 da Lei 8.213/91, passando a
dispor que o cálculo do valor do benefício corresponderia a 100% do valor,
mantendo a base de cálculo (o valor da aposentadoria, caso aposentado; ou o
valor da aposentadoria a que teria direito na data do falecimento).
198
Pedro Eduardo Oliveira da Silva & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Em outro momento, este benefício novamente passou por outra
alteração legislativa, pela Lei 9.528/1997, que dessa vez realizou modificações
apenas em relação à data de início do benefício, que passou a ser a data do
óbito do falecido, quando a pensão fosse requerida em até 30 dias do
falecimento, ou caso ultrapasse o prazo de 30 dias, passaria a ser a data do
requerimento, e ainda, nos casos de morte presumida, a data inicial do benefício
passaria a ser a data da decisão judicial.
A Lei 12.470/2011, inspirada em parte pela Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que já tinha sido promulgada
pelo Decreto 6.949/2009 (Brasil, 2009), incluiu no rol de dependentes o filho com
deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz,
assim declarado judicialmente (art. 16 da Lei 8.213/1991). Até então, o filho
deficiente somente seria considerado dependente previdenciário se fosse
inválido.
A Lei 13.135/2015 dispôs sobre a perda do direito à pensão por morte,
em caso de condenação, com trânsito em julgado, pela prática de crime de que
tenha dolosamente resultado a morte do segurado (§1º do art. 74 da Lei
8.213/1991). Estabeleceu ainda a perda do direito à pensão por morte quando o
requerente (cônjuge, companheiro ou companheira) praticou simulação ou
fraude no casamento ou na união estável, ou a formalização desses com o fim
exclusivo de constituir benefício previdenciário, devidamente apurado em
processo judicial, assegurado o direito ao contraditório e à ampla defesa.
E a mais relevante alteração procedida pela Lei 13.135/2015 foi o fim da
vitaliciedade da pensão, como regra geral para cônjuges ou companheiros. A
partir de então, o benefício para esses dois dependentes será de apenas 4
(quatro) meses, se o óbito ocorrer sem que o segurado tenha vertido 18 (dezoito)
contribuições mensais. Da mesma forma, será de apenas 4 (quatro) meses se o
casamento ou a união estável tiverem sido iniciados em menos de 2 (dois) anos
antes do óbito do segurado.
Caso o casamento ou a união estável ultrapasse os dois anos, e tenha
mais de 18 contribuições, a pensão por morte terá duração que dependerá da
199
Pensão por morte após reforma da previdência brasileira de (...)
idade do requerente: a) (três) anos, com menos de 21 (vinte e um) anos de idade;
b) 6 (seis) anos, entre 21 (vinte e um) e 26 (vinte e seis) anos de idade; c) 10
(dez) anos, entre 27 (vinte e sete) e 29 (vinte e nove) anos de idade; d) 15
(quinze) anos, entre 30 (trinta) e 40 (quarenta) anos de idade; e) 20 (vinte) anos,
entre 41 (quarenta e um) e 43 (quarenta e três) anos de idade; f) vitalícia, com
44 (quarenta e quatro) ou mais anos de idade.
A Lei 13.146/2015, denominada de Estatuto da Pessoa com Deficiência,
efetivou os direitos da pessoa com deficiência, tal como previstos na Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi aprovada
com equivalência à Emenda Constitucional, alterando o Código Civil para excluir
as pessoas com deficiência das condições de incapacidade, seja absoluta, seja
relativa.
No aspecto previdenciário, a referida lei retirou a exigência de que o filho
com deficiência para ser dependente deveria ser absoluta ou relativamente
incapaz. Tal modificação é reflexo direto da alteração que a mesma lei fez, como
dito, no Código Civil. Além da deficiência intelectual ou mental, a Lei 13.146/2015
incluiu a deficiência grave no inciso II do art. 16 da Lei 8.213/1991.
A Lei 13.183/2015, por sua vez, ampliou o prazo para que o
requerimento tenha efeitos retroativos à data do óbito, passando de 30 para 90
dias. É dizer que, nos termos da Lei 13.183/15, a data inicial do benefício é a do
óbito, se requerido em até 90 dias do falecimento, diferentemente do diploma
anterior que limitava o tempo até no máximo 30 dias.
Ademais, no ano de 2019, ocorreram duas importantes alterações
legislativas no benefício. A primeira mudança ocorreu mediante a Lei
13.846/219, que realizou uma nova transformação na DIB, passando a dispor
que o prazo para que a contagem da data inicial ser a data do óbito seria se o
benefício fosse requerido em até 180 dias do falecimento, para os filhos menores
de 16 (dezesseis) anos, ou seja, duplicou o prazo em relação a legislação
anterior, especificamente para indivíduos nesta faixa de idade.
200
Pedro Eduardo Oliveira da Silva & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Ato contínuo, em 2019 ocorreu a segunda modificação legislativa, com
a Emenda Constitucional 103, nomeada de Reforma da Previdência, que
realizou modificações no texto constitucional, incidindo de forma direta no
benefício da pensão por morte.
As alterações promovidas pela Emenda Constitucional 103/2019, por
serem drásticas, merecem ser examinadas em tópico separado, especialmente
pela necessidade de se caracterizar o direito previdenciário como direito social
que demanda implementação progressiva, o que será visto no tópico seguinte.
3 DIREITO PREVIDENCIÁRIO COMO DIREITO SOCIAL QUE NECESSITA
DE IMPLEMENTAÇÃO PROGRESSIVA E O CONTEÚDO DO PRINCÍPIO
DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO
Os direitos humanos de segunda geração, onde se situam os direitos
previdenciários, possuem, ao contrário dos direitos de primeira geração, a
peculiaridade de que dependem de atuação estatal, notadamente legislativa,
para que lhe dê efetividade jurídica.
Cuida-se da implementação progressiva dos direitos sociais, que está
prevista nos tratados internacionais de direitos humanos, como exigência para
que os Estados nacionais comecem a configurar o conteúdo jurídico dos direitos
sociais e continuem melhorando continuamente tal arcabouço.
Nesse sentido, tem-se o art. 2º do Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, no âmbito do sistema onusiano, que impõe a
adoção de medidas, “principalmente nos planos econômico e técnico, até o
máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar,
progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos
reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas
legislativas” (ONU, 1992).
Há ainda, desta vez no âmbito do sistema interamericano, o Protocolo
Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, conhecido como Protocolo de San
Salvador, cujo art. 1º exige que os Estados signatários realizem providências,
201
Pensão por morte após reforma da previdência brasileira de (...)
econômicas e técnicas, respeitados os recursos disponíveis, “levando em conta
seu grau de desenvolvimento, a fim de conseguir, progressivamente e de acordo
com a legislação interna, a plena efetividade dos direitos reconhecidos neste
Protocolo” (OEA, 1988).
A eficácia da progressividade depende do aspecto financeiro e
orçamentário do Estado. Conforme ensina Gabriel Leal 3, essas questões
financeiras e de custos levam à compreensão do significado da progressividade
dos direitos sociais.
A progressividade em matéria de direitos previdenciários pode ser
constatada na evolução normativa que se efetuou no tópico anterior. E tal pleito
é necessário para a consolidação do Estado de bem-estar social, em que se
reconhece o dever do Estado pela efetivação gradual dos direitos econômicos e
sociais.
Nesta seara, note-se que a ampliação do coeficiente 80% para 100%,
promovida pela Lei 9.032/1995, representou significativa implementação
progressiva desse direito social, porque garante o valor equivalente à
aposentadoria, independentemente do número de beneficiários. Na situação
originária, somente seria 100% com a existência de dois dependentes.
A inclusão do filho com deficiência intelectual ou mental como
dependente do segurado, efetuada pela Lei 12.470/2011, foi também uma
implementação progressiva desse direito social previdenciário.
Os direitos fundamentais de segunda geração, devido ao seu caráter
protecionista e efetivador de programas sociais, incidem sobre a ordem jurídica
do país de maneira gradual, a fim de alcançar os destinatários de modo efetivo.
Nessa toada, é notável vislumbrar, como apresentado anteriormente, que para
efetivação de tais direitos, é preciso de uma atuação específica do Estado,
3
LEAL, Gabriel Prado. A (re)construção dos direitos sociais no século XXI: entre a
progressividade, a estabilidade e o retrocesso. Revista de informação legislativa, RIL, v. 53,
n. 211, jul./set. 2016. p. 152.
202
Pedro Eduardo Oliveira da Silva & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
sobretudo do legislador infraconstitucional, editar leis no sentido de conferir
eficácia a estas normas sociais.
Desta forma, na medida em que o legislador, regula e torna efetiva as
normativas que versam sobre direitos sociais, a exemplo dos direitos
previdenciários, esses direitos, conforme ensina Canotilho 4, passam a constituir
uma garantia institucional e um direito subjetivo.
Assim, não restaria razoável, em um ordenamento jurídico, que, após
prever uma legislação que positive direitos sociais, atuação legislativa diversa,
que viesse a confrontar e reduzir direitos anteriormente adquiridos.
Nesse prisma, é que se encontra o importante princípio da proibição do
retrocesso social, que consiste no impedimento de que, uma vez corporificadas
as prestações sociais por meio legal, o legislador venha a eliminar ou reduzi-las.
Conforme defende a doutrinadora Cristina Queiroz 5, concretizado o direito
fundamental social, o dever de legislar se transforma em um dever de proteção,
não se podendo restringir ou suprimir tal direito, devendo portanto, o legislador
respeitar o nível de concretização já alcançado por meio destes direitos
fundamentais sociais.
Nessa perspectiva, observa-se então, que este princípio da proibição do
retrocesso social, busca conferir uma maior segurança jurídica e proteção,
contra possível arbítrio e cerceamento de direitos sociais conquistados,
buscando afastar qualquer ação no sentido de afastar esses direitos, devendo
ser, como ensina Canotilho 6 :
[...] inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que,
sem a criação de outros esquemas alternativos ou
compensatórios, se traduzam, na prática, numa
4
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed.
Coimbra: Almedina, 2003. p. 469.
5
QUEIROZ, Cristina. O Princípio da não Reversibilidade dos Direitos Fundamentais
Sociais: princípios dogmáticos e prática jurisprudencial. Coimbra: Coimbra Editora. 2006.
p. 70
6
CANOTILHO, op. cit., p. 339-340.
203
Pensão por morte após reforma da previdência brasileira de (...)
“anulação”, “revogação”, ou “aniquilação” pura e simples
desse núcleo essencial.
Observa-se que as disposições legais acerca da pensão por morte, em
que pese possuírem assento constitucional e versarem acerca de matéria
previdenciária, necessitam se manter incólumes a possíveis alterações
legislativas que os reduzem o alcance do núcleo essencial, a fim de respeitar a
proibição do retrocesso social.
Nesta seara, é imperioso destacar, que, desde a edição da Lei 8.213/91,
o legislador pátrio, nas diversas alterações legislativas, buscou sempre promover
avanços na efetivação na tutela do benefício da pensão por morte, onde
proporcionou avanços, por exemplo, na notável ampliação do coeficiente 80%
para 100%, ou seja, nas diversas alterações, quando buscou-se alterar alguma
disposição, houve alternativas de implementação de melhores condições para o
benefício.
Assim, pelo avanço da tutela jurídica em relação à pensão por morte,
desde a Constituição de 1988, é oportuno verificar que qualquer alteração
redutora do núcleo essencial do direito social previdenciário que incida sobre as
normas já consagradas, que a regulam, afronta diretamente o princípio do
retrocesso social.
Firmados tais pressupostos teóricos acerca do princípio da proibição do
retrocesso social, é necessário avaliar as alterações redutoras promovidas pela
Emenda Constitucional 103/2019, com o fito de verificar se estas alterações
estão em consonância com o princípio da proibição do retrocesso social.
4 REFORMA DA PREVIDÊNCIA DE 2019, PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO
RETROCESSO SOCIAL E (IN)CONSTITUCIONALIDADE
A Emenda Constitucional 103/2019 acarretou ampla modificação na
pensão por morte, alterando de modo cumulativo três principais aspectos deste
benefício: forma de cálculo da média, o coeficiente da cota parte, e limitações
para acumulação com outras pensões e benefícios.
204
Pedro Eduardo Oliveira da Silva & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Para se chegar ao valor da pensão por morte, deve-se encontrar o valor
da aposentadoria por incapacidade permanente a que teria direito o segurado
em vida. Ou, caso aposentado, o valor da aposentadoria no momento do óbito.
De um jeito ou de outro, incide, no primeiro momento, a forma do cálculo
do benefício previsto no art. 26 da Emenda Constitucional 103/2019, que
determina que seja utilizado todo o período contributivo do segurado (não
apenas 80% das maiores contribuições, como era a regra anterior) para se
chegar à média. E o valor do benefício não é a média, mas sim a 60% (sessenta
por cento) da média aritmética, com acréscimo de 2 (dois) pontos percentuais
para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 (vinte) anos de
contribuição. Será 100% da média em caso de incapacidade permanente em
razão de acidente de trabalho.
Assim, a primeira redução é no percentual sobre a média das
contribuições, que saiu de 100% para 60%, com acréscimos de alguns
percentuais que somente são aplicados para quem contribuiu por mais de 20
anos. Ou seja, contribuindo por 21 anos, o valor do benefício será apenas de
62% da média das contribuições.
A segunda alteração diz respeito ao coeficiente da pensão, o qual, de
acordo com o art. 23 da Emenda Constitucional 103/19, passou a ser limitado a
50% do valor da aposentadoria que o de cujus recebia, ou ao quantum que
receberia caso fosse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito,
acrescido de 10% por cada dependente, até o valor máximo de 100%. Ou seja,
caso o de cujus tivesse um único dependente, o coeficiente utilizado no cálculo
seria de 60% (50% da aposentadoria + 10% por dependente).
Assim, é possível perceber que, pela legislação vigente antes da
Emenda Constitucional 103/2019, o cálculo do valor do benefício seria em
relação a 100% da aposentadoria ou da perspectiva de aposentadoria que o de
cujus teria na data do óbito, sendo dessa forma imperioso perceber, que a
limitação ocasionada pelo Reforma, trouxe uma redução no valor do benefício,
que somente seria 100% se o falecido tivesse a totalidade de cinco dependentes,
e, mesmo assim, de maneira provisória.
205
Pensão por morte após reforma da previdência brasileira de (...)
Caso um segurado com 21 anos de contribuição e dois dependentes
venha a falecer, a pensão por morte seria correspondente ao coeficiente de 70%
(50% + 20%), aplicado sobre o percentual da média aritmética das contribuições
(62% = 60% + 2%), que resultaria um valor de apenas 43,4% da média de todas
as contribuições que o indivíduo realizou. Assim, frente a tal exemplo, constata-
se a grande redução que essa alteração ocasionou.
No mais, outra danosa modificação promovida pela Emenda
Constitucional 103/2019, diz respeito à reversão da cota parte de cada
dependente. Como visto alhures, desde a promulgação da Lei 8.213/91, era
previsto no ordenamento jurídico do país, a reversão da cota parte dos
dependentes que perdiam a qualidade de segurado, em favor dos demais
dependentes. Todavia, com a referida Reforma, tal reversão foi minada, por força
do § 1º do artigo 23, que passou a dispor que a cota daquele que perdeu a
qualidade de dependente não será mais reversível em favor dos demais, exceto
quando o número de dependentes remanescentes for igual ou superior a cinco.
Assim, observa-se mais uma grande redução no benefício, haja vista que a cota
que anteriormente era transmitida aos demais dependentes, agora não será
mais revertida, logo, cada cessão de quota, o valor total do benefício restará
diminuído de modo proporcional, até a inabilitação completa de todos os
dependentes, ou no caso das pensões vitalícias, ao patamar mínimo de 50%.
Por fim, a questão envolvendo a limitação da acumulação de pensões
também demonstrou ser um fator limitante aos segurados. Ocorre que já existia,
na legislação anterior à Reforma, a previsão da impossibilidade de cumulação
de pensões em um mesmo regime previdenciário, que apenas foi reafirmado na
alteração. Contudo, a legislação anterior, previa algumas possibilidades de
cumulação, que era entre pensões de regimes diferentes, entre pensão e
aposentadoria e pensão militar com aposentadoria. Todavia, é válido perceber
que a reforma manteve tais possibilidade de acumulação de pensão, previsto em
seu artigo 24, no entanto, foi adicionado um fator limitador ao recebimento de
tais valores, pois a partir desta alteração constitucional, foi imposto limites
percentuais para o recebimento de ambos benefícios, devendo, portanto, o
206
Pedro Eduardo Oliveira da Silva & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
segurado optar pela mais vantajosa, e receber um valor percentual pelo outro
benefício ou aposentadoria.
Dessa forma, verifica-se que a alteração foi altamente limitativa, pois, o
segurado não mais poderá gozar na integralidade da cumulação, mas ficará
limitado ao percentual disposto em lei, e ao invés de receber a totalidade de
ambas benesses previdenciária, terá que optar por um, recebendo quantia
percentual pelo outro, que chegará no máximo a 60% e o mínimo de 10%.
Essas três drásticas alterações, que de forma sucessiva diminuem o
valor da pensão, maculam o núcleo essencial do direito à pensão por morte, que,
se não é o mesmo padrão que a família tinha antes do óbito do instituidor,
consiste em pelo menos não deixar o pensionista em uma situação de
dificuldade, exatamente o que ocorre com uma redução do benefício em mais de
50%, como no caso acima simulado.
Não obstante essa análise, em recente acórdão, datado de 23 de junho
de 2023, proferido em uma sessão virtual, em que não se discute oralmente as
razões do voto, o Supremo Tribunal Federal, nas ADIs 6.271, 6.367, 6.385 e
6.916, declarou a constitucionalidade das três alterações no regime da pensão
por morte, quais sejam, o percentual da média das contribuições (art. 26, § 3º,
II, da EC 103/2019), o coeficiente da pensão por morte (art. 23 da EC 103/2019)
e as regras de acumulação de pensões por morte (art. 24 da EC nº 103/2019).
O relator do acórdão, ministro Roberto Barroso, levou em conta razões
financeiras e atuariais, como o aumento da expectativa de vida da população e
a diminuição da natalidade, o que comprometeria, caso não fosse realizada a
Reforma, o equilíbrio das contas da Previdência Social. Não houve, contudo,
uma fundamentação mais densa quanto ao princípio da proibição do retrocesso
social, tendo o relator apenas mencionado que “o princípio da vedação ao
retrocesso social pode ter o efeito de cristalizar toda e qualquer norma que
tangencie um direito fundamental”.
207
Pensão por morte após reforma da previdência brasileira de (...)
5 CONCLUSÃO
Frente a tal conjuntura exposta, foi analisada de forma crítica a Emenda
Constitucional 103 de 2019, no que diz respeito ao benefício previdenciário da
pensão por morte, sendo visualizado o impacto que tal reforma causou sobretudo
aos beneficiários da pensão.
Nesse sentido, pôde-se visualizar as alterações legislativas que
ocorreram até a incidência da reforma no ordenamento pátrio, no que tange à
pensão por morte, sendo possível perceber todo o avanço e o implemento
progressivo desse benefício social, até o advento da Emenda Constitucional
103/2019.
No mais, frente a tais pressupostos firmados, restou comprovado que
essa reforma, no que diz respeito ao benefício da pensão por morte, ainda que
se tenha implementado no sistema jurídico pátrio, se deu de modo impreciso e
desnecessário, ainda mais porque feriu o princípio da proibição do retrocesso,
pois, como se pôde observar, pelas cumulativas modificações, representou um
regresso excessivo e sem razoabilidade, comparadas todas as alterações
anteriores, tendo em visto, que impactou negativamente o formato do cálculo do
benefício, além de que limitou a 10% o valor da quota parte, e também
impossibilitou a cumulação com outras pensões.
Dessa forma, confrontando tal mudança, com as alterações históricas
ocorridas no ordenamento pátrio, verifica-se que todos estes três campos que a
Emenda Constitucional 103/2019 lesou, haviam sido fruto de avanços
progressivos, conquistados historicamente, como a exemplo do valor da quota
parte, que anteriormente, se havia conseguido que fosse revertida ao cônjuge, e
com a referida reforma, tal previsão retornou ao status quo primário, sendo
proibida a reversão.
O STF, contudo, sem uma fundamentação densa sobre o princípio da
proibição do retrocesso, declarou a constitucionalidade das novas regras da
pensão por morte.
208
Pedro Eduardo Oliveira da Silva & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu
Protocolo Facultativo. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br
/ccivil_03/ato2007-2010/2009/decreto/d 6949.htm>. Acesso em: 17 out.
2023.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
6. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
LEAL, Gabriel Prado. A (re)construção dos direitos sociais no século XXI: entre
a progressividade, a estabilidade e o retrocesso. Revista de informação
legislativa, RIL, v. 53, n. 211, jul./set. 2016.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Pacto Internacional Sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Decreto 591, de 6 de julho
de 1992. Brasília. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm>.
Acesso em: 09 abr. 2023.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Protocolo Adicional à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. "Protocolo de São Salvador",
concluído em 17 de novembro de 1988, em São Salvador, El Salvador.
Disponível em: <https://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-
52.htm>. Acesso em: 15 mai. 2023.
QUEIROZ, Cristina. O Princípio da não Reversibilidade dos Direitos
Fundamentais Sociais: princípios dogmáticos e prática jurisprudencial.
Coimbra: Coimbra Editora, 2016.
209
Inteligência artificial: viés no aprendizado da máquina à luz
da responsabilidade civil
Raysla Raquel Dias Guilherme *
Fábio Luiz de Oliveira Bezerra **
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo reflete sobre a responsabilização civil no contexto da
aplicação da Inteligência Artificial (IA) que contenha viés no aprendizado,
especificamente o reforço do preconceito. A IA, embora tenha sido empregada
de forma prática a partir de 1950, somente nos últimos anos teve seus efeitos
difundidos nas esferas sociais, a partir do surgimento de casos emblemáticos
envolvendo empresas e funcionários.
São indiscutíveis os avanços e contribuições da IA para a melhoria dos
produtos e serviços, trazendo mais qualidade para as relações de trabalho, para
o âmbito educacional e para a economia, principalmente após o advento da
automação industrial. No entanto, é importante salientar também os riscos que
vêm na esteira dessas revoluções tecnológicas, como riscos à segurança digital,
à segurança física e à segurança política, assim como a disseminação de
preconceito a partir do enviesamento da máquina.
Nesse contexto, a pergunta que motiva a presente pesquisa é a
seguinte: como se dá a responsabilidade civil pelos danos decorrentes do
preconceito reforçado pela IA na cadeia do desenvolvimento, manutenção e
aplicação dessa inteligência?
Em busca de solucionar esse problema, fixou-se como objetivo geral
sistematizar o fundamento normativo vigente em que se possa apoiar uma
responsabilização civil em caso de uso de IA com viés de aprendizado, diante
das lacunas legais para essa situação. Já o objetivo específico do ensaio é
*
Graduanda em Direito (UFRN), e-mail: [email protected].
**
Professor Adjunto (UFRN), Doutor em Direito, e-mail: [email protected].
210
Raysla Raquel Dias Guilherme & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
compreender como surge e como se desenvolve o viés do preconceito,
precisando a origem do viés, se com a programação, se com a manutenção, se
com o uso da IA, para fins de estabelecer o responsável pela eventual
discriminação indevida.
A pesquisa desenvolvida justifica-se pela preocupação do enviesamento
de dados, que pode gerar a disseminação de preconceitos nas relações e
esferas cotidianas, conjuntura que se agrava ainda mais na sociedade
contemporânea, que é marcada por desigualdades estruturantes e sistemas de
opressões que perseguem minorias diariamente. Ao lado dos inúmeros
benefícios inerentes à sua aplicação, observam-se, igualmente, diversos
obstáculos e desafios decorrentes dessa realidade, como o viés do aprendizado.
A relevância desta pesquisa reside na possibilidade de colaborar com
criação de arcabouço para a comunidade acadêmica, por meio da
sistematização da normatização existente aplicável aos casos envolvendo IA,
bem como encontrar alternativas de responsabilização para aplicação nos casos
concretos.
A hipótese ventilada é a de que, sendo possível tecnicamente
estabelecer a origem do viés, o responsável será aquele que tem atribuição da
respectiva fase do desenvolvimento; caso contrário, todos respondem
solidariamente pelos danos materiais e morais sofridos pela vítima.
Com intuito de responder à pergunta formulada, o estudo é realizado
com suporte em dois procedimentos metodológicos. Faz-se, em primeiro lugar,
uma aplicação de método descritivo, exploratório e avaliativo, com análise
descritivo-interpretativa de documentos doutrinários e normativos. Esta parte da
pesquisa, de natureza descritiva, abordagem qualitativa e nível de estudo
exploratório foi desenvolvida ao longo do segundo semestre do ano de 2023.
São duas linhas teóricas que são abordadas na revisão de literatura
especializada e que constituirão a base para a resposta à pergunta de pesquisa.
Uma relativa à inteligência artificial, enviesamento de dados, aprendizado da
máquina e o viés do preconceito, ancorado em autores especializados nessa
211
Inteligência artificial: viés no aprendizado da máquina à luz (...)
área interdisciplinar. E a outra diz respeito à responsabilidade civil por danos
decorrentes do preconceito reforçado pela IA.
O segundo procedimento metodológico diz respeito a um estudo de caso
sobre a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) de
suspender a aquisição de câmeras com reconhecimento facial, visando evitar a
reprodução do racismo estrutural.
Na sequência desta introdução (tópico 1), passa-se a abordar a
inteligência artificial, sua origem e o viés do preconceito (tópico 2), para em
seguida adentrar-se na questão de fundo, acerca de como se dá a
responsabilização civil pelo uso de IA que reflete e reforça o preconceito (tópico
3), finalizando com a análise da hipótese de pesquisa e as notas conclusivas
(tópico 4).
2 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E O VIÉS DE APRENDIZADO
Para compreender o tema e identificar os impactos contemporâneos do
aprendizado enviesado da máquina, é necessário ventilar luz sobre o que
significa a IA e apontar tanto o contexto da sua emergência, bem como a sua
consolidação nas relações sociais.
O artigo de Alan Turing, intitulado “Computing Machinery and
Intelligence”, de 1950, foi o primeiro a articular uma visão abrangente e completa
acerca do conceito e da aplicação da IA, como bem aponta a doutrina
especializada 1. Neste trabalho, o objetivo de Turing era, em linhas gerais,
descobrir se a máquina teria a capacidade de assemelhar seu desempenho à
performance de um humano, a ponto de confundir-se com este.
Na década de 1980 foi apresentada por Rich 2 uma definição acerca da
IA, como sendo o conjunto de práticas lógicas que, somadas à ciência da
computação, permite que as máquinas não utilizem da supervisão humana na
tomada de decisões e interpretação de mensagens virtuais. Nessa linha,
1
SILVA, Fabrício Machado da. Inteligência artificial. Porto Alegre: Sagah, 2019.
2
RICH, Elaine. Inteligência artificial. Tradução de Newton Vasconcellos; Revisão Técnica de
Nizam Omar. São Paulo: McGraw-Hill, 1988, p. 1.
212
Raysla Raquel Dias Guilherme & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
consoante Minsky 3, a IA pode ser definida como a ciência que constrói máquinas
que exercem atividades que necessitam de inteligência, caso fossem realizadas
por homens. Luger 4, por seu turno, define a IA como “o ramo da ciência da
computação que se ocupa da automação do comportamento inteligente”.
Como destaca Anita Fernandes 5, os sistemas de IA assemelham seu
comportamento ao comportamento humano, por meio das características de
compreensão da linguagem, aprendizado, resolução de problemas e raciocínio
frente a novos contextos. Para Coppin 6, a IA pode ser chamado de sistema
inteligente, porque possui a habilidade de aprender, o que se dá por meio de
algoritmo que absorve memórias com base em um conhecimento anterior,
analisa uma série de hipóteses e indica a mais viável para o caso.
Com o desenvolvimento da tecnologia, a IA passou a se incorporar cada
vez mais no cotidiano e nas relações interpessoais. O benefício que advém se
alastra por inúmeros setores da sociedade. No entanto, alguns problemas vêm
acompanhando essas benesses, ainda mais em um contexto de desigualdades
estruturais e opressão de minorias. Um exemplo disso são as tecnologias de
reconhecimento facial, que atuam como uma contrapartida imediata para as
empresas, possibilitando que haja a leitura da expressão facial do cliente,
definindo, assim, um padrão comportamental.
Nesse cenário, verifica-se que alguns algoritmos de reconhecimento
facial expuseram dificuldades de reconhecimento para a pele negra e feminina,
a título de exemplo, o caso que aconteceu com a Microsoft, no ano de 2018,
após o desenvolvimento do API Face, um dispositivo de reconhecimento facial.
Em uma síntese apertada, a Microsoft não possuía funcionários negros e pardos
suficientes nos algoritmos iniciais utilizados para a construção e aprendizado da
plataforma, gerando, assim, uma dificuldade para identificar rostos escuros.
3
MINSKY, Marvin. A Sociedade da mente. São Paulo: Editora Francisco Alves, 1985.
4
LUGER, George F. Inteligência artificial. 6. ed. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2013.
p. 21.
5
FERNANDES, Anita Maria da Rocha. Inteligência artificial: noções gerais. Florianópolis:
Visual Books, 2003.
6
COPPIN, Ben. Inteligência artificial. Rio de Janeiro: LTC, 2010.
213
Inteligência artificial: viés no aprendizado da máquina à luz (...)
No âmbito da Psicologia, mais precisamente da cognitiva, percebe-se o
aprofundamento em estudos sobre as decisões humanas e os vieses que as
permeiam. A psicologia cognitiva, desde a década de 70, procura entender as
fronteiras da racionalidade humana, que atingem todos de forma indistinta,
prejudicando a análise imparcial nos julgamentos. De acordo com Costa e
Horta 7, o ser humano não reflete na maior parte das vezes nas quais decide, e
“como nossa capacidade de processamento é limitada”, toma-se uma decisão
que pode ser considerada tolerável e não uma que é vista como ótima, já que a
percepção humana dos fatos é, de certa forma, restrita.
Em consonância com os estudos de Kaufman 8, a IA baseia suas
decisões a partir de dados que se não forem corretamente desagregados e
tratados, disseminam e intensificam os preconceitos, gerando, dessa forma, o
aumento no número de casos enviesados. O autor mostra, no estudo de caso
sobre a Inglaterra, que diagnósticos são aplicados de forma incorreta às
mulheres, uma vez que a IA não conseguiu aprender a diferenciar que homens
possuem mais chances de serem acometidos por infartos. Assim, por meio
desse exemplo depreendemos que o viés de gênero é apenas um recorte dentro
de todos os vieses existentes.
O trabalho de Garcia 9 salienta um exemplo relevante para ilustrar a
dimensão do problema apresentado neste artigo. Segundo o autor supracitado,
em 2016, durante um concurso de beleza com jurados robôs, o Beauty.Al
procurou, por meio de critérios objetivos, as pessoas com os rostos mais belos
do mundo, analisando a simetria da face, a uniformidade do tom da pele, as
rugas etc., havendo, portanto, a ausência de preconceitos raciais. Entretanto, o
resultado revelou que, mesmo com o esforço de se alcançar uma decisão neutra,
7
COSTA, A. A.; HORTA, R.L. Vieses na decisão judicial e desenho institucional: uma discussão
necessária na era da pós-verdade. Cadernos Adenauer, XVIII, nº1, s/l, s/e, 2017, p.11-34.
Disponível em: <https://www.kas.de/de/statische-inhalte-detail/-/content/cadernos-adenauer>.
Acesso em: 21 jun. 2023.
8
KAUFMAN, Dora. Inteligência artificial: caminhos para proteger a sociedade. Revista Interesse
Nacional, n. 56, dez. 2021. Disponível em:
<https://interessenacional.com.br/2021/12/21/inteligencia-artificial-caminhos-paraproteger-a-
sociedade/>. Acesso em: 21 jun. 2023. p. 74.
9
GARCIA, Ana Cristina Bicharra. Ética e inteligência artificial. Revista da Sociedade Brasileira
de Computação, n. 43, p. 14-22, nov. 2020. Disponível em:
<https://sol.sbc.org.br/journals/index.php/comp-br/article/view/1791>. Acesso em: 21 jun. 2023.
214
Raysla Raquel Dias Guilherme & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
dentre as 44 vencedoras (de 6 mil), apenas uma possuía a pele negra. Dessa
maneira, depreende-se que, mesmo não tendo sido construída para
compreender como belas apenas as pessoas de pele branca, o aprendizado da
máquina foi feito por meio de imagens que continham atrizes de Hollywood e
realizados por desenvolvedores brancos, o que provavelmente contribuiu para o
resultado enviesado.
O’Neil 10 mostra como o impasse reside no fato de nem todos os dados
estão à disposição na maioria dos modelos, fazendo com que os programadores
precisem usar dados substitutos e indicadores próximos. Ademais, percebe-se,
ainda, que algumas correlações estatísticas são feitas por meio de dados de
forma discriminatória, retendo, ilegalmente, os sujeitos em caixas. Por isso, o
referido autor esclarece que esses modelos demolidores não possuem ciclos de
contrapartidas constantes para possibilitar o aprendizado da máquina diante os
erros.
3 ASPECTOS NORMATIVOS DO USO DE IA E A RESPONSABILIDADE
CIVIL PELOS DANOS RESULTANTES DE VIÉS DE PRECONCEITO
Neste tópico será abordada a legislação vigente e projetos de lei
aplicados aos efeitos decorrentes do uso de IA para fins de responsabilização,
mais especificamente nos casos que envolvem viés do aprendizado, com a
disseminação do preconceito. No contexto dos danos causados pela IA, ao
analisar a legislação vigente, nota-se que existem lacunas normativas para tratar
a matéria. Há legislação sobre responsabilização por danos em geral, sem
tratamento específico sobre o dano ser proveniente do uso de IA, sejam as
normas do Código Civil, sejam as normas do Código de Defesa do Consumidor.
Todavia, as imprevisibilidades que surgem decorrentes do uso da IA exigem uma
análise mais profunda e direcionada. 11
10
O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a
desigualdade e ameaça a democracia. Santo André: Editora Rua do Sabão, 2020.
11
ČERKA, Paulius; GRIGIENĖ, Jurgita; SIRBIKYTĖ, Gintarė. Liability for damages caused by
Artificial Intelligence. Computer Law & Security Review, Elsevier, v. 31, n. 3, p. 382, jun. 2015.
Disponível em: <www.compseconline.com/ublications/prodclaw.htm>. Acesso em: 24 jun. 2023.
215
Inteligência artificial: viés no aprendizado da máquina à luz (...)
No Direito brasileiro, sob a égide dos artigos 937 e 938 do Código Civil
(CC), verifica-se que a responsabilidade pelo fato das coisas está limitada a uma
concepção estrita, correspondendo a situações que decorrem do direito
romano. 12 Sob a luz da jurisprudência 13, esta desenvolve expressamente a
matéria no que diz respeito à obrigação do proprietário do veículo, em que a
responsabilidade civil se dá pelo risco, sendo este utilizado como fator de
imputação. Para Tepedino e Silva 14, a responsabilização pelos danos
decorrentes de atos de IA advém da caracterização como atividades de risco,
sendo, pois, responsabilidade objetiva.
Em consonância com o que foi exposto anteriormente, de acordo com
Neto e Andrade 15, no direito comparado, para embasar a responsabilidade
objetiva dos fabricantes ou proprietários das máquinas compostas por IA pelos
danos causados por estes, busca-se, reiteradamente, aplicação de regras
específicas de responsabilização pelo fato dos animais, coisas perigosas e pelos
atos de menores e incapazes. De forma específica, utilizando-se mais uma vez
da comparação, no que concerne aos atos praticados por seres dotados de IA e
animais, verifica-se que cabe ao proprietário do animal detê-lo sob sua guarda,
usando da disciplina e responsabilização por suas ações, diante do risco que
assume, naturalmente, ao obtê-lo.
No entanto, mesmo reconhecendo que o ordenamento jurídico brasileiro
tenha desenvolvido a responsabilidade pelo fato da coisa, nota-se a insuficiência
e lacuna presente, na medida em que, nas relações de consumo, a
responsabilidade em razão do uso de IA pode ser configurada como
12
YUN, Qi. Um estudo sobre a actio de effusis vel deiectis no direito romano: com base na análise
dos fragmentos D.9, 3 e I. 4,5, Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 14, 2018,
p. 383 e ss.
13
BRASIL. STJ, REsp 1.354.332/SP, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 12.08.2016.
Disponível em: <http://www.
stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?processo=1354332&&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&
p=true>. Acesso em: 24 de junho de 2023.
14
TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia. Desafios da Inteligência artificial em matéria
de responsabilidade civil. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 21, p. 61-86,
jul./set. 2019.
15
NETO, Eugênio Facchini; ANDRADE, Fábio Siebeneichler. Reflexões sobre o modelo de
responsabilidade civil para a inteligência artificial: perspectivas para o direito privado brasileiro.
In: SARLET, Gabrielle et al. Inteligência artificial e direito. Editora Fundação Fênix. Porto
Alegre, 2023.
216
Raysla Raquel Dias Guilherme & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
responsabilidade pelo vício do produto ou serviço (art. 18 do CDC) ou como
responsabilidade pelo fato do produto ou serviço (art. 12 do CDC).
Andrade e Faccio 16 explanam duas situações acerca da regulamentação
dos efeitos da IA. Em primeiro lugar, observa-se o caso de um dispositivo de IA
que apresenta funcionamento inadequado para o uso visado devido vício de
qualidade, de acordo com o art. 18 do CDC; neste caso, a responsabilidade é
tanto do fabricante, como de todos os fornecedores, todos respondendo
solidariamente. Em segundo lugar, de acordo com o art. 12 do CDC, pode
ocorrer a hipótese de defeito do produto, nos casos em que o produto não
confere a segurança esperada.
Tendo em vista que alguns obstáculos persistem, mesmo diante desses
preceitos normativos - como, por exemplo, a dificuldade da individualização do
responsável dentro da cadeia de produção e a imprevisibilidade das ações da IA
sendo confundida com possíveis defeitos -, busca-se apoio em instrumentos
normativos internacionais. A Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de
fevereiro do ano de 2017 17, em seu § 56, busca tratar das hipóteses dos danos
causados por pluralidade de agentes quando não for possível identificar o
responsável, prescrevendo que o desenvolvedor de uma etapa do referido
sistema só poderá ser responsabilizado se restar comprovado a contribuição
para o todo defeituoso. De forma específica, verifica-se a relevância,
concernente à responsabilidade civil, de definir os possíveis responsáveis pelas
lesões causadas pelo uso da IA. Até agora, a Resolução do Parlamento Europeu
se apresenta como a proposta mais direcionada à uma solução para o uso da
IA, tendo em vista que as decisões anteriores, como já exposto aqui, apenas
tentam adaptar institutos já existentes por meio de analogias. 18
16
ANDRADE, Fabio Siebeneichler; FACCIO, Lucas Girardello. Notas sobre a responsabilidade
civil pela utilização da inteligência artificial. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 46, n. 146, jun.
2019.
17
UNIÃO EUROPEIA. Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2017, com
recomendações à Comissão de Direito Civil sobre Robótica (2015/2103(INL)). 2017. Disponível
em: <http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+TA+P8-TA-2017-
0051+0+DOC+XML+V0//EN#BKMD-12>. Acesso em: 24 jun. 2023.
18
ANDRADE, Fabio Siebeneichler; FACCIO, Lucas Girardello. Notas sobre a responsabilidade
civil pela utilização da inteligência artificial. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 46, n. 146, jun.
2019.
217
Inteligência artificial: viés no aprendizado da máquina à luz (...)
Partindo para uma análise doutrinária, de acordo com Ruffolo 19, o estudo
da imputabilidade da indenização deve girar em volta da responsabilidade
atribuída às pessoas e não aos robôs, uma vez que estes são desprovidos de
personalidade jurídica. Por isso, o autor afirma que, mesmo que a máquina
dotada de IA tenha uma atuação direta no processo causal que gera a produção
do dano, deve-se perquirir a conformidade da conduta da pessoa por ele
responsável. Em suma, conclui-se que os fabricantes das máquinas com IA são
objetivamente responsáveis por todos os danos que seus respectivos produtos
possam causar. Esta lógica está baseada, no regime especial, no CDC, tanto
ancorado no art. 12, que diz respeito aos defeitos do produto, como no art. 18,
que se refere ao aos vícios de qualidade. Ademais, no CC, as previsões do art.
927 e 931 representam cláusula geral de responsabilidade relativa às atividades
que envolvem risco. É importante pontuar que o Direito brasileiro contempla, no
produto colocado em circulação, aquilo que está disciplinado no art. 931 do CC
no que diz respeito à responsabilidade civil, solidificando, assim, a
responsabilidade objetiva. 20
Quanto à responsabilidade em face do viés do preconceito,
propriamente dito, convém destacar que, de acordo com a comunidade
científica, a importância das decisões automatizadas reside na superação das
deficiências e parcialidades contidas nos julgamentos humanos, que são
compostos de vieses cognitivos. Contudo, a neutralidade destes sistemas não é
incontroversa.
Em consonância com os estudos de Requião e Costa 21, verifica-se que
a IA, além de ser incapaz de corrigir o erro subjetivo humano, pode reforçar e
disseminar os preconceitos que permeiam a sociedade, gerando preferências,
exclusões e diferenças, quadro que se agrava ainda mais entre os grupos
vulneráveis. Os autores explicam que a discriminação algorítmica sucede tanto
quando os algoritmos refletem os preconceitos dos seres humanos, que vêm
19
RUFFOLO, Ugo. Le responsabilità da intelligenza artificiale nel settore medico e farmaceutico.
In: RUFFOLO, Ugo (Org.). Intelligenza artificiale e responsabilità. Milano: Giuffrè, 2017. p. 56.
20
ANDRADE, Fabio Siebeneichler; FACCIO, Lucas Girardello. Notas sobre a responsabilidade
civil pela utilização da inteligência artificial. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 46, n. 146, jun.
2019.
21
REQUIÃO, Maurício; COSTA, Diego Carneiro. Discriminação algorítmica: ações afirmativas
como estratégia de combate. Civilistica.com. a. 11. n. 3. 2022.
218
Raysla Raquel Dias Guilherme & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
incrustrado desde a programação, como também quando entram em contato
com bases de dados contidas de vieses preconceituosos, fazendo com que o
algoritmo, de certa forma, aprenda a fazer a diferenciação.
Em relação à normatização sobre a proteção à discriminação
algorítmica, aprecia-se o protagonismo da União Europeia desde a
Regulamentação Geral de Proteção de Dados 2016/679 (General Data
Protection Regulation ou GDPR). Dentre as medidas, observa-se a restrição nas
tomadas de decisões automatizadas que produzam efeitos jurídicos parecidos
nos seres humanos. Além disso, disciplina que os responsáveis pelo tratamento
de dados têm o dever de informar os titulares dos dados acerca da existência de
decisões automatizadas, sobre as consequências e a lógica envolvida 22.
Partindo para uma análise com base no direito pátrio, avista-se que o
foco, primordialmente, voltou-se para a questão de garantir a proteção de dados
pessoais, mais especificamente no que diz respeito aos dados sensíveis. Na
legislação nacional, o arcabouço para tratar as questões concernentes às
decisões automatizadas são apoiadas na Lei 13.709/2018, denominada de Lei
Geral de Proteção de Dados (LGPD), que começou a vigorar no ano de 2020. 23
Esta Lei, em seu art. 6º, estabelece os princípios norteadores da
proteção de dados, entre os quais o princípio da qualidade dos dados (inciso V)
que garante aos titulares a exatidão, importância, atualização e clareza dos
dados pessoais e o princípio da não discriminação (inciso IX), que indica a
impossibilidade de tratar dados para fins discriminatórios, ilícitos ou abusivos.
Por esse ângulo, vê-se que as principais medidas governamentais relacionadas
aos algoritmos foram, de forma expressa, previstas na LGPD, como: i) auditoria
do algoritmo; ii) decisões automatizadas revisadas; iii) relatórios de impacto
concernente à proteção de dados pessoais 24.
22
FERRARI, Isabela; BECKER, Daniel; WOLKART, Erik Navarro. Arbitrium ex machina:
panorama, riscos e a necessidade de regulação das decisões informadas por algoritmos.
Revista dos Tribunais, v. 995, p. 635-655, set. 2018.
23
REQUIÃO, Maurício; COSTA, Diego Carneiro. Discriminação algorítmica: ações afirmativas
como estratégia de combate. Civilistica.com. a. 11. n. 3. 2022.
24
BIONI, Bruno Ricardo; LUCIANO, Maria. O princípio da precaução na regulação da Inteligência
artificial: seriam as leis de proteção de dados o seu portal de entrada? In: FRAZÃO, Ana;
219
Inteligência artificial: viés no aprendizado da máquina à luz (...)
Em primeiro lugar, com base no exposto acima, Requião e Costa 25
afirmam que a simples auditoria não se configura como a melhor solução para o
problema quando estamos face às técnicas mais avançadas de reorganização e
funcionamento do algoritmo, uma vez que ele é capaz de reorganizar seu
funcionamento interno seguindo os dados analisados. Além disso, no que diz
respeito às decisões automatizadas (art. 20, LGPD), de acordo com Requião e
Costa 26, “tal dispositivo não garante que a revisão seja feita por um ser humano,
o que faz com que, a princípio, a própria máquina enviesada seja responsável
por rever sua decisão”. Ademais, sobre os relatórios de impacto, seguindo a
mesma linha de raciocínio, os autores supracitados 27 alertam que “inexiste uma
obrigação de o controlador realizar um relatório de impacto à proteção de dados
sem antes ser requisitado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados”.
Não obstante, mesmo diante deste aparato normativo, Requião e
Costa 28 mostram que, apesar das ferramentas da LGPD serem fundamentais no
combate às discriminações algorítmicas, é salutar reconhecer a insuficiência
para disciplinar o assunto, devendo, então, buscar meios para estudar outras
propostas. Nessa toada, importante fazer uma análise de um processo judicial
em que se discutiu o viés do preconceito.
No dia 18 de maio de 2023, a Justiça Estadual de São Paulo suspendeu
o edital do programa lançado pela prefeitura de São Paulo, o Smart Sampa, que
previa a instalação de 20 mil câmeras de segurança com tecnologia de
reconhecimento facial. Antes mesmo dessa decisão judicial, referido programa
já havia sido suspenso pelo Tribunal de Contas do Município (TCM), devido ao
fato de constar, no edital, termos racistas como cor de pele e casos de
“viadagem”, que seriam critérios de identificação de indivíduos suspeitos.
O pedido judicial foi feito pela Bancada Feminista, no mandato coletivo
do PSol, na Câmara Municipal de São Paulo, baseando-se nos argumentos de
que o edital apontava riscos de perfilhamento racial por meio do uso da
MOLHOLLAND, Caitlin (org.). Inteligência artificial e o direito: ética regulação e
responsabilidade. São Paulo: Thomson Reuters. Brasil, 2019, p.207-228, p.215.
25
REQUIÃO, Maurício; COSTA, Diego Carneiro. Idem.
26
REQUIÃO, Maurício; COSTA, Diego Carneiro. Idem.
27
REQUIÃO, Maurício; COSTA, Diego Carneiro. Idem.
28
REQUIÃO, Maurício; COSTA, Diego Carneiro. Idem.
220
Raysla Raquel Dias Guilherme & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
tecnologia, gerando, assim, um fomento de abordagens discriminatórias de
pessoas pretas e pardas.
A decisão que suspendeu a implantação do sistema de reconhecimento
facial foi proferida pelo juiz Luís Manuel Fonseca Pires, da 3° Vara de Fazenda
Pública, com o fundamento de que essas câmeras com sistema de
reconhecimento facial representam “grave ameaça a direitos fundamentais”,
possibilitando a reprodução do racismo estrutural. De acordo com o juiz:
“A dimensão do impacto que o sistema tecnológico de
monitoramento por reconhecimento facial produz impõe a
responsabilidade ao Poder Público de apenas considerar o seu
uso após a definição de regras legais precisas que ponderem os
objetivos da segurança pública com os direitos fundamentais.
Daí porque não há como adquirir o sistema de
videomonitoramento sem se saber como esses dados podem
ser processados (Lei Geral de Proteção de Dados) e como
devem ser ponderados em proteção aos direitos fundamentais”.
A decisão foi, contudo, reformada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo,
3ª Câmara de Direito Público, em recurso interposto pelo município, de relatoria
da Desembargadora Paola Lorena. Considerou-se que não havia evidência de
que a implantação do sistema de monitoramento facial reforçasse a
discriminação social e racial.
Analogamente ao caso aqui estudado, no Brasil, de acordo com Santana
(2020), a ferramenta de reconhecimento facial para identificar pessoas
procuradas pela polícia, com mandado de prisão expedido, suscita o debate
sobre o racismo estrutural no contexto do sistema prisional brasileiro. A autora
traz o exemplo da Bahia, onde este modelo realizou o maior número de prisões,
em que houve inúmeros erros nos apontamentos de pessoas foragidas,
apontando, em grande maioria, pessoas negras como culpadas.
Nessa perspectiva, é importante entender como funciona o sistema de
reconhecimento facial. Santana (2020) explica que este sistema funciona como
uma técnica de biometria, a partir dos traços do rosto das pessoas. Dessa forma,
221
Inteligência artificial: viés no aprendizado da máquina à luz (...)
o modelo define características específicas na face dos seres humanos, sendo
mapeadas por meio de códigos binários, ocorrendo por meio de dados gerados
sobre essas características - como, por exemplo, a distância entre o nariz e a
boca -, permitindo individualizar um sujeito. Além disso, deve conter dados que
permitam identificar o perfil específico.
Sendo assim, tendo em vista o caso aqui apresentado, percebe-se que
os mecanismos de regulamentação da IA se tornam cada vez mais urgentes,
necessitando que o Direito, de forma geral, se prepare para abraçar os avanços
tecnológicos decorrentes dessa realidade.
4 CONCLUSÃO
No status quo de ausência de normas específicas que regulamentem a
matéria do enviesamento de dados decorrente do uso de IA, verifica-se a
insegurança jurídica para aqueles que, de alguma forma, são atingidos pelo
preconceito na cadeia de desenvolvimento, manutenção e aplicação dessa IA.
Em face deste impasse, esta pesquisa buscou, de forma prioritária, sistematizar
a legislação vigente para fins de responsabilização civil face à problemática.
Os resultados obtidos após os procedimentos metodológicos
demonstram que, de forma geral, existe a possibilidade de recorrer aos artigos
12 e 18 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e aos artigos 927 e 932 do
Código Civil (CC), para disciplinar a responsabilidade pelos danos causados em
razão do uso de IA.
Em primeiro lugar, sob a égide do CDC, o art. 12 aborda sobre a
responsabilidade pelo fato do produto ou serviço. Neste caso, quando o dano
perpassa à esfera da coisa ou serviço e atinge a pessoa, seja fisicamente, seja
emocionalmente. Assim, a responsabilidade se dirige ao fabricante, o produtor,
o construtor e o importador, que respondem, independentemente de culpa, pela
reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de
projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação,
apresentação ou acondicionamento de seus produtos.
222
Raysla Raquel Dias Guilherme & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Em segundo lugar, o artigo 18 do CDC abrange as situações em que há
vício de qualidade no produto ou serviço, ou seja, quando há algum problema na
qualidade ou quantidade que torne o produto impróprio ou que haja disparidade
daquilo que foi ofertado versus o que foi recebido. Nestes casos, a
responsabilidade civil é destinada a todos os fornecedores do produto, que
respondem solidariamente pelos vícios encontrados.
Ademais, no que diz respeito ao artigo 931 do CC, verifica-se que a
responsabilidade é destinada aos empresários, que respondem pelos danos
causados pelos produtos postos em circulação, mas não se refere, de forma
específica, ao defeito do produto, este, por sua vez, disciplinado pelo CDC. O
artigo 927, por sua vez, preceitua que aquele que causar dano a outrem, fica
responsável por repará-lo. Esta obrigação de reparar os danos ocorre nos casos
previstos em lei ou quando a atividade desenvolvida pelo o autor gera dano.
Afunilando a questão, ao analisar especificamente a responsabilidade
em face do viés do preconceito, verificou-se a possibilidade de buscar amparo
na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que traz em seu escopo o princípio
da não discriminação, vedando o tratamento de dados para fins
discriminatórios. Por fim, em que pese a necessidade de buscar normas que
tratem de forma específica a questão, com o intuito de fornecer uma maior
segurança jurídica, observa-se, no direito pátrio, alternativas que possibilitam
responsabilização civil nos casos concretos de preconceitos decorrentes do uso
de IA. Assim, este arcabouço normativo se torna imprescindível tanto para a
comunidade acadêmica, que poderá disseminar o debate em trabalhos futuros,
tornando-o acessível, como também para os operadores do direito que aplicam
estes dispositivos, ventilando luz sobre os casos concretos.
REFERÊNCIAS
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da Inteligência artificial: seriam as leis de proteção de dados o seu portal
de entrada? In: FRAZÃO, Ana; MOLHOLLAND, Caitlin (org.). Inteligência
artificial e o direito: ética regulação e responsabilidade. São Paulo:
Thomson Reuters. Brasil, 2019, p.207-228, p.215.
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225
Revisão judicial de cláusulas contratuais: exame da
intervenção mínima vs. revisão judicial na jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN)
Filipe do Nascimento Barros Vilela *
Fábio Luiz de Oliveira Bezerra **
1 INTRODUÇÃO
O texto aborda o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade
da revisão contratual, que foram positivados no ordenamento jurídico brasileiro
pela Lei 13.874/2019, denominada de Lei de Liberdade Econômica (LLE).
Os contratos, como instrumentos jurídicos que disciplinam as relações
notadamente econômicas entre pessoas físicas e jurídicas são, notoriamente,
componentes importantes para atividade econômica na sociedade, uma vez que
as obrigações civis incorporam a vida comercial desde a concepção de
empresas modernas ainda no período contemporâneo. Assim, os contratos
estão intimamente conectados e incorporados às temáticas econômicas e
empresariais entre sujeitos do ramo mercatório.
Apesar da autonomia do ato contratual, o Poder Público, sobretudo com
o advento do Estado de bem-estar social (welfare state), passou a regular,
orientar e determinar o funcionamento das relações contratuais através da
intervenção estatal, abrangendo tanto a criação de legislação específica sobre a
matéria como também a intervenção judicial, pelos quais emergiram princípios
sociais (função social, boa-fé objetiva e equilíbrio contratual) aplicáveis às
obrigações nesse instrumento jurídico.
Nessa toada, os contratos no Brasil têm sido alvo diretamente de
revisões judiciais com o fito de equalizar o equilíbrio das prestações, sobretudo,
de relações jurídicas privadas alegadamente desproporcionais. E com o fito de
diminuir essa tendência, foi introduzido no Código Civil (CC) o princípio da
*
Graduando em Direito (UFRN), e-mail: [email protected].
**
Professor Adjunto (UFRN), Doutor em Direito, e-mail: [email protected].
226
Filipe do Nascimento Barros Vilela & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
intervenção mínima pela LLE com efeito de preservar as obrigações privadas
instituídas entre dois sujeitos comerciais e privados.
A LLE instituiu a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica” e
estabeleceu garantias de livre iniciativa e liberdade econômica, bem como
alterou o Código Civil, acrescentando alguns dispositivos, entre os quais o
parágrafo único do art. 421, segundo o qual “nas relações contratuais privadas,
prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão
contratual”. Acrescentou também o art. 421-A, cujo inciso III prescreve que “a
revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”.
Essa nova regulação buscou flexibilizar os princípios contratuais sociais
em favor dos princípios clássicos (pacta sunt servanda, autonomia privada e
relatividade subjetiva), trazendo um complicador para a relação entre essas duas
gerações de princípios contratuais, que já não era tão harmônica. Essa nova
baliza legal trazida em 2019 pode provocar mudanças pertinentes às
jurisprudências de tribunais do Brasil que agora têm o mandamento legal de
intervir apenas de forma excepcional nas relações jurídicas.
Diante dessa inovação legislativa e da expectativa quanto à nova
posição adotada pelo Poder Judiciário, emerge a seguinte pergunta de pesquisa:
como o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN) está aplicando o
princípio da intervenção mínima?
Diante disso, o objetivo geral é compreender o impacto da mudança
legislativa promovida pela LLE na revisão dos contratos, a partir da
jurisprudência do TJRN. Desdobrando o propósito acima, fixam-se os seguintes
objetivos específicos do trabalho: a) traçar uma evolução normativa acerca da
revisão judicial; b) abordar o princípio da intervenção mínima, delimitar seu
conteúdo jurídico, dimensionando o efeito sobre as relações civis e empresariais
não consumeristas; c) fazer análise empírica dos julgados do TJRN, para avaliar
a recepção e aplicação desse novel princípio.
A justificativa para esse estudo reside no fato de que, embora haja
muitos estudos teóricos sobre a revisão contratual, há poucos textos científicos
sobre a aplicação do princípio da intervenção mínima pelo Judiciário. Fazer um
panorama de como a Justiça Estadual do Rio Grande do Norte está entendendo
227
Revisão judicial de cláusulas contratuais: exame da (...)
sobre o princípio da intervenção mínima pode contribuir para uma maior
segurança jurídica nas relações negociais.
A pesquisa adota dois procedimentos metodológicos sucessivos. O
primeiro consiste em aplicação de método descritivo, exploratório e avaliativo,
com análise descritivo-interpretativa de documentos doutrinários e normativos.
O segundo diz respeito à análise empírica da aplicação do novo princípio pelo
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN) e pelas Turmas Recursais
dos Juizados Especiais, vinculadas ao TJRN.
A hipótese testada é a de que, em relação à atuação do TJRN, antes da
LLE, as hipóteses legais para revisão já eram mínimas, mas havia grande
número de revisão judicial nessas hipóteses legais, e, com a LLE, o princípio da
intervenção mínima teve maior impacto nas relações empresariais, não
alterando as relações civis, notadamente consumeristas.
Por fim, em termos de estruturação do trabalho, segue-se, após a
presente introdução (tópico 1), a abordagem sobre revisão judicial antes da LLE
(tópico 2); depois, trata-se da LLE e do princípio de intervenção mínima (tópico
3); na sequência, faz-se a análise empírica da atuação do TJRN, culminando
com as conclusões acerca da pesquisa (tópico 4).
2 EVOLUÇÃO NORMATIVA DA INTERVENÇÃO E REVISÃO JUDICIAL NOS
CONTRATOS
O Código Civil de 2002, no direito dos contratos, pretendeu conferir
segurança econômica para partes financeiramente desniveladas nas relações
contratuais, o que satisfazia as intenções à vista do Estado Social, que
participaria das relações jurídicas contratuais, as quais, séculos anteriores, se
depreendiam iguais, autônomas e independentes. Assim, o objetivo original
desse Código era salvaguardar as partes, por intermédio de um amplo escopo
legal para dirigir os contratos, que apenas seriam válidos caso seguissem os
ritos e as cláusulas previamente ordenadas na legislação.
A favor disso, Caio Mário da Silva Pereira 1 aponta situações em que a
existência de certos contratos, quando não elencados pela própria legislação,
eram configurados como delitos contra a economia popular. Além disso, o
1
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2022. v. III (contratos), p 22-26.
228
Filipe do Nascimento Barros Vilela & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
doutrinador também indica algumas situações sobressalentes em que a previsão
legal dos contratos era dirigida pelo favor do Estado, como na presença de
cláusula coercitiva ou na faculdade do juiz de intervir em contratos, sendo esta
última a modalidade do dirigismo contratual presente nos tempos atuais do
Brasil.
A intervenção judicial dos contratos foi ampliada com a Constituição
Federal de 1988, que prescreveu o princípio da função social nas relações
econômicas, de que resultou posteriormente a positivação no Código Civil de
2022 do princípio da função social do contrato (art. 421), na redação anterior à
Lei de Liberdade Econômica, a qual estabelecia que “a liberdade de contratar
será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. O princípio
da função social veio a balizar, inclusive, a situação pré-contratual
conjuntamente com o princípio da boa-fé objetiva, como aduz Caio Mário Pereira
da Silva 2.
Vale salientar que, ainda no projeto do Código Civil de 2002 (Anteprojeto
de 1972), havia um propósito ainda mais patente, pois mencionava que “a
liberdade de contratar somente pode ser exercida em razão e nos limites da
função social do contrato”. Acerca disso, preciosos são os comentários de Caio
Mário Pereira da Silva 3, alertando que a presença de tamanho dirigismo
contratual poderia vir a conflitar com a autonomia da vontade e os interesses
particulares das partes contratantes.
Posta a intenção elencada originalmente no art. 421, outro importante
condicionante reservado à intervenção nos negócios jurídicos foi o art. 113 do
Código Civil, segundo o qual “os negócios jurídicos devem ser interpretados
conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Assim, em razão de
ofensa ao princípio da função social ou ao princípio da boa-fé objetiva, o Poder
Judiciário está autorizado, havendo pedido neste sentido, a revisar o contrato,
para adequá-lo aos ditames de tais princípios sociais.
Revisar o contrato é sempre preferível à extinção do contrato. Isso
porque, na concepção da obrigação como um processo, em que as partes
2
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2022. v. III (contratos), p 21.
3
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reformulação da ordem jurídica e outros temas. Rio de
Janeiro: Forense, 1980, p. 7.
229
Revisão judicial de cláusulas contratuais: exame da (...)
celebrantes devem atuar de maneira colaborativa, buscando o adimplemento da
obrigação, deve-se buscar a composição entre os celebrantes acerca do ponto
que se está discutindo. Nesse sentido, apregoam Farias e Rosenvald 4 que o
princípio da função social e o princípio da boa-fé objetiva recepcionam o princípio
da solidariedade (art. 3º, I, da Constituição Federal), “prestigiando a inafastável
cooperação nas relações privadas para que o contrato possa alcançar a
finalidade para a qual foi desenhado, e não simplesmente resolvido”.
A exigência de se tentar a revisão do contato decorre “do princípio da
conservação contratual, que é anexo à função social dos contratos”, como
aponta Flávio Tartuce 5. E somente quando esgotados todos os meios possíveis
de revisão do contrato é que se recorre à extinção do contrato, sendo esta,
portanto, a ultima ratio, em termos de finalização do contrato.
A revisão judicial do contrato também é realizada para concretizar outro
relevante princípio social, qual seja, o princípio do equilíbrio contratual 6. Por este
princípio, deve haver um equilíbrio real de direitos e deveres dos celebrantes,
não apenas na celebração, como em toda a execução do contrato.
O Código Civil, em seu art. 317, determina a revisão judicial da prestação
estabelecida no contrato, quando, “por motivos imprevisíveis, sobrevier
desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de
sua execução”. Nessa situação, o juiz, a pedido da parte, o valor da prestação,
de modo que assegure o valor real da prestação. Cuida-se de adoção da teoria
da imprevisão.
Em outro dispositivo, qual seja, o art. 478, o Código Civil acolheu a teoria
da onerosidade excessiva. Segundo referido dispositivo legal, nos contratos de
execução continuada ou diferida, o devedor poderá pedir a resolução do
contrato, “se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa,
com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos
extraordinários e imprevisíveis”. Ao contrário da teoria da imprevisão, que
apenas exige a imprevisibilidade do evento e a desproporção das prestações, a
4
FARIAS, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos. 7. ed. Salvador:
Juspodivm, 2017, v. 4, p. 618.
5
TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 16. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2021, v. 3, p. 224.
6
SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar. 2 ed. São Paulo:
Editora Saraiva Educação, 2020, p. 72.
230
Filipe do Nascimento Barros Vilela & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
teoria da onerosidade excessiva demanda fatos extraordinários que provoquem
uma grave desproporção, excessiva onerosidade para uma parte, e extrema
vantagem para a outra.
Neste prisma, cabe referir ao Enunciado 367 do Conselho de Justiça
Federal, segundo o qual, “em observância ao princípio da conservação do
contrato”, em ações acerca da resolução por onerosidade excessiva, “pode o juiz
modificá-lo equitativamente, desde que ouvida a parte autora, respeitada sua
vontade e observado o contraditório”.
Além dessas duas modalidades de revisão judicial, com esteio no
CC/2002, cabe mencionar que o Código de Defesa do Consumidor (CDC)
acolheu a teoria da base objetiva do contrato, aplicável às relações de consumo,
pelo que sequer é necessário que o fato seja imprevisível, bastando a
comprovação da desproporção das prestações assumidas (art. 6º, inciso V, do
CDC).
Grande parte da doutrina brasileira compreende que o Brasil resguarda
posição ao equilíbrio contratual, e daí a derivação em intervenções ao objeto
contratual como ainda muito incipientes. Argumenta-se, principalmente, que
tanto pela irrelevância da intervenção contratual que pouco altera o montante
resultado do prejuízo do desequilíbrio como também pela conservação
contratual inerente às condições do contexto da relação obrigacional não existe
um cenário de grande intervenção na seara judiciária 7.
Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ, pode-se
constatar duas posições sobre a amplitude da revisão judicial dos contratos. De
um lado, há diversos julgados do STJ que compreendem que a revisão judicial
de contratos empresariais não pode ser alargada. Em especial, tem-se o acórdão
da 4ª Turma, proferido no REsp 936.741/GO, de relatoria do Min. Antônio Carlos
Ferreira (julgado em 03/11/2011, DJe 08/03/2012), em que o STJ assentou que
os “contratos empresariais não devem ser tratados da mesma forma que
contratos cíveis em geral ou contratos de consumo”, e que, em vez do “dirigismo
contratual”, devem prevalecer “os princípios da autonomia da vontade e da força
obrigatória das avenças”.
7
SILVA, R. da G. Equilíbrio e vulnerabilidade nos contratos: marchas e contramarchas do
dirigismo contratual. civilistica.com, v. 9, n. 3, p. 1-35, 25 dez. 2020, p. 15.
231
Revisão judicial de cláusulas contratuais: exame da (...)
Por outro lado, há diversos julgados do STJ (como, por exemplo, o REsp
1.195.642/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª T., DJe 21-11-2012), que têm
alargado o conceito de consumidor, de maneira a aplicar os princípios
consumeristas nas causas envolvendo empresários, em que a pessoa jurídica
não consome o bem ou serviço. E como vimos, a revisão judicial pelo CDC é
muito mais abrangente que a revisão judicial do CC.
Pela corrente maximalista, consumidor é o destinatário final do produto
ou serviço, que corresponde àquele que os retira do mercado de consumo
(destinatário fático), não necessariamente consumindo-os, podendo, pois,
reintroduzir na cadeia produtiva. Para a corrente finalista, consumidor é o
destinatário final e econômico do produto ou serviço, como sendo aquele que
consume efetivamente o produto ou serviço. Nessa disputa entre duas correntes,
o STJ adotou postura intermediária, denominada de corrente finalista atenuada,
mitigada ou aprofundada. O STJ toma por base o conceito de consumidor por
equiparação previsto no art. 29 do CDC, incluindo um fator que não está
expresso no conceito de consumidor (art. 2º do CDC), qual seja, a
vulnerabilidade da pessoa jurídica consumidora. Essa corrente tem sido muito
aplicada nas relações negociais envolvendo microempresas, empresas de
pequeno porte e profissionais liberais ou autônomos.
Na esteira dessa evolução jurisprudencial ampliativa da revisão dos
contratos civis paritários, adveio a LLE, com o propósito expresso de reduzir essa
intervenção judicial, cujo impacto será estudado no tópico abaixo.
3 LEI DE LIBERDADE ECONÔMICA E O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO
MÍNIMA
Em 2019, houve uma inovação legislativa no CC/2002, com o expresso
objetivo de sinalizar preservação das cláusulas contratuais, que agora não
poderiam ser afastadas de maneira larga, como vinha ocorrendo sob a égide do
dirigismo contratual. O que o governo almejava, quando editou a medida
provisória, depois convertida na LLE, era desafogar das rédeas estatais a
preferência de agir e intervir nos contratos. A intenção tanto do manifesto que
antecedeu a LLE como também dos princípios conectados a nova redação era
de conseguir estabelecer critérios legais para consecução da “intervenção
mínima”.
232
Filipe do Nascimento Barros Vilela & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
A LLE institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e
estabeleceu garantias de livre iniciativa. Conforme art. 3º, inc. VIII, da LLE, um
dos direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o
desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, corresponde a “ter a
garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de
livre estipulação das partes pactuantes”, de maneira a que sejam aplicadas
“todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao
avençado, exceto normas de ordem pública”.
Notoriamente, instituiu-se matéria de preocupação do governo à época, o
emolumento de uma maior liberdade e amplitude contratual, subsistindo apenas
as normas de ordem pública, que deveriam interagir com os contratos.
Depreende-se que o objetivo era alcançar uma referida segurança jurídica
contratual que servisse de arcabouço para evitar ações judiciais em revisão de
contratos e, caso chegasse a ser objeto de revisão, que fosse excepcional e
mínimo, como está disposta nas alterações no Código Civil.
Em matéria de contratos, a LLE trouxe mudanças significativas para a
composição de intervenção, interpretação, ação e limites para atuação de
tribunais nos negócios jurídicos empresariais e civis. Primeiramente, a instituir
elementos de interpretação dos negócios jurídicos, previsto na criação dos
parágrafos 1º e 2º do art. 113 do Código Civil.
Os pontos trazidos com a nova adição ao art. 113, principalmente na
produção do parágrafo primeiro visam, notoriamente, trazer conceitos
interpretativos que modificam a hermenêutica consolidada da antiga redação do
artigo para uma análise ainda mais criteriosa e taxativa acerca da apreciação do
magistrado ao caso concreto. No entanto, cabe aludir que parte da doutrina já
havia preconizado que os acréscimos trazidos nesse artigo já poderiam ser
deduzidos de princípios gerais da teoria dos contratos, por serem princípios e
brocardos já presentes na esteira da consecução dos contratos.
Então, a principal inovação trazida na LLE em termos contratuais é a
adição do parágrafo único do art. 421 e a adição do art. 421-A, que trazem novas
redações substanciais acerca de interpretação e revisão de contratos, que
orbitam agora pelas palavras “intervenção mínima” e “excepcionalidade da
233
Revisão judicial de cláusulas contratuais: exame da (...)
revisão contratual”. No conceito reunido pela nova lei, há a consideração da
classe contratual de “contratos civis e empresariais” como paritários e simétricos.
Doutrinadores, como, por exemplo, Anderson Schreiber 8, consideram
que o princípio constituído no parágrafo único do artigo 421 e no art. 421-A não
figuram elementos suficientes para aplicar o que era pretendido: a menor
intervenção contratual dos magistrados. Nessa linha, Flávio Tartuce 9 apregoa
que o princípio da intervenção mínima continua “sendo mais um argumento
retórico e ideológico do que um princípio contratual com efetividade”.
Outro ponto oriundo da nova redação que merece destaque é o quesito
de paridade e simetria. Nessa questão, o Enunciado 21 da I Jornada de Direito
Comercial, realizada pelo Conselho de Justiça Federal, dispõe que “nos
contratos empresariais, o dirigismo contratual deve ser mitigado, tendo em vista
a simetria natural das relações interempresariais”.
Em busca de uma menor incidência das revisões judiciais em ações de
resolução contratual ou de revisão judicial, o parágrafo único do art. 421 trouxe
a determinação de que, “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o
princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”. A
volição do legislador era clara e uníssona: a) os contratos devem ser alterados
o mínimo possível; b) a frequência da revisão deve ser o mais excepcional
possível.
A principal crítica doutrinária é a falta de critérios utilizados pelos
tribunais para identificar a medida de excepcionalidade para a revisão, sendo
essa uma patente lacuna deixada pela Lei de Liberdade Econômica para auxiliar
o trabalho jurisdicional dos magistrados quando provocados por ações
revisionais. A atual escrita do parágrafo único do art. 421 e a do art. 421-A não
elencam parâmetros, ainda que esparsos, para definir a excepcionalidade
rezada pela “intervenção mínima do Estado”.
8
SCHREIBER, Anderson. Princípios constitucionais versus liberdade econômica: a falsa
encruzilhada do Direito Contratual brasileiro. Migalhas. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/332664/principios-constitucionais-
versus-liberdade-economica--a-falsa-encruzilhada-do-direito-contratual-brasileiro. Acesso em:
12 de novembro de 2023.
9
TARTUCE, Flávio. A “Lei da Liberdade Econômica” (Lei n. 13.874/2019) e as principais
mudanças no âmbito do direito contratual. Revista Jurídica Luso-Brasileira. Lisboa, a. 6, n.
1, p. 1005-1020, 2020.
234
Filipe do Nascimento Barros Vilela & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Justamente em face dessa ausência legal, a análise empírica das
jurisprudências torna-se relevante, na medida que busca enxergar a dimensão
do impacto da nova lei em ações revisionais com fulcro no art. 421 e no art. 421-
A, e de como essa ausência pode constituir problema para resolução de litígios
nas varas e comarcas cíveis do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte.
4 ANÁLISE EMPÍRICA DA JURISPRUDÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL DO
RIO GRANDE DO NORTE
Serviram para análise os julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Norte (TJRN) e da Turma Recursal dos Juizados Especiais, vinculada ao
TJRN, que apreciaram contratos que ensejam a estipulação da LLE, quais
sejam, os contratos empresariais e civis que não se qualificavam como contratos
consumeristas, pela distinção legal e jurisprudencial pátria. Eis o recorte
espacial.
Além dos contratos de consumo, foram desconsiderados os contratos de
adesão e aqueles que tendem ao protagonismo unilateral, tal como o contrato
de doação, por não interessarem ao disposto no caput do art. 421-A do Código
Civil. Por último, os contratos de adesão a planos de saúde, talvez os contratos
que mais ensejem controvérsia no TJRN também foram desconsiderados pela
sua natureza contratual muito se assemelhar aos contratos padrões de adesão
de serviços, tendo uma natureza consumerista amplamente assegurada tanto
pela jurisprudência pátria como também pela doutrina majoritária.
Realizou-se a consulta jurisprudencial ao sítio eletrônico do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Norte, com recorte temporal no período compreendido
entre 20 de setembro de 2014 (cinco anos antes da LLE) e 30 de maio de 2023
(fim do mês que antecedeu ao Congresso Internacional).
No repositório jurisprudencial do TJRN
(https://jurisprudencia.tjrn.jus.br.), selecionou-se a aba “Segundo Grau”, utilizou-
se o filtro “colegiadas” para a opção quanto às “decisões” (que abrangem os
acórdãos proferidos em recurso de apelação, agravo de instrumento e recurso
inominado civil), assim como o filtro de “todas” para as “jurisdições”
(compreendendo os acórdãos do TJRN e das Turmas Recursais).
235
Revisão judicial de cláusulas contratuais: exame da (...)
Para o período posterior à LLE, foram utilizadas as seguintes palavras-
chave: “intervenção mínima”; “art. 421-A”; “art. 421, parágrafo único”; “Lei de
Liberdade Econômica”. Foram identificados 132 julgados. Retirando as
duplicações que foram verificadas, resultaram 120 julgados distintos. Deste total,
97 julgados apreciaram contratos de consumo, os quais foram excluídos da
análise, conforme acima fundamentado.
Tais dados demonstram que, em sede de intervenção dos contratos, a
Justiça Estadual no Rio Grande do Norte, em segundo grau de jurisdição, atua
em maior escala nos contratos consumeristas, dos quais prevalecem
intervenções em contratos típicos de consumo (prestação de serviço ou compra
e venda) ou de contratos-adesão da área médica.
Após as referidas exclusões, restaram apenas 23 acórdãos, sendo 19
deles do TJRN 10 e 4 (quatro) das Turmas Recursais. 11, os quais efetivamente
analisaram contratos civis e empresariais que não se caracterizavam como
relação de consumo. Tratavam de contratos de locação empresarial, prestação
de serviços, compra e venda de imóvel em operação empresarial, parceria,
compromisso e venda, incorporação imobiliária, fornecimento de combustíveis e
demais obrigações próprias da atividade empresarial.
Revelou-se que a atividade empresarial contratual no Estado do Rio
Grande do Norte pouco realiza ajuizamentos de intervenções judiciais que
tenham a natureza de ou manter o vínculo contratual ou tão somente ajustar as
cláusulas nelas inscritas. Há, então, uma preferência por ações resolutórias
contratuais que muito se baseiam em aspectos de inadimplência. Coleciona-se,
por então, que a regular opção do empresariado potiguar é pela resolução
contratual e a consequente extinção da obrigação comercial do que a
manutenção dos termos contratuais.
10
Os acórdãos selecionados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte em agravo de
instrumento foram os seguintes: 0803049-81.2023.8.20.0000, 0808810-30.2022.8.20.0000,
0811815-94.2021.8.20.0000 e 0801468-31.2023.8.20.0000. E em apelação, foram: 0036745-
32.2009.8.20.0001, 0032622-88.2009.8.20.0001, 0877458-65.2020.8.20.5001, 0809855-
72.2020.8.20.5001, 0841236-98.2020.8.20.5001, 0839383-20.2021.8.20.5001, 0803047-
11.2021.8.20.5100, 0809855-72.2020.8.20.5001, 0849644-49.2018.8.20.5001, 0806320-
57.2020.8.20.5124, 0813032-73.2022.8.20.5001, 0814174-49.2021.8.20.5001, 0873268-
59.2020.8.20.5001.
11
Os acórdãos selecionados das Turmas Recursais foram 0801671-18.2022.8.20.5144,
0813559-84.2020.8.20.5004, 0821859-54.2019.8.20.5106, 0810445-40.2020.8.20.5004,
0817082-41.2019.8.20.5004 e 0817056-43.2019.8.20.5004.
236
Filipe do Nascimento Barros Vilela & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Para o período posterior à LLE, a maior parte dos acórdãos (catorze
deles) realizou fundamentação específica baseada na LLE, em vez de uma mera
citação da lei. Alguns citaram expressamente os princípios contidos na LLE, tal
como a “intervenção mínima”. Ressalta-se que os magistrados optaram por
explicar a adequação da nova lei ao caso concreto, ainda que objetivasse intervir
ou provocar mudanças na relação obrigacional.
Para o período anterior à LLE, as palavras-chave adotadas foram: “art.
421”; “revisão”; “ação revisional”; “imprevisão”; "função social do contrato".
Foram encontrados 54 acórdãos, dos quais apenas 19 versavam efetivamente
sobre matéria contratual. Em todos esses, a fundamentação do acórdão girou
em torno da função social do contrato.
Para esse período, o ânimo interventor restava mais acentuado, em que
pese os poucos ajuizamentos, sempre motivadas por questões fundamentadas
em “desequilíbrio contratual” ou “função social do contrato” que fortaleciam a
tendência de revisão judicial consoante ao dirigismo contratual existente. O
ímpeto interventor resta consignado quase como certo em casos contratos de
adesão à planos de saúde, contratos bancários ou de seguro que apesar de não
serem o foco próprio da lei, resultam na maioria das objeções judiciárias ao
instrumento contratual pactuado.
A partir da LLE, pode-se inferir que a existência das ações revisionais de
contrato aumentou, e a tendência da corte estadual foi na maior conservação e
manutenção dos contratos existentes, o que categoricamente tem a ver
diretamente com a nova impressão do dirigismo contratual realizado pela nova
lei.
5 CONCLUSÃO
Tendo sob cotejo o dirigismo contratual presente no Brasil, por força da
inteligência dos artigos do Código Civil que resultavam na intervenção contratual
por força principiológica da boa-fé contratual e da função social do contrato,
restou a se analisar o impacto da nova redação trazida ao Código Civil pela LLE.
Assim, levando em consideração a hipótese de que a LLE, de algum grau,
provocou mudanças nas revisões judiciais dos contratos sob o prenúncio da
intervenção mínima ou, ainda, da nova redação dos dispositivos trazidos na LLE,
237
Revisão judicial de cláusulas contratuais: exame da (...)
optou-se por investigar a incidência prática das mudanças trazidas em sede
ajuizamento de ações que tinham como objetivo resolver ou intervir no contrato
de modo que provocasse maior equilíbrio contratual.
A partir de uma análise empírica dos julgados do TJRN e das Turmas
Recursais, restou demonstrado que a LLE provocou alterações no formato em
que o magistrado fundamenta a revisão ou a manutenção contratual. Ela serviu
para fundamentar manutenções contratuais em contratos empresariais como
bem era o objetivo do redator da lei. Na maioria dos casos, em que houve citação
da LLE, dos arts. 421 e 421-A, teve uma maior conservação das relações
contratuais sempre que possíveis, independentemente do cenário de relação de
consumo ou de obrigações realizadas em escopo tipicamente empresarial.
Constatou-se também que o empresariado potiguar não se utiliza da
ação revisional judicial com tanto empenho, ainda que anterior a LLE, mas que,
no cenário observado, houve um aumento de decisões que referendavam a
revisão do contrato em sua integral manutenção. A partir disso, é possível
concluir que o TJRN passou a apoiar mais ações na integralidade da
manutenção do contrato empresarial, ainda que o autor da ação não tivesse essa
intenção, preferindo uma resolução.
Percebeu-se que a doutrina, ao inferir que não era interessante o
controle jurisdicional de pequena monta, esteve correta, pois a maioria das
mudanças contratuais ocorreu em grande parte pela intenção de resolver um
contrato com via a conseguir o seu adimplemento e que as cláusulas observadas
em revisão não tratavam muito da natureza do serviço ou dos deveres
contratuais, mas sim na abusividade de juros, parcelas, no atraso de pagamento,
ou na falha de performance do serviço.
Desse modo, confirmou-se parcialmente a hipótese de pesquisa no
sentido de que, antes da LLE, nas hipóteses legais para revisão já era mínima,
mas que ocorria um grande número de revisão judicial nessas hipóteses legais,
e, com a LLE, o princípio da intervenção mínima teve maior impacto nas relações
empresariais.
O que não se confirmou da hipótese inicial foi a circunstância de que não
haveria impacto da LLE nas relações civis consumeristas. E como visto, a LLE
foi utilizada para fundamentar acórdãos de contratos típicos das relações de
consumo, em que se optou, por vezes, na manutenção contratual, e em outras
238
Filipe do Nascimento Barros Vilela & Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
vezes, servindo para traçar um paralelo de modo que legitimasse a revisão
judicial sob o prenúncio de excepcionalidade.
Por fim, é sugerível que um exame mais robusto de jurisprudências ao
redor do Brasil, a partir de uma análise econômica do direito, consigam extrair
se o objetivo do legislador em garantir paridade contratual empresarial e o
avanço da liberdade contratual provocou cenário de desenvolvimento do Brasil,
e como se comportou os principais tribunais, dentre eles o Superior Tribunal de
Justiça, nessa matéria.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). REsp 936.741/GO, 4ª Turma,
relator Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 03/11/2011, DJe
08/03/2012.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil:
contratos. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2017, v. 4.
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 25. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2022. v. III (contratos).
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Reformulação da ordem jurídica e outros
temas. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
SCHREIBER, Anderson. Princípios constitucionais versus liberdade econômica:
a falsa encruzilhada do Direito Contratual brasileiro. Migalhas. 2020.
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-
contratuais/332664/principios-constitucionais-versus-liberdade-
economica--a-falsa-encruzilhada-do-direito-contratual-brasileiro. Acesso
em: 12 de novembro de 2023.
SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar. 2 ed.
São Paulo: Editora Saraiva Educação, 2020.
SILVA, R. da G. Equilíbrio e vulnerabilidade nos contratos: marchas e
contramarchas do dirigismo contratual. civilistica.com, v. 9, n. 3, p. 1-35,
25 dez. 2020.
TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em
espécie. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, v. 3.
TARTUCE, Flávio. A “Lei da Liberdade Econômica” (Lei n. 13.874/2019) e as
principais mudanças no âmbito do direito contratual. Revista Jurídica
Luso-Brasileira. Lisboa, a. 6, n. 1, p. 1005-1020, 2020.
239
Fake news e propaganda eleitoral nas eleições de 2022: o
entendimento do TSE
Felipe Medeiros Mariz 1
Rodrigo Vieira Costa 2
INTRODUÇÃO
As notícias falsas não são novidade no mundo nem na política. O
fenômeno das chamadas fake news tomou, no entanto, proporções
imensuráveis com a ascensão da internet e das redes sociais. O discurso
difamatório também não foi inventado recentemente, nem utilizado na política
somente por causa das redes sociais. Tanto lá quanto cá houve, portanto, uma
massificação desses discursos que fizeram com que novas realidades fossem
traçadas e eleições fossem decididas por causa delas.
Atento para essa forma de disseminar ódio, o Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) editou a Resolução n.º 23.610/2019. O principal objetivo dessa normativa
foi traçar parâmetros do que é ou não permitido na publicidade eleitoral –
tecnicamente chamada de propaganda – e identificar os limites da liberdade de
expressão dos candidatos no contexto eleitoral. Seu caráter precursor inova,
mas também traz consigo certos defeitos que deixam ampla margem para
interpretação do magistrado no caso concreto. Em razão disso, o objetivo deste
trabalho é tentar identificar se há alguma uniformização no entendimento do
TSE do que é fake news.
Como metodologia, escolheu-se pesquisar através da barra de pesquisa
do próprio site do tribunal pelos termos “fake news”, “desinformação”, “notícia
falsa” e “notícias falsas”, selecionando apenas os acórdãos proferidos entre o
período de 1º de janeiro de 2022 e 31 de dezembro de 2022 que continham
1Mestrando em Direito pela UFERSA. Membro do grupo de pesquisa DiGiCULT/UFERSA –
Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais.
2Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado) da Universidade
Federal Rural do Semi-Árido (PPGD/UFERSA) e da Graduação em Direito da mesma
Universidade. Investigador Visitante com Estágio Pós-Doutoral no Centro de Estudos Sociais
(CES) na Universidade de Coimbra (2020-2021). Doutor em Direito pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza
(UNIFOR) e Graduado pela mesma instituição. Pesquisador-Líder do DiGiCULT/UFERSA –
Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais.
240
Felipe Medeiros Mariz & Rodrigo Vieira Costa
algum desses termos. Tal recorte é necessário para que se possa analisar
apenas o pleito de 2022. O resultado da pesquisa foram 7 acórdãos que
utilizavam o termo “fake news”; 56 acórdãos utilizando a expressão
“desinformação”; 1 com o termo “notícia falsa” e 2 contendo “notícias falsas” no
seu corpo. Totalizaram, portanto, 66 acórdãos analisados com os parâmetros
descritos anteriormente.
Há, no entanto, uma ressalva a ser feito no que diz respeito a essa
metodologia: conforme Veçoso et al.3 as bases de dados de pesquisas
jurisprudenciais do TSE possuem problemas no que diz respeito à devolução
das pesquisas realizadas. Isso implica que a quantidade de acórdãos pode não
corresponder ao número total de decisões terminativas na corte eleitoral. Uma
possível solução seria a utilização dos dados abertos, porém, neles também
verificou-se diversas duplicidades que, obviamente, não correspondem à
realidade – tendo em vista que um processo só pode ter apenas um acórdão.
Após o levantamento desses 66 acórdãos, analisou-se a ementa das
decisões para tentar entender o que o TSE compreende por fake news e se o
tribunal associa de alguma forma a expressão com o fenômeno da
desinformação. Também analisou-se as multas impostas, porém, nesse caso
não foi possível traçar uma lógica que justificasse o arbitramento de cada multa
aplicada quando havia condenação.
O artigo é dividido em duas partes, sendo a primeira tratando de alguns
aspectos históricos recentes e a conceituação de algumas terminologias
utilizadas no decorrer do texto. Na segunda parte faz-se a análise dos
acórdãos apresentando, se há unicidade de entendimento do que seja “fake
news” e se elas são a mesma coisa que “desinformação”, ao menos para o
Tribunal Superior Eleitoral. Por fim, na conclusão, apresenta-se as
considerações finais do trabalho com uma ponderação acerca do que foi
descoberto na pesquisa.
3VEÇOSO, Fábia Fernandes Carvalho et al. A Pesquisa em Direito e as Bases Eletrônicas de
Julgados dos Tribunais: matrizes de análise e aplicação no Supremo Tribunal Federal e no
Superior Tribunal de Justiça. Revista de Estudos Empíricos em Direito, [S. l.], v. 1, n. 1, p.
105–139, 2014. Disponível em: https://reedrevista.org/reed/article/view/10. Acesso em: 20 dez.
2023.
241
Fake news e propaganda eleitoral nas eleições de 2022: (...)
1 O REINADO DAS FAKE NEWS NOS PROCESSOS ELEITORAIS
A utilização das fake news como importante ferramenta para vencer uma
eleição se deu principalmente com as redes sociais e a forma como elas
favorecem esse tipo de conteúdo. O pagamento para impulsionar determinados
conteúdos desinformativos e a compra de robôs para disparar mensagens em
massa são características preponderantes desse processo no caso brasileiro 4.
Antes de entrar nas eleições presidenciais de 2018 e 2022, é necessário
conceituar essas duas figuras, tanto “fake news” quanto “desinformação”
precisam ter seus significados apresentados para melhor compreensão deste
trabalho.
A desinformação, conforme Brisola e Bezerra 5 não é uma mentira pura e
simples, na verdade a desinformação pode nem ser uma mentira
Não se trata de uma simples ação, e sim de um complexo de ações
que constroem um cenário intencionalmente determinado.
Desinformação envolve informação descontextualizada, fragmentada,
manipulada, retirada de sua historicidade, tendenciosa, que apaga a
realidade, distorce, subtrai, rotula ou confunde.
É, portanto, um conceito muito mais aberto do que fake news, que é,
simplesmente, uma notícia falsa, muito presente nos meios de comunicação
tradicionais como jornais, rádio e TV. Seu caráter mais amplo explica, por
exemplo, o motivo pelo qual encontramos muito mais acórdãos citando a
expressão “desinformação” do que “fake news” ou “notícias falsas” que é sua a
tradução direta. Descobriu-se que a desinformação pode ser lucrativa, e esse
sentido econômico torna o combate a essa prática mais difícil 6.
Nessa esteira, também é preciso diferenciar o conceito de desinformação
com os de informação falsa e informação maliciosa. O relatório sobre
4SPAREMBERGER, Raquel; SILVA, Ana Carolina Eid Soares da. O IMPACTO DAS FAKE
NEWS NO PROCESSO ELEITORAL BRASILEIRO. Revista Reflexão e Crítica do Direito,
Ribeirão Preto, [S. l.], v. 9, n. 2, p. 251–277, 2021. Disponível em:
https://revistas.unaerp.br/rcd/article/view/2438. Acesso em: 11 maio 2023.
5BRISOLA, Anna; BEZERRA, Arthur Coelho. DESINFORMAÇÃO E CIRCULAÇÃO DE “FAKE
NEWS”: DISTINÇÕES, DIAGNÓSTICO E REAÇÃO. In: XIX ENCONTRO NACIONAL DE
PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO (XIX ENANCIB), 2018, Londrina. XIX
ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO (XIX ENANCIB).
Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2018. Disponível em:
http://enancib.marilia.unesp.br/index.php/XIX_ENANCIB/xixenancib/paper/view/1219. Acesso
em: 21 dez. 2023, p. 3319.
6LACERDA, Elisa; REBOUÇAS, Edgard. A DESINFORMAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE
COMUNICAÇÃO POLÍTICA. In: 7o SEMINÁRIO DE COMUNICAÇÃO E
TERRITORIALIDADES, 7., 2021, [S.l.]. Anais do Seminário Comunicação e
Territorialidades. [S.l.]: Universidade Federal do Espírito Santo, 2021. p. 1–7. Disponível em:
https://periodicos.ufes.br/poscom/article/view/37820. Acesso em: 11 maio 2023.
242
Felipe Medeiros Mariz & Rodrigo Vieira Costa
desordem informacional elaborado a pedido do Conselho da Europa traz que,
ao passo que a desinformação é quando uma informação falsa é disseminada
de forma deliberada, com a intenção de causar danos, a informação falsa
(também chamada de mis-information) não tem a intenção de causar dano. Por
outro lado a informação maliciosa (mal-information) é quando uma informação
real é disseminada visando causar danos 7, é o caso, por exemplo, de
traduções de postagens nas plataformas sociais que, por causa de sua
imprecisão, acabam se tornando racistas 8.
O relatório descarta o uso da expressão “fake news” por considerar uma
atecnia que está coberta completamente pelos conceitos de desinformação,
informação falsa e informação maliciosa 9. Posteriormente, ao analisarmos os
dados coletados fica evidente que o TSE confunde os conceitos de fake news e
desinformação em alguns acórdãos, o que não causa prejuízo para a pesquisa,
mas compromete a fundamentação da própria decisão.
As notícias falsas foram amplamente utilizadas no processo eleitoral
brasileiro de 2018 10 e em 2022 a fórmula se repetiu 11. Os 4 anos que distam
um processo eleitoral do outro serviu para que os disseminadores de
informações falsas pudessem refinar seus métodos e agir com muito mais
eficiência, ódio e coordenação. A eleição de 2018 ficou marcada pelo uso de
mensagens disparadas no aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp. A
empresa de mensageria instantânea correu para fazer atualizações que
7WARDLE, Claire; DERAKHSAN, Hossein. Desordem informacional: para um quadro
interdisciplinar de investigação e elaboração de políticas públicas. [S. l.]: Conselho da
Europa, 2018. Disponível em: https://edoc.coe.int/en/media/11609-desordem-informacional-
para-um-quadro-interdisciplinar-de-investigacao-e-elaboracao-de-politicas-publicas.html.
Acesso em: 21 dez. 2023.
8
SILVA, Tarcízio (org.). Racismo e sexismo em bancos de imagens digitais: análise de
resultados de busca e atribuição de relevância na dimensão financeira/profissional. In:
Comunidades, Algoritmos e Ativismos Digitais: olhares afrodiaspóricos. São Paulo:
Literarua, 2020.
9WARDLE, Claire; DERAKHSAN, Hossein. Desordem informacional: para um quadro
interdisciplinar de investigação e elaboração de políticas públicas. [S. l.]: Conselho da
Europa, 2018. Disponível em: https://edoc.coe.int/en/media/11609-desordem-informacional-
para-um-quadro-interdisciplinar-de-investigacao-e-elaboracao-de-politicas-publicas.html.
Acesso em: 21 dez. 2023, p. 6.
10BARRAGÁN, Almudena. Cinco ‘fake news’ que beneficiaram a candidatura de Bolsonaro |
Noticias | EL PAÍS Brasil. El País, Madri, 19 out. 2018. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/actualidad/1539847547_146583.html. Acesso em: 21
dez. 2023.
11FALCÃO, Márcio; VIVAS, Fernanda. TSE recebe mais de 500 alertas diários de fake news no
segundo turno das eleições. G1, Brasília, 20 out. 2022. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/noticia/2022/10/20/tse-recebe-mais-de-500-alertas-
diarios-de-fake-news-no-segundo-turno-das-eleicoes.ghtml. Acesso em: 21 dez. 2023.
243
Fake news e propaganda eleitoral nas eleições de 2022: (...)
dificultassem o espalhamento de desinformação 12, fazendo com que essas
redes de desinformação migrassem para o aplicativo Telegram, que possui
regras muito mais flexíveis e foi o principal motor desinformativo das eleições
de 2022 13.
Ambas as campanhas contaram com elementos de ódio e promoveram a
radicalização de diversos setores da sociedade brasileira. O aparelhamento de
mídias sociais como canais oficiais de governo na gestão Jair Bolsonaro foi
uma estratégia que tinha como objetivo minar a credibilidade dos veículos
tradicionais de imprensa 14 e levar os apoiadores de Bolsonaro a criar uma
relação semelhante às seitas, na qual o presidente seria a única fonte confiável
de notícias.
Essa influência das redes sociais, como Facebook e Twitter e dos
aplicativos de mensageria instantânea, principalmente WhatsApp e Telegram
nas campanhas eleitorais é alvo de estudo de diversos pesquisadores sociais.
Na Índia, a influência daquele aplicativo foi investigado pelo pesquisador
Gowhar Farooq que fez um levantamento de como as fake news influenciaram
no processo de escolha presidencial naquele país 15. Seguindo essa linha de
investigação, há alguns estudos no Brasil que tentam mensurar a influência dos
aplicativos de mensagem instantânea no momento de decisão
política 16.Merece um destaque especial o estudo realizado por Bentes 17, por
conseguir realizar um estudo bem mais profícuo entre as formas com as quais
12Cita-se as atualizações que limitam o encaminhamento da mesma mensagem, marcando
ainda o conteúdo compartilhado como encaminhado diversas vezes e a limitação no número de
membros dos grupos no aplicativo que ficou restrito (Diário de Pernambuco, 2019).
13OLIVEIRA, Bárbara. O que está por trás da migração de usuários do WhatsApp para o
Telegram. A Gazeta, Vitória, 15 jan. 2021. Disponível em:
https://www.agazeta.com.br/es/cotidiano/o-que-esta-por-tras-da-migracao-de-usuarios-do-
whatsapp-para-o-telegram-0121. Acesso em: 21 dez. 2023.
14FERNANDES, Talita; URIBE, Gustavo. Bolsonaro esvazia canais oficiais de comunicação e
assume função de porta-voz. Folha de S.Paulo, São Paulo, 16 dez. 2019. Poder. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/12/bolsonaro-esvazia-canais-oficiais-de-
comunicacao-e-assume-funcao-de-porta-voz.shtml. Acesso em: 21 dez. 2023.
15FAROOQ, Gowhar. Politics of Fake News: How WhatsApp Became a Potent Propaganda
Tool in India. Media Watch, Vrindavan, [S. l.], v. 9, n. 1, p. 106–117, 2018. Disponível em:
https://www.mediawatchjournal.in/politics-of-fake-news-how-whatsapp-became-a-potent-
propaganda-tool-in-india/. Acesso em: 13 set. 2023.
16Alguns dos mais influentes são de Ratier (2020), Ruediger et al. (2017), bem como dos
pesquisadores Rodrigo Karolczak, João Pedro Salvador e Luiz Fernando Galati (2020),
encomendado pela Fundação Getúlio Vargas como forma de Relatório Técnico das eleições de
2018.
17BENTES, Anna. Eleições, direitos digitais e desinformação. [S.l.]: Derechos Digitales,
2023. Disponível em: https://www.derechosdigitales.org/wp-content/uploads/DD-Desinfo-2023-
PT.pdf. Acesso em: 26 dez. 2023.
244
Felipe Medeiros Mariz & Rodrigo Vieira Costa
a desinformação transitou tanto na eleição de 2018 e quais as evoluções
percebidas para o pleito de 2022.
Mensurar a influência das notícias falsas numa eleição é impossível do
ponto de vista objetivo 18. Isso se deve ao fato de que também é inviável
descobrir quantas pessoas, de fato, foram influenciadas por essa estratégia e
quantas mudaram seus votos por causa dela. O que se sabe, no entanto, é que
as redes sociais, influenciam e podem influenciar bastante a depender do
contexto a qual elas se inserem e do grupo de pessoas que são alvos desses
disparos em massa.
2 FAKE NEWS NO PROCESSO ELEITORAL DE 2022 DO BRASIL E A
ATUAÇÃO DO TSE PARA CONCEITUAR ESSE FENÔMENO
Reconhecendo o caráter determinante que as notícias falsas e a
desinformação podem ter em uma eleição, o TSE ao editar a Resolução n.º
23.610/2019 que tratou das regras para a propaganda política no Brasil nos
anos que a seguiram, dedicou uma seção inteira para tratar do tema e traçar o
que seria ou não permitido. Especificamente, o Art. 9º da supracitada resolução
impõe ao candidato a responsabilidade por checar se a informação veiculada
em qualquer peça de propaganda é verídica e sujeita o pleiteante ao cargo à
responsabilidade penal e garantindo o direito de resposta ao candidato que
tenha sido ofendido por eventual propagação de desinformação 19.
Posteriormente, o TSE editou ainda a Resolução n.º 23.714/2022 para
tratar, especificamente, do enfrentamento à desinformação no âmbito do
processo eleitoral 20. O Art. 2º dessa resolução repete o conceito de
18FAROOQ, Gowhar. Politics of Fake News: How WhatsApp Became a Potent Propaganda
Tool in India. Media Watch, Vrindavan, [S. l.], v. 9, n. 1, p. 106–117, 2018. Disponível em:
https://www.mediawatchjournal.in/politics-of-fake-news-how-whatsapp-became-a-potent-
propaganda-tool-in-india/. Acesso em: 13 set. 2023.
19BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n.o 23.610, de 18 de dezembro de 2019.
Dispõe sobre propaganda eleitoral, utilização e geração do horário gratuito e condutas ilícitas
em campanha eleitoral. 18 dez. 2019. Disponível em:
https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2019/resolucao-no-23-610-de-18-de-dezembro-
de-2019. Acesso em: 11 maio 2023.
20BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução no 23.714, de 20 de outubro de 2022.
Dispõe sobre o enfrentamento à desinformação que atinja a integridade do processo eleitoral.
20 out. 2022. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2022/resolucao-
no-23-714-de-20-de-outubro-de-2022. Acesso em: 26 dez. 2023.
245
Fake news e propaganda eleitoral nas eleições de 2022: (...)
desinformação trazido pelo Art. 9º-A da Resolução 23.61/2019 21, apresentando
uma ideia vaga do que seria desinformação, limitando-se a equiparar a conduta
à fatos “sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados 22.
Ressalta-se que a aprovação da Lei n.º 13.834/2019 também criminalizou a
denunciação caluniosa com finalidade eleitoral, punindo a conduta com a pena
de reclusão de 2 a 8 anos e multa 23.
A nova resolução surgiu para tratar especificamente do combate à
desinformação no processo eleitoral. Enquanto a Resolução de 2019 trazia
regras mais gerais acerca do pleito e citava brevemente a desinformação em
seu Art. 9º-A, a nova resolução pormenorizou o que se poderia entender por
desinformação, quais seriam as formas adequadas de se questionar as
propagandas eventualmente irregulares e quais as penalidades.
Ao realizar a previsão de punição por desinformação no processo
eleitoral, o Tribunal se depara com um problema que precisa ser solucionado:
conceituar a desinformação e as notícias falsas. Na seção anterior deste
trabalho, apresentamos algumas definições teóricas trazidas por pesquisadores
de diversas áreas do conhecimento social. Ao analisar os acórdãos proferidos
pela corte eleitoral no ano de 2022, é possível perceber que o entendimento do
TSE do que seja desinformação se aproxima do conceito proposto por Brisola e
Bezerra 24, citado integralmente neste texto.
21Dispositivo revogado pela resolução mais recente. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral.
Resolução n.o 23.610, de 18 de dezembro de 2019. Dispõe sobre propaganda eleitoral,
utilização e geração do horário gratuito e condutas ilícitas em campanha eleitoral. 18 dez. 2019.
Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2019/resolucao-no-23-610-de-
18-de-dezembro-de-2019. Acesso em: 11 maio 2023.
22BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n.o 23.610, de 18 de dezembro de 2019.
Dispõe sobre propaganda eleitoral, utilização e geração do horário gratuito e condutas ilícitas
em campanha eleitoral. 18 dez. 2019. Disponível em:
https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2019/resolucao-no-23-610-de-18-de-dezembro-
de-2019. Acesso em: 11 maio 2023.
23
BRASIL. Lei n.o 13.834 de 4 de junho de 2019. Altera a Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965
- Código Eleitoral, para tipificar o crime de denunciação caluniosa com finalidade eleitoral. 4
jun. 2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2019/lei/l13834.htm. Acesso em: 27 dez. 2023.
24BRISOLA, Anna; BEZERRA, Arthur Coelho. DESINFORMAÇÃO E CIRCULAÇÃO DE “FAKE
NEWS”: DISTINÇÕES, DIAGNÓSTICO E REAÇÃO. In: XIX ENCONTRO NACIONAL DE
PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO (XIX ENANCIB), 2018, Londrina. XIX
ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO (XIX ENANCIB).
Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2018. Disponível em:
http://enancib.marilia.unesp.br/index.php/XIX_ENANCIB/xixenancib/paper/view/1219. Acesso
em: 21 dez. 2023, p. 3319.
246
Felipe Medeiros Mariz & Rodrigo Vieira Costa
Para o Tribunal, portanto, a desinformação transcende o simples ato de
mentir em uma notícia, é, na verdade, a manipulação da verdade em diversos
aspectos. A distorção de notícia e a sua retirada de contexto foram alvos de
sanção por parte do TSE que exigiu a retirada do conteúdo do ar. Chama
atenção, no entanto, a forma como a corte tratou os casos em que a notícia
veiculada em propaganda política era antiga. Isso porque, ao se deparar com
ações que analisavam esse tipo de conteúdo, a determinação do TSE não foi
de obrigar a retirada da propaganda do ar, mas sim que fosse exibido junto
com a notícia, a data que ela saiu na imprensa, como forma de dar ciência ao
receptor da mensagem que se tratava de uma notícia antiga 25.
Outro ponto curioso na análise dos casos é que as multas impostas às
agremiações partidárias e demais pessoas físicas ou jurídicas condenadas não
possuem um critério objetivo. Ao sopesar o quantum da penalidade aplicada os
ministros não demonstraram critérios únicos em seus votos, de modo que não
é possível apontar qual seria o fator preponderante para o aumento ou
decréscimo das multas apicadas.
O que se observa na análise é que as decisões que derrubaram as
propagandas eleitorais com desinformação 26 se basearam em questões muito
latentes de invericidade ou que notoriamente feriam a imagem do candidato
adversário, atingindo-lhe a sua honra injustificadamente. A confirmação dessa
hipótese derruba a narrativa de que o tribunal agira como censor das
propagandas políticas, desrespeitou a liberdade de expressão e perseguiu
determinado candidato em detrimento de outro. Foram identificados acórdãos
que favoreciam ambos os candidatos que disputaram a eleição presidencial do
segundo turno no ano de 2022 e a derrubada do conteúdo era a última
possibilidade de punição que só aparecia quando o conteúdo desinformativo
25BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral (Pleno). Processo n.o 0601517-16.2022.6.00.0000.
Eleições 2022. Representação. Candidato a Presidente da República. Propaganda eleitoral
irregular. Horário eleitoral. Televisão. Suposta divulgação de informação inverídica, mediante
veiculação de falas alegadamente descontextualizadas. Pronunciamentos antigos, que são de
conhecimento público. Mudança de posicionamento pelo candidato. Violação ao art 53 da lei no
9.504/1997 e ao art. 9o-A da Res.-TSE no 23.610/2019. Inocorrência. Liminar indeferida.
Referendo. Autor: Coligação Brasil da Esperança. Réus: Coligação Pelo Bem do Brasil e Jair
Messias Bolsonaro. Relatora: Min. Maria Claudia Bucchianeri, 26 de outubro de 2022.
Disponível em: https://consultaunificadapje.tse.jus.br/#/public/resultado/0601517-
16.2022.6.00.0000. Acesso em: 26 dez. 2023.
26E aqui estamos falando do critério adotado pelo TSE.
247
Fake news e propaganda eleitoral nas eleições de 2022: (...)
não poderia ser salvo adicionando-se uma nota, ou demonstrando o contexto
no qual fora veiculado.
O conceito utilizado pelo TSE de “desinformação” se assemelha com o
que prevê o Art. 2º da Resolução n.º 23.714/2022, que, por sua vez, repete o
conceito do revogado Art. 9º-A da Resolução 23.610/2019. Isso não significa
que o conceito fora aplicado fielmente, os ministros ao analisarem os casos
concretos detalharam ainda mais o conceito de desinformação, esmiuçando
cada detalhe contido nas resoluções 27. Em que pese essa expansão ter sido
realizada, o conceito não teve seu significado distorcido, na verdade o que
aconteceu foi uma elucidação de terminologias genéricas para uma realidade
mais compreensível e elucidativa.
A atitude do TSE de agir dessa forma é para garantir a paridade de armas
dos oponentes e fazer com que o tempo de propaganda (recurso tão caro aos
candidatos) seja utilizado de forma leal, como uma espécie de fair play
eleitoral. Um candidato que fora atacado injustamente e com notícias falsas
ganhava o direito de resposta dentro do horário eleitoral do candidato que
houvesse atacado. Embora não seja uma novidade trazida pela resolução,
essa ainda é a forma como a justiça eleitoral lida com esse tipo de problema,
punindo o candidato atacante – ao lhe diminuir tempo de propaganda
reflexivamente – e favorecendo, não o candidato atacado, visto que no espaço
disponibilizado para direito de resposta ele não pode veicular propostas, mas
apenas defender-se das acusações que lhe foram impostas injustamente.
CONCLUSÃO
Dos 66 acórdãos analisados, apenas 6 trazem no corpo da decisão o
conceito de “desinformação”, sempre repetindo o mesmo conceito mencionado
anteriormente, que
A desinformação não se limita à difusão de mentiras propriamente
ditas, compreendendo, por igual, o compartilhamento de conteúdos
com elementos verdadeiros, porém gravemente descontextualizados,
editados ou manipulados, com o especial intento de desvirtuamento
da mensagem difundida, com a indução dos seus destinatários em
erro 28.
27Alguns deles: 0600927-39.2022.6.00.0000 e 0601357-88.2022.6.00.0000
28
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral (Pleno). Processo n.o 0600927-39.2022.6.00.0000.
Representação por propaganda irregular desinformativa – alegada divulgação de fato
sabidamente inverídico ou gravemente descontextualizado – Art. 9o-A da Resolução/TSE
23.610/2019 – Inocorrência – falas vagas ou ambíguas – Postagens que navegam com
248
Felipe Medeiros Mariz & Rodrigo Vieira Costa
No que diz respeito às condenações, essas aconteceram em 74,2% dos
processos, com apenas 12 multas aplicadas na modalidade de astreintes.
Identificou-se multas que variaram entre 5 mil reais diários até o teto de
100 mil reais para cada dia que a publicação não fosse removida. Ademais, foi
possível encontrar não apenas condenações de partidos e candidatos, mas
também, condenações de páginas em redes sociais, sites e influenciadores
que disseminaram desinformação no processo eleitoral de 2022.
Há que se ressalvar um ponto bastante relevante: vários dos acórdãos
analisados apenas analisavam decisões em sede de liminar, seja para
convalidar ou para derrubar a decisão. Por isso acabam sendo bem mais
resumidas de modo que é possível que o conceito já tenha sido abordado
quando o relator proferiu a decisão liminar analisada pelo colegiado.
A hipótese de que o TSE teria agido como censor deve ser afastada por
vários motivos. O número de acórdãos, embora esteja subnotificado, é baixo,
dentro deles, 49 determinaram a remoção do conteúdo questionado. Além
disso, a aplicação de apenas 12 multas também demonstra que a sanção
econômica era a exceção, mesmo quando se tratavam da mesma coligação
condenada.
Também é falso que o Tribunal tenha favorecido apenas um dos
candidatos. Em algumas oportunidades, o TSE condenou a campanha do
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva por divulgação de desinformação. Algumas
oportunidades de condenação foram nos casos em que propaganda eleitoral
acusava o candidato Jair Bolsonaro de ser miliciano, fascista e assassino 29 ou
no caso em que se analisou uma falsa informação de o presidenciável teria
afirmado que abortaria um de seus filhos 30.
comentários, críticas ou análises dentro do espectro possível de significação de manifestação
pública do próprio candidato – Imprestabilidade da representação como forma de
estabelecimento judicial de uma única interpretação possível a manifestações lacunosas –
Representação julgada improcedente – Recurso desprovido. Autor: Coligação Brasil da
Esperança. Réus: Bernardo Pires Kuster e outros. Relatora: Min. Maria Claudia Bucchianeri, 19
de dezembro de 2022. Disponível em:
https://consultaunificadapje.tse.jus.br/#/public/resultado/0600927-39.2022.6.00.0000. Acesso
em: 27 dez. 2023.
29Trata-se do processo n.º 0601559-65.2022.6.00.0000.
30Trata-se do processo n.º 0601485-11.2022.6.00.0000.
249
Fake news e propaganda eleitoral nas eleições de 2022: (...)
OBRAS CITADAS
BARRAGÁN, Almudena. Cinco ‘fake news’ que beneficiaram a candidatura de
Bolsonaro | Noticias | EL PAÍS Brasil. El País, Madri, 19 out. 2018.
Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/actualidad/1539847547_14658
3.html. Acesso em: 21 dez. 2023.
BENTES, Anna. Eleições, direitos digitais e desinformação. [S.l.]: Derechos
Digitales, 2023. Disponível em: https://www.derechosdigitales.org/wp-
content/uploads/DD-Desinfo-2023-PT.pdf. Acesso em: 26 dez. 2023.
BRASIL. Lei n.o 13.834 de 4 de junho de 2019. Altera a Lei no 4.737, de 15 de
julho de 1965 - Código Eleitoral, para tipificar o crime de denunciação
caluniosa com finalidade eleitoral. 4 jun. 2019. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13834.htm.
Acesso em: 27 dez. 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral (Pleno). Processo n.o 0600927-
39.2022.6.00.0000. Representação por propaganda irregular
desinformativa – alegada divulgação de fato sabidamente inverídico ou
gravemente descontextualizado – Art. 9o-A da Resolução/TSE
23.610/2019 – Inocorrência – falas vagas ou ambíguas – Postagens que
navegam com comentários, críticas ou análises dentro do espectro
possível de significação de manifestação pública do próprio candidato –
Imprestabilidade da representação como forma de estabelecimento
judicial de uma única interpretação possível a manifestações lacunosas
– Representação julgada improcedente – Recurso desprovido. Autor:
Coligação Brasil da Esperança. Réus: Bernardo Pires Kuster e outros.
Relatora: Min. Maria Claudia Bucchianeri, 19 de dezembro de 2022.
Disponível em:
https://consultaunificadapje.tse.jus.br/#/public/resultado/0600927-
39.2022.6.00.0000. Acesso em: 27 dez. 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral (Pleno). Processo n.o 0601357-
88.2022.6.00.0000. Eleições 2022. Representação. Candidato.
Presidente da República. Propaganda eleitoral irregular na internet.
Alegada divulgação de fato sabidamente inverídico ou gravemente
descontextualizado. Art. 9o-A da Res.-TSE no 23.610/2019. Indevida
associação de candidato a crime de homicídio que já foi elucidado por
decisão judicial transitada em julgado. Conteúdo já tido como
desinformativo e ofensivo pelo plenário desta corte. Ordem de remoção.
Liminar deferida. Referendo. Autor: Coligação Brasil da Esperança.
Réus: Brasil Paralelo Entretenimento e Educação S/A e Augusto
Zacarias Correia Leite. Relatora: Min. Maria Claudia Bucchianeri, 19 de
dezembro de 2022. Disponível em:
https://consultaunificadapje.tse.jus.br/#/public/resultado/0601357-
88.2022.6.00.0000. Acesso em: 27 dez. 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral (Pleno). Processo n.o 0601485-
11.2022.6.00.0000. Eleições 2022. Representação. Candidato.
250
Felipe Medeiros Mariz & Rodrigo Vieira Costa
Presidente da República. Propaganda eleitoral irregular. Horário eleitoral
gratuito. Inserção. Alegada divulgação de fato sabidamente inverídico ou
gravemente descontextualizado. Art. 9o-A da Res.-TSE no 23.610/2019.
Falas descontextualizadas relativas à posição pessoal do candidato em
relação ao aborto. Afirmação de que o candidato à presidência da
república abortaria seu próprio filho. Métrica firmada por esta corte
superior, para as presentes eleições, a impor dever de filtragem
discursiva mais fina em tema de propaganda eleitoral desinformativa ou
descontextualizada, considerado o contexto de excessiva polarização.
Liminar deferida. Referendo. Autor: Coligação Pelo Bem do Brasil. Réu:
Coligação Brasil da Esperança. Relatora: Min. Maria Claudia
Bucchianeri, 26 de outubro de 2022. Disponível em:
https://consultaunificadapje.tse.jus.br/#/public/resultado/0601485-
11.2022.6.00.0000. Acesso em: 26 dez. 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral (Pleno). Processo n.o 0601517-
16.2022.6.00.0000. Eleições 2022. Representação. Candidato a
Presidente da República. Propaganda eleitoral irregular. Horário
eleitoral. Televisão. Suposta divulgação de informação inverídica,
mediante veiculação de falas alegadamente descontextualizadas.
Pronunciamentos antigos, que são de conhecimento público. Mudança
de posicionamento pelo candidato. Violação ao art 53 da lei no
9.504/1997 e ao art. 9o-A da Res.-TSE no 23.610/2019. Inocorrência.
Liminar indeferida. Referendo. Autor: Coligação Brasil da Esperança.
Réus: Coligação Pelo Bem do Brasil e Jair Messias Bolsonaro. Relatora:
Min. Maria Claudia Bucchianeri, 26 de outubro de 2022. Disponível em:
https://consultaunificadapje.tse.jus.br/#/public/resultado/0601517-
16.2022.6.00.0000. Acesso em: 26 dez. 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral (Pleno). Processo n.o 0601559-
65.2022.6.00.0000. Eleições 2022. Representação. Direito de resposta.
Propaganda eleitoral negativa. Liminar. Remoção de conteúdo. Internet.
Rede social. Desinformação. Ofensa à honra de candidato. Deferimento
da liminar. Referendo. Autor: Coligação Pelo Bem do Brasil. Réu:
Coligação Brasil da Esperança. Relator: Min. Paulo de Tarso Vieira
Sanseverino, 26 de outubro de 2022. Disponível em:
https://consultaunificadapje.tse.jus.br/#/public/resultado/0601559-
65.2022.6.00.0000. Acesso em: 26 dez. 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n.o 23.610, de 18 de
dezembro de 2019. Dispõe sobre propaganda eleitoral, utilização e
geração do horário gratuito e condutas ilícitas em campanha eleitoral. 18
dez. 2019. Disponível em:
https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2019/resolucao-no-23-
610-de-18-de-dezembro-de-2019. Acesso em: 11 maio 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução no 23.714, de 20 de outubro
de 2022. Dispõe sobre o enfrentamento à desinformação que atinja a
integridade do processo eleitoral. 20 out. 2022. Disponível em:
https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2022/resolucao-no-23-
714-de-20-de-outubro-de-2022. Acesso em: 26 dez. 2023.
251
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253
Sistema de cotas nas eleições proporcionais: exame da
viabilidade da reserva de vagas nas casas legislativas do brasil
para pessoas com deficiência como ação garantidora do direito
político
Leandro dos Santos 1
Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira 2
André Ricardo Fonsêca da Silva 3
1 INTRODUÇÃO
A história da implantação do sistema de cotas no Brasil teve sua gênese
na constatação de que nossa sociedade sempre vivenciou situações históricas
de desigualdades que precisavam ser combatidas. Negros, quilombolas, índios
e mulheres passaram a ter visibilidade após uma realidade de exclusão que os
atingia não só pela falta de paridade de direitos em comparação com outros
indivíduos, mas, sobretudo, pelo desrespeito à dignidade enfrentado no dia a
dia, o que exigiu, em face dessa situação de inequívoca vulnerabilidade, ação
afirmativa que teve o objetivo de resguardar a cidadania destas pessoas a partir
da igualdade de direitos e de oportunidades.
Posteriormente, como será debatido neste artigo, as pessoas com
deficiência foram também incluídas num processo de valorização de dignidade
humana, que ainda não se encerrou, exatamente pelo fato de que, até hoje, são
enfrentadas situações cotidianas de discriminação. Assim, os sistemas de cotas
adotados no Brasil, a despeito de críticas contundentes, podem ser mais um
mecanismo de inclusão social.
Entretanto, a tutela de alguns direitos das pessoas com deficiência não
esgotou o rol das necessidades a elas inerentes e que precisam ser debatidas e
resolvidas. O caminho para a efetividade de uma ação afirmativa com esta
dimensão deve ser contínuo, enxergando aquilo que representa barreira para
uma existência com visibilidade e dignidade.
Partindo destas premissas, a criação, no âmbito eleitoral brasileiro, de
1 Mestrando em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo Centro Universitário de João Pessoa - UNIPE
2 Doutora em Direito pela Universitat Valencia-Espanha
3 Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ
254
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva M. de Oliveira & André Ricardo
Fonsêca da Silva
cota destinada às pessoas com deficiência, que pelas próprias condições
pessoais estão alijadas do cenário das decisões políticas mais relevantes do
país, exatamente pela baixa ocupação dos cargos eletivos, deve ser entendido
como pressuposto essencial para a formatação de ambiente favorável ao debate
e enfrentamento das desigualdades derivadas desta condição especial.
Entende-se que, inseridas nas casas legislativas, será mais factível que
as pessoas com deficiência tenham mais oportunidades de levar ao centro das
decisões político-administrativas de governos e da sociedade em geral
propostas que possam gerar uma transformação social na luta contra a
desigualdade e, via de consequência, formatar um processo permanente de
inclusão dessa categoria de indivíduos vulneráveis.
Daí surge o problema que o artigo quer enfrentar; isto é: examinar se a
implantação de cota de vagas nas casas legislativas constitui efetiva política
pública para o exercício pleno dos direitos políticos pelas pessoas com
deficiência. A hipótese que lastreia esse artigo é de que a cota de vagas nas
eleições proporcionais brasileiras representa efetiva política pública de inclusão
e garantia do exercício pleno dos direitos políticos das pessoas com deficiência.
Identificados o problema e a hipótese, o artigo detalha aspectos históricos
da política pública de cotas no Brasil; explicita o tema do sistema de cotas, à luz
de princípios constitucionais, tais como o da igualdade e o da dignidade da
pessoa humana; aborda a composição dos órgãos diretivos dos partidos
políticos e o incentivo à participação político-eleitoral das pessoas com
deficiência; e, finalmente, examina se a implantação da cota de vagas nas
eleições proporcionais é política pública eficiente à garantia do exercício dos
direitos políticos pelas pessoas com deficiência.
2 A PROTEÇÃO LEGAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
O presente artigo, ao examinar algumas leis atualmente inseridas no
ordenamento jurídico brasileiro, que tutelam direitos para combater situações
de exclusão, não tem a intenção de alcançar a totalidade das normas,
municipais, estaduais ou federais, que guardam relação com este tema da
defesa dos direitos políticos das pessoas com deficiência.
255
Sistema de cotas nas eleições proporcionais: exame da (...)
2.1 A Constituição Federativa do Brasil
Fazendo-se uma referência inicial à atual Constituição da nossa República,
vê-se que o Estado brasileiro estabeleceu a igualdade como valor supremo da
sociedade e a dignidade humana como a razão de ser do próprio Estado
Democrático de Direito. Especificamente sobre as pessoas com deficiência, a
Constituição prevê a garantia da não-discriminação (art. 7º, Inciso XXXI); o
direito à seguridade social (art. 204, inciso V); a inclusão (art. 208, inciso III); e a
garantia de assistência social (art. 203, inciso IV).
Em relação ao princípio da igualdade, que se caracteriza pelo fundamento
da promoção igualitária de todos os indivíduos, num viés de combate às
injustiças sociais, a doutrina destaca a igualdade material, que se distingue da
formal por permitir que certas pessoas possam ter tutela diferenciada de
proteção a partir de suas necessidades específicas. Busca-se, assim, a
igualdade plena, mediante a definição de ações afirmativas que possam gerar
inclusão para combater a exclusão.
2.2 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, teve como
consequência mais marcante a universalização dos direitos da pessoa humana
dentro de um sistema de proteção, através de Tratados Internacionais. A partir
deste postulado da Declaração, a Convenção sobre Direitos das Pessoas com
Deficiência, de 30 de março de 2007, na cidade de Nova Iorque, foi assinada e
posteriormente promulgada no Brasil pelo Decreto nº 6.949 de 25 de agosto de
2009.
É preciso, pois, reconhecer a relevância da defesa dos direitos das
pessoas com deficiência destacando a dignidade como valor inerente à pessoa
humana e compreender que a Declaração Universal dos Direitos do Homem é a
manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser
considerado humanamente (BOBBIO, 2022).
A Convenção apresenta 23 princípios que dão azo aos objetivos por ela
traçados, destacando-se: o reconhecimento da dignidade e o valor inerente a
todos os membros da família humana e os seus direitos iguais e inalienáveis
256
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva M. de Oliveira & André Ricardo
Fonsêca da Silva
como base para a fundação da liberdade, justiça e paz no mundo; a
compreensão da universalidade, da indivisibilidade, da interdependência e da
inter-relação de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, bem
como a necessidade de garantir que todas as pessoas com deficiência os
exerçam plenamente, sem discriminação.
A luta iniciada a partir deste rol descrito pela Convenção, é pelo
reconhecimento da relevância das pessoas com deficiência no seio social; da
sua autonomia e independência individual, o que significa a liberdade de fazerem
as suas próprias escolhas, sendo ativamente incluído no processo de políticas e
programas, notadamente, naqueles que diretamente estejam a elas ligados.
Dentre tantos direitos previstos na Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência, destaca-se a participação na vida política, como está
inserido no art. 29 (29º de acordo com a numeração da Convenção), ponto fulcral
deste artigo. Neste horizonte, os Estados signatários da Convenção assumem a
obrigação de garantir às pessoas com deficiência os direitos políticos e a
oportunidade de os gozarem, em condições de igualdade com as demais
pessoas. A propósito deste pensamento, que revela o sentido da própria
democracia, deve ser ela um valor universal, significando a mais irrestrita
participação: na família, na escola, na comunidade, no sindicato, nos processos
de produção, na construção do saber e, logicamente, na política, nos partidos e
na organização do Estado (BOFF, 2015).
É possível pensar os direitos das pessoas com deficiência nesta
dimensão de prioridade e de concreticidade. Não basta descrever num texto de
lei direitos mudos, sem voz. E quando houver voz, é indispensável o eco que
possa produzir equidade. As pessoas com deficiência querem e merecem
efetividade da proteção que lhes é dirigida.
À luz da mencionada Convenção faz-se mister avaliar como se daria a
inclusão política das pessoas aqui tratadas. A norma em questão fala em
procedimentos de eleição, instalações e materiais que deverão ser apropriados,
acessíveis e fáceis de compreender e utilizar, como já ocorre. A Justiça Eleitoral
brasileira tratou de regulamentar a facilitação do exercício do voto pela pessoa
com deficiência, tal como evidenciado pelo Programa de Acessibilidade
instituído pela Resolução-TSE nº 23.381/2012, o que representou um avanço.
257
Sistema de cotas nas eleições proporcionais: exame da (...)
Na concorrência dos cargos eletivos; isto é: quando as pessoas com
deficiência estiverem na disputa dos mandatos eletivos, a Convenção
estabelece a promoção de um ambiente em que elas possam participar efetiva
e plenamente na condução dos assuntos de interesses sociais, econômicos e
políticos, sem discriminação e em condições de igualdade com os demais e
encorajar a sua participação nos assuntos públicos.
Como dito, o rol das legislações voltadas à proteção das pessoas com
deficiência e que estão sendo tratadas neste artigo não esgota a proteção que
lhes é atribuída por outros diplomas legais. O que falta ou pode estar faltando,
na verdade, é uma vontade política séria para que a implementação dos direitos
previstos na Convenção seja a expressão do reconhecimento de uma dívida
social gigantesca e que precisa de solução definitiva.
2.3 Plano viver sem limites
Já em 2011, pelo Decreto nº 7.612, de 17 de novembro daquele ano, surge
o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Plano Viver Sem
Limites – que veio compor o ordenamento jurídico pátrio com o objetivo de
promover, por meio da integração e articulação de políticas, de programas e de
ações, o exercício pleno e equitativo de direitos das pessoas com deficiência,
nos termos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e seu Protocolo Facultativo, aprovados por meio do Decreto
Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, com status de emenda constitucional,
e promulgados pelo Decreto n º 6.949, de 25 de agosto de 2009 (BRASIL, 2011).
O referido Plano tratou de especificar as suas diretrizes, baseadas, em
resumo, na garantia de um sistema educacional inclusivo; na ampliação da
participação das pessoas com deficiência no mercado de trabalho; na prevenção
das causas de deficiência; na ampliação e qualificação da rede de atenção à
saúde da pessoa com deficiência; na ampliação do acesso das pessoas com
deficiência à habitação adaptável e com recursos de acessibilidade; e na
promoção do acesso, do desenvolvimento e da inovação em tecnologia
assistiva.
Portanto, acolher e proteger as pessoas com deficiência é expressão de
respeito, de solidariedade; é plena ação de reinserção social. Por fim, garantir
258
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva M. de Oliveira & André Ricardo
Fonsêca da Silva
às pessoas com deficiência acessibilidade é uma forma de se permitir vida com
qualidade. Acessibilidade seria a mínima ação afirmativa visando defender
essas pessoas. É neste cenário que a doutrina destaca que a dignidade nasce
com a pessoa, é valor imprescindível, incindível e independente de qualquer
reconhecimento por parte do Estado, que deve ser protegida por se tratar de
direito natural, em respeito aos direitos e garantias individuais (SILVA;
MARIGHETO, 2022).
Interessante observar que, embora o Plano seja de 2011 – Decreto nº
7.612/201- e tenha ocorrido a revogação de alguns de seus artigos em 2019,
pelo advento do Decreto nº 9.784/2019, vê-se que essa revogação parcial
atingiu apenas os arts. 5º, 6º, 7º, e o art. 12, mantendo-se a base normativa
inicial, e com a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em 2015,
passaram a coexistir sistemas jurídicos que se completam, que dialogam na
visão e no propósito de proteger os interesses das pessoas com deficiência
Claro resta que o Plano Viver sem Limites, como justificado em sua
apresentação, é sobretudo um compromisso do Brasil com as prerrogativas da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, e que foi
ratificada com equivalência de emenda constitucional, significando, também,
que o País tem avançado na implementação dos apoios necessários ao pleno
e efetivo exercício da capacidade legal por todas e cada uma das pessoas com
deficiência.
2.4 O Estatuto da Pessoa com Deficiência
Neste ponto do artigo, serão examinadas as disposições da Lei nº 13.146,
de 06 de julho de 2015, que se denominou Estatuto da Pessoa com Deficiência
Na forma do Capítulo IV, do Título III, o Estatuto da Pessoa com Deficiência
estatui que os sujeitos de direito por ela protegidos têm todos os direitos políticos
e a elas se deve dar oportunidade de exercê-los em igualdade de condições
com as demais pessoas.
Sobre o direito ao exercício do voto, acentua-se a necessidade de que o
procedimento da votação, seja em relação aos locais ou aos mecanismos
eletrônicos de captação do sufrágio, permita, de forma absoluta, acessibilidade
para todas as pessoas (incluindo, por óbvio, as PcD), com vedação expressa da
259
Sistema de cotas nas eleições proporcionais: exame da (...)
montagem de seções eleitorais exclusivas para elas, tal como retratado no art.
76, § 1º, inciso I, do Estatuto, disposição que foi reproduzida na Resolução nº
23.659/2021, § 3º, do art. 14.
Como se vê, o Estatuto tratou de garantir à pessoa com deficiência, no
momento do exercício do direito de votar, acessibilidade ao local da seção
eleitoral e meios que possibilitem a utilização da urna eletrônica. Ainda se
referindo ao exercício do direito de votar, nos termos do que preconiza o inciso
IV, do art. 76, é possível que à pessoa com deficiência seja dado auxílio para o
momento da votação. Neste caso, o eleitor ou eleitora deficiente terá o poder de
escolher a pessoa que irá ajudá-lo – Resolução-TSE nº 23.611/2019.
Noutro trilho, o inciso II, do art. 76 do Estatuto em análise, define política
de inclusão para o incentivo da pessoa com deficiência se candidatar e
desempenhar quaisquer funções públicas em todos os níveis de governo, o que
será abordado na sequência.
3 DIREITO POLÍTICO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E SUA
MATERIALIZAÇÃO POR INTERMÉDIO DA RESERVA DE VAGAS
Como mencionado anteriormente, no Plano Nacional de Proteção aos
Direitos das Pessoas com Deficiência, na Convenção sobre os mesmos direitos,
e ainda no âmbito do Estatuto sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
há disposições sobre o direito político das pessoas tuteladas nestes
instrumentos normativos.
Contudo, o que se quer debater neste artigo é o incremento da
participação política das pessoas com deficiência por intermédio da reserva de
vagas nas casas legislativas, diferenciando-se do sistema de reserva de vagas
no registro de candidaturas aplicado na cota de gênero, que foi instituída no §
3º, do art. 10 da Lei nº 9.504/97, com a redação que foi dada pela Lei nº
12.034/2009. Deste modo, o objetivo é tentar entender se a cota de vagas nas
casas legislativas constitui efetiva política pública para o exercício pleno dos
direitos políticos pelas pessoas com deficiência.
Não é difícil imaginar os obstáculos que uma pessoa com deficiência pode
enfrentar para garantir o exercício de seu direito político. A cota de gênero que
garante às mulheres participação mínima – 30% - no número de candidaturas
260
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva M. de Oliveira & André Ricardo
Fonsêca da Silva
registradas perante a Justiça Eleitoral, nas eleições proporcionais municipais,
estaduais e nacionais pode ser invocada como razão de compreender as
dificuldades em torno das pessoas com deficiência participarem do ambiente
político-eleitoral em nosso País. É que, desde a implantação desse sistema de
discriminação positiva que envolve o gênero feminino, fazendo referência às
eleições na Paraíba, não há resultados concretos sobre o incremento da
participação da mulher no cenário político-eleitoral.
Alguns números relacionados às eleições estaduais em nosso Estado,
extraídos da base de dados do Tribunal Regional Eleitoral, dos anos de 2018 e
2022, para a composição da Assembleia Legislativa estadual, além das eleições
municipais de 2016 e 2020, nos três maiores colégios eleitorais – João Pessoa,
Campina Grande e Patos -, podem ser um referencial desta realidade de
(in)efetividade da cota de gênero. Veja-se: na eleição da Assembleia Legislativa
da Paraíba, no ano de 2022, das 36 vagas existentes, apenas 6 foram ocupadas
por mulheres. Nas eleições de 2018, foram 5 mulheres eleitas. Em resumo: na
eleição de 2018, para a Assembleia Legislativa do nosso Estado, 5 mulheres
eleitas representam apenas a conquista de 13,9% das vagas. Na mesma eleição
de 2022, considerando a eleição de 6 mulheres, o percentual foi de 16,7%, o que
significa um predomínio absoluto das candidaturas dos homens que
preencheram mais de 80% dos cargos eletivos disputados.
Nas eleições municipais de 2016 e 2020, nos três colégios eleitorais
citados, a realidade é praticamente a mesma; isto é: João Pessoa, com 27 vagas
disponíveis, nas eleições de 2016, apenas 3 mulheres foram eleitas; na mesma
eleição em 2020, só uma mulher foi eleita. Em síntese, 3 mulheres eleitas
representam pouco mais de 10% das vagas da Câmara de Vereadores da
Capital paraibana. Já na eleição de 2020, o percentual é ínfimo: cerca de 4%.
Portanto, os homens dominam totalmente a representação política nas Câmara
de Vereadores da Capital. Em Campina Grande, na eleição de 2016, com um
quadro de 23 vagas em disputa, apenas uma mulher foi eleita, representando
cerca de 4% das vagas. Na eleição de 2020, apesar do incremento de
candidaturas femininas vitoriosas, 7, comparando-se com as eleições de 2016,
o percentual de eleitas fica situada próximo do mínimo das candidaturas
registradas, confirmando um predomínio masculino que ocupou 70% das vagas
261
Sistema de cotas nas eleições proporcionais: exame da (...)
existentes. Em Patos, na eleição municipal de 2016, com um quadro de 17 vagas
em disputa, 4 mulheres foram eleitas, perfazendo um percentual de pouco mais
de 20%, registrando, de igual modo, um predomínio masculino substancial, que
ocupou quase 80% das vagas. Na eleição de 2020, foram eleitas 3 mulheres,
que traduzem um percentual inferior a 20% das vagas, e mais uma vez os
homens dominaram a Câmara de Vereadores daquela cidade sertaneja.
Raciocinando da mesma forma, para uma reflexão sobre a situação de
exclusão das pessoas com deficiência, é lógico perguntar: No Estado da
Paraíba, qual é o percentual de pessoas com deficiência eleitas no último pleito
de 2022? Nas duas maiores cidades da Paraíba – João Pessoa e Campina
Grande -, qual o percentual de pessoas com deficiência eleitas para as câmaras
de vereadores, respectivas, nas eleições de 2020?
Embora a Justiça Eleitoral não disponha, ainda, de dados a permitir a
análise, estatisticamente falando, do crescimento ou não do número de pessoas
com deficiência ocupando os mandatos eletivos, é possível concluir, pela
ausência de informação em contrário, que essa participação é pequena, para
não dizer, insignificante, o que sugere que não houve uma expansão da ação
afirmativa que visa incrementar a participação delas no cenário da política
nacional.
Se a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência é de 2007; se o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência é de 2011; e se o Estatuto dos Direitos da Pessoa com Deficiência é
de 2015, logicamente seria inevitável que, nas eleições municipais de 2016 e
2020, e nas eleições estaduais de 2018 e 2022, razoável ou substancial
mudança tivesse ocorrido no preenchimento das vagas das eleições
proporcionais por pessoas com deficiência.
Na Assembleia Legislativa da Paraíba, composta de 36 deputados(as),
apenas uma candidata eleita declara sua condição de pessoa com deficiência,
no caso, a deputada Cida Ramos, como se anunciou no sítio da ALPB, em
matéria intitulada Especial Mês da Mulher, do ano de 2019.
Em João Pessoa, Capital, a Câmara de Vereadores tem 27 vagas de
vereador/vereadora (número elevado para 29, nos termos da alteração da Lei
Orgânica do Município ocorrido em 2023), e não se tem dado ou informação da
262
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva M. de Oliveira & André Ricardo
Fonsêca da Silva
existência de qualquer parlamentar que tenha declarado sua condição de
pessoa com deficiência (www.joaopessoa.pb.leg.br). De igual modo, Campina
Grande, a segunda maior cidade do Estado, com uma Câmara de Vereadores
composta de 23 vereadores, não noticia que algum parlamentar tenha se
declarado como pessoa com deficiência (www.camaracg.pb.gov.br).
Qual a razão, pois, do aparente fracasso de toda a construção normativa
que procurou incluir as pessoas com deficiência no ambiente dos cargos
eletivos, a partir do realce dos direitos políticos? Qual a razão de anos de
incentivo ao reconhecimento dos direitos políticos das pessoas com deficiência
não ter gerado um efeito concreto no número de candidaturas vitoriosas?
Nesta equação, que interliga cidadania com direitos civis, liberdade e
direitos políticos, a pessoa com deficiência só alcançará o resultado prático
pretendido quando houver junção de vontades. É por isso que as respostas a
estas indagações ora lançadas são complexas, mas alguns fatores podem
explicar a realidade da ineficiência dessa política inclusiva.
Dentre os espaços que, historicamente, apartaram do coletivo as pessoas
com deficiência, um deles se mostra simbolizado nas arenas de representação
política, composta quase que exclusivamente por pessoas sem deficiência
(OLIVER, 1990).
Num primeiro plano, é factível que haja falta de ambiente propício às
candidaturas dentro dos partidos políticos. Se a agremiação partidária não
estabelece internamente o objetivo de incentivar candidaturas de pessoas com
deficiência, definindo em seu regimento diretrizes para alcançar essa meta, a
consequência da omissão é o esvaziamento do interesse destas pessoas pelas
disputas políticas. Lançar-se candidato ou candidata sem o apoio do partido ou
confederação, a chance de vitória é mínima. Aliás, seria difícil até a obtenção de
vaga na respectiva convenção quando do momento da escolha das
candidaturas.
Uma vez candidato ou candidata, ultrapassada a barreira da indicação, a
pessoa com deficiência ainda percorrerá longo caminho para a consagração nas
urnas. O segundo degrau dos obstáculos para a participação da pessoa com
deficiência no processo eleitoral é receber os recursos do fundo partidário
respectivo. Os gastos de uma eleição, na moldura brasileira, são consideráveis.
263
Sistema de cotas nas eleições proporcionais: exame da (...)
Fala-se aqui apenas dos gastos legalmente permitidos e que serão objetos de
prestação de contas.
Em verdade, com a definição do fundo partidário, e tendo por base a
eleição de 2020, a Resolução n° 23.604/2019, do TSE, estabeleceu regra de
cota de 30% do montante recebido para as candidaturas de mulheres, mas não
definiu regra de divisão igualitária destes recursos com os demais partícipes. A
conclusão que se tem desta assimetria, que exige repartição equânime dos
recursos partidários, é que a pessoa com deficiência precisa enfrentar um
gigantesco abismo para levar sua candidatura à realidade e à vitória, na medida
que nem a garantia de recursos para gastos mais elementares ela pode ter.
O terceiro obstáculo para uma candidatura de pessoa com deficiência é
a falta de oportunidade para se ter visibilidade a partir de espaços nos guias
eleitorais. É verdade que o TSE, respondendo à Consulta (CTA 0600483-06)
sobre o tema, garantiu às mulheres, por exemplo, tempo mínimo nos guias
eleitorais como forma de expressar a ideia de igualdade de oportunidade.
Todavia, as pessoas com deficiência não foram agraciadas com idêntico direito
ou proteção.
O TSE lançou campanha, via publicação de cartilha, conforme divulgado
em seu sítio na internet – www.tse.jus.br -, como forma de incentivo à ampliação
dos espaços ocupados por mulheres em busca de uma sociedade mais justa e
igualitária. Aliás, como enfatizado na matéria, esse incentivo é feito, entre outros,
por meio de campanhas de estímulo à participação feminina na política, como
também pela disponibilização, no Portal da Justiça Eleitoral (JE), de um espaço
exclusivo dedicado às mulheres que fizeram e ainda fazem história na vida
política e na JE.
Em 2021, como registrado no seu sítio da internet, o TSE promoveu
iniciativa sobre a questão da acessibilidade das pessoas com deficiência nos
locais de votação, mas não há notícia de manifestação daquela Corte sobre a
participação ativa desses indivíduos na disputa eleitoral, via registro de
candidaturas.
Toda esta exclusão política, que afasta várias pessoas da participação
das eleições, não é uma constatação de hoje. Há tempo que se discutia a
necessidade do aumento da representatividade de grupos marginalizados em
264
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva M. de Oliveira & André Ricardo
Fonsêca da Silva
espaços deliberativos, os quais, no caso de participação eleitoral, inserem-se
desde a promoção de candidaturas até à reserva de assentos em parlamentos
(YOUNG, 2006).
Se houve avanços no aspecto da acessibilidade; isto é: na facilitação do
exercício do direito de voto, as pessoas com deficiência ainda estão longe de
uma efetiva participação na política, na tomada de decisões pela ocupação dos
mandatos eletivos. A grande questão é a capacidade eleitoral passiva; ou seja:
a possibilidade de ser votado e de se eleger. A participação política igualitária
entre todos os cidadãos respalda a legitimidade da própria democracia.
3.1 Especificamente sobre a cota de vagas nas casas legislativas
Nas eleições proporcionais brasileiras, para efeito da ocupação dos
mandatos de vereador(a), deputado(a) estadual ou federal, a legislação pátria
adotou sistema que leva em conta o quociente eleitoral e o quociente partidário,
como está formalmente descrito no Código Eleitoral – Lei nº 4.737/1965 - e nas
demais disposições sobre a matéria.
Chega-se ao quociente eleitoral a partir de um cálculo simples: divide-se
o número de cadeiras a serem preenchidas na respectiva casa pelo número de
votos válidos. Os votos válidos são aqueles que os candidatos ou respectivas
legendas recebem, com a exclusão de brancos e nulos. Uma vez encontrado o
quociente eleitoral, a segunda operação é a definição do quociente partidário,
cujo cálculo computa o número de votos obtidos pela agremiação partidária que,
então, será dividido pelo quociente eleitoral. Essa equação vai definir o número
de cadeiras a serem preenchidas pelo partido ou federação.
O sistema de cota de vagas, que se imagina e sugere, respeitando-se
qualquer crítica ao modelo, levaria em consideração a reserva de um percentual
a ser calculado sobre o número de vagas em disputa, que deveria ser ocupada
diretamente pelas pessoas com deficiência mais votadas, independentemente
do pertencimento partidário. Exemplo: se na Câmara de Vereadores fosse 10 o
número de vagas a ser preenchida, aplicando-se percentual de 30% desse total
de vagas, as 3 pessoas com registro de candidatura de PcD e que obtivessem
mais votos seriam eleitas, independentemente de cálculo de quociente eleitoral
ou partidário. As demais vagas, 7, seriam destinadas ao sistema proporcional
265
Sistema de cotas nas eleições proporcionais: exame da (...)
ora em vigor, na forma dos quocientes citados.
Fala-se aqui em 30% apenas para facilitar a compreensão sobre o
sistema de cota de vagas. Obviamente que o percentual poderá ser menor, até
para abrigar outras situações que precisam de igual tutela. Significa dizer que,
pelo modelo de cota ora sugerido, as 3 vagas da cota de pessoas com
deficiência seriam preenchidas no modelo de eleição majoritária; isto é: de todas
as candidaturas femininas, de todos os partidos, as 3 mais votadas ocupariam
as citadas vagas. Necessário, pois, substancial mudança da legislação eleitoral
para uma adequação da cota de vagas que se pretende criar no sistema eleitoral
brasileiro.
Lógico que a ideia da cota de vagas que se traz à colação neste trabalho
é meramente um exemplo, uma minuta de ideia, sujeita a amplo debate, que
demandaria longo estudo e processo legislativo democrático para a sua adoção.
Mas vale a reflexão. Vale o princípio que se defende, que é o da inclusão da
pessoa com deficiência no cenário político eleitoral. A forma de se definir a cota
de vagas e as regras de sua regulamentação passarão pelo crivo do Congresso
Nacional, inclusive, que poderia definir a temporalidade de sua vigência.
Não é demais lembrar que o Senado Federal, conforme notícia de seu
sítio na internet, aprovou no dia 14 de julho de 2021, projeto que estabelece um
percentual mínimo de cadeiras na Câmara dos Deputados e nas Assembleias
Legislativas estaduais e Câmaras de vereadores para as candidaturas
femininas. Então que se pense na cota mínima dessas cadeiras para as pessoas
com deficiência.
Seja qual for a forma de criação da cota de vagas para as pessoas com
deficiência em todas as Casas Legislativas do País, o mais relevante é o objetivo
que ela almeja, traduzido na compreensão de que a participação política das
pessoas com deficiência é necessária e urgente, pois integra a defesa da
cidadania, da dignidade da pessoa humana, operando como mecanismo de
legitimação da própria democracia, quando abre espaço de participação política
para todos os indivíduos, numa paridade de forças representativas.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi visto, qualquer ação afirmativa que constitua política de inclusão
266
Leandro dos Santos, Flávia de Paiva M. de Oliveira & André Ricardo
Fonsêca da Silva
para combater a situação de desigualdade representa importante mecanismo de
proteção à cidadania. O artigo debateu sobre os direitos políticos de pessoas
com deficiência que não podem ser limitados ao direito de voto. A exclusão
decorrente da condição de PcD precisa ser enfrentada com ações e programas
muito mais eficientes do que a simples acessibilidade voltada ao ato de votar. As
pessoas com deficiência precisam ser inseridas no cenário político, ocupando os
mandatos eletivos, para ter meios adequados de promover o debate dos
problemas que as afligem, cuja solução depende desta presença nas casas
legislativas com direito a voz.
Mesmo na ampla proteção às pessoas com deficiência, seja por normas
e princípios constitucionais, seja por força de outros dispositivos da legislação
ordinária e até postulados de tratados internacionais incorporados ao
ordenamento jurídico pátrio, é preciso ter efetividade para que a inserção social
e política desses indivíduos seja concreta e que produza efeitos. O exercício dos
direitos políticos, pela ocupação dos mandatos eletivos é indispensável para a
cidadania plena das pessoas com deficiência e para uma democracia plural que
expresse a diversidade da sociedade contemporânea; isto é: um tempo de
direitos, um momento de conscientização contra a discriminação, uma época de
inclusão, principalmente daqueles que estão à margem das decisões políticas e
sem representatividade.
A alteração da legislação eleitoral para que as pessoas com deficiência
tenham cota de vagas nas eleições brasileiras, incrementando a participação
delas no plano político-eleitoral, e equilibrando a representação no Congresso
Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores, é uma
estratégia eficiente para possibilitar que esses indivíduos finalmente estejam
inseridos nos grupos de decisões político-sociais, numa ação afirmativa
extremamente positiva para a sociedade.
REFERÊNCIAS
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Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu
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Acesso em: 15. ago. 2023.
267
Sistema de cotas nas eleições proporcionais: exame da (...)
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Justiça Eleitoral e dá outras providências. DJE-TSE, nº 142, de
27/07/2012, p. 11-13. Disponível em: www.tse.jus.br. Acesso em: 12. ago.
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BRASIL. Resolução nº 23.659, de 26 de outubro de 2021. Dispõe sobre a
Gestão do Cadastro Eleitoral e sobre os serviços eleitorais que lhe
são correlatos. DJE-TSE, nº 204, de 5/11/2021. Disponível em:
www.tse.jus.br. Acesso em: 18. Ago. 2023.
BRASIL. Decreto nº 7.612, de 17 de novembro de 2011. Institui o Plano
Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Plano Viver sem
Limites. Diário Oficial da União: 18.11.2011. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 18.ago. 2023.
BRASIL. Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008. Aprova o texto da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu
Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de
2007. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 18.ago. 2023.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF.
Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 02.jul. 2023.
BRASIL. Lei nº 9.504/97, com a redação que foi dada pela Lei nº 12.034/2009.
Estabelece Normas para as eleições. DOU de 1º/10/1997. Disponível
em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 8.ago.2023.
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eleitores-com deficiencia-cresceu-30-em-2022. Acesso em 20.ago.
2023.
269
Direito à informação da pessoa com TEA no âmbito do sistema
jurídico de proteção ao consumidor
Anderson Andrade de Araújo 1
Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira 2
1 INTRODUÇÃO
O conceito de deficiência vai além daquele tradicionalmente considerado
de caráter físico, mental, intelectual e sensorial. Conforme a Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (PNAD) cerca de 18,6 milhões de pessoas de 2 anos
ou mais de idade do Brasil (ou 8,9% desse grupo etário) tinham algum tipo de
deficiência 3.
As pessoas com TEA, enquanto potenciais consumidoras, constituem uma
fatia considerável do mercado, embora pouco valorizadas pelas empresas. Estas
precisam se amoldar nas adaptações e atenções necessárias às pessoas TEAs
na busca de inseri-las como efetivos consumidores através do direito à
informação e o livre exercício clara e consciente de vontade.
O objetivo deste artigo é analisar a situação das pessoas com TEA
enquanto consumidoras e seu direito à informação, considerando a sua
hipervulnerabilidade, indicando os pontos referentes aos seus direitos na relação
de consumo e essencialmente a efetiva garantia das informações claras e
adequadas nos termos do art. 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor
(CDC) 4.
Inicialmente pretende-se desenvolver a análise do conceito de deficiência
das pessoas com TEA à luz do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº
1
Mestrando em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo Centro Universitário de João Pessoa
(PPGD-UNIPÊ). Mestrando em Direito, Governança e Políticas Públicas pela Universidade
Salvador (UNIFACS). Pós-Graduação em Direito Administrativo e Gestão Pública pelo Centro
Universitário de João Pessoa (PPGD-UNIPÊ). Pós-Graduação em Direito Penal e Processual
Penal (Cruzeiro do Sul). Graduação em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa
(UNIPÊ). E-mail: [email protected].
2
Doutora em Direito, pela Universidade de Valencia-Espanha (diploma revalidado pela
Universidade Federal da Paraíba-UFPB); mestre em Direito Constitucional pela Universidade
Federal do Ceará (UFC); professora do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPE), em nível
de graduação e mestrado; professora titular da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-
mail: [email protected].
3
IBGE, 2023.
4
Brasil, 1990.
270
Anderson Andrade de Araújo & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
13.146/2015) e os desafios de sua inclusão no mercado de consumo. Na
sequência, abordar o conceito de hipervulnerabilidade e traçar uma concepção
de “consumidor autista” frente as barreiras físicas e atitudinais; e finalizar
analisando os instrumentos capazes de garantir o direito à informação do
consumidor TEA e assim garantir ‘acessibilidade’ no mercado consumerista.
O método utilizado é o da análise da legislação nacional e internacional
aplicável à proteção das pessoas com TEA, tanto do ponto de vista histórico
como crítica, além de ser uma pesquisa de documentação indireta, bibliográfica
e documental, a partir principalmente da literatura, sendo a abordagem sobre o
tema sobretudo qualitativa.
2 A PROTEÇÃO JURÍDICA DA PESSOA COM TEA: UMA ANÁLISE DO
CONCEITO DE DEFICIÊNCIA
Uma análise histórica do conceito de deficiência perpassa por diversos
momentos da antiguidade até a contemporaneidade, especialmente nas
sociedades de tipo ocidental. Não se pode considerar na historicidade da análise
da visão de deficiência como um movimento contínuo e homogêneo, partindo do
pressuposto de que cada sociedade enxergava e enxerga de forma própria, a
depender da cultura, religião, social, e condição econômica.
A luta incessante das pessoas com deficiência em busca de garantir o
exercício dos direitos fundamentais e consequentemente sua inserção social nos
termos da Constituição de 1988 adveio a duras penas com movimentos de cunho
civil, político e econômico. Outrora em que “portadoras de deficiência”,
“incapazes” e “inválidos” carregaram um forte peso de exclusão social e de
inferiorização, o estigma foi se descontruindo pela proteção da dignidade da
pessoa humana como nota distintiva de cada indivíduo.
A Convenção da Organização das Nações Unidas adotou a expressão
“pessoa com deficiência”, e que se partia da seguinte ordem: nothing about us
without us 5. O corolário desse tema aduz a ruptura das políticas públicas de
cunho tutelar e assistencialista, que impunham as pessoas com deficiência a
condição de coadjuvantes em questões que lhe diziam respeito diretamente 6.
5
Tradução nossa: “nada a nosso respeito sem a nossa participação”.
6
Ribeiro, 2012.
271
Direito à informação da pessoa com TEA no âmbito do sistema (...)
O desafio foi inserir no texto da Convenção da ONU a adoção do conceito
social de deficiência e dos princípios que os invocam. Introduzindo o conceito de
deficiência na letra “e” do Preâmbulo da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência com a disruptura do significado de origem 7.
Ao tempo que se percebe a evolução do conceito de deficiência no
contexto da dinâmica da sociedade, tem-se o olhar crítico para refutar as
barreiras físicas ou atitudinais impostas a tais pessoas. Existem os impedimentos
de caráter físico, mental, intelectual e sensorial que, no nosso sentir, são mais
voltados para atributos e peculiaridades do indivíduo do que propriamente
aspecto de deficiência 8. E o contraponto que se estabelece com as barreiras em
aspectos econômicos, culturais, tecnológicos, políticos, arquitetônicos,
comunicacionais, enfim, a maneira com a sociedade percebem aqueles
predicados. O que se percebe é que qualquer indivíduo cego, amputado,
deficiente intelectual, autista, com síndrome fogem dos padrões normais e por
isso devem ser isoladas ou afastadas na sociedade porque não é um problema
desta.
Dentro desse paradigma que se pretende romper atualmente. A evolução
do conceito de deficiência no sentido encampado pela Convenção da ONU traz
à tona os mecanismos criados pelas pessoas com deficiência no sentido de
comunicar-se, interagir-se, participar da vida social, tudo no sentido de transmitir
expressões legítimas da sua condição e absorvidas pela sociedade, para que as
barreiras impostas por esta sejam afastadas 9.
Portanto, a visão moderna de deficiência, não está atrelada às limitações
físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais – esses são atributos que são
equiparados a qualquer qualidade inerente à diversidade humana, como gênero,
7
Brasil, 2009: (...) a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da
interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que
impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas.
8
Brasil, 2012.
9
Brasil, 2009: Adaptação razoável” significa as modificações e os ajustes necessários e
adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada
caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade
de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais;
“Desenho universal” significa a concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a
serem usados, na maior medida possível, por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação
ou projeto específico. O “desenho universal” não excluirá as ajudas técnicas para grupos
específicos de pessoas com deficiência, quando necessárias
272
Anderson Andrade de Araújo & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
etnia, diversidade sexual – mas destes atributos com as barreiras socais, o que
pode-se chegar que a deficiência está na sociedade, desde que não se propicie
os meios para que estes atributos humanos não sejam acolhidos por políticas
públicas que viabilizem os conjuntos essenciais dos direitos humanos.
Dentro do estudo proposto, temos as pessoas com transtorno do espectro
autista (TEA). Para caracterizar o autismo estudos apontam que essa deficiência
é causada por várias etiologias genéticas e ambientais. Alguns estudos precoces
do sistema nervoso em desenvolvimento como prematuridade, complicações
perinatais, uso de drogas ou álcool na gestação também pode estar associados
ao autismo, como apontam Montenegro, Celeri e Casela 10.
O alcance da psiquiatria moderna para o diagnóstico e o estudo do
autismo deve-se primordialmente ao chamado Diagnostic and Statistical Manual
of Mental Disordes (DSM). Essa pesquisa é publicada desde 1952 pela
Associação Americana de Psiquiatria e em seu estudo tem como foco a
proposição de critérios que facilitam e uniformizam o diagnóstico de doenças
mentais. E pelos estudos o autismo está presente em várias edições do DSM, e
até a 4ª edição era subdividido em cinco condições separadas: 1. Transtorno
autístico; 2. Síndrome de Asperger; 3. Síndrome de Rett; 4. Transtorno
desintegrativo da infância; 5. Transtorno global ou invasivo do desenvolvimento
sem outra especificação 11.
Foi em 2013, que o DSM 5 (American Psychiatric Association) propôs uma
nova classificação onde o termo transtorno do espectro autista (TEA) foi sugerido
como termo único que inclui as várias condições anteriormente diagnosticadas
de forma separada. O DSM 5 também acrescentou especificadores para o TEA
(com ou sem comprometimento intelectual concomitante, com ou sem
comprometimento de linguagem concomitante; associado a alguma condição
médica ou genética conhecida; associado a outro transtorno do
neurodesenvolvimento, mental ou comportamental), bem como acrescentou os
10
Apesar dos grandes avanços científicos das últimas décadas, ainda não existe um marcador
biológico ou exames laboratoriais que confirmem o diagnóstico do autismo. Como na grande
maioria dos transtornos psiquiátricos, o diagnóstico é feito com base na observação clínica,
comportamental e mental do paciente (p. 2, 2018).
11
Montenegro; Celeri; Casela, 2018.
273
Direito à informação da pessoa com TEA no âmbito do sistema (...)
especificadores de gravidade (nível 1 – exigindo apoio; nível 2 – apoio
substancial e nível 3 – apoio muito substancial) 12.
Nessa esteira, o que se vislumbra é a mudança de paradigma social de
respeitar a pessoa com deficiência como pessoa, como sujeito integrante de uma
sociedade plúrima em aspectos linguísticos, culturais, étnico, religioso, com
ações afirmativas e inclusivas da sociedade e do Estado, e que são capazes de
permitir a participação plena e efetiva, em particular, os autistas, em igualdade
de condições com as demais pessoas, derrubando os muros do preconceito
dentro do contexto da relação consumerista.
3 ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O CONCEITO DE
HIPERVULNERABIDADE À LUZ DO CDC
Com a Declaração dos Direitos Universais do Homem em 1948, a
concepção dos direitos humanos foi ao encontro no reconhecimento da
indivisibilidade e da universalidade do direito do homem à igualdade, à liberdade,
independentemente da questão de orientação sexual, raça, religião e
deficiência 13. Os direitos humanos passaram a alicerçar princípios fundamentais
a serem respeitadas pelas nações, inclusive no Brasil. E a ideia de que todo ser
humano tem seu valor e de que cada um é livre para traçar sua trajetória em
busca da felicidade pessoal coaduna com a perspectiva dos direitos humanos
contemporâneos. E que todos nós temos diferenças e estas como elementos de
coesão social 14.
Foi assim que o Brasil, com a nova ordem política e jurídica de garantia
de direitos e oportunidades às pessoas com deficiência, a chamada Constituição
Cidadã de 1988, se alicerçou em dispositivos constitucionais e
infraconstitucionais para salvaguardar direitos fundamentais, como por exemplo,
inclusão educacional nas redes de ensino, passe livre em transporte público,
cotas nas universidades e concursos públicos, direito à informação na relação
de consumo, acessibilidade em lugares públicos e privados, entre outros.
Como o foco é analisar os direitos da pessoa com TEA na relação de
consumo à luz do direito à informação, não aprofundaremos a ratificação da
12
American Psychiatric Association, 2013.
13
Raiol, 2012.
14
Cruz, 2009.
274
Anderson Andrade de Araújo & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu
protocolo facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007,
promulgado através do Decreto n° 6.949/09. No entanto, a normativa da
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência tem
status constitucional, agregando-se ao bloco de constitucionalidade,
determinando o conjunto de regras e princípios basilares para a estruturação de
um direito garantidor para as pessoas com deficiência no Brasil.
Na questão proposta nesse artigo, importante elevar o debate da vigência
do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a Lei nº 13.146 de 06 de julho de 2015,
com destaque previsto em seu artigo 1º: ao reconhecer que as pessoas com
deficiência têm direito, em condições de igualdade, ao exercício dos direitos e
das liberdades fundamentais, nelas incluídas as pessoas com TEA, com padrão
de vida adequado, visando sua inclusão social e cidadania. A Lei condiciona a
deficiência aos impedimentos de funções e nas estruturas do corpo; nos fatores
socioambientais, psicológicos e pessoais; na limitação no desempenho de
atividades; e na restrição de participação 15.
Em diálogo com a Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, que instituiu
a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do
Espectro Autista (TEA), na qual caracteriza a pessoa com TEA a portadora de
síndrome clínica, nos traz o tom do debate ora em questão na relação de
consumo. Essas mudanças foram fundamentais para apoiar o rol de proteção de
um padrão de vida adequado ao público autista e outros atendimentos
diferenciados no cotidiano desse público em potencial, especialmente quando se
trata de aquisição de bens e serviços de consumo no sentido de maior autonomia
e independência: na aquisição de alimentos em praças de alimentação, compra
de vestuário ou brinquedos em lojas físicas e virtuais, atendimento em
prestadores de serviços como barbeiro e manicure, e outros. Na
contemporaneidade, várias relações advindas dos serviços contratados e/ou
produtos adquiridos pelos consumidores com TEA passaram a ser tuteladas
também pelo Código de Defesa do Consumidor, embora incipiente a percepção
da inclusão do “consumidor em potencial” pelas mídias sociais no mercado
consumerista.
15
Brasil, 2015.
275
Direito à informação da pessoa com TEA no âmbito do sistema (...)
A concepção de “consumidor autista” é um destaque significativo dentro
do conceito de “consumidor comum” frente as barreiras não só físicas e
discriminatórias, mas a falta de qualificação dos empreendedores e prestadores
de serviço no mercado de consumo, seja a venda de um produto ou oferecimento
de serviços àqueles que, por características singulares, requerem uma
abordagem de linguagem, tempo de atendimento diferenciado e espaço físico
planejado no padrão capaz de proporcionar comodidade e inclusão social
àqueles considerados deficientes na concepção da Lei.
O CDC dispôs em seu art. 2º o conceito de consumidor ao tempo em que
a Carta Magna de 1988, em seus artigos 5º, XXXII, e 170, V, regulamentou o
CDC a adequação dos produtos e serviços no mercado, e trouxe o viés legal da
qualidade, que se expressa no atendimento às necessidades e na realização das
expectativas do consumidor TEA 16. Nesse prisma, a vulnerabilidade do
consumidor também se expressa na falta de informação. Esse ponto coaduna
com as exageradas reclamações nos órgãos de proteção ao consumidor
atribuídas à quebra de confiança de informações adequadas e claras sobre os
produtos e serviços 17. Ponto que será tratado no tópico seguinte do artigo.
Um subgrupo dos consumidores vulneráveis foi identificado dentro da
relação consumerista frente à existência de uma categoria socialmente
descoberta e invisível conforme o excerto do julgado no Superior Tribunal de
Justiça: “A categoria ético-política, e jurídica, dos sujeitos vulneráveis inclui um
subgrupo de sujeitos hipervulneráveis, entre os quais se destacam, por razões
óbvias, as pessoas com deficiência física, sensorial ou mental” 18. A tese
encampada pelo Ministro Herman Benjamin eleva os autistas a um segmento da
sociedade civil com um plus de vulnerabilidade em contrapartida ao consumidor
comum. A questão da vulnerabilidade, a depender do grau de comprometimento
do transtorno, deve ser vista como peculiar e, por conseguinte, compreendendo
ser uma característica merecedora de proteção especial nas relações jurídicas
e sociais, diga-se hipervulnerável 19.
16
Brasil, 1990; 1988.
17
PROCON-SP, 2023
18
Brasil, 2009.
19
Marques, Miragem, 2012.
276
Anderson Andrade de Araújo & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
A taxatividade de hipervulnerável ao consumidor com TEA se perfaz frente
à situação social de fato e objetiva na qual a vulnerabilidade é agravada no caso
de ser um consumidor em condições pessoais aparentes ou de contexto social
que apresenta dificuldade em estabelecer diálogo, em interação social, pouco
contato visual, não demonstra emoções, com deficiência intelectual, ou seja,
características físico-psíquicas que afetam diretamente a relação de consumo.
Nesse prisma, Porto 20 entende que o termo “vulnerabilidade” se encontra
sustentáculo no desequilíbrio, na submissão passiva da relação, ou seja, o
consumidor fragilizado frente à supremacia técnica, jurídica, informacional,
assim, se submete às condições obrigadas pelo fornecedor como meio de
satisfazer seus desejos. E o prefixo hiper deriva do grego hypér, que significa
alto grau ou que excede ao normal, e que acostada à palavra “vulnerabilidade”
somatiza os limites do que se considera a fragilidade de algo ou alguém.
Em que pese os argumentos, deve-se desvencilhar a hipervulnerabilidade
como obstáculo para a inclusão social. E nas palavras de Gabriel Schulman 21 “A
deficiência é um atributo da pessoa; as limitações decorrem do meio e das
oportunidades que não são oferecidas”. A conjugação dos termos
(hipervulnerabilidade, capacidade, autismo) deve ser feita para suprir as
necessidades reais desse público em potencial, facilitando as relações sociais e
consumeristas, em especial os autistas viabilizando a liberdade, independência,
iniciativa, paridade e semelhança a todos os indivíduos.
3.1 SISTEMA JURÍDICO CONSUMERISTA E O DIREITO À INFORMAÇÃO AS
PESSOAS COM TEA
A fatia dos potenciais consumidores TEA no mercado de consumo trouxe
à discussão como eles devem ser protegidos pelo CDC à luz do direito à
informação. Segundo os dados da PNAD Continua 2022 22, 5,1 milhões de
pessoas com deficiência estavam na força de trabalho e a Região Centro-Oeste
registrou o maior percentual de pessoas com deficiência (35%,7), com as
Regiões Norte (35,1%), Sul (29,6%), Sudeste (28,5) e Nordeste (26,8%).
20
Porto, 2016.
21
Schulman, 2020.
22
IBGE, 2023.
277
Direito à informação da pessoa com TEA no âmbito do sistema (...)
A primeira premissa a considerar nesse aspecto é que os consumidores
com TEA são consumidores, segundo dispõe o art. 2º do Código, pelo fato de
adquirir ou utilizar produto ou serviços como destinatário final. A segunda
premissa é a de que pelo fato de o consumidor não ter o controle sobre os bens
e serviços dispostos ao consumo e considerando o princípio da vulnerabilidade
e da necessidade de defesa do consumidor (arts. 5º, XXXII, e 170, V, da
Constituição Federal) é que o legislador regulamentou no CDC a adequação de
produtos e serviços disponíveis no mercado à luz do direito à informação, ao
tempo, como abordamos considerado como hipervulnerável.
A preocupação do legislador em garantir o direito à informação ao
consumidor vulnerável é clara e descrita no art. 6º, III, do CDC. E reforçada
quando o diploma taxativamente reconhece essa vulnerabilidade nos termos do
art. 4, I, CDC. Essa proteção do consumidor veio do princípio constitucional da
isonomia, no qual os desiguais devem ser tratados como desiguais na proporção
das desigualdades 23.
Exsurge o questionamento: os consumidores com TEA são protegidos no
seu direito informacional de adquirir os produtos e serviços de forma mais
inclusiva possível? A proteção qualificada desses potenciais consumidores exige
uma adaptação da relação entre vendedores e prestadores de serviço, como por
exemplo, acessibilidade física e de informação e treinamento do corpo de
funcionários para a temática autista e barreiras atitudinais.
No primeiro momento precisamos entender a essência do que significa
informação. Essa palavra recebe diferentes definições a depender do contexto
que é explorada. Etimologicamente, o termo “informação” vem do latim
informare, que significa dar forma. Segundo o autor Alain Rey, em seu Dicionário
histórico da Língua Francesa, em seu sentido mais usual, seria: “A informação
que trazemos ao conhecimento de um público [...]; elemento ou sistema que
pode ser transmitido por um sinal ou uma combinação de sinais. Assim, não há
informação sem comunicação” 24.
Dessa premissa a palavra “informação” - longe de aprofundar o seu
conceito, evolução e teorias a ela relacionadas no artigo – ecoa como dados que
contém significados, no momento que são assimilados pelo receptor. Também
23
Lisboa, 2012.
24
Rey; Tomi; Tanet; Hordé, 2010.
278
Anderson Andrade de Araújo & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
no sentido que são ideias do saber; e do ponto de vista da comunicação é aquilo
que se transmite. Na visão de BALTZ 25 a informação foi dividida em três
categorias: a transmissão, no sentido que uma imagem de transporte se
movimente para falar de informação e comunicação. Um conteúdo, ou seja, por
que motivos essa informação pode ter um interesse atual, potencial, real e
imaginário. E finalmente as práticas, ou seja, em considerações a todas as
intervenções humanas ou sociais, que condicionam ou acompanham as
“transmissões” ou os “conteúdos” em todas as formas.
Chega-se em linhas gerais que a informação é a emissão, recepção,
criação, e a transmissão de sinais orais ou escritos, sonoros, visuais ou
audiovisuais para a divulgação e comunicação de ideias, fatos, conhecimentos
e análises, por um indivíduo ou grupo de indivíduos agindo e retroagindo em seu
ambiente imediato ou distante; e cujo objetivo é desencadear processos
políticos-econômicos-sociais.
No contexto do consumo cotidiano pelos TEAs, seja em aquisição de
produtos em lojas físicas e virtuais, seja prestadores de serviços como barbeiros,
coaching, academias, por exemplo, dentro da perspectiva de direito à informação
adequada e clara desses produtos e serviços demonstra que efetivamente não
cumpre os direitos básicos desse público, seja pela ausência de ambiente
apropriado, bem como maneiras alternativas de comunicação para que a pessoa
se expresse por escrito, por imagem ou sinais próprios de comunicação, manter
tom de voz baixo e amigável com atenção que ela mereça, buscar alternativas
lúdicas para especificar na aquisição do bem ou prestação do serviço as
especificações corretas de quantidade, características, composição, qualidade,
ou seja, aquilo que for imprescindível para transmitir o máximo de informação
possível e receber a vontade do consumidor atípico de forma autônoma e
pessoal.
Uma perspectiva que visualizamos como possível, no contexto do CDC,
é a disponibilização da linguagem simbólica com os produtos dispostos, os
valores e características e especificações relevantes bem destacados em
painéis físicos ou digitais, como pictogramas universais já utilizados pelo TEAs
em clínicas ou ambientes públicos, para facilitar a previsibilidade e/ou
25
Baltez, 1995.
279
Direito à informação da pessoa com TEA no âmbito do sistema (...)
compreensão do contexto em que eles estão, encontrando-se como suporte
necessário para concretização do direito básico do consumidor de informação e
assim garantir acessibilidade desse público invisível no mercado consumerista.
Na seara consumerista, o direito à informação das pessoas TEAs só será
efetivamente resguardado se esses potenciais consumidores hipervulneráveis
puderem ser tratados como deficientes não pela condição em si de atípicos, mas
pela possibilidade de dar maior autonomia e resguardar sua vontade no
momento da escolher o produto ou serviço, e assim garantir a dignidade e
respeito dos desiguais na medida de suas desigualdades.
Portanto, criar o ambiente ideal entre empresários/empresas e
prestadores de serviço e os consumidores TEAs nessa relação significa
vantagens para todas as partes envolvidas, já que estamos falando
consumidores invisíveis e que devem ser tratadas como clientes em potencial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da abordagem ora exposta, entendemos que os TEAs são consumidores
invisíveis e hipervulneráveis na relação de consumo, e que o CDC, no seu art.
6º, VI, garante o direito à informação como instrumento de propiciar a igualdade
e garantir a inclusão desses deficientes na relação de consumo.
Os resultados em nossas pesquisas demonstram que a invisibilidade dos
consumidores TEAs é evidente inclusive nas estatísticas de órgãos de proteção
ao consumidor e as ferramentas utilizadas pelas empresas e fornecedores de
serviços na questão do direito à informação de forma clara e adequada,
respeitando o que disciplina o CDC.
Assim, os recursos de linguagem simbólica, como por exemplo,
pictogramas universais utilizados pelo público TEA de forma digital ou física, é
uma ferramenta possível para facilitar a informação clara e adequada no âmbito
na relação de consumo e assim garantir a inclusão social dos TEAs na
sociedade. É a forma útil de se reconhecer os TEAs no exercício de seus direitos
como cidadãos no âmbito de consumo e efetivamente possibilitar igualdade de
oportunidades com as demais pessoas, e propiciar às condições necessárias
para a plena e independência fruição de sus potencialidades e do convívio social.
280
Anderson Andrade de Araújo & Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira
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282
As empresas e os direitos humanos: em busca de elementos
estruturantes para a proteção da dignidade da pessoa 1
Wilson Engelmann 2
Raquel Von Hohendorff 3
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Tradicionalmente, as empresas ou organizações empresariais foram
constituídas para garantir a obtenção do lucro dos seus sócios, que apresentam
a responsabilidade pelo desenvolvimento do negócio, devendo suportar eventual
prejuízo da operação. No entanto, mais recentemente foi juridicizada a chamada
“função social da empresa”, estruturada na chamada “responsabilidade social
empresarial”. Portanto, o objetivo principal deste artigo é estudar esse cenário,
a fim de se compreender o papel social atual das organizações empresariais. Se
fará uso da pesquisa bibliográfica e documental, buscando estruturar algumas
alternativas para responder ao seguinte problema de pesquisa: sob quais
condições jurídico-sociais as organizações empresariais passaram a ter
responsabilidade social no desenvolvimento do seu negócio e perspectivado no
respeito à dignidade da pessoa humana dos seus empregados e todas as
demais partes interessadas? Para responder a esse problema da investigação,
se partirá das contribuições trazidas por John Gerard Ruggie, Raj Sisodia e
Michael J. Gelb, sem se excluir outros autores, além de documentos
1
Este trabalho é o resultado parcial das pesquisas realizadas pelos autores no âmbito dos
seguintes projetos de pesquisa: a) Chamada CNPq n. 09/2020 - Bolsas de Produtividade em
Pesquisa - PQ, projeto intitulado: “Percursos para ressignificar a Teoria Geral das Fontes do
Direito: o Sandbox regulatório como um elemento estruturante da comunicação reticular entre o
Direito e as nanotecnologias”; b) “Sistema do Direito, novas tecnologias, globalização e o
constitucionalismo contemporâneo: desafios e perspectivas”, Edital FAPERGS/CAPES 06/2018
- Programa de Internacionalização da Pós-Graduação no RS. Este trabalho também está
vinculado às pesquisas realizadas pelos autores nos seguintes Centros Internacionais de
Investigação: CEDIS - Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade, da
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Portugal; Instituto Jurídico Portucalense,
da Universidade Portucalense, cidade do Porto, Portugal; CEAD - Centro Francisco Suárez -
Centro de Estudos Avançados em Direito da Universidade Lusófona de Lisboa, Portugal e do
Centro de Estudios de Seguridad (CESEG) da Universidade de Santiago de Compostela,
Espanha.
2
Doutor em Direito Público, Professor e pesquisador da Escola de Direito da UNISINOS, Brasil,
e-mail: [email protected]; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0012-3559.
3
Doutora em Direito Público, Professora e pesquisadora da Escola de Direito da UNISINOS,
Brasil, e-mail: [email protected]; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7543-2412.
283
As empresas e os direitos humanos: em busca de elementos (...)
internacionais, como aqueles elaborados pela ISO. O próprio conceito de
sustentabilidade se enlaça nessa função social das organizações empresariais,
abrindo-se um rico espaço para que elas possam contribuir efetivamente para
que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável do Milênio da ONU, possam
ser efetivamente alcançados.
AS ORGANIZAÇÕES EMPRESARIAIS NO CONTEXTO DA GRANDE
TRANSIÇÃO
Se está vivendo um ponto de inflexão, no qual os negócios precisam
assumir a responsabilidade de “curar as crises de nosso tempo”. Todos os
negócios devem se transformar em negócios de impacto socioambiental positivo.
As políticas públicas e/ou a sociedade civil organizada não conseguirão sozinhas
acelerar as boas transformações de que o mundo precisa. 4 Se tem, com esse
contexto, novos elementos estruturantes para construir mecanismos de proteção
e fortalecimento da dignidade da pessoa humana.
Parafraseando o tema de uma recente publicação de Bruno Latour e
Nikolaj Schultz 5, se observa a necessidade da criação de uma consciência de
que o Estado não conseguirá dar conta sozinho dos desafios urgentes da nossa
época. A perspectiva ecológica está cruzada pela política, que nem sempre
busca o bem de todos e para todos. Muitas vezes interesses geopolíticos e
econômicos acabam falando mais alto.
Para que se possa alcançar uma parte da “consciência ecológica”,
preocupada com a prática de medidas para uma harmonia na convivência
humana com o meio ambiente, que é a base para qualquer medida de transição,
se deverá “governar o mundo sem governo mundial”, conforme explora Roberto
Mangabeira Unger. 6 Será preciso adotar uma “linguagem de garantias mútuas”
aproximando as diversas partes interessadas em uma efetiva governança global,
ao invés de se ter um “governo mundial” que possa gerar a “classe ecológica,
4
SISODIA, Raj; GELB, Michael J. Empresas que curam: despertando a consciência dos
negócios para ajudar a salvar o mundo. São Paulo: Alta Books, 2020. (Formato Kindle).
5
LATOUR, Bruno; SCHULTZ, Nikolaj. Memorando sobre a nova classe ecológica. Tradução de
Monica Stahel. Petrópilis, RJ: Vozes, 2023.
6
UNGER, Roberto Mangabeira. Governar o mundo sem governo mundial. Tradução de Paulo
Geiger. São Paulo: LeYa Brasil, 2022.
284
Wilson Engelmann & Raquel Von Hohendorff
consciente e segura de si” 7, alicerçada na preservação da paz e na confiança
recíproca. Para tanto, se faz necessária a busca por “uma produção sustentável”,
alicerçada em uma “economia do conhecimento”. Segundo Mangabeira Unger,
para que se possa ter o suporte jurídico desse “governo mundial”, seria
necessário acreditar mais nos contratos, que seriam sempre “contratos
incompletos”, que pressupõem um fundo de regras-padrão, que poderiam ser as
normas ISO ou princípios globalmente aceitos, por exemplo, no tocante aos
direitos humanos. Os fluxos desse arcabouço jurídico se desenvolveriam em
redes. As coalizões produzidas nessa tessitura jurídica “produzem algo que é
mais do que contrato, porém menos do que Direito: poderíamos chamá-lo de
protodireito”. 8 O movimento cruzado produzido pelas interconexões reticulares,
pode ser assim explicado: “quando entendimentos e regras desenvolvidos em
algumas dessas redes são ecoados por regras e entendimentos gerados em
muitas outras, o protodireito começa a se tornar Direito: não um Direito imposto
por governo mundial, mas Direito criado de baixo para cima pela sociedade de
Estados e de nações”. 9 Nessa estrutura se deverá inserir as organizações
empresariais, que dividem as relações de variadas matizes no mundo
globalizado.
O guia para essa renovada caminhada, onde se mesclam os atores
públicos e privados, poderá ser o Direito Natural, suporte histórico e tradicional
dos chamados Direitos Humanos. No entanto, aqui cabe assumir o alerta de
Mangabeira Unger: “não [se] deve tentar impor ao resto do mundo, em nome de
liberdade de direitos humanos, as instituições políticas e econômicas dos países
ricos do Atlântico Norte”. 10 Outro balizador para se trabalhar com a noção de
direitos humanos: “[...] tampouco deve permitir um ataque à livre atuação de
indivíduos - o direito de ser diferente na comunidade, na fé e na família, de
expressar e disseminar ideias, de participar numa competição de forças políticas
e sociais, de estar seguro contra qualquer forma de coação - política, econômica
7
LATOUR, Bruno; SCHULTZ, Nikolaj. Memorando sobre a nova classe ecológica. Tradução de
Monica Stahel. Petrópilis, RJ: Vozes, 2023.
8
UNGER, Roberto Mangabeira. Governar o mundo sem governo mundial. Tradução de Paulo
Geiger. São Paulo: LeYa Brasil, 2022. p. 48. O grifo não está no original.
9
UNGER, Roberto Mangabeira. Governar o mundo sem governo mundial. Tradução de Paulo
Geiger. São Paulo: LeYa Brasil, 2022. p. 48. O grifo não está no original.
10
UNGER, Roberto Mangabeira. Governar o mundo sem governo mundial. Tradução de Paulo
Geiger. São Paulo: LeYa Brasil, 2022. p. 61.
285
As empresas e os direitos humanos: em busca de elementos (...)
ou cultural subversiva daquele poder - a pretexto de inovação e divergência
institucional”. 11 A utilização dos direitos humanos, sustentados pela amálgama
histórica gerada pelo Direito Natural, deverá ser ladeada por essas duas
perspectivas inclusivas e de igualdade, a fim de salvaguardar os bens públicos
comuns e globais, dentre os quais se destaca o meio ambiente 12 e a dignidade
da pessoa humana.
Na conjugação de esforços de atores públicos e privados, se estrutura a
chamada “grande transição” 13, onde as organizações empresariais terão um
papel muito importante, a partir de seis “portas” estruturantes:
“OIKOS: é a porta para o diagnóstico do nosso local de habitação, o planeta
Terra. Através da utilização das chamadas ciências duras, é possível
compreender como as pessoas vivem na sua casa comum, os riscos futuros e
os já existentes ligados às convulsões ecológicas em curso. Oferece caminhos
para pensar sobre a lição de preservar os recursos que estão a esgotar-se e de
habitar a Terra espacial e politicamente.
ETHOS: convida a questionar os valores e princípios éticos e morais sobre os
quais se quer basear as nossas instituições e as nossas vidas coletivas, abrindo
campo à organização de uma sociedade desejável que leve em consideração
todos os seres, humanos e não-humanos, respeitando os limites planetários.
NOMOS: centra-se nos instrumentos de medição e avaliação, regras e modelos
de governança mais relevantes a serem implementados no atual contexto de
emergência ecológica. Como se pode repensar os padrões, a economia e as
organizações para que sejam mais sustentáveis e mais unidas? Quais são as
condições para uma democracia ecológica?
11
UNGER, Roberto Mangabeira. Governar o mundo sem governo mundial. Tradução de Paulo
Geiger. São Paulo: LeYa Brasil, 2022. p. 61.
12
As questões ambientais devem receber a atenção dos atores privados, especialmente as
organizações empresariais, pois uma investigação de pesquisadores da University of Exeter
destacou a crescente ameaça de “pontos de inflexão” que poderão acelerar a crise climática. Os
seguintes pontos já estão atingindo o seu limite de não retorno: corais de águas quentes, manto
de gelo da Groenlândia, manto de gelo da Antártida Ocidental, Permafrost - solo congelado do
Ártico e a circulação do Atlântico Norte. TIPPING POINTS. Disponível em:
https://www.exeter.ac.uk/research/tippingpoints/. Acesso em 10 dez. 2023.
13
BEAU, Rémi; COURNIL, Christel; MARTIN-CHENUT, Kathia; PERRUSO, Camila; PIERRON,
Jean-Philippe; RENOUARD, Cécile; SCHMID, Lucile. Petits manuels de la grande transition.
Paris: Les Liens Libèrent, 2023.
286
Wilson Engelmann & Raquel Von Hohendorff
LOGOS: aborda a Grande Transição através da linguagem, do discurso e da
imaginação que prejudicam a representação coletiva da crise atual e da transição
a ser feita. Abre caminhos de reflexão para reconstruir a imaginação e histórias
coletivas, reabilitando diferentes tipos de racionalidades que alimentam a
sensibilidade do mundo que nos rodeia.
PRÁXIS: estabelece a porta de entrada para a ação, detalhando o espectro de
diferentes escalas e diferentes modos de ação possíveis para enfrentar
concretamente os desafios da grande transição.
DYNAMIS: convida a reconectar cada pessoa consigo mesmo, com os outros e
com o ambiente para compreender o que cada um poderá contribuir, além de dar
sentido à transição que se deve implementar”. 14
Esses seis direcionadores pontuais (ou “portas”) conduzem a grande
transição que se faz urgente e necessária, especialmente para conter as
“convulsões ecológicas em curso”, poderão ser potencializados pelos pontos de
viragem positivos que estão a trazer mudanças à crise climática. Vale dizer, os
pesquisadores da University of Exeter também estão identificando fontes de
esperança: Pontos de Virada Positivos identificados em diversas áreas - desde
a agricultura e a regeneração de ecossistemas até à política e à opinião pública.
Alguns Pontos de Virada Positivos já estão em andamento. Outros ainda serão
acionados. Compreender essas áreas e trabalhar para identificar as
oportunidades permitirão ativar os Pontos de Virada e se combinando em
cascatas de mudanças positivas. 15 Portanto, a conjugação dos mencionados
ingredientes da chamada “grande transição” são potencializados pelos “Pontos
de Virada Positivos”. Um dos atores que poderá potencializar os aspectos
positivos que emergem desse cruzamento são as organizações empresariais.
Elas terão um papel central, dando vida à sua função social, ou seja, uma
simbiose entre os interesses privados - como a obtenção do lucro dos seus
associados - e os interesses públicos - satisfazendo os interesses das partes
interessadas e contribuindo para a implementação de um meio ambiente
14
BEAU, Rémi; COURNIL, Christel; MARTIN-CHENUT, Kathia; PERRUSO, Camila; PIERRON,
Jean-Philippe; RENOUARD, Cécile; SCHMID, Lucile. Petits manuels de la grande transition.
Paris: Les Liens Libèrent, 2023.
15
TIPPING POINTS. Disponível em: https://www.exeter.ac.uk/research/tippingpoints/. Acesso
em 10 dez. 2023.
287
As empresas e os direitos humanos: em busca de elementos (...)
equilibrado - aqui entendido não apenas no seu sentido estrito do ambiente, mas
também das faces sociais e políticas do espaço de sua atuação.
OS DIREITOS HUMANOS COMO ELEMENTO ESTRUTURANTE DO DIREITO
QUE SUSTENTA A AUTORREGULAÇÃO REGULADA
Nessa satisfação da função social, a organização empresarial deverá
colocar no centro de sua atuação - as pessoas, e dessa centralidade do ser
humano estará contribuindo para a consolidação dos elementos estruturantes da
dignidade da pessoa - seja dos sócios, dos trabalhadores, dos fornecedores e
todas as demais pessoas que vivem no entorno da organização e dela
dependem de alguma forma. As organizações empresariais ou as empresas,
representam “[...] uma realidade complexa: o capital e os seus ativos, a marca,
tecnologia, a estrutura de governo [e governança], uma ‘máquina’ de produzir,
vender e ganhar, um conjunto de tarefas que precisa executar [...]. Porém, em
sua realidade mais profunda, é uma comunidade de pessoas [...]”. 16 A
centralidade empresarial das pessoas aponta para a sua função social, que pode
ser sustentada em três razões: a) a dignidade da pessoa humana de todos os
seres humanos que contribuem de alguma forma para o êxito dos objetivos
sociais da organização; b) o que a pessoa dá para a organização, que seja a
força do seu trabalho, o seu conhecimento, experiências e outras contribuições
humanas, algumas legalmente definidas no contrato de trabalho, por exemplo,
mas outras, sequer previstas em algum documento, mas integrantes da doação
sócio-moral das pessoas vinculadas a uma organização empresarial; c) O que a
pessoa recebe, como o seu salário, caso seja empregado, ou conhecimentos,
desenvolve capacidades, estabelece relações e outras marcas (“huellas”) que a
atividade com a organização empresarial poderão deixar nas pessoas. 17 Isso
autoriza referir que as relações jurídicas e sociais que se estabelecem entre as
partes interessadas e uma ou mais organizações empresariais se encontram
sustentadas em um “sistema de cooperação”. Com esses dois aspectos, se
busca atingir objetivos comuns, que podem ser as imbricações destacadas pelos
16
ARGANDOÑA RÁMIZ, Antonio. La empresa, una comunidad de personas: cultura empresarial
para un tiempo nuevo. Barcelona: Plataforma Editorial, 2021. p. 23. O grifo está no original.
17
Adaptado a partir de: ARGANDOÑA RÁMIZ, Antonio. La empresa, una comunidad de
personas: cultura empresarial para un tiempo nuevo. Barcelona: Plataforma Editorial, 2021. p.
27-28.
288
Wilson Engelmann & Raquel Von Hohendorff
elementos que compõem a “grande transição” e os “pontos de virada positivos”,
orientados pela consolidação dos direitos humanos, principalmente na
concreção dos “bens humanos básicos” trazidos por John Finnis 18 e a construção
das estruturas do desenvolvimento sustentável, ou seja, da sustentabilidade das
operações das organizações empresariais. Esses bens humanos básicos são
pequenas - mas elementos estruturantes fundamentais - partes que compõem a
chamada dignidade da pessoa humana. Portanto, as organizações empresariais
devem estar completamente comprometidas na sua prática com a
sustentabilidade das suas operações. Não apenas o chamado “desenvolvimento
sustentável”, mas o “desenvolvimento permanente”, onde a sustentabilidade
está umbilicalmente inserida. Isso mostra a importância de se passar para a fase
2 da sustentabilidade, ou seja, “[...] aquela em que os primeiros efeitos da nova
abordagem começam a ser sentidos, para confirmar as ações ou adotar
correções no percurso [aqui ingressam os ‘pontos de virada positivos’,
sinalizando que a ‘grande transição’ já iniciou]. Parece que se observa uma
consciência ampliada [a chamada ‘classe ecológica’], destacando que as ações
sustentáveis se tornaram inevitáveis. As empresas precisam assumir a
responsabilidade nesse percurso”. 19 Todo esse conjunto de componentes que
precisam interagir e atravessar as operações no sentido amplo das organizações
empresariais, acabam repercutindo na composição dos seus códigos internos de
conduta. 20 Esses códigos sinalizam uma renovada contribuição desses atores
privados na estruturação do Direito que não depende diretamente da atuação do
Poder Legislativo, mas abrem a produção do jurídico a atores que estão
diretamente implicados na sustentabilidade de suas operações, a saber, as
organizações empresariais.
18
“Como o conhecimento (incluindo a apreciação estética) da realidade; desempenho hábil, no
trabalho e no lazer, por si mesmo; vida corporal e os componentes de sua plenitude, mantidos
em saúde, vigor e segurança, e transmitidos aos novos seres humanos; amizade ou harmonia e
associação entre pessoas em suas várias formas e pontos fortes; bem da harmonia entre os
sentimentos e os julgamentos (integridade interior) e entre os julgamentos e os comportamentos
(autenticidade), que podemos chamar de razoabilidade prática; harmonia com os alcances mais
amplos e a fonte última de toda a realidade, incluindo significado e valor.” (FINNIS, John Mitchell.
Natural law and natural rights. Second edition. Oxford: Oxford University Press, 2011).
19
INIZIA LA SOSTENIBILITÀ 2.0. Special report. Milano, Business People, gennaio-febbraio
2023, p. 28 e seguintes.
20
HERBERG, Martin. Global legal pluralism and interlegality: environmental self-regulation in
multinational enterprises as global law-making. In DILLING, Olaf; HERBERG, Martin; WINTER,
Gerd. Responsible business: self-governance and law in transitional economic transations.
Oxford: Hart Publishing. Oñati International Series in Law and Society, 2008, p. 17-40.
289
As empresas e os direitos humanos: em busca de elementos (...)
A legitimidade desse novo processo de construção do jurídico, no contexto
de uma renovada constituição do diálogo entre as fontes do Direito, promovendo
uma “densificação normativa” 21 e a participação de atores privados, como as
organizações empresariais, se operacionaliza pela ligação histórica observada a
partir das lutas humanas pela definição dos “direitos naturais”, que fortaleceram
a busca pelos “direitos humanos”. Essa mescla da tradição de lutas do ser
humano por reconhecimento de aspectos essenciais da humanidade do humano
desemboca e forja, nas Constituições modernas, os “direitos fundamentais”.
Portanto, existe uma vinculação de proximidade entre essas categorias
conceituais, que se distinguem apenas nos espaços geográficos onde se pode
e deve exigir o seu respeito e cumprimento: o interno, para os direitos
fundamentais e, o externo, para os direitos humanos. O “constitucionalismo
organizacional” 22 busca fortalecer os direitos fundamentais, a partir do momento
em que estrutura mecanismos para o reconhecimento, a proteção e a
remediação dos direitos humanos (nas categorias colhidas de John Gerard
Ruggie 23, que refere as seguintes: “proteger”, “respeitar” e “remediar”).
Essas três diretrizes fundamentais orientadoras baseiam-se no
reconhecimento de que: (a) os Estados 24 têm a obrigação de respeitar, proteger
e cumprir os direitos humanos e liberdades fundamentais. Além do Estado,
também é colocado no cenário [...] (b) o papel das empresas como organizações
especializadas da sociedade, desempenhando funções determinadas,
necessárias para cumprir todas as normas jurídicas aplicáveis e respeitar os
direitos humanos. A partir daí, nasce (c) a necessidade de que os direitos e
21
CURRAN, Vivian Grosswald; MARTIN-CHENUT, Kathia. Les processus de responsabilisation.
In DELMAS-MARTY, Mireille; MARTIN-CHENUT, Kathia; PERRUSO, Camila. Sur les chemins
d’un ‘jus commune’ universalisable. Paris: Mare & Martin, 2021.
22
ENGELMANN, Wilson. O constitucionalismo organizacional no cenário do sistema jurídico
global e digitalizado. Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica [recurso eletrônico]: Anuário
do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, n. 19. Organizadores: VICHINKESKI
TEIXEIRA, Anderson; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo. Blumenau, SC: Editora
Dom Modesto, 2023. p. 337-348.
23
RUGGIE, John Gerard. Quando negócios não são apenas negócios: as corporações
multinacionais e os direitos humanos. Tradução de Isabel Murray. São Paulo: Planeta
sustentável, 2014. (Documento consultado em formato Kindle).
24
Os Estados devem adotar “obrigações positivas”, promovendo a chamada “horizontalização
dos direitos humanos” (CURRAN, Vivian Grosswald; MARTIN-CHENUT, Kathia. Les processus
de responsabilisation. In DELMAS-MARTY, Mireille; MARTIN-CHENUT, Kathia; PERRUSO,
Camila. Sur les chemins d’un ‘jus commune’ universalisable. Paris: Mare & Martin, 2021. p. 350-
352).
290
Wilson Engelmann & Raquel Von Hohendorff
obrigações sejam correspondidos a soluções (se aproximando de “sanções”)
apropriadas e eficazes quando violados. 25 Se observa que aqui se tem a
integração entre o Estado e os atores privados, que caracterizam o
“constitucionalismo organizacional”. A incorporação dessas três diretrizes dará
legitimidade para as “arquiteturas autorregulatórias reguladas” que as
organizações empresariais nacionais e transnacionais, principalmente as
últimas, vierem a estruturar. A partir dessas três diretrizes fundamentais, foram
desenvolvidos 31 princípios 26 para a aplicação de cada um dos elementos do
25
RUGGIE, John Gerard. Quando negócios não são apenas negócios: as corporações
multinacionais e os direitos humanos. Tradução de Isabel Murray. São Paulo: Planeta
sustentável, 2014. (Documento consultado em formato Kindle); RUGGIE, John Gerard. Human
Rights Council Seventeenth Session; Agenda item 3: Promotion and protection of all human
rights, civil, political, economic, social and cultural rights, including the right to development.
Report of the Special Representative of the Secretary-General on the issue of human rights and
transnational corporations and other business enterprises. Esse documento está datado de 21
de março de 2011. Disponível em: https://www.right-docs.org/doc/a-hrc-17-31/. Acesso em: 12
dez. 2023; RUGGIE, John Gerard. Business and Human Rights: the evolving international agenda.
The American Journal of International Law, v. 101, n. 4 (Oct., 2007), p. 819-840. Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/40006320. Acesso em: 12 dez. 2023; RUGGIE, John Gerard.
Multinationals as global institution: power, authority and relative autonomy. Regulation &
Governance, v. 12, p. 317-333, 2018. Disponível em: https://doi-
org.ez101.periodicos.capes.gov.br/10.1111/rego.12154. Acesso em: 12 dez. 2023.
26
Desse conjunto de 31 princípios, se destacam alguns deles: “O NEXO ENTRE ESTADO-
EMPRESA: 4. Os Estados devem tomar medidas adicionais para proteger contra abusos de
direitos humanos por empresas comerciais que sejam de propriedade ou controladas pelo
Estado, ou que recebam apoio e serviços substanciais de agências estatais, como agências de
crédito à exportação e agências oficiais de seguro ou garantia de investimento, incluindo, quando
apropriado, exigindo a devida diligência em direitos humanos. 5. Os Estados devem exercer
supervisão adequada para cumprir suas obrigações internacionais de direitos humanos quando
contratam ou legislam sobre empresas comerciais para fornecer serviços que possam afetar o
gozo dos direitos humanos. 6. Os Estados devem promover o respeito pelos direitos humanos
por parte das empresas com as quais realizam transações comerciais” [...]. “11. As empresas
devem respeitar os direitos humanos. Isso significa que eles devem evitar infringir os direitos
humanos de outros e devem abordar os impactos adversos nos direitos humanos com os quais
estão envolvidos. 12. A responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos refere-
se aos direitos humanos internacionalmente reconhecidos – entendidos, no mínimo, como
aqueles expressos na Carta Internacional dos Direitos Humanos e os princípios relativos aos
direitos fundamentais estabelecidos na Declaração sobre Direitos Fundamentais da Organização
Internacional do Trabalho, Princípios e Direitos no Trabalho. 13. A responsabilidade de respeitar
os direitos humanos exige que as empresas: (a) evitem causar ou contribuir para impactos
adversos aos direitos humanos por meio de suas próprias atividades e abordar tais impactos
quando ocorrerem; (b) busquem prevenir ou mitigar impactos adversos aos direitos humanos
que estejam diretamente ligados às suas operações, produtos ou serviços por meio de suas
relações comerciais, mesmo que não tenham contribuído para esses impactos. 14. A
responsabilidade das empresas pelo respeito aos direitos humanos se aplica a todas as
empresas, independentemente de seu tamanho, setor, contexto operacional, propriedade e
estrutura. No entanto, a escala e a complexidade dos meios pelos quais as empresas cumprem
essa responsabilidade podem variar de acordo com esses fatores e com a gravidade dos
impactos adversos sobre os direitos humanos da empresa. 15. A fim de cumprir sua
responsabilidade de respeitar os direitos humanos, as empresas devem ter políticas e processos
adequados ao seu tamanho e circunstâncias, incluindo: (a) um compromisso político para
cumprir sua responsabilidade de respeitar os direitos humanos; (b) um processo de due diligence
em direitos humanos para identificar, prevenir, mitigar e prestar contas de como eles abordam
291
As empresas e os direitos humanos: em busca de elementos (...)
framework. Observando estes princípios guias, cada empresa poderá
desenvolver as suas normas internas (autorregulação); instituindo a governança
corporativa à gestão dos riscos, o due diligence, com foco na responsabilidade
social corporativa. 27 Se poderia adicionar uma quarta diretriz, “representada pela
obrigação cívica da sociedade civil, no sentido de participar, ajudando a legitimar
e mobilizar o envolvimento de atores da sociedade civil, em funções como a de
monitorar e avaliar o processo”. 28 Essa diretriz se enlaça com a proposição da
necessidade da conjugação de esforços entre os atores públicos e privados,
incluindo a sociedade civil 29 para se atingir os objetivos que estruturam a “grande
transição” e que espelham, igualmente, os Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável da ONU (ODS) para 2030, notadamente o ODS 12, que destaca a
necessidade de se desenvolver uma produção e consumo sustentáveis.
Portanto, as organizações ou empresas industriais produtoras e as aquelas que
operam a circulação das mercadorias para o mercado consumidor também estão
implicadas na responsabilidade social empresarial, que tem os seus
pressupostos desenhados pela norma ISO 26000, onde se estabelecem as
diretrizes sobre a responsabilidade social das organizações empresariais, com
as seguintes características:
[...] a responsabilidade social se expressa pelo desejo e pelo propósito
das organizações em incorporarem considerações socioambientais em
seus processos decisórios e a responsabilizar-se pelos impactos de
suas decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente. Isso
implica um comportamento ético e transparente que contribua para o
desenvolvimento sustentável, que esteja em conformidade com as leis
aplicáveis e seja consistente com as normas internacionais de
comportamento. Também implica que a responsabilidade social esteja
seus impactos sobre os direitos humanos; (c) processos para permitir a remediação de quaisquer
impactos adversos aos direitos humanos que causem ou para os quais contribuam (RUGGIE,
John Gerard. Human Rights Council Seventeenth Session; Agenda item 3: Promotion and
protection of all human rights, civil, political, economic, social and cultural rights, including the
right to development. Report of the Special Representative of the Secretary-General on the issue
of human rights and transnational corporations and other business enterprises. Esse documento
está datado de 21 de março de 2011. Disponível em: https://www.right-docs.org/doc/a-hrc-17-
31/. Acesso em: 12 dez. 2023).
27
RUGGIE, John Gerard. Multinationals as global institution: power, authority and relative
autonomy. Regulation & Governance, v. 12, p. 317-333, 2018. Disponível em: https://doi-
org.ez101.periodicos.capes.gov.br/10.1111/rego.12154. Acesso em: 12 dez. 2023.
28
PARKER, Christine; HOWE, John. Ruggie’s diplomatic Project and its missing regulatory
infrastructure. In MARES, Radu (Edit.). The UN guiding principles on business and human rights:
foudations and implementation. Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2012. p. 273-301.
29
SISODIA, Raj; GELB, Michael J. Empresas que curam: despertando a consciência dos
negócios para ajudar a salvar o mundo. São Paulo: Alta Books, 2020. (Formato Kindle).
292
Wilson Engelmann & Raquel Von Hohendorff
integrada em toda a organização, seja praticada em suas relações e
leve em conta os interesses das partes interessadas. 30
Os Direitos Humanos e empresas são dois temas que apresentam
dimensões comuns muito significativas e que poderão fazer uma grande
diferença ao contribuírem para prática da “grande transição” que as atuais e
futuras gerações deverão operacionalizar. Não se trata de uma tarefa de um ou
alguns atores - sejam públicos ou privados - mas uma transição que deverá ser
compreendida, ser conscientizada por todas as partes interessadas que
dependem do meio ambiente para a manutenção de uma vida saudável e digna
de ser vivida no nosso Planeta Terra. Esse deverá ser o principal objetivo das
organizações empresariais, reforçando a importância do desenvolvimento das
suas atividades movidos pela centralidade dos direitos humanos.
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295
Ensino de direitos humanos nas escolas de direito e formação
integral 1
Raquel Von Hohendorff 2
Wilson Engelmann 3
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Percebe-se hoje na docência superior em Direito no Brasil que é mais do
que necessário o resgate das contribuições latino-americanas para a
fundamentação dos direitos humanos, ou seja um resgate que inicie com
contribuições desde os tempos da colonização e que chegue até o século
passado, com as contribuições contemporâneas dos países latino-americanos
nas declarações de direitos humanos, demonstrando o papel precursor e atuante
destas nações na construção de um discurso não individualista de direitos
humanos, de forma a demonstrar aos discentes a real importância destas
contribuições e do estudo dos direitos humanos na formação integral e na
construção de possibilidades de geração de impacto social.
Como mencionou o Papa Francisco 4 em seu discurso em maio de 2023,
que a missão da universidade seja formar poetas sociais, homens e mulheres
que, aprendendo bem a gramática e o vocabulário da humanidade, tenham
1
Este trabalho é o resultado parcial das pesquisas realizadas pelos autores no âmbito dos
seguintes projetos de pesquisa: a) Chamada CNPq n. 09/2020 - Bolsas de Produtividade em
Pesquisa - PQ, projeto intitulado: “Percursos para ressignificar a Teoria Geral das Fontes do
Direito: o Sandbox regulatório como um elemento estruturante da comunicação reticular entre o
Direito e as nanotecnologias”; b) “Sistema do Direito, novas tecnologias, globalização e o
constitucionalismo contemporâneo: desafios e perspectivas”, Edital FAPERGS/CAPES 06/2018
- Programa de Internacionalização da Pós-Graduação no RS. Este trabalho também está
vinculado às pesquisas realizadas pelos autores nos seguintes Centros Internacionais de
Investigação: CEDIS - Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade, da
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Portugal; Instituto Jurídico Portucalense,
da Universidade Portucalense, cidade do Porto, Portugal; CEAD - Centro Francisco Suárez -
Centro de Estudos Avançados em Direito da Universidade Lusófona de Lisboa, Portugal e do
Centro de Estudios de Seguridad (CESEG) da Universidade de Santiago de Compostela,
Espanha.
2
Doutora em Direito Público, Professora e pesquisadora da Escola de Direito da UNISINOS,
Brasil, e-mail: [email protected]; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7543-2412
3
Doutor em Direito Público, Professor e pesquisador da Escola de Direito da UNISINOS, Brasil,
e-mail: [email protected]; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0012-3559.
4
A missão da universidade: pesquisar e formar poetas e coreógrafos sociais. Discurso do
Papa Francisco. Disponível em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/628409-a-missao-
universitaria-pesquisar-e-formar-poetas-e-coreografos-sociais-discurso-do-papa-francisco.
Acesso em 10 dez.2023.
296
Raquel Von Hohendorff & Wilson Engelmann
“faísca”, tenham o fulgor que lhes permite imaginar o inédito. Segue-se com a
projeção de grandes desafios para novas análises, estudos e pesquisas,
conectados, de forma a atuar com a perspectiva de realizar e concretizar a
relevância social da universidade, impactando positivamente a sociedade.
Busca-se observar como o Sistema do Direito, por meio das conexões
comunicativas, pode desenvolver pesquisas transdisciplinares de modo a lidar
criativamente com as novidades e os inúmeros desafios da atualidade, na mais
diferentes áreas de atuação dos profissionais vinculados ao Direito, e incluir a
temática dos direitos humanos de forma mais marcante no atual ensino jurídico
de graduação e pós graduação, ainda muito atrelado ao estudo único das leis e
seus impactos, de modo a preparar os profissionais do sistema do Direito para
lidar com a atual realidade, tanto por conta da constante criação de novos
desafios e possibilidades, quanto pelos desafios mais antigos, mas ainda sempre
presentes, como por exemplo o direito ao trabalho decente.
Para o desenvolvimento deste artigo, será utilizado o método sistêmico-
construtivista que considera a realidade como uma construção de um
observador, analisando todas as peculiaridades implicadas na observação.
Trata-se de um método que parte de uma observação complexa de segunda-
ordem, pressupondo reflexões que são estabelecidas a partir de um conjunto de
categorias teóricas, próprias da Matriz Pragmático-Sistêmica, que guardam uma
coerência teórica auto-referencial. Ainda, é uma estratégia autopoiética de
reflexão jurídica sobre as próprias condições de produção de sentido, bem como
as possibilidades de compreensão das múltiplas dinâmicas comunicativas
diferenciadas 5 em um ambiente complexo, como é o mundo de 2023, pós-
moderno, pós-pandêmico, com os efeitos da quarta e talvez até de uma quinta
revolução industrial, mas ainda em busca da garantia do “direito ao trabalho
decente”. Essa categoria foi apresentada em 1999, pela Organização
Internacional do Trabalho, e
sintetiza a sua missão histórica de promover oportunidades para que
homens e mulheres obtenham um trabalho produtivo e de qualidade,
em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade
humanas, sendo considerado condição fundamental para a
superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a
5
LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007.
297
Ensino de direitos humanos nas escolas de direito e formação (...)
garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento
sustentável. 6
A partir desse arcabouço conceitual, se observa que o chamado “trabalho
decente” está conectado com os Direitos Humanos e também com os Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável da ONU, especialmente o de número 8 7,
buscando harmonizar a produtividade e a parte econômica do trabalho com o
seu exercício propriamente dito e o bem-estar do trabalhador.
Além disso, essa abordagem pressupõe a compreensão do Direito
enquanto um sistema social autopoiético, cujas operações são comunicativas,
desenvolvidas através de processos de tomada de decisões elaborados no
interior de certa organização jurídica. Um sistema que se constitui como uma
parcela do ambiente da sociedade, também compreendida aqui com um sistema
autopoiético.
CONTRIBUIÇÕES LATINO-AMERICANAS PARA A FUNDAMENTAÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS E O ENSINO JURÍDICO BRASILEIRO
Para que se possa conhecer e compreender o papel relevante e inovador
da América Latina na proteção dos direitos humanos, é preciso aprender a
observar as contribuições periféricas ao conhecimento, bem como lembrar que
a história é uma instituição que, enquanto legitima a enunciação de
acontecimentos, também se mantém calada sobre outros. 8
As primeiras nações mundiais a pensarem, idealizarem e criarem
mecanismo para a proteção internacional dos direitos humanos foram as latino-
americanas, demonstrando, assim, sua concepção universal acerca destes
direitos. 9 Como principais acontecimentos históricos que embasam esse
ineditismo latino-americano podem ser citados a redação da Constituição
mexicana de 1917, com as primeiras previsões sobre direitos sociais; a atuação
6
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Disponível em:
https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang--pt/index.htm. Acesso em 27 dez. 2023.
7
“Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e
produtivo e trabalho decente para todas e todos”. OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso em 27 dez. 2023.
8
MIGNOLO, Walter. The idea of Latin America. Oxford: Blackwell Publishing, 2008. p. 113-114.
9
BRAGATO, Fernanda Frizzo. Pessoa humana e direitos humanos na Constituição
brasileira de 1988 a partir da perspectiva pós-colonial. Tese (Doutorado em Direito) –
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São
Leopoldo do/RS, 2009. 267 f.
298
Raquel Von Hohendorff & Wilson Engelmann
destes países para que na Carta da ONU, de 1945, fosse prevista a proteção
dos direitos humanos; a elaboração da Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem, da OEA, em 1948; e as importantes contribuições, bem
como o apoio unânime, como bloco, com 21 países, também em 1948, para a
elaboração e adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela
Assembleia Geral da ONU.
A Constituição mexicana de 1917, um dos marcos do caráter inovador da
América Latina na internacionalização dos direitos humanos, harmonizou como
indivisíveis os direitos de cunho liberal com os de natureza social. A Constituição
contemplou direitos sociais e econômicos, sem declarar a superioridade deles
em relação às liberdades, antecipando, assim, com muita anterioridade, a inter-
relação e interdependência entre direitos sociais e de liberdade, tendência que
depois se firmou internacionalmente. Em termos de conteúdo, foi a primeira
constituição que considerou o mundo remodelado após a Primeira Guerra
Mundial, incorporando garantias sociais e econômicas, além de proteções e
disposições específicas acerca da reforma agrária, do trabalho e das dimensões
sociais dos direitos de propriedade. 10
Passados 30 anos, o México levou este discurso para o âmbito
internacional, auxiliando, primeiramente, em 1945, na elaboração da Carta da
ONU, em 1948, na redação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem, e, por fim, no mesmo ano, na construção da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. As contribuições da América Latina na Declaração Universal
estavam entre os principais fatores que ajudaram a evitar os extremos do
individualismo ou do coletivismo, permitindo que ela se tornasse o principal
modelo para a maioria dos instrumentos de direitos no mundo de hoje.
Entre as contribuições importantes dos demais países latino-americanos
podem ser destacadas as seguintes participações: direitos iguais para homens
e mulheres no preâmbulo do documento (igualdade de gênero), proposto pela
República Dominicana; necessidades das famílias (direito a um padrão de vida
adequado, art. XXIII) e proteção da maternidade, proposto por Cuba; previsão
do Recurso de Amparo (remédio processual para tribunais nacionais devido às
10
CAROZZA, Paolo. From conquest to Constitutions: retrieving a Latin American tradition of the
idea of human rights. Human Rights Quarterly, Baltimore/USA, v. 25, n. 2. Disponível em:
http://www.jstor.org/ stable/20069666. Acesso em: 18 dez. 2023.
299
Ensino de direitos humanos nas escolas de direito e formação (...)
violações aos direitos) presente no art. VIII e, também, “nenhuma limitação de
raça, nacionalidade ou religião, relativo ao direito de casar e constituir família”
(art. XVI) e proteção da maternidade, propostos pelo México; reconhecimento
dos direitos das pessoas que não podem prever suas próprias necessidades,
proposto pelo Chile; e as contribuições acerca dos direitos das crianças,
propostas por Venezuela e Argentina. 11
Apesar de a Declaração Universal dos Direitos Humanos ter mais de 60
anos, inúmeros profissionais atuantes na área do Direito não possuem uma
cultura em direitos humanos, sendo isto um grave reflexo da formação positivista
e normativista que perdura ao longo da história do ensino jurídico brasileiro. É
fácil perceber que o ensino de Direito no país tem costumeiramente conservado
o dogmatismo ainda dominante no pensamento jurídico.
A ideia principal segue sendo de que o ensino é um simples processo de
transmissão de conhecimentos, onde cabe ao professor ensinar (de qualquer
modo) e, ao aluno, apenas aprender (sem precisar, para tanto, pensar). Desse
modo, ocorre a falha abismal do processo de ensino frente a sua meta primordial
(desenvolver o senso crítico, o pensar autônomo), que apenas pode se
concretizar por meio da livre tomada de consciência dos problemas do homem
e do mundo, e do real e efetivo engajamento para solucionar estes problemas6.
Neste sentido, Boaventura de Sousa Santos esclarece:
O paradigma jurídico-dogmático que domina o ensino nas faculdades
de direito não tem conseguido ver que na sociedade circulam várias
formas de poder, de direito e de conhecimentos que vão muito além do
que cabe nos seus postula- dos. Com a tentativa de eliminação de
qualquer elemento extra-normativo, as faculdades de direito acabaram
criando uma cultura de extrema indiferença ou exterioridade do direito
diante das mudanças experimentadas pela sociedade. Enquanto locais
de circulação dos postulados da dogmática jurídica, têm estado
distantes das preocupações sociais e têm servido, em regra, para a
formação de profissionais sem um maior comprometimento com os
problemas sociais. 12
11
GLENDON, Mary Ann. The Forgotten Crucible: The Latin American influence on the universal
human rights idea. Harvard Human Rights Journal, v. 16, p. 27-28, 2003. Disponível em:
<http://law.harvard.edu/ students/orgs/hrj/iss16/ glendon.pdf>. Acesso em: 18 dez. 2023.
12
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 2. ed. São
Paulo: Cortez, v. 134, 2008. p. 71.
300
Raquel Von Hohendorff & Wilson Engelmann
A formação acadêmica jurídica brasileira, ainda hoje, em muitos casos,
consiste em repetir lições de manuais, copiar ementas de jurisprudência (sem
análise do caso concreto), reproduzir a decisão judicial como verdade absoluta
e copiar posições de códigos comentados. Desse modo, nosso ensino jurídico
anda em sentido inverso da fase cultural pós-moderna, uma vez que é
"ensinado" um conhecimento baseado no positivismo exegético-normativista,
sem qualquer profundidade ou seriedade maior, em vez de formar profissionais
jurídicos críticos, reflexivos e preocupados com a função social do Direito. 13
Uma prática do direito descompromissada com suas consequências
sociais é resultado do atual ensino jurídico, em que não importam as pessoas
que estão por detrás dos autos, nem, tampouco, a possibilidade de efetividade
da decisão. E é neste contexto que o ensino de direitos humanos, nas escolas
de Direito do Brasil, acaba limitando-se, por exemplo, ao estudo da extensão e
aplicação dos tratados internacionais, como eles ingressam no ordenamento
pátrio, mas sem considerar que os direitos humanos estão presentes - ainda que
violados - nas questões corriqueiras do nosso dia a dia. 14
Mesmo em tempos de quarta revolução industrial, época em que os
empregos e trabalhos vem sendo modificados a cada dia, e quando
mencionamos “modificados” entenda-se ameaçados e extintos, o direito a um
trabalho e mais ainda, a um trabalho decente, é um direito humano fundamental.
Nessa linha, será apresentado o Decreto nº 9.571, de 21 de novembro de
2018, cujo objetivo era estabelecer diretrizes para que as empresas nacionais,
incluindo as multinacionais com atividade no Brasil, respeitassem os princípios
fundamentais previstos na Constituição Federal e nos tratados internacionais de
direitos humanos. Tratava-se de um decreto de adesão voluntária, com eficácia
questionada, por não ser obrigatório, e foi revogado em novembro de 2023, com
a publicação do Decreto nº 11.772, de 09 de novembro.
13
MACEDO, Elaine Harzheim; MACEDO, Fernanda dos Santos. O ensino jurídico no sistema
globalizado: repensando a educação e a pesquisa. XXI Encontro Nacional do Conpedi,
Uberlândia, 2012. Disponível
em:<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=feab05aa91085b7a>. Acesso em: 10 dez.
2023.
14
SENA, Jaqueline Santa Brígida. Ética da alteridade e direitos humanos: uma discussão
necessária à formação jurídica contemporânea. In: NALINI, José Renato; CARLINBI, Angélica
(Coord.). Direitos humanos e formação jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 16.
301
Ensino de direitos humanos nas escolas de direito e formação (...)
O novo Decreto instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial, cuja
composição é feita por representantes de 14 Ministérios e da Advocacia e da
Controladoria Gerais da União. Objetiva concentrar esforços mútuos para a
construção de uma Política Nacional de Direitos Humanos e Empresas e, com
isso, assegurar a observância dos direitos humanos no ambiente corporativo,
mantendo a atuação empresarial observado também os Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, de forma a garantir trabalho
decente para todos.
SOBRE OS DECRETOS nº 9.571 e nº 11.772
Conforme já mencionado, em 2018 surge o Decreto nº 9.571, de 21 de
novembro de 2018, com objetivo de criar diretrizes para que as empresas
nacionais, incluindo as multinacionais com atividade no Brasil, respeitassem os
princípios fundamentais previstos na Constituição Federal e nos tratados
internacionais de direitos humanos. Era um decreto de adesão voluntária, com
eficácia questionada, justamente por não ser obrigatório, e, em 2023, acabou por
ser revogado com a publicação do Decreto nº 11.772, de 09 de novembro.
Quanto ao decreto nº 9.571, ele flexibilizava o cumprimento das diretrizes
às microempresas e empresas de pequeno porte, na medida de suas
capacidades, levando em consideração o artigo 179 da Constituição, que prevê
tratamento jurídico diferenciado às microempresas e empresas de pequeno
porte.
De todo modo, conforme consta no art. 1º, § 2º, tratava-se de um Decreto
de adesão voluntária, ou seja, as empresas poderiam ou não aderir à norma em
questão, sendo que àquelas que optassem por voluntariamente implementarem
as Diretrizes de que trata o Decreto, receberiam então o selo “Empresa e Direitos
Humanos”, por ato do Ministro de Estado dos Direitos Humanos.
De acordo com Luís Creuz, 15
A norma, muito mais do que simples normativa principiológica,
visa efetivamente alocar direitos e deveres tanto para a esfera
pública quanto privada. Ao Estado atribui diversas obrigações de
fomento, divulgação e cobrança de cumprimento de normas e
15
CREUZ, Luís Rodolfo Cruz. Diretrizes nacionais sobre empresas e direitos humanos:
comentários sobre o Decreto nº 9.571, de 21 de novembro de 2018, que estabelece as diretrizes
nacionais sobre empresas e direitos humanos. [S. l.]. 14 ago. 2019. Disponível em:
https://encurtador.com.br/nxFIX. Acesso em: 4 nov. 2023.
302
Raquel Von Hohendorff & Wilson Engelmann
diretrizes de direitos humanos. Para as empresas, são criadas
inúmeras novas obrigações e regras para acompanhamento e
cumprimento da responsabilidade social e de direitos humanos.
O referido decreto tinha 4 eixos orientadores, quais sejam: (I) a obrigação
do Estado com a proteção dos direitos humanos em atividades empresariais; (II)
a responsabilidade das empresas com o respeito aos direitos humanos; (III) o
acesso aos mecanismos de reparação e remediação para aqueles que, nesse
âmbito, tenham seus direitos afetados; e (IV) a implementação, o monitoramento
e a avaliação das diretrizes pautadas no Decreto. 16
Pode-se compreender que o referido Decreto auxiliava no fomento à
promoção do trabalho digno em seu artigo 7º, definindo como dever das
empresas garantir condições decentes de trabalho, promovendo ambiente
produtivo, com remuneração adequada e em condições de liberdade, equidade
e segurança para todos os colaboradores.
O artigo 4º, inciso I, do Decreto nº 9.571, orientava às corporações a
respeitarem os direitos humanos protegidos nos tratados internacionais dos quais
o seu Estado de incorporação ou de controle sejam signatários. Assim, o Brasil
tinha e segue tendo a tarefa de instituir mecanismos internos para impulsionar
a transformação das estratégias empresariais tradicionais em prol do
desenvolvimento sustentável e do respeito aos direitos humanos, e, pode-se
classificar o Decreto de Direitos Humanos de Adesão Voluntária como uma
interessante iniciativa nacional de fomento ao respeito à dignidade da pessoa
humana no setor privado.
Em contrapartida, Rafaella Passos faz a seguinte análise: 17
O referido ato normativo sofre fortes críticas de especialistas na
área de direitos humanos pois, seguindo a lógica dos Princípios
Orientadores das Nações Unidas sobre o tema, não estabelece
normas cogentes às empresas. Para os autores críticos, a norma
em questão é uma tentativa de harmonizar o interesse das
corporações às normas de proteção aos direitos humanos, sem
que seja ressaltada a prevalência desses direitos.
16
BRASIL. Decreto nº 9.571, de 21 de novembro de 2018. Estabelece diretrizes nacionais
sobre empresas e direitos humanos. Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9571.htm. Acesso em: 4
nov.2023.
17
PASSOS, Rafaella Mikos. Empresas e direitos humanos sob a perspectiva da análise
econômica do direito no Brasil. Revista Inclusiones: Revista de Humanidades y Ciencias
Sociales, v. 8, n. 1, p. 374-385, 2021. Acesso em: 5 nov. 2023.
303
Ensino de direitos humanos nas escolas de direito e formação (...)
Aqui fica evidente a necessidade do ensino de direitos humanos nas
escolas de Direito, buscando a formação integral, pois somente assim se poderá
mudar a ideia de que não vale a pena aderir a um instrumento sem vigor
normativo cogente, sem que exista sanção para quem não o fizer. A ideia dos
direitos humanos perpassando a formação integral precisa e deve estar sempre
nas mentes dos educadores, de forma a que as novas gerações não pensem em
não aderir a normas como o Decreto de adesão voluntária.
De acordo com Silva e Moreira, ao refletirem sobre quais motivações
existiam para que as empresas incorporassem tais diretrizes, o fator reputacional
era a principal fonte de incentivo para a aderência ao decreto, eis que se tratava de
uma conduta voluntária e que não existia nenhuma previsão legal de punição ao
descumprimento das diretrizes, nem mesmo nenhum benefício financeiro. A
concessão do selo “Empresa e Direitos Humanos” serviria, de certa forma, como
uma espécie de título atrativo, gerando para a instituição uma imagem positiva no
mercado, auxiliando, mesmo que indiretamente, seu crescimento econômico. De
fato, a adoção de práticas socialmente responsáveis no contexto empresarial
vem sendo progressivamente valorizada e, por isso, as corporações têm se
adaptado às novas exigências do mercado, para se manterem competitivas e
alcançarem ganhos econômicos mais expressivos. 18
Assim, cada vez mais resta evidente a necessidade de que o ideal dos
direitos humanos perpasse por todas as ações e atitudes dos mais diferentes
atores da sociedade, inclusive e mais do necessário, nas Escolas de Direito, de
forma que o Estado também possa continuar cumprindo com o seu dever de
garantidor dos direitos humanos. As instituições sujeitam às leis vigentes, mas
o ordenamento jurídico tem se mostrado insuficiente para prevenir,
responsabilizar e reparar violações de direitos humanos derivadas da atuação
empresarial. Dessa forma, é urgente a necessidade de políticas públicas
efetivas para prevenir e reduzir condutas em desacordo com os Direitos
Humanos. 19
18
SILVA, Ricardo Murilo da; MOREIRA, Felipe Oswaldo Guerreiro. Compliance para proteção
dos direitos humanos em empresas. Homa Publica-Revista Internacional de Derechos
Humanos y Empresas, v. 4, n. 1, p. 057-057, 2020. Acesso em: 5 nov. 2023.
19
DUPRAT, Deborah; DIAS, Antônio Edmundo; WEICHERT, Marlon Alberto; TRENTIN,
Melissandra; LOPES, Raphaela. Para uma política nacional de direitos humanos e empresas
304
Raquel Von Hohendorff & Wilson Engelmann
Não há dúvidas de que o Decreto nº 9.571/2018 corroborou, durante sua
vigência, com a implementação de políticas sociais no âmbito corporativo, mas
sempre existiram dúvidas quanto a sua eficácia, devido às limitações impostas
pela adesão voluntária. Assim, mais do que nunca, torna-se relevante que o
Estado avance nas políticas públicas, com vistas a fomentar cada vez mais
trabalhos justos e crescimento econômico sustentável, tornando ainda, o respeito
aos direitos humanos uma regra.
Considerando estes aspectos, em 9 de novembro de 2023 foi editado o
Decreto nº 11.772, que, além de revogar o Decreto nº 9.571/2018, instituiu o Grupo
de Trabalho Interministerial, objetivando empenhar esforços para a elaboração e
implementação de uma Política Nacional de Direitos Humanos e Empresas.
Desta forma, o Grupo de Trabalho Interministerial será coordenado por um
representante do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e composto
por representantes de outros treze Ministérios, além de um representante da
Advocacia-Geral da União e da Controladoria-Geral da União. 20
Uma inovação do Decreto é o poder conferido ao Coordenador do Grupo
de Trabalho Interministerial de convidar especialistas e representantes de outros
órgãos e entidades, públicas e privadas, além de membros da sociedade civil,
para participarem das reuniões do Grupo e colaborarem com as políticas de
efetivação dos direitos humanos nas empresas, mas sem direito a voto. Por meio
do Grupo de Trabalho Interministerial, o Governo Federal pretende elaborar um
estudo sobre os ordenamentos jurídicos nacional e internacional de proteção de
direitos humanos com relação à atividade empresarial. Com isso, o grupo
trabalhará para implementar políticas corporativas consonantes com as
diretrizes normativas existentes, bem como propor medidas e ações efetivas
para a melhoria das políticas públicas destinadas à regulamentação da atuação
das empresas quanto à promoção e à defesa dos direitos humanos e à reparação
das violações aos direitos humanos e seu respectivo monitoramento.
Ainda, de acordo com o disposto no artigo 9º, do Decreto nº 11.772/2023,
no Brasil: prevenção, responsabilização e reparação. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung, 2018.
Acesso em:5 nov. 2023.
20
BRASIL. Decreto nº 9.571, de 21 de novembro de 2018. Estabelece diretrizes nacionais
sobre empresas e direitos humanos. Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9571.htm. Acesso em:
04 nov. 2023.
305
Ensino de direitos humanos nas escolas de direito e formação (...)
o Grupo de Trabalho Interministerial terá a duração de cento e oitenta dias,
contados da data da primeira reunião ordinária, podendo ser prorrogado por igual
período, por ato do Ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania. O
Grupo de Trabalho Interministerial está encarregado de desenvolver uma Política
Nacional de Direitos Humanos nas Empresas, alinhada aos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, de modo a aprimorar os
programas e políticas atuais voltadas à promoção dos direitos humanos no
âmbito organizacional; desenvolver mecanismos que previnam o
descumprimento dos direitos humanos pelas empresas; e monitorar o
cumprimento das obrigações referentes aos direitos humanos por estas. 21
Entende-se que o decreto de 2023 demonstra a fragilidade do Decreto
nº 9.571/2018, especialmente quanto a ser o suficiente para garantir o respeito
aos direitos humanos no contexto corporativo, principalmente devido à adesão
voluntária. Assim, espera-se que o Grupo de Trabalho Interministerial, a partir
da análise conjunta com todas as partes envolvidas, sendo representantes do
governo, das categorias dos empregadores e dos empregados, apresente um
projeto concreto e viável, que regulamente a aplicação dos direitos humanos no
âmbito corporativo nacional, bem como estabeleça sanções a serem aplicadas
em caso de não observação.
A TÍTULO DE CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se destaca a fundamentalidade do tema dos direitos humanos na
construção do conhecimento jurídico conectado com a realidade brasileira e
latino-americana. O resgate das contribuições latino-americanas para a
construção de um discurso dos direitos humanos diferente do hegemônico
europeu é um fator que influencia diretamente a construção do interesse
acadêmico neste estudo. A educação, já mencionada na própria Declaração
Universal dos Direitos Humanos, em seu preâmbulo e no art. 26, é vital para a
compreensão, divulgação e conscientização dos direitos humanos, permitindo,
assim, a formação de cidadãos conscientes, aptos a lidarem com os desafios da
21
BRASIL. Decreto nº 9.571, de 21 de novembro de 2018. Estabelece diretrizes nacionais
sobre empresas e direitos humanos. Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9571.htm. Acesso em: 4
nov.2023.
306
Raquel Von Hohendorff & Wilson Engelmann
realidade, entre eles a atuação adequada das empresas em relação aos direitos
humanos, de forma concreta e não apenas “publicitária”.
Como defende a OIT - Organização Internacional do Trabalho -, “uma
agenda de trabalho decente é um compromisso tripartite, realizado entre
governos e organizações de trabalhadores e empregadores, para impulsionar o
desenvolvimento sustentável e a inclusão social através da promoção do
trabalho decente, com base em parcerias locais” 22. E dois aspectos precisam ser
observados sobre o trabalho decente: um positivo, a partir do qual o trabalho
decente é a expressão da dignidade humana no seio das relações de trabalho,
e um negativo, segundo o qual o trabalho decente só pode ser alcançado se,
antes, forem extintos diversos problemas, como o trabalho escravo, a
discriminação no emprego, dentro outros.
Fato é que, independentemente do ponto de vista, o trabalho decente está
imbricado com a dignidade da pessoa humana, pois um depende do outro (sem
trabalho decente não há vida digna e sem dignidade o trabalho não é decente),
impondo seja observado pelo Brasil diante do já visto compromisso da
Constituição Federal com este princípio.
O desafio que se impõe não é “se” o país deve tentar implementar
medidas visando a implementação do trabalho decente, mas “como” e isso
perpassa sem sombra de dúvida pela centralidade do ensino dos direitos
humanos nas Escolas de Direito e pela atuação deste novo comitê
interministerial instituído pelo Decreto nº 11.772, e, como já sugerido, os
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas são um ótimo
guia.
A adesão ao Decreto nº 9.571/2018 desde sempre gerou dúvidas quanto
à sua efetividade, devido à natureza voluntária do instrumento. Tais incertezas
culminaram na recente revogação da norma pelo Decreto nº 11.772, de 9 de
novembro de 2023, sendo que o novo Decreto estabeleceu também um Grupo
de Trabalho Interministerial, composto por representantes de quatorze
ministérios, bem como representantes da Advocacia-Geral da União e da
Controladoria-Geral da União, com o objetivo de considerar as percepções de
22
OIT. Promoção do Trabalho Decente no Brasil. Disponível em:
<https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/WCMS_302660/lang--pt/index.htm>.
Acessado em: 18 dez. 2023.
307
Ensino de direitos humanos nas escolas de direito e formação (...)
todas as partes envolvidas em uma relação empregatícia, para proporem, em
conjunto, uma Política Nacional de Direitos Humanos e Empresas, dotada de
vigor normativo cogente.
Desta forma, resta mais do que demonstrada a necessidade que sempre
existiu e que hoje, mais do que nunca, se faz urgente, de resgatarmos o papel
dos países latino americanos na construção dos direitos humanos e de
inserirmos de forma aplicada e consistente, contínua, a questão do ensino dos
direitos humanos dentro do ensino jurídico, pensando na formação integral de
nossos alunos, atores atuais e futuros agentes transformadores da nossa
realidade social.
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310
Resíduos sólidos e o consumo sustentável
Boisbaudran de Oliveira Imperiano - UNIPE 1
Rogério Roberto Gonçalves de Abreu - UNIPE 2
1. INTRODUÇÃO
No início da década de 60 do século passado, a crise ambiental
começava a dar sinais de que seria severa, em setembro de 1962, Raquel
Carson, publicava o livro “Silent Spring” (Primavera Silenciosa), onde
denunciava a contaminação de plantas, animais e seres humanos com
pesticidas químicos, notadamente o DDT.
No final da década de 60 e início da década de 70 do século XX
agravou-se os problemas socioambientais nos países industrializados, bem
como, nos países em desenvolvimento, devido ao aumento da degradação
ambiental e intensificação dos vários tipos de poluição sobre o meio ambiente.
Tais agressões ao meio ambiente levaram a uma conscientização da
sociedade civil organizada juntamente com os movimentos ambientalistas, os
quais despertaram para a preocupação com a preservação e conservação do
meio ambiente. Consequentemente, a sociedade civil passou a exigir que os
fatores ambientais fossem expressamente considerados pelos governos ao
aprovarem programas de investimento e projetos de grande porte.
O crescimento industrial desenfreado e o progresso econômico foram a
ordem maior que predominava nos negócios nos países do chamado "primeiro
mundo". O uso cada vez maior da tecnologia exercia – e continua a exercer -
uma pressão intensa sobre os recursos naturais que pareciam inesgotáveis,
segundo o pensamento antropocêntrico dominante na década de 60/70 do
1
Advogado, Biólogo, Professor Visitante UNIPE/PB, Escritor. Pós-Graduado em Análise e
Gerenciamento Ambiental; Pós-Graduado em Administração Hospitalar; Pós-Graduado em
Direito do Trabalho; Pós-Graduado em Direito Ambiental; Mestrando em Direito e
Desenvolvimento Sustentável no Centro Universitário de João Pessoa - UNIPE/PB. Acadêmico
da Academia Paraibana de Letras Jurídicas – APLJ.
2
Doutor em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco –
UNICAP. Professor do Mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável no Centro
Universitário de João Pessoa - UNIPE/PB.
311
Resíduos sólidos e o consumo sustentável
século passado (IMPERIANO, 2017) 3. Como consequência há um estímulo nos
meios de comunicação para o consumo exagerado de bens, afetando o meio
ambiente pela ampliação na geração de resíduos sólidos urbanos.
O ambiente natural está sofrendo uma exploração excessiva que
ameaça a estabilidade dos seus sistemas de sustentação (exaustão de
recursos naturais renováveis e não renováveis, desfiguração do solo, perda de
florestas, poluição da água e do ar, perda de biodiversidade, mudanças
climáticas etc.).
De acordo com LAGO & PÁDUA (1985) 4: “Não é possível uma economia
de crescimento ilimitado num planeta finito e de recursos limitados. Não existe
um estoque infinito de matérias primas para alimentar por tempo indeterminado
o atual ritmo da produção. Os recursos renováveis não têm poder para se
autorreproduzir na velocidade exigida pela lógica do crescimento acelerado”.
Neste contexto destaca-se que o aumento da produção resíduos sólidos
é um dos graves problemas socioambientais desde os anos 70 do século
passado, para tanto, durante a RIO 92 como uma das formas de se
implementar a sustentabilidade foi sugerida a implementação da política de
Reduzir, Reciclar e Reutilizar
Assim, no direito positivo brasileiro merece destaque a Lei Federal
12.305/2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos - PNRS,
considerada como marco legal pátrio sobre a gestão e o gerenciamento dos
resíduos sólidos nos país.
2. DOS RESÍDUOS SÓLIDOS E DA POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS
SÓLIDOS
Os resíduos sólidos, normalmente chamados de lixo, podem ser
definidos de várias maneiras. É comum serem definidos como todo e qualquer
resíduo que resulte das atividades do homem em sociedade.
3
IMPERIANO, BOISBAUDRAN DE O. Direito do meio ambiente consolidado. João Pessoa:
Editora Sal da Terra, 2017, 284 p
4
LAGO, A. e PÁDUA, J. A. O que é Ecologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, 109 p.
312
Boisbaudran de Oliveira Imperiano & Rogério Roberto Gonçalves de
Abreu
Segundo a NORMA ABNT (NBR-10004) 5, resíduos sólidos são resíduos
nos estados sólidos e semi-sólidos, que resultam de atividades da comunidade,
de origem: industrial, doméstica, hospitalar, comercial, agrícola, de serviços e
de varrição.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos foi instituída pela Lei Federal
12.305/2010 (BRASIL, 2010) 6, regulamentada incialmente pelo Decreto
Federal nº 7.404/2010, o qual foi revogado pelo atual Decreto Federal nº
10.936 de 12.01.2022, disciplinando assim de forma geral e abrangente a
gestão dos resíduos sólidos no Brasil.
Nesse sentido, destacamos o artigo 3º Inciso XVI da Lei Federal
12.305/2010, o qual estabeleceu o conceito de resíduos sólidos como sendo:
“material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades
humanas em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe
proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido,
bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades
tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos
d’água”.
A citada Lei dispõe sobre os princípios, objetivos e instrumentos, bem
como sobre as diretrizes relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de
resíduos sólidos, incluídos os perigosos, às responsabilidades dos geradores e
do poder público e aos instrumentos econômicos aplicáveis.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos reúne o conjunto de
instrumentos, diretrizes, metas e ações adotados pelo Governo Federal,
isoladamente ou em regime de cooperação com Estados, Distrito Federal,
Municípios ou particulares, com vistas à gestão integrada e ao gerenciamento
ambientalmente adequado dos resíduos sólidos.
5
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS – ABNT. Norma NBR-10004 da
Associação Brasileira de Normas Técnicas. Disponível em:
https://segurancadotrabalhoacz.com.br/nbr-10004-clasificacao-dos-residuos-solidos/. Acesso
em 30.01.2019.
6
BRASIL. Lei n.º 12.305, de 02 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos
Sólidos; altera a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Diário
Oficial da União. 03 de ago. 2010.
313
Resíduos sólidos e o consumo sustentável
3. DA IMPORTÂNCIA SANITÁRIA DOS RESÍDUOS SÓLIDOS
Como fator indireto, o lixo tem grande importância na transmissão de
doenças por meio de vetores como moscas, mosquitos, baratas e roedores,
que encontram no lixo alimento e condições adequadas para proliferação. Tais
vetores são responsáveis pela transmissão de doenças, tais como: disenterias,
cólera, tétano, amebíase, giardíase, leptospirose, febre tifoide, salmoneloses,
dermatites etc. (IMPERIANO, 2017) 7.
Devemos mencionar ainda as alterações de saúde que podem ocorrer,
como por exemplo, a fumaça resultante da queima de lixo pode causar
diversas patologias respiratórias.
Ainda, nos catadores de resíduos sólidos e outras pessoas que retiram o
seu sustento por meio do “lixo”, desenvolvem lesões no sistema ósseo-
muscular, como resultado de esforços físicos assimétricos, continuados e
intensos.
A importância do lixo na saúde pública pode, também, se fazer sentir por
meio da poluição do ar (fumaça e material particulado) e da água (chorume),
além de causar poluição visual.
4. DA GESTÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS
A gestão dos resíduos sólidos em linhas gerais está estabelecida nos
artigos 9º, 10, 11 e 12 da Lei que trata da Política Nacional de Resíduos
Sólidos.
Na gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, em conformidade com o
determinado no artigo 9º da PNRS, deve ser observada a seguinte ordem de
prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos
resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.
A gestão integrada dos resíduos sólidos gerados nos respectivos
territórios incumbe ao Distrito Federal e aos Municípios, sem prejuízo das
competências de controle e fiscalização dos órgãos federais e estaduais
consoante artigo 10 da Lei da PNRS.
Incumbe aos Estados, observadas as diretrizes e demais determinações
estabelecidas na Lei da PNRS no seu artigo 11, as seguintes atribuições:
7
IMPERIANO - IDEM
314
Boisbaudran de Oliveira Imperiano & Rogério Roberto Gonçalves de
Abreu
I - Promover a integração da organização, do planejamento e da
execução das funções públicas de interesse comum relacionadas à
gestão dos resíduos sólidos nas regiões metropolitanas,
aglomerações urbanas e microrregiões, nos termos da lei
complementar estadual;
II - Controlar e fiscalizar as atividades dos geradores sujeitas a
licenciamento ambiental pelo órgão estadual do Sistema Nacional de
Meio Ambiente – SISNAMA;
III - Apoiar e priorizar as iniciativas do Município de soluções
consorciadas ou compartilhadas entre 2 (dois) ou mais Municípios.
Estão sujeitos às regras e determinações da Política Nacional de
Resíduos Sólidos as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado,
responsáveis, direta ou indiretamente, pela geração de resíduos sólidos e as
que desenvolvam ações relacionadas à gestão integrada ou ao gerenciamento
de resíduos sólidos, consoante art. 25 da Lei da PNRS.
Nesse contexto, salienta-se que os resíduos sólidos gerados nos
processos produtivos e instalações industriais estão sujeitos à elaboração de
Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos – PGRS, conforme determina o
artigo 20 da Lei Política Nacional de Resíduos Sólidos. Ainda, conforme
estabelece o artigo 24 da citada Lei, o plano de gerenciamento de resíduos
sólidos é parte integrante do processo de licenciamento ambiental do
empreendimento ou atividade pelo órgão competente do Sistema Nacional de
Meio Ambiente - SISNAMA
Impende, também, destacar o art. 33 da PNRS, que obriga os
fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de materiais e
produtos listados neste artigo da Lei, há implementarem sistemas de logística
reversa, mediante retorno dos produtos após o uso pelo consumidor, de forma
independente do serviço público de limpeza urbana.
Na gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, em conformidade com o
determinado no artigo 9º da Lei Federal 12.305/2010, deve ser observada a
seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem,
tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada
dos rejeitos. Poderão ser utilizadas tecnologias visando à recuperação
315
Resíduos sólidos e o consumo sustentável
energética dos resíduos sólidos urbanos, desde que tenha sido comprovada
sua viabilidade técnica e ambiental e com a implantação de programa de
monitoramento de emissão de gases tóxicos aprovado pelo órgão ambiental
(IMPERIANO, 2017) 8.
5. DO GERENCIAMENTO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS NO BRASIL
O lixo brasileiro no ano de 1991, segundo trabalho divulgado pelo
Laboratório de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de
Viçosa – UFV, apresentava a sua composição média contendo os seguintes
tipos de resíduos: Matéria Orgânica – 52,5%; Papel e Papelão – 24,5%;
Plásticos – 2,9%; Metais – 2,3%; Vidros – 1,6%; Têxteis, Borracha, Couros –
0,6 %; Outros – 15,5%. Por sua vez, a Associação Brasileira de Empresas de
Limpeza Pública e Resíduos Especiais – ABRELPE 9, em 2020, divulgou a
composição média do lixo brasileiro contendo os seguintes tipos de resíduos:
Matéria Orgânica – 43,5%; Plásticos – 16,8%; Papel e Papelão – 10,4%;
Metais – 2,3%; Vidros – 2,7%; Têxteis, Borracha, Couros – 5,6 %; Rejeitos –
14,1% e Outros – 1,4%.
Portanto, numa comparação entre os anos de 1991 e 2020 a
composição média do lixo brasileiro, sofreu alterações consideráveis na sua
geração, muito embora a matéria orgânica continue a ser o maior percentual da
geração de resíduos sólidos, mas houve um aumento considerável nos
resíduos de plásticos que saiu de 2,9% em 1991 para 16,8% em 2020, assim
como, houve um aumento na geração resíduos de vidros e têxteis.
Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e
Resíduos Especiais (ABRELPE, 2017) 10, no seu Panorama dos Resíduos
Sólidos no Brasil, a geração total de resíduos sólidos urbanos (RSU) no Brasil
foi no ano de 2016 de 212.753 toneladas por dia ou 77,65 milhões de
toneladas por ano.
8
IMPERIANO – IDEM.
9
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E RESÍDUOS
ESPECIAIS - ABRELPE. Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2020. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/6613160/mod_resource/content/1/Panorama-2020-V5-
unicas%20%282%29.pdf. Acesso em 07.07.2022.
10
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E RESÍDUOS
ESPECIAIS - ABRELPE. Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2017. Disponível em:
http://abrelpe.org.br/panorama. Acesso em 30.01.2019.
316
Boisbaudran de Oliveira Imperiano & Rogério Roberto Gonçalves de
Abreu
No ano de 2017 foi de 78,42 milhões de toneladas, o que representa
214.868 toneladas/dia. O levantamento mostra que cada brasileiro também
produziu em 2017 mais lixo, foi 378kg por ano, volume que daria para cobrir
1,5 campo de futebol.
Ainda, a ABRELPE em 2020 constatou que a geração de RSU foi de 79
milhões de tonelada por ano. Por sua vez, a geração per capita aumentou para
379 kg/ano.
Ainda, segundo o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2020,
informou que entre 2010 e 2019, a geração de RSU no Brasil registrou
considerável incremento, passando de 67 milhões para 79 milhões de tonelada
por ano. Por sua vez, a geração per capita aumentou de 348 kg/ ano para 379
kg/ano.
Assim, entre agosto/2010 e agosto/2020, período de 10 (dez) anos de
vigência da Lei da PNRS, a geração total de RSU aumentou cerca de 19% no
país, com um crescimento de 9% no índice de geração per capita. Desta forma
a taxa de geração de resíduos está superando a taxa de crescimento
populacional, e isso demonstra que o consumo está aumentando a cada ano
no Brasil, como consequência temos o aumento na geração de resíduos
sólidos.
Regionalmente a ABRELPE verificou-se que a Região Sudeste é que
mais gera resíduos sólidos em âmbito nacional, contribuindo com 39,44
milhões de toneladas (49,88%) do total de resíduos no país. Em segundo lugar
a Região Nordeste com 19,70 milhões de toneladas, em terceiro lugar a Região
Sul com 8,24 milhões de toneladas; em quarto lugar a Região Norte com 5,87
milhões de toneladas e quinto lugar a Região Centro-Oeste com 5,82 milhões
de toneladas.
No Brasil, segundo a ABRELPE (2019) 11, do montante de 29,5 milhões
de toneladas de resíduos sólidos coletados em 2018 (40,5% do total coletado),
foi despejado inadequadamente a céu aberto, em lixões ou aterro controlado.
11
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E RESÍDUOS
ESPECIAIS - ABRELPE. Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2018/2019. Disponível
em: http://abrelpe.org.br/panorama. Acesso em 04.02.2019.
317
Resíduos sólidos e o consumo sustentável
Os lixões a céu aberto, apesar de terem um baixo custo operacional, são um
verdadeira ameaça à saúde pública, um a vez que a decomposição dos
resíduos contamina o solo, poluem as águas subterrâneas, provocam mau
cheiro e atrai animais vetores de diversas doenças.
De acordo com a ABRELPE (2020) 12, a destinação inadequada dos
resíduos para lixões ou aterros controlados, e não para os aterros sanitários,
prejudica diretamente a saúde de 77,65 milhões de brasileiros atualmente, e
gera um custo ambiental e para o sistema de saúde de cerca de US$ 1 bilhão
por ano.
Três regiões descartam seus resíduos inadequadamente acima da
média nacional. O Nordeste concentra o maior número de cidades com
destinação irregular: 1.340 municípios (74,6%), seguido da Região Norte, com
79% das cidades (357 municípios) e do Centro-Oeste, 65% dos municípios
(305 cidades). (ABRELPE,2020) 13.
6. DOS OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – ODS E A
DA REDUÇÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS
A Organização das Nações Unidas – ONU durante a Cúpula das
Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável em setembro de 2015,
como parte de uma nova agenda de desenvolvimento sustentável que deve
finalizar o trabalho dos Objetivos do Milênio – ODM, a sua Assembleia Geral da
ONU propôs e aprovou junto aos países membros uma nova agenda global de
desenvolvimento sustentável para os próximos 15 anos, a Agenda 2030,
composta pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS (ONU,
2022) 14.
Essa Agenda reflete os novos desafios de desenvolvimento e está ligada
ao resultado da RIO+20 que foi realizada em junho de 2012 no Rio de Janeiro.
Segundo a ONU (2022), os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável:
São 17 objetivos ambiciosos e interconectados que abordam os
principais desafios de desenvolvimento enfrentados por pessoas,
12
ABRELPE – IDEM.
13
ABRELPE – IDEM.
14
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. BRASIL. Sobre o nosso trabalho para alcançar
os objetivos de desenvolvimento sustentável no Brasil. Disponível em:
https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. 2022. Acesso 09.06.2022.
318
Boisbaudran de Oliveira Imperiano & Rogério Roberto Gonçalves de
Abreu
consistem em um apelo global à ação para acabar com a pobreza,
proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em
todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade. Estes
são os objetivos para os quais as Nações Unidas estão contribuindo a
fim de que possamos atingir a Agenda 2030 (ONU, 2022).
Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável se desdobram em 169
metas e 241 indicadores, os quais estão estabelecidos para medir o progresso
em direção ao cumprimento da Agenda 2030. Sendo que o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA é a agência responsável pela
supervisão dos indicadores ODS.
Neste contexto, ressalta-se o ODS 12, que afirma: “Assegurar Padrões
de Produção e de Consumo Sustentáveis”; merecendo destaque as metas 12.4
e 12.5, as quais citamos:
12.4 Até 2020, alcançar o manejo ambientalmente saudável dos
produtos químicos e todos os resíduos, ao longo de todo o ciclo de
vida destes, de acordo com os marcos internacionais acordados, e
reduzir significativamente a liberação destes para o ar, água e solo,
para minimizar seus impactos negativos sobre a saúde humana e o
meio ambiente
12.5 Até 2030, reduzir substancialmente a geração de resíduos
por meio da prevenção, redução, reciclagem e reuso.
(destacamos).
Temos assim, que a agenda global de desenvolvimento sustentável, é
um desafio permanente para os Estados-membros da ONU, rumo a um
processo para implementar nova agenda global para o desenvolvimento pós-
2015 envolvendo a participação dos principais grupos e partes interessadas da
sociedade civil.
Para tanto, a meta de reduzir substancialmente a geração de resíduos
por meio da prevenção, redução, reciclagem e reuso, até 2030, coaduna-se
com o preconizado pelos princípios e objetivos, constante dos artigos 6º e 7º
da Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos.
A política de Reduzir, Reutilizar e Reciclar, ou seja, a Política dos três
R's são importantes aliados para se chegar ao consumo sustentável, podendo
319
Resíduos sólidos e o consumo sustentável
fazer uma diferença positiva para os recursos naturais que podem ter a sua
sustentabilidade aumentada (IMPERIANO, 2012) 15.
Nesse sentido, trazemos à luz o que determina o art. 7º da Lei Federal
12.305/2010, que trata dos objetivos da PNRS, dentre os quais destacamos os
seguintes: a) Não geração, redução, reutilização, reciclagem e tratamento dos
resíduos sólidos, bem como disposição final ambientalmente adequada dos
rejeitos; b) Incentivo à indústria da reciclagem, tendo em vista fomentar o uso
de matérias primas e insumos derivados de materiais recicláveis e reciclados;
c) Incentivo ao desenvolvimento de sistemas de gestão ambiental e
empresarial voltados para a melhoria dos processos produtivos e ao
reaproveitamento dos resíduos sólidos, incluídos a recuperação e o
aproveitamento energético; e d) Estímulo à implementação da avaliação do
ciclo de vida do produto.
7. DO CONSUMO SUSTENTÁVEL
Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente –
PNUMA (2011) 16, Consumo Sustentável é “o uso de bens e serviços que
atendam às necessidades básicas, proporcionando uma melhor qualidade de
vida, enquanto minimizam o uso dos recursos naturais e materiais tóxicos, a
geração de resíduos e a emissão de poluentes durante todo ciclo de vida do
produto ou do serviço, de modo que não se coloque em risco as necessidades
das futuras gerações”.
Consumir sustentavelmente significa consumir melhor e menos,
buscando conscientemente reduzir o consumo pessoal, devendo ser levado em
consideração no momento de consumir algum produto os impactos ambientais,
sociais e econômicos que o produto causa ao meio ambiente (IMPERIANO,
2014) 17.
15
IMPERIANO, Boisbaudran de O. Direito, auditoria e instrumentos de gestão ambiental.
João Pessoa: Editora Sal da Terra, 2012.
16
PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE - PNUMA. Hacia una
economía verde: Guía para el desarrollo sostenible y la erradicación de la pobreza -
Síntesis para los encargados de la formulación de políticas. Disponivel em:
www.unep.org/greeneconomy. 2011. Acesso 13.09.2019
17
IMPERIANO, BOISBAUDRAN DE O. Da questão ambiental e do modelo econômico. p.
273-292. In: SEABRA, GIOVANNI DE F. (Org.). Terra: agricultura familiar, natureza e
segurança alimentar. Ituiutaba: Barlavento, 2014, 308 p.
320
Boisbaudran de Oliveira Imperiano & Rogério Roberto Gonçalves de
Abreu
O consumo sustentável implica que nós consumidores devemos adquirir
o necessário, buscando colocar em prática a política de Reduzir, Reutilizar e
Reciclar, devendo estabelecer um controle pessoal no consumo de água e
energia elétrica como forma de contribuir para diminuir o desperdício dos
recursos naturais (IMPERIANO, 2015) 18.
Desta forma há que cada um dos consumidores ter consciência sobre o
que está comprando e se realmente é necessário comprar, além de que deve
fazer uma avaliação sobre o impacto que o produto que está sendo comprado
causa no meio ambiente, ou seja, ser um consumidor responsável exige que se
tenha consciência sobre o que se adquire e descarta no meio ambiente, além
de saber sobre a pegada ecológica de cada um no Planeta (IMPERIANO,
2015).
Imbuído deste propósito para ajudar a conscientizar cada vez mais os
consumidores é que o WORLD WIDE FUND FOR NATURE - WWF Brasil
(2014) 19 lançou a publicação “Guia para o Consumidor Responsável” no
formato de cartilha, onde elenca diversas dicas sobre consumo responsável e
princípios para se ter uma atitude consciente de consumo responsável.
A seguir elencamos os 10 (dez) princípios defendidos pelo o WWF Brasil
para se exercer o consumo responsável:
1. Compre apenas O que realmente precisa;
2. Conserte itens ainda em condição de uso;
3. Certifique-se da origem dos produtos que você adquirir;
4. Troque aparelhos eletrônicos apenas se necessário;
5. Consuma mais produtos orgânicos e de produtores locais;
6. Escolha aparelhos mais econômicos no consumo de energia
elétrica;
7. Troque ou doe produtos que não lhe sirvam mais;
8. Evite o desperdício de materiais, como papel, em sua casa ou
trabalho;
9. Recicle tudo o que puder - de aparelhos eletrônicos ao lixo do dia a
dia e,
10. Incentive outros a seguir o seu exemplo e ajude a salvar o
Planeta. (WWF Brasil, 2014).
18
IMPERIANO, BOISBAUDRAN DE O. Sustentabilidade ambiental. João Pessoa: Editora Sal
da Terra, 2015, 245 p.
19
WORLD WIDE FUND FOR NATURE - WWF. Cartilha para o consumidor responsável.
Brasília: WWF, 2014, 14p.
321
Resíduos sólidos e o consumo sustentável
Neste contexto, ressalta-se que para se atingir o consumo sustentável é
necessário envolver o processo de formulação e implementação de políticas
públicas e o fortalecimento dos movimentos sociais, segundo o Ministério do
Meio Ambiente e Ministério da Educação (2005) 20, citamos:
Para se atingir o consumo sustentável é necessário envolver o
processo de formulação e implementação de políticas públicas e o
fortalecimento dos movimentos sociais. Por essa razão, o que importa
não é exatamente o impacto ambiental do consumo, mas antes o
impacto social e ambiental da distribuição desigual do acesso aos
recursos naturais, uma vez que tanto o “superconsumo” quanto o
“subconsumo” causam degradação social e ambiental. Portanto, a
estratégia de consumo sustentável baseada exclusivamente na
redução do consumo nos países do hemisfério norte não garante que
haverá uma melhor redistribuição dos recursos. Neste sentido, as
políticas de consumo sustentável devem contribuir para eliminar as
desigualdades de poder na determinação dos mecanismos de
comércio internacional entre os países. A construção de padrões e
níveis de consumo mais sustentáveis envolve a construção de
relações mais solidárias entre diversos setores sociais, como
produtores, comerciantes e consumidores. Iniciativas de apoio a
formas alternativas de produção (agricultura familiar e orgânica,
reservas extrativistas, cooperativas de produtores, economia solidária
etc.) precisam contar com uma ampla identificação e participação dos
consumidores (MMA & MEC, 2005).
Nesse norte, destaca-se que cada um dos consumidores deve ter
consciência sobre o que está comprando e se realmente é necessário comprar,
além de que deve fazer uma avaliação sobre o impacto que o produto que está
sendo comprado causa no meio ambiente, ou seja, ser um consumidor
responsável exige que se tenha consciência sobre o que se adquire e descarta
no meio ambiente, além de saber sobre a pegada ecológica de cada um no
Planeta (IMPERIANO, 2015) 21.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil enterra anualmente R$120 bilhões ao destinar a aterros e lixões
resíduos que poderiam ser reinseridos em cadeias produtivas, conforme dados
divulgados em 2018 pela Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e
Equipamentos (ABIMAQ, 2018) 22.
20
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE & MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA.
Consumo Sustentável: Manual de educação. Brasília: Consumers International/ MMA/ MEC/
IDEC, 2005. 160 p.
21
IMPERIANO - IDEM
22
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DE MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS -
ABIMAQ. Disponível em: http://abimaq.org.br/site.aspx/Imprensa-Clipping-Tendencias-
detalhe?DetalheClipping=2206. Acesso em 30.01.2019.
322
Boisbaudran de Oliveira Imperiano & Rogério Roberto Gonçalves de
Abreu
A ABRELPE em 2019 estimou que 75% a 80% de todos os resíduos
sólidos urbanos podem ser reciclados, entretanto, apenas 13% deles
costumam ter esse destino, como por exemplo podemos citar o vidro, papel,
metal, borracha e plástico como exemplos de materiais cuja a reciclagem é
possível.
Ainda, 40,5% do total coletado de lixo no país são depositados a céu
aberto, em lixões. Os lixões a céu aberto, apesar de terem um baixo custo
operacional, são um verdadeira ameaça à saúde pública, um a vez que a
decomposição dos resíduos contamina o solo, poluem as águas subterrâneas,
provocam mau cheiro e atrai animais vetores de diversas doenças.
Portanto, a destinação inadequada dos resíduos para lixões ou aterros
controlados, e não para os aterros sanitários, prejudica diretamente a saúde de
77,65 milhões de brasileiros segundo dados da ABRELPE em 2020.
Para tanto, a meta de reduzir substancialmente a geração de resíduos
por meio da prevenção, redução, reciclagem e reuso, até 2030, coaduna-se
com o preconizado pelos princípios e objetivos, constante dos artigos 6º e 7º
da Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos.
A política de Reduzir, Reutilizar e Reciclar, ou seja, a Política dos três
R's são importantes aliados para se chegar ao consumo sustentável, podendo
fazer uma diferença positiva para os recursos naturais que podem ter a sua
sustentabilidade aumentada (IMPERIANO, 2015) 23.
Desta maneira, o modelo de desenvolvimento adotado pela grande
maioria dos países do Planeta, provaram ao longo das cinco últimas décadas
serem pouco sustentáveis. Nesse diapasão comungamos do pensamento de
BELINKY (2012) 24 que afirma: “precisamos uma economia que reconheça o
valor da natureza, de mecanismos para medir o quão distantes estamos dos
limites sociais e ambientais e que, combinados com uma governança efetiva e
democrática, promovam a prosperidade e o bem viver, no espaço
potencialmente seguro e justo que dispomos”.
23
IMPERIANO – IDEM.
24
BELINKY, ARON. Entre o piso social e o teto ambiental. In: Revista Página 22, Edição
Especial, N.º 64, jun/2012, São Paulo, p. 18.
323
Resíduos sólidos e o consumo sustentável
Assim, se faz necessário buscar implementar o consumo sustentável por
meio de práticas e da instituição de uma efetiva política de Reduzir, Reutilizar e
Reciclar, por meio de uma política pública coordenada pela Administração
Pública nos três níveis do poder executivo, além de que nós consumidores
devemos estabelecer um controle pessoal no consumo de água e energia
elétrica como forma de contribuir para diminuir o desperdício dos recursos
naturais.
REFERÊNCIAS
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E
RESÍDUOS ESPECIAIS - ABRELPE. Panorama dos Resíduos Sólidos
no Brasil 2017. Disponível em: http://abrelpe.org.br/panorama. Acesso
em 30.01.2019.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E
RESÍDUOS ESPECIAIS - ABRELPE. Panorama dos Resíduos Sólidos
no Brasil 2018/2019. Disponível em: http://abrelpe.org.br/panorama.
Acesso em 04.02.2019.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E
RESÍDUOS ESPECIAIS - ABRELPE. Panorama dos Resíduos Sólidos
no Brasil 2020. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/6613160/mod_resource/content/
1/Panorama-2020-V5-unicas%20%282%29.pdf. Acesso em 07.07.2022.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DE MÁQUINAS E
EQUIPAMENTOS - ABIMAQ. Disponível em:
http://abimaq.org.br/site.aspx/Imprensa-Clipping-Tendencias-
detalhe?DetalheClipping=2206. Acesso em 30.01.2019.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS – ABNT. Norma NBR-
10004 da Associação Brasileira de Normas Técnicas. Disponível em:
https://segurancadotrabalhoacz.com.br/nbr-10004-clasificacao-dos-
residuos-solidos/. Acesso em 30.01.2019.
BELINKY, ARON. Entre o piso social e o teto ambiental. In: Revista Página
22, Edição Especial, N.º 64, jun/2012, São Paulo, p. 18.
324
Boisbaudran de Oliveira Imperiano & Rogério Roberto Gonçalves de
Abreu
BRASIL. Lei n.º 12.305, de 02 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional
de Resíduos Sólidos; altera a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998;
e dá outras providências. Diário Oficial da União. 03 de ago. 2010.
IMPERIANO, Boisbaudran de O. Direito, auditoria e instrumentos de gestão
ambiental. João Pessoa: Editora Sal da Terra, 2012.
IMPERIANO, BOISBAUDRAN DE O. Da questão ambiental e do modelo
econômico. p. 273-292. In: SEABRA, GIOVANNI DE F. (Org.). Terra:
agricultura familiar, natureza e segurança alimentar. Ituiutaba:
Barlavento, 2014, 308 p.
IMPERIANO, BOISBAUDRAN DE O. Sustentabilidade ambiental. João
Pessoa: Editora Sal da Terra, 2015, 245 p.
IMPERIANO, BOISBAUDRAN DE O. Direito do meio ambiente consolidado.
João Pessoa: Editora Sal da Terra, 2017, 284 p.
IMPERIANO, BOISBAUDRAN DE O. Meio ambiente e direito ambiental em
debate. João Pessoa: Editora Sal da Terra, 2021, 350 p.
LAGO, A. e PÁDUA, J. A. O que é Ecologia. São Paulo: Editora Brasiliense,
1985, 109 p.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Objetivos de desenvolvimento
sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/12. Acesso
em 07.07.2022.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. BRASIL. Sobre o nosso trabalho
para alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável no
Brasil. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. 2022. Acesso
09.06.2022.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE & MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E
CULTURA. Consumo Sustentável: Manual de educação. Brasília:
Consumers International/ MMA/ MEC/ IDEC, 2005. 160 p.
PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE - PNUMA.
Hacia una economía verde: Guía para el desarrollo sostenible y la
erradicación de la pobreza - Síntesis para los encargados de la
formulación de políticas. Disponivel em: www.unep.org/greeneconomy.
2011. Acesso 13.09.2019
325
Resíduos sólidos e o consumo sustentável
WORLD WIDE FUND FOR NATURE - WWF. Cartilha para o consumidor
responsável. Brasília: WWF, 2014, 14p.
WWF – WORLD WIDE FUND FOR NATURE. Relatório planeta vivo:
sumário executivo. Brasília: WWF, 2022.
326
Crianças e adolescentes refugiadas venezuelanas desacom-
panhadas no Brasil: um estudo acerca da (re) inserção social e
familiar
Lílian Sena da Silva 1
Flavia de Paiva Medeiros de Oliveira 2
1. INTRODUÇÃO
A crise social e econômica na Venezuela, agravada nos últimos anos,
aumentou o fluxo migratório de pessoas que buscam refúgio em países vizinhos
a procura de melhores condições de vida, sendo o Brasil um deles, recebendo
milhares de refugiados venezuelanos principalmente por meio terrestre na
fronteira de Pacaraima, estado de Roraima.
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados –
ACNUR, órgão responsável em proteger os refugiados e proporcionar soluções
viáveis aos seus problemas, até o final de 2019 mais de cinco milhões de
refugiados e migrantes da Venezuela haviam deixado o seu país e
aproximadamente 250.000 (duzentos e cinquenta mil) tiveram como destino o
Brasil., o maior êxodo na história recente da região 3.
E, conforme dados do CONARE (Conselho Nacional de Refugiados) e
Polícia Federal, a maior parte de solicitações da condição de refugiado no Brasil
nos últimos anos ainda é de venezuelanos (67%), sendo a maioria menores de
15 anos de idade, dados esses do último relatório do portal de imigração. 4
Dessa forma, vê-se que, dentre o público jovem que ingressa no território
brasileiro em busca de refúgio, estão as crianças e adolescentes que entram na
fronteira brasileira desacompanhadas ou separadas, constituindo sujeitos
1
Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo Centro Universitário de João Pessoa
2
Doutora em Direito pela Universidade de Valencia-Espanha, professora do Mestrado em Direito
e Desenvolvimento do UNIPE.
3
ACNUR. Dados sobre refúgio. Disponível em: http://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-
refugio/. Acesso em: 28/05/2020.
4
JUNGER DA SILVA, Gustavo; CAVALCANTI, Leonardo; LEMOS SILVA, Sarah; TONHATI,
Tania; LIMA COSTA, Luiz Fernando. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da
Justiça e Segurança Pública/ Departamento das Migrações. Brasília, DF: OBMigra, 2023
327
Crianças e adolescentes refugiadas venezuelanas (...)
duplamente vulneráveis, uma pela condição de infante, outra por serem
refugiados, necessitando de maior proteção aos seus direitos não só nacionais,
mas principalmente internacionais, uma vez que o refugiado se classifica como
sujeito de direitos e responsabilidade não só da nação que o acolhe, mas
também do mundo, onde diversos países e organizações internacionais se unem
para acolhimento e proteção a esses povos, visto tratar-se de direitos humanos.
Assim, o presente artigo objetiva analisar o acolhimento das crianças e
adolescentes refugiadas venezuelanas que ingressam na fronteira brasileira em
situação de hipervulnerabilidade, desacompanhadas dos pais ou responsáveis,
em violação de direitos, necessitando do acolhimento, proteção e políticas
públicas adequadas e eficazes que lhes garantam o direito à convivência familiar,
seja em busca da família de origem com o processo de reunificação, ou em
família substituta, garantindo-lhes com isso, a efetivação de um direito
fundamental.
Em se tratando de direito das crianças e adolescentes e ainda refugiados,
pretende-se ressaltar a importância e dever do Estado na proteção dos direitos
infanto juvenis, pesquisando-se quais as políticas públicas implementadas a
esse público, bem como quais as dificuldades enfrentadas não só pelas crianças
e adolescentes refugiadas da Venezuela, como também do próprio Brasil em
acolher e garantir direitos, principalmente o direito à convivência familiar àqueles
que chegam desacompanhados dos pais ou responsável legal.
A metodologia do estudo se baseia na pesquisa de natureza qualitativa
com pesquisa bibliográfica e documental e método descritivo e exploratório de
forma a demonstrar a realidade das crianças e adolescentes venezuelanas que
chegam ao Brasil desacompanhadas e como é realizado o acolhimento com
vistas a garantir-lhes o direito à convivência familiar.
2. CRIANÇAS E ADOLESCENTES REFUGIADAS VENEZUELANAS
DESACOMPANHADAS E A FRONTEIRA BRASILEIRA
O Brasil tem sido um dos principais alvos de busca de refúgio a todos
aqueles que tentam deixar seu território nacional, fugindo de opressões seja por
motivos políticos, raciais, sociológicos ou financeiros na tentativa de uma vida
digna, com melhores condições de sobrevivência.
328
Lílian Sena da Silva & Flavia de Paiva Medeiros de Oliveira
Dentre os que mais procuram refúgio no território brasileiro estão os
venezuelanos que, com o agravamento da crise humanitária na Venezuela, no
governo de Nicolas Maduro, milhares de pessoas se deslocaram em busca de
refúgio e melhores condições de vida, fazendo com que muitas crianças
cheguem ao Brasil desacompanhadas dos pais ou responsável legal.
É na fronteira do Estado de Roraima que ocorre o ingresso dos
venezuelanos em busca de refúgio, concentrando-se o maior número na capital
Boa Vista e na cidade de Pacaraima. 5 Eles são recepcionados pelo governo
brasileiro por meio da Polícia Federal e da Defensoria Pública da União, e
também por organizações não governamentais, como ACNUR (Alto
comissariado das Nações Unidas para Refugiados, UNICEF (Fundo das Nações
Unidas para Infância) e Cátedras diocesanas 6.
Com a finalidade de garantir o atendimento aos migrantes e refugiados
venezuelanos que ingressam em Roraima, o governo federal criou em 2018, a
Operação Acolhida, uma grande força tarefa humanitária executada e
coordenada pelo Governo Federal com apoio de outros entes federativos,
agências da ONU, organismos internacionais, organizações da sociedade civil e
entidades privadas 7.
Quando ingressam na fronteira, os migrantes infanto juvenis
desacompanhados ou separados são entrevistados pela Defensoria Pública da
União, por meio de escuta qualificada, individualizada com informação
adequada, inclusive sobre a regularização migratória que atenda aos seus
melhores interesses. Crianças que necessitem de especial proteção por
possivelmente serem vítimas de violência, tráfico humano ou outras formas de
exploração, são encaminhadas para entrevista complementar e ouvidas por uma
equipe multidisciplinar com possibilidade de serem alocadas em abrigo
institucional. 8
5
NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. UNICEF. Disponível em:
http://www.unicef.org/brazil/Pesquisa?force=o&query=venezuelanos
6
ACNUR. Dados sobre refúgio. Disponível em: http://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-
refugio/
7
BRASIL, Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.
Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/acolhida/sobre-a-operacao-acolhida-2
8
JUNGER, Gustavo; CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Tadeu de; SILVA, Bianca G. Refúgio
em Números (7ª Edição). Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério
da Justiça e Segurança Pública/ Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de
Imigração Laboral. Brasília, DF: OBMigra, 2022
329
Crianças e adolescentes refugiadas venezuelanas (...)
De acordo com o UNICEF, houve um considerável aumento, desde o ano
de 2020, no número de crianças e adolescentes venezuelanas que cruzaram a
fronteira brasileira desacompanhadas ou separadas. Estas, são as que estão
acompanhadas de alguém que não é o pai, a mãe ou o responsável legal e
aquelas são as que chegam sozinhas ao Brasil, sem a tutela de um adulto. Em
2020, 1.577 crianças desacompanhadas, separadas e sem documentos foram
identificadas e apoiadas pelo UNICEF, enquanto que somente no primeiro
trimestre de 2021, esse número chegou a 1.071. 9
Durante a Operação Acolhida, no Estado de Roraima, há uma rede de
proteção e acolhimento às crianças e adolescentes venezuelanos que chegam
desacompanhadas ao Brasil, que juntamente com o UNICEF acolhem esses
sujeitos e tentam encontrar seus pais ou responsáveis num processo de
reunificação familiar. Uns obtém sucesso, já aqueles que não tem a família
restabelecida, são postos em casas de acolhimento institucional, gerando uma
superlotação nos abrigos do Estado, o que levou o governo federal, juntamente
com as demais instituições e parceiros da Operação Acolhida aumentarem o
número de abrigos e Casas Lares para suportar a demanda e acolher a todos
com dignidade e segurança.
Atualmente, há quatorze abrigos em Roraima, para acolhimento de
refugiados venezuelanos, indígenas e não indígenas, dentre eles crianças e
adolescentes, onde são oferecidos serviços de alimentação, proteção,
segurança, saúde e atividades sociais e educativas. 10 Tanto os abrigos
masculino e feminino quanto as Casas Lares abrigam crianças e adolescentes
em situação de vulnerabilidade, dentre elas refugiados e migrantes
venezuelanos. As duas modalidades de acolhimento estão vinculadas a uma
rede de cuidado e proteção provida por serviços municipais e estaduais, entre
eles os Centros de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), as
Unidades Básicas de Saúde (UBS), os Conselhos Tutelares, a Defensoria
Pública do Estado e da União e a Vara da Infância e Juventude. 11
9
NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. UNICEF. Disponível em:
http://www.unicef.org/brazil/Pesquisa?force=o&query=venezuelanos
10
ACNUR. Dados sobre refúgio. Disponível em: http://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-
refugio/
11
UNICEF. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/crise-migratoria-venezuelana-no-brasil
330
Lílian Sena da Silva & Flavia de Paiva Medeiros de Oliveira
A AVSI BRASIL (Associação Voluntários para o Serviço Internacional
Brasil) também é uma organização não governamental que, juntamente com a
sociedade civil trabalha na reunificação familiar, tentando encontrar os pais de
crianças e adolescentes venezuelanas que chegam na fronteira brasileira
desacompanhadas ou separadas. 12
Segundo dados da Polícia Federal e CONARE (Conselho Nacional de
Refugiados), em 2021, a maior parte dos solicitantes da condição de refugiado
tinha menos de 15 anos de idade em um total de 8.198 crianças e adolescentes
venezuelanas. Essa solicitação de refúgio é feita pela Operação Acolhida, dentro
do Posto de Interiorização e Triagem
As crianças e adolescentes refugiados são considerados sujeitos em
dupla vulnerabilidade, pois além da condição de infantes sofrem a situação de
refúgio, ressaltando-se que aquelas que chegam desacompanhadas possuem
uma hiper vulnerabilidade, necessitando de especial proteção. 13
Em 2018, o Conanda fez recomendações sobre a prioridade absoluta de
crianças e adolescentes migrantes, em que apresenta propostas de forma a
garantir os direitos das crianças e adolescentes, dentre eles: a matrícula em
escola brasileira, alimentação saudável, direito a brincar, à saúde, ao lazer e à
convivência familiar. Traz também ações de prevenção a qualquer tipo de
violência, especialmente contra a exploração sexual, trabalho infantil e o tráfico
de pessoas. 14
Em se tratando de direitos das crianças e adolescentes os princípios da
proteção integral e prioridade absoluta são marcas presentes tanto no
ordenamento jurídico internacional como nacional e o direito à convivência
familiar é um direito universal, onde deve ser garantido a todo cidadão,
principalmente crianças e adolescentes que ainda se encontram na formação da
personalidade, crescimento e desenvolvimento.
12
AVSI BRASIL. Disponível em: https://www.avsibrasil.org.br/projeto/centros-de-abrigod-e-
assistencia-multisetoria-de-venezuelanos/
13
LIMA, Carolina Alves de Sousa. SANTARÉM, Viviam Netto Machado. Hipervulnerabilidade de
Crianças Venezuelanas Refugiadas Desacompanhadas ou Separadas: tensões ou desafios do
Estado brasileiro diante da violação dos direitos humanos. Libertas. Revista de Pesquisa em
Direito
14
DIREITOS DA CRIANÇA. Resolução Conjunta CONANDA, CONARE, CNIg, DPU. Disponível
em: http://www.direitosdacrianca.gov/ Acesso em 15/06/2020
331
Crianças e adolescentes refugiadas venezuelanas (...)
O direito de crescer dignamente no seio de uma família é essencial para
efetivação de todos os direitos inerentes à condição humana. Assim, o direito à
convivência familiar é reconhecido como um dos pilares da doutrina da proteção
integral à infância e juventude. 15
Infelizmente, contudo, o direito à convivência familiar, por mais que
consagrado como o um direito fundamental, na prática, inexiste há muitas
crianças e adolescentes que crescem sozinhas, longe da família, em abrigos e
similares, sem conseguirem se reinserirem no seio familiar repleto de afeto, em
situações de clara vulnerabilidade.
E, como no presente artigo tratamos de crianças e adolescentes
refugiadas venezuelanas, que ingressam na fronteira brasileira
desacompanhadas ou separadas do responsável legal, faz-se ainda maior o
grau de responsabilidade do Estado em reinserir esses sujeitos no seio familiar,
em virtude da dupla vulnerabilidade, uma pela condição de infante e outra pela
condição do refúgio.
4. A REINSERÇÃO FAMILIAR DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
REFUGIADAS DESACOMPANHADAS NO BRASIL E O SEU CARÁTER
ÉTICO
É crescente, nos últimos anos, o número de crianças e adolescentes
venezuelanas que buscaram refúgio no Brasil desacompanhadas dos pais e ou
responsáveis legais, ingressando na fronteira sozinhas, razão pela qual passa a
ser dever do estado brasileiro realizar não só o acolhimento desses sujeitos,
como também e principalmente, buscar a reinserção familiar dos mesmos.
A legislação internacional, por mais que preveja os direitos fundamentais
das crianças refugiadas, como prioridade absoluta, proteção integral, trata das
mesmas em um aspecto generalizado, sem especificar as que estão
acompanhadas dos pais e responsáveis ou as que ingressam no território
sozinhas, desacompanhadas, como é o caso da Convenção sobre os Direitos da
Criança que, em seu artigo 22 enfatiza o direito ao acolhimento, à assistência e
15
DINIZ. Vanessa do Carmo. A convivência familiar como direito fundamental da criança e do
adolescente.2008. UNISAL.
332
Lílian Sena da Silva & Flavia de Paiva Medeiros de Oliveira
à proteção humanitária da criança refugiada, esteja ela ou não acompanhada
dos pais ou familiares, bem como o dever de cooperação internacional para
efetiva proteção.
Por isso que, esses dispositivos legislativos internacionais devem ser
interpretados em consonância com a legislação nacional de proteção aos
infantes, como a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e Adolescente (Lei
n.º 8.069/90) que também asseguram o direito à proteção integral e prioridade
absoluta, ressaltando ainda o direito à convivência familiar, objeto do presente
estudo.
Primeiramente, as crianças que chegam sozinhas ao Brasil passam por
um processo de reconhecimento, identificação e acolhimento em abrigos para
receberem alimentação, lazer, socialização, além da busca pela família perdida,
reinserindo-se no seio familiar de origem. Apenas quando não é possível essa
reinserção familiar, as crianças e adolescentes são alocadas em Casas Lares ou
abrigos institucionais, localizados principalmente no Estado de Roraima com
ajuda e execução da Operação Acolhida. 16
É na Operação Acolhida que é iniciada a política pública no Brasil, voltada
ao acolhimento e execução dos direitos dos refugiados e migrantes que
ingressam na fronteira por Roraima. Foi criada por meio de Medida Provisória
n.º 820, de 15 de fevereiro de 2018, posteriormente convertida na Lei n.º 13.684,
de 21 de junho daquele mesmo ano. Implantada em caráter emergencial e
funciona até hoje com a recepção e acolhimento a todos aqueles que buscam
refúgio no Brasil, em uma verdadeira força tarefa conjunta entre o Governo
Federal, estadual, organizações internacionais e sociedade civil.
Essa política de acolhimento foi fundamentada na Resolução Conjunta n.º
01 de 09 de agosto de 2017, editada pelo Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e Adolescente (CONANDA), o Comitê Nacional para Refugiados
(CONARE), o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e a Defensoria Pública da
União (DPU). Essa resolução estabelece os procedimentos para acolhimento e
recepção do fluxo infantil que ingressa no Brasil, como identificação preliminar,
16
Operação Acolhida. Disponível em https://www.gov.br/casacivil/pt-br/acolhida/sobre-a-
operacao-acolhida-2
333
Crianças e adolescentes refugiadas venezuelanas (...)
atenção e proteção a crianças e adolescentes migrantes, refugiados ou apátridas
que entram na fronteira brasileira desacompanhadas ou separadas.
Segundo a Resolução do CONANDA, tão logo a criança ou adolescente
ingresse no Brasil é realizada a sua identificação pela autoridade de fronteira e
logo após a sua entrevista individual por meio de escuta qualificada realizada
pela Defensoria Pública da União, órgão responsável para executar esse
acolhimento inicial e realizar a análise de proteção, formulando requerimentos
de regularização migratória, bem como assegurar ao público infantil seus direitos
fundamentais. 17
Desde a Operação Acolhida a Defensoria Pública da União criou a Missão
Pacaraima, a qual promoveu o deslocamento de 52 defensores à cidade de
Pacaraima/RR, com o fim de prestar assistência jurídica migratória acolhedora a
crianças e adolescentes decorrentes do fluxo migratório da Venezuela. Assim,
com essa missão, até o ano de 2022, a Defensoria Pública da União atendeu
6.085 crianças e adolescentes em especial dificuldade migratória (DPU, 2022).
Apenas no segundo semestre de 2019 a Defensoria Pública da União
atendeu um total de 3.051crianças e adolescentes migrantes na fronteira de
Roraima. Destes, 1.998 estavam separadas, 423 desacompanhadas e 1.080
indocumentadas. (DPU, 2020).
Em 2021 a Defensoria Pública da União, após retomar presencialmente a
“Missão Pacaraima” atendeu 1.643 crianças e adolescentes em situação de
vulnerabilidade social, sejam indocumentados, separados ou
desacompanhados. Contudo, a própria Defensoria ressalta que, nem toda
criança ou adolescente que ingressa no Brasil desacompanhado ou separado é
caso de institucionalização em abrigo, uma vez que muitas delas chegam à
procura dos pais que já se encontram aqui no Brasil e outras fugiram da
Venezuela ou foram levadas sem o conhecimento dos mesmos, sendo o caso,
portanto, de reinserção na família natural e não substituta. Há casos em que,
17
LIMA, Carolina Alves de Sousa. SANTARÉM, Viviam Netto Machado. Hipervulnerabilidade de
Crianças Venezuelanas Refugiadas Desacompanhadas ou Separadas: tensões ou desafios do
Estado brasileiro diante da violação dos direitos humanos. Libertas. Revista de Pesquisa em
Direito.
334
Lílian Sena da Silva & Flavia de Paiva Medeiros de Oliveira
após a busca e localização dos parentes, pais e ou responsáveis, as crianças
são devolvidas na própria fronteira, de volta à Venezuela, outras são
interiorizadas para o reencontro e reunificação familiar. E a minoria é posta em
abrigo institucional. 18
5. MEDIDAS JURÍDICAS DE ACOLHIMENTO FAMILIAR NO BRASIL ÀS
CRIANÇAS E ADOLESCENTES VENEZUELANAS REFUGIADAS
DESACOMPANHADAS E SEPARADAS
Como já dito no presente artigo, com o crescente número de
venezuelanos a procura de refúgio no Brasil, dentre eles crianças e
adolescentes, principalmente no Estado de Roraima, surgiram medidas
emergenciais não só para acolhimento dessas pessoas pelo estado brasileiro,
como para garantia de seus direitos fundamentais.
As medidas jurídicas de acolhimento familiar no Brasil voltadas às
crianças e adolescentes refugiados venezuelanas são realizadas pela Operação
Acolhida por meio do processo de reunificação familiar e interiorização para
reinserção na família natural àquelas crianças e adolescentes que ingressam na
fronteira desacompanhadas ou separadas dos pais.
Na maioria das vezes, as crianças que chegam ao Brasil
desacompanhadas ou separadas estão à procura de seus pais que já vieram
anteriormente para o território brasileiro em busca do refúgio e assim, após o
processo de identificação, é realizada a procura pelos pais e ou parentes
próximos daquelas crianças e adolescentes, por meio da Defensoria Pública da
União e do Estado de Roraima que tenta localizar os pais dos infantes
reintegrando-os à família.
Quando não é possível a reinserção na família natural é que os migrantes
infanto juvenis são postos nas Casas Lares e Casas de Acolhimento nos
municípios de Boa Vista e Pacaraima a fim de ser encontrada uma família
substituta.
18
Defensoria Pública da União. Disponível em:
https://www.dpu.def.br/images/stories/arquivos/PDF/Assistencia_Juridica_Integral_e_Gratuita_
no_Brasil__um_panorama_da_atuacao_da_Defensoria_Publica.pdf
335
Crianças e adolescentes refugiadas venezuelanas (...)
Todas as medidas de acolhimento, identificação, proteção e garantia de
direitos são realizadas não só pelo Estado brasileiro, por meio de seus órgãos
de Defensoria Pública, Varas da Infância e Juventude, Conselhos Tutelares,
como também por Organismos nacionais e internacionais voltados à defesa da
criança e adolescentes como o UNICEF, CONANDA, ALDEIAS INFANTIS, AVSI
BRASIL, ACNUR, que participam ativamente do processo de cuidado e
reunificação familiar desses refugiados infanto juvenis.
Há ainda, além da busca pela reunificação e reintegração familiar das
crianças e adolescentes desacompanhadas e separadas dos pais, nos casos de
impossibilidade da reunificação, como quando os pais já faleceram ou
abandonaram os filhos, o processo de guarda pelos parentes mais próximos,
que na maioria das vezes ocorre pelos avós. Nesses casos, a Defensoria Pública
ingressa com pedido de guarda e também é concedido um cartão que fornece
direito a uma transferência de renda mensal para complementar as finanças da
família por um período de três meses, após a reunificação, podendo ser
renovado por mais três. 19
Esse programa de transferência monetária para reunificação familiar é
liderado pelo UNICEF com financiamento do Departamento de Proteção
Civil e Ajuda Humanitária da União Europeia.
Nos dois primeiros meses de 2021, 102 crianças e adolescentes
receberam o benefício financiado pelo Departamento de Proteção Civil e Ajuda
Humanitária da União Europeia, alcançando diretamente 510 pessoas que vivem
com eles. 20
Assim, por meio desses processos de reunificação familiar, interiorização
em busca de parentes próximos e também o acolhimento em abrigos
institucionais e Casas Lares como última hipótese, todos dentro da Operação
Acolhida, procura-se a execução dos direitos fundamentais e a garantia do direito
19
UNB e DPU lançam relatório sobre atuação da defensoria junto a crianças migrantes
venezuelanas. Disponível em: https://noticias.unb.br/112-extensao-e-comunidade/4969-unb-e-
dpu-lancam-relatorio-sobre-atuacao-da-defensoria-junto-a-criancas-migrantes-venezuelanas
20
NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. UNICEF. Disponível em:
http://www.unicef.org/brazil/Pesquisa?force=o&query=venezuelanos.
336
Lílian Sena da Silva & Flavia de Paiva Medeiros de Oliveira
à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes venezuelanas que
migram ao Brasil em situação de refúgio.
6. NOTAS CONCLUSIVAS
Vimos no presente artigo como o Brasil acolhe as crianças e adolescentes
refugiadas venezuelanas que ingressam desacompanhadas ou separadas na
fronteira em busca de refúgio, como também quais as medidas adotadas que
garantam aos migrantes infanto juvenis o direito à convivência familiar que é um
dos direitos fundamentais da criança e adolescente, não só de origem nacional,
mas também internacional.
Abordou-se a importância da convivência familiar a toda criança e
adolescente, inclusive sob o aspecto ético, ou seja, fundamentado na legislação
e doutrina, não só como um direito, mas também como essencial ao
desenvolvimento dos infantes.
Restou configurado que o público infanto juvenil refugiado são seres
duplamente vulneráveis, tanto pela condição de infante, como pela situação de
refúgio, precisando de maior proteção do Estado acolhedor, além daquela
prevista como um dos princípios basilares do direito infantil que é a proteção
integral.
O maior número de crianças e adolescentes refugiados venezuelanos que
ingressam no Brasil entram pela fronteira do Estado de Roraima, alocando-se na
capital Boa Vista e na cidade de Pacaraima. E é nesses dois municípios que foi
implantada a Operação Acolhida, a maior política pública do Brasil ao
acolhimento daqueles refugiados, consistindo numa atitude emergencial do
Governo Federal com o apoio de diversos órgãos do mesmo como Defensoria
Pública da União, Forças Armadas, CONANDA, CONARE, Governo Estadual,
Defensoria Estadual, Tribunal de Justiça, governo municipal, grandes
instituições internacionais como UNICEF, ACNUR, ALDEIAS INFANTIS e
sociedade civil.
E é por meio da Operação Acolhida que é feito o processo que vai desde
o acolhimento às crianças e adolescentes refugiados até a busca pela família
337
Crianças e adolescentes refugiadas venezuelanas (...)
natural, pai, mãe ou demais parentes, por meio do procedimento denominado de
interiorização com finalidade de reunificação familiar.
Àqueles que não conseguem ser reunidos novamente na família de
origem, também chamada família natural, são institucionalizados nos diversos
abrigos e Casas Lares localizados nas cidades de Boa Vista e Pacaraima no
Estado de Roraima, consistindo, todavia, a minoria.
Contudo, durante a presente pesquisa, observou-se que apesar do
grande sucesso e certa eficácia da Operação Acolhida, que consegue reunir
inúmeras famílias, garantindo o direito à convivência familiar à maioria das
crianças e adolescentes que ingressam na fronteira brasileira sozinhos,
desacompanhados, ou separados dos pais e responsáveis legais, vê-se que o
Brasil e principalmente o Estado de Roraima, sozinhos, não possuem condições
de receber e acolher os milhares de refugiados venezuelanos que aqui buscam
refúgio; necessitando da ajuda não só humanitária, mas financeira, de diversos
organismos e instituições internacionais como o UNICEF, ONU que são
essenciais na execução e garantia dos direitos fundamentais a todos os
refugiados, dentre eles as crianças e adolescentes, sujeitos, com maior
vulnerabilidade.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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práticos.7º ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
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Desacompanhadas ou Separadas: tensões ou desafios do Estado
brasileiro diante da violação dos direitos humanos. Libertas. Revista de
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PEREIRA, Tânia da Silva; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coords.). A ética da
convivência familiar: sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 159.
DINIZ. Vanessa do Carmo. A convivência familiar como direito fundamental da
criança e do adolescente.2008. UNISAL.
340
Medidas coercitivas na tutela executiva e a patrimonialidade das
obrigações: análise do julgamento da ADI 5.941
Ana Julia Lopes Palmeira 1*
Arthur Morais Rodrigues Cavalcanti Alves 2**
Fábio Luiz de Oliveira Bezerra 3***
1 INTRODUÇÃO
Contemporaneamente, uma das grandes preocupações do Direito é
torná-lo concretamente aplicável e aplicado, de modo que consiga resolver
satisfatoriamente os problemas da sociedade.
Quanto a isso, bem se sabe que a formação do Estado liberal instituiu
certas balizas ao poder estatal através de um sistema jurídico pautado,
principalmente, na autonomia privada. Dessa forma, o poder público, que outrora
emanava apenas a vontade do soberano, também passou a ser responsável por
garantir a liberdade dos indivíduos, o que se deu por meio da concretização do
princípio da igualdade formal.
Tal entendimento culminou num papel meramente passivo do juiz, o qual
é facilmente notado a partir do Código Civil Napoleônico, que, em seu art. 1.142,
dispõe que toda obrigação de fazer ou de não fazer se resolve em perdas e
danos em caso de inexecução pela parte devedora.
No entanto, a experiência histórica mostrou que as restrições trazidas
por essa doutrina dificultavam o adimplemento das obrigações tal como foram
pactuadas, bem como impediam a efetivação da tutela específica pelo Judiciário.
No Brasil, a superação dessa sistemática se iniciou com a Lei
72.226/1972, que trouxe consigo a possibilidade de estabelecer multa coercitiva
(astreintes) em caso de inadimplemento das obrigações de fazer e não fazer.
Além disso, no mesmo período, o Código de Processo Civil de 1973 possibilitou,
1*
Graduanda em Direito (UFRN). Monitora de Direito Civil. E-mail: [email protected].
2**
Graduando em Direito (UFRN). Monitor de Direito Civil. E-mail: [email protected].
3***
Professor Adjunto (UFRN), Doutor em Direito, e-mail: [email protected].
341
Medidas coercitivas na tutela executiva e a patrimonialidade das (...)
para esses tipos de obrigações, a tutela dos interesses do credor pelo resultado
prático equivalente.
Em 2015, diante da necessidade de sanar a morosidade do sistema
judicial brasileiro, foi elaborado um Novo Código de Processo Civil (CPC). Esse
diploma legal concretizou uma importante mudança no tocante às medidas
coercitivas na fase de execução, de modo a atribuir ao juiz a incumbência de
promover todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-
rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial,
consoante redação dada pelo art. 139, inc. IV.
Acerca do assunto, a pesquisa Justiça em Números, realizada pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apontou que em 2022, 52,3% dos
processos pendentes de baixa no país estavam estagnados na fase de
execução. 4 Além disso, a pesquisa realizada demonstrou que, enquanto houve
mais processos baixados do que novos na fase de conhecimento, o mesmo não
ocorreu com as execuções.
Ocorre que, mesmo diante da necessidade empírica que culminou na
criação daquele mencionado aparato, o texto legal sofreu duras críticas
relacionadas, essencialmente, à mitigação de direitos fundamentais, cujo
embate culminou na manifestação da mais alta instância jurisdicional do país.
Nesse prisma, em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) possibilitou,
à luz do art. 139, inc. IV, do CPC/2015, a utilização, pelo magistrado, de medidas
coercitivas não patrimoniais, como a apreensão da carteira nacional de
habilitação (CNH), no procedimento de execução, nos termos da decisão
proferida em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.941/DF.
Diante dessa problemática, emerge a seguinte pergunta de pesquisa: a
decisão do STF na ADI 5.941 corrobora o novo paradigma de coercibilidade das
obrigações? E de que maneira o faz, mitigando ou superando o caráter de
patrimonialidade das obrigações?
Sob esse viés, o objetivo da pesquisa é realizar um estudo analítico
acerca das repercussões dessa decisão e da expansão do rol de alternativas
inerentes ao poder de coerção do juiz, principalmente sob a perspectiva do
4
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2023. Conselho Nacional de
Justiça. – Brasília: CNJ, 2023.
342
Ana Julia Lopes Palmeira, Arthur Morais Rodrigues Cavalcanti Alves
& Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
Direito das Obrigações, avaliando se representa a melhor satisfação dos
interesses dos credores, assim como investigando a correlação entre liberdade
e tutela específica da obrigação.
Para melhor viabilizar o andamento da pesquisa, foram estabelecidos os
seguintes objetivos específicos: a) abordar a evolução do caráter de
patrimonialidade da obrigação, notadamente a partir do Estado Social, com a
constitucionalização do direito civil, identificando os direitos fundamentais de
primeira geração constantes numa relação obrigacional e que podem entrar em
choque numa situação concreta; b) avaliar a regra jurídica encartada no art. 139,
inc. IV, do CPC/2015, incluindo o exame da sua compatibilidade com os
princípios constitucionais e o impacto da decisão do STF na ADI 5.941 tanto
sobre os direitos fundamentais do credor e do devedor quanto sobre as
caraterísticas modernas da obrigação (patrimonialidade e coercibilidade).
Na presença do que foi apresentado, entende-se que esta pesquisa tem
relevância jurídica e social, na medida em que o entendimento aprofundado
sobre a possibilidade da utilização de meios coercitivos que restrinjam direitos
fundamentais na execução de obrigações civis é útil não somente no ambiente
acadêmico, mas ultrapassa-o. Isso porque o assunto ora abordado afeta
credores e devedores, os quais são representados pelos cidadãos em geral, para
além de juristas. Vale destacar que a concretização dos direitos elencados na
Constituição, como a tutela jurisdicional, preconizada pelo acesso à justiça,
também é de interesse geral.
A pesquisa se justifica, ainda, pela novidade da abordagem, em aspecto
do tema ainda não investigado cientificamente, pois a doutrina tem discutido a
questão sob a perspectiva processual, procurando delimitar as circunstâncias de
proporcionalidade e razoabilidade das medidas restritivas de direitos
fundamentais, mas não se tem visualizado a problemática da repercussão na
concepção de obrigações, que é pressuposto de todos os desdobramentos.
A hipótese testada é a de que a primazia da tutela específica superou a
característica da patrimonialidade da obrigação, concretizando, através de
mecanismos coercitivos, o direito ao cumprimento dos pactos e à liberdade
negocial, direito humano de primeira geração.
343
Medidas coercitivas na tutela executiva e a patrimonialidade das (...)
Como metodologia de trabalho, utiliza-se de pesquisa bibliográfica a
partir do método descritivo e exploratório, com o uso majoritário de análise
descritivo-interpretativa da doutrina, da legislação pátria e da jurisprudência das
Cortes Superiores com o propósito de investigar a hipótese delineada e alcançar
os objetivos da pesquisa.
O recorte temático na literatura foram as discussões doutrinárias sobre
a coercibilidade e a patrimonialidade das obrigações ao longo dos anos recentes,
tanto no aspecto processual, tanto no aspecto material. Quanto à jurisprudência,
faz-se uma análise do julgamento da ADI 5.941 pelo STF.
Ante o exposto, cumpre, por fim, indicar a divisão lógica do presente
artigo. Após esta breve introdução ao estudo, seguirá um tópico referente à
evolução do conceito de obrigação e aos direitos fundamentais do credor e do
devedor que estão envolvidos. Posteriormente, se tem um tópico acerca da
aplicação do art. 139, inc. IV, do CPC/2015 pelo STF e os impactos relevantes
na concretização dos direitos humanos de primeira geração, em especial, o do
recebimento do crédito (adimplemento), e sobre os pilares do direito das
obrigações. Por fim, a conclusão do presente trabalho.
2 COERCIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO, TUTELA ESPECÍFICA E A
CARACTERÍSTICA DA PATRIMONIALIDADE
Em primeiro plano, é importante definir o conceito de obrigação e qual o
seu caráter no sistema jurídico brasileiro. O direito das obrigações é o ramo do
direito que regula as relações jurídicas de direito privado, de caráter pessoal,
entre duas ou mais pessoas determinadas ou determináveis, nas quais o titular
do direito (credor) tem a faculdade de exigir o cumprimento do dever correlato
de prestar, respondendo o sujeito do dever (devedor) com o seu patrimônio. 5
Nesse sentido, é de se destacar que não há obrigação sem dívida, visto
que essa última antecede a primeira, a qual, em sentido estrito, vincula apenas
o devedor. 6 É justamente por isso que Pontes de Miranda 7 conclui que o estudo
5
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: obrigações. 10. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2023, v. 2.
6
TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das obrigações e responsabilidade civil. 16. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2021, v. 2, p. 29.
7
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro:
Borsoi, 1971. v. 26.
344
Ana Julia Lopes Palmeira, Arthur Morais Rodrigues Cavalcanti Alves
& Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
das obrigações deveria se chamar “teoria geral das dívidas”. Por outro lado,
também vale conceituar a responsabilidade no direito das obrigações, que pode
ser definida como o caráter patrimonial dessas, pelo qual o devedor ou terceiro
responsável responde com seu patrimônio pelo inadimplemento.
Em perspectiva similar, se pode entender que a obrigação é, em sua
essência, patrimonial, e, por isso, resguarda as relações de crédito. Nesse
sentido, apregoa Orlando Gomes 8 que “a patrimonialidade da prestação,
objetivamente considerada, é imprescindível à sua caracterização”, pois, se
assim não fosse, “não seria possível atuar a coação jurídica, predisposta na lei,
para o caso de inadimplemento”. Parte da doutrina sustenta que pode até haver
na prestação interesse não patrimonial, porém o interesse deve ser suscetível
de valoração econômica. 9
Assim, outros institutos tutelados pelo direito civil, que não as
obrigações, têm a qualidade de deveres jurídicos, pois não podem ser inseridos
em vínculos puramente mercantilistas e o descumprimento de suas normas não
enseja responsabilização patrimonial, como o dever jurídico da fidelidade no
casamento. Do contrário, a ausência dessa distinção legitimaria a
mercantilização de aspectos da vida social que não são passíveis de valoração
econômica. 10
Percebe-se, pois, que, tradicionalmente, a patrimonialidade é uma
característica intrínseca ao direito das obrigações, perceptível tanto na doutrina
pátria, consoante conceitos acima expendidos, quanto na jurisprudência, por
meio da conversão das prestações em perdas e danos.
Todavia, com a constitucionalização do direito civil 11 – processo de
elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais desse ramo do
direito – que no Brasil adveio, essencialmente, a partir da CF/1988 e do CC/2002,
normas jurídicas constitucionais e advindas de tratados internacionais ganham
8
GOMES, Orlando. Obrigações. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 16.
9
DINIZ, Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações. 35.
ed. São Paulo: Saraiva, 2020, v. II, p. 51.
10
KONDER, Carlos Nelson; RENTERÍA, Pablo. A funcionalização das relações obrigacionais:
interesse do credor e patrimonialidade da prestação. civilistica.com, v. 1, n. 2, p. 1-24, 6 nov.
2012.
11
LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. 10. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2022, v. 2, p. 52.
345
Medidas coercitivas na tutela executiva e a patrimonialidade das (...)
novo escopo, evidenciando maior preocupação com a solidariedade social e a
dignidade da pessoa humana.
Essa nova percepção advém do Estado de bem-estar social, que
juridicamente se caracteriza como aquele que tem incluído em sua Constituição
a regulação da ordem econômica e da ordem social, numa tentativa de conjugar
legalidade e justiça social 12. Sob essa ótica, considerando relações sociais de
poder e de dependência, busca-se o equilíbrio de direitos e deveres entre credor
e devedor, de modo que o caráter de patrimonialidade da obrigação evolui e
passa a se mostrar insuficiente diante das dificuldades de concretização
simultânea de tais prerrogativas antinômicas tuteladas constitucionalmente.
Assim, como aduzem Farias e Rosenvald, “atualmente a característica
da patrimonialidade está mais ligada à sanção (Haftung) do que à prestação
(Schuld)”. 13
Frente a tal cenário, o direito fundamental do credor à tutela jurisdicional
específica encontra obstáculos para sua concretização, visto que o devedor
deseja preservar ao máximo sua dignidade e seu patrimônio. Nesse sentido,
Steinberg 14 assevera que:
na tutela executiva há, de um lado, o executado e, de outro, o
exequente, ou, mais precisamente, alguém com direito constitucional à
obtenção da efetiva e justa tutela contra alguém que quer preservar ao
máximo a sua liberdade e patrimônio. Para temperar essa relação de
poder e sujeição, há de se levar em conta as regras do devido processo
legal; é ele que garantirá o justo equilíbrio e a razoabilidade do poder
estatal sobre o patrimônio do executado, evitando excessos.
Diante desse óbice, no cenário atual, outros princípios ganham destaque
no cenário das tutelas executivas, como o princípio do sincretismo e da
atipicidade dos atos executivos, evidenciando a preocupação do legislador
moderno em garantir um processo de execução efetivo. Assim, passa-se a
entender a obrigação como processo 15, ou seja, como o conjunto de atividades
12
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar,
2008.
13
FARIAS, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 16. ed.
Salvador: JusPodivm, 2022, v. 2, p. 119.
14
STEINBERG, José Fernando. Regime jurídico das medidas coercitivas atípicas na
execução de obrigações pecuniárias, à luz do art. 139, IV, do CPC. 2020. 132 f. Tese
(Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020, p. 25.
15
SILVA, Clóvis V. do Couto e. Obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2016.
346
Ana Julia Lopes Palmeira, Arthur Morais Rodrigues Cavalcanti Alves
& Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
necessárias para obter-se a satisfação do interesse do credor, que é o
adimplemento com a máxima coincidência possível do que foi pactuado
inicialmente.
Para tanto, o art. 497 do CPC/2015 dispõe que, na ação que tenha por
objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz concederá a tutela específica
ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado
prático equivalente. De maneira simétrica, o art. 498 do mesmo código positiva
que, na ação que tenha por objeto a entrega de coisa, o juiz, ao conceder a tutela
específica, fixará o prazo para o cumprimento da obrigação.
Depreende-se, pois, que o adimplemento deve ser feito prioritariamente
na forma específica, isto é, mediante o cumprimento da prestação de fazer ou
não fazer ou da entrega da coisa propriamente dita, e não de quantia
equivalente. Apenas quando o autor requerer ou se for impossível o cumprimento
na forma específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente,
a prestação poderá ser convertida em obrigação pecuniária, nos termos do art.
499 do CPC/2015.
Assim, tendo em vista que o adimplemento deve apresentar a máxima
compatibilidade possível com a obrigação inicialmente pactuada, as ferramentas
de coercibilidade se mostram imprescindíveis para que a tutela específica seja
alcançada, especialmente quando se está diante de devedores contumazes.
Desta feita, apesar de ainda presente a característica da patrimonialidade,
consoante se aduz da leitura do art. 499 do CPC/2015, a primazia da tutela
específica veio a superá-la, na medida em que o âmago do interesse negocial é
o cumprimento puro e simples da obrigação, e não mais o valor econômico da
prestação.
E é precisamente esse direito ao adimplemento específico, concretizado
por meio de mecanismos coercitivos, que relaciona intrinsecamente a noção
contemporânea de direito das obrigações com a concretização do direito
fundamental à liberdade negocial.
347
Medidas coercitivas na tutela executiva e a patrimonialidade das (...)
3 MEDIDAS COERCITIVAS NA VISÃO DO STF: RESTRIÇÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS E OS IMPACTOS NOS FUNDAMENTOS DO DIREITO
DA OBRIGAÇÃO
A Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.941/DF visava obter a
declaração de inconstitucionalidade do art. 139, inc. IV; art. 297; art. 390,
parágrafo único; art. 400, parágrafo único; art. 403, parágrafo único; art. 536,
caput e § 1º; e art. 773, todos do Código de Processo Civil. Desse modo, a
pretensão desejada era invalidar, sem redução de texto, os dispositivos que
possibilitam a utilização de medidas sub-rogatórias, indutivas e coercitivas
trazidas pelo Novo Código de Processo Civil, principalmente no que concerne a
diligências que restringem a liberdade do indivíduo.
Para tanto, foram utilizados como parâmetro os artigos 1°, inc. III; 5°, inc.
II, XV, LIV e LV; 37, inc. I e XXI; 173, §3°; e 175, todos da Carta Magna. A
argumentação seguiu a linha de que a restrição de direitos fundamentais
decorrente de obrigações patrimoniais violaria o princípio da dignidade da
pessoa humana, sujeitando o devedor a uma responsabilização incompatível
com o arcabouço de proteção constitucional. Além disso, ponderou-se, na inicial,
que a incompatibilidade dos referidos artigos do CPC com a Constituição
transgrediria o princípio da legalidade, em razão de permitir ao juiz o poder de
aplicar sanções severas e não previstas em lei ao devedor.
Ademais, em parecer que corroborou a tese defendida na ação, a
Procuradoria-Geral de República alegou que as liberdades constitucionais não
podem ser cerceadas em decorrência de cláusula geral que possibilita a adoção
das referidas medidas atípicas pelo juiz. O Ministério Público dispôs que se
assim não fosse, haveria uma ofensa ao princípio democrático e um atentado
contra o solidificado princípio da patrimonialidade das obrigações.
Ao apreciar a referida ação direta de inconstitucionalidade, o Supremo
Tribunal Federal julgou improcedente o pedido de declaração de
inconstitucionalidade formulado, havendo apenas a divergência, em parte, do
Ministro Luiz Edson Fachin. A Corte entendeu que não há elementos suficientes
para, em análise abstrata, apontar a inconstitucionalidade das medidas atípicas
sub-rogatórias, indutivas e coercitivas trazidas pelo novo CPC, devendo ser feita
348
Ana Julia Lopes Palmeira, Arthur Morais Rodrigues Cavalcanti Alves
& Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
uma análise de cada caso concreto, a fim de verificar a constitucionalidade das
decisões judiciais.
A improcedência da ADI levou em consideração a razoável duração do
processo, a possibilidade de haver cláusulas gerais no ordenamento jurídico
brasileiro e os limites existentes para que as medidas atípicas sejam válidas.
Ao utilizar o princípio da razoável duração do processo como elemento
basilar do julgamento da ação, a Corte Suprema ponderou que as atuais
condições existentes no sistema judiciário brasileiro, isto é, a dificuldade de dar
efetividade a determinadas decisões judiciais, são um óbice à adequada tutela
jurisdicional. Logo, a ampliação dos poderes de efetivação da decisão pelo juiz,
consagrado essencialmente no art. 139, inc. IV, do CPC, encontra supedâneo
na ordem constitucional.
Outrossim, a existência de reiteradas decisões judiciais descumpridas,
para além das partes envolvidas no processo, atinge toda sociedade, na medida
em que gera descrédito e má fama ao sistema Judiciário, o qual não consegue
concretizar a pretensão reconhecida em juízo. Dessa forma, a influência da
doutrina do contempt of court impõe a necessidade do endurecimento das
decisões judiciais, a fim de assegurar a legitimidade da jurisdição.
Apesar desses poderes judiciais, o que se presencia é que as execuções
infrutíferas são um problema de cunho preponderantemente social, o qual não
consegue ser resolvido pela atividade jurisdicional 16. Isso se constata quando se
leva em conta que, na maioria dos casos, todos os mecanismos possíveis para
obtenção da tutela executiva foram utilizados, e mesmo assim, o cumprimento
da obrigação não foi atingido.
Com esse embasamento, o STF ponderou que a restrição de direitos e
garantias do devedor não se contrasta, abstratamente, com a aplicação das
medidas executivas atípicas, uma vez que estas encontram respaldo
constitucional na tutela jurisdicional adequada e célere.
Em tal contexto, também foi entendido pela Suprema Corte que o espaço
de discricionariedade deixado ao juiz não implica a inconstitucionalidade da
16
STEINBERG, José Fernando. Regime jurídico das medidas coercitivas atípicas na
execução de obrigações pecuniárias, à luz do art. 139, IV, do CPC. 2020. 132 f. Tese
(Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020, p. 25.
349
Medidas coercitivas na tutela executiva e a patrimonialidade das (...)
norma. Isso se dá em decorrência, dentre outros fatores, do desenvolvimento da
ideia de neoconstitucionalismo, que destaca a dificuldade do legislador de
produzir normas que se encaixem em todas as situações, principalmente no atual
momento de dinamismo do desenvolvimento humano. Assim, torna-se comum a
utilização de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados para que o
magistrado, a partir de técnicas hermenêuticas, consiga dar solução às lacunas
no sistema jurídico.
Dessa forma, não se pode considerar, de maneira abstrata e apriorística,
que toda decisão que determinar medidas executórias atípicas será
inconstitucional por falta de previsão legislativa. Não obstante, no caso concreto,
é preciso analisar se o pronunciamento judicial encontra fundamento nas balizas
constitucionais do ordenamento. Além disso, é mister que a medida respeite o
postulado da proporcionalidade, segundo os critérios de adequação,
necessidade e proporcionalidade stricto sensu.
Por conseguinte, se a decisão judicial que determinar o uso de medidas
executivas atípicas respeitar os mencionados limites, ela não encontrará
obstáculo de validade no sistema constitucional vigente.
4 CONCLUSÃO
Ante o exposto, verifica-se que a improcedência da ADI 5.941/DF
decorreu da ponderação de princípios constitucionais, dentre os quais estão o
da razoável duração do processo e o da dignidade da pessoa humana.
Destarte, a análise, de maneira abstrata, da aplicação dos artigos
impugnados na ação não enseja, por si só, a inconstitucionalidade dos
instrumentos normativos, pois não há como atestar que em todas as situações
de sua ocorrência, haverá o cometimento de ilegalidades. Assim, a aplicação
indevida dos poderes de efetivação do juiz deverá ser averiguada no caso
concreto e não de maneira abstrata.
Dessa forma, nota-se que o princípio da patrimonialidade não foi
discutido de forma explícita pelo STF, em razão de não estar positivado na
Constituição, o que levou a discussão ao sopesamento de outros princípios.
Apesar disso, restou consignado o direito à tutela executiva específica, a qual
passou a ser concretizável por meio de mecanismos coercitivos típicos e
350
Ana Julia Lopes Palmeira, Arthur Morais Rodrigues Cavalcanti Alves
& Fábio Luiz de Oliveira Bezerra
atípicos, o que traz consigo a ponderação entre a dignidade da pessoa do
devedor e a liberdade negocial, direito humano de primeira geração.
Por conseguinte, por mais que historicamente se tenha construído o
conceito da patrimonialidade das obrigações, a Corte Maior ponderou,
indiretamente, pela sua superação, no intuito de tutelar fundamentos
constitucionais igualmente relevantes e de maior valor axiológico no atual
momento histórico, como o da efetividade da tutela jurisdicional.
REFERÊNCIAS
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2023. Conselho
Nacional de Justiça. – Brasília: CNJ, 2023.
DINIZ, Maria Helena Diniz. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das
obrigações. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, v. II.
FARIAS, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações.
16. ed. Salvador: JusPodivm, 2022, v. 2.
GOMES, Orlando. Obrigações. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
KONDER, Carlos Nelson; RENTERÍA, Pablo. A funcionalização das relações
obrigacionais: interesse do credor e patrimonialidade da prestação.
civilistica.com, v. 1, n. 2, p. 1-24, 6 nov. 2012.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: obrigações. 10. ed. São Paulo: Saraiva
Jur, 2023. v. 2.
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio
de Janeiro: Borsoi, 1971. v. 26.
SILVA, Clóvis V. do Couto e. Obrigação como processo. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2016.
STEINBERG, José Fernando. Regime jurídico das medidas coercitivas
atípicas na execução de obrigações pecuniárias, à luz do art. 139, IV,
do CPC. 2020. 132 f. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020.
TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das obrigações e responsabilidade civil.
16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, v. 2.
351
Assunção de dívida como instrumento de concretização do
direito humano ao sufrágio passivo
Felipe Augusto Souza Morais *
Maria Emília de Lima Miranda **
Fábio Luiz de Oliveira Bezerra ***
1 INTRODUÇÃO
O artigo 14 da Constituição Federal brasileira (CF/1988) assegura que
“a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e
secreto, com valor igual a todos”, além das formas indiretas (plebiscito, referendo
e iniciativa popular). Cuida-se do direito político de votar ou sufrágio ativo.
Sob a perspectiva oposta, há o direito de concorrer nas eleições e de ser
votado (sufrágio passivo). O § 3º do art. 14 da CF/1988 estabelece condições de
elegibilidade. E a Lei 9.504/1997, conhecida como Lei das Eleições, estabelece
procedimento para registro de candidatura a cargo eletivo, arrecadação de
recursos, aplicação e prestação de contas.
Conforme art. 20 da Lei 9.504/1997, o candidato a cargo eletivo é
responsável pela administração financeira de sua campanha, que pode incluir
recursos repassados pelo partido, recursos da cota do Fundo Partidário,
recursos próprios ou doações de pessoas físicas. O candidato pode delegar a
uma outra pessoa essa administração financeira.
A aprovação da prestação de contas dos gastos referentes ao período
eleitoral pelos candidatos é condição fundamental para o gozo do direito político
ao exercício do mandato, caso seja eleito. Assim, eventuais dívidas não pagas
do candidato, por serem erros materiais relevantes da administração de
campanha, resultam na desaprovação das contas e, por conseguinte, na
apuração de abuso de poder econômico, que pode levar à perda do mandato e
*
Graduando em Direito (UFRN), e- mail: [email protected].
**
Graduanda em Direito (UFRN), e- mail: [email protected].
***
Professor Adjunto (UFRN), Doutor em Direito, e-mail: [email protected].
352
Felipe Augusto Souza Morais, Maria Emília de Lima Miranda & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
à inelegibilidade do candidato, inviabilizando, assim, a concretização desse
direito ao sufrágio passivo.
O processo eleitoral brasileiro é um sistema complexo e com exigências
de diversas formalidades, cabendo questionar se essas formalidades geram um
limitador do direito universal ao sufrágio – desde o âmbito ativo ao passivo.
Nesse contexto emerge a seguinte pergunta de pesquisa: a assunção
de dívida pode ser utilizada para a regularização de débito eleitoral e, de que
forma pode ser devidamente formalizada para que o candidato não perca o
direito ao sufrágio passivo?
Para responder a esse questionamento científico, o artigo propõe, como
objetivo geral, avaliar a possibilidade de utilização da assunção de dívida do
candidato pelo partido político, identificando as exigências formais necessárias
para que essa operação complexa de transmissão de dívida seja válida e eficaz.
Os objetivos específicos do trabalho consistem em examinar a divisão
de responsabilidade entre candidato e partido político pelas despesas de
campanha eleitoral, verificando o que uma dívida não paga pelo candidato pode
gerar na prestação de suas contas e no seu direito ao sufrágio passivo; bem
como em avaliar como o partido político pode assumir a dívida do candidato,
quais exigências ele deve cumprir para que a assunção seja válida e eficaz, para
se efetivar o direito de ser votado.
A pesquisa se justifica pelo caráter universal do direito ao sufrágio
passivo e seu impacto no fortalecimento da democracia, visto que, se ele for
violado em algum grau, sinaliza um enfraquecimento democrático e coloca em
risco as garantias fundamentais dos indivíduos.
A pesquisa adota dois procedimentos metodológicos sucessivos. O
primeiro consiste em aplicação de método descritivo, exploratório e avaliativo,
com análise descritivo-interpretativa de documentos doutrinários e normativos.
Ampara-se em duas linhas teóricas, uma sobre literatura especializada acerca
de prestação de contas eleitoral e direito ao sufrágio passivo, e outra sobre
assunção de dívida. O segundo procedimento diz respeito a um estudo de casos,
consistentes em processos judiciais de prestação de contas eleitorais, em que
353
Assunção de dívida como instrumento de concretização do (...)
se aplicou a assunção de dívida, para se extrair detalhes sobre as exigências
desse instituto.
A hipótese testada é a de que o partido político, enquanto terceiro da
relação entre candidato e o prestador de serviço, pode assumir a dívida, com
esteio no artigo 299 do Código Civil brasileiro, não havendo nenhuma ofensa ao
princípio da boa-fé, mas deve obter o consentimento expresso do credor
(prestador), para que haja a eficácia da exoneração do devedor primitivo
(candidato).
Por fim, em termos de estruturação do trabalho, após a presente
introdução (tópico 1), segue-se uma revisão de literatura sobre prestação de
contas e direito ao sufrágio universal (tópico 2); depois, trata-se da assunção de
dívida, os aspectos teóricos e a normatização na esfera eleitoral (tópico 3); na
sequência, faz-se estudo de casos sobre a utilização de assunção de dívida em
prestação de contas eleitorais (tópico 4); culminando com as conclusões acerca
da pesquisa (tópico 5).
2 PRESTAÇÃO DE CONTAS E O DIREITO AO SUFRÁGIO PASSIVO
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, no parágrafo único do art.
1º, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Já no art. 60, §4º, II,
impõe como cláusula pétrea “o voto direto, secreto, universal e periódico”.
O que se denomina direito ao sufrágio é, nas palavras de Clever
Vasconcelos 1, “o direito de todo cidadão que preenche os requisitos
constitucionais de votar e ser votado sem distinção de classe social, religião,
sexo, graduação acadêmica”. Aduz ainda que o direito de sufrágio não se
resume ao voto, sendo “o próprio direito de interferir na vida e participar da
vontade do Estado”, de maneira que o voto é apenas instrumento do direito ao
sufrágio. 2
Dessa ordem constitucional, advém a importância de tratar, com a
devida atenção, os elementos constitutivos do sufrágio passivo, este como a
1
VASCONCELOS, Clever. Direito eleitoral. 3. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2022, p. 77.
2
VASCONCELOS, Clever. Direito eleitoral. 3. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2022, p. 77.
354
Felipe Augusto Souza Morais, Maria Emília de Lima Miranda & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
figura do direito de ser votado, e, com esse fim, a legislação brasileira estruturou
leis e órgãos para assegurar este direito universal.
Nos últimos anos, é possível notar que o sistema eleitoral brasileiro vem
passando por diversas mudanças no que se refere ao financiamento eleitoral da
campanha e à prestação de contas e, desse modo, ao decidir se candidatar, o
candidato já deve saber que vai ser preciso buscar uma fonte para arcar com as
despesas da campanha, que pode ser recurso do próprio candidato, de terceiros
(pessoas físicas) ou recursos públicos (Fundo Partidário ou Fundo Especial de
Financiamento de Campanha).
Nesse aspecto, independentemente da origem dos recursos, após o
referido pleito, o candidato está obrigado a prestar contas dos gastos da
campanha para a Justiça Eleitoral, a qual vai analisar se os gastos do pleito
eleitoral respeitaram os ditames legais.
Cabe salientar que a Lei 13.165/2015, conhecida como Minirreforma
Eleitoral de 2015, “aboliu a figura dos ‘comitês financeiros’, atribuindo aos
candidatos a responsabilidade pessoal pela gestão dos recursos de campanha”. 3
Assim, a administração financeira da campanha do candidato será
realizada por ele mesmo ou por intermédio de pessoa por ele designada (art. 20
da Lei das Eleições), e, nessa última hipótese, o candidato é solidariamente
responsável com seu administrador financeiro pela veracidade das informações,
devendo ambos assinar a respectiva prestação de contas, conforme dispõe o
art. 21 da Lei das Eleições.
Sobre o administrador financeiro, Marlon Reis 4 esclarece que “a lei não
exige que a delegação recaia sobre profissional da contabilidade”, podendo o
candidato “optar por não o fazer, escolhendo para tal posição alguém da sua
direta confiança”.
Independentemente de o candidato designar administrador financeiro, a
arrecadação de recursos e a realização de gastos eleitorais devem ser
acompanhadas, desde o início da campanha, por profissional habilitado em
contabilidade, conforme determina o § 4º do art. 45 da Resolução do TSE n°
3
REIS, Marlon. Direito eleitoral. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 425.
4
REIS, Marlon. Direito eleitoral. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 427.
355
Assunção de dívida como instrumento de concretização do (...)
23.607/2019, o qual passa a ser responsável solidário com o candidato pela
veracidade das informações prestadas.
A prestação de contas da campanha junto à Justiça Eleitoral deve ser
realizada pelo candidato, com constituição obrigatória de advogado (§ 5º do art.
45 da Resolução do TSE n° 23.607/2019). Ainda durante a campanha, o
candidato já deve apresentar prestação de contas parciais entre os dias 9 a 13
de setembro do ano das eleições (art. 47, §4º, da Resolução TSE n°
23.607/2019). A prestação de contas finais referentes ao primeiro turno deve ser
prestada à Justiça Eleitoral até o 30º dia posterior à realização das eleições (art.
29, III, da Lei das Eleições). Ocorrendo segundo turno, as contas devem ser
prestadas até o 20º dia posterior à sua realização, apresentando a
movimentação financeira referente aos dois turnos (Lei nº 9.504/1997, art. 29,
IV).
A não prestação de contas no prazo legal pelo candidato implicará
julgamento das contas como não prestadas, o que acarreta impedimento para
obtenção de certidão de quitação eleitoral, conforme dispõe o §7º do art. 11 da
Lei das Eleições, com redação dada pela Lei 12.034/2009, combinado com o art.
80, inciso I, da Resolução TSE n° 23.607/2019.
Apresentadas as contas pelo candidato, a Justiça Eleitoral examinará a
regularidade dos gastos, podendo desaprovar as contas, aprová-las ou ainda
aprová-las com ressalvas. Nesse prisma, é importante destacar que, de acordo
com o art. 30, § 2º e §2º-A, da Lei das Eleições, erros formais, erros materiais
corrigidos e erros materiais irrelevantes no conjunto da prestação de contas, que
não comprometam o seu resultado, não ensejarão a rejeição das contas e a
cominação de sanção.
A existência de dívida não quitada na prestação de contas do candidato
é hipótese de julgamento de desaprovação de contas, vez que se trata de erro
material relevante, que compromete a confiabilidade das contas, além de
previsão expressa no final do §4º do art. 29 da Lei das Eleições.
Sob esse aspecto, o TSE 5 entende que as dívidas de campanha não
quitadas pelo candidato até o prazo para a apresentação das contas, e não
5
TSE, PC nº 060176555, rel. Min. Mauro Campbell Marques, Acórdão de 7.4.2022.
356
Felipe Augusto Souza Morais, Maria Emília de Lima Miranda & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
assumidas pelo partido, na forma como preconiza a referida Resolução do TSE,
constituem vício grave que acarreta sua desaprovação.
Por outro lado, a Lei das Eleições, em seu art. 29, §3º, menciona que
eventuais débitos de campanha não quitados até a data de apresentação da
prestação de contas poderão ser assumidos pelo partido político, por decisão do
seu órgão nacional de direção partidária. E nessa situação, conforme dispõe o §
4º do mesmo artigo, o órgão partidário da respectiva circunscrição eleitoral passa
responder por todas as dívidas solidariamente com o candidato, hipótese em que
a existência do débito não poderá ser considerada como causa para a rejeição
das contas.
Ou seja, se houver dívidas eleitorais no momento de prestar contas, o
partido político da circunscrição eleitoral do candidato pode, por meio de
instrumento formal, assumir a dívida de campanha não paga pelo candidato,
passando a ter a corresponsabilidade de pagar os credores e, desta forma, a
Justiça Eleitoral não poderá desaprovar as contas de campanha, com base
nesse motivo.
Vistos os contornos normativos da prestação de contas e o impacto da
existência de dívida de campanha não paga pelo candidato, nem assumida pelo
partido, resta examinar os requisitos necessários para uma regular e eficaz
assunção de dívida, o que será visto no tópico seguinte.
3 ASSUNÇÃO DE DÍVIDA E SUA APLICAÇÃO EM MATÉRIA ELEITORAL
A assunção de dívida configura-se como uma forma de transmissão de
uma obrigação, em que terceiro toma para si a obrigação de realizar a prestação
devida e assume o polo passivo da relação obrigacional.
O Código Civil positiva esse instrumento em seu artigo 299, dispondo
que é facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, com o consentimento
expresso do credor.
357
Assunção de dívida como instrumento de concretização do (...)
Como destaca Paulo Lôbo 6, a assunção de dívida é “negócio jurídico
bilateral abstrato, desconsiderando-se a causa da transmissão entre devedor
antigo e o novo devedor, ou a causa do negócio jurídico”.
Há duas maneiras de se materializar a assunção de dívida. Na assunção
por delegação, transmite-se a dívida, por meio de contrato entre o novo devedor
e o devedor primitivo. Nessa situação, faz-se necessário para a eficácia da
assunção do consentimento do credor, é o que dispõe o parágrafo único do artigo
299 do Código Civil, segundo o qual “qualquer das partes pode assinar prazo ao
credor para que consinta na assunção da dívida, interpretando-se o seu silêncio
como recusa”.
Na assunção por expromissão, a dívida é transmitida mediante contrato
entre o novo devedor e o credor. E como o credor já está participando do
contrato, ele já está consentindo com a transmissão da dívida do devedor
primitivo para o novo devedor, estando, pois, satisfeito tal requisito. Já quanto ao
devedor primitivo, que nessa modalidade de assunção não participa do contrato
de transmissão de sua dívida, não há necessidade de obtenção de sua
concordância. O Código Civil silencia quanto a isso, pois regulou basicamente a
modalidade de assunção por delegação, em que o devedor primitivo transmite
para o novo devedor, com o consentimento do credor. Nesse sentido, como
concluem Gustavo Tepedino, Maria Helena e Bodin de Moraes, “o devedor fica
exonerado, não se exigindo, portanto, seu consentimento”. 7 Embora o Código
Civil nada fale sobre esse ponto, entende-se que o devedor primitivo pode se
opor a que o novo devedor assuma a sua dívida, tal como ele pode se opor ao
pagamento por terceiro não interessando (art. 304, parágrafo único, do CC).
A assunção de dívida é de suma importância no âmbito das obrigações,
visto que é uma forma de concretizar a prestação devida, por meio de uma outra
pessoa, que antes não integrava a relação jurídica. Desta forma, é preciso seguir
parâmetros dispostos em lei, como a anuência do credor, quando da modalidade
delegação.
6
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: obrigações. 10. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2022, v. 2.
p. 164
7
TEPEDINO, Gustavo; BARBOSA, Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de (orgs.). Código
civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, v.
I, p. 585.
358
Felipe Augusto Souza Morais, Maria Emília de Lima Miranda & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
Com a assunção de dívida, independentemente da modalidade, o
devedor primitivo fica, como regra, exonerado da obrigação, “salvo se aquele, ao
tempo da assunção, era insolvente e o credor o ignorava”, é o que estabelece a
parte final do artigo 299 do Código Civil. Cuida-se de assunção de dívida
liberatória ou privativa. A legislação eleitoral, contudo, nem sempre segue essa
regra, dispondo de modo diverso em algumas situações, como ser verá mais
adiante.
A propósito, no que se trata da utilização desse instrumento de
transmissão obrigacional, conforme Resoluções do TSE e julgados das Cortes
Eleitorais, é possível perceber seu recorrente uso no âmbito eleitoral, seja em
prestação de contas eleitorais de candidato, seja em prestação de contas anuais
de partido político.
A Resolução TSE nº 23.604/2019, que regulamento o Título III (Das
Finanças e Contabilidade dos Partidos) da Lei 9.096/1995, dispõe, no capítulo
IV, acerca da assunção de obrigações. Menciona no art. 23 que os órgãos
partidários podem assumir obrigação de outro órgão, “mediante acordo,
expressamente formalizado, que deve conter a origem e o valor da obrigação
assumida, os dados e a anuência do credor”. Para evitar que o instituto seja
utilizado para contornar impedimento de um órgão do partido, o § 1º do mesmo
art. 23 impõe que “não podem ser utilizados recursos do Fundo Partidário para
quitação, ainda que parcial, da obrigação se o órgão partidário originalmente
responsável estiver impedido de receber recursos daquele Fundo”. Por outro
lado, é possível a utilização de outros recursos que não sejam do Fundo
Partidário para assunção de dívida de órgão do partido (§ 2º do art. 23).
Com assunção da dívida, o órgão partidário que era devedor originário
fica desobrigado de qualquer responsabilidade quanto à dívida (§ 6º do art. 23),
configurando-se, assim, uma transmissão pro soluto, que é a regra já
mencionada na legislação civil (art. 299 do CC).
Há ainda a Resolução TSE nº 23.607/2019, que dispõe sobre a
arrecadação e os gastos de recursos por partidos políticos e candidatas ou
candidatos e sobre a prestação de contas nas eleições, regulamentando a Lei
das Eleições. Conforme art. 33, caput, da Resolução TSE nº 23.607/2019, os
359
Assunção de dívida como instrumento de concretização do (...)
partidos políticos e a pessoa candidata podem arrecadar recursos e contrair
obrigações até o dia da eleição.
Ao final da campanha, caso o montante arrecadado não seja suficiente
para adimplir todas as obrigações, é permitida a arrecadação de recursos,
excepcionalmente, após o dia da eleição, mas exclusivamente para
adimplemento de despesas já contraídas e não pagas até o dia da eleição (§ 1º
do art. 33 da Resolução TSE nº 23.607/2019).
E se mesmo assim não for suficiente a arrecadação, o § 3º do art. 29 da
Lei 9.504/1997, a fim de evitar a desaprovação das contas, autoriza que os
débitos de campanha não quitados até a data da prestação de contas sejam
“assumidos pelo partido político, por decisão do seu órgão nacional de direção
partidária”.
Disciplinando esse dispositivo legal, tem-se os §§ 2º e 3º do art. 33 da
Resolução TSE nº 23.607/2019. Pelo § 2º do art. 33, “eventuais débitos de
campanha não quitados até a data fixada para a apresentação da prestação de
contas podem ser assumidos pelo partido político”. Já o § 3º do art. 33 impõe
que a assunção de dívida de campanha somente pode ocorrer por decisão do
órgão nacional de direção partidária, com apresentação, no ato da prestação de
contas final, de alguns critérios como o acordo expressamente formalizado, no
qual deverão constar a origem e o valor da obrigação assumida, os dados e a
anuência da pessoa credora, também, apresentar um cronograma de
pagamento e quitação que não ultrapasse o prazo fixado para a prestação de
contas da eleição subsequente para o mesmo cargo e, além disso, indicação da
fonte dos recursos que serão utilizados para a quitação do débito assumido.
Desta forma, o partido político assume as dívidas decorrentes da
campanha dos seus candidatos, facilitando, assim, o momento de prestação de
contas para a Justiça Eleitoral – fase obrigatória aos candidatos no período
posterior ao pleito.
Quanto à divisão de responsabilidade na transmissão da obrigação, a
Lei das Eleições, no § 4º do art. 29, modificou a sistemática da legislação civil,
dispondo que “o órgão partidário da respectiva circunscrição eleitoral passará a
responder por todas as dívidas solidariamente com o candidato”.
Assim, não há exoneração do devedor primitivo (o candidato), com a
assunção da dívida de campanha eleitoral pelo partido, mesmo que tenha tal
360
Felipe Augusto Souza Morais, Maria Emília de Lima Miranda & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
efeito constado no instrumento contratual. É o que a doutrina denomina de
assunção de dívida do tipo cumulativa, em que não fica o devedor-cedente
liberado da obrigação, “apenas incrementa-se o polo passivo da obrigação, que
é reforçado com o ingresso do partido”. 8
Jairo Gomes 9, por conta dessa característica cumulativa da assunção,
defende que “é desnecessário o expresso consentimento do credor (CC, art.
299), porque o devedor primitivo não é liberado do vínculo obrigacional”. Ocorre
que o art. 299 do Código Civil não alberga de maneira direta esse entendimento,
haja vista que apenas dispõe que “é facultado a terceiro assumir a obrigação do
devedor, com o consentimento expresso do credor, ficando exonerado o devedor
primitivo”. Ademais, o art. 33, §3º, da Resolução TSE nº 23.607/2019, já
mencionado linhas atrás, exige a anuência do credor.
A assunção de dívida pelo partido, embora permitida, não pode ferir
norma imperativa, como o princípio da boa-fé objetiva, sob pena de nulidade, e,
por consequência, desaprovação das contas. Ofende tal princípio, por exemplo,
conduta do partido e do candidato que produz documento de assunção de dívida
com data retroativa.
Desta forma, depreende-se, portanto, a prática da assunção de dívida
como um instrumento para facilitar o livre gozo do direito universal ao sufrágio
passivo, visto que é uma forma de auxiliar na regularização de uma obrigação
pendente do candidato, dado que o agente pode transferir uma obrigação para
o seu partido, com vistas à regularização, pois a desaprovação das contas de
campanha enseja a apuração de abuso de poder econômico, podendo ser
cominada sanção de perda de mandato e inelegibilidade para cargos eletivos.
Delimitados os requisitos para a constituição de assunção de dívida e
vista a possibilidade de aplicação na seara eleitoral, faz-se, no tópico seguinte,
estudo de casos retirados de processos judiciais de prestação de contas
eleitorais.
8
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 18. ed. Barueri: Atlas, 2022, p. 557.
9
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 18. ed. Barueri: Atlas, 2022, p. 557;
361
Assunção de dívida como instrumento de concretização do (...)
4 ESTUDO DE CASO
A potencialidade do instituto de assunção de dívida em matéria eleitoral
para garantir o pleno exercício do direito ao mandato eletivo, decorrente do
direito ao sufrágio passivo do candidato, é manifesta. Isso ficou evidenciado não
apenas pela normatização que foi examinada no tópico anterior, que assim a
permite, como pelo fato de efetivamente no dia a dia da prestação de contas
eleitorais tal instituto civil ser de grande recorrência.
Nesse prisma, em consulta ao site do TSE
(https://jurisprudencia.tse.jus.br/#/jurisprudencia/pesquisa), utilizando a palavra-
chave “assunção de dívida”, foram identificados 97 acórdãos, em que nas
prestações de contas foram transmitidas dívidas, com o objetivo de evitar a
desaprovação das contas.
Não será feita uma análise empírica sobre todo o acervo de acórdãos, o
que será reservado para o desdobramento da presente pesquisa. O escopo do
presente trabalho foi a realização de estudo de casos, selecionando alguns
processos para que seja possível comprovar a utilização da assunção de dívida
em matéria eleitoral.
Dessa forma, destaca-se o Acórdão do TSE proferido em 27/04/2020 no
Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral 060032723/PA, Relator Min.
Luis Felipe Salomão, em que se reconheceu a regularidade da assunção pelo
partido da dívida de campanha de candidato a governador nas eleições de 2018:
AGRAVOS INTERNOS. RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES
2018. GOVERNADOR. VICE-GOVERNADOR. CONTAS DE
CAMPANHA. APROVAÇÃO COM
RESSALVAS. RECOLHIMENTO DE VALORES. TESOURO
NACIONAL.
(...)
AGRAVO. PARQUET. ASSUNÇÃO. DÍVIDA. PARTIDO
POLÍTICO. REQUISITOS. ATENDIMENTO. SERVIÇOS.
COMPROVAÇÃO. ANÁLISE DE PROVAS. INVIABILIDADE.
SÚMULA 24/TSE. NEGATIVA DE PROVIMENTO.
6. Insiste o Parquet que não se observaram os requisitos para
assunção de dívida pelo partido e que inexiste prova da
realização de pesquisa eleitoral. No entanto, o TRE/PA assentou
que: a) o diretório nacional expediu resolução autorizando os
órgãos estaduais a assumirem de forma solidária os débitos
contraídos por candidatos (o que atende ao inciso I do § 3º do
art. 35 da Res.-TSE 23.553/2017); b) o estatuto legitima o
terceiro vice-presidente e o secretário-geral a realizarem
362
Felipe Augusto Souza Morais, Maria Emília de Lima Miranda & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
despesas ordinárias e extraordinárias; c) o ato partidário previu
a arrecadação de recursos de pessoas físicas para o
adimplemento dos débitos (inciso III do mesmo dispositivo) e a
suposta ausência de fundos será analisada no ajuste contábil do
exercício financeiro; d) demonstrou-se a efetiva entrega dos
serviços de pesquisa (art. 63, caput, da Res.-TSE 23.553/2017).
7. Conclusão em sentido diverso demandaria reexame de fatos
e provas, providência inviável em sede extraordinária, a teor da
Súmula 24/TSE.
CONCLUSÃO
8. Agravo interno dos candidatos a que se dá provimento em
parte apenas para afastar a determinação de se recolher ao
Tesouro Nacional a quantia de R$ 7.000,00, a título de omissão
de gasto, e agravo do Parquet a que se nega provimento. 10
Já no Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral - REspEl nº
060161772, da relatoria do Min. Benedito Gonçalves (julgado em 09/11/2023,
publicação em 01/12/2023), foi mantida a desaprovação das contas do candidato
a deputado federal nas eleições de 2022, em razão de a assunção de dívida
somente ter sido acompanhada da autorização da direção nacional do partido,
sem indicação de cronograma nem da fonte dos recursos, tampouco do
consentimento dos credores. Eis a ementa do acórdão:
AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES 2022.
DEPUTADO FEDERAL. PRESTAÇÃO DE CONTAS.
DESAPROVAÇÃO. ASSUNÇÃO DE DÍVIDA DE CAMPANHA.
PARTIDO POLÍTICO. NÃO COMPROVAÇÃO. DOCUMENTO
NOVO. PRECLUSÃO. NEGATIVA DE PROVIMENTO.
(...)
4. Consoante o art. 33, §§ 3º e 6º, da Res.-TSE 23.607/2019, a
assunção da dívida de campanha por partido político requer, de
forma cumulativa, acordo expressamente formalizado (com
origem e valor da obrigação assumida, além de anuência do
credor), cronograma de pagamento e quitação (que não
ultrapasse o prazo para a prestação de contas do pleito seguinte
para o mesmo cargo), indicação da fonte dos recursos e, por fim,
prova das despesas não pagas (documento fiscal idôneo emitido
na data do gasto ou outro meio de prova permitido).
5. No caso, de acordo com o TRE/ES, "[a] candidata entregou
nesta Justiça as suas contas de campanha contendo tão
somente a autorização concedida pela direção nacional do
partido para que a direção regional do grêmio assumisse a
10
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral
060032723/PA, Relator Min. Luis Felipe Salomão, Acórdão de 27/04/2020, Publicado no(a)
Diário de Justiça Eletrônico-92, data 13/05/2020.
363
Assunção de dívida como instrumento de concretização do (...)
aludida dívida, [...] consistindo a ausência dos demais
documentos em falha que conduz a desaprovação das
contas". 11
Outro julgado que exemplifica a situação em discussão é o Agravo
Regimental no Agravo de Instrumento nº 0601813-11.2018.6.24.0000, no qual a
relatoria foi do Ministro Alexandre de Moraes, em que manteve a desaprovação
de contas, em razão de a assunção da dívida ter sido feita pela esfera estadual
do partido, quando a candidatura era municipal:
5 - Assunção irregular de dívidas de campanha por diretório
partidário municipal
A última irregularidade apontada pela unidade técnica diz
respeito à assunção da dívida de campanha pelo Diretório
Municipal do Partido Socialista Brasileiro de Rio Negrinho.
Segundo a SCIA, ‘considerando tratar-se de eleições estaduais,
a dívida do prestador de contas somente poderia ser assumida
pelo diretório estadual do partido, e não por um diretório
municipal’. Com efeito, a documentação apresentada pelo
candidato comprova a intenção do referido órgão municipal em
assumir a dívida de campanha deixada pelo prestador, que
totaliza R$ 69.845,70 (ID 781755). Nada obstante, o art. 35, §
4º, da Resolução TSE n. 23.553/2017 estabelece que, no caso
de assunção da dívida de campanha, o ‘órgão partidário da
respectiva circunscrição eleitoral passa a responder
solidariamente com o candidato por todas as dívidas’. A
interpretação do mencionado dispositivo permite concluir que a
assunção de dívidas só será possível quando realizada por
órgão partidário da respectiva circunscrição eleitoral, ou seja,
dívidas de campanha estadual não podem ser assumidas por
diretório municipal. 12
Os casos selecionados são prestações contas eleitorais em que a
assunção de dívida serviu como um instrumento facilitador ao direito universal
ao sufrágio passivo e, também, casos de prestação de contas desaprovadas em
razão de irregularidades no referido instrumento.
Os julgados acima comprovam que a assunção de dívida tem o condão
de regularizar as contas de campanha do candidato, evitando-se desaprovação
11
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral
060161772/SE, Relator Min. Benedito Gonçalves, Acórdão de 09/11/2023, Publicado no(a)
Diário de Justiça Eletrônico-237, data 01/12/2023.
12
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental em Agravo De Instrumento
060181311/SC, Relator Min. Alexandre de Moraes, Acórdão de 08/10/2020, Publicado no(a)
Diário de Justiça Eletrônico-213, data 22/10/2020.
364
Felipe Augusto Souza Morais, Maria Emília de Lima Miranda & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
e, por consequência, apuração de abuso de poder econômico, com eventual
aplicação de perda de mandato e inelegibilidade.
Os casos examinados também apontam para o fato de que é necessário
cumprir todas as exigências de constituição regular e eficaz da assunção de
dívida, sob pena de não ser considerada pela Justiça Eleitoral.
Assim, a assunção de dívida, por possuir uma série de requisitos legais
e regulamentares, embora possa trazer uma maior facilidade na prestação de
contas, se não for utilizada da forma prescrita, pode gerar a desaprovação das
contas do candidato.
4 CONCLUSÃO
Após exame da divisão de responsabilidade entre candidato e partido
político pelas despesas de campanha eleitoral, bem como dos elementos
constitutivos da assunção da dívida em matéria civil, é possível afirmar que a
assunção de dívida pode ser utilizada para a regularização de contas de
campanha eleitoral, evitando-se apuração de abuso de poder econômico e
eventual sanção de perda de mandato e ainda inelegibilidade, efetivando-se
assim o direito ao sufrágio passivo do candidato e, caso eleito, o direito ao
exercício do mandato eletivo.
Foi confirmada a hipótese de pesquisa, no sentido de que o partido
político, enquanto terceiro da relação entre candidato e o prestador de serviço,
pode assumir a dívida, cabendo apenas cumprir as formalidades exigidas pelo
artigo 299 do Código Civil e pela legislação eleitoral brasileira.
A legislação eleitoral, quanto à assunção de dívida, impõe, assim como
o art. 299 do Código Civil, o consentimento do credor, como requisito de eficácia
da transmissão da dívida. Por outro lado, a legislação eleitoral não exonera o
devedor primitivo (candidato), o qual permanece a responder de maneira
solidária como o novo devedor perante o credor.
A partir do estudo dos casos, constatou-se que muitas prestações de
contas de candidato resultam em dívidas não quitadas e que são objeto de
assunção de dívida do partido. Não obstante, ocorrem bastantes desaprovações
de contas por descumprimento das formalidades da assunção de dívida, como
365
Assunção de dívida como instrumento de concretização do (...)
a concordância do diretório do partido da esfera em que ocorre a candidatura, a
obtenção do consentimento do credor, o cronograma de pagamento e a
indicação da fonte dos recursos. São requisitos simples de serem cumpridos,
mas nem sempre o candidato tem comprovado de modo tempestivo no processo
judicial de prestação de contas.
Por fim, é fundamental debater as nuances desta questão para que a lei
de prestação de contas seja cumprida e que o sufrágio passivo seja pleno,
possibilitando que os cidadãos tenham uma ampla escolha aos concorrentes ao
pleito eleitoral e que, futuramente, o candidato eleito não venha a perder o
mandato eletivo ou se tornar inelegível por conta de descumprimento de
requisitos simples para uma assunção de dívida regular, válida e eficaz.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 9.504/1997, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas
para as eleições. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília,
DF, 30 set. 1997. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm. Acesso em: 30 mai.
2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral – TSE. Resolução TSE n° 23.607, de 17 de
dezembro de 2019. Dispõe sobre a arrecadação e os gastos de recursos
por partidos políticos e candidatas ou candidatos e sobre a prestação de
contas nas eleições. Disponível em:
https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2019/resolucao-no-23-
607-de-17-de-dezembro-de-2019. Acesso em: 30 mai. 2023.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. PC nº 060176555, rel. Min. Mauro Campbell
Marques, Acórdão de 7.4.2022.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental Em Recurso Especial
Eleitoral 060032723/PA, Relator(a) Min. Luis Felipe Salomão, Acórdão
de 27/04/2020, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico-92, data
13/05/2020
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental em Agravo De
Instrumento 060181311/SC, Relator(a) Min. Alexandre de Moraes,
Acórdão de 08/10/2020, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico-213,
data 22/10/2020
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental no Recurso Especial
Eleitoral 060161772/SE, Relator(a) Min. Benedito Gonçalves, Acórdão de
09/11/2023, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico-237, data
01/12/2023.
366
Felipe Augusto Souza Morais, Maria Emília de Lima Miranda & Fábio
Luiz de Oliveira Bezerra
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 18. ed. Barueri: Atlas, 2022.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: obrigações. 10. ed. São Paulo: Saraiva
Jur, 2022, v. 2.
REIS, Marlon. Direito eleitoral. São Paulo: SaraivaJur, 2023.
TEPEDINO, Gustavo; BARBOSA, Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de
(orgs.). Código civil interpretado conforme a Constituição da
República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, v. I.
VASCONCELOS, Clever. Direito eleitoral. 3. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2022.
367
A democracia intrapartidária como determinante das
candidaturas coletivas
Gabriel Vieira Terenzi 1
Fernando de Brito Alves 2
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo tratar da relação entre as
candidaturas coletivas, assim compreendidas aquelas que prometem uma lógica
de compartilhamento do mandato entre mais sujeitos do que o próprio
candidato(a); com a democracia interna dos respectivos partidos. O problema de
pesquisa se define como: há relação entre a existência de mandatos coletivos e
obstáculos internos às candidaturas relacionados ao grau de democracia
intrapartidária?
A hipótese é que a organização estatutária dos partidos pode influenciar
a propensão a determinados cidadãos terem de recorrer a candidaturas
coletivas. Serão adotados procedimentos metodológicos empíricos, com base
no método hipotético-dedutivo.
Para promover-se a tentativa de falseamento da hipótese, serão
identificados, dentre os candidatos ao poder legislativo federal em 2022, as
candidaturas que se denominaram como “coletivas”, computando-se seus
partidos. Por sua vez, estes dados serão comparados com o índice de
democracia intrapartidário elaborado por Eneida Salgado, a fim de verificar-se a
relação entre a posição ocupada no índice e a quantidade de candidaturas
compartilhadas.
Este estudo visa não apenas analisar a presença e a distribuição das
candidaturas coletivas dentro do espectro político, mas também compreender de
que maneira essas candidaturas se inserem e se relacionam com a dinâmica
interna dos partidos políticos. Portanto, o foco não se restringirá apenas à
quantificação dessas candidaturas, mas buscará compreender o contexto e os
1
Doutorando e mestre em ciência jurídica pela UENP. Bolsista CAPES/CNPQ.
2
Doutor em Direito pela Instituição Toledo de Ensino – ITE. Professor do Programa de Pós-
graduação (Mestrado e Doutorado) em Ciência Jurídica da UENP.
368
Gabriel Vieira Terenzi & Fernando de Brito Alves
elementos que influenciam sua emergência e aceitação dentro do sistema
político vigente.
Democracia intrapartidária
Após um prolongado período de ditadura militar, durante o qual a
paisagem política partidária do Brasil se limitava à presença de dois partidos
relacionados com a organização estatal, a Constituição de 1988 surgiu como um
divisor de águas, alterando a estrutura partidária nacional. Assim, dois princípios
fundamentais foram destacados pelo legislador constituinte em relação aos
partidos políticos: o pluripartidarismo e a autonomia partidária.
Nesse contexto, é relevante ressaltar a interconexão entre o
pluripartidarismo e o pluralismo partidário. Enquanto o primeiro se refere à
existência de múltiplos partidos políticos, o segundo amplia o enfoque,
abraçando a ideia de que tais partidos devem refletir, de maneira abrangente, a
diversidade de visões e interesses presentes na sociedade. Dessa forma, o
sistema partidário brasileiro, ao adotar o pluripartidarismo, busca não apenas a
coexistência de diversos partidos políticos, mas também a representação efetiva
de distintas opiniões e ideologias.
Já em relação a autonomia partidária, a Constituição marcou uma
transição significativa, afastando os partidos políticos da histórica vinculação
estreita com o Estado. Ao reconhecer os partidos políticos como entidades
autônomas, o constituinte concedeu a essas organizações a liberdade de
organizar-se internamente, estabelecer suas diretrizes, eleger seus líderes,
desenvolver suas agendas, distribuir recursos financeiros, entre outros.
É importante reconhecer que a autonomia dos partidos políticos contribui
para evitar a instrumentalização política por parte do Estado, abrindo
possibilidades para que as decisões partidárias sejam moldadas pela vontade
interna dos seus membros. Contudo, para concretização dessa possibilidade é
imprescindível também a existência de alguma democracia intrapartidária, um
ambiente plural e diverso que admita que os filiados possam realmente ter
impacto e voz nas decisões partidárias.
369
A democracia intrapartidária como determinante das (...)
Cumpre mencionar, ainda que a autonomia partidária cumpra um papel
fundamental na funcionalidade democrática de um partido político, essa não é
absoluta. Gaio Lima Monte 3 apresenta a autonomia partidária como um princípio
assim como qualquer outro, não detém uma posição hierárquica superior em
relação aos demais. Em situações de conflito, deve submeter-se às normas de
resolução de colisões entre princípios.
Salgado e Hualde 4 analisam a ausência de incorporação da cultura e
das práticas democráticas no interior dos partidos como um fator determinante.
Apesar de sua designação como protagonistas da democracia institucional no
Brasil e na Argentina, os partidos nessas democracias parecem não abraçar,
verdadeiramente, os princípios democráticos. Ainda, os autores destacam a
importância da democracia interna dos partidos para o seu desenvolvimento em
harmonia com a finalidade de sustentar o sistema democrático.
Vargas 5 sustenta que os partidos políticos possuem em seus estatutos
compromisso com a democracia e com a participação dos filiados nos processos
decisórios, contudo isso não é observado na prática. Para o autor, a distribuição
do poder interno parece se configurar mais como um recurso retórico do que
como uma manifestação real das escolhas partidárias.
Com esse panorama, o presente tópico tem como finalidade discorrer
sobre a pergunta desta pesquisa, se a presença de mandatos coletivos está
conectada aos desafios que surgem dentro dos grupos políticos ao concorrer,
dependendo de quão democráticos são internamente.
Para tanto, cumpre apontar um ponto essencial em relação a autonomia
partidária no Brasil: os partidos políticos, com base no princípio da autonomia
3
MONTE, Gaio Lima. O princípio constitucional da democracia intrapartidária e a igualdade de
oportunidades: um estudo crítico sobre o processo de formação da representação política
brasileira. 2017. 146 f. Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. p. 51
4
SALGADO, Eneida Desirre; HUALDE, Alejandro Pérez. A democracia interna dos partidos
políticos como premissa da autenticidade democrática. A&C Revista de Direito Administrativo &
Constitucional, Belo Horizonte, ano 15, n. 60, p. 63-83, abr./jun. 2015. p. 73
5
VARGAS, Marco Antônio Martin. A crise democrática na atividade interna dos partidos políticos:
a voz dos filiados partidários é ouvida? 2018. 120 f. Dissertação. Direito Político e Econômico,
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. p. 92
370
Gabriel Vieira Terenzi & Fernando de Brito Alves
partidária tem liberdade de escolha dos candidatos que irão representar o partido
nas respectivas eleições e ainda, a distribuição de recursos financeiros que cada
candidato terá fica a critério dos partidos.
Nesse contexto, a pesquisa foca centralmente na democracia interna
dos partidos políticos. Para realizar essa análise, utilizou-se como referência o
índice de democracia interna dos partidos políticos no Brasil, elaborado por
Eneida Desiree Salgado 6.
O índice usa como base duas tabelas, a primeira analisa a estrutura
organizacional dos partidos e a segunda tem como foco os processos de
tomadas de decisões internas. A primeira tabela é dividida em três linhas de
investigações, primeiro a composição dos órgãos partidários, que inclui análises
nas formas de eleições, requisitos para candidaturas, direito das minorias, etc.
A segunda linha, por sua vez, investiga os sistemas de resolução de
conflitos, em que é explorada a composição do corpo responsável por resolver
conflitos, regras procedimentais, garantias de procedimentos adversários,
composição e funcionamento de corpos disciplinares, entre outros. Por fim, a
terceira linha pesquisa as relações entre órgãos partidários, nessa linha a
investigação aborda a descentralização de decisões, distribuição de recursos,
superação de decisões locais por órgãos nacionais, dissolução de diretórios, e
comissões provisórias.
Já a segunda tabela, é dividida em duas linhas de investigações: 1)
definição do programa; e 2) recrutamento. A primeira explora a descentralização
na definição do programa partidário, inclusão de afiliados na elaboração,
descentralização na definição do programa de governo, inclusão de afiliados na
elaboração do programa de governo e decisões sobre coalizões. A segunda, por
sua vez, investiga os requisitos para a apresentação de candidaturas,
participação de minorias, como se dá a definição de candidatos, distribuição
igualitária de tempo de propaganda e de recursos.
6
SALGADO, Eneida Desiree. Intra-party democracy index: a measure model from Brazil. Rev.
Investig. Const., Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 107-136, jan./abr. 2020. p. 116-122
371
A democracia intrapartidária como determinante das (...)
O que se questiona, por conseguinte, é se há relação entre a existência
de determinadas formas de candidatura, como os mandatos coletivos que virão
a ser citados e eventuais obstáculos internos às candidaturas relacionados ao
grau de democracia intrapartidária
Candidaturas coletivas
Considerada a representação como uma relação mediada entre
constituintes em prol de um representante 7, a forma de escolha desse
representante ganha, evidentemente, bastante destaque, na medida em que
qualquer impacto aos mecanismos de apontamento do representante significa,
imediatamente, um pacto as potencialidades da representação dos
representados.
De fato, os anseios democráticos não se relacionam apenas a eleição
propriamente dita, até porque há mecanismos representativos distintos das
votações. Ao contrário, a opção por eleições revela a opção por um método de
controle que demonstra que os representantes não devem nem podem se isolar
da sociedade 8.
Diante das considerações do tópico anterior, ficam evidenciadas as
influências oriundas da democracia intrapartidária (ou de sua ausência) em
relação a esse mecanismo de representação. De fato, vem se evidenciando
denúncias de uma suposta "de crise de representatividade", que se comportaria,
mais especificamente, como uma insuficiência dos mecanismos formais de
legitimação representativa 9.
Solucionar essa crise passa, consequentemente, por formas de garantir
uma mais intensa representação, não apenas nas eleições em si, mas na
escolha dos candidatos e, principalmente, na sua atuação durante o mandato,
com participação dos representados nas posturas e preferências institucionais e
deliberações. Passa, em outras palavras, pelo incremento da representação não
7
YOUNG, Iris Marion. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 127.
8
URBINATI, Nadia. Representative democracy: Principles and genealogy. Chicago: The
University of Chicago Press, 2006.
9
ARAÚJO, Guilherme Dourado Aragão Sá. A crise de legitimidade democrática e a necessária
revisão de seu objeto deliberativo. Revista Direitos Humanos e Democracia, Ijuí, v. 5, n. 9, p. 65-
92, jan./jun. 2017. P. 82.
372
Gabriel Vieira Terenzi & Fernando de Brito Alves
apenas na dimensão da democracia da identificação (eleição), mas na
democracia da apropriação 10.
Nesse sentido, concebem-se os mandatos coletivos e compartilhados
como uma novidade no procedimento de formulação de opções e na tomada de
decisões legislativas. Estes se destacam por serem um método de desempenho
de cargos eletivos onde o legislador se compromete a compartilhar o poder com
um conjunto de cidadãos.
O ponto crucial neste modelo é a partilha do poder de decisão com um
grupo de representados. Diferentemente de apenas consultar, debater ou
realizar enquetes com os cidadãos, o mandato (em tese) se vincula à vontade
coletiva, seja ela aferida através da agregação de preferências (votação) ou da
construção de consensos (deliberação).
Assim, enquanto num mandato convencional o legislador tem a liberdade
de votar de acordo com sua própria consciência e interesses, no mandato
coletivo ou compartilhado, o legislador busca a opinião de algumas pessoas para
então definir sua posição frente às matérias em discussão nos parlamentos.
Deve se notar que, em última instância, nada impede que o mandatário
desrespeite a preferência de seus eleitores, seja em um mandato tradicional seja
no mandato compartilhado. De fato, trata-se de um princípio do governo
representativo a autonomia desvinculada do representante, que pode optar por
assumir uma postura diferente daquela prometida ou esperada 11. Igualmente, no
caso do mandato compartilhado, a titularidade é daquele ou daquela eleito(a),
que, todavia, se compromete a promover a distribuição dessa autoridade.
O relatório da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade 12 identifica três
elementos de um mandato coletivo ou compartilhado: 1) o agente político eleito,
que legalmente administra e ocupa um assento legislativo, renuncia à sua
autonomia política em favor do compartilhamento do poder com os
coparlamentares. 2) o cidadão que participa de um mandato coletivo ou
compartilhado para influenciar e, às vezes, determinar a posição do legislador
10
ROSANVALLON, Pierre. Democratic legitimacy: impartiality, reflexivity, proximity. Oxford:
Princeton University Press, 2011, p. 219.
11
MANIN, Bernard. Principles of representative government. Cambridge: Cambridge University
Press, 2002.
12
SECCHI, Leonardo, coord. Mandatos coletivos e compartilhados: desafios e possibilidades
para a representação legislativa no século XXI. São Paulo: Raps, 2019, p. 22-24.
373
A democracia intrapartidária como determinante das (...)
em votações ou outras atividades legislativas. 3) o Estatuto do Mandato: um
acordo, contrato formal ou informal, ou até uma carta de compromisso capaz de
definir os elementos fundamentais do vínculo contratual entre legislador e
coparlamentares.
Por outro lado, não há, formalmente, consenso na literatura sobre sua
nomenclatura. O mencionado relatório da RAPS adota uma categorização 13 no
sentido de que os mandatos coletivos normalmente envolvem um número
reduzido de coparlamentares, frequentemente conhecidos entre si ou com uma
proximidade estabelecida. Em geral, esses mandatos têm uma inclinação
ideológica clara, o que pode ser um obstáculo à participação de pessoas que
não compartilham da mesma perspectiva. Devido ao baixo número de
participantes e à familiaridade entre eles, as decisões nos mandatos são
geralmente alcançadas através de deliberação, debate e tentativas de consenso.
Já os mandatos compartilhados são aqueles que distribuem o poder de
voto individualmente para cada coparlamentar. Geralmente, esses mandatos
priorizam a diversidade e a heterogeneidade de um grupo médio a grande de
coparlamentares (normalmente superior a 100 pessoas). Eles não buscam
necessariamente representar o "interesse geral da sociedade", mas também não
excluem a participação de pessoas com diferentes visões ideológicas. As
decisões são tomadas geralmente por maioria, através de debates e pesquisas
eletrônicas entre os diversos coparlamentares.
Atualmente, não existe um padrão estabelecido para os mandatos
coletivos ou compartilhados. O que se percebe, tanto em escala nacional quanto
internacional, é uma experimentação diversificada, fundamentada em ensaios e
equívocos, assimilando sabedoria a partir dos sucessos e insucessos nos
variados formatos utilizados. Essa ausência de um modelo consolidado pode ser
encarada como uma oportunidade valiosa, conferindo a liberdade de criar ou
ajustar-se às exigências específicas de uma candidatura ou mandato, seja para
vereador, deputado ou senador 14.
A hipótese do presente trabalho, por conseguinte, é de que a organização
estatutária dos partidos pode influenciar a propensão a determinados filiados
13
Ibid, p. 24-25.
14
Ibid, p. 24-25.
374
Gabriel Vieira Terenzi & Fernando de Brito Alves
recorrerem a candidaturas coletivas, com base nas estruturas e condicionantes
da arquitetura estatutária dos partidos mencionados no tópico anterior.
Organização estatutária como fator de propensão à mandatos
compartilhados
Para efetuar a avaliação da tentativa de falseamento da hipótese
proposta, conduziu-se uma análise dos concorrentes nas eleições legislativas
federais de 2022. O objetivo primordial foi o de identificar e discernir tais
candidaturas e sua abrangência no contexto da eleição de 2022, levando em
consideração, também, a filiação partidária dos envolvidos, traçando um paralelo
entre a formação dessas candidaturas e seus respectivos partidos.
Naquele pleito, houveram 10.630 candidatos e candidatos ao cargo de
deputado federal, das quais 49 candidaturas fizeram constar, no nome destinado
à urna eletrônica, a expressão "coletiva" ou "coletivo", conforme oficialmente
registrado nos dados disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral, no registro
de candidaturas 15.
Evidentemente, pesquisas futuras poderão melhor depurar tais dados, já
que em tese, outras candidaturas que não adotem a denominação "coletiva"
podem, ainda assim, estruturar-se de acordo com o modelo de mandatos
compartilhados. Ademais, também pode haver o caso de candidaturas
denominadas coletivas não possuírem os compromissos compartilhados a que
alude o primeiro tópico deste texto.
Por sua vez, para embasar a análise, recorreu-se ao índice de democracia
intrapartidária concebido por Eneida Desiree Salgado 16. Como mencionado no
primeiro tópico, o indicador oferece uma perspectiva sobre a dinâmica interna
dos partidos políticos, permitindo uma avaliação crítica e detalhada da estrutura
democrática dessas agremiações.
Ao confrontar os dados das candidaturas coletivas com os parâmetros
estabelecidos pelo índice de democracia intrapartidária, busca-se identificar
possíveis correlações entre a posição ocupada no referido índice e a prevalência
ou frequência das candidaturas compartilhadas.
15
TSE. Estatísticas eleitorais. Seção de Arquitetura de Informação. 2023.
16
Ibid.
375
A democracia intrapartidária como determinante das (...)
Desde a edição do trabalho, houveram alterações em determinados
partidos políticos em razão de fusões ou incorporações, os quais foram
desconsiderados. Em relação ao legislativo federal, em 2022, o que se percebeu
é que as candidaturas coletivas ou compartilhadas se encontram bastante
distribuídas em relação aos partidos, com a maioria tendo tido ao menos uma
candidatura auto-declarada como compartilhada naquele pleito, segundo os
dados do TSE 17.
Por sua vez, quantitativamente, o número mais elevado de candidaturas
compartilhadas foram observadas no segmento de partidos com o maior índice
de democracia intrapartidária. Enquanto essas formas de mandatos são
observáveis também nas demais agremiações partidárias, naquelas com maior
índice de democracia interna sua aparição é mais elevada.
Considerações finais
A investigação sobre as candidaturas coletivas em conexão com a
democracia interna dos partidos revela nuances significativas. A compreensão
da relação entre a existência desses mandatos e os desafios internos
enfrentados pelos grupos políticos, à luz do quão democráticos são, oferece
insights relevantes sobre a dinâmica intrapartidária e suas influências na
representatividade democrática.
A autonomia partidária estabelecida pela Constituição de 1988 abriu
caminho para uma diversidade partidária no país, mas também ressaltou a
importância da pluralidade e representação das diversas opiniões na sociedade.
No entanto, a autonomia não é absoluta, e é intrinsecamente ligada à presença
de uma democracia intrapartidária efetiva, na qual os filiados têm voz ativa nas
decisões partidárias.
Os estudos de Salgado, Hualde, e Vargas destacam a lacuna entre a
retórica democrática presente nos estatutos dos partidos e sua prática efetiva,
ressaltando a importância da democracia interna para o desenvolvimento
saudável das agremiações políticas dentro do sistema democrático.
17
Ibid.
376
Gabriel Vieira Terenzi & Fernando de Brito Alves
O conceito de mandatos coletivos e compartilhados emerge como uma
inovação no processo de tomada de decisões legislativas, onde o legislador se
compromete a dividir o poder com um grupo de cidadãos. No entanto, a
existência desses mandatos ainda carece de um modelo consolidado,
baseando-se em experimentações e aprendizado com os sucessos e falhas dos
diferentes formatos adotados.
A análise dos dados das eleições legislativas federais de 2022 e a
correlação com o índice de democracia intrapartidária sugerem uma relação
entre a existência de mandatos coletivos e a qualidade da democracia interna
nos partidos. Embora existam variações e nuances, observou-se uma presença
mais proeminente de candidaturas compartilhadas em partidos com índices mais
altos de democracia interna.
Os desafios enfrentados pelos grupos políticos ao recorrerem a
candidaturas coletivas parecem estar vinculados às estruturas e condicionantes
da arquitetura estatutária dos partidos. A liberdade dos partidos para escolher
seus candidatos e distribuir recursos financeiros também influencia a propensão
à adoção de mandatos coletivos. Mas como ficou claro, a preferência pelas
candidaturas coletivas foi observada de maneira mais intensa naquelas
agremiações com maior democracia interna.
REFERÊNCIAS:
ARAÚJO, Guilherme Dourado Aragão Sá. A crise de legitimidade democrática e
a necessária revisão de seu objeto deliberativo. Revista Direitos
Humanos e Democracia, Ijuí, v. 5, n. 9, p. 65-92, jan./jun. 2017.
Disponível
em:https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocr
acia/article/view/5683. Acesso em: 20 nov. 2023.
MANIN, Bernard. Principles of representative government. Cambridge:
Cambridge University Press, 2002.
ROSANVALLON, Pierre. Democratic legitimacy: impartiality, reflexivity,
proximity. Oxford: Princeton University Press, 2011.
SALGADO, Eneida Desiree. Intra-party democracy index: a measure model from
Brazil. Rev. Investig. Const., Curitiba, vol. 7, n. 1, p. 107-136, jan./abr.
2020.
377
A democracia intrapartidária como determinante das (...)
SALGADO, Eneida Desirre; HUALDE, Alejandro Pérez. A democracia interna
dos partidos políticos como premissa da autenticidade democrática. A&C
Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte,
ano 15, n. 60, p. 63-83, abr./jun. 2015. Disponível em:
http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/53/356.
Acesso em: 30 jun. 2021.
SECCHI, Leonardo, coord. Mandatos coletivos e compartilhados: desafios e
possibilidades para a representação legislativa no século XXI. São
Paulo: Raps, 2019.
TSE. Estatísticas eleitorais. Seção de Arquitetura de Informação. 2023.
Disponível em: http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-
eleitorais. Acesso em: 6 mai. 2023.
URBINATI, Nadia. Representative democracy: Principles and genealogy.
Chicago: The University of Chicago Press, 2006.
378
Casos Gomes Lund e Herzog: os efeitos do descumprimento das
sentenças proferidas pela Corte IDH devido à lei de anistia
Ana Beatriz Cavalcante da Nóbrega 1
Silvya Erasmo Macêdo de Medeiros 2
INTRODUÇÃO
A Ditadura Militar foi implementada no Brasil por um golpe de Estado em
1964, sendo marcada por um período de grande repressão social e falta de
liberdade de expressão e pensamento. O golpe militar tinha como justificativa
dessa dominação a forte ameaça ao comunismo que estava em ascensão no
contexto da Guerra Fria. Dessa forma, durante a dominação, a população civil
não possuía o direito de se opor ao Regime, estando sujeita à represálias
violentas caso fosse constatado qualquer tipo de conspiração contra o governo
vigente. O período foi marcado por desaparecimentos, torturas, mortes e guerras
armadas contra a população que se opunha ao regime. Dessa maneira, a Lei de
Anistia (Lei n° 6.683/79) foi um instrumento utilizado para garantir a
impunibilidade daqueles que cometeram crimes na época do Regime Militar,
sendo pauta de discussões acerca de suas consequências, desde sua vigência
até os dias atuais.
No entanto, em 1992 o Brasil promulgou internamente o Decreto
Executivo n° 678/1992, do qual trata sobre a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de
1969. Essa Convenção instituiu a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)
como os responsáveis para conhecer de assuntos relacionados com o
cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados-partes. Ambos os
casos foram levados à Corte.
1
Graduanda em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Centro de Ensino
Superior do Seridó, e-mail: [email protected].
2
Graduanda em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Centro de Ensino
Superior do Seridó, e-mail: [email protected]
379
Casos Gomes Lund e Herzog: os efeitos do descumprimento (...)
Logo, os crimes cometidos pelos militares ainda se fazem presentes no
cenário nacional e internacional, de maneira a fazer o Brasil ser condenado pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos, tanto no Caso Gomes Lund e outros
vs Brasil (Guerrilha do Araguaia), em 2010, como no Caso Herzog e outros vs
Brasil em 2018. Em ambos os casos, a Lei de Anistia se faz crucial, ao entrar em
conflito com os efetivos cumprimento das sentenças.
Portanto, o presente estudo visa analisar quais são as consequências do
descumprimento das sentenças proferidas pela Corte IDH nos referidos casos,
devido a aplicação da Lei n° 6.683/79, já que está entre em conflito com as
decisões proferidas pela Corte Internacional. Utilizou-se a metodologia com
abordagem qualitativa, com pesquisas realizadas por meio de normas do
sistema jurídico brasileiro, análise dos julgados e artigos científicos relacionados
ao tema.
1. DOS CASOS
1.1 CASO GOMES LUND E OUTROS VS BRASIL (“GUERRILHA DO
ARAGUAIA”)
O movimento da “Guerrilha do Araguaia” (1967-1974) ocorreu no período
da Guerra Fria, onde o Brasil vivenciava o Regime Militar (1964) apoiado pelos
Estados Unidos, com a premissa de proteção contra o avanço do comunismo.
Logo, o objetivo dos guerrilheiros era derrubar o regime militar vigente, sendo
compostos principalmente por membros do PCdoB (Partido Comunista do
Brasil), fundado em 1958, sendo eles estudantes universitários, civis e operários.
Esses guerrilheiros lutaram contra três ofensivas do exército: Operação
Papagaio, Operação Sucuri e Operação Marajoara, onde milhares de militares
atuaram no combate na região do Bico do Papagaio. Com isso, houve pelo
menos setenta pessoas mortas nos confrontos ocorridos no período de 1972 a
1975, com restos mortais encontrados de apenas dois militantes.
Acerca da condenação como um todo, algo importante a ser analisado é
o fator que impulsionou o caso da Guerrilha do Araguaia a chegar ao patamar
Internacional de Direitos Humanos: o esgotamento das vias possíveis no quesito
interno de recursos no Estado brasileiro. Tudo isso, em face da impunidade e da
inexistência de esforços estatais em responder os questionamentos feitos por
380
Ana Beatriz Cavalcante da Nóbrega & Silvya Erasmo Macêdo de
Medeiros
parentes de vítimas envolvidas. O início do procedimento que teria fim com a
condenação do Brasil, iniciou-se em 7 de agosto de 1995 e foi marcado pela
denúncia dos familiares dos guerrilheiros ao Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL). Diante do fato, o Brasil sempre demonstrou desinteresse
pela responsabilização das mortes no embate ocorrido em Araguaia, tudo isso,
respaldando-se na Lei nº 6.868, sancionada em 1979, conhecida nacionalmente
como Lei de Anistia.
Após quinze anos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou
o Brasil em 2010, determinando que a Lei de Anistia era desprovida de validade
ao preservar a impunidade e contrariar a obrigação de investigar, processar e
punir decorrente da Convenção Americana de Direitos Humanos 3. O Supremo
Tribunal Federal, antecipou-se à sentença da Corte IDH e afirmou previamente
a constitucionalidade da Lei de Anistia, na tentativa de encerrar as discussões
acerca do assunto. Havia então uma divergência jurisprudencial acerca dos
tribunais.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu o direito das
famílias, e proferiu uma sentença contra o Brasil, em que o obrigava a tomar
diversas medidas em relação ao caso, das quais podemos citar: deveres de
investigar, julgar e, se for o caso, punir, garantir acesso a informações, adequar
à Lei de Anistia e outros diplomas correlatos para que deixem de dificultar
processos judiciais e administrativos pelos interessados, dever de reparar, pagar
indenizações, custas e gastos dos envolvidos, entre outras responsabilizações 4.
1.1.1 JULGAMENTO DO CASO GOMES LUND E OUTROS VS BRASIL
(“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) PELA Corte IDH
Foi então no fatídico 26 de março de 2009 que se iniciou o processo de
submissão do Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos à
Corte, em decorrência do desaparecimento forçado de pelo menos 70 pessoas
3
BERNARDI, Bruno Boti. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e o caso da
guerrilha do Araguaia: impactos no Brasil. Revista Brasileira de Ciência Política, n° 22. Brasília,
2017.
4
LIMA JR, Wilson Simões de. Sentença Internacional no Caso Gomes Lund (Guerrilha do
Araguaia) vs Brasil e suas consequencias no caso de descumprimento. Revista Jus
Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5784, 3 mai. 2019. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/72546. Acesso em: 6 dez. 2022.
381
Casos Gomes Lund e Herzog: os efeitos do descumprimento (...)
no contexto da Guerrilha do Araguaia, movimento composto por militantes que
divergiam do regime militar vigente à época. Era necessário encontrar uma
verdade, não só em face da grande repercussão que o caso tomou, mas em
respeito à memória das vítimas e todos os familiares que pairavam sem
respostas durante todos os anos seguintes.
O Brasil viu-se responsabilizado pelos artigos 3, 4, 5, 7, 8, 13, e 25 da
Convenção Americana sobre Direitos humanos, sendo eles direito ao
reconhecimento da personalidade jurídica; direito à vida; direito à integridade
pessoal; direito à liberdade pessoal; garantias judiciais; liberdade de pensamento
e expressão e a proteção judicial. Consoante a isso, também deveria cumprir
com as obrigações de respeito e garantia dos direitos humanos e o dever de
adotar disposições de direito interno, vejamos o disposto na sentença:
245. Com base no disposto no artigo 63.1 da Convenção Americana,
368 a Corte indicou que toda violação de uma obrigação internacional
que tenha provocado dano compreende o dever de repará-lo
adequadamente e que essa disposição “reflete uma norma
consuetudinária que constitui um dos princípios fundamentais do
Direito Internacional contemporâneo sobre a responsabilidade de um
Estado. 5
Diante das medidas reparadoras adotadas pelo Brasil, analisou a referida
Comissão que estas não eram devidamente adequadas de modo a satisfazer a
gravidade dos fatos, embora que reconhecessem o esforço do Estado brasileiro,
havia ali um grande descompasso em razão da violação severa que cometeu o
regime militar aos direitos humanos.
Em síntese, o Estado brasileiro não só reconheceu sua responsabilidade
no ocorrido, como foi responsabilizado pelo desaparecimento forçado das mais
de setenta pessoas. No tocante à Lei da Anistia - então empecilho às
investigações e sanções - esta foi considerada totalmente incompatível com a
Convenção. Viu-se o Brasil sentenciado a conduzir a investigação penal da
ocasião, além de:
a) iniciar as investigações pertinentes com relação aos fatos do
presente caso, levando em conta o padrão de violações de direitos
5
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (2010). Caso Gomes Lund e outros
(“Guerrilha do Araguaia”) vs Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em:
file:///C:/Users/Beatriz/Downloads/seriec_219_por%20(1).pdf. Acesso em: 29 dez.
2023.
382
Ana Beatriz Cavalcante da Nóbrega & Silvya Erasmo Macêdo de
Medeiros
humanos existente na época, a fim de que o processo e as
investigações pertinentes sejam conduzidos de acordo com a
complexidade desses fatos e com o contexto em que ocorreram,
evitando omissões no recolhimento da prova e no seguimento de linhas
lógicas de investigação;
b) determinar os autores materiais e intelectuais do desaparecimento
forçado das vítimas e da execução extrajudicial. Ademais, por se tratar
de violações graves de direitos humanos, e considerando a natureza
dos fatos e o caráter continuado ou permanente do desaparecimento
forçado, o Estado não poderá aplicar a Lei de Anistia em benefício dos
autores, bem como nenhuma outra disposição análoga, prescrição,
irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in idem ou qualquer
excludente similar de responsabilidade para eximir-se dessa
obrigação, nos termos dos parágrafos 171 a 179 desta Sentencia, e
c) garantir que: i) as autoridades competentes realizem, ex officio, as
investigações correspondentes, e que, para esse efeito, tenham a seu
alcance e utilizem todos os recursos logísticos e científicos necessários
para recolher e processar as provas e, em particular, estejam
facultadas para o acesso à documentação e informação pertinentes,
para investigar os fatos denunciados e conduzir, com presteza, as
ações e investigações essenciais para esclarecer o que ocorreu à
pessoa morta e aos desaparecidos do presente caso; ii) as pessoas
que participem da investigação, entre elas, os familiares das vítimas,
as testemunhas e os operadores de justiça, disponham das devidas
garantias de segurança, e iii) as autoridades se abstenham de realizar
atos que impliquem obstrução do andamento do processo
investigativo.
Especificamente, o Estado deve garantir que as causas penais que
tenham origem nos fatos do presente caso, contra supostos
responsáveis que sejam ou tenham sido funcionários militares, sejam
examinadas na jurisdição ordinária, e não no foro militar. Finalmente, a
Corte considera que, com base em sua jurisprudência, o Estado deve
assegurar o pleno acesso e capacidade de ação dos familiares das
vítimas em todas as etapas da investigação e do julgamento dos
responsáveis, de acordo com a lei interna e as normas da Convenção
Americana. Além disso, os resultados dos respectivos processos
deverão ser publicamente divulgados, para que a sociedade brasileira
conheça os fatos objeto do presente caso, bem como aqueles que por
eles são responsáveis. 6
1.2 CASO HERZOG E OUTROS VS BRASIL
Vladimir Herzog (Vlado Herzog, de batismo) foi um professor, jornalista e
cineasta brasileiro naturalizado. No ano de sua morte, 1975, Vladimir trabalha na
TV cultura, do qual foi vítima de perseguição contra sua gestão por dois
deputados do partido ARENA - Aliança Renovadora Nacional, composto por
maioria de ex-integrantes do UDN, opositores do governo de Getúlio Vargas, e
PSD, partido do ex-presidente Juscelino Kubitscheck. Nesse sentido, via-se que
6
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (2010). Caso Gomes Lund e outros
(“Guerrilha do Araguaia”) vs Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010.
383
Casos Gomes Lund e Herzog: os efeitos do descumprimento (...)
o ARENA compactuava com o regime ditatorial, de tal forma que as opiniões de
Vladimir não agravam aos líderes da época, como cita Alberto Kleinas:
Herzog foi um homem com convicções políticas e sociais bem
definidas, sua opção de militância na resistência democrática através
do PCB demonstra uma perspectiva progressista, como atestam os
depoimentos, além de uma proximidade com a história de adesão
judaica à militância comunista. 7
No dia 24 de outubro de 1975, o II Exército convocou Herzog para
comparecer ao DOI-COD (Destacamento de Operações de Informações do
Centro de Operações de Defesa Interna) com a premissa de que fosse prestado
alguns esclarecimentos acerca de ligações com o Partido Comunista Brasileiro,
o objetivo do DOI-COD era o interrogar o jornalista pela prática de oposição ao
governo e para isso utilizaram-se de amplas formas de tortura. Assim, consoante
Mariana Joffily:
Ainda que não se possa depreender desses textos um projeto social
bem delineado para o país, é evidente que os interrogadores e
comandantes do DOI agiam em função de determinado universo de
valores. Pensavam os conflitos e as disputas políticas como elementos
a serem eliminados em favor de uma sociedade “pacificada”, na qual a
política – assim como todas as outras esferas – fosse disciplinada e o
poder decisório se mantivesse restrito ao seleto grupo dos dirigentes
do país. Para tanto, não se furtavam a empregar os meios de que
dispunham para coibir as opiniões dissidentes. 8
Então, Vlado compareceu no dia seguinte acompanhado dos jornalistas
George Duque Estrada e Rodolfo Konder. Ao prestar depoimento, Vladimir
Herzog negou que tivesse qualquer tipo de ligação com o PCB, e que não estaria
atuando na ilegalidade, não conseguindo convencer os militares da sua versão.
Depois desse ocorrido, o jornalista nunca mais foi visto com vida. Vladimir foi
espancado, sufocado e eletrocutado. Sobre o ocorrido, discorre Nishiyama e
Lazari:
Na tarde do dia 25, Herzog foi assassinado por estrangulamento
(segundo perícia da Comissão Nacional da Verdade), muito embora o
Comando do II Exército tenha divulgado a versão oficial de suicídio por
enforcamento com um cinto após Herzog reconhecer, inclusive por
7
KLEINAS, Alberto. A morte de Vladimir Herzog e a luta contra a ditadura: a desconstrução
do suicídio. São Carlos: UFSCar, 2012.
8
JOFFILY, Mariana. As “sentinelas indormidas da pátria”: os interrogadores do DOI-COD de
São Paulo. Revista Mundos do Trabalho, vol. 1, núm. 1, janeiro-junho de 2009.
384
Ana Beatriz Cavalcante da Nóbrega & Silvya Erasmo Macêdo de
Medeiros
escrito, que faria parte do PCB. A reação popular ao assassinato do
jornalista fez com que o II Exército desse início a inquérito policial
militar destinado a averiguar as circunstâncias do “suicídio” de Vladimir
Herzog. Esse inquérito foi arquivado em 12 de fevereiro de 1976 com
a ratificação da tese do suicídio por enforcamento (houve, inclusive,
laudo de necropsia neste sentido). 9
Após a notícia de sua morte, uma foto de Vladimir Herzog foi divulgada
pelo Exército na tentativa de sustentar sua versão oficial de que Vlamidir havia
se enforcado com um cinto, onde não obtiveram êxito, devido à evidente
manipulação do cenário retratado na imagem. Depois do ocorrido, o autor da foto
confessou que a imagem era mentirosa, sendo uma tentativa de forjar um
suicídio que não aconteceu.
Posteriormente, manifestantes se reuniram nas ruas de São Paulo para
protestar contra a crueldade do regime ditatorial e a morte de Vladimir. Após
algumas alegações frente ao poder judiciário, originadas pela família e por
centenas de jornalistas, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos
reconheceu o assassinato de Vladimir Herzog, e concedeu indenização a família
Herzog, que não aceitou, pois não admitiam que o caso fosse encerrado dessa
forma e desejavam que as investigações continuassem.
A data de 10 de julho de 2009 foi marcada pelo recebimento da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da petição sobre o caso Herzog, a qual foi
enviada pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), que discutia
sobre a responsabilização do Estado brasileiro pela investigação inadequada do
caso. Posteriormente, em 22 de abril de 2016, a referida Comissão apresentou
o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, após o Brasil ter
descumprido as recomendações feitas pela comissão.
1.2.1 JULGAMENTO DO CASO HERZOG E OUTROS VS BRASIL PELA Corte
IDH
A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que os crimes
praticados eram contra a humanidade, imprescritíveis e de proibição do direito
9
NISHIYAMA, Adolfo Mamoru; LAZARI, Rafael de. A Corte Interamericana de Direitos
Humanos e o caso Herzog vs. Brasil. Revista Mexicana de Derecho Constitucional. núm. 47,
julho-dezembro de 2022.
385
Casos Gomes Lund e Herzog: os efeitos do descumprimento (...)
internacional. Dessa maneira, em 15 de março de 2018 a Corte IDH profere a
condenação do Brasil, responsabilizando-o por crime de lesa-humanidade e o
impondo o dever de investigar, julgar e punir os responsáveis pela morte do
jornalista.
Além disso, a Corte IDH também mencionou que o Brasil violou o direito
de conhecer a verdade, uma vez que ocultou informação relevante sobre o caso
e não estabeleceu os processos ou os mecanismos necessários para esclarecer
a verdade sobre o ocorrido. 10 Além disso, entendeu como vítimas os familiares,
que por sua vez, sofrem em sua integridade psíquica e moral, pelos ocorridos
com as vítimas do Estado. Vejamos o julgado:
340. A Comissão ressaltou que os familiares de vítimas de certas
violações de direitos humanos podem ser considerados, por sua vez,
vítimas, vendo afetadas sua integridade psíquica e moral, o que pode
se agravar ante a ausência de recursos efetivos. Entendeu que as
consequências da violência e da impunidade podem ter um efeito
particularmente prejudicial nos familiares das vítimas que eram
menores de idade.
341. Ressaltou também que, no presente caso, existe uma presunção
juris tantum que permite presumir um dano à integridade psíquica e
moral dos familiares de Vladimir Herzog. Observou, ademais, que o
Estado divulgou informações falsas sobre as circunstâncias de sua
morte, o que gerou um impacto particularmente grave na integridade
psíquica e moral dos familiares. 11
A Corte considerou que devido a aplicação da Lei de Anistia, o Brasil
violou:
direitos relacionados a garantias judiciais de Herzog e outros, violando
também direito à proteção judicial, à obrigação de respeitar os direitos
e de adotar disposições de direito interno para garantir o pleno e livre
exercício dos direitos e liberdades contidas no Pacto de San José na
Costa Rica; 12
10
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (2018). Caso Herzog e outros vs
Brasil. Sentença em 15 de março de 2018. Disponível em:
<file:///C:/Users/Beatriz/Downloads/seriec_353_por%20(1).pdf>. Acesso em: 29
dez. 2023.
11
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (2018). Caso Herzog e outros vs
Brasil. Sentença em 15 de março de 2018.
12
COSTA, Rafaela Candido Tavares; LEMOS, Lais Freire. A dissintonia do Estado brasileiro
ao pacto de San Jose da Costa Rica: Caso Vladimir Herzog. Revista Direitos Sociais e Políticas
Públicas. UNIFAFIBE. 2010
386
Ana Beatriz Cavalcante da Nóbrega & Silvya Erasmo Macêdo de
Medeiros
Por fim, o Brasil tem o dever de retomar as investigações acerca da morte
de Vladimir Herzog, fazer o julgamento e detenção dos responsáveis pelo crime,
o reconhecimento da imprescritibilidade das ações emergentes contra os crimes
de lesa-humanidade, reconhecimento em ato público da responsabilização do
Estado brasileiro pela morte e memória do jornalista e a falta de investigações
na época dos fatos. A Corte considerou que a lei de anistia e a prescrição não
podem e nem devem afastar os efeitos penais dos delitos praticados nos anos
de chumbo.
2. A LEI DE ANISTIA COMO EMPECILHO
A Lei n° 6.683, que entrou em vigor no dia 28 de agosto de 1979,
concedeu anistia a todos que praticaram crimes políticos ou por motivação
política na época da Ditadura Militar, impossibilitando a responsabilização, em
âmbito penal, dos responsáveis pelas atrocidades. Dessa forma, os civis e
militares envolvidos na repressão foram beneficiados, inclusive os que
cometeram tortura, repressão, censura e outras tantas barbaridades que
marcaram o Regime Ditatorial.
Sendo assim, em relação às sentenças do Caso Gomes Lund e do Caso
Herzog, a Lei de Anistia age como barreira para o seu efetivo cumprimento,
devido ao fator que impede a punibilidade dos envolvidos nos crimes, mesmo
que sejam de lesa-humanidade. Assim, como pontua Nevitton Souza:
A Corte destacou a incompatibilidade de subterfúgios que visem
impedir a apuração de fatos violadores de direitos humanos, dentre os
quais a prescrição e a Lei de Anistia, frequentemente utilizados pelo
Judiciário nacional para fundamentar decisões denegatórias de acesso
à investigação penal, responsabilização dos agentes estatais e
reparação às vítimas e suas famílias - como apontam os contextos
fáticos dos Casos Guerrilha do Araguaia e Herzog. 13
Portanto, ao se tratar, na sentença da Guerrilha do Araguaia, do dever
imposto ao Brasil, de investigar e punir se esse for o caso, fica claro que não
será cumprido pelo país, devido a constitucionalidade da Lei n° 6.683, onde se
SOUZA, Nevitton Vieira. Cumprimento de Sentenças Internacionais em matéria de justiça
13
de transição no Brasil. Revista Opinião Jurídica, vol. 18, núm. 28, pp. 94-114, 2020.
387
Casos Gomes Lund e Herzog: os efeitos do descumprimento (...)
exime os criminosos políticos, mesmo que a Corte tenha considerado a
necessidade de adequação da lei. Da mesma maneira, incorre no caso da morte
de Vladimir Herzog. De toda forma, ocorrerá também em posteriores casos a
serem julgados, caso persista o entendimento do supremo.
3. CONSEQUÊNCIAS DO NÃO CUMPRIMENTO DAS SENTENÇAS
O cumprimento das sentenças é ainda um impasse. Ao analisarmos os
casos estudados, vê-se que a maior parte das obrigações destinadas ao Brasil,
em forma de sentença, não foram executadas. Entre elas, cabe citar que no caso
Guerrilha do Araguaia vs Brasil, das onze determinações dadas pela Corte IDH,
ainda existem seis que estão pendentes. Já no caso Herzog vs Brasil, ainda
restam cinco medidas de reparação. Dessa forma, é verídico que grande parte
desses descumprimentos, nos dois casos, se dão graças à constitucionalidade
da Lei de Anistia (Lei nº 6.683).
Como já se sabe, no que se refere a decisão brasileira do Supremo
Tribunal Federal (ADPF n°153/2008) em razão da Lei de Anistia, é de que foi
claramente recepcionada pela Constituição Federal de 1988, expondo que o STF
entende que a Lei não causa afrontas normativas de maneira concreta, ainda
que a nossa carta magna seja expressivamente defensora dos Direitos
Humanos. Assim:
Ao optar por passar uma “borracha histórica” no passado ditatorial
pátrio, sem questionamentos ou perguntas a quem praticou
atrocidades para manter e para derrubar o regime então vigente (e elas
existiram dos dois lados, não se pode mais negar), perdeu-se
oportunidade singular de documentar, punir, indenizar e revisar
versões oficiais. 14
Além disso, em análise quanto às sentenças proferidas ao Brasil, cabe
denotar que são evidentemente válidas de aplicação, não somente internacional,
como nacional. Destarte:
Como as normas internacionais fazem parte de um conjunto amplo de
normas nacionais altamente variadas, com as quais se encaixam mais
ou menos bem, sempre haverá tensões e diferenças entre
interpretações nacionais sobre quais as implicações de uma norma
internacionalmente acordada. A tensão pode reverberar de volta para
14
NISHIYAMA; LAZARI. 2022.
388
Ana Beatriz Cavalcante da Nóbrega & Silvya Erasmo Macêdo de
Medeiros
o nível internacional e perpetrar uma disputa sobre o significado da
norma, considerando sua aplicação em casos gerais ou particulares. 15
Dessa forma, apesar de o Brasil ser condenado pela Corte IDH, ainda não
está claro qual deve ser o caminho tomado em relação à satisfação dessas
decisões. Sobre as obrigações pecuniárias, o país adota uma reserva na Lei
Anual Orçamentária destinada unicamente a esse fim. No entanto, em relação
às outras determinações, se entende que continuam com impasses
institucionais, na medida em que inexiste caminho normativo pavimentado em
abstrato. 16
Sobre a verificação das ações tomadas pelos países condenados, a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos prevê no artigo 65 o dever da
Corte IDH sobre os esclarecimentos periódicos à Assembleia Geral da OEA:
Artigo 65 - A Corte submeterá à consideração da Assembléia Geral da
Organização, em cada período ordinário de sessões, um relatório
sobre as suas atividades no ano anterior. De maneira especial, e com
as recomendações pertinentes, indicará os casos em que um Estado
não tenha dado cumprimento a suas sentenças. 17
Dessa maneira, o objetivo dessa recomendação se mostra como uma
tentativa de pressionar o Estado-membro que descumprir as sentenças a realizar
as determinações que ainda estão pendentes. Logo, explica Isabela Andrade:
Não são raros os casos em que as medidas tomadas pelo Estado são
insuficientes ou ineficazes para satisfazer a obrigação prescrita. A
Corte é persistente nessa escrupulosa tarefa de exame, motivo pelo
qual para cada sentença são emitidas normalmente várias resoluções
até que o cumprimento pleno seja constatado. Algumas das obrigações
ditadas na decisão requerem ações trabalhosas e demoradas, fazendo
com que o número de execuções sob verificação da Corte aumente a
cada ano. 18
15
NASCIMENTO, Victor. O Brasil e a Corte Interamericana de Direitos Humanos: uma análise
da persistência de não cumprimento das medidas de reparação. Meridiano 47, vol. 24, 2023.
16
SOUZA, 2019.
17
Organização dos Estados Americanos, Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto
de San José de Costa Rica”), 1969.
18
ANDRADE, Isabela Piacentini. A execução das sentenças da Corte Interamericana. Revista
Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.3, n.3, jan./jun. 2006.
389
Casos Gomes Lund e Herzog: os efeitos do descumprimento (...)
Mesmo que haja uma condenação internacional, o país ainda possui
autonomia para realizar as diligências, pois embora o Estado se comprometa
juridicamente no âmbito internacional ao ratificar um tratado, persiste o livre
exercício de sua soberania, logo, conta-se com o princípio da boa-fé para que o
compromisso acordado seja cumprido 19. Ao descumprir as sentenças, o país
torna-se sujeito à pena de inadimplência. Com isso estaria submetido à
Assembleia Geral da OEA e fragilizado no âmbito político internacional, por não
cumprir o que foi acordado. Portanto, também é possível que o Estado seja
novamente responsabilizado.
CONCLUSÕES
Ao analisarmos de forma macroscópica, os casos Gomes Lund e outros
vs Brasil e Herzog e outros vs Brasil foram motivo de condenação do país pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos, haja vista o grave teor dos crimes
praticados durante o regime militar, que o levou às vistas internacionais
instituídas pelo Pacto São José da Costa Rica, do qual assumiu a
responsabilidade de compactuar com os ideais e seguir as normas como Estado-
membro. No entanto, mesmo diante das condenações, o impasse sobre o
cumprimento das sentenças existe devido ao entendimento do Supremo Tribunal
Federal (ADPF n°153/2008) sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia (Lei nº
6.683).
Logo, entende-se que a Lei de Anistia, por ser considerada constitucional
pelo STF, perpetua seus efeitos ao afetar diretamente o cumprimento integral
das sentenças proferidas pela Corte IDH nos dois casos, haja vista o conflito
entre o entendimento da jurisdição interna e internacional.
Portanto, apesar de o Brasil estar inserido no Pacto São José da Costa
Rica, o país ainda possui sua própria autonomia quando se trata de cumprimento
das determinações dadas pela Corte IDH, e em ambos os casos, a
constitucionalidade da referida Lei tem impedido que o país realize as diligências
que foram determinadas no âmbito internacional. No entanto, como
consequência disso, o descumprimento dessas medidas afeta a política
19
NASCIMENTO, 2023.
390
Ana Beatriz Cavalcante da Nóbrega & Silvya Erasmo Macêdo de
Medeiros
internacional do Brasil em relação a Organização dos Estados Americanos,
acarretando penalidades de responsabilização frente aos outros estados.
REFERÊNCIAS
1 ANDRADE, Isabela Piacentini. A execução das sentenças da Corte
Interamericana. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.3,
n.3, jan./jun. 2006.
2 BERNARDI, Bruno Boti. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e
o caso da guerrilha do Araguaia: impactos no Brasil. Revista Brasileira
de Ciência Política, n° 22. Brasília, 2017.
3 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
4 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (2018). Caso Herzog
e outros vs Brasil. Sentença em 15 de março de 2018. Disponível em: <
file:///C:/Users/Beatriz/Downloads/seriec_353_por%20(1).pdf>. Acesso
em: 29 dez. 2023.
5 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (2010). Caso Gomes
Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs Brasil. Sentença de 24 de
novembro de 2010. Disponível em:
file:///C:/Users/Beatriz/Downloads/seriec_219_por%20(1).pdf. Acesso
em: 29 dez. 2023.
6 COSTA, Rafaela Candido Tavares; LEMOS, Lais Freire. A dissintonia do
Estado brasileiro ao pacto de San Jose da Costa Rica: Caso Vladimir
Herzog. Revista Direitos Sociais e Políticas Públicas. UNIFAFIBE. 2010
7 JOFFILY, Mariana. As “sentinelas indormidas da pátria”: os interrogadores
do DOI-COD de São Paulo. Revista Mundos do Trabalho, vol. 1,núm. 1,
janeiro-junho de 2009.
8 KLEINAS, Alberto. A morte de Vladimir Herzog e a luta contra a ditadura: a
desconstrução do suicídio. São Carlos: UFSCar, 2012.
9 LIMA JR, Wilson Simões de. Sentença Internacional no Caso Gomes Lund
(Guerrilha do Araguaia) vs Brasil e suas consequencias no caso de
descumprimento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina,
ano 24, n. 5784, 3 mai. 2019. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/72546. Acesso em: 6 dez. 2022.
10 NASCIMENTO, Victor. O Brasil e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos: uma análise da persistência de não cumprimento das medidas
de reparação. Meridiano 47, vol. 24, 2023.
11 NISHIYAMA, Adolfo Mamoru; LAZARI, Rafael de. A Corte Interamericana
de Direitos Humanos e o caso Herzog vs. Brasil. Revista Mexicana de
Derecho Constitucional. núm. 47, julho-dezembro de 2022.
391
Casos Gomes Lund e Herzog: os efeitos do descumprimento (...)
12 Organização dos Estados Americanos, Convenção Americana de Direitos
Humanos (“Pacto de San José de Costa Rica”), 1969.
13 PINTO, Marcos José. A condenação do Brasil no caso da Guerrilha do
Araguaia pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Jus
Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3179, 15 mar. 2012.
Disponível em:<https://jus.com.br/artigos/21291>. Acesso em: 25 out.
2022.
14 SOUZA, Nevitton Vieira. Cumprimento de Sentenças Internacionais em
matéria de justiça de transição no Brasil. Revista Opinião Jurídica, vol.
18, núm. 28, pp. 94-114, 2020.
392
O princípio da eficiência administrativa e a concretização do
direito fundamental à saúde
Diego de Medeiros Santos 1
Vladimir da Rocha França 2
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo apresentará discussões sobre a relação existente entre
o princípio da eficiência administrativa e a efetivação do direito fundamental à
saúde, em especial pela perspectiva da implantação, desenvolvimento e
fomentação do Sistema Único de Saúde (SUS). Nessa perspectiva, o artigo se
dispõe a analisar fatores teóricos e conceituais sobre o que é a eficiência
administrativa em seu plano abstrato e prático, a importância do SUS para a
concretização do direito fundamental à saúde, bem como estudar fatores que
vêm impactando este sistema em aspectos financeiros, políticos e estruturais
que se vinculam com a eficiência administrativa.
Nesse segmento, o trabalho apresenta algumas limitações de abordagem
ao estruturar debates em especial sobre os impactos positivos e negativos da
atuação do Estado-Administração nas medidas vinculadas à saúde pública, dada
a proteção integral dos cidadãos fornecida pelo SUS. Outrossim, ao passo que
há previsões sobre a integralidade dos serviços públicos à saúde, constata-se
contradições quanto a sua efetividade, tendo em vista a ausência de atuação do
SUS em algumas regiões brasileiras, que sequer apresentam Unidades de
Atenção Básicas à saúde; mais uma vez a desigualdade presente no Estado-
Administração que, na teoria, preza pela perfeição de seus atos.
Nesse sentido, a eficiência é caracterizada a partir do cumprimento dos
fins lícitos e, por vias lícitas, delimitados pela ação administrativa, onde “o
administrado se sente amparado e satisfeito na resolução dos problemas que
1
Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Membro
do Projeto de Pesquisa Governo Digital-UFRN. Membro do Grupo de Pesquisa Direito
Administrativo Brasileiro-UFRN/CNPq. Contato: [email protected]
2
Advogado. Doutor em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor Titular de Direito
Administrativo do Departamento de Direito Público do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coordenador do Grupo de Pesquisa Direito
Administrativo Brasileiro-UFRN/CNPq. Contato: [email protected]
393
O princípio da eficiência administrativa e a concretização (...)
ininterruptamente leva à Administração” 3. Dessa maneira, não é admitido o
consenso de uma Administração Pública que não tenha a essência obrigacional
de ser diligente e criteriosa na busca da efetivação do interesse público firmado
em lei 4.
Sendo assim, a eficiência administrativa assume papel de grande
relevância no panorama do direito fundamental à saúde, em especial, em razão
da aproximação do Estado-Administração, que assume as vestes de
coordenador da efetividade à saúde por meio do Sistema Único de Saúde – SUS.
Nessa perspectiva, o objetivo principal do presente trabalho é discutir o
processo histórico da aproximação da Administração, a partir do princípio da
eficiência, com o direito fundamental à saúde, sob a perspectiva da base legal
do SUS (arts. 196 e 200, CF/88); Lei nº 8.080/1990, que regulou as ações e
serviços de saúde e colocou a mesma como direito fundamental e; Lei Nº
8.142/1990, a qual se refere à gestão do SUS e a transferência de recursos
financeiros.
No que tange ao estudo contemporâneo, será utilizado o método
hipotético-dedutivo, a partir da pesquisa quantitativa, para que se analise os
relatórios acerca do Histórico de Cobertura da Atenção Primária à Saúde, a partir
de uma visão nacional e regional brasileira, através do banco de dados E-Gestor
Atenção Básica.
Além disso, será evidenciada, a partir da pesquisa descritiva, a discussão
doutrinária do que é a eficiência administrativa, quais são seus limites e o que é
levado em consideração para retiradas de conclusões sobre os atos
governamentais, no sentido de serem eficientes ou não.
Outrossim, para que se obtenha um melhor entendimento acerca das
questões que permeiam a situação motora da presente pesquisa, o estudo se
dividirá em quatro tópicos centrais, nos quais serão discutidos, preliminarmente,
os aspectos que permeiam a eficiência administrativa em suas faces de estudos
legislativo e doutrinário; o tratamento acerca do direito fundamental à saúde,
mediante abordagem constitucional, a funcionalidade do Sistema Único de
3
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Eficiência Administrativa na Constituição Federal. Revista de
Direito Administrativo, ed. 220. Rio de Janeiro, abr./jun. 2000. p. 168.
4
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Eficiência Administrativa na Constituição Federal. Revista de
Direito Administrativo, ed. 220. Rio de Janeiro, abr./jun. 2000.
394
Diego de Medeiros Santos & Vladimir da Rocha França
Saúde (SUS) e a análise quantitativa de sua eficiência por meio da extração de
dados do sistema E-Gestor Atenção Básica; posteriormente, se inicia a
discussão sobre os impasses, limites e concretizações da eficiência
administrativa sob a ótica do direito fundamental à saúde e; por fim, estuda-se a
ideia de relevância do Estado-Administração na efetivação dos Direitos
Humanos em fatores internos do país.
Desse modo, a presente pesquisa mostra a essencialidade da atuação do
Estado-Administração enquanto garantidor do direito fundamental à saúde e,
consequentemente, na qualidade de estrutura necessária para a efetivação dos
Direitos Humanos no país, servindo assim de arquétipo internacional.
2 A EFICIÊNCIA ADMINISTRATIVA
No processo de discussão acerca da eficiência administrativa em sua face
estatal, faz-se pertinente compreender as novas tendências administrativistas
dos estados modernos. Isso porque se sustenta uma Administração Pública
onde se está pautada em uma função coordenada onde se estabelece bases
sólidas nas tomadas de decisões por meio da verificação de necessidades,
interesses, bens e objetivos 5. Nesse sentido, o bem-estar social passa a ser
enxergado como fato gerador da atividade estatal, onde se delega ao Estado a
responsabilidade geral pela prestação direta ou por garantir a prestação desse
bem-estar 6, aspectos como estes motivam a aplicabilidade do princípio da
eficiência administrativa, visto que por meio deste é possível promover a reflexão
se a atividade estatal é eficiente e se está cumprindo com o seu papel de
garantidora do bem-estar social.
Dessa maneira, o princípio da eficiência administrativa figura-se, na
conduta prática administrativa, como redes de conexões em processo
coordenado de atuação em busca do melhor resultado, com menor valor e menor
lapso temporal. Tal sistemática, incide, portanto, não apenas nos procedimentos
internos a serem adotados para efetivar a garantia da prestação estatal, mas
5
PAREJO ALFONSO, Luciano. La eficacia como princípio jurídico de la actuación de la
administración pública. Documentación Administrativa, Madrid, v. 32, n. 218 219, p. 15 65,
abr./sept. 1989. p. 42
6
SCHMIDT-AβMANN, Eberhard. Cuestiones fundamentales sobre la reforma de la teoría general
del derecho administrativo. In: BARNES VÁZQUEZ, Javier (Coord.). Inovación y reforma en el
derecho administrativo. Sevilha: Global Law Press, 2006. p.72
395
O princípio da eficiência administrativa e a concretização (...)
também no processo decisório de suas decisões, na prestação do serviço
público e demais interconexões existentes no procedimento administrativo 7.
Sendo assim, as redes de conexões que visam dar efetividade à eficiência
administrativa no Estado moderno não se limitam à prestação governamental
direta, mas são constituídas por sistemas mistos, com constituições de entes
públicos e privados, seja estes nacionais ou transnacionais 8. Esta tendência da
modernidade estatal concretiza a ideia de que os fins justificam os meios, ou
seja, a eficiência administrativa é a primazia do Estado e, seja qual for o meio,
esta precisa ser efetivada da forma mais integral possível, observada a licitude
dos atos praticados.
Nesta perspectiva, além da previsão constitucional da eficiência
administrativa enquanto princípio norteador da Administração Pública brasileira
(art. 37, Constituição de 1988) e demais dispositivos como os arts.70, 74, II, 144,
§ 7º, 175, parágrafo único, cumpre ressaltar a conceituação doutrinária do que
viria a ser a eficiência pregada na carta constitucional ao se integrar com o
processo administrativo-estatal, que deve ser compreendida enquanto
decorrente do princípio da socialidade, posto que a Constituição sustenta o
Estado social e cabe a Administração Pública efetivar essa estrutura com a
observação do interesse público e a concretização do bem-estar social. Nota-se
que tais fatores podem ser compreendidos em poucas palavras ao sintetizar o
conceito de eficiência enquanto àquela responsável por dar efetividade ao
modelo constitucional do Estado 9.
Eurico Bitencourt Neto, em sua obra “Transformações do Estado e a
Administração Pública no século XXI”, sustenta que:
A eficiência administrativa não se esgota em noção exclusiva de
racionalidade econômica, mas, partindo de uma concepção geral de
rejeição de formalismos e vinculação aos fins, postula, acima de tudo,
eficácia e efetividade da ação administrativa. Em outras palavras, a
eficiência como princípio da Administração Pública é conceito
pluridimensional, englobando, para além da economicidade (relação
7
BARNES, Javier. La colaboración interadministrativa a través del procedimiento administrativo
nacional. In: BARNES, Javier (Ed.). La transformación del procedimiento administrativo.
Sevilla: Global Law Press, 2008. p. 243-244.
8
BITENCOURT NETO, Eurico. Transformações do Estado e a Administração Pública no século
XXI. Revista de Investigações Constitucionais, [S.L.], v. 4, n. 1, p. 207, 16 fev. 2017.
Universidade Federal do Paraná. Disponível em: https://doi.org/10.5380/rinc.v4i1.49773. Acesso
em: 07 dez. 2023. p. 216.
9
OTERO, Paulo. O poder de substituição em direito administrativo. 2 v. Lisboa: Lex, 1995.
p. 251.
396
Diego de Medeiros Santos & Vladimir da Rocha França
custo-benefício, otimização de meios), a eficácia (realização adequada
de fins prefixados) e a celeridade. 10
Dito isso, observa-se a necessidade de quebra do estigma onde há a
limitação do estudo da eficiência administrativa somente com base em critérios
econômico-financeiros, isso porque a eficiência só fará plena quando observada,
além de fatores econômicos, os aspectos da relação custo-benefício, otimização
dos bens e serviços, adequação dos gastos às necessidades e a celeridade.
Isso posto, infere-se que a Administração Pública busca a eficiência por
meio de uma estrutura pluridimensional, fato este que traduz a necessidade de
integração de critérios dominantes para a conclusão de um ato administrativo
eficiente. Sendo assim, a integração entre esses atos eficientes visa um único
objetivo, o bem-estar social, onde se concretiza os ideais previstos
constitucionalmente.
3 O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
3.1 PREVISÕES CONSTITUCIONAIS
O sistema constitucional brasileiro sustenta o direito fundamental à saúde
enquanto sistema estatal de grande relevância para o desenvolvimento social e,
para tanto, a Constituição de 1988 prevê em seus artigos 196 e 197 a
responsabilidade estatal e a relevância pública no processo de construção de
ações destinadas aos serviços da saúde 11.
Ademais, a Carta Magna em seu art. 198 afirma que tais procedimentos
devem ser pautados em um sistema único e isento de fragmentações 12, aspecto
este que contribui para o avanço brasileiro quando o assunto é garantia à saúde
do cidadão, ao menos em aspectos teóricos.
10
BITENCOURT NETO, Eurico. Transformações do Estado e a Administração Pública no século
XXI. Revista de Investigações Constitucionais, [S.L.], v. 4, n. 1, p. 207, 16 fev. 2017.
Universidade Federal do Paraná. Disponível em: https://doi.org/10.5380/rinc.v4i1.49773. Acesso
em: 07 dez. 2023. p. 221.
11
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da
República, 1988. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:
07 dez. 2023.
12
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da
República, 1988. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:
07 dez. 2023.
397
O princípio da eficiência administrativa e a concretização (...)
Por último, cumpre ressaltar o art. 199 que prevê a complementariedade
do sistema de saúde brasileiro por meio da livre iniciativa privada, inclusive com
fornecimento de suporte pelo financiamento público de suas ações 13. Dessa
maneira, fica comprovada a preocupação da carta maior estatal com a efetivação
do direito fundamental à saúde.
3.2 O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – SUS, EFICIENTE?
O Sistema Único de Saúde (SUS) visa a integração do sistema de saúde
brasileiro, para que assim se garanta o acesso à saúde de maneira íntegra,
célere e padronizada, ou seja, não pode haver restrições para o acesso aos
serviços públicos de saúde. Nesse sentido,
A coesão e a unidade na intimidade do SUS decorrem da construção
de redes de atenção à saúde, da pactuação de fluxos de atendimento
e da padronização de procedimentos por gestores das três esferas de
governo 14.
Dessa forma, apesar de todas as previsões de integrações e unificações
dos serviços públicos destinados à saúde, ainda é possível enxergar falhas
massivas no SUS. Isso porque muitos dos atos praticados exigem
discricionariedade no processo decisório pela concessão ou não. Tal aspecto faz
com que ocorra um superlotamento do judiciário para que este passe a tutelar
os direitos dos cidadãos, fato que é considerado contraditório.
A contradição presente neste efeito manada, de levada das demandas ao
judiciário, está presente no fato de que, apesar de diversas previsões
constitucionais, a Administração permanece atuando enquanto limitadora do
acesso à saúde, o que não se pode afirmar que é errado, visto que
a atual compreensão doutrinária sobre o tema exige a demonstração
de provável e iminente lesão ao núcleo básico que qualifica o mínimo
existencial, de modo a, só assim, afastar a usual argumentação da
13
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da
República, 1988. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:
07 dez. 2023.
14
RAMOS, Marcelo Cristiano de Azevedo; AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Judicialização
da saúde: um estudo de caso envolvendo medicamento de alto custo. Revista Direito GV, [S.L.],
v. 19, p. 1-33, maio 2023. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-
6172202338. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 4.
398
Diego de Medeiros Santos & Vladimir da Rocha França
Administração Pública sobre a escassez de recursos financeiros e a
cláusula de reserva do possível 15.
Dessa maneira, a problemática maior não está naqueles que buscam o
judiciário para satisfazerem seus direitos ao acesso à saúde, mas a preocupação
deve estar centralizada, em especial, nos cidadãos que não são vistos nem pela
Administração Público, tampouco pelo Poder Judiciário; preocupante se faz esse
fenômeno de judicialização para dar efetivação ao SUS, posto que este
pode apresentar contornos perversos, na medida em que possui
potencial de deslocar os processos de planejamento e de priorização
em saúde, e direcionar, preferencialmente, os recursos apenas para
quem é capaz de acessar o Poder Judiciário para a satisfação de
direitos sociais de forma individualizada. Há, ainda, todo um público
hipossuficiente que nem sequer chega ao Poder Judiciário, público
esse que pode e deve ser atendido por políticas públicas universais e
igualitárias 16.
Um dos principais indicativos desse processo de essencialidade de
judicialização para efetivação do direito à saúde é questões econômico-
financeiras relacionadas ao financiamento público do SUS, isso porque o
sistema vem sofrendo grandes impactos de redução orçamentárias desde o ano
de 2017. Apesar do financiamento elevado nas ações preventivas e restaurativas
contra a pandemia da Covid-19, o aumento fiscal destinado ao SUS somente foi
elevado durante este lapso temporal que com a redução de infectados, também
houve a diminuição do orçamento fixado e destinado à serviço público da
saúde 17. Sobre a temática, Rosa Maria Marques e Mariana Jansen Ferreira ao
analisarem relatórios fiscais, em especial dos anos de 2020 e 2021 – período
ápice da pandemia –, extraíram as seguintes conclusões:
Já era o terceiro ano que os recursos definidos no orçamento da União
estavam congelados no nível de 2017, prejudicando a realização das
ações e serviços do SUS. Como mencionado anteriormente, a Emenda
Constitucional 95 teve efeito sobre a saúde pública a partir de 2018,
15
RAMOS, Marcelo Cristiano de Azevedo; AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Judicialização
da saúde: um estudo de caso envolvendo medicamento de alto custo. Revista Direito GV, [S.L.],
v. 19, p. 1-33, maio 2023. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-
6172202338. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 27.
16
RAMOS, Marcelo Cristiano de Azevedo; AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Judicialização
da saúde: um estudo de caso envolvendo medicamento de alto custo. Revista Direito GV, [S.L.],
v. 19, p. 1-33, maio 2023. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-
6172202338. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 27.
17
MARQUES, Rosa Maria; FERREIRA, Mariana Ribeiro Jansen. O financiamento do SUS no
enfrentamento da pandemia de Covid-19. Brazilian Journal Of Political Economy, [S.L.], v. 43,
n. 2, p. 465-479, abr. 2023. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-
31572023-3430. Acesso em: 07 dez. 2023.
399
O princípio da eficiência administrativa e a concretização (...)
dado que, para 2017, foi acordada ampliação dos recursos, trazendo,
para esse ano, o percentual de 15% sobre a receita corrente líquida
prevista para ser aplicada apenas em 2020. De qualquer forma, a
aplicação do novo regime fiscal nos anos posteriores fez com que o
SUS passasse de subfinanciado a desfinanciado, comprometendo
suas atividades.
[...]
Quanto à dotação ordinária de 2020 que havia sido aprovada para a
saúde, parte não foi sequer empenhada. Entre as hipóteses desse
ocorrido, encontra-se a redução das cirurgias eletivas como produto de
medidas tomadas para aumentar a disponibilidade de leitos
hospitalares para a Covid-19.
[...]
A preocupação da equipe econômica em não aumentar a dívida
pública, que havia se ampliado de 87,7% (2019) para 98,9% (2020) do
PIB, certamente definiu que os títulos públicos, que haviam financiado
39,5% dos recursos definidos para 2020, caíssem para 5%. Afinal, sua
continuidade como principal fonte do financiamento colocaria sob
suspensão, por parte do chamado “mercado”, o cumprimento estrito do
novo regime fiscal introduzido pela EC 95 18.
À vista disso, observa-se que o constate desfinanciamento do SUS afeta
diretamente a sua prestação de serviços à população, fato este que compromete
toda a ideia constitucional de que o sistema deve ser integrado e servir aos
cidadãos de forma íntegra a proporcionar a garantia e efetivação do direito à
saúde. Prontamente, o único meio viável e instantâneo para a resolução dos
déficits apontados, para Marques e Ferreira, seria a alteração do “regime fiscal
vigente, garantindo que o SUS e as demais áreas sociais recebam recursos em
montante adequado aos fins a que se propõem” 19.
3.3 A FERRAMENTA E-GESTOR ATENÇÃO PRIMÁRIA E BÁSICA
O Sistema E-Gestor tem como uma de suas funcionalidades gerar
relatórios da cobertura do SUS dentro do país, onde se vislumbra ainda uma
análise regionalidade de suas ações. No presente estudo, limita-se à uma
análise unicamente qualitativa de seus dados relativos à cobertura da Atenção
Básica de Saúde. Sendo assim, os resultados são hipóteses que serão extraídas
a partir da ótica da eficiência administrativa enquanto funcionalidade do SUS em
18
MARQUES, Rosa Maria; FERREIRA, Mariana Ribeiro Jansen. O financiamento do SUS no
enfrentamento da pandemia de Covid-19. Brazilian Journal Of Political Economy, [S.L.], v. 43,
n. 2, p. 465-479, abr. 2023. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-
31572023-3430. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 477-478.
19
MARQUES, Rosa Maria; FERREIRA, Mariana Ribeiro Jansen. O financiamento do SUS no
enfrentamento da pandemia de Covid-19. Brazilian Journal Of Political Economy, [S.L.], v. 43,
n. 2, p. 465-479, abr. 2023. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-
31572023-3430. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 478.
400
Diego de Medeiros Santos & Vladimir da Rocha França
sua cobertura unicamente geográfica, não se preocupando, portanto, quanto à
eficiência orgânica de sua atuação, à exemplo da extração de dados empíricos
das vivências da população local com o sistema.
Dessa maneira, os relatórios extraídos se preocupam em analisar a
cobertura do SUS em seu aspecto geográfico e comparar o ano de 2021 (pós
pandemia) com o ano de 2023, onde houve a estabilização dos índices da Covid-
19, assim pode-se observar quais implicações foram extraídas desses últimos
três anos de ação governamental com o sistema interno de saúde.
Sendo assim, faz-se pertinente estudar as diferenças dos avanços das
coberturas dos anos 2021 e 2023 em três esferas: I) Base Nacional: foi extraído
que em abril/2021 a cobertura da atenção básica do SUS perfazia o importe de
63,14%; já na data de abril/2023 o resultado foi de 76,95% 20; II) Base Regional
Nordeste: ao analisar a regionalização do SUS em atenção básica de saúde,
verificou-se uma cobertura de 73,27% em abril/2021 para a região nordeste e
84,97% em abril/2023 21; III) Base Estadual – Rio Grande do Norte (RN): no que
diz respeito à análise específica de um federativo, constatou-se que em
abril/2021 o RN contava com uma cobertura de atenção básica no percentual de
71,76%; já na data de abril/2023 o resultado foi de 80,16% 22.
Destarte, verifica-se que o SUS vem avançando com sua cobertura na
Atenção Básica de Saúde e mesmo com a redução orçamentária pós pandemia,
o sistema ainda é um dos focos governamentais em busca de um
desenvolvimento integrado da garantia e acesso à saúde dos cidadãos
brasileiros, fato é que a cobertura do SUS só avançou nos últimos anos; o que
comprova que ainda há uma preocupação estatal com os serviços destinados à
saúde populacional.
20
Ministério da Sáude. Histórico de Cobertura - APS. Brasília, 2023. Disponível em:
https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/
relCoberturaAPSCadastro.xhtml. Acesso em: 17 maio 2023.
21
Ministério da Sáude. Histórico de Cobertura - APS. Brasília, 2023. Disponível em:
https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/
relCoberturaAPSCadastro.xhtml. Acesso em: 17 maio 2023.
22
Ministério da Sáude. Histórico de Cobertura - APS. Brasília, 2023. Disponível em:
https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/
relCoberturaAPSCadastro.xhtml. Acesso em: 17 maio 2023.
401
O princípio da eficiência administrativa e a concretização (...)
4 OS IMPASSES ENTRE A EFICIÊNCIA ADMINISTRATIVA E O DIREITO À
SAÚDE
Ao analisar a situação do regime jurídico-administrativo presente no
sistema brasileiro de garantia do acesso à saúde, observa-se duas questões que
vinculam diretamente a problemática na efetivação da funcionalidade do SUS,
sendo os aspectos orçamentários e a interferência judicial sobre os atos da
Administração. Como já tratado em itens anteriores, o problema não persiste na
atuação excessiva do judiciário na resolução das lides relacionadas ao direito à
saúde, mas sim a vinculação de suas decisões perante a Administração, fato
este que implica da violação principiológica da divisão dos poderes do Estado 23.
Dessa maneira, a atuação do Poder Judiciário sobre as demandas
relacionadas à saúde cumpre o papel de uma justiça perante os necessitados.
Em contrapartida, três perguntas críticas são essenciais para a reflexão sobre a
temática: E àqueles que não são vistos pelo judiciário 24? Quais são os limites
dos precedentes judiciais na vinculação do Estado-Administração 25? A redução
do orçamento destinado ao SUS é o único problema 26?. Evidentemente estas
perguntas já foram discutidas no decorrer do texto, mas todas são tratadas de
forma isoladas, talvez este seja o maior problema existente na efetivação da
garantia e acesso à saúde no Estado brasileiro, a falta de integração entre os
poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Dito isso, observa-se muitos problemas, muitas soluções, poucas ações
e nula a integração entre esses déficits e suas respectivas resoluções. Dito isso,
a eficiência administrativa não pode existir sem que haja nortes, portanto, não
há o que se discutir sobre a exigência de uma eficiência se está sequer tem
23
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Crise da Legalidade e Jurisdição Constitucional: o princípio
da legalidade administrativa e a vinculação do estado-administração aos direitos fundamentais.
Curitiba: Juruá, 2023.
24
RAMOS, Marcelo Cristiano de Azevedo; AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Judicialização
da saúde: um estudo de caso envolvendo medicamento de alto custo. Revista Direito GV, [S.L.],
v. 19, p. 1-33, maio 2023. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-
6172202338. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 27.
25
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Crise da Legalidade e Jurisdição Constitucional: o princípio
da legalidade administrativa e a vinculação do estado-administração aos direitos fundamentais.
Curitiba: Juruá, 2023.
26
MARQUES, Rosa Maria; FERREIRA, Mariana Ribeiro Jansen. O financiamento do SUS no
enfrentamento da pandemia de Covid-19. Brazilian Journal Of Political Economy, [S.L.], v. 43,
n. 2, p. 465-479, abr. 2023. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://doi.org/10.1590/0101-
31572023-3430. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 478.
402
Diego de Medeiros Santos & Vladimir da Rocha França
parâmetros e tampouco direcionamentos do que deve ser feito para melhorar a
funcionalidade do direito à saúde, em especial pela condução do SUS.
5 O ESTADO-ADMINISTRAÇÃO E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS – ACESSO À SÁUDE
O Estado-Administração assume papel relevante no processo de
efetivação dos Direitos Humanos em âmbito nacional, por este estar vinculado
ao processo decisório, regulamentador e administrativo das políticas públicas
destinadas à população. O direito à saúde é uma dessas políticas que são
instauradas e administradas pelo Estado-Administração, que pode ser
compreendido como a função administrativa enquanto atividade do Estado ou de
um de seus delegados, a qual é exercida em aspecto de autoridade em relação
aos seus administrados, em uma verdadeira estrutura hierárquica “que
compreende a realização de atos jurídicos e de atos-fatos jurídicos com o escopo
de se materializar as utilidades públicas, sob o controle do Poder Judiciário” 27.
Sendo assim, o Estado-Administração é composto por órgãos e entidades que
exercem a função administrativa que é inerente à sua constituição 28.
Nesse sentido, ao observar o Estado-Administração e sua atuação na
efetivação dos Direitos Humanos, em especial ao direito à saúde que é o objeto
de estudo, têm-se a necessidade de compreender quais são as funcionalidades
de sua função administrativa para o SUS. Dessa maneira, a prática
administrativa pode ser compreendida como
“sequências de ações articuladas dos administradores, com sentido
objetivo no contexto organizacional, para organizar, planejar, dirigir e
controlar as práticas (o trabalho e as rotinas) das pessoas
administradas” 29.
Sendo assim, as ações administrativas assumem a função de organizar e
dar efetividade a tudo que é proposto constitucionalmente para o acesso à
27
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Crise da Legalidade e Jurisdição Constitucional: o princípio
da legalidade administrativa e a vinculação do estado-administração aos direitos fundamentais.
Curitiba: Juruá, 2023. p. 55.
28
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Crise da Legalidade e Jurisdição Constitucional: o princípio
da legalidade administrativa e a vinculação do estado-administração aos direitos fundamentais.
Curitiba: Juruá, 2023.
29
NASCIMENTO, Paulo Tromboni. O sentido objetivo da prática administrativa. Cadernos
Ebape.Br, [S.L.], v. 6, n. 1, p. 01-17, mar. 2008. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S1679-39512008000100002. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 5.
403
O princípio da eficiência administrativa e a concretização (...)
saúde, bem como ao tratar sobre o funcionamento do SUS para tornar palpável
a garantia constitucional à saúde. Para tanto, deve se ter em mente que a
“eficiência e eficácia são conceitos reguladoras da aplicação da noção de prática
administrativa” 30. Para que se compreenda a importância do Estado-
Administração para a concretização do direito à saúde, faz-se pertinente
enxergá-lo enquanto gestor de serviços da saúde que
constitui uma prática administrativa que tem a finalidade de otimizar o
funcionamento das organizações de forma a obter o máximo de
eficiência (relação entre produtos e recursos empregados), eficácia
(atingir os objetivos estabelecidos) e efetividade (resolver os
problemas identificados) 31.
Dessa forma, o Poder Público na face de Estado-Administração assume
a responsabilidade de tornar possível a funcionalidade prevista nas legislações
que regulamentam o SUS, isso por que sua atuação deve “levar em
consideração tanto questões internas – organização e funcionamento do serviço
– como questões externas – o seu papel no sistema de saúde e o impacto na
saúde da população” 32.
Com isso, a prática administrativa para concretizar o acesso à saúde, não
goza de discricionariedade plena, visto que além levar em conta fatores
orçamentários e formais intrínsecos à atividade estatal, também deve se utilizar
da lógica trazidas pelos Princípios da Avaliação para a Gestão de Serviços da
Saúde (Princípios da AGSS), que segundo Tanaka e Tamaki são: a) Utilidade; b)
Oportunidade; c) Factibilidade; d) Confiabilidade; e) Objetividade e; f)
Direcionalidade 33. Dessa maneira, cumpre destacar que apesar de critérios
objetivos na tomada de decisões dos serviços públicos de saúde, a subjetividade
30
NASCIMENTO, Paulo Tromboni. O sentido objetivo da prática administrativa. Cadernos
Ebape.Br, [S.L.], v. 6, n. 1, p. 01-17, mar. 2008. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S1679-39512008000100002. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 9.
31
TANAKA, Oswaldo Yoshimi; TAMAKI, Edson Mamoru. O papel da avaliação para a tomada de
decisão na gestão de serviços de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 17, n. 4, p. 821-
828, abr. 2012. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-
81232012000400002. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 822.
32
TANAKA, Oswaldo Yoshimi; TAMAKI, Edson Mamoru. O papel da avaliação para a tomada de
decisão na gestão de serviços de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 17, n. 4, p. 821-
828, abr. 2012. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-
81232012000400002. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 823.
33
TANAKA, Oswaldo Yoshimi; TAMAKI, Edson Mamoru. O papel da avaliação para a tomada de
decisão na gestão de serviços de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 17, n. 4, p. 821-
828, abr. 2012. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-
81232012000400002. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 823.
404
Diego de Medeiros Santos & Vladimir da Rocha França
ainda sim deverá ser utilizada neste processo decisório, fato este que implica,
em muitas das vezes, ao não convencimento do cidadão com a decisão
administrativa, recorrendo assim ao judiciário em busca de uma decisão que lhe
agrade. Nesta inteligência, Tanaka e Tamaki afirmam que
A subjetividade presente na avaliação pode ser reduzida, mas jamais
eliminada, pois na emissão do julgamento final, além dos dados
objetivos obtidos no processo avaliativo, é necessário levar em conta
a influência dos valores próprios do avaliador, os seus princípios,
crenças e convicções. Como ela não pode ser evitada, não se deve
buscar anular ou esconder esta subjetividade, mas torná-la a mais
explícita possível. A clareza do alcance e dos limites contribui para a
confiabilidade de uma avaliação. 34
Dito isso, o Estado-Administração assume relevância na garantia de
efetivação dos Direitos Humanos e ao tratar acerca do acesso à saúde se depara
com alguns limitadores de sua atividade, tudo isso pensado para que a tomada
de decisão pelo Poder Público apresente o maior índice de eficiência
administrativa possível a ser aplicada a cada caso, instituição e demais
demandas relacionadas à saúde pública.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho proposto alcançou os objetivos delimitados incialmente, onde
foram observados parâmetros que evidenciam a relação da eficiência
administrativa no processo de concretização do direito à saúde.
Em primeiro plano, quanto aos fatores conceituais acerca da eficiência
administrativa, constatou-se que esta tem como base uma estrutura de análise
pluridimensional, onde não se limita a observar fatores orçamentários, mas sim
uma série de aspectos que visam um fim comum, o bem-estar social.
Além disso, quanto ao tratamento acerca do direito fundamental à saúde
em relação à atuação da Administração Pública, têm-se primariamente a
comprovação de que a Carta Magna apresente uma elevada preocupação com
a efetivação do acesso à saúde pela população brasileira. No que diz respeito à
eficiência do SUS, verifica-se que apesar na legislação prever a necessidade de
uma cobertura integral à saúde, o desfinanciamento do programa dificulta a
34
TANAKA, Oswaldo Yoshimi; TAMAKI, Edson Mamoru. O papel da avaliação para a tomada de
decisão na gestão de serviços de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 17, n. 4, p. 821-
828, abr. 2012. FapUNIFESP (SciELO). Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-
81232012000400002. Acesso em: 07 dez. 2023. p. 827.
405
O princípio da eficiência administrativa e a concretização (...)
concretização de seus objetivos centrais, onde a solução primária para a
problemática seria a alteração do regime fiscal vigente, para que ocorra maior
destinação orçamentária para o SUS.
No que tange ao estudo quantitativo da eficiência administrativa
relacionada à saúde pública, o sistema E-Gestor apresenta dados interessantes,
posto que apesar da dificuldade orçamentária do SUS, o programa avançou a
nível nacional, regional nordeste e no Estado do Rio Grande do Norte na Atenção
Primária e Básica na análise comparativa entre os anos de 2021 e 2023.
Quanto aos impasses entre a eficiência administrativa e o direito à saúde,
verificou-se a problemática na integração entre os poderes Legislativo, Executivo
e Judiciário no processo de efetivação do direito à saúde a partir da utilização do
SUS enquanto ferramenta pública de concretização dessa garantia
constitucional.
No que concerne a importância do Estado-Administração na efetivação
dos direitos humanos, em especial no direito à saúde, constata-se que este é de
grande relevância por ser responsável por conduzir e administrar o SUS, onde a
gestão de saúde deverá observar critérios de avaliação no processo decisório
para que resulte sempre no melhor encaminhamento que se visa o bem-estar
social e o maior índice de eficiência administrativa.
Desse modo, verifica-se que o princípio da eficiência administrativa é um
forte norteador para o processo de concretização do direito à saúde, posto que
a prática administrativa deve visar sempre o bem-estar social e por meio do SUS
é possível a atuação do Estado-Administração para a efetivação dessa garantia
constitucional. Sendo assim, tais fatores favorecem para o cumprimento dos
Direitos Humanos no âmbito nacional.
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tomada de decisão na gestão de serviços de saúde. Ciência & Saúde
Coletiva, [S.L.], v. 17, n. 4, p. 821-828, abr. 2012. FapUNIFESP (SciELO).
Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000400002. Acesso
em: 07 dez. 2023.
407
A inclusão da pessoa com deficiência no âmbito empresarial através
do teletrabalho
Rossana Bitencourt Dantas 1
Flavia de Paiva Medeiros 2
1 INTRODUÇÃO
Atualmente vivenciamos um novo ambiente de trabalho descentralizado dos
centros de produção e centralizado no conhecimento e na informação. Logo, o modo
de exercer a atividade laboral sofreu várias mudanças diante das revoluções sociais
vivenciadas ao longo dos séculos. Assim, o século XXI é marcado por alterações
estruturais na forma de conviver, de se comunicar, aprender e trabalhar mediante as
novas tecnologias.
Nesse contexto, no presente artigo busca-se desenvolver considerações sobre
o teletrabalho humano como fomentador da inclusão social para o portador de
deficiência, e possível exclusão social face ao princípio do valor social do trabalho.
Atualmente, a população com deficiência no Brasil foi estimada em 18,6
milhões de pessoas de 2 anos ou mais, o que corresponde a 8,9% da população dessa
faixa etária 3.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que
apenas 26,6% das pessoas com deficiência encontram espaço no mercado de
trabalho. O nível de ocupação para o resto da população é de 60,7%. Cerca de 55%
das pessoas com deficiência que trabalham estão em situação de informalidade. O
rendimento médio real também é diferente entre pessoas com deficiência e sem: para
o primeiro grupo, a renda foi de R$1.860, enquanto o segundo chegou a R$2.690,
uma diferença de 30%. Em 2019, a taxa de participação das pessoas com deficiência
no mercado de trabalho (quer dizer, estavam ocupadas ou desocupadas) era de
28,3%, menos da metade desse percentual para as pessoas sem deficiência (66,3%) 4.
Esse cenário demonstra a existência de grande número de pessoas com
deficiência no Brasil que podem assumir postos de trabalho formais, mas devido às
1
Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável, pelo Centro Universitário UNIPÊ.
2
Doutora em Direito pela Universidade de Valencia-Espanha, diploma revalidado pela UFPB.
3
Brasil, 2023.
4
IBGE, 2022.
408
Rossana Bitencourt Dantas & Flavia de Paiva Medeiros
barreiras arquitetônicas e sociais vigentes que impedem a existência de
oportunidades, atualmente, um número expressivo dessas pessoas se encontra fora
do mercado de trabalho formal.
Assim sendo, surge a necessidade de os empregadores adaptaram seus
prédios, bem como viabilizar a execução laborativa e a presença destes indivíduos
nos ambientes de trabalho por meio do atendimento das necessidades existentes e
da eliminação das barreiras que porventura impeçam a plena inclusão social.
Entretanto, a nossa comunidade ainda possui barreiras referentes à mobilidade
urbana, especialmente no transporte público, e também às próprias características
físicas e/ou pessoais que dificultam a mobilidade da pessoa com deficiência. “De um
modo geral, o transporte público no Brasil é considerado ruim e ineficiente, com
passagens caras e ônibus frequentemente lotados, veículos em condições ruins, além
do grande tempo de espera nos pontos de ônibus e metrô.”
Destarte, surge o teletrabalho viabilizando que a pessoa deficiente ocupe posto
de trabalho sem sair do conforto de seu lar, ou execute as tarefas em lugares mais
acessíveis, sem que haja necessidade de investimento demasiado no espaço físico
das empresas.
Nessa senda, empreendemos o método hipotético-dedutivo valendo-se de
pesquisa bibliográfica na doutrina e na jurisprudência, foi destacado a evolução
histórica do tratamento dispensado à pessoa com deficiência, dando enfoque a
terminologia, conceito e fundamentação legal, bem como a importância do trabalho
como mecanismo de inclusão do PCD, o sistema de cotas no setor privado e por fim
o teletrabalho como fator de inclusão social destacando as vantagens e desvantagens.
O objetivo geral é analisar se o teletrabalho viabiliza a inclusão social da pessoa com
deficiência no mercado de trabalho.
2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRATAMENTO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Ao longo da história a pessoa com deficiência foi excluída da sociedade pela
inutilidade e, em seguida, foi isolada em instituições com a finalidade de ser protegida
da discriminação social. Conforme o entendimento de Otto Marques, a história revela
os mais diversos tratamentos à pessoa com deficiência, nos quais, muitos relatos
revelam que alguns povos adotaram atitudes de aceitação e outros de abandono,
segregação e destruição.
409
A inclusão da pessoa com deficiência no âmbito empresarial (...)
O primeiro documento legislativo romano, a Lei das XII Tábuas autorizava
expressamente que os filhos com deficiência fossem descartados. Igualmente, era
autorizado a utilização da pessoa com deficiência para fins de comercialização ou
prostituição. Para Aristóteles, em Atenas os deficientes deveriam ser amparados e
protegidos na sociedade, pois a igualdade consistia em tratar igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais. Logo, os deficientes aptos ao trabalho deviam fazê-lo e
os inaptos receberiam a proteção estatal 5.
Durante a Idade Média, baseada no cristianismo e na ideia de amor, os
senhores feudais amparam deficientes em casas de assistências, isolados do resto
da sociedade em asilos, conventos e albergues. Nesse sentido Bublitz cita que “a
dificuldade que o ser humano tem de conviver com a diferença é o grande mote da
obra. Aceitar e respeitar o outro como ele realmente é não tem sido tarefas das mais
fáceis” 6.
Com o Renascimento, surge a ideia de integração e somente em 1854 são
criadas as primeiras escolas para deficientes auditivos e visuais. De acordo com os
dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a partir de 1789, quando da
Revolução Francesa, surgem vários inventos com o objetivo de propiciar meios de
locomoção como: cadeiras de roda, bengalas, muletas, próteses, veículos adaptados
e outros. A partir do século XVIII com a Revolução Industrial as pessoas deficientes
passaram a receber maior atenção, inclusive após as guerras mundiais também, de
modo que os mutilados nos Estados Unidos por exemplo eram tratados como heróis,
enquanto na Alemanha eram alvo de experiências científicas.
Já nas décadas de 1960 e 1970, a partir da Carta das Nações Unidas de
1945, começaram a surgir documentos internacionais que produziram novo
conceito econômico, social e político às discussões atuais, em especial sobre
emprego e trabalho, com relação a pessoas com deficiência, como por
exemplo: a Declaração dos direitos do Deficiente Mental (ONU, 1971), a
declaração dos direitos das pessoas deficientes (ONU, 1975), e a Convenção
n. 159- sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes
(OIT, 1983) 7
O ano de 1981 é um marco que delimita o Ano Internacional da Pessoa
Deficiente pela ONU e em 1988, com a Constituição Federal, a proteção das pessoas
5
Bublitz, 2015.
6
2015, p. 516.
7
Bublitz, 2015, p. 546.
410
Rossana Bitencourt Dantas & Flavia de Paiva Medeiros
com deficiência passou a integrar as normas constitucionais, concretizando vários
direitos sociais e individuais, inclusive o de acesso ao trabalho.
Neste ínterim, o art. 203 da Constituição Federal dispõe sobre a assistência
social, senão vejamos:
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar,
independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
IV – a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a
promoção de sua integração à vida comunitária;
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora
de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a
própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a
lei 8.
A Lei Brasileira de Inclusão impõe a contratação de PCD compulsoriamente, e
dispõe sobre benefícios previdenciários, como o BPC (o auxílio concedido aos
deficientes que não estão inseridos no mercado de trabalho) visando possibilitar a
inclusão social do deficiente através do trabalho.
3 FUNDAMENTAÇÃO LEGAL, TERMINOLOGIA E CONCEITO
A Constituição Federal de 1988 ampliou os direitos das pessoas com
deficiência, como por exemplo o acesso ao mercado de trabalho, aos meios de
transporte, à educação, aos logradouros, entre outros, e passaram a ser especificados
e garantidos em alguns dispositivos constitucionais e leis infraconstitucionais, como
por exemplo o direito à acessibilidade, o direito à habilitação e reabilitação, direito ao
trabalho, direito ao benefício previdenciário, direito ao estágio e outros direitos
garantidos.
O Art. 227, § 2º e art. 244 preveem o direito à acessibilidade às cidades, às
edificações e aos transportes coletivos. Daí surgiram as leis federais
infraconstitucionais que regulamentam os artigos constitucionais, a Lei 10.048/2000 e
a Lei 10.098/2000, respectivamente. A Lei 10.048/2000 visava proporcionar a
acessibilidade nos transportes coletivos do Brasil, mediante a fabricação de veículos
adaptados às pessoas com deficiência. Já a Lei 10.098/2000 também conhecida como
o Estatuto da Acessibilidade, amplia a acessibilidade mediante “a supressão de
8
Brasil, 1988.
411
A inclusão da pessoa com deficiência no âmbito empresarial (...)
barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na
construção e reforma de edifícios e nos meios de transporte de comunicação” 9.
Neste espeque convém trazer à baila o conceito de habilitação e reabilitação
profissional, segundo Martins 10:
Habilitação é o processo prestado às pessoas que tem limitação de nascença
para que possam qualificar-se para o trabalho. Reabilitação é o processo
prestado aos portadores de deficiência em decorrência de acidente para que
possam voltar a trabalhar. Tem por objetivo preparar o acidentado para o
exercício de outra função.
O direito ao trabalho para as pessoas portadoras de deficiência, consta no art.
7º XXXI no sentido de proibir “qualquer discriminação no tocante a salário e critérios
de admissão do trabalhador portador de deficiência” (Brasil, 1988). No serviço público,
a Constituição Federal determina o percentual mínimo de 5% para os portadores de
deficiência. O direito ao estágio também contempla os portadores de deficiência,
reservando o percentual de 10% das vagas oferecidas pelo concedente dos estágios.
O direito à saúde é outro importante direito garantido à pessoa com deficiência.
Neste sentido é tarefa dos órgãos e entidades da administração pública
garantir o acesso desse público alvo aos estabelecimentos de saúde público
e privados, ao mesmo tempo em que deva fornecer um adequado tratamento
com base nas normas técnicas e padrões de conduta apropriados 11
Logo, a legislação vigente garante às pessoas com deficiência o pleno exercício
de seus direitos básicos como educação, saúde, trabalho, lazer, previdência social,
amparo à infância e à maternidade, bem como outros que propiciem o bem-estar
pessoal, social e econômico.
3.1 Terminologia e conceito
De acordo com a doutrina majoritária, incluindo Ariolino Neres Sousa Junior, o
termo “portadores de deficiência”, comumente é utilizado de forma pejorativa
associando as pessoas com deficiência a “seres inferiorizados”, e “incapazes”
contribuindo para a continuação da estigmatização na nossa sociedade.
Desta feita, “nos anos de 1980 os termos – pessoa portadora de deficiência,
pessoa com necessidade especial e pessoa portadora de necessidade especial, eram
9
Brasil, 2000.
10
2022, p. 486.
11
Sousa Junior, 2022, p. 54.
412
Rossana Bitencourt Dantas & Flavia de Paiva Medeiros
utilizados. Destaca-se que a deficiência fica em evidência e não o ser humano. Assim,
a pessoa ‘porta’ a deficiência, ou seja, traz algo consigo que se sobrepõe a quem ela
é” 12
.
Neste ínterim, convém transcrevemos o conceito oriundo da Convenção sobre
os direitos da pessoa com deficiência, na vertente que é um conceito em
transformação:
(...) a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as
barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva
participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades
com as demais pessoas 13
No que tange às novas terminologias para se referir às pessoas com
deficiência, Fonseca 14 esclarece que:
A denominação utilizada para se referir às pessoas com alguma limitação
física, mental ou sensorial assume várias formas ao longo dos anos.
Utilizavam-se expressões como ‘inválidos’, ‘incapazes’, ‘excepcionais’ e
‘pessoas deficientes’, até que a constituição de 1988 por influência do
Movimento Internacional de Pessoas com Deficiência, incorporou a
expressão ‘pessoa portadora de deficiência’, que se aplica na legislação
ordinária. Adota-se, hoje, também a expressão ‘pessoa com necessidades
especiais’ ou ‘pessoa especial’. Todas elas demonstram uma transformação
de tratamento que vai da invalidez e incapacidade à tentativa de nominar a
característica peculiar da pessoa, sem estigmatizá-la”.
Destarte, verifica-se que a expressão “pessoa portadora de deficiência”
inclusive no âmbito internacional encontra-se em desuso pois as pessoas não
importam, mas sim apresentam. Ou seja, as pessoas estão com deficiência, daí
optarmos pela expressão “pessoas com deficiência” 15.
O Brasil aprovou o decreto 6.949 de 25 de agosto de 2009 referente à
convenção internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência, de modo que
o termo “pessoa com deficiência” é descrito no seu artigo 1º, in verbis:
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo
de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação
com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na
sociedade em igualdades de condições com as mesmas pessoas 16
12
Silva; Souza-Fukul, 2022.
13
Brasil, 2009.
14
1999, s.p.
15
Sousa Junior, p. 14.
16
Brasil, 2009
413
A inclusão da pessoa com deficiência no âmbito empresarial (...)
Da mesma forma, o Estatuto da Pessoa com Deficiência também ratificou o
conceito de pessoas com deficiência. No âmbito laboral, a Recomendação n. 99
chancelada pela Organização Internacional do Trabalho – OIT estipula o conceito de
deficiência, nos seguintes moldes:
todas as pessoas cuja possibilidade de obter e conservar um emprego
adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas
devido a uma deficiência de caráter físico ou mental devidamente
comprovada.
Isto posto, conforme a Lei Brasileira de Inclusão, pessoa com deficiência é
aquela que possui impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual
ou sensorial, a qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais
pessoas.
3.2 A importância do trabalho como mecanismo de inclusão da PCD
Convém esclarecer inicialmente que as pessoas com deficiência estão menos
presentes no mercado de trabalho, em relação àqueles que não têm deficiência. Em
2019, a taxa de participação para pessoas com deficiência (28,3%) era menos da
metade do que entre as pessoas sem deficiência (66,3%). Esse indicador mede a
proporção de ocupados e de desocupados entre as pessoas com 14 anos ou mais de
idade. Os dados são da publicação Pessoas com deficiência e as desigualdades
sociais no Brasil, divulgada hoje pelo IBGE. Apenas 34,3% dos trabalhadores com
deficiência têm vínculo formal 17
Não restam dúvidas de que o trabalho possui uma valoração entre os seres
humanos variando de acordo com as relações históricas e inclusive tem origem
bíblica, baseada no fato de que Deus trabalhou incansavelmente por 6 (seis) dias para
criar o céu, a terra, o sol e o mar, e só descansou no último dia ao terminar o trabalho 18.
Logo, a existência digna está em perfeita adequação com a valorização do
trabalho humano. É cláusula principiológica que constitui o substrato da República
Federativa do Brasil (art. 10, IV) expressa com a finalidade de assegurar a todos uma
existência digna. O art. 170 da Constituição Federal prescreve que a ordem
17
IBGE, 2022.
18
Suzman, 2022.
414
Rossana Bitencourt Dantas & Flavia de Paiva Medeiros
econômica está fundada na valorização do trabalho humano e livre iniciativa, com
finalidade precípua a existência digna conforme os ditames da justiça social,
respeitando os princípios da soberania nacional, propriedade privada, função social
da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente,
redução das desigualdade sociais e regionais, busca do pleno emprego e tratamento
favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte. Logo,
a existência digna está em perfeita adequação com a valorização do trabalho humano.
É cláusula principiológica que constitui o substrato da República Federativa do Brasil
(art. 10, IV) expressa com a finalidade de assegurar a todos uma existência digna.
De acordo com 19, o conceito de trabalho não está restrito ao campo econômico,
sendo um elemento intrínseco à existência humana, pois extrapola o caráter de
sobrevivência e suprimento das demandas materiais, incluindo os pleitos existenciais
e de vida.
O trabalho não é apenas um elemento de produção. É bem mais que isso. É
algo que valoriza o ser humano e lhe traz dignidade, além é claro, do sustento.
É por isso que deve ser isto, antes de tudo, como um elemento ligado de
forma umbilical à dignidade da pessoa humana. Valorizar o trabalho, significa
valorizar a pessoa humana, e o exercício de uma profissão pode e deve ao
alcance de uma vocação do homem. Mesmo o mercado, para quem o
trabalho nada mais é, isso em uma concepção liberal, do que elemento de
produção, não pode prescindir, de valorizar o trabalho como elemento crucial
ao alcance da dignidade humana 20
Portanto, o valor social do trabalho é um dos eixos para o sistema normativo
constitucional brasileiro contribuindo significativamente para o Estado democrático de
direito. Hodiernamente vários fatores ocasionaram alterações nos regimes de trabalho
como a realidade econômica, globalização, e as transformações tecnológicas, de
modo que estamos vivenciando a Quarta Revolução Industrial, fruto de novas
tecnologias digitais, biológicas e físicas, com a promessa de crescimento exponencial
e muito mais transformadora do que as antecessoras.
É determinada por uma internet onipresente e móvel, por sensores menores e
mais poderosos que se tornaram mais acessíveis e pela inteligência artificial e
aprendizagem automática. Em suma são tecnologias digitais mais sofisticadas e
integradas, com o poder de transformar a sociedade e a economia global. A quarta
Revolução impera onda com novas descobertas que vão desde o sequenciamento
19
Marques (2022).
20
Marques, 2022, p. 111.
415
A inclusão da pessoa com deficiência no âmbito empresarial (...)
genético até a nanotecnologia, das energias renováveis à computação quântica,
integrando muitas descobertas e disciplinas diferentes 21.
Desta feita, as novas tecnologias impactam na reestruturação das relações de
trabalho, de modo que o trabalho não precisa mais ser realizado no ambiente da
empresa, surgindo o teletrabalho, teleconsumo, telebanking, educação à distância,
telemedicina, visando a criação de um mercado global integral com o fito de aumentar
a produtividade e os lucros das empresas na atual sociedade da informação, também
chamada de pós-industrial 22.
O trabalho humano possibilita transformar qualitativamente a sociedade a partir
da perspectiva da inclusão social, conforme previsão legal no art. 3° da Constituição
Federal. Neste contexto, o trabalho para as pessoas com deficiência é um requisito
básico para a inclusão na sociedade.
A inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho oferece a
possibilidade de resgate da autoestima, da dignidade e do exercício pleno da
cidadania. A vida laboral tende a assegurar uma inclusão social a esses
indivíduos, que passam a se sentir muito mais confiantes. Assim a satisfação
em tornar-se produtivo, torna-os mais felizes, substituindo o sentimento de
exclusão por sentimento de autovalorização. No contexto da subjetividade, o
trabalho participa da constituição pessoal, faz parte da vida material e
psíquica, prove subsistência e oportuniza o reconhecimento social do sujeito
no mundo e o seu próprio reconhecimento como ser produtivo na sociedade 23
Daí surge o questionamento se o teletrabalho realmente propicia a inclusão
social ou apenas provê o sustento?
3.3 O sistema de cotas no setor privado
O sistema de cotas foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro através
da Lei 3.807, de 26 de agosto de 1960 em seu artigo 55, sendo alterada pela Lei
8.213/91, no artigo 93, visando facilitar o acesso das pessoas no mercado de trabalho
e diminuir as desigualdades sociais garantindo oportunidades iguais.
Apesar das divergências doutrinárias, atualmente, a legislação brasileira
adota o sistema de cotas ‘isolada’ ou cotas ‘puro’, conforme está presente no
art. 36 do Decreto 3.298/99. Infelizmente, esse não tem sido o melhor sistema
que possibilite a garantia de acesso ao mercado laboral para as pessoas com
deficiência, haja vista que a simples imposição de uma obrigatoriedade não
garante que ela seja cumprida, e muito menos que as empresas venham a
21
Schwab, 2016.
22
Sousa Junior, 2022.
23
Sousa Junior, 2022, p.128.
416
Rossana Bitencourt Dantas & Flavia de Paiva Medeiros
oferecer, de bom grado, condições condignas de trabalho para os portadores
de deficiência. Pelo contrário, o que temos observado em nosso cotidiano é
que esse sistema se apresenta como impositivo e punitivo ao invés de
incentivador e flexível à iniciativa privada durante o procedimento de
contratação de pessoas com deficiência, tendo em vista que há a falta de
estimulo governamental para que as empresas promovam novas
contratações e que, por sua vez, elas acabam enfrentando dificuldades na
modernização de suas instalações arquitetônicas, na aquisição de
equipamentos adaptados ao atendimento das deficiências e na realização de
treinamentos em seus empregados com deficiência 24.
Assim, Sousa Junior 25 defende a necessidade de parceria com o poder público
e a iniciativa privada com a finalidade de criar ações afirmativas para viabilizar o
ingresso das pessoas portadoras de deficiência no mercado de trabalho. Entrementes,
o poder público deve intervir através do desenvolvimento de políticas públicas efetivas
como programas de habilitação profissional em prol da qualificação das pessoas com
deficiência, inclusive a educação básica e cursos de formação e capacitação.
O Tributal Superior do Trabalho - TST já pacificou entendimento desde maio de
2016 que as empresas não podem ser punidas com multas e indenizações se não
conseguirem profissionais no mercado para preenchimento das vagas de pessoas
com deficiência, por fatos alheios à sua vontade como normalmente ocorre mediante
a inexistência da mão de obra qualificada.
Há autores que defendem que para viabilizar o cumprimento da legislação por
parte das empresas o Estado deveria dividir o ônus do cumprimento normativo
reduzindo os encargos sociais para contratação. Outra alternativa seria o investimento
dos valores oriundos das multas no treinamento de qualificação para as pessoas com
deficiência, desde que haja o trabalho conjunto entre os empregadores da iniciativa
privada com atuação mais presente do poder público, para que, assim, viabilize a
inclusão social de acesso ao mercado laboral 26
3.4 O teletrabalho como fator de inclusão de pessoas com deficiência no
mercado de trabalho
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o teletrabalho
pode ser conceituado como a forma de trabalho realizada em lugar distante da sede
24
Sousa Junior, 2022, p. 131.
25
2022.
26
Sousa Junior, 2022.
417
A inclusão da pessoa com deficiência no âmbito empresarial (...)
da empresa ou do centro de produção e que implica uma nova tecnologia (telemática)
que permite a separação e promove a comunicação.
Neste sentido, teletrabalho é aquele realizado em local diverso do espaço físico
da empresa, mediante o uso de tecnologias da informação que interligam o
teletrabalhador por meio do computador ou outro equipamento de comunicação ao
sistema central da empresa. Já os meios telemáticos podem ser definidos como um
conjunto de tecnologias da informação e da comunicação (TICs) que transmitem
dados que possibilitam o acesso ao teletrabalhador em qualquer lugar que ele estiver
laborando 27.
Dentre as vantagens do teletrabalho podemos citar diminuição de despesas
com transporte, vestuário, combustível e custos, aumento da produtividade,
simplificação da fiscalização do trabalho, racionalização de instalações, equipamentos
e material de trabalho, supressão da rigidez de horário e redução de gastos com
infraestrutura física. Por outro lado, as desvantagens podem ser consideradas
diminuição do tempo livre, isolamento social, investimento em equipamentos
tecnológicos, dificuldade para exercer o controle virtual e direção das atividades.
Em resumo, as principais vantagens do teletrabalho são o ganho de qualidade
de vida, no momento que o trabalhador possui maior controle da dinâmica espaço e
tempo de produção. Já a principal desvantagem é o isolamento social, falta de
interação entre os pares, superiores e subordinados, muitas vezes acarretando falta
de reconhecimento, competitividade e sobrecarga (Bublitz, 2015).
Neste contexto, o teletrabalho possibilita a diminuição da desigualdade de
oportunidades na medida em que os portadores de deficiência podem ter acesso ao
mercado de trabalho mesmo com ineficiências, dificuldade de locomoção, deficiências
auditivas e visuais por exemplo, bem como barreiras físicas e geográficas. A esse
respeito, Denise Pires Fincato esclarece que:
Não se pode deixar de comentar o fato de que o teletrabalho pode vir a ser
utilizado com fins segregatórios, ou seja, dada a obrigatoriedade de
contratação de portadores de deficiência(art. 93 da Lei 8.213/91) é possível
que empregadores comecem a utilizar da nova tipologia laboral com o
objetivo de cumprir a lei sem atender à sua função social. Parece evidente
que o objetivo de pré-citado artigo é a inclusão social, via garantia do direito
ao trabalho, aos portadores de deficiência (qualquer física e/ou mental),
entretanto, o teletrabalho pode permitir situações em que o portador de
deficiências preste serviço sem sair de seu domicílio deixando, portanto, de
participar da vida social e de realizar finalidade social do trabalho. A contribuir,
27
Silva, 2018.
418
Rossana Bitencourt Dantas & Flavia de Paiva Medeiros
o fato de que a empresa não necessitará adaptar o seu meio produtivo para
acolher tais portadores de deficiência (rampas, elevadores, instruções em
braile).
Assim o teletrabalho surge como mecanismo para reduzir os níveis de
desemprego e conferir efetividade ao direito ao trabalho das pessoas com deficiência,
atuando como instrumento garantidor da possibilidade de inserção desse grupo de
trabalhadores na vida ativa e no mercado de trabalho. Contudo, é preciso atentar que
se por um lado o teletrabalho permite o acesso ao trabalho, por outro impede a
convivência social, podendo ser considerado um retrocesso sob esse aspecto.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O teletrabalho está sendo cada vez mais utilizado pelas empresas e órgãos
públicos, que enxergam nele uma alternativa para a prestação de serviços em
qualquer lugar do mundo, beneficiando os trabalhadores e toda a sociedade.
Neste contexto, o teletrabalho é oportunidade de emprego, inclusive para as
pessoas com deficiência e dificuldades de mobilidade, dado que permite a adaptação
do domicílio do empregado para atender à demanda da empresa, evitando o
deslocamento.
Destarte, a lei 8.213/91 que estabeleceu cotas no setor privado foi de suma
importância para a inclusão sócio laboral da pessoa com deficiência, contudo ainda
existe um longo caminho para ser perseguido a fim de alcançar um nível de inclusão
relevante, vencendo o preconceito quanto à diversidade, pois o Estado também deve
assumir o seu papel de promover a qualificação/educação necessária para os
portadores de deficiências e não apenas punir as empresas, devendo inclusive
reverter o custo de multas em cursos profissionalizantes, por exemplo.
É papel do estado minimizar as diferenças dos seres humanos, lutando pela
diminuição das dificuldades e dos sofrimentos daqueles que fazem parte da
sociedade, por meio da implementação de ações afirmativas e fiscalizatórias dos
órgãos competentes, visando à proteção dos seres humanos excluídos e
discriminados.
Outrossim, o trabalho à distância para o portador de deficiência deve ser
analisado com cautela, pois acarreta a segregação dos trabalhadores afastando-os
419
A inclusão da pessoa com deficiência no âmbito empresarial (...)
do convívio social, e mantendo as barreiras físicas porventura existentes, devendo ser
utilizado, especialmente quando for conveniente para o trabalhador.
Diante do exposto, observou-se que a discussão em pauta requer maior
atenção por parte da literatura científica, tendo em vista a complexidade da temática,
com o fim de se buscar uma melhor compreensão de pontos controversos atinentes
ao teletrabalho como mecanismo de inserção social do deficiente, sob o enfoque das
políticas públicas voltadas a esse fim, possibilitando trabalho e condições dignas de
vida social.
REFERÊNCIAS
BUBLITZ, M. D. Pessoa com deficiência e teletrabalho. Um olhar sob o viés da
inclusão social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: 1988. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso
em: 23 set 2023.
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Previdência Social e dá outras providências. Disponível em:
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2023.
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Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10098.htm. Acesso
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https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm.
Acesso em: 23 set. 2023.
BRASIL. Lei nº. 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a lei Brasileira de Inclusão
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em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm.
Acesso em: 23 set. 2023.
BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Brasil tem 18,6 milhões
de pessoas com deficiência, indica pesquisa divulgada pelo IBGE e
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br/assuntos/noticias/2023/julho/brasil-tem-18-6-milhoes-de-pessoas-com-
420
Rossana Bitencourt Dantas & Flavia de Paiva Medeiros
deficiencia-indica-pesquisa-divulgada-pelo-ibge-e-mdhc. Acesso em: 23 set.
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SUZMAN, J. Trabalho: Uma história de como utilizamos o nosso tempo: Da Idade
da Pedra à era dos robôs. São Paulo: Vestígio, 2022.
421
Parâmetros de regulação econômica durante a pandemia de
Covid-19 à luz da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988
Vitória Nathalia dos Santos1
1- INTRODUÇÃO
Em razão do cenário provocado pela pandemia, causada pelo SARS-
CoV-2 (Covid-19), o Governo Federal, como forma de conter os impactos
econômicos causados pela propagação do vírus, adotou uma série de medidas
normativas em face do regime jurídico brasileiro, alterando-as com a suposta
finalidade de garantir aos brasileiros diante desse cenário pandêmico garantias
constitucionais mínimas, a exemplo: emprego e renda.
Diante desta perspectiva, o atual contexto impôs ao governo a
necessidade flexibilização de regras de governança fiscal de modo a viabilizar
medidas de política econômica em resposta aos fatos existentes de forma
inédita. O Brasil já se encontrava em um cenário econômico não tão satisfatório,
o desemprego que interfere diretamente na economia e no cotidiano dos
brasileiros já era algo insatisfatório, o Covid-19 degenerou-se todo esse
contexto.
Nesta perspectiva, tornou-se necessário a definição de estratégia de
financiamento do setor público capaz de manter a execução fiscal em especial,
as orientadas ao financiamento das políticas de saúde e assistência social,
garantindo e preservando o emprego e renda, capaz de dar suporte aos entes
federativos, além de proporcionar a gestão sustentável da dívida pública numa
perspectiva a longo prazo, diante dos danos causados a economia pois os
prejuízos provocados pelo Covid-19 são incalculáveis.
Diante disto, o presente trabalho visa se desenvolver em torno dos
mecanismos ficais de regulação e a sua efetiva aplicação no contexto social
1
Advogada. Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN);
E-mail: [email protected].
422
Vitória Nathalia dos Santos
remetendo crise e econômica provocada pelo Covid-19. Evidenciando os
efeitos da legislação e sua aplicabilidade diante de situações extraordinárias
como a pandemia, provocando pelo covid-19, e a relevante atuação do poder
público diante desse cenário, acerca das iniciativas de políticas públicas com
repercussão expressivas e diretas sobre a configuração da política fiscal, tudo
sob a ótica do Direito Constitucional.
2- UMA BREVE ÓTICA DO DIREITO CONSTITUCIONAL ACERCA DO
DIREITO TRIBUTÁRIO.
A existência de um Estado implica a pretensão de recursos financeiros
para sua manutenção, de tal modo que no Brasil utiliza-se a Constituição da
República Federativa de 1988 como lei fundamental, servindo como parâmetro
de validade para as demais espécies normativas ¨ Subsiste o problema de
salientar Constituições-tipo que sirvam de pontos de referência¨2. Deste modo,
é o instrumento normativo que reflete a decisão dos representes do povo para
o povo, revelando-se como parâmetro de estruturação da sociedade num
Estado de Direito.
Jorge Miranda em sua obra Manual de Direito Constitucional, aduz o
entendimento de SANCHEZ AGESTA, que entende que a Constituição surge
como realização de um quadro de possibilidades típicas num meio histórico
determinado, através de uma consideração histórica concreta das ordens
constitucionais, com as suas relações de influxo e repulsa, de propagação de
ideias, de imitações de instituições, de evolução e transmissão de princípios e
fórmulas jurídicas, propicia a verdadeira base de uma ciência de Direito
Constitucional 3.
O autor Luis Eduardo Schoueri em sua obra acerca de Direito Tributário
tem o
seguinte entendimento que Constituição Federal é o diploma que espelha
a decisã dos representantes do povo – único detentor da soberania – e que
revela a opção pelaestruturação da sociedade num Estado de Direito¨4.
2
MIRANDA. Jorge. MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL. 4ª ED. Tomo II. Parte,II,
Capítulo II: p.106, 1997.
3
MIRANDA. Jorge. MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL. 4ª ED. Tomo II. Parte,II,
Capítulo II: p.105, 1997.
4
SCHOUERI, L. E. Direito Tributário. Ed.10. São Paulo: Editora Saraiva, 2021
423
Parâmetros de regulação econômica durante a pandemia de (...)
É de suma relevância destacar que de fato o texto constitucional foi o
primeiro instrumento normativo a regular a tributação, de tal forma é neste
instrumento normativo que se encontra a feição do Estado, estabelecendo os
meios para o seu custeio. Consequentemente, é na constituição que se verifica
a fundamentação jurídica para a própria criação de tributos e seu instrumento
normativo de conferenciatributaria.
Por ora, destaca-se essa garantia do texto constitucional a existência de
tributos para a manutenção do Estado, pois é neste instrumento jurídico que se
delimita as pessoas jurídicas de direito público que poderão instituí-los, perante
a forma federativa que adota o Estado, conferindo aos entes federativos o
poder de tributar.
De tal modo, a Constituição determina casos em que se exigirá lei
ordinária (art. 150, I) ou complementar (arts. 146 e 148, por exemplo),
prevendo, ainda, outras fontes, como até mesmo meras resoluções (art. 155, §
2º, IV). Prevendo uma série de princípios e um rol de limitações ao exercício do
poder (direito) de tributar.
Contudo, em razão das constantes falhas dos mecanismos de mercado
que tende a otimizar a distribuição de bens e serviços e os problemas sociais,
tornou-se discutível a necessidade de realizar negócios jurídicos com o objetivo
de fomentar em menor ônus tributário que por si só, não guarda relação
com a regularidade dos respetivos atos. Ressalta-se que a ilegalidade não está
no proposito da conduta, mas “no desrespeito à causa e aos elementos
estruturais dos atos e negócios jurídicos para atingir a pretensão voltada
exclusivamente à economia fiscal” (ANDRADE, 2014). Contundo, desde a
promulgação da Constituição Federal em 1988 as relações jurídicas e
econômicas foram se moldando de acordo com a evolução da sociedade,
diante das limitações imposta pela CRFB/88 a lei tributaria e seus mecanismos
fiscais tornaram-se ineficazes, não alcançando todos as relações econômicas e
os fins paraqual foram criadas.
Diante de tais necessidades, sob a influência de Enno Becker, na
Alemanha surgi a interpretação da lei tributaria com objetivo de proporcionar ao
intérprete o desenvolvimento da análise, em matéria tributária, com base nos
fins da lei tributaria e no seu alcance econômico, bem como as formas que se
424
Vitória Nathalia dos Santos
revestiam as situações defato.
De acordo com a teoria de Dinifi “[...] a interpretação das leis tributárias
deveria se guiar pelos efeitos econômicos buscando pelas partes,
desconsiderando- se as formas jurídicas empregadas[...] tendo em mira os
aspectos econômicos do fato gerados, mais do que sua forma jurídica5¨.
Já para Amilcar Araújo falcão a interpretação econômica da lei tributaria
consiste em uma análise, em dar-se a lei, na sua aplicação às hipóteses
concretas, inteligência tal que não permita ao contribuinte manipular a forma
jurídica para, resguardando o resultado econômico visando obter menor
pagamento ou não pagamento de determinado tributo6.
Perante este contexto torna-se questionável a possibilidade de
qualificação dos fatos geradores para investigar manifestação da capacidade
contributiva e se tributar a riqueza, substância ou essência do ato,
independentemente de como havia se apresentado formalmente, levando-se
em consideração o contexto econômico e contributivo do fato gerador.
De acordo com o autor Edmar Oliveira Andrade Filho interpretação
econômica de uma mitigação do princípio da legalidade para autorizar a
tributação com base na analogia7¨. De tal modo critica tal recurso, tendo em vista
que quando o intérprete se depara com questões de caso concreto, suas
decisões não podem se basear em modelos padronizados, uma vez que não
existem fatos que sejam absolutamente idênticos ou que sejam descritos da
mesma forma, sendo inaplicável a analógica.
Segundo o autor Marco Aurélio Greco enfatiza que a proibição da
intepretação analógica não está elencada na CF/88, mas decorre da
interpretação literária do art.108, 1°, do CTN, o mesmo afirma que não defende
nem a analogia, nem a interpretação econômica, mas sim a chamada
considera econômica, em que: Parte-se da lei, constrói-se o conceito legal para
qual o tipo previsto na lei, vai-se para o fato, constrói-se o conceito de fato
considerando os seus aspectos jurídicos, econômicos, mercadológicos,
5
DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Manual de direito tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva,2006.
6
FALCAO, Almicar de A... Fato gerador da obrigação tributária. 3. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1974.
7
ANDRADE FILHO, EDMAR OLIVEIRA. Planejamento Tributário. 2. ed. Ver., ampl. E atual.
São Paulo: Saraiva, 2016.
425
Parâmetros de regulação econômica durante a pandemia de (...)
concorrência, etc; enfim, todos os aspectos relevantes para construí-lo e volta-
se para a lei para saber se ele de outras variáveis na construção do conceito de
fato, para saber o que ele é8.
3- COVID-19 E OS IMPACTOS ECONÔMICOS
Remetendo a um contexto social atual podemos citar a recente crise
econômica que atingiu o mercado de forma global e inesperada provocada pelo
Covid-19 (SARCS-CoV-2) é um vírus com elevada transmissibilidade e
letalidade para indivíduos idosos e portadores de doença crônicas, sobretudo
doenças respiratórias (como asma e bronquite). A organização mundial de
Saúde (OMS) declarou no dia 30de janeiro de 2020, em Genebra, na Suíça que
o surto provocado pelo novo coronavírus, desencadeou um Estado de
Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII).
De acordo com a OPAS (organização Pan-Americana de Saúde), quando
a OMS veio a público declarar o Estado de Emergência de Saúde Pública de
Importância Internacional, o vírus já tinha atingindo mais de 19 países, com
transmissão entre humanos na China, Alemanha, Japão, Vietnã e Estados
Unidos daAmérica.
Em virtude deste constante crescimento, e a forma como o vírus se
propagava rapidamente diante do contato entre seres humanos, a Organização
Mundial de Saúde (OMS) se manifestou acerca da melhor estratégia a ser
adotadas pelos países para conter esta rápida propagação. No dia 30 de
março de 2020, os representantes da OMS, se reuniram para falar sobre as
medidas adequadas que deveriam ser adotadas pelos Estados para conter a
propagação do vírus. De acordo com o direito de emergências da OMS Michael
Ryan, o isolamento social é a melhor estratégia para conter a
transmissibilidade do vírus.
Diante das recomendações adotadas pela OMS e com a alta propagação
do Covid-19 no Brasil, com diferentes impactos em diversas regiões do País,
impões a necessidade de que Governadores e Prefeitos determina-se o uso
8
TORRES, Heleno Taveira. In: ANAIS DO SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE ELISÃO
FISCAL. 2001. Escola de Administração Fazendária – ESAF, em Brasílio, no período de 06 a
08 de agosto de 2001. Brasília, ESAF, 2002. P. 233
426
Vitória Nathalia dos Santos
obrigatório de máscara, o fechamento de locais de trabalho, estabelecessem
toques de recolher em algumas localidades, além da restrição ao acesso em
alguns espaços públicos ou privados, o fechamento de alguns
estabelecimentos, e a antecipação de alguns feriados para que as pessoas
permanecem em suas residências, medidas adotadas com um único intuito,
evitar aglomeração entre indivíduos e por consequência contera propagação do
vírus.
Em razão da ausência de vacinas e de medicamentos com a eficácia
comprovada cientificamente para o tratamento de saúde que fosse capaz se
reduzir o índice de letalidade provocada pelo Covid-19, provocou pânico e
insegurança, tornando necessário o isolamento social como medida
fundamental para redução da taxa de contaminação produzindo efeitos diretos
sobre a atividade econômica em âmbito global.
À vista disso, as atividades econômicas foram paralisadas ou reduzidas
no Brasil, resultando em aumento do desemprego, pobreza e fome, exigiu-se do
governo atos para mitigar a deterioração das condições de saúde e
socioeconômicas da população.
Diante das recomendações adotadas pela OMS e com a alta propagação
do Covid-19 no Brasil, com diferentes impactos em diversas regiões do País,
impões a necessidade de que Governadores e Prefeitos determina-se o uso
obrigatório de máscara, o fechamento de locais de trabalho, estabelecessem
toques de recolher em algumas localidades, além da restrição ao acesso em
alguns espaços públicos ou privados, o fechamento de alguns
estabelecimentos, e a antecipação de alguns feriados para que as pessoas
permanecem em suas residências, medidas adotadas com um único intuito,
evitar aglomeração entre indivíduos e por consequência contera propagação do
vírus.
Em razão da ausência de vacinas e de medicamentos com a eficácia
comprovada cientificamente para o tratamento de saúde que fosse capaz se
reduzir o índice de letalidade provocada pelo Covid-19, provocou pânico e
insegurança, tornando necessário o isolamento social como medida
fundamental para redução da taxa de contaminação produzindo efeitos diretos
sobre a atividade econômica em âmbito global.
427
Parâmetros de regulação econômica durante a pandemia de (...)
À vista disso, as atividades econômicas foram paralisadas ou reduzidas
no Brasil, resultando em aumento do desemprego, pobreza e fome, exigiu-se do
governo atos para mitigar a deterioração das condições de saúde e
socioeconômicas da população
A crise decorrente da pandemia do Covid-19 impôs ao governo a
observância de cláusulas de escape que permitem a flexibilização de regras de
governança fiscal de modo a viabilizar medidas de política econômica em
resposta aos fatos existentes. Cumpre destacar que o marco que deu início
desse processo foi publicado pelo Decreto Legislativo n° 6, de 20 de março de
2020, que reconhece a ocorrência do estado de calamidade pública e seus
efeitos até 31 de março de 2020.
A Exposição de Motivos no 70/2020, elaborada pelo Ministério da
Economia e fundamentadora da Mensagem, reconhece que os impactos da
pandemia transcendem a saúde pública e impactam as atividades econômicas.
Este cenário de desemprego provocado por uma crise sanitária, impõe a
necessidade de definição de uma estratégia de financiamento do setor público
capaz de manter a execução fiscal em especial, as orientadas ao financiamento
das políticas de saúde e assistência social, garantindo e preservando o
emprego e renda, e de suporte aos entes federativos e a gestão sustentável da
dívida pública numa perspectiva de longo prazo. Tal demanda exigi reflexão
sobre a estrutura dos gastos público, o perfil do sistema tributário e a própria
configuração do arranjo institucional de governança fiscal.
A crise decorrente da pandemia do Covid-19 impôs ao governo a
observância de cláusulas de escape que permitem a flexibilização de regras de
governança fiscal de modo a viabilizar medidas de política econômica em
resposta aos fatos existentes. Cumpre destacar que o marco que deu início
desse processo foi publicado pelo Decreto Legislativo n° 6, de 20 de março de
2020, que reconhece a ocorrência do estado de calamidade pública e seus
efeitos até 31 de março de 2020.
Quando nos referimos a governança fiscal nos remete ao conjunto de
regras formais, referente aos procedimentos (processuais) e limites
quantitativos (numéricas), normatizadoras da política fiscal. Segundo Eyraud et
al. (2018), este instrumento é organizado de modo a viabilizar o alcance de
428
Vitória Nathalia dos Santos
objetivos relacionados à formação de um padrão de disciplina fiscal capaz de
manter a solvência da dívida pública no longo prazo.
É importante analisar as iniciativas de política pública com repercussões
expressivas e diretas sobre a configuração da política fiscal, seja ela por
envolver aumento de gastos públicos, por estabelecer renuncias tributárias ou
por demandar mecanismos de financiamento por emissão de dívida pública,
fatos submetidos à coordenação direta do ministério da economia, remetendo a
iniciativa em três grandes eixos: garantia de emprego e renda mínima aos
trabalhadores; política de apoio ao setor empresarial; e política de suporte
fiscal aos entes federativos.
4- ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DIANTE DE UM ESTADO DE
CALAMIDADE PÚBLICA.
O Brasil é um país de uma perspectiva socioeconômica sensível, o covid-
19 foi responsável por agravar algo que se alastra a décadas no país. Por tal
razão, iniciei este tópico trazendo este trecho. Observa-se que autor abordava
de forma sensível a realidade de muitos brasileiros em condições de
vulnerabilidade, como citado anteriormente o trecho trata-se de um autor do
século XIX, ou seja, as condições de vulnerabilidade, fome e crise no país não
surgiu com covid-19, mas se alastrou com ele.
Em suma, em um contexto social, sobre a vulnerabilidade no país ganhou
destaque no período pandêmico no ano de 2020, um ano atípico e inesperado
cobertos de incertezas, principalmente aos trabalhadores que se encontravam
em um situação ao qual, se saíssem para trabalhar, colocariam sua vida em
risco, mas se permanecem em casa não teriam o que comer, encontravam-se
desesperançados e inseguros, sem resposta, estes não sabiam se
continuariam em seus empregos, ou se a crise gerada pelo Covid-19 os
tornariam mais um número na taxa de desempregodo País.
Logo, é importante destacar que a trajetória do Direito Constitucional a
formulação do Direito ao mínimo existencial, que ocorreu no segundo pós-
guerra, já sob a ótica da lei fundamental de 1949. A partir da conjunção
princípio da dignidade da pessoa humana, da cláusula do Estado Social e dos
direitos à liberdade e à vida. E, 1975, o direito afirmado como célebre decisão
do Tribunal Constitucional germânico. Em jurisprudência se mantém até hoje.
429
Parâmetros de regulação econômica durante a pandemia de (...)
E, 1975, o direito afirmado como célebre decisão do Tribunal Constitucional
germânico. Em jurisprudência se mantém até hoje9.
A emergência do Estado Social de Direito e a ênfase na concretização
dos Direitos Humanos ocorridas no período pós-guerra, trouxeram um contexto
favorável para a crítica ao exacerbado teor liberal atribuído aos direitos
fundamentais apregoados em lei, tendo a Alemanha desenvolvido, de maneira
ímpar, o estudo da problemática de sua eficácia, vindo a se tornar ponto de
referência para a doutrina européia. Assim, se romperam as barreiras que
inviabilizavam a aplicação direta dos direitos fundamentais no âmbito das
relações privadas, entre eles superando-se a estanque separação entre o
Estado e a sociedade civil; a noção de igualdade formal, evoluindo para o
conceito de igualdade material e a neutralidade do Estado em face da dinâmica
social10.
De tal modo, a constituição de 1988 foi a pioneira na garantia do mínimo
existencial como direito fundamental. Esta ideia provém da positivação dos
direitos sociais no texto constitucional e da atribuição do princípio da dignidade
da pessoa humana como fundamento do Estado e da ordem jurídica brasileira.
Entretanto, embora exista a garantia do mínimo existencial, a
efetividade da Constituição, há uma enorme discrepância entre as promessas e
a realidade da vida de vastos segmentos da população brasileira, que
sobrevivem em condições indignas.
Portanto, apesar das alterações propostas dentro deste período declarado
como calamidade pública parecerem compatíveis com o cenário em questão,
não podemos esquecer da parte humana, dignidade e proteção jurídica das
relações, como propósito de evitar a regressão e a infração de direitos.
Com isso o direito brasileiro como um todo visa a proteção a uma vida
digna, justa que visa a proteção e segurança jurídica, com isso se rege não só
9
SARMENTO, Daniel. D I G N I D A D E D A PESSOA HUMANA: CONTEÚDO, TRAJETÓRIA
E METODOLOGIA. Belo Horizonte: Editora Fórum Ltda., 2016. 188/347 p. ISBN 978-85-450-
0130-0.
10
SILVA, M. S. Política econômica emergencial orientada para a Redução dos impactos da
pandemia da Covid-19 no Brasil: medidas fiscais, de provisão de liquidez e de liberação de
capital. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. p. 7-51. 2020. Disponível em:
https://www.econstor.eu/bitstream/10419/240771/1/td-2576.pdf.Acesso em 30 de dez. 2023.
430
Vitória Nathalia dos Santos
pelas normas estabelecidas na Constituição Federal, a coerência interna de um
sistema jurídico decorre dos princípios sobre os quais ele se organiza. Os
princípios são os elementos de sustentação do ordenamento jurídico, elementos
estes que lhe dão coerência interna.
Outro princípio que gostaríamos de destacar é a proteção ao salário é um
marco adotado pelo art. 7º da CF, e têm como objetivo a garantia da dignidade
do trabalhador através do resguardo ao seu sustento digno através da
satisfação de suasnecessidades vitais básicas e às de sua família.
Foram citados estes dois princípios que estão diretamente ligados ao
direito do trabalho, pois o Direito Constitucional é parâmetro para demais
normas infraconstitucionais e não há como falar de economia sem citar o
trabalhador, não existe a possibilidade de falar sobre dignidade da pessoa
humana sem garantia do mínimo existencial, sem trabalho, sem renda não
existe a possibilidade de um cidadãose manter ou manter sua família com todas
as garantias constitucionais, sem um emprego para prover.
Quando no início citamos sobre a arrecadação tributária, formas de
interpretação as leis tributarias em contexto distintos para que o Estado
continue arrecadando e garanta sua manutenção, não devemos esquecer que
pandemia provocada pelo covid-19 trouxe um desafio aos textos normativos,
uma situação atípica de forma global, atingido as famílias, a saúde pública,
economia e as formas de arrecadação do Estado. Tudo deve se basear na
garantia de que os princípios e normas Constitucionais estão sendo
assegurados de forma que não ataque o mínimo existencial e a dignidade da
pessoa humana, direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro.
Vê-se que o substrato teórico diretivo do Estado Constitucional
Democrático é caracterizado pelo reconhecimento da força normativa da
Constituição, pela expansão da jurisdição constitucional, e pelo
desenvolvimento de uma nova hermenêutica emancipatória da sociedade, sob
o influxo inspirador do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. (SILVA E
BONIFÁCIO,2012).11
11
SILVA, M. S. Política econômica emergencial orientada para a Redução dos impactos da
pandemia da Covid-19 no Brasil: medidas fiscais, de provisão de liquidez e de liberação de
capital. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. p. 7-51. 2020. Disponível em:
https://www.econstor.eu/bitstream/10419/240771/1/td-2576.pdf.
431
Parâmetros de regulação econômica durante a pandemia de (...)
5- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de uma breve exposição, relacionando a arrecadação tributária,
crise econômica e a proteção Constitucional, a princípio foi abordado a
questionável possibilidade de qualificação dos fatos geradores para investigar
manifestação da capacidade contributiva e se tributar a riqueza, substância
ou essência do ato, independentemente de como havia se apresentado
formalmente, levando-se em consideração o contexto econômico e contributivo
do fato gerador.
Visto que, condições atípicas podem ocorrer, como citado
¨independentemente de como havia se apresentado formalmente¨, de tal modo,
o período pandêmico foi algo inesperado de forma global, não se limitando a
saúde pública, mas ordenamento jurídico, forma de arrecadação, econômico,
garantia empregatícia, sob a ótica do Direito Constitucional.
Como garantir que carta política seja suficiente para vissitudes
Constitucionais, de forma que garanta o mínimo existencial e a dignidade da
pessoa humana. O covid- 19 tirou a vida de milhões de pessoas, e outra parte
foi atingida pelo desemprego, o Estado com dever de prover segurança
jurídica, de forma possa arrecadar para garantir a manutenção e oferecer a
garantia do mínimo, seja o emprego, a saúde, segurança pública, todos os
aspectos de forma em conjunto ofertam a sociedade uma vida digna e
oferecimento de qualquer um desses aspectos de forma deturpada infringi a
dignidade humana.
Com isso, o Direito Constitucional é o maior de forma normativa e
completa garantia de direitos fundamentais todas as fundamentações devem
partir de um pressuposto constitucional, apesar da ¨atipicidade¨ da situação, o
texto constitucional de 88 garanti o mínimo existencial, que a própria
nomenclatura nos remete as condições mínimas de sobrevivência e dignidade
da pessoa humana como direito fundamental, indispensável ao homem no
ordenamento jurídico brasileiro.
Logo, o Covid-19 erradicou situações socioeconômicas já existentes no
país, a despreparação do Estado com relação a situações atípicas não só foi
432
Vitória Nathalia dos Santos
responsável pela morte de milhões de pessoas de vidas que poderiam ser
preservadas, mas foi responsável por uma das maiores crises
socioeconômicas já existem, desemprego e a fome se alastraram no país.
Atualmente, encontramos em um cenário melhor do que encontrávamos no ano
de 2020/2021, mas a realidade do país e a existência de grupos vulneráveis
ainda é presente na realidade social, a preservação dessas garantias é um
dever do Estado, de forma igualitária e justa. Aliais umas das funções
arrecadatórias é para esta finalidade, manter e garantir condições dignas aos
cidadãos brasileiros.
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Parte,II, Capítulo II: 95-1
434
A Segurança Social Portuguesa e o Direito da Segurança Social
Patrícia Pinto Alves (1)
I. Nota Prévia
A Segurança Social Portuguesa, atualmente, ora assume uma natureza
previdencialista, ora assume uma natureza assistencialista. Contudo, problemas
têm emergido devido ao facto da população Portuguesa ser atualmente
contituída por uma grande fatia de população idosa, de haver poucos
nascimentos comparativamente há uns anos atrás, e, também por a faixa etária
jovem mais qualificada tender a emigrar em grande escala à procura de melhores
oportunidades de emprego e de salários mais altos, consubstanciando, no nosso
entendimento, um grande investimento por parte do Estado Português na
formação educacional destes jovens com pouco ou nenhum retorno em moldes
sociais, refletindo-se tal situação nas contas da Segurança Social Portuguesa ,
sendo que o aumento do desemprego também em nada é abonatório neste
aspeto, sendo que a baixa taxa de natalidade atual também aqui assume um
papel preponderante (2).
Citando José Joaquim Gomes Canotilho, a «política de solidariedade
social» é o conjunto de dinâmicas político-sociais mediante as quais a
comunidade política (Estado, organizações sociais, instituições particulares de
solidariedade social e, atualmente, a Comunidade Europeia) gera, cria, e,
também implementa proteções institucionalizadas no domínio económico, social
e cultural como, por exemplo, o sistema de segurança social, o sistema de
pensões de velhice e invalidez (3). De acordo com José Carlos Vieira de Andrade,
1
Professora de Direito, Professora Adjunta Convidada, no ensino superior, na Escola
Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico do Porto - Portugal. E-mails:
[email protected] / [email protected]. Doutora em Direito Público pela Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra – Portugal. Investigadora jurídica em centros de
investigação jurídica Portugueses e Internacionais. Autora de várias publicações jurídicas.
Conferencista. Juiz-árbitra em matéria de Direito Público no CAAD – Centro de Arbitragem
Administrativa (suspensa a pedido) e Juiz-árbitra no TRIAVE – Centro de Conflitos de Consumo
do Tâmega, Ave e Sousa (suspensa a pedido). CV: https://www.cienciavitae.pt/pt/6B1B-
4AE1C938?fbclid=IwAR2MXBxwz2YITK0MWDjtTqZzcV6Sb7RxvBa3D4hGMyPI3exExX0j8QTa
RKE
2
Esta é a nossa posição.
3
Com a relevância que o artigo 63.º da CRP aqui assume. Cfr., e para maiores
desenvolvimentos, José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 7.ª Edição (22.ª Reimpressão), 7.ª Edição- Reimpressão de 2021, 2018, pp. 518-
435
A Segurança Social Portuguesa e o Direito da Segurança Social
atualmente, o Tribunal Constitucional Português (TC) já reconhece o «direito ao
mínimo para uma existência condigna», “numa dimensão positiva”, dado que
considera inconstitucional a não atribuição, pela lei, de uma determinada
prestação social a determinados indivíduos considerados carenciados (4).
II. A Segurança Social Portuguesa e os princípios da socialidade e
da solidariedade
Sofia David explica-nos que «para Yves Chauvy, o precursor da expressão
segurança social foi Simão Bolivar que a utilizou no seu discurso no congresso
de Angostura em 1819. Segundo tal Autor a expressão foi depois novamente
utilizada em 1894, no primeiro congresso do partido trabalhista italiano (5). Por
seu turno, a protecção social enquanto ideia de sistema organizado surgiu pela
primeira vez na Alemanha em 1881 com o chanceler Bismarck, que propôs ao
Parlamento a promulgação de três leis sobre seguros obrigatórios para os
trabalhadores da indústria, que cobrissem situações de doença, acidentes de
trabalho, invalidez e velhice. Entretanto, o primeiro código de seguros sociais
surge na Alemanha em 1911. A criação daquelas leis sobre seguros sociais é
apontada como a origem da concepção laboralista da segurança social (6)».
Dada a relevância que a Segurança Social e as suas funções inerentes
assumem atualmente em Portugal, cumpre-nos explanar que existe atualmente
um «Acordo sobre Segurança Social entre Portugal e Brasil» (Acordo), sendo de
519. O negrito utilizado no corpo do texto encontra-se assim utilizado por José Joaquim Gomes
Cantoilho, na p. 518 desta sua obra aqui citada, ao qual nos mantemos fiéis.
4
Cfr., e para maiores desenvolvimentos, o Acórdão do TC N.º 509/02, onde o TC se
pronuncia, na esfera da fiscalização preventiva da constitucionalidade, pela inconstitucionalidade
de uma “lei” por violação «direta» do denominado «conteúdo mínimo» do “direito a um mínimo
de existência condigna”. Cfr., e para maiores desenvolvimentos, José Carlos Vieira de
ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 6.ª Edição –
Reimpressão, Almedina, julho de 2022, p. 368 e nota 908. Mantemo-nos fiéis às aspas altas
utilizadas por José Carlos Vieira de Andrade na nota 908 da p. 368 do seu manual aqui citado.
5
Cfr., Yves CHAUVY, «Les normes supérieures du droit de la Sécurité sociale», in Revue
du Droit Public et de la Science Politique en France et a L`Étranger, N.º 4, LGDJ, julho/agosto,
França, 1996, p. 993, apud Sofia DAVID, «Segurança Social Versus Democracia Política, Social
e Participativa», in JULGAR, N.º 8, 2009, pp. 179-205, em especial a p. 180 e a nota 3. A palavra
«Versus» está assim colocada no título por esta autora deste artigo aqui citado na p. 179,
pesquisável em: https://julgar.pt/wp-content/uploads/2016/04/11-Sofia-David-
Seguran%C3%A7a-Social-vs-democracia.pdf (acesso em: 30.12.2023).
6
Cfr. Ilídio das NEVES, Direito da Segurança Social, Princípios Fundamentais numa
Análise Prospectiva, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, p. 234, apud Sofia DAVID, «Segurança
Social Versus Democracia Política, Social e Participativa», cit., pp. 179-205, em especial as pp.
180 - 181 e a nota 4., pesquisável em: https://julgar.pt/wp-content/uploads/2016/04/11-Sofia-
David-Seguran%C3%A7a-Social-vs-democracia.pdf (acesso em: 30.12.2023).
436
Patrícia Pinto Alves
evidenciar que este Acordo foi celebrado com o intuito de contribuir para
melhorar a situação dos nacionais de ambos os países no domínio social, tendo
entrado em vigor na data de 16 de abril de 1995, em substituição do transato
Acordo de Previdência Social de 1969 (7).
Fazemos aqui uma observação ainda no sentido de que existem algumas
Convenções sobre Segurança Social firmadas entre Portugal e outros países,
como a título de exemplos, referimos a «Convenção sobre Segurança Social
entre a República Portuguesa e a República da Guiné-Bissau», assinada
precisamente em Bissau na data de 8 de novembro de 1993 (8), e, a «Convenção
sobre Segurança Social entre a República Portuguesa e o Canadá, Toronto»,
assinada na data de 15 de dezembro de 1980 (9). Os princípios da socialidade e
da solidariedade assumem, atualmente, uma enorme relevância na boa atuação
da Segurança Social em Portugal. Desta feita, passaremos a explanar os
princípios da socialidade e da solidariedade infra. Relativamente ao princípio da
socialidade, cumpre referir que dispõe o n.º 2 do artigo 63.º da Constituição da
República Portuguesa (CRP) que: «Incumbe ao Estado organizar, coordenar e
subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a
participação das associações sindicais, de outras organizações representativas
dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários».
Ora, por sua vez, dispõe o n.º 3 do artigo 63.º da CRP que: «O sistema de
segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e
orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta
7
Cfr., e para maiores desenvolvimentos, CONSULADO GERAL DE PORTUGAL NO RIO
DE JANEIRO, MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS, Acordo sobre Segurança
Social entre Portugal e Brasil, pesquisável em:
https://riodejaneiro.consuladoportugal.mne.gov.pt/pt/assuntos-consulares/apoios/acordo-sobre-
seguran%C3%A7a-social-entre-portugal-e-brasil (acesso em: 30.12.2023).
8
Cfr. João Carlos LOUREIRO, «Anotação e Comentário ao artigo 169.º do Código dos
Regimes Contributivos do Sistema Previdencialista de Segurança Social», in A.A.V.V., Código
dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencialista de Segurança Social , Anotado e
Comentado, Coordenação: Ana Celeste Carvalho, Filipe Cassiano dos Santos, Jorge Campino,
Licínio Lopes Martins, Matilde Lavouras, Miguel Coelho, Miguel Lucas Pires, Nuno Monteiro
Amaro, Suzana Fernandes da Costa, Almedina, junho de 2022, p. 448 e nota 425.
O Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social trata-
se da Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro, pesquisável em:
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/lei/110-2009-490249 (acesso em: 31.12.2023).
9
Cfr. João Carlos LOUREIRO, «Anotação e Comentário ao artigo 169.º do Código dos
Regimes Contributivos do Sistema Previdencialista de Segurança Social», in A.A.V.V., Código
dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencialista de Segurança Social , Anotado e
Comentado, cit., p. 448 e nota 429.
437
A Segurança Social Portuguesa e o Direito da Segurança Social
ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho» (10).
Miguel Morgado refere que a socialidade «parece ser a inclinação ou o processo
que nos torna seres “sociais”, ou a relação típica do ser social enquanto ser
social. A civilidade parece ser a inclinação ou o processo que nos torna seres
“civis”, ou a relação típica do ser civil enquanto ser civil» (11). Por fim, conclui
Miguel Morgado que: «a socialidade (…) não se importa de ser o princípio da
micro-polis, do grupo no seio da sociedade civil, e nesse sentido quer aproximar-
se da civilidade» (12). Quanto ao princípio da solidariedade, entendemos da
nossa parte que este princípio com consagração constitucional, embora inferida,
releva bastante no sentido de que as Instituições Particulares de Solidariedade
Social [IPSS], em Portugal, atualmente, e entendemos que cada vez mais,
assumem um importante papel colaborativo com o Estado Português, auxiliando-
o a concretizar os mais elementares direitos fundamentais, como a título de
exemplos, prestando auxílios a idosos, a crianças e a pessoas portadores de
algum tipo de deficiência, nunca discriminado estas pessoas, mas ao invés
auxiliando-as (13). Neste seguimento, dispõe o n.º 5 do artigo 63.º da CRP que:
«O Estado apoia e fiscaliza, nos termos da lei, a actividade e o funcionamento
das instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido
10
Vd, a título de exemplo, na doutrina Portuguesa, Miguel MORGADO, «Socialidade e
civilidade; A Utilidade de uma Distinção», in A Economia Social e Civil – Estudos, Coordenação:
João Carlos Loureiro e Suzana Tavares da Silva, Coordenação Editorial: SPES – Socialidade,
Pobreza(s) e Exclusão Social, Volume I, Edição: Instituto Jurídico e Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, 2015, pp. 49-60, e elenco bibliográfico lá mencionado.
11
Cfr. Miguel MORGADO, «Socialidade e civilidade; A Utilidade de uma Distinção», …
cit., pp. 57-58.
12
Cfr. Miguel MORGADO, «Socialidade e civilidade; A Utilidade de uma Distinção», …
cit., p. 60
13
Na doutrina Portuguesa, acerca da relevância e do regime legal aplicável às IPSS, vd,
entre outros, Licínio LOPES MARTINS, As Instituições Particulares de Solidariedade Social,
Coimbra, Almedina, 2009, 540 pp.; ALVES, Patrícia Marlene Pinto, O Regime Jurídico das
Instituições Particulares de Solidariedade Social: Contributo para o Estudo de Alguns dos
Aspetos do seu Estatuto Jurídico, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2021, 688
pp. A4. Na doutrina Internacional, vd, entre outros, Raffaele de GIORGI, «Modelos jurídicos de
la igualdad y de la equidad», in Los Derechos Sociales en el Estado Constitucional,
Coordinadores: Javier Espinoza de los Monteros y Jorge Ordóñez, Valencia, t TEORÍA, tirant lo
blanch, 2013, pp. 11-27; Alain SUPIOT, «Judicial Enforcement of Social Solidarity in View of
Recent European, German and French Jurisprudence», in Luxemburger Juristische Studien –
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van der Walt / Jeffrey Ellsworth (eds.), Volume I, edited by Faculty of Law, Economics and Finance
University of Luxembourg, Nomos – Bloomsbury, 2015, pp. 112-115, em especial pp. 114-115, e
elenco bibliográfico lá contido; THORNHILL, Chris, Chapter Three: «The Constitution of
International Law: A Sociological Approach», in Cambridge Studies in Law and Society, A
Sociology of Transnational Constitutions – Social Foundations of the Post-National Legal
Structture, Cambridge University Press, july 2016, pp. 102-129, e acervo bibliográfico lá citado.
.
438
Patrícia Pinto Alves
interesse público sem carácter lucrativo, com vista à prossecução de objectivos
de solidariedade social consignados, nomeadamente, neste artigo, na alínea b)
do n.º 2 do artigo 67.º, no artigo 69.º, na alínea e) do n.º 1 do artigo 70.º e nos
artigos 71.º e 72.º».
Note-se, contudo, de que em Portugal existe uma Lei de Bases da
Segurança Social em vigor (14), sendo que esta Lei de Bases da Segurança
Social se reporta no seu artigo 8.º, precisamente, ao «Princípio da solidariedade»
advindo do disposto no seu n.º 1 que «1 - O princípio da solidariedade consiste
na responsabilidade colectiva das pessoas entre si na realização das finalidades
do sistema e envolve o concurso do Estado no seu financiamento, nos termos
da presente lei», e, do disposto nas alíneas a) a c), respetivamente, do seu n.º 2
que: «2 - O princípio da solidariedade concretiza-se: a) No plano nacional,
através da transferência de recursos entre os cidadãos, de forma a permitir a
todos uma efectiva igualdade de oportunidades e a garantia de rendimentos
sociais mínimos para os mais desfavorecidos; b) No plano laboral, através do
funcionamento de mecanismos redistributivos no âmbito da protecção de base
profissional; e c) No plano intergeracional, através da combinação de métodos
de financiamento em regime de repartição e de capitalização». Consideramos
pertinente fazermos aqui uma breve alusão ao «princípio da equidade social»
que advém do disposto no artigo 9.º da LBSS em vigor, traduzindo-se este
princípio no tratamento igual de situações iguais e no tratamento diferenciado de
situações consideradas desiguais, considerando nós, neste prisma, que o
legislador Português está a ser cauteloso neste aspeto, admitindo, em casos
devidamente necessários e fundamentais, a denominada discriminação positiva
(15).
III. O Direito da Segurança Social enquanto Direito Administrativo
Especial Português e a Lei de Bases da Segurança Social
O Direito da Segurança Social enquanto ramo de Direito Administrativo
Especial Português assume especial destaque, na medida em que configura um
A Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro «aprova as bases gerais do sistema de segurança
14
social», pesquisável em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=2243A0064&nid=2243&tabel
a=leis&pagina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo (acesso em: 321.12.2023).
15
Esta é a nossa posição.
439
A Segurança Social Portuguesa e o Direito da Segurança Social
sub-ramo do Direito Público em Portugal (16). Dentro do âmbito da ação social,
podemos ter a atuação da Segurança Social, e a atuação das Instituições
Particulares de Solidariedade Social (IPSS). No entanto, ao passo que, em
Portugal, o Instituto da Segurança Social se integra na Administração Indireta do
Estado, as IPSS, não integram a Administração Estadual, dado que, embora não
visem a obtenção de lucros, são Instituições Particulares que têm por finalidades
a prossecução do interesse público mediante o desempenho da ação social.
Aliás, as IPSS coadjuvam imenso o Estado no desempenho da ação social, mas
mediante o cumprimento de todo um bloco de legalidade, do Direito, de certas
regras, de certos princípios, mas a atuação da Segurança Social não se deve
confundir com a atuação das IPSS (17).
Aqui chegados entendemos que o artigo 67.º da LBSS, cuja epígrafe é
«Acumulação de prestações», atualmente, assume um especial relevo, dado
que revela-nos ao abrigo do disposto nos eus n.ºs 1 a 3, respetivamente que: «1
- Salvo disposição legal em contrário, não são cumuláveis entre si as prestações
emergentes do mesmo facto, desde que respeitantes ao mesmo interesse
protegido. 2 - As regras sobre acumulação de prestações pecuniárias
emergentes de diferentes eventualidades são reguladas por lei, não podendo,
em caso algum, resultar da sua aplicação montante inferior ao da prestação mais
elevada nem excesso sobre o valor total. 3 - Para efeitos de acumulação de
prestações pecuniárias podem ser tomadas em conta prestações concedidas por
sistemas de segurança social estrangeiros, sem prejuízo do disposto em
instrumentos internacionais aplicáveis». Pelo que da nossa parte deduzimos que
a redação destes preceitos legais é deveras protecionista para evitar abusos na
eventual acumulação de prestações sociais por parte de determinados
indivíduos (18).
16
Cfr., e para maiores desenvolvimentos, Diogo Freitas do AMARAL, Curso de Direito
Administrativo, Volume I, 2.ª Edição (11.ª Reimpressão da 2.ª Edição de 1994), Almedina, janeiro
de 2006, p. 165 e elenco bibliográfico citado na nota 3; A versão mais atual é Diogo Freitas do
AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Volume I, Com a colaboração de Luís Fábrica, Jorge
Pereira da Silva e Tiago Macieirinha, Reimpressão 2023 da 4.ª Edição de 2015, Almedina, 2018,
p. 155 e ss e elenco bibliográfico lá citado; Jean-Jacques DUPEYROUX, Droit de la Sécurité
sociale, 8.ª ed., Paris, 1980.
17
Cfr., e para maiores desenvolvimentos, Patrícia Marlene Pinto ALVES, O Regime
Jurídico das Instituições Particulares de Solidariedade Social: Contributo para o Estudo de
Alguns dos Aspetos do seu Estatuto Jurídico, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
2021, p. 248 e ss e elenco bibliográfico lá citado.
18
Esta é a nossa posição.
440
Patrícia Pinto Alves
IV. Os apoios públicos concedidos pela Segurança Social
Portuguesa e o Direito à Segurança Social na qualidade de direito
fundamental
Consideramos que os apoios públicos concedidos pela Segurança Social
Portuguesa são muito relevantes, em determinadas situações, e desde que
devidamente fundamentadas e respeitando o princípio da proporcionalidade em
sentido amplo, no sentido de assegurarem o respeito pelo princípio da dignidade
da pessoa humana (previsto logo no artigo 1.º da CRP) (19). De entre outros
apoios públicos concedidos pela Segurança Social Portuguesa, destacamos o
(s): a) o «Programa de Alargamento da Rede de Equipamentos Sociais 3ª
Geração (PARES 3.0)»; b) «Programa de Alargamento da Rede de
Equipamentos Sociais 2ª Geração (PARES 2.0)»; c) «Programa de Alargamento
da Rede de Equipamentos Sociais (PARES)» (20). O «Programa de Alargamento
da Rede de Equipamentos Sociais (PARES)» tem por finalidade apoiar o
desenvolvimento e consolidar a rede de equipamentos sociais no território
continental» (21). A atribuição de subsídio de desemprego (22) a trabalhadores
que reúnam os requisitos legais necessários para a atribuição do mesmo [sendo
que o subsídio de desemprego destina-se à compensação da perda das
remunerações de trabalho (23)]. Sendo o Direito à Segurança Social um direito
fundamental social, o mesmo tem consagração constitucional no artigo artigo
63.º da CRP, artigo cuja epígrafe é «Segurança Social e Solidariedade», e, que
ao abrigo do disposto no seu n.º 1 revela que todas as pessoas têm direito à
Segurança Social, até porque em Portugal, o direito à Segurança Social é um
19
Esta é a nossa posição.
20
Cfr. SEGURANÇA SOCIAL PORTUGUESA, Programas de apoio ao investimento,
pesquisável em: https://www.seg-social.pt/programas-de-apoio-ao-investimento (acesso em:
30.12.2023).
21
Cfr., e para maiores desenvolvimentos, SEGURANÇA SOCIAL PORTUGUESA,
Programa de Alargamento da Rede de Equipamentos Sociais (PARES), pesquisável em:
https://www.seg-social.pt/programa-de-alargamento-da-rede-de-equipamentos-sociais-pares
(acesso em: 30.12.2023).
22
Cfr., e para maiores desenvolvimentos, SEGURANÇA SOCIAL PORTUGUESA,
Subsídio de desemprego, pesquisável em: https://www.seg-social.pt/subsidio-de-desemprego
(acesso em: 30.12.2023).
23
Cfr., e para maiores desenvolvimentos, DEPARTAMENTO DE PRESTAÇÕES E
CONTRIBUIÇÕES, Guia Prático – Subsídio de Desemprego, Instituto da Segurança Social, I. P.,
24 de novembro de 2023, 50 pp., em especial a p. 4, pesquisável em: https://www.seg-
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ca008602a16b (acesso em: 30.12.2023).
441
A Segurança Social Portuguesa e o Direito da Segurança Social
verdadeiro direito fundamental, constitucionalmente consagrado, sendo mais
precisamente um direito social, mas também um dever social.
Mas e como bem defende José Carlos Vieira de Andrade a universalidade,
não significa que o dever do Estado Português de asseverar a todas/os o direito
à Segurança Social imponha «necessariamente a organização de um sistema
administrativo de Segurança Social tal que garanta» as prestações sociais a
todas/os as/os particulares, não se podendo desejar «basear na universalidade
outras exigências normativas para além daquelas que podem ser feitas ao
legislador em função do respeito devido ao princípio da igualdade de tratamento
[...]. Os direitos sociais, enquanto direitos específicos, não são direitos de
todas as pessoas, mas das que precisam, na medida da necessidade (24)».
Ainda relativamente aos apoios públicos concedidos pela Segurança Social
Portuguesa, relevam «o complemento Solidário para Idosos» (25), dado que têm
direito à sua atribuição idosos com 66 anos e 4 meses (sessenta e seis anos e
quatros meses) desde que daquele necessitem e sejam residentes em Portugal;
«O Rendimento Social de Inserção» regulamentado na Portaria n.º 32/2023, de
20 de janeiro (26). Por fim, é ainda de destacar que dispõe o n.º 4 do artigo 63.º
da CRP que todo o tempo de trabalho contribui, nos moldes legais, para o cálculo
das pensões de velhice (27) e invalidez, independentemente do setor de atividade
24
Cfr., e para maiores desenvolvimentos, José Carlos Vieira de ANDRADE, «O “direito
ao mínimo de existência condigna” como direito fundamental a prestações estaduais positivas –
uma decisão singular do Tribunal Constitucional», in Jurisprudência Constitucional, N.º 1, 2004,
p. 26, apud Rui MEDEIROS, «Comentário e anotação ao disposto no n.º 3 do artigo 63.º da
Constituição da República Portuguesa», in Constituição Portuguesa Anotada, Com a
colaboração de Maria da Glória Garcia / Germano Marques da Silva / Américo Taipa de Carvalho
/ Damião da Cunha / José Lobo Moutinho / Paula Ribeiro de Faria / José de Melo Alexandrino /
Pedro Machete / António Cortês / Evaristo Ferreira Mendes / Henrique Salinas / Jorge Pereira da
Silva / Pedro Garcia Marques / Gonçalo Matias / Fernando Sá / Margarida Menéres Pimentel,
Volume I – Preâmbulo, Princípios Fundamentais, Direitos e Deveres Fundamentais, Artigos 1.º a
79.º, 2.ª edição revista, Universidade Católica Editora, fevereiro de 2017, p. 931 e ss e elenco
bibliográfico lá citado. Os negritos e o itálico utilizados no corpo do texto por José Carlos Vieira
de Andrade, na p. 26 do texto da sua autoria aqui citado, aos quais nós e Rui Medeiros, na p.
931, deste seu texto aqui citado, nos mantemos fiéis.
25
Cfr., e para maiores desenvolvimentos, Complemento solidário para idosos,
pesquisável em: https://www.seg-social.pt/complemento-solidario-para-idosos (acesso em:
30.12.2023).
26
A Portaria n.º 32/2023, de 20 de janeiro, procede, precisamente, à atualização do valor
do Rendimento Social de Inserção (RSI) para o ano de 2023, sendo pesquisável em:
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/portaria/32-2023-206350930 (acesso em: 30.12.2023).
27
Na jurisprudência Portuguesa, vd, entre outros, o Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Norte (TCAN), Processo n.º 00590/17.9BEAVR, Secção: 1ª (Primeira) Secção do
Contencioso Administrativo, datado de 17.11.2023, Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de
442
Patrícia Pinto Alves
[público ou privado (28)] em que tiver sido prestado. O Tribunal Constitucional
Português (TC) tem compreendido que, «quando o texto constitucional remete
para ´os termos da lei`, fá-lo para efeitos de concretização do direito, não a título
de cláusula habilitativa de restrições. A utilização da expressão `todo o tempo de
trabalho ...`, em conjugação com o segmento `independentemente do sector de
actividade em que tiver tiver sido prestado`, impõe, nesta matéria, a obrigação,
para o legislador ordinário, de prever a contagem integral do tempo de serviço
prestado pelo trabalhador, sem restrições que afetem o núcleo essencial do
direito [...]. Se a lei fracionar o tempo de trabalho para efeitos de aposentação –
assim eliminando uma parte do tempo de trabalho prestado -, já não será todo o
tempo de trabalho a contribuir para o cálculo das pensões, mas apenas uma
parte dele», assim caminham os entendimentos dos Acórdãos do TC n.ºs 411/99
e 173/01 (29) (30).
V. Breves notas conclusivas
Concluindo, e tendo em consideração as temáticas supra referenciada,
somos a apresentar algumas propostas que consideramos, e defendemos,
serem proporcionais e pertinentes. Desta feita, consideramos que deve ser feita
uma revisão da Lei de Bases da Segurança Social Portuguesa em vigor no
sentido de lhe serem atribuídas mais competências orgânicas para as entidades
melhor operarem em termos solidários, e, ainda, no sentido de evitar a
insustentabilidade económico-financeira da Segurança Social Portuguesa.
Consideramos que deve haver uma maior disponibilização de verbas no
orçamento de Estado Português de cada ano para a Segurnaça Social
Portuguesa para que esta possa oferecer melhores condições de vida aos
indivíduos mais necessitados, de entre os quais as crianças e os idosos devido
à sua maior vulnerabilidade. Consideramos que deve haver uma maior
fiscalização por parte da Segurança Social Portuguesa no que respeita às
Aveiro, tendo sido a relatora a Senhora Dr.ª Juíza Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte
Brandão, pesquisável em: www.dgsi.pt (acesso em: 30.12.2023).
28
A anotação é nossa.
29
Estes Acórdãos do TC são pesquisáveis, na íntegra, em:
https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/home.html (acesso em: 30.12.2023).
30
Cfr., e para maiores desenvolvimentos, Rui MEDEIROS, «Comentário e anotação ao
disposto no n.º 4 do artigo 63.º da Constituição da República Portuguesa», in Constituição
Portuguesa Anotada, cit., p. 935 e ss e elenco bibliográfico lá citado.
443
A Segurança Social Portuguesa e o Direito da Segurança Social
Instituições Particulares de Solidariedade Social, para haver uma maior e melhor,
averiguação acerca da atribuição de subsídios Estaduais àquelas.
VI. Referências bibliográficas
Doutrina
ALVES, Patrícia Marlene Pinto, O Regime Jurídico das Instituições
Particulares de Solidariedade Social: Contributo para o Estudo de Alguns dos
Aspetos do seu Estatuto Jurídico, Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, 2021, 688 pp. A4.
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume I, 2.ª
Edição (11.ª Reimpressão da 2.ª Edição de 1994), Almedina, janeiro de 2006.
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume I,
Com a colaboração de Luís Fábrica, Jorge Pereira da Silva e Tiago Macieirinha,
Reimpressão 2023 da 4.ª Edição de 2015, Almedina, 2018, p. 155 e ss e elenco
bibliográfico lá citado;
ANDRADE, José Carlos Vieira de, «O “direito ao mínimo de existência
condigna” como direito fundamental a prestações estaduais positivas – uma
decisão singular do Tribunal Constitucional», in Jurisprudência Constitucional,
N.º 1, 2004.
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Constituição Portuguesa de 1976, 6.ª Edição – Reimpressão, Almedina, julho de
2022.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 7.ª Edição (22.ª Reimpressão), 7.ª Edição- Reimpressão de 2021,
2018.
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CONCEIÇÃO, Apelles J. B., Segurança Social – Manual Prático, 13.ª
edição, Almedina, 2022.
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MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS, Acordo sobre Segurança
Social entre Portugal e Brasil, pesquisável em:
444
Patrícia Pinto Alves
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consulares/apoios/acordo-sobre-seguran%C3%A7a-social-entre-portugal-e-
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investimento, pesquisável em: https://www.seg-social.pt/programas-de-apoio-
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30.12.2023).
446
Patrícia Pinto Alves
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Social Solidarity in Europe, Johan van der Walt / Jeffrey Ellsworth (eds.), Volume
I, edited by Faculty of Law, Economics and Finance University of Luxembourg,
Nomos – Bloomsbury, 2015.
Legislação
Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança
Social - Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro, pesquisável em:
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/lei/110-2009-490249 (acesso em:
31.12.2023).
Constituição da República Portuguesa aprovada pelo Decreto de 10 de
abril de 1976.
A Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro «aprova as bases gerais do sistema de
segurança social».
Regulamento:
Portaria n.º 32/2023, de 20 de janeiro.
Jurisprudência
Acórdão do Tribunal Constitucional Português (TC) n.º 411/99.
Acórdão do TC n.º 173/01.
Acórdão do TC N.º 509/02.
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), Processo n.º
00590/17.9BEAVR, Secção: 1ª (Primeira) Secção do Contencioso
Administrativo, datado de 17.11.2023, Tribunal Administrativo e Fiscal
(TAF) de Aveiro, tendo sido a relatora a Senhora Dr.ª Juíza Maria
Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão.
447
O trabalho análogo à escravidão em atividades rurais no Brasil
e o princípio da dignidade humana
Alice Ruiz Nardi 1
Aline Ruiz Nardi 2
INTRODUÇÃO
Desde os primórdios o homem tem sido explorado e sendo objetificado
para servir àqueles que possuem mais poder.
A história da escravidão está presente em diversos países do mundo, e
com o passar do tempo ela foi se transformando para se adequar às modernas
realidades das grandes metrópoles e áreas rurais. A ideia que os escravos são
apenas àqueles que foram trazidos da África para o Brasil em meio à época da
colonização não se faz presente no atual momento, por não ser o mesmo
contexto histórico, porém são tratadas com o mesmo método desumano e
colocadas em situações que podem ser chamadas de análogas à escravidão.
Hoje isso é chamado de trabalho escravo contemporâneo, que ocorre
quando o trabalhador é submetido a condições degradantes, jornada exaustiva,
servidão por dívidas, restrição de locomoção (ou não, quando ocorre violação
de sua dignidade), trabalho forçado, conforme veremos mais adiante no
presente estudo. As situações que colocam as pessoas nestes termos não
respeitam salários, férias, jornadas, tampouco acordos e convenções coletivas.
No decorrer da história da escravidão, esta foi assumindo contornos
individualizados, apresentando variações que se relacionavam a fatores
geográficos, políticos, econômicos, sociais, religiosos e culturais e uma
1
Graduada em Publicidade e Propaganda e Direito pela Universidade de Ribeirão Preto, pós-
graduada em Gestão de Marketing pela Fundação Armando Álvares Penteado, Direito da
Comunicação Digital pelas Faculdades Metropolitanas Unidas, Direito de Família e Sucessões
pelo Instituto Damásio de Direito - Ibmec SP e pós-graduanda em Direito do Consumidor pelo
Instituto Damásio de Direito - Ibmec SP.
2
Graduada em Publicidade e Propaganda pela Universidade de Ribeirão Preto, graduanda em
Direito pela Universidade de Ribeirão Preto.
448
Alice Ruiz Nardi & Aline Ruiz Nardi
característica da exploração sempre foi o método desumano, reduzindo o ser
humano a um objeto de posse, o que vai totalmente contra ao que zela o
princípio da dignidade humana. 3
Ademais, existem vulnerabilidades que fazem com que o trabalhador,
sobretudo os rurais, se submetam a condições análogas à escravidão, como
condições econômicas, educacionais, pedagógicas, etc. 4
O Brasil já ratificou diversos tratados sobre o tema, assumindo, assim,
um compromisso mundial de combate a este tipo de trabalho. No entanto,
ainda existem muitos casos de pessoas que são colocadas na situação de
trabalho escravo contemporâneo no país, conforme será verificado.
O presente estudo consistiu em analisar o trabalho análogo à
escravidão, sobretudo nas atividades rurais no Brasil. Foram analisados os
requisitos para que um trabalho seja considerado análogo à escravidão para
que fosse possível a partir de um breve estudo geral para o particular avaliar
como se dá o trabalho escravo nas áreas rurais e o que tem sido feito para que
a dignidade humana dos trabalhadores possa ser respeitada.
Deste modo, a primeira seção do apresenta estudo apresenta um breve
histórico e explicação de conceitos, bem como exposição da lei. A segunda
seção apresenta alguns exemplos de casos ocorridos no Brasil em áreas
rurais. E a terceira seção aborda o que pode ser feito para evitar a situação do
trabalho análogo a escravidão ou o que já vem sendo feito.
Foi feita uma pesquisa bibliográfica para melhor compreensão e
elucidação do tema, envolvendo legislação, doutrina, artigos científicos e dados
divulgados nos veículos midiáticos a respeito do tema.
Foi verificado um aumento nos últimos anos de trabalho análogo à
escravidão no que tange as atividades rurais, em flagrante desrespeito ao
princípio da dignidade humana.
O estudo propôs uma reflexão sobre quais medidas têm sido praticadas
e quais ainda podem ser para que este tipo de situação não ocorra no Brasil,
onde se concluiu que é necessário que haja melhorias em alguns pontos
3
TREVISAM, Elisaide. Trabalho escravo no Brasil contemporâneo: entre as presas da
clandestinidade e as garras da exclusão. Curitiba: Juruá, 2015, p. 48.
4
CORTE, Thaís Dalla; DINIZ, Anielly. A vulnerabilidade do trabalho rural em condições
análogas à de escravidão. Revista Interfaces Científicas, Aracaju, v. 9, n. 1, p. 93-109, 2022, p.
95. Disponível em: <https://periodicos.set.edu.br/direito/article/view/10783/5014>. Acesso em:
08 abr. 2023.
449
O trabalho análogo à escravidão em atividades rurais (...)
estruturais, mesmo que ainda existam diversas medidas de combate ao
trabalho escravo.
CONCEITO E REQUISITOS PARA CONFIGURAÇÃO DE TRABALHO
ANÁLOGO AO DE ESCRAVO
Inicialmente cabe esclarecer o conceito de escravidão para melhor
elucidação do tema. Segundo os ensinamentos de Borba e Câmara o conceito
de escravidão é:
A escravidão constitui um sistema socioeconômico, onde seres
humanos são tratados tais quais propriedades, sendo vendidos,
comprados e trocados para os mais diversos propósitos. A pessoa
submissa a esse regime, portanto, torna-se propriedade de quem o
comprou, não possuindo qualquer tipo de direito sobre si próprio e
vivendo em condições subumanas, com a falta de um tratamento e
uma remuneração justos. A despeito da abolição mundial (inclusive
no Brasil, portanto) da escravidão e do decreto de diversas leis contra
sua prática, ela continua a perpetuar-se ilegalmente ou legalmente à
medida que o ordenamento positivado deixa brechas para que isso
ocorra. 5
Conforme Trevisam ao citar Zanaighi é quase impossível determinar o
exato período e local onde a escravidão se iniciou, considerando que esta é tão
antiga quanto à humanidade. 6
Segundo o Manual sobre o trabalho escravo do Ministério do Trabalho e
Emprego:
Diversas são as denominações dadas ao fenômeno de exploração
ilícita e precária do trabalho, ora chamado de trabalho forçado,
trabalho escravo, exploração do trabalho, semiescravidão, trabalho
degradante, entre outros, que são utilizados indistintamente para
tratar da mesma realidade jurídica. Malgrado as diversas
denominações, qualquer trabalho que não reúna as mínimas
condições necessárias para garantir os direitos do trabalhador, ou
seja, cerceie sua liberdade, avilte a sua dignidade, sujeite-o a
condições degradantes, inclusive em relação ao meio ambiente de
5
BORBA, Camila da Cunha Melo de Farias; CAMARA, Maria Amália Arruda. Direitos humanos
e a questão do trabalho em condições análogas à escravidão no Brasil do século XXI: uma
abordagem antropológica-normativa sobre o tema. Revista de Direito Brasileira, São Paulo, v.
14, n. 6, 2016, p. 19. Disponível em: <
https://www.indexlaw.org/index.php/rdb/article/view/2914/2707>. Acesso em: 08 abr. 2023.
6
ZANAIGHI, Domingos Sávio. A proibição do trabalho escravo ou forçado. In: COLNAGO,
Lorena de Mello Rezende; ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. (Orgs.). Direitos humanos e
Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2013, p. 276-284 apud TREVISAM, Elisaide. Trabalho
escravo no Brasil contemporâneo: entre as presas da clandestinidade e as garras da exclusão.
Curitiba: Juruá, 2015, p. 48.
450
Alice Ruiz Nardi & Aline Ruiz Nardi
trabalho, há que ser considerado trabalho em condição análoga à de
escravo. 7
E ainda:
A degradação mencionada vai desde o constrangimento físico e/ou
moral a que é submetido o trabalhador – seja na deturpação das
formas de contratação e do consentimento do trabalhador ao celebrar
o vínculo, seja na impossibilidade desse trabalhador de extinguir o
vínculo conforme sua vontade, no momento e pelas razões que
entender apropriadas – até as péssimas condições de trabalho e de
remuneração: alojamentos sem condições de habitação, falta de
instalações sanitárias e de água potável, falta de fornecimento
gratuito de equipamentos de proteção individual e de boas condições
de saúde, higiene e segurança no trabalho; jornadas exaustivas;
remuneração irregular, promoção do endividamento pela venda de
mercadorias aos trabalhadores (truck system). 8
Portanto é possível que se chegue à conclusão que não apenas o
trabalhador acorrentado, sem direito de ir e vir que pode estar em uma situação
análoga à escravidão, mas também aquele que está, por exemplo, em local
sem condições de higiene, degradantes, etc.
Dessa forma, resta evidente que o bem jurídico a ser tutelado no
combate ao trabalho escravo contemporâneo é a dignidade da
pessoa humana, pois, o labor realizado sob a coordenação do
empregador escravocrata, afronta esse direito da personalidade que
também é princípio basilar do Estado Democrático de Direito. 9
Então é possível perceber que os direitos de personalidades são
considerados direitos humanos, que asseguram a inclusão e desenvolvimento
do Estado Social, sendo essenciais à existência humana e se traduz na
concretização ou maneira de ser da pessoa, sendo espécies de direitos
7
BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego. Manual de Combate ao Trabalho em Condições
análogas às de escravo. Brasília: MTE, 2011, p. 12. Disponível em: <
http://acesso.mte.gov.br/data/files/8A7C816A350AC88201350B7404E56553/combate%20traba
lho%20escravo%20WEB.PDF>. Acesso em: 8 abr. 2023.
8
Ibid., 2011, p.12.
9
LEITE, Danieli A.C.; BERNARDI, Renato. O trabalho escravo contemporâneo analisado sob a
perspectiva da dignidade humana enquanto direito da personalidade. Revista Brasileira de
Direitos e garantias Fundamentais, Salvador, v. 4, n. 1, p. 75-90, 2018, p. 76. Disponível em: <
https://www.indexlaw.org/index.php/garantiasfundamentais/article/view/4417/pdf>. Acesso em:
8 abr. 2023.
451
O trabalho análogo à escravidão em atividades rurais (...)
humanos porquanto espécies de direitos fundamentais, mesmo que
relacionados à integridade física e moral da pessoa. 10
Existem diversas convenções e normativas internacionais, ratificadas
pelo Brasil, mas estas não serão objeto do presente estudo, focaremos nas
normas de âmbito nacional, tendo ciência da existência das internacionais,
ademais é importante ressaltar que o aliciamento de trabalhadores rurais no
Brasil e de trabalhadores estrangeiros e regulares com o intuito de submetê-los
ao trabalho em condições análogas a de escravidão iguala-se a definição de
tráficos de seres humanos. 11
O artigo 1º da nossa Constituição Federal de 1988 prevê pela dignidade
da pessoa humana (inciso III) e os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa (inciso IV), dentre outros, como, por exemplo, os artigos 4º, onde o
Brasil rege suas relações internacionais pelo princípio dos direitos humanos
(inciso II), o artigo 5º onde zela que todos são iguais perante a lei, e que
ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante
(inciso III), bem como os artigos 170 e 186 que zelam pela função social da
propriedade, redução de desigualdades e observância das disposições que
regulam as relações de trabalho. 12
Ademais o artigo 7º da Constituição Federal prevê os direitos dos
trabalhadores urbanos e rurais, bem como outros que visem à melhoria de sua
condição social. Isto induz a uma reflexão acerca da realidade de relações de
trabalho que são verificadas por meio de auditoria fiscal do trabalho. 13
Os trabalhadores rurais tem direito, assim como de todas as categorias
conforme o artigo 7° citado anteriormente tem direito a salario mínimo, Fundo
de garantia do tempo de Serviço (FGTS), direito a duração e trabalho normal
não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, direito a
receber horas extras se a jornada de trabalho ultrapassar as oito horas diárias,
10
LEITE, Danieli A.C.; BERNARDI, Renato. O trabalho escravo contemporâneo analisado sob
a perspectiva da dignidade humana enquanto direito da personalidade. Revista Brasileira de
Direitos e garantias Fundamentais, Salvador, v. 4, n. 1, p. 75-90, 2018, p. 77-79. Disponível
em: < https://www.indexlaw.org/index.php/garantiasfundamentais/article/view/4417/pdf>.
Acesso em: 8 abr. 2023.
11
Ibid. p.10.
12
BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego. Manual de Combate ao Trabalho em Condições
análogas às de escravo. Brasília: MTE, 2011, p. 11. Disponível em: <
http://acesso.mte.gov.br/data/files/8A7C816A350AC88201350B7404E56553/combate%20traba
lho%20escravo%20WEB.PDF>. Acesso em: 8 abr. 2023.
13
Ibid., p. 11.
452
Alice Ruiz Nardi & Aline Ruiz Nardi
férias, 13° salário, repouso semanal remunerado, seguro desemprego, aviso
prévio, assistência médica, irredutibilidade do salário, licenças como, por
exemplo, a maternidade a paternidade. 14
Conforme Leite e Bernardi:
O trabalho alimenta a dignidade da pessoa humana, vez que estimula
o convívio social e a autoestima, além de enobrecer a pessoa. Em
contrapartida, o trabalho em condições análogas às de escravo
exprime uma mazela social enrustida pela modernidade, que suga e
explora o trabalhador pobre e necessitado, como se homem não
fosse, e contraria a aplicação dos direitos sociais inerentes aos
trabalhadores. 15
O capítulo VI do nosso Código Penal trata dos crimes contra a liberdade
individual e no artigo 149 é tipificado o crime que reduz alguém a condição
análoga à de escravo. Incorrem nas mesmas penas citadas anteriormente as
presentes nos incisos do mesmo artigo.
De acordo com Nucci, houve alteração legislativa pela Lei n.
10.803/2003 com finalidade de atacar este grave problema brasileiro de
escravidão muito comum em fazendas e zonas afastadas de centros urbanos,
onde os trabalhadores são submetidos a condições degradantes de
sobrevivência e de atividade laborativa, inclusive com muitos sem remuneração
mínima estipulada em lei e sem os benefícios da legislação trabalhista, estando
em condições semelhantes a dos escravos. 16
Ainda conforme o mesmo autor:
Destarte, para reduzir uma pessoa a condição análoga à de escravo
pode bastar submetê-la a trabalhados forçados ou jornadas
exaustivas, bem como a condições degradantes de trabalho. De
resto, nas outras figuras, deve-se fazer algum tipo de associação à
restrição à liberdade de locomoção, sob pena de se confundir este
delito com as formas previstas no art. 203 (...). Mas, em suma, as
situações descritas no art. 149 são alternativas e não cumulativas.
14
BRASIL, Ministério Público Federal. Diálogos da cidadania: enfrentamento ao trabalho
escravo. Brasília: MPF, 2014, p. 9. Disponível em:
<https://trabalhoescravo.mpf.mp.br/hotsites/trabalho-
escravo/imagens/cartilha_trab_escravo_WEB.pdf>. Acesso em: 8 abr. 2023.
15
LEITE, Danieli A.C.; BERNARDI, Renato. O trabalho escravo contemporâneo analisado sob
a perspectiva da dignidade humana enquanto direito da personalidade. Revista Brasileira de
Direitos e garantias Fundamentais, Salvador, v. 4, n. 1, p. 75-90, 2018, p. 82. Disponível em: <
https://www.indexlaw.org/index.php/garantiasfundamentais/article/view/4417/pdf>. Acesso em:
8 abr. 2023.
16
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado: estudo integrado com processo e
execução penal. 14 ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 657.
453
O trabalho análogo à escravidão em atividades rurais (...)
Certamente a redação do tipo melhorou, pois trouxe mais segurança
ao juiz, pautando-se pelo princípio da taxatividade. 17
Portanto o trabalho escravo, além de ser crime, fere a dignidade da
pessoa humana, pois submete a pessoa a condições ínfimas de sobrevivência
em patamar aquém do mínimo para uma vida digna, portanto o conceito de
trabalho análogo ao de escravo apreendido pelo Direito do Trabalho deve
abarcar todo o labor que desrespeite essa dignidade da pessoa humana, sendo
seu estudo essencial como instrumento de efetivação da dignidade da pessoa
humana no mundo contemporâneo. 18
Todo arcabouço jurídico trabalhista preza pelo trabalho digno, com
observância dos direitos fundamentais trabalhistas que assegurem o mínimo
existencial. 19
NÚMEROS E ALGUNS EXEMPLOS DE CASOS DE TRABALHADORES
RURAIS SUBMETIDOS A TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO NO
BRASIL
Em notícia veiculada pelo portal da Folha de S. Paulo, o número de
trabalhadores resgatados em situação semelhante à escravidão em 2023 já era
maior para um primeiro semestre em 12 anos, conforme dados do Ministério do
Trabalho e Emprego. 20
Historicamente, segundo Brito Filho:
As inspeções no meio rural, especialmente no sul e no sudeste do
Estado do Pará, para combate ao trabalho escravo, começaram, com
mais vigor, na primeira metade da década de 1990. O que se via,
principalmente, naquela ocasião, nos empreendimentos rurais que
foram inspecionados, em alguns casos, era a mesma situação que
hoje é caracterizada, depois da alteração do art. 149 do Código penal
17
Ibid. p. 657.
18
LEITE, Danieli A.C.; BERNARDI, Renato. O trabalho escravo contemporâneo analisado sob
a perspectiva da dignidade humana enquanto direito da personalidade. Revista Brasileira de
Direitos e garantias Fundamentais, Salvador, v. 4, n. 1, p. 75-90, 2018, p. 84. Disponível em: <
https://www.indexlaw.org/index.php/garantiasfundamentais/article/view/4417/pdf>. Acesso em:
8 abr. 2023.
19
Ibid., p. 84.
20
PORTAL FOLHA DE S. PAULO. Número de resgatados em trabalho análogo ao escravo já é
recorde. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/06/numero-de-
resgatados-em-trabalho-analogo-ao-escravo-ja-e-recorde.shtml>. Acesso em: 10 ago. 2023.
454
Alice Ruiz Nardi & Aline Ruiz Nardi
brasileiro, como trabalho em condições análogas à de escravo pelas
condições degradantes de trabalho. 21
Ou seja, ainda é possível encontrar diversos casos que ocorrem no
Brasil. Por exemplo, no ano de 2023, houve uma ação conjunta entre a Polícia
Rodoviária Federal, a Polícia Federal e o Ministério do Trabalho e Emprego na
cidade de Bento Gonçalves no estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Nesta
ação foram resgatados 207 trabalhadores, conforme noticiado pelas mídias do
país, em situação análogas à escravidão. Estes empregados foram levados ao
Sul para trabalhar na colheita de uva. 22
A contratação dos mesmos foi feita por
uma empresa terceirizada que presta serviços a três grandes vinícolas
conhecidas da região. 23
As investigações preliminares apontaram que estes empregados eram
submetidos a jornadas exaustivas, ademais recebiam comida imprópria para
consumo e havia um único estabelecimento onde eles podiam comprar a
comida, com desconto salarial e preços elevados, mantidos, assim, vinculados
ao trabalho por supostas dívidas contraídas com o empregador. O Ministério do
Trabalho e Emprego ainda encontrou no local máquina para aplicação de
choque elétrico bem como spray de pimenta, dos quais os trabalhadores
confirmaram o uso. 24
.
Em junho de 2023 houve um resgate onde auditores fiscais e a Polícia
Federal encontraram três homens em situação de trabalho análogo à
escravidão em uma colheita de batatas na região de General Carneiro – PR.
Conforme as investigações, estas pessoas trabalhavam descalças durante 13
horas por dia, sob uma temperatura em torno de 6ºC. Elas dormiam em
colchões no chão, em quarto com goteiras e infiltrações, comiam marmitas
geladas, pois não havia onde aquecê-las. 25
21
BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho escravo: caracterização jurídica. 3 ed.
São Paulo: LTr, 2020, p. 30.
22
PORTAL MIGALHAS. Caso no Sul mostra que trabalho escravo ainda é uma realidade no
país. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/382484/caso-no-sul-mostra-que-
trabalho-escravo-ainda-e-uma-realidade-no-pais>. Acesso em: 8 abr. 2023.
23
Ibid., acesso em: 8 abr. 2023.
24
Ibid., acesso em: 8 abr. 2023.
25
PORTAL FOLHA DE S. PAULO. Número de resgatados em trabalho análogo ao escravo já é
recorde. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/06/numero-de-
resgatados-em-trabalho-analogo-ao-escravo-ja-e-recorde.shtml>. Acesso em: 10 ago. 2023.
455
O trabalho análogo à escravidão em atividades rurais (...)
Ainda de acordo com o Portal da Folha de S. Paulo, uma das maiores
operações do primeiro semestre liberou 212 pessoas em três cidades, duas em
Goiás e uma em Minas Gerais. As vítimas atuavam no plantio de cana-de-
açúcar. Elas eram cobradas pelo aluguel dos barracos de alojamento e
ferramentas de trabalho, bem como havia falta de alimentação. 26
No primeiro semestre de 2023 foram resgatados 1.143 trabalhadores e
em 2022 foram 771. 27
QUAIS AS MEDIDAS QUE ESTÃO SENDO PRATICADAS OU QUE AINDA
PODEM SER PARA ERRADICAR O TRABALHO ESCRAVO
É necessário que se considere que o trabalho escravo possui como
fatores determinantes a pobreza e a miserabilidade, pois estas acarretam na
vulnerabilidade da pessoa. Propiciar educação de qualidade, acesso à
moradia, programas sociais e empregos formais é uma forma de evitar esta
grave violação 28
, pois tudo isso é princípio básico para uma vida mais digna
como um todo.
Deve haver políticas e programas governamentais para que haja
melhoria da condição de vida das pessoas, bem como campanhas de
conscientização que possuem papel importante na prevenção do crime. 29
Outro ponto importante é o fortalecimento da Auditoria Fiscal do
Trabalho, que é um dos principais mecanismos de enfretamento. 30
Com o presente estudo foi possível observar que houve aumento nos
casos e isto pode estar atrelado à falta de fiscalização.
De acordo com o coordenador da Conaete (Coordenadoria Nacional de
Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas),
Italvar Medina, houve redução das fiscalizações e que não é feito concurso
público desde 2013, havendo mais de 1500 cargos vagos, quase 50% do total
26
Ibid., acesso em: 10 ago. 2023.
27
Ibid., acesso em: 10 ago. 2023.
28
BRASIL, Ministério Público Federal. Diálogos da cidadania: enfrentamento ao trabalho
escravo. Brasília: MPF, 2014. Disponível em:
<https://trabalhoescravo.mpf.mp.br/hotsites/trabalho-
escravo/imagens/cartilha_trab_escravo_WEB.pdf>. Acesso em: 8 abr. 2023.
29
Ibid., acesso em: 8 abr. 2023.
30
Ibid., acesso em: 8 abr. 2023.
456
Alice Ruiz Nardi & Aline Ruiz Nardi
de cargos. Ademais o Ministério do Trabalho confirmou que o quadro de fiscais
caiu de 2.496 em 2016 (último dado disponível) para 1.952 em 2022. 31
O mesmo coordenador do Conaete supracitado atribuiu o aumento de
resgates aos índices de pobreza que trouxe a pandemia de Covid-19, pois
quando a situação econômica se agrava aumentam as chances dessas
pessoas serem aliciadas para trabalhos locais distantes mediante falsas
promessas. 32
Quanto ao caso ocorrido no Rio Grande do Sul relatado no presente
estudo, o governo estadual informou que desde o resgate dos trabalhadores
nas vinícolas foi criado um grupo de trabalho para que se acompanhe as
ações, com diferentes secretarias, no caso, participando de uma força-tarefa
para erradicação desse tipo de exploração, colocando à disposição de todos os
resgatados todos os serviços para reinserção no mercado de trabalho,
realização de qualificações e capacitações. 33
Tal medida é de extrema
importância:
Também é necessário que se promova a ressocialização dos
trabalhadores “resgatados”, por meio de sua adequada inserção no
mercado formal de trabalho e em programas assistenciais,
garantindo-lhes seus direitos. Assim, a criação de alternativas para a
geração de renda cria condições para que as pessoas resistam às
condições de trabalho indignas e degradantes. Iniciativas de
reinserção também impedem que a situação volte a ocorrer,
rompendo com o círculo vicioso que leva ao trabalho escravo. 34
Também é imprescindível promover ferramentas para o enfretamento da
impunidade.
As leis que já existem tem sido insuficientes:
(...) as leis existentes não têm se mostrado suficientemente eficazes
para, por si só, inibir as práticas de sistemas análogos à escravidão;
mesmo com a aplicação de multas, o corte de créditos e, até mesmo,
a submissão à reclusão e detenção não foram medidas suficientes
para coibir as práticas desumanas de exploração. Mesmo com tantas
31
PORTAL UOL NOTÍCIAS. Resgate de pessoas em situação análoga à escravidão no RS
dispara em 3 anos. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2023/03/06/trabalho-analogo-a-escravidao-rio-grande-do-sul-resgates.htm>. Acesso
em: 8 abr. 2023.
32
Ibid., acesso em: 8 abr. 2023.
33
Ibid., acesso em: 8 abr. 2023.
34
BRASIL, Ministério Público Federal. Diálogos da cidadania: enfrentamento ao trabalho
escravo. Brasília: MPF, 2014. Disponível em:
<https://trabalhoescravo.mpf.mp.br/hotsites/trabalho-
escravo/imagens/cartilha_trab_escravo_WEB.pdf>. Acesso em: 8 abr. 2023.
457
O trabalho análogo à escravidão em atividades rurais (...)
penalidades, é reconhecido que, para alguns empresários, fazer uso
de mão de obra escrava ainda é mais vantajoso, pois há o
barateamento dos custos com esta força de trabalho. 35
No âmbito constitucional foi promulgado em 5 de junho de 2014 a
Emenda Constitucional n. 81 que deu nova redação ao artigo 243 da
Constituição Federal. A nova redação reza sobre as propriedades rurais e
urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais ou
exploração de trabalho escravo serão expropriadas e destinadas à reforma
agrária e programas de habitação popular, sem indenização ao proprietário e
sem prejuízo de outras sanções. Ademais todo dinheiro apreendido será
confiscado e revertido a fundo especial com destinação específica. 36
A partir desta emenda é possível observar a importância da atualização
das leis bem como uma maior punição para evitar que problemas tão graves
como é o trabalho escravo ocorram no país.
Outra medida que já está sendo tomada é uma lista, que é um cadastro
oficial de empregadores que foram flagrados explorando mão de obra análoga
à escravidão, conhecida como “lista suja”. 37
Nesta lista o nome do empregador é colocado em um cadastro após o
final de um processo administrativo, onde os empregadores também tem o
direito de se defenderem, criados pelos autos de fiscalização, quando as
instituições poderão suspender financiamento e acesso a crédito, por exemplo,
e os responsáveis pela lista são o Ministério do Trabalho e a Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência. 38
Ademais, também existe o Plano Nacional para a Erradicação do
Trabalho Escravo e os resgates dos trabalhadores. 39
Ainda sobre a “lista suja”, segundo Borba e Camara:
Muitas empresas conseguem ser retiradas da lista apenas entrando
com liminares na Justiça, no entanto, após o ingresso na lista, deve
35
BORBA, Camila da Cunha Melo de Farias; CAMARA, Maria Amália Arruda. Direitos humanos
e a questão do trabalho em condições análogas à escravidão no Brasil do século XXI: uma
abordagem antropológica-normativa sobre o tema. Revista de Direito Brasileira, São Paulo, v.
14, n. 6, 2016, p. 18-36, p.28 Disponível em: <
https://www.indexlaw.org/index.php/rdb/article/view/2914/2707>. Acesso em: 08 abr. 2023.
36
Ibid., p. 27-28.
37
Ibid., p. 29.
38
Ibid., p. 29.
39
Ibid., p. 29.
458
Alice Ruiz Nardi & Aline Ruiz Nardi
ser atestado que, após dois anos, não houve reincidência e que
foram efetuados todos os pagamentos de todos os autos de infração.
Percebe-se que esta é uma medida econômica para combater os que
fazem uso de mão de obra escrava, que está presente desde 2003
(...). O objetivo de veicular esta lista é garantir o direito da sociedade
e do setor empresarial à transparência sobre o trabalho empregado
na fabricação ou confecção de determinado produto, além de
fornecer informações sobre os flagrantes confirmados pelo governo.
40
Tal cadastro tornou-se um importante instrumento de combate ao
trabalho escravo:
O cadastro, atualmente, tornou-se um instrumento fundamental no
combate a trabalho escravo, visto que possibilita a suspensão do
financiamento público e privado, repasses de fundos constitucionais e
benefícios fiscais a quem comprovadamente cometeu tal crime. A
suspensão do acesso ao crédito tem surtido o efeito inicialmente
desejado, visto que diversas ações judiciais têm sido movidas contra
o cadastro, tentando alegar uma inconstitucionalidade neste
instrumento de repressão ao trabalho escravo. 41
Outra medida que já está sendo tomada é o Plano Nacional para a
Erradicação do trabalho Escravo, tal planejamento necessita da participação
das grandes empresas, que precisam assinar o pacto para que haja
legitimidade no âmbito trabalhista. As medidas estabelecidas devem ser
cumpridas pelos órgãos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, do
Ministério Público e entidades da sociedade civil. Este plano é consoante ao
Plano Nacional de Direitos Humanos, expressando política permanente que
deverá ser fiscalizada por órgão ou fórum nacional dedicado à repressão do
trabalho escravo. 42
Mas ainda carece de pessoas para fazer cumprir esse plano, bem como
maior compromisso do setor empresarial. Por esta razão no ano de 2008 foi
criada uma espécie de atualização deste plano, qual seja, o Novo Plano
nacional para a Erradicação do trabalho escravo, que aborda ações gerais e foi
elaborado pela Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo
(Conatrae). Contemplou-se, sobretudo, a prevenção, reinserção dos
trabalhadores e a repressão e econômica, que não estavam inclusas no plano
anterior. 43
40
Ibid., p. 29.
41
Ibid., p. 29.
42
Ibid., p. 30.
43
Ibid., p. 30.
459
O trabalho análogo à escravidão em atividades rurais (...)
É necessário, também, que ocorra o resgate dos trabalhadores em
condições análogas à escravidão, por meio de denúncias realizadas pelos
indivíduos, vistorias padrão dos auditores fiscais. Durante as vistorias se for
identificado uma situação que entre em conflito com a legislação trabalhista os
trabalhadores são liberados e os empregadores são autuados em flagrante. O
membro do Ministério Público deve adotar procedimento imediato, instaurando
inquérito civil público e a ação penal decorrente a fim de que o empregador
seja responsabilizado juridicamente. 44
É possível perceber que o Ministério Público também possui grande
importância para a garantia dos direitos destes trabalhadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Depois de verificados os requisitos e conceito de trabalho escravo foi
possível constatar que o Brasil ainda convive com a situação de trabalho
análogo a escravidão, mesmo diante de todas as leis. Prova disso foi o recente
caso de 2023, ocorrido nas vinícolas do Rio Grande do Sul, bem como outros
casos, já que os resgates aumentaram nos últimos anos.
É nítido o flagrante desrespeito ao princípio da dignidade humana e aos
direitos de personalidade dos trabalhadores, que são colocados em situações
degradantes, onde o empregador se aproveita dessa mão de obra sem
considerar qualquer tipo de vulnerabilidade do ser humano, e, sobretudo sem
considerar as leis.
Foi possível observar que existem diversas medidas para combater o
trabalho escravo no país, mas que os órgãos têm sofrido uma baixa de
funcionários para a fiscalização, o que impacta diretamente no sucesso de
ações no combate à escravidão, e a crise financeira que o país tem
atravessado nos últimos anos em consequência da pandemia, só veio para
contribuir com o aumento de casos.
Chegou-se a conclusão que é preciso maior engajamento social na luta
contra o trabalho escravo, bem como maior engajamento no âmbito estatal e
federal, como a criação de políticas públicas. Ademais é necessário
44
Ibid., p. 31.
460
Alice Ruiz Nardi & Aline Ruiz Nardi
movimentar a estrutura da qual tem como consequência o trabalho escravo,
como a melhoria da educação da população, considerado que o presente
estudo constatou que a maioria dos trabalhadores que são colocados nesta
situação são hipossuficientes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BORBA, Camila da Cunha Melo de Farias; CAMARA, Maria Amália Arruda.
Direitos humanos e a questão do trabalho em condições análogas à
escravidão no Brasil do século XXI: uma abordagem antropológica-
normativa sobre o tema. Revista de Direito Brasileira, São Paulo, v. 14,
n. 6, 2016, Disponível em: <
https://www.indexlaw.org/index.php/rdb/article/view/2914/2707>. Acesso
em: 08 abr. 2023.
BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego. Manual de Combate ao Trabalho
em Condições análogas às de escravo. Brasília: MTE, 2011. Disponível
em: <
http://acesso.mte.gov.br/data/files/8A7C816A350AC88201350B7404E56
553/combate%20trabalho%20escravo%20WEB.PDF>. Acesso em: 8
abr. 2023.
BRASIL, Ministério Público Federal. Diálogos da cidadania: enfrentamento ao
trabalho escravo. Brasília: MPF, 2014, p. 9. Disponível em:
<https://trabalhoescravo.mpf.mp.br/hotsites/trabalho-
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2023.
BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho escravo: caracterização
jurídica. 3 ed. São Paulo: LTr, 2020.
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condições análogas à de escravidão. Revista Interfaces Científicas,
Aracaju, v. 9, n. 1, p. 93-109, 2022, p. 95. Disponível em:
<https://periodicos.set.edu.br/direito/article/view/10783/5014>. Acesso
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INTERNATIONAL, Anti-Slavery. Formas Contemporâneas de Escravidão. In:
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Trabalho Escravo no Brasil
461
O trabalho análogo à escravidão em atividades rurais (...)
Contemporâneo. São Paulo: Edições Loyola, 1999, p. 49 apud
TRINDADE, Daniel de Souza. Conceito de trabalho escravo no Brasil: a
necessária aplicação do Princípio da Proibição do Retrocesso Social.
Brasília, 2014. Disponível em:
<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/513251/TCC%20-
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>. Acesso em: 08 abr. 2023.
LEITE, Danieli A.C.; BERNARDI, Renato. O trabalho escravo contemporâneo
analisado sob a perspectiva da dignidade humana enquanto direito da
personalidade. Revista Brasileira de Direitos e garantias Fundamentais,
Salvador, v. 4, n. 1, p. 75-90, 2018. Disponível em: <
https://www.indexlaw.org/index.php/garantiasfundamentais/article/view/4
417/pdf>. Acesso em: 8 abr. 2023.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado: estudo integrado com
processo e execução penal. 14 ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
PORTAL FOLHA DE S. PAULO. Número de resgatados em trabalho análogo
ao escravo já é recorde. Disponível em:
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escravidão no RS dispara em 3 anos. Disponível em:
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PORTAL MIGALHAS. Caso no Sul mostra que trabalho escravo ainda é uma
realidade no país. Disponível em:
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trabalho-escravo-ainda-e-uma-realidade-no-pais>. Acesso em: 8 abr.
2023.
TREVISAM, Elisaide. Trabalho escravo no Brasil contemporâneo: entre as
presas da clandestinidade e as garras da exclusão. Curitiba: Juruá,
2015.
462
Alice Ruiz Nardi & Aline Ruiz Nardi
ZANAIGHI, Domingos Sávio. A proibição do trabalho escravo ou forçado. In:
COLNAGO, Lorena de Mello Rezende; ALVARENGA, Rúbia Zanotelli
de. (Orgs.). Direitos humanos e Direito do Trabalho. São Paulo: LTr,
2013, p. 276-284 apud TREVISAM, Elisaide. Trabalho escravo no Brasil
contemporâneo: entre as presas da clandestinidade e as garras da
exclusão. Curitiba: Juruá, 2015.
463
Aposentadoria por tempo de contribuição após reforma da
previdência brasileira de 2019: análise da vulnerabilidade
previdenciária dos empregados rurais
Julius César Gurgel de Araújo Lima *
Fábio Luiz de Oliveira Bezerra **
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 (CF/1988) foi a primeira a instituir no
Brasil o sistema da seguridade social, considerado o que engloba as ações na
área da previdência social, da assistência social e da saúde pública. No
seguimento previdenciário, a aposentadoria é um direito a uma prestação
pecuniária mensal para os trabalhadores que contribuem com o sistema
previdenciário, quando tenham atingido determinada idade ou quando tenham
cumprido tempo mínimo, sendo o tempo (inicialmente de serviço, depois de
contribuição) e a idade estabelecidos nas normas constitucionais e legais.
No âmbito do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), dedicado
aos trabalhadores da iniciativa privada, a aposentadoria por tempo de
contribuição teve início com a Emenda Constitucional 20/1998 (EC n° 20/1988),
substituindo a antiga aposentadoria por tempo de serviço. Para ter direito à
aposentadoria por tempo de contribuição, esses segurados precisavam
comprovar contribuições por pelo menos 35 anos, no caso dos homens, e pelo
menos 30 anos no caso das mulheres, além de cumprir o requisito legal da
carência de 15 anos. Tal Emenda manteve a aposentadoria por idade, que
exigia idade mínima (65 anos para homem; 60 anos para mulher) e carência de
15 anos de contribuição.
Desde então, outras alterações nas regras previdenciárias sucederam,
seja por meio de Emendas, seja por meio de lei ordinária. A mudança mais
substancial ocorreu em 2019, com a publicação da Emenda Constitucional n°
103 (EC n° 103/2019), que ficou conhecida como Reforma da Previdência,
buscando, entre outros objetivos, aproximar as regras de concessão para os
*
Bacharelando em Direito (UFRN), e-mail: [email protected].
**
Professor Adjunto (UFRN), Doutor em Direito, e-mail: [email protected].
464
Julius César Gurgel de Araújo Lima & Fábio Luiz de Oliveira
Bezerra
dois regimes previdenciários (RPGS e o regime próprio dos servidores
públicos). Além de extinguir a aposentadoria por idade até então vigente no
âmbito do RGPS, as novas regras para concessão da aposentadoria,
aplicáveis aos trabalhadores da iniciativa privada, inclusive aos empregados
rurais submetidos a um vínculo empregatício no campo, ficaram muito mais
rígidas.
Em vista disso, e olhando mais especificamente a situação dos
empregados rurais, é comum observar jornadas de trabalho extremamente
árduas e exaustivas realizadas por essa classe de trabalhadores, e
principalmente em relações empregatícias que não perduram por mais de um
ano, o que os torna, do ponto de vista da seguridade social, indivíduos
vulneráveis dentro do mercado de trabalho, agravado pelo fato de passarem
longos períodos sem labor ou atuando na informalidade, sem contribuir com o
regime previdenciário. Em decorrência disso, dificilmente atingem o tempo de
contribuição mínimo para conquistar o direito a uma aposentadoria por idade.
Considerando o contexto exposto, é necessário questionar se a
Reforma da Previdência trouxe mudanças nos requisitos para concessão e
cálculo do benefício de maneira justa para essa parcela específica da
população (empregado rural), que depende da Previdência Social como forma
de assegurar uma renda mensal estável na velhice.
O estudo tem o objetivo de avaliar se mudanças das regras da
aposentadoria para o empregado rural estão em consonância com os princípios
constitucionais da Previdência Social, notadamente em face da peculiaridade
da condição da relação de emprego no meio rural.
Como desmembramento deste propósito, foram fixados os seguintes
objetivos específicos: a) examinar a situação peculiar da relação de emprego
no meio rural, considerando suas condições de trabalho e tempo de duração
dos vínculos empregatícios, bem como a perspectiva de aposentadoria pelas
regras anteriores à EC n° 103/2019; b) identificar as dificuldades adicionais que
surgiram para a obtenção de aposentadoria por tempo de contribuição para os
trabalhadores rurais, perceptivelmente em razão de sua crescente
vulnerabilidade no mercado de trabalho com o aumento da idade, numa
465
Aposentadoria por tempo de contribuição após reforma da (...)
atividade demasiadamente desgastante; avaliando a compatibilidade da
Reforma da Previdência de 2019 com a CF/1988.
O presente estudo mostra-se relevante por analisar as consequências
jurídicas e sociais de uma Emenda Constitucional que incidiu sobre o direito
social previdenciário, notadamente a aposentadoria, que é fundamental para a
manutenção da dignidade do trabalhador em momentos adversos de saúde ou
de velhice. Ademais, há poucos estudos científicos na área previdenciária
sobre os empregados rurais e sua condição laboral.
A pesquisa adota o método descritivo, exploratório e avaliativo, com
preponderância da análise descritivo-interpretativa de documentos doutrinários,
normativos (constitucionais e legais). Faz-se ainda uma análise de dados
coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE a respeito
das zonas rurais, bem como sobre os requerimentos administrativos no âmbito
do INSS que envolvam empregados rurais.
A hipótese testada é a de que dificilmente um empregado rural se
aposentará por tempo de contribuição, muito menos com 100% do benefício
(que exige 40 anos de contribuição, para homem; 35 anos para mulher),
remanescendo a possibilidade de uma aposentadoria por idade como segurado
especial ou aposentadoria híbrida.
Quanto à estruturação do artigo, além da presente introdução (tópico
1), o texto segue abordando a situação peculiar da relação de emprego no
meio rural e as dificuldades para obtenção da aposentadoria pelo empregado
rural (tópico 2), e, na sequência, trata do exame das novas regras da
aposentadoria por tempo de contribuição na perspectiva da vulnerabilidade
previdenciária do empregado rural (tópico 3). Por último, serão apresentadas
as considerações finais do estudo (tópico 4).
2 CARACTERÍSTICAS DO EMPREGO NO MEIO RURAL E
VULNERABILIDADE PREVIDENCIÁRIA DO EMPREGADO
Para discutir brevemente a respeito das características laborais e das
condições sociais passíveis de se encontrar no meio rural, é importante frisar
duas questões: o baixo grau de conhecimento acerca dos direitos
previdenciários e o estilo de vida na região rural.
466
Julius César Gurgel de Araújo Lima & Fábio Luiz de Oliveira
Bezerra
Segundo levantamento do IBGE 1
dentre os produtores rurais,
predomina o ensino fundamental incompleto em todas as regiões do Brasil,
com um índice variável entre 50% a 75% a depender do estado.
Com isso, é possível depreender a situação de pouca educação formal
em que a população do campo está inserida, o que denota, por consequência,
pouco conhecimento acerca de seus direitos, incluindo aí os direitos
previdenciários e trabalhistas.
No caso da agricultura, os trabalhadores envolvidos nessa prática
geralmente trabalham na condição de empregado rural, contratado com
carteira assinada em períodos de safra, daí também o nome de trabalhador
safrista; ou trabalham exercendo atividades eventuais no meio rural,
contratados sem vínculo empregatício; ou atuam em agricultura familiar ou
individual, por conta própria, podendo destinar a produção para consumo
próprio ou para comercialização. Essas situações de trabalho rural implicam
enquadramento diferentes no âmbito previdenciário: no primeiro caso, o
trabalhador é segurado empregado rural (art. 11, inciso I, “a”, da Lei nº
8.213/2013); no segundo caso, é contribuinte individual (art. 11, inciso V, Lei nº
8.213/2013); e no terceiro caso, é segurado especial (art. 11, inciso VII, da Lei
nº 8.213/2013).
É crucial que os trabalhadores rurais saibam quando podem ser
contratados como “autônomos”, popularmente conhecida a categoria de
contribuinte individual, e quando devem ser contratados como empregado, com
a devida anotação na carteira de trabalho. A aceitação de uma situação laboral
sem esse discernimento resulta de imediato em pagamentos de verbas
trabalhistas inferiores aos devidos, e, a longo prazo, ao se requerer uma
aposentadoria, o segurado poderá ter seu pedido negado, por questões de
ausência de formalização do seu vínculo empregatício ou por não ter recolhido
as contribuições, dada a caracterização como contribuinte individual.
Não se pode olvidar que ainda hoje há muita contratação de
empregado rural sem formalização adequada, sem anotação na carteira de
trabalho e sem recolhimento das contribuições. Nessa situação, o segurado
1
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Atlas do Espaço Rural
Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2020, p. 35.
467
Aposentadoria por tempo de contribuição após reforma da (...)
deve, antes de requerer algum benefício previdenciário, buscar o
reconhecimento na Justiça do Trabalho do vínculo empregatício, e assim,
contar o tempo, independentemente do recolhimento efetivo feito pelo
empregador. Caso contrário, é enquadrado como contribuinte individual,
cabendo a ele mesmo o recolhimento da contribuição, o que torna
extremamente difícil a sua realização, dada a situação de vulnerabilidade
dessa categoria de segurado.
A baixa instrução dos trabalhadores rurais contribui também para que
eles não tenham total ciência das condições necessárias para seu
enquadramento na terceira categoria de segurado (segurado especial,
conforme enumeração acima), em relação ao qual a legislação previdenciária
não exige contribuição, caso não haja comercialização da produção 2, o que é,
portanto, mais benéfico ao trabalhador.
Para se obter o enquadramento como segurado especial, o trabalhador
rural deve se inscrever perante a Previdência Social, deve possuir um indício
de prova material contemporânea da sua atividade 3 e, somente se houver
eventualmente comercialização da produção, deverá efetuar o recolhimento da
contribuição previdenciária. A falta de prova material da condição de segurado
especial é um dos principais fatores que levam ao indeferimento da
aposentadoria dessa categoria.
É de se ponderar que, diante da situação peculiar dos trabalhadores
rurais, cabe também ao INSS a responsabilidade em divulgar os direitos
previdenciários a esta parcela carente de trabalhadores. De fato, desde a Lei
8.213/1991, foi atribuído à Previdência Social o dever de “manter cadastro dos
segurados com todos os informes necessários para o cálculo da renda mensal
dos benefícios”.
Quando os trabalhadores rurais são contratados como empregados
rurais, que é a situação menos recorrente no campo atualmente, o contratante
realiza a anotação da carteira de trabalho e informa à Previdência Social o
nome e remuneração do segurado, que, dessa forma, passam a constar no
2
No sentido de que não tem direito ao benefício o segurado especial que não recolhe a
contribuição após a Lei 8.398/1992, que conferiu nova redação ao art. 25 da Lei 8.212/1991:
Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AgInt no AREsp 759.029/RJ, Rel. Min. Gurgel de
Faria, Primeira Turma, julgado em 19.09.2019, DJe de 25.09.2019.
3
AMADO, Frederico. Curso de direito previdenciário e processo previdenciário. 12. ed.
Salvador: Juspodivm, 2020, p. 242.
468
Julius César Gurgel de Araújo Lima & Fábio Luiz de Oliveira
Bezerra
cadastro nacional de informações sociais – CNIS. Contudo, quando é
contratado por pessoa física como contribuinte individual, situação em que o
trabalhador não recolhe as contribuições por absoluta falta de sobra de
remuneração ao final do mês, ou quando o trabalhador rural exerce atividade
de subsistência, e não precisa efetuar recolhimento, este segurado fica invisível
para a Previdência Social. Esta somente toma conhecimento dele quando vai
requerer um benefício, e, muitas vezes, indefere porque não houve qualificação
contemporânea ao tempo que se quer comprovar.
Cabe à Previdência Social desenvolver uma política pública proativa,
para não esperar o segurado pedir o benefício para só aí avaliar a sua
condição de segurado especial. Cabe também desenvolver atividade de
orientação dos direitos previdenciários, fazendo com que os trabalhadores
rurais possam ter cuidado de se documentar para no futuro fazer provar da sua
condição.
Em relação ao estilo de vida na região rural, de modo geral, é comum
nessa classe o trabalho para sua própria subsistência, ou seja, para conseguir
o mínimo de dignidade humana. Desse modo, faz-se necessário citar as
relações de trabalho e vínculo empregatício para que se possa fazer um
paralelo entre o contexto da vida no campo e as consequências nas condições
de trabalho das pessoas inseridas nesse contexto.
Algo que se observa comumente nessas áreas rurais são atividades
com jornadas desgastantes, com exposição frequente ao sol, constante
trabalho braçal e utilização de ferramentas precárias que dificultam o trabalho e
colocam em risco a integridade física de quem atua nesse meio. Dentre esses
aspectos, o exercício da agricultura e da pesca, quer seja de subsistência
(segurado especial), quer seja na condição de relação de emprego (segurado
empregado rural), quer seja em atividade eventual (contribuinte individual),
destaca-se como o ofício mais recorrente e percebível nos casos concretos. De
acordo com informe estatístico do INSS, entre junho a setembro de 2023, do
total de 3.706.041 requerimentos solicitados no Brasil, 772.484 tratavam de
benefícios do tipo rural. 4
4
INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Dados quantitativos de requerimentos
administrativos solicitados: Plano de Dados Abertos jun/2023 a jun/2025. Disponível em:
469
Aposentadoria por tempo de contribuição após reforma da (...)
Todas essas “realidades” da vida no campo dificultam a obtenção de
aposentadoria. Antes da EC n° 103/2019, o trabalhador rural poderia obter
aposentadoria por tempo de contribuição, após 35 anos de contribuição, se
homem, ou 30 anos, se mulher. Mas tal benefício era pouco frequentado pelos
trabalhadores rurais, pois, apenas na categoria de segurado empregado rural,
há o efetivo recolhimento.
Assim, antes da EC 103/2019, os trabalhadores rurais, na quase
totalidade, requeriam perante à Previdência Social a aposentadoria por idade,
quando atingida a idade de 60 anos, para homem, e 55 anos para mulher,
ficando para comprovar ou contribuição pelo período de carência (na condição
de segurado empregado e de contribuinte individual) ou exercício da atividade
de subsistência (na condição de segurado especial).
Partindo dessas duas modalidades de aposentadoria e analisando as
circunstâncias daqueles que desempenham atividades rurais como
empregados, é possível chegar à conclusão que muitas dessas pessoas estão
passíveis de problemas relacionados ao seu tempo de contribuição assim
como o requisito legal da carência, haja vista que tais problemas estão
intrinsecamente atrelados ao fato de vários vínculos empregatícios no campo
possuírem prazos curtos (período de safra, plantio ou colheita) e que apenas
ocorrem em alguns momentos específicos do ano.
Um exemplo clássico são os boias-frias, trabalhadores rurais que
atuam em atividade não eventual para o tomador de serviço, mas somente por
alguns meses por ano, em média de 4 a 5 meses, dada a sazonalidade da
atividade. Como bem destacam Lazzari e Castro 5 são “trabalhadores ‘volantes’
que são contratados por um ‘agenciador’ de mão de obra rural para fazer
serviços típicos de relação de emprego rural”.
É comum para essa classe de trabalhador rural ser contratada para
trabalhar apenas em períodos de safra, os quais perduram no máximo em
torno de cinco meses, em consequência disso, passam o restante do ano sem
trabalhar formalmente e sem contribuir com a Previdência Social, dificultando,
assim, o alcance do tempo de contribuição e da carência legal para obtenção
<https://dados.gov.br/dados/conjuntos-dados/dados-de-requerimentos-administrativos-
solicitados-plano-de-dados-abertos-jun-2023-a-jun-2025>. Acesso em 30 dez. 2023.
5
LAZZARI, João Batista; CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Manual de direito
previdenciário. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 252.
470
Julius César Gurgel de Araújo Lima & Fábio Luiz de Oliveira
Bezerra
de aposentadoria por tempo de contribuição. Cabe esclarecer que, se o boia
fria for contratado para serviço eventual do tomador do serviço, não há a
caracterização da relação de emprego, e o trabalhador é considerado segurado
contribuinte individual.
Para amenizar a situação do empregado rural que não tem muita
constância na relação empregatícia durante o ano, por conta das
características do trabalho rural, a Lei nº 11.718/2008 modificou a Lei nº
5.889/1973 (que dispõe de normas reguladoras do trabalho rural), permitindo
que o empregador rural pessoa física pudesse contratar trabalhador rural por
pequeno período para o exercício de atividades de natureza temporária. Dentro
de um período de um ano, a contratação de pequeno prazo não poderia passar
de 2 (dois) meses, caso contrário, ficava convertido em contrato de trabalho por
prazo indeterminado.
A mesma Lei 11.718/2008, em seu art. 3º, flexibilizou o requisito legal
da carência para o trabalhador rural, dispondo que, para o período de janeiro
de 2011 a 2015, o número de contribuição em cada ano é multiplicado por 3
(três) para fins de carência, e, para o período de janeiro de 2016 a dezembro
de 2020, o multiplicador é de 2 (dois). Assim, basta ter 4 (quatro) contribuições
para o primeiro período ou 6 (seis) contribuições no segundo período, para que
todos os 12 meses de cada ano sejam computados como carência.
Essa legislação foi um bom avanço, mas está restrita à competência de
2020. E com o advento da EC n° 103/2019, essa flexibilização da carência para
o trabalhador rural ficou com eficácia limitada à aposentadoria por idade, como
regra de transição. Isto porque, pelas regras permanentes, após EC 103/2019,
há que ser cumprido um tempo mínimo de contribuição, e, como se verá no
tópico seguinte, o tempo mínimo de contribuição não se confunde com
carência, por isso não se lhe aplica a flexibilização trazida pela Lei
11.718/2008.
As novas regras da Previdência Social serão examinadas com mais
vagar no próximo tópico. No presente, cabe ainda reforçar a dificuldade que já
existia para o trabalhador rural se aposentar pelas regras então vigentes.
Com isso em vista, imagine-se a seguinte situação hipotética: um boia-
fria no estado do Pernambuco que trabalha, no corte da cana-de-açúcar, desde
471
Aposentadoria por tempo de contribuição após reforma da (...)
janeiro de 2021, quando completou 18 anos de idade, atuando com carteira
assinada numa média de 4 meses ao ano, ou seja, apenas 4 contribuições por
ano. Utilizando essa média, em 10 anos trabalhados, este segurado atingiria
apenas 40 contribuições, que corresponde a 3 anos e 4 meses de contribuição
efetiva.
Para o segurado hipotético acima, seria necessário, nesse ritmo de
trabalho, um tempo de 45 anos para conseguir toda a carência, fato que, ao
revés, levaria apenas 15 anos caso este mesmo trabalhador estivesse
vinculado a um contrato de trabalho por tempo indeterminado e ininterrupto.
Tendo em conta que ele começou a trabalhar aos 18 anos, apenas aos 63
completaria o requisito da carência.
Nesse caso, pode-se constatar duas coisas: a primeira é que o
segurado se aposentaria em três anos a mais do que previsto (60 anos), se
homem, e oito anos a mais, se mulher (55 anos); e a segunda, e ainda mais
importante, é a de que do ponto de vista fisiológico, pouquíssimos são os
indivíduos que conseguiriam exercer, em sua plenitude, atividades inerentes ao
labor rural de forma ativa por 45 anos. Mesmo que esse trabalho seja de
apenas cinco meses por ano, como no caso dos safristas, ainda assim a
jornada de trabalho é assustadoramente esgotante, impossibilitando muitos
deles de atuar por momentos maiores do que 30 anos em jornadas longas de
trabalho, ou até menos.
3 NOVAS REGRAS DA APOSENTADORIA DO EMPREGADO RURAL E
ALTERNATIVAS PARA A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO SOCIAL À
PREVIDÊNCIA SOCIAL
Constatada a vulnerabilidade no meio rural, passa-se a fazer um
exame das novas regras da aposentadoria por tempo de contribuição, sob a
ótica constitucional, observando por um ângulo prático de seus possíveis
efeitos para classe empregada rural, bem como alternativas à essa regra.
A EC n° 103/2019 alterou profundamente a Previdência Social. 6 Uma
das mudanças substanciais diz respeito à extinção da aposentadoria por tempo
de contribuição, sem idade mínima, que havia até então, não sendo mais
6
LAZZARI, João Batista et al. Comentários à reforma da previdência. Rio de Janeiro:
Forense, 2020, p. 119.
472
Julius César Gurgel de Araújo Lima & Fábio Luiz de Oliveira
Bezerra
possível a sua invocação para os novos ingressantes no Regime Geral da
Previdência. Remanesceu tal benefício, de maneira parcial, para filiados à
Previdência Social até a publicação da Emenda, de acordo com algumas
regras de transição.
A regra permanente está prevista na atual redação do §7º do artigo 201
da CF/1988, segundo o qual o segurado da Previdência tem direito à
aposentadoria aos 65 anos de idade, se homem, e 62 anos de idade, se
mulher, observado tempo mínimo de contribuição, que é, segundo o art. 15 da
EC 103/2019, até que lei sobrevenha, é de 20 anos de tempo de contribuição,
se homem; e 15 anos de tempo de contribuição, se mulher. Esse novo preceito
constitucional, como ressalta Viana 7 , “combina idade mínima e tempo de
contribuição, a exemplo do que ocorre no resto do mundo”.
O tempo mínimo de contribuição estabelecido com a EC 103/2019 não
se confunde com carência de 180 contribuição (equivalente a 15 anos), e, por
isso, a doutrina previdenciária tem entendido que a carência persiste como
requisito legal complementar aos requisitos constitucionais. Assim, para a
obtenção da aposentadoria, o trabalhador deve comprovar a idade (65 anos, se
homem; 62 se mulher), o tempo de contribuição (20 anos, se homem; 15 anos,
se mulher) e a carência (15 anos).
Assentadas as novas regras, cumpre retomar a situação hipotética
antes posta, relativa a um boia-fria que trabalha com carteira assinada por
apenas 4 meses ao ano.
Para completar 20 anos de tempo mínimo de contribuição (ou seja, 240
contribuições mensais), o segurado precisaria trabalhar ao todo 60 anos, pois
somente contribui 4 meses ao ano. Enquanto um empregado urbano precisaria
ter vínculo em 20 anos, o empregado rural safrista somente com um tempo três
vezes maior (60 anos de emprego) conseguiria o mesmo acervo contributivo.
Tendo em conta que ele começou a trabalhar aos 18 anos, apenas aos
78 anos fará jus à aposentadoria por tempo de contribuição, pelas regras
permanentes.
7
VIANA, João Ernesto Aragonés. Direito previdenciário. 8. ed. Barueri: Atlas, 2022, p. 488.
473
Aposentadoria por tempo de contribuição após reforma da (...)
Constata-se que é praticamente impossível para um trabalhador rural,
pelas condições de seu trabalho, manter-se ativo na velhice, a ponto de
trabalhar até 78 anos de idade.
Para o segurado empregado rural safrista, que não tenha direito
adquirido às regras anteriores e que não consiga implementar todos os
requisitos para aposentadoria pelas regras permanentes, caso ele tenha se
filiado à Previdência Social antes da EC n° 103/2019, remanesce a
possibilidade de se enquadrar em alguma das regras de transição. Mas a única
regra de transição favorável ao empregado rural é a do art. 18 da EC n°
103/2019, visto que as demais associam idade e tempo de contribuição, ora
aumentando a idade, ora aumentando o tempo, ou utilizam soma do tempo
com a idade.
Pela regra de transição da aposentadoria por idade (art. 18 da EC n°
103/2019), o segurado deve comprovar idade de 60 anos se homem e 55 anos
se mulher, além de tempo de contribuição de 15 anos. A partir de 1º de janeiro
de 2020, a idade de 60 da mulher, será acrescida em 6 (seis) meses a cada
ano, até atingir 62 anos de idade, que é a idade da regra permanente.
Como o segurado deve contribuir por no mínimo 15 anos, equivalente à
carência de 180 contribuições da regra anterior à EC n° 103/2019 para a
aposentadoria por idade, a mesma dificuldade relatada no tópico anterior se
encontra nesta regra de transição. Agravada pelo fato de que a EC 103/2019
não tratou os 15 anos de contribuição como carência, mas sim como tempo de
contribuição, razão pela qual não se aplica a flexibilização da carência trazida
pela Lei 11.718/2008, conforme se discorreu no tópico anterior.
Analisadas essas novas regras, constata-se o aumento da dificuldade
para a concessão desse tipo de aposentadoria para empregado, especialmente
o empregado rural safrista, que dedica parte de sua vida no labor rural e uma
menor parte no trabalho urbano, com grandes dificuldades de comprovar seu
labor, é praticamente inimaginável esse segurado consiga alcançar o tempo de
contribuição e a carência dessa aposentadoria.
E mesmo conseguindo se aposentar, o empregado rural safrista
certamente só obterá o valor do salário mínimo, visto que as novas regras são
bastante prejudiciais, só conseguindo 100% do benefício com 40 anos de
474
Julius César Gurgel de Araújo Lima & Fábio Luiz de Oliveira
Bezerra
contribuição, se homem; e 35 anos de contribuição, se mulher. Isso de acordo
com o disposto no art. 26, §§ 2º e 5º, da EC n° 103/2019.
Para esse trabalhador conseguir se aposentar em uma idade mais
adequada, só resta a ele trabalhar durante o período de desemprego
(entressafra) por conta própria, como contribuinte individual (recolhendo ele
próprio as contribuições previdenciárias) ou como segurado especial (bastando
comprovar o exercício da atividade rural de subsistência. Na prática,
remanesce apenas a possibilidade de exercer atividade de subsistência, visto
que a contratação de contribuinte individual no campo é muito rara.
Assim, trabalhando como segurado especial na entressafra do
emprego, o trabalhador poderá obter a denominada aposentadoria híbrida, na
qual o tempo de contribuição como empregado é somado com o tempo de
atividade rural de subsistência para obtenção de aposentadoria por idade.
Sobre a aposentadoria híbrida, Lazzari e Castro 8 discorrem que é
possível a contagem, para fins de carência, “de períodos de contribuição, tanto
como segurado urbano ou como rural, e de períodos de atividade, com ou sem
a realização de contribuições facultativas, de segurado especial”.
A aposentadoria híbrida é, pois, aquela concedida para quem atinge a
idade necessária e a carência mínima, unindo as contribuições rurais e urbanas
do segurado. Mas o segurado, ao optar por essa aposentadoria, deve
comprovar a idade mínima da aposentadoria urbana, não da aposentadoria
rural, que é reduzida em cinco anos. Ou seja, deve comprovar idade de 65
anos, se homem, ou 60 anos, se mulher.
Assim, por conta da elevação da idade, nem sempre é benéfica a
aposentadoria híbrida, devendo ser examinada caso a caso. No caso hipotético
do boia fria acima apresentado, o segurado se aposentaria aos 63 anos de
idade. Mesmo ultrapassando em 3 anos da idade rural para se aposentar, é
uma situação melhor que trabalhar na atividade de subsistência até 65 anos de
idade, para requerer aposentadoria híbrida.
Em síntese, uma pessoa que atuou arduamente em alguns períodos da
sua vida no campo não poderá se beneficiar da diminuição da idade mínima
8
LAZZARI, João Batista; CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Manual de direito
previdenciário. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 973.
475
Aposentadoria por tempo de contribuição após reforma da (...)
para se aposentar e com isso, volta-se ao ponto da vulnerabilidade daqueles
que se enquadram nessa situação, pois, além do exercício de atividade
exaustiva no campo e média baixa de contribuições previdenciárias por ano,
soma-se a isso a necessidade de esperar mais 5 (cinco) anos de idade mínima
para alcançar a tão sonhada aposentadoria. Como forma de agravo, ainda
existe a possibilidade de alguns dos vínculos empregatícios que esse
trabalhador teve durante sua vida não serem registrados, diminuindo o
cômputo de contribuições e as chances da aposentadoria ser concedida.
As novas regras de aposentadoria, justamente por serem inatingíveis
pelo empregado rural safrista, não estão condizentes com o núcleo essencial
do direito social previdenciário em questão. Entende-se não ter havido
equidade nem conteúdo justo nas novas mudanças no que concerne a
específica da população (empregado rural), notadamente os safristas.
Somente quando associadas com as regras da aposentadoria híbrida,
o empregado rural safrista consegue visualizar a longo prazo uma
aposentadoria. E para o empregado rural safrista, que não exerça atividade
urbana, e na entressafra do emprego realize atividade de subsistência, terá o
direito à aposentadoria como segurado especial, com a idade reduzida do
trabalhador rural, só assim concretizando efetivamente esse direito social. Não
há, pois, uma ofensa direta e integral à CF/1988 e seus princípios
constitucionais.
Quanto à forma de cálculo da aposentadoria, prevista no art. 26, § 3º,
II, da EC 103/2019, em que pese certa redução excessiva da proteção social,
de 100% para 60%, o Supremo Tribunal Federal, em recente acórdão, datado
de 23 de junho de 2023, ao apreciar as ADIs 6.271, 6.367, 6.385 e 6.916,
declarou a constitucionalidade do percentual da média das contribuições (de
maneira indireta, ao dispor sobre o art. 26, § 3º, II, da EC 103/2019).
4 CONCLUSÃO
A pesquisa levado a campo por este trabalho constatou que o
segurado da Previdência Social da categoria empregado rural encontra-se, de
maneira geral, em estado de grande vulnerabilidade, visto que não consegue
trabalhar constantemente durante o ano inteiro, estando sujeito à sazonalidade
476
Julius César Gurgel de Araújo Lima & Fábio Luiz de Oliveira
Bezerra
de sua atividade, e, por isso, fica em migrações constantes entre a zona rural e
urbana.
Examinou-se com vagar a situação dos trabalhadores safristas, que
são contratados para exercerem atividades esporádicas ou mesmo atividades
não eventuais, mas em poucos meses durante o ano. Exercendo atividade
eventual é considerado contribuinte individual para Previdência Social, e
exercendo atividade não eventual é caracterizado como segurado empregado
rural.
Essa sazonalidade de sua contratação gera uma dificuldade muito
grande de o empregado rural conseguir atingir o tempo mínimo de contribuição
para se aposentar pela regra permanente ou mesmo atingir a carência legal
para se aposentar por idade pela regra de transição. E mesmo conseguindo se
aposentar, o empregado rural safrista certamente só obterá o valor do salário
mínimo, visto que as novas regras são bastante prejudiciais, só conseguindo
100% do benefício com 40 anos de contribuição, se homem, 35 anos, se
mulher.
Evidenciou-se ainda a falta de formalização da contratação desses
segurados rurais, sem anotação na carteira de trabalho e sem recolhimento
das contribuições. Nessa situação, cabe ao segurado buscar o reconhecimento
na Justiça do Trabalho do vínculo empregatício, e assim, contar o tempo,
independentemente do recolhimento efetivo feito pelo empregador; ou é
enquadrado como contribuinte individual, cabendo a ele mesmo o recolhimento
da contribuição, o que é inviável, diante da situação de vulnerabilidade dessa
categoria de segurado.
Para poder sobreviver e obter renda para o sustento de sua família, o
segurado empregado rural safrista é impelido a exercer, durante os lapsos de
desemprego, outras atividades, sejam urbanas, sejam rurais. Nos períodos
ociosos, muitos desses migram para região urbana em busca de emprego,
muitas vezes, por motivos de força maior, são obrigados a passar mais tempo
na região urbana do que previsto, fato que incide e canaliza diretamente nas
contribuições urbanas por períodos maiores que o tolerado para a concessão
da aposentadoria rural (art. 11, §9º, III, da Lei 8.213/1991).
477
Aposentadoria por tempo de contribuição após reforma da (...)
Verificou-se que a opção que o segurado empregado rural safrista tem
para concretização do direito social à aposentadoria é buscar enquadramento
na aposentadoria híbrida ou na aposentadoria por idade do segurado especial.
REFERÊNCIAS
AMADO, Frederico. Curso de direito previdenciário e processo
previdenciário. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de
Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília, DF:
Diário Oficial da União, 1991.
BRASIL. Lei nº 11.718, de 20 de junho de 2008. Acrescenta artigo à Lei no
5.889, de 8 de junho de 1973, criando o contrato de trabalhador rural por
pequeno prazo; estabelece normas transitórias sobre a aposentadoria do
trabalhador rural. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2008.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AgInt no AREsp 759.029/RJ,
Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, j. 19.09.2019, DJe
25.09.2019.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Atlas do
Espaço Rural Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.
INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. Dados quantitativos de
requerimentos administrativos solicitados: Plano de Dados Abertos
jun/2023 a jun/2025. Disponível em:
<https://dados.gov.br/dados/conjuntos-dados/dados-de-requerimentos-
administrativos-solicitados-plano-de-dados-abertos-jun-2023-a-jun-
2025>. Acesso em 30 dez. 2023.
LAZZARI, João Batista; CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Manual de
direito previdenciário. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
LAZZARI, João Batista et al. Comentários à reforma da previdência. Rio de
Janeiro: Forense, 2020.
VIANA, João Ernesto Aragonés. Direito previdenciário. 8. ed. Barueri: Atlas,
2022.
478
A influência da Convenção Internacional de Belém do Pará na
construção do protocolo para julgamento com perspectiva de
gênero do Conselho Nacional de Justiça brasileiro e sua
efetividade
Heloísa Gomes da Silva1
Beatriz de Sousa Perez2
Cátia Rejane Mainardi Liczbinski3
INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher é um problema grave que afeta milhões de
pessoas em todo o mundo. No Brasil, a violência contra a mulher é uma das
principais causas de feminicídio e para combater essa agressão é importante
que o ordenamento jurídico brasileiro reconheça a perspectiva de gênero no
julgamento desses casos.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero criado pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2021, é um documento importante para
a promoção da igualdade de gênero no ordenamento jurídico brasileiro. O
protocolo estabelece diretrizes para que os julgamentos no âmbito do Poder
Judiciário sejam realizados com a devida consideração das questões de gênero.
Além de reconhecer a importância da perspectiva de gênero no
julgamento de casos envolvendo violência contra a mulher, também traz
orientações específicas para os juízes e juízas, incluindo, como identificar a
violência e como proferir sentenças justas e eficazes nos casos de violência
contra a mulher.
A implementação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de
Gênero é um importante passo para a promoção da igualdade de gênero no
ordenamento jurídico brasileiro. Afinal, o protocolo pode contribuir para a
redução da violência contra a mulher, a melhoria do acesso das mulheres à
justiça e o fortalecimento da igualdade de gênero na sociedade brasileira, que
são alguns dos objetivos da convenção de Belém do Pará.
479
A influência da Convenção Internacional de Belém do Pará (...)
Portanto, esse trabalho busca analisar a relação entre o Protocolo e a
Convenção de Belém do Pará. Com isso, o procedimento utilizado para
consolidar esse trabalho se dá através de revisão bibliográficas, estudos de caso
e estudos doutrinários para que possamos nos inserir devidamente na
problemática.
A metodologia utilizada foi o Dedutivo, partindo da análise geral para a
conclusão. Iniciando com a definição do que é a Convenção de Belém do Pará
e sua importância, para a seguir compreender o Protocolo para Julgamento com
Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de justiça e os avanços que trouxe
para a legislação brasileira. Em seguida, analisa-se o Protocolo para Julgamento
com Perspectiva de Gênero com base na Convenção de Belém do Pará (1994)
para mostrar sua efetividade. E, por fim, a conclusão na qual se dá contornos e
perspectivas finais sobre o tema.
2. A CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ E SUA IMPORTÂNCIA
LEGISLATIVA PARA A AMÉRICA LATINA
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher é popularmente conhecida como Convenção de Belém do Pará.
Trata-se de um instrumento finalizado e ratificado na conferência da
Organização dos Estados Americanos, que aconteceu em 9 de junho de 1994,
na cidade de Belém do Pará (Brasil), e entrou em vigor em 3 de fevereiro de
1995, tratado adotado pela Comissão Interamericana de Mulheres. Estabelece
uma série de diretrizes para a prevenção, punição e erradicação da violência
contra as mulheres, incluindo a violência doméstica, a violência sexual, a
violência por causa do parentesco e a violência institucional. Ou seja, é um
Tratado Internacional legalmente vinculante que criminaliza todas as formas de
violência contra a mulher, em especial a violência sexual.
A Comissão Interamericana de Mulheres, desde 1990, realizou estudos
que serviram como embasamento para a criação do texto da Convenção, com o
objetivo de suprir a carência do Sistema Interamericano nesse aspecto. Criando,
assim, um instrumento internacional o qual contribui para diminuição e ou
erradicação da violência contra a mulher.
480
Heloísa Gomes da Silva, Beatriz de Sousa Perez & Cátia Rejane
Mainardi Liczbinski
O Tratado foi responsável por conceituar e reconhecer a violência contra
a mulher como uma violação dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais, limitando ao todo ou parcialmente a observância, gozo e exercício
de tais direitos e liberdades como é dito no preâmbulo da convenção.
Além disso, determina que as mulheres têm o direito de viver uma vida
livre de violência e objetiva fomentar a capacitação pessoal de mulheres e a
criação de serviços voltados àquelas que possuíram algum direito violado.
O artigo quinto da Convenção dispõe que:
Toda mulher poderá exercer livre e plenamente seus direitos civis,
políticos, econômicos, sociais e culturais e contará com a total proteção
desses direitos consagrados nos instrumentos regionais e
internacionais sobre direitos humanos. Os Estados Partes reconhecem
que a violência contra a mulher impede e anula o exercício desses
direitos.
(Quinto artigo, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher)
A Convenção define a violência contra as mulheres como "qualquer ato
ou conduta baseada no gênero que cause dano físico, sexual ou psicológico à
mulher, tanto na esfera pública quanto na esfera privada". O documento abrange
uma ampla gama de formas de agressão, incluindo a violência doméstica, a
violência sexual, a violência por causa do parentesco e a violência institucional.
A Convenção estabelece uma série de diretrizes para a prevenção,
punição e erradicação da violência contra as mulheres. Essas diretrizes incluem
a adoção de medidas legislativas, administrativas e de outra natureza para
prevenir a violência contra as mulheres; a criação de mecanismos para a
proteção e assistência as vítimas; a promoção da educação e conscientização
sobre o que configura essa violência; e a promoção da igualdade entre homens
e mulheres.
A Convenção de Belém do Pará exerce importante papel legislativo na
promoção da igualdade de gênero e na proteção dos direitos das mulheres na
América Latina. O documento tem contribuído para o avanço da legislação e da
jurisprudência sobre a violência contra as mulheres na região e foi ratificado por
12 países, sendo estes: Argentina, Bahamas, Barbados, Bolívia, Brasil, Costa
Rica, Chile, Dominica, Equador, El Salvador, Guatemala, Guiana, Honduras,
México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, São
481
A influência da Convenção Internacional de Belém do Pará (...)
Cristóvão e Nevis, São Vicente e Granadinas, Santa Lúcia, Trinidad e Tobago,
Uruguai e Venezuela. Entretanto, até março de 2020, 32 dos 35 estados
membros da Organização dos Estados Americanos ratificaram ou aceitaram o
documento, exceções sendo Cuba, Estados Unidos e Canadá (MESECVI,
2020).
A Convenção tem sido utilizada por organizações de mulheres e outros
grupos da sociedade civil para promover a mudança social e exigir o
cumprimento dos direitos das mulheres. O documento tem sido também utilizado
por tribunais e outros órgãos judiciais para fundamentar decisões que
reconhecem os direitos das mulheres vítimas de violência.
Dessa forma, o instrumento tem o objetivo de alcançar a equidade entre
os gêneros e incentivar a criação de mecanismos estatais para a proteção aos
direitos das mulheres, os quais tem o propósito de modificar os padrões
socioculturais de violência e discriminação contra a mulher estabelecidos nas
sociedades da organização. Sendo assim, ao estimular a criação destas leis, o
instrumento busca romper com o ciclo de violência contra a mulher em escala
latino-americana e busca romper com a perspectiva de que só há desrespeito
aos direitos humanos na esfera privada, responsabilizando também os Estados
em relação ao seu papel no combate a violência contra a mulher. Isto posto, a
convenção tem o compromisso efetivo na erradicação da violência.
O tratado tem contribuído para a melhoria da proteção das mulheres
vítimas de violência na América Latina, mas, apesar dos avanços trazidos pela
Convenção, ainda existem desafios para sua implementação. Alguns dos
principais desafios incluem a falta de recursos para a implementação, a falta de
conscientização sobre a violência contra as mulheres e a resistência de alguns
setores da sociedade à mudança de valores e atitudes.
Desse modo, ao ratificar a Convenção, a Organização dos Estados
Americanos estava segura de que a eliminação da violência contra a mulher era
uma condição indispensável para que as mulheres se desenvolvessem individual
e socialmente de maneira plena e igualitária em todas as esferas da vida. Bem
como, a organização estava convencida de que a ratificação da convenção
contribuiria positivamente no contexto de proteger os direitos da mulher e
eliminar as situações de violência.
482
Heloísa Gomes da Silva, Beatriz de Sousa Perez & Cátia Rejane
Mainardi Liczbinski
Assim, para ratificar a Convenção, os Estados assumiram o compromisso
de promover e apoiar programas de educação públicos e privados que tivesse
como objetivo conscientizar a sociedade sobre os problemas relacionados a
violência contra a mulher e necessidade de adotar posturas socioculturais que
contribuíssem para erradicação dessa violência. Os Estados, ao ratificar o
instrumento, se comprometeram em educar e treinar os profissionais do
judiciário, policial e demais funcionários responsáveis pela aplicação da lei e
implementação de políticas de prevenção, punição e erradicação da violência
contra a mulher.
Para superar esses desafios, é necessário investir na implementação da
Convenção por meio da realização de ações que promovam a conscientização
sobre a violência contra as mulheres, invocando, assim, novos posicionamentos
e mudança de valores e atitudes na sociedade.
3. O PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO
DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA E OS AVANÇOS QUE TROUXE
PARA A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
O Brasil é um País com uma longa história de desigualdade de gênero.
As mulheres, historicamente, têm sido vítimas de discriminação e violência, o
que se reflete na legislação brasileira. O Protocolo para Julgamento com
Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça, é um importante
instrumento para a promoção da igualdade de gênero na justiça brasileira e foi
elaborado por um grupo de trabalho do CNJ, composto por magistrados, juristas
e especialistas em gênero. O documento estabelece diretrizes para que os
julgamentos no âmbito do Poder Judiciário sejam realizados com a devida
consideração das questões de gênero.
No documento são dispostas diversas temáticas, dentre elas, têm-se: a
violência de gênero; a discriminação de gênero; os direitos das mulheres; e a
participação das mulheres na justiça, e representa um importante avanço para a
legislação brasileira, pois reconhece a importância da perspectiva de gênero na
justiça, fornece diretrizes claras para a aplicação da perspectiva de gênero nos
julgamentos é uma das ferramentas de promoção da igualdade de gênero.
483
A influência da Convenção Internacional de Belém do Pará (...)
O Protocolo foi aprovado pelo CNJ, em 2023, e tornou-se obrigatório para
todos os Tribunais brasileiros. A aplicação do Protocolo ainda é inicial, mas já é
possível identificar alguns avanços, como o aumento da conscientização sobre
as questões de gênero no âmbito da justiça; o aprimoramento da legislação e da
jurisprudência sobre direitos das mulheres; e o aumento da participação das
mulheres na justiça.
O Protocolo deverá contribuir para a garantia da justiça para as mulheres,
ao levar em consideração as questões de gênero nos julgamentos., porém é
cercado de desafios, visto que a resistência de alguns atores do sistema de
justiça é de extrema relevância, tanto pela sua falta de familiarização com a
perspectiva de gênero, tanto pela falta de recursos para a formação e
capacitação dos profissionais do sistema de justiça e apenas com o fomento,
acima de tudo, na formação e capacitação dos profissionais do sistema de
justiça, bem como na sensibilização da sociedade sobre a importância da
perspectiva de gênero na justiça será possível observar a consolidação do
Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero nos Tribunais.
4. ANÁLISE DO PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA
DE GÊNERO COM BASE NA CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ (1994):
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero foi criado pelo
Conselho Nacional de Justiça Brasileiro e publicado em 2021.Fruto de estudos
feitos pelo grupo de trabalho determinado pela portaria do CNJ n. 27, de 2 de
fevereiro de 2021, que tinha o objetivo de escrever o Protocolo.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero foi escrito para
ajudar a implementação das Resoluções n°254 e n° 255 de, 4 de setembro de
2018, do CNJ, as quais, respectivamente, têm o objetivo de instituir a Política
Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres pelo Poder
Judiciário; e dar outras providências como instituir a Política Nacional de
Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário.
Com isso, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero
Brasileiro tem como base o Protocolo para Juzgar con Perspectiva de Género
484
Heloísa Gomes da Silva, Beatriz de Sousa Perez & Cátia Rejane
Mainardi Liczbinski
criado pela Suprema Corte de Justicia de la Nación do Estado do México de
2013. Entretanto, há outros documentos legislativos internacionais que têm o
mesmo objetivo ou finalidade. A exemplo, o Protocolo De Juzgamiento Con
Perspectiva De Género Interseccional Para La Jurisdicción Constitucional
escrito pelo Tribunal Constitucional Plurinacional de Bolívia, o Protocolo de
administración de justicia con enfoque de género del Poder Judicial escrito pela
Comisión De Justicia De Género Del Poder Judicial do Peru de 2022, Conceptos
básicos para juzgar con perspectiva de género escrito por Oficina de Jurados
Populares e Tribunal Superior de Justicia de Córdoba(Argentina) em 2022.
Nesse sentido, este tópico tem o objetivo de fazer uma análise e/ou
correlação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Brasil
com base na Convenção de Belém do Pará.
Portanto, no prefácio do Protocolo é comunicado que este tem como base
o “Protocolo para Juzgar con Perspectiva de Género” do México. Já o protocolo
mexicano foi escrito tendo em vista a determinação da Corte Interamericana de
Direitos Humanos a este país devido aos casos González e outros (Campo
Algodonero), Fernández Ortega e outros, e Rosendo Cantú e outros que
denunciavam a gravidade e sistematização que era a violência contra as
mulheres no país. E como também, o protocolo mexicano informa que a norma
foi baseada institucionalmente na Convenção sobre a eliminação de todas as
formas de discriminação contra as mulheres e na Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Afinal, referindo-se
à Convenção de Belém do Pará o protocolo mexicano, na página 101, informa:
"Em outras palavras, o que tem sido chamado de julgar com
perspectiva de gênero é construída a partir das obrigações e medidas
estabelecidas diretamente na Convenção, dando lugar a uma
ferramenta que permite perceber o papel que o gênero desempenha
na esfera individual e social. Assim, a Convenção obriga as
autoridades de qualquer Estado, incluindo os mexicanos, para adotar
medidas normativas e modificar práticas que permitem ou toleram a
violência contra a mulher, bem como medir suas consequências,
conscientizar sobre seus efeitos e ser treinado na forma como essa
violência condiciona o exercício de todas as seus direitos humanos.
Para isso, o tratado exige ações que reconheçam as desigualdades
entre os gêneros e eliminem todos os estereótipos baseados sobre a
inferioridade das mulheres, nenhuma das quais poderia ser alcançada
no âmbito jurisdicional sem conferir justiça com perspectiva de gênero."
(Protocolo para Juzgar con Perspectiva de Género,p. 101)
485
A influência da Convenção Internacional de Belém do Pará (...)
Nesse sentido, mesmo que o Protocolo para Julgamento com Perspectiva
de Gênero tenha tido a sua objetivação ao adotar o modelo de protocolo latino-
americano de investigação de mortes violentas de mulheres por razões de
gênero (feminicídio), cuja adesão do Brasil ocorreu em 2016. A norma ao se
basear no Protocolo para Juzgar con Perspectiva de Género Mexicano,
consequentemente, inspira-se na Convenção sobre a eliminação de todas as
formas de discriminação contra as mulheres e na Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Desse modo, a
nação respeita a recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos
de adoção de protocolos oficiais de julgamentos com perspectiva de gênero.
Do mesmo modo, No "Capítulo III” da Convenção de Belém do Pará
"Deveres dos Estados" no 7° artigo aduz:
Os Estados-partes condenam todas as formas de violência contra a
mulher e concordam em adotar, por todos os meios apropriados e sem
demora, políticas orientadas e prevenir, punir e erradicar a dita
violência e empenhar-se em:
Inciso 6. estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a
mulher que tenha submetida a violência, que incluam, entre outros,
medidas de proteção, um julgamento oportuno e o acesso efetivo a tais
procedimentos (Convenção de Belém do Pará)
Neste artigo, pode-se perceber bem a influência da Convenção com a
construção do Protocolo. Afinal, a Convenção informa que é necessário que os
Estados-Partes da OEA devem estabelecer procedimentos jurídicos justos e
eficazes para erradicar a violência de gênero e o Protocolo se propõe a ser um
guia para orientar a magistratura brasileira no julgamento de casos concretos
para que se alcance uma igualdade substantiva.
Em seguida, no "Capítulo III" da Convenção de Belém do Pará "Deveres
dos Estados" o 8º artigo aduz:
Os Estados-partes concordam em adotar, em forma progressiva,
medidas específicas, inclusive programas para:
Inciso II. modificar os padrões sócio-culturais de conduta de homens e
mulheres, incluindo a construção de programas de educação formais e
não-formais apropriados a todo nível do processo educativo, para
contrabalançar preconceitos e costumes e todo outro tipo de práticas
que se baseiem na premissa da inferioridade ou superioridade de
qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a
mulher ou legitimam ou exacerbam a violência contra a mulher.
(Convenção de Belém do Pará)
486
Heloísa Gomes da Silva, Beatriz de Sousa Perez & Cátia Rejane
Mainardi Liczbinski
O Protocolo ao comunicar a diferença de "neutralidade e imparcialidade"
e seus impactos no Poder Judiciário ele informa:
"Um julgamento imparcial pressupõe, assim, uma postura ativa de
desconstrução e superação dos vieses e uma busca por decisões que
levem em conta as diferenças e desigualdades históricas, fundamental
para eliminar todas as formas de discriminação contra a mulher.
Considerar que os estereótipos estão presentes na cultura, na
sociedade, nas instituições e no próprio direito, buscando identificá-los
para não se submeter à influência de vieses inconscientes no exercício
da jurisdição é uma forma de se aprimorar a objetividade e, portanto, a
imparcialidade no processo de tomada de decisão. Além disso, a
compreensão crítica de que a pessoa julgadora ocupa uma posição
social, que informa a sua visão de mundo, muitas vezes bem diversa
das partes, reduz a possibilidade de se tomar uma decisão que
favoreça a desigualdade e a discriminação. O enfrentamento das
várias verdades em jogo na relação processual, a identificação de
estereótipos e o esforço para afastar eventuais prejulgamentos
decorrentes de vieses inconscientes auxiliam, portanto, na percepção
de uma realidade mais complexa e na construção da racionalidade
jurídica mais próxima do ideal de justiça."(Protocolo para Julgamento
com Perspectiva de Gênero, página 34).
Dessa maneira, percebe-se que o Protocolo para Julgamento com
Perspectiva de Gênero ao propor um julgamento imparcial cumpre o
normatizado pelo artigo 8° da Convenção, afinal o protocolo propõe tentar
desconstruir para no futuro eliminar as desigualdades de gênero e assim, todas
as formas de discriminação contra a mulher. De modo que, constrói um programa
de construção de forma progressiva, medidas específicas e objetivas que se
propõe a erradicar a violência contra a mulher e principalmente, ajuda a construir
uma realidade jurídica justa e igualitária para a sociedade.
Com isso, o Protocolo do Conselho Nacional de Justiça busca, além de
modificar a forma de julgamento no Poder Judiciário para uma forma mais
igualitária, anseia, também, ajudar a transformar a perspectiva social dos
magistrados. Dessa forma, objetiva que eles possam compreender o porquê de
deverem agir em consonância com Protocolo, postura que impactará na visão
da sociedade em relação a discriminação e a desigualdade social de gênero.
Destarte, com essa pequena exposição é possível identificar a correlação
entre as duas normativas e seus objetivos associados. Afinal, é perceptível
como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero é uma normativa
que busca fazer com que o normatizado na Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
487
A influência da Convenção Internacional de Belém do Pará (...)
5. A EFETIVIDADE ESPERADA DO PROTOCOLO PARA JULGAMENTO
COM PERSPECTIVA DE GÊNERO
Como exposto anteriormente, o Protocolo para Julgamento com
Perspectiva de Gênero foi criado com objetivo de conduzir a magistratura no
julgamento de casos concretos, com a finalidade de que magistradas e
magistrados julguem sob a lente de gênero, avançando na efetivação da
igualdade e nas políticas de equidade. Com isso, a norma respeita o “modelo de
protocolo latino-americano de investigação de mortes violentas de mulheres por
razões de gênero (feminicídio)” que o Brasil aderiu em 2016, e observa a
recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos de adoção de
protocolos oficiais de julgamentos com perspectiva de gênero.
Portanto, o regulamento como dito em seu prefácio propõe a participação
de todos os segmentos da justiça (estadual, federal, trabalhista, militar e
eleitoral) e tem o propósito de atingir a igualdade de gênero. Desse modo, a
norma traz reflexões sobre a questão da igualdade e é um guia para os
julgamentos que ocorrem nos diversos âmbitos da Justiça possam ser aqueles
que realizem o direito à igualdade e à não discriminação das pessoas e assim,
constrói um espaço de rompimento com a cultura de discriminação e de
preconceitos.
É esperado pelo Conselho Nacional de Justiça e pela Escola Nacional de
Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados que com o protocolo possa ser
alcançada a igualdade de gênero, recomendação do ODS 5 Objetivo de
Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU.
Como também, é perceptível de acordo com a apresentação do Grupo de
Trabalho responsável pela elaboração deste protocolo como o documento
objetiva garantir a inafastabilidade constitucional exigida pelo artigo 5° inciso
XXXV da Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito; (Constituição Federal)
488
Heloísa Gomes da Silva, Beatriz de Sousa Perez & Cátia Rejane
Mainardi Liczbinski
Afinal, como dito na introdução do documento, ele tem como propósito
que os processos sejam julgados sob a lente de gênero, avançando na
efetivação da igualdade e nas políticas de equidade. Portanto, ao julgar com a
lente de gênero, o poder judiciário deverá não excluir lesão ou ameaça de direito.
Com isso, o principal objetivo com o protocolo é que a sociedade possa
alcançar a percepção de igualdade e dignidade entre homens e mulheres, em
todas as instâncias. E com isso, os esforços sejam para a superação dos
percalços que impossibilita a percepção de uma igual dignidade entre mulheres
e homens, em todos os cenários.
Sendo assim, percebe-se a um pouco da efetividade do protocolo ao
perceber as as iniciativas adotadas com o objetivo de garantir a aplicação da Lei
Maria da Penha como as Jornadas de Trabalho do Conselho Nacional de Justiça
e o Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar
(Fonavid) e como também, as a instalação de coordenadorias atinentes à
temática da violência contra a mulher nos tribunais de justiça. Com isso, percebe-
se os avanços para a erradicação da violência contra a mulher nos tribunais de
justiça e também, a melhoria nos serviços da assistência à população e
principalmente à comunidade feminina.
Dessa forma, é necessário também citar ao tentar entender a efetivação
do protocolo ao lembrar das novas decisões Supremo Tribunal Federal, as quais
avançam no reconhecimento às minorias do direito à igualdade, como as
decisões sobre união homoafetiva, reconhecimento da autodeterminação de
identidade de gênero, concessão de prisão domiciliar para gestantes e mães e
a exclusão da contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade como os
citados na apresentação do grupo de trabalho responsável pelo protocolo.
Por fim, é importante citar o considerável trabalho que as associações de
magistratura brasileira, como Associação dos Magistrados Brasileiros, a
Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho e a Associação
dos Juízes Federais do Brasil estão fazendo para aumentar a abrangência do
diálogo, da demanda e necessidade da inserção de um discurso com a
perspectiva da igualdade de gênero no dia a dia da sociedade. E dessa maneira,
essas associações começaram a construir projetos de capacitações a
magistrados e magistradas na temática de igualdade de gênero e como também,
489
A influência da Convenção Internacional de Belém do Pará (...)
apresentaram solicitações com o mesmo objetivo ao Conselho Nacional de
Justiça e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados e
ao Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do
Trabalho com isto percebe-se o empenho que a sociedade está fazendo para
que a igualdade de gênero seja alcançada.
Desse modo, percebe-se como o judiciário brasileiro está há algum tempo
tentando erradicar a desigualdade de gênero e a violência contra a mulher da
sociedade e do ordenamento jurídico brasileiro, e mesmo que a passos lentos
está conseguindo. Sendo assim, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva
de Gênero traz um olhar mais objetivo e eficaz para a erradicação da violência
de gênero e orienta o judiciário no julgamento de casos concretos para que se
alcance a igualdade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero foi criado pelo
Conselho Nacional de Justiça Brasileiro e publicado em 2021, entretanto
somente após a Resolução nº 492/2023 de 17 de março de 2023 é que se tornou
obrigatório sua adoção no ordenamento jurídico. Desse modo, a resolução nº
492/2023 tornou obrigatório a capacitação de magistradas e magistrados,
relacionado a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva
interseccional.
Com isso, nesta análise do protocolo buscou-se perceber e demonstrar
como o documento está inteiramente conectado e se originou de estudos com
base na Convenção de Belém do Pará, ou melhor Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Afinal, é necessário
reiterar como a Convenção de Belém do Pará é importante e necessária para a
luta da igualdade de gênero na América Latina e que ela em conjunto com a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas De Discriminação Contra
As Mulheres transformou e continua transformando o cenário jurídico latino-
americano para com uma conjutura com os direitos das mulheres em
perspectiva.
Como também, o artigo evidenciou como o Protocolo para Julgamento
com Perspectiva de Gênero impacta e poderá impactar o ordenamento jurídico
490
Heloísa Gomes da Silva, Beatriz de Sousa Perez & Cátia Rejane
Mainardi Liczbinski
brasileiro, trazendo exemplos atuais e citando outros que espera- se no futuro.
Ademais, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero está sendo
proposto pelo CNJ para erradicar a violência de gênero no judiciário brasileiro e
com isso, com julgamentos com perspectiva de igualdade gênero possa ajudar
a impactar a sociedade em geral e assim, alcançar-se a igualdade de gênero na
sociedade brasileira.
Desse modo, o artigo buscou identificar a importância do documento para
o ordenamento jurídico brasileiro e seu impacto na sociedade, trazendo a
perspectiva que o protocolo é uma implementação da Convenção de Belém do
Pará.
REFERÊNCIAS
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Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,
concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Brasília, DF: Presidência
da República, 1996. Disponível em: < https://www.planalto.
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BRASIL. Decreto n. 4.377, de 13 de setembro de 2002. Promulga a Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de
1979, e revoga o Decreto n° 89.460, de 20 de março de 1984. Brasília, DF:
Presidência da República, 2002. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm> . Acesso em: 12
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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para julgamento com perspectiva de
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COSTA, A. P. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero: um avanço para a
justiça brasileira. Revista da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de
Magistrados, v. 24, n. 3, p. 12-22, 2022.
COMISIÓN DE JUSTICIA DE GÉNERO DEL PODER JUDICIAL DEL PÉRU. Protocolo de
Administración de Justicia Con Enfoque de Género Del Poder Judicial- Cartilla
Informativa. Lima: Comisión De Justicia De Género,2022.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Resolução n. 492, de 17 de março de 2023.
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491
A influência da Convenção Internacional de Belém do Pará (...)
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Resolução n.º 255, de 04 de setembro de 2018,
Institui a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder
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492
Dromologia e a usuarialização do ser: a velocidade e a
efetivação dos direitos humanos no plano virtual
Diego de Medeiros Santos 1
Ubirathan Rogerio Soares 2
“[...] quanto mais cresce a rapidez, mais decresce a liberdade”
(Paul Virilio, 1996)
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo apresentará discussões sobre a Dromologia enquanto
ciência e fenômeno social, a partir de uma análise em que vincula a esta à
necessidade de avanços dos Direitos Humanos no plano virtual das relações
sociais. Nessa perspectiva, o artigo se dispõe a analisar fatores teóricos e
conceituais sobre a dromologia, à exemplo do vetor velocidade, o ciberespaço e
os respectivos impactos à sociedade moderna.
Nesse segmento, o trabalho apresenta a reflexão sobre a ausência de
uma geração de direitos humanos que se dedique a proteção virtual dos
indivíduos, posto que, ao observar as existentes, têm-se que, à exemplo, a
geração de liberdade e globalização não possuem bases que se destinam a
proteção dos sujeitos de direitos enquanto usuários das redes tecnológicas.
Nesse sentido, faz-se pertinente o questionamento no sentido de que o
fenômeno dromológico é um vilão para a ciência do Direito ou apenas mais um
incidente social. Isso porque as transformações socias são tão voláteis na
sociedade moderna que o Direito passa a não conseguir acompanha-las e,
sendo o Direito uma ciência derivada das relações sociais, este pode estar sendo
insuficiente na sua tutela diante da sociedade.
1
Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Membro
do Projeto de Pesquisa Governo Digital-UFRN. Membro do Grupo de Pesquisa Direito
Administrativo Brasileiro-UFRN/CNPq. Monitor da Disciplina Antropologia Jurídica. Contato:
[email protected]
2
Pós-doutor pela Universidade de Coimbra/Portugal na área de História Moderna e
Contemporânea. Doutor em História das Sociedades Americanas e Ibero-americanas pela
Pontifícia Universidade Católica/RS. Professor Associado da UFRN nas áreas de História
Moderna, Antropologia Jurídica e Sociologia. Coordenador do projeto de monitoria “Antropologia
Jurídica e o Direito”. Contato: [email protected]
493
Dromologia e a usuarialização do ser: a velocidade e a (...)
Dessa maneira, não se sabe até qual ponto a velocidade social é
suportável pelo Direito, mas é possível afirmar que há déficit em sua estrutura
em razão da ausência de uma geração de Direitos Humanos que discuta e tutele
o Direito à Proteção Virtual.
Sendo assim, a problemática de ausência de tutela do Direito à Proteção
apresenta dimensão internacional e seus impactos no Brasil não são diferentes,
a prova disso é a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n.
13.709/2018) somente no ano de 2018, logo, o erro não está na ausência de
tutela, mas sim na morosidade de instauração de medidas visando tais garantias
fundamentais dos cidadãos.
Paulo Virilio trata sobre os impactos da velocidade nas transformações
sociais desde a década de noventa; o fenômeno do Big Data também ocorreu
nesta mesma época e; o Brasil só veio legislar a temática no ano de 2018, a
preocupação é necessária pois os efeitos do fenômeno dromológico não passam
mais a impactar somente a ciência do Direito, mas sim o Direito enquanto
protetor de garantias fundamentais previstas constitucionalmente, à exemplo do
direito à privacidade e outros.
Dessa forma, a partir de um estudo com base na pesquisa descritiva e
método hipotético-dedutivo, delineia os seguintes: discussão sobre a dromologia
enquanto ciência e fenômeno; os impactos da morosidade do Direito para a
tutela dos direitos fundamentais dos indivíduos, em especial no plano virtual; o
processo de usuarialização do ser e; a necessidade da sétima geração de
Direitos Humanos, o Direito à Proteção Virtual.
Para tanto, a pesquisa se dividirá em três tópicos centrais, inicialmente
tratando sobre o estudo teórico e conceitual da dromologia; posteriormente, visa
a abordagem do termo Usuarialização; além disso, se preocupa em analisar a
relação dromológica e a demora na tutela de proteção de dados virtuais e; por
último, sustentará a necessidade de inclusão de uma nova geração de Direitos
Humanos.
Desse modo, o estudo se preocupa em trazer uma abordagem sobre uma
ciência complexa que é a Dromologia e, com essa tradução, promover a
integração desta com o Direito para que assim se reflita se o ritmo acelerado das
modificações sociais apresenta uma constância ideal para a efetividade dos
direitos.
494
Diego de Medeiros Santos & Ubirathan Rogerio Soares
2 A DROMOLOGIA
Dromologia surge do conceito grego dromos, que significa corrida e/ou
velocidade, logo, pode ser compreendida como o estudo lógico da velocidade na
sociedade moderna 3. Assim, a Dromologia assume postura não apenas de
ciência, mas de um fenômeno que impacta diretamente o ambiente social.
Cumpre ressaltar que essa velocidade não é analisada enquanto
fenômeno único, mas sim um conjunto de fenômenos 4 que, quando incidentes
na sociedade, geram diversos impactos na modernidade.
Nesse sentido, Paul Virilio sustenta o surgimento de ciberespaços,
conceito e fenômeno de grande relevância para que se compreenda a
necessidade de urgência na tutela de direitos no plano virtual. O autor esclarece
que “o ‘espaço-tempo cibernético’, surgirá dessa constatação, cara aos homens
de imprensa: a informação só tem valor pela rapidez de sua difusão, ou melhor,
a velocidade é a própria informação!” 5. Compreende-se então que, sendo a
velocidade a própria informação, o que importa para o espaço cibernético são as
transformações constantes e não a proteção dos usuários, prontamente, é de
responsabilidade do direito promover a tutela dessas garantias dos indivíduos, o
que não tem feito em tempo hábil.
Dessa maneira, a sociedade é obrigada a se adaptar as novas
transformações tecnológicas, inclusive passaram a aceitar a mitigação de
sujeitos de direitos à apenas usuários, fato este que simboliza a exigência da
“dromoaptidão” sustentada por Murilo Pereira em sua dissertação “Investigação
Criminal ‘Dromocrática’”. Para ele,
Numa sociedade dromológica, a velocidade altera a percepção das
coisas, reeduca comportamentos, modula interesses e induz a
revolução contínua das tecnologias, com vistas a se manter e criar
3
PEREIRA, Murilo Cézar Antonini. Investigação Criminal “Dromocrática”. 2020. 145 f.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Centro Universitário Eurípides de Marília, Marília/SP,
2020. Disponível em:
https://aberto.univem.edu.br/bitstream/handle/11077/1960/DISSERTAC%CC%A7A%CC%83O
Murilo%20C%C3%A9zar%20Antonini%20Pereira.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em:
05 dez. 2023.
4
VIRILIO, Paul. A arte do motor. Tradução Paulo Roberto Pires. São Paulo: Editora Estação
Liberdade, 1996.
5
VIRILIO, Paul. A arte do motor. Tradução Paulo Roberto Pires. São Paulo: Editora Estação
Liberdade, 1996. p. 122.
495
Dromologia e a usuarialização do ser: a velocidade e a (...)
condições de otimização. Noutras palavras, a violência da velocidade
exige a “dromoaptidão” da integralidade dos segmentos sociais 6.
Sendo assim, se a sociedade é obrigada a atender à exigência da
“dromoaptidão”, o direito tem a obrigação de tutelar o ambiente virtual de forma
plena e em tempo compatível com as transformações, na medida do possível; o
que não se pode é aceitar a inércia do direito diante da violação de garantias e
redução de sujeitos de direitos em apenas usuários.
Nesta perspectiva, é necessária a compreensão de que o Direito não
consegue acompanhar o ritmo das novas tecnologias, contudo, é essencial que
este se mostre na tentativa de acompanhar tais mutações.
O fato é que a velocidade tem como natureza o progresso dromológico e
este é quem arruína o progresso do direito, assim se estrutura uma guerra do
tempo onde toda nova máquina é imediatamente contraposta a uma outra mais
rápida 7.
Dito isso, comprova-se a relevância do estudo dromológico para a
compreensão da sociedade moderna. Outrossim, constata-se a relevância dos
alertas trazidos pelo estudo da velocidade e, fazer dessa pesquisa, um fio
condutor para a ciência do Direito, para que esta se mobilize, em especial na
proteção dos sujeitos de direitos no âmbito virtual.
2.1 A USUARIALIZAÇÃO DO SER
Com o avanço tecnológico na modernidade, a sociedade passou a sofrer
pressões para que a realidade passasse a ser figurada também no plano virtual
e, em razão de tais imposições da velocidade das transformações, a sociedade
cedeu para a conduta da “dromoaptidão”, onde houve a migração das relações
sociais para uma experiência virtualizada.
6
PEREIRA, Murilo Cézar Antonini. Investigação Criminal “Dromocrática”. 2020. 145 f.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Centro Universitário Eurípides de Marília, Marília/SP,
2020. Disponível em:
https://aberto.univem.edu.br/bitstream/handle/11077/1960/DISSERTAC%CC%A7A%CC%83O
Murilo%20C%C3%A9zar%20Antonini%20Pereira.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em:
05 dez. 2023. p. 35.
7
SANTOS, Vinicius Lang dos. O Direito Constitucional Ao Prazo Razoável E A Duração Da
Prisão Preventiva. 2008. 138 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Faculdade de Direito
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Disponível em:
https://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/4789/1/409055.pdf. Acesso em: 05 dez. 2023.
496
Diego de Medeiros Santos & Ubirathan Rogerio Soares
Esse processo fez que com que os indivíduos, que são tratados como
sujeitos de direitos no plano físico, passassem a ser interpretados apenas como
usuários do plano virtual, fato este que vulnerabiliza os Direitos Humanos da
população mundial, dada a influência universal da internet. Tal incidente social
modernista surge, pois, “as estruturas sociais em meio a velocidade convergiram
para a despersonalização do sujeito de direito e o processamento conversivo em
usuário, a chamada usuarialização” 8.
Nesse sentido, a usuarialização é um termo relevante para a
compreensão dos impactos do fenômeno dromológico sobre as relações
humanas, mais especificamente da virtualização destas.
Dessa forma, a preocupação quanto à tutela dos direitos no plano virtual
deve ser pautada não somente na legislação sobre o uso da tecnologia, mas sim
nos Direitos Humanos e garantias constitucionais dos seus usuários.
Ora, não basta limitar o uso da tecnologia se a sua própria existência pode
violar os direitos de seus usuários. Logo, não se pode resumir o pensar nos
simples questionamentos: para quem ou para quê será destinada a tecnologia
(?), mas sim estudar quais são os possíveis direitos violados pelo simples fato
de tornar possível a existência dessa virtualização.
Dessa maneira, a usuarialização não se porta apenas como um termo
derivado da dromologia, mas deve ser tratado enquanto fenômeno condutor da
virtualização da sociedade moderna, onde é devida a incidência e tutela por parte
dos Direitos Humanos.
3 A BOMBA INFORMÁTICA E A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS
Para falar sobre a bomba de informatização da modernidade, faz-se
pertinente compreender como um simples termo para caracterizar uma situação
se tornou um marco da sociedade moderna. O termo Big Data tem origem a partir
da NASA, em 1990, ao buscar entender um conjunto massivo de dados que os
8
SANTOS, Diego de Medeiros; SOARES, Ubirathan Rogerio. Do físico ao virtual, uma terra sem
lei: algumas considerações sobre o fenômeno da dromologia e a morosidade de algumas das
estruturas do direito moderno. Boletim do Tempo Presente, Rio de Janeiro, v. 11, n. 12, p. 15-
27, dez. 2022. Disponível em:
https://www.seer.ufs.br/index.php/tempopresente/article/view/18581. Acesso em: 17 jun. 2023.
p. 19.
497
Dromologia e a usuarialização do ser: a velocidade e a (...)
computadores tradicionais da época não conseguiam codificar o
processamento 9. Dessa forma, Santos e Soares explicam que
Um simples conceito se tornou um fenômeno da modernidade, que
passou a simbolizar todo o conglomerado de avanços tecnológicos a
captação de dados pessoais e institucionais vulnerabilizando as
pessoas físicas e jurídicas quanto às disposições de dados no âmbito
virtual. O âmbito jurídico brasileiro não estava pronto para lidar com as
situações recorrentes e agravantes das garantias dos direitos
fundamentais dos usuários da internet, assim como a fiscalização
destes 10.
Nesse sentido, constata-se que, apesar de toda a problemática da
ausência de tutela de direitos fundamentais dos indivíduos no âmbito virtual
apresentar origem na década de noventa, o Brasil só veio legislar sobre o tema
em 2018 com a Lei geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/2018). Assim,
observa-se um despreparo do Poder Legislativo brasileiro diante das inovações
tecnológicas o que é extremamente preocupante quando essa morosidade pode
resultar em violações dos Direitos Humanos.
Em busca de traduzir essa sociedade complexa em que o Direito passa a
não conseguir acompanhar suas transformações e, consequentemente, não
consegue tutelar as relações virtualizadas, os autores citados anteriormente
prezam pela ideia de uma Sociedade em Estol. O conceito de tal se utiliza de
informações do âmbito da ciência física para compreender em qual momento a
sociedade se encontra. Isso porque o Estol significa o ápice de aclive e altura
que uma aeronave suporta e, ao atingir este limite, passa a declinar; assim se
encontra a sociedade, em declínio 11.
9
CALDAS, Camilo Onoda Luiz; CALDAS, Pedro Neris Luiz. Estado, democracia e tecnologia:
conflitos políticos e vulnerabilidade no contexto do big-data, das fake news e das shitstorms.
Perspectivas em Ciência da Informação, [S.L.], v. 24, n. 2, p. 196-220, jun. 2019. Disponível
em: https://www.scielo.br/j/pci/a/4qKvdJBT8svQshQdhfrz8jN/abstract/?lang=pt. Acesso em: 19
out. 2022. p. 5.
10
SANTOS, Diego de Medeiros; SOARES, Ubirathan Rogerio. Do físico ao virtual, uma terra sem
lei: algumas considerações sobre o fenômeno da dromologia e a morosidade de algumas das
estruturas do direito moderno. Boletim do Tempo Presente, Rio de Janeiro, v. 11, n. 12, p. 15-
27, dez. 2022. Disponível em:
https://www.seer.ufs.br/index.php/tempopresente/article/view/18581. Acesso em: 17 jun. 2023.
p. 20.
11
SANTOS, Diego de Medeiros; SOARES, Ubirathan Rogerio. Sociedade em Estol: impactos
dromológicos, surgimento do direito digital e a vulnerabilidade dos direitos humanos. In: XI SEPE
- Caicó RN, 2023. Disponível em: https://www.doity.com.br/anais/xisepe/trabalho/321750.
Acesso em: 23 dez. 2023.
498
Diego de Medeiros Santos & Ubirathan Rogerio Soares
A sociedade chegou ao seu ápice com as tecnologias e o declínio está
também nelas, posto que a virtualização está conduzindo um processo de
esquecimento dos direitos básicos dos indivíduos, a prova disso, como já
expresso anteriormente, foi a ocorrência do Big Data na década de noventa e a
movimentação do direito brasileiro sobre o tema somente no ano de 2018 com a
LGPD. Prontamente, estamos em uma Sociedade em Estol 12.
Este fenômeno de doação das vivências sociais ao mundo tecnológico é
preocupante e advém da
brutalidade do vetor velocidade gerou perda de referências e sepultou
certezas dentro de um sistema social dromológico, deslocando a
realidade das comunidades, as quais dão mais importância para a
conexão de redes tecnológicas do que para localização espacial dos
corpos 13.
Sendo assim, a brutalidade da velocidade afeta a sociedade e como
consequência o Direito não possui uma base sólida para conduzir tantas
construções e desconstruções, fato este acaba por vulnerabilizar o acesso de
muitos indivíduos à direitos fundamentais previstos constitucionalmente e que
estão diretamente relacionados às gerações de Direitos Humanos. E assim se
mostra a contraposição entre o fenômeno dromológico e o Direito; cumpre
ressaltar que a problemática não se sustenta na Dromologia enquanto ciência,
pois esta é apenas responsável por estudar e informar as demais ciências e a
sociedade os impactos do vetor velocidade, cabe a cada um destes a utilização
dessas informações de forma funcional, o que o Direito não tem feito.
À vista disso, fica demostrado o atraso do sistema jurídico brasileiro na
tutela dos direitos dos indivíduos quando se trata da virtualização dessas
garantias. Assim, fica expressa a presença de uma Sociedade em Estol, um
verdadeiro declínio social onde o Direito não consegue acompanhar as
12
SANTOS, Diego de Medeiros; SOARES, Ubirathan Rogerio. Sociedade em Estol: impactos
dromológicos, surgimento do direito digital e a vulnerabilidade dos direitos humanos. In: XI SEPE
- Caicó RN, 2023. Disponível em: https://www.doity.com.br/anais/xisepe/trabalho/321750.
Acesso em: 23/12/2023.
13
PEREIRA, Murilo Cézar Antonini. Investigação Criminal “Dromocrática”. 2020. 145 f.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Centro Universitário Eurípides de Marília, Marília/SP,
2020. Disponível em:
https://aberto.univem.edu.br/bitstream/handle/11077/1960/DISSERTAC%CC%A7A%CC%83O_
Murilo%20C%C3%A9zar%20Antonini%20Pereira.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em:
05 dez. 2023. p. 37.
499
Dromologia e a usuarialização do ser: a velocidade e a (...)
transformações da sociedade e acaba se tornando mais uma vítima do fenômeno
dromológico, a velocidade.
4 A SÉTIMA GERAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS, O DIREITO À PROTEÇÃO
VIRTUAL
A discussão sobre as gerações ou dimensões de Direitos Humanos exige
um debate muito profundo, isso por que a temática envolve graus e níveis de
tutela de direitos básicos de todos os indivíduos. Dito isso, tangencia-se a
abordagem para que se dê ciência das gerações existentes, bem como sustenta-
se a necessidade de inclusão de uma nova geração para que se dê efetividade
à tutela do Direito à Proteção Virtual amplamente debatida no decorrer do
presente trabalho.
Para André de Carvalho Ramos 14, as gerações concretizadas atualmente
são:
1ª) Direito à liberdade;
2ª) Direito à igualdade;
3ª) Direito à fraternidade;
4ª) Globalização e bioética;
5ª) Direito à paz;
6ª) Direito à água potável.
Cumpre ressaltar que a quarta geração tem como criadores Bonavides e
Bobbio, respectivamente, com a Globalização e Bioética. Ademais, são de
criações de Bonavides também o Direito à paz e a água potável. Observa-se que
nem mesmo a doutrina se preocupa com a inclusão de uma geração se que
dedique ao fenômeno da usuarialização do ser. Para além disso, debate o
acesso à água potável, que apesar de ser um direito de todos, facilmente estaria
contido implicitamente nas demais gerações.
Dessa forma, ressalta-se que o Direito à Proteção Virtual necessita de
uma geração exclusiva pois a geração de Globalização está muito mais ligada à
conflitos geográficos e políticos que o fenômeno tecnológico. Outrossim, a
geração do Direito à Liberdade não cumpre sua atuação no processo de
virtualização, isso pois as ideias trazidas por essa dimensão ainda abarcam a
14
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2019.
500
Diego de Medeiros Santos & Ubirathan Rogerio Soares
ideia antiga sobre o que é liberdade. Não se pode comparar o conceito de
liberdade extraído da Revolução Francesa para que se utilize como base para a
liberdade dos usuários que sofrem com a Revolução Tecnológica e a velocidade
do mundo moderno.
Com isso, constata-se a essencialidade da inclusão da sétima geração de
Direitos Humanos, o Direito à Proteção Virtual. Caso contrário, os indivíduos
continuarão sendo tratados apenas como usuários das redes e não sujeitos de
direitos que fazem uso das redes, conduta esta que vem ocasionando fortes
repressões à direitos fundamentais previstos constitucionalmente e,
consequentemente, aos Direitos Humanos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho proposto alcançou os objetivos delimitados incialmente, onde
foram observados quais são os impactos do fenômeno dromológico sobre o
Direito, em especial no aspecto do vetor velocidade na virtualização das relações
sociais e o despreparo dos Direitos Humanos na tutela dessa esfera.
Em primeiro plano, quanto aos fatores conceituais e teóricos sobre a
Dromologia, verifica-se sua relevância para a compreensão da sociedade
moderna, fato este que esclarece a necessidade de seu estudo para aplicação
em ciências e fenômenos da modernidade. Outrossim, a Dromologia conduziu a
pesquisa de forma concreta e possibilitou a notoriedade da problemática da
ausência de tutela pelo direito do processo de virtualização das condutas
humanas, a chamada usuarialização.
Além disso, quanto ao tratamento acerca da bamba de informatização,
constou-se que o Big Data ocorreu em 1990 e somente em 2018 o Brasil legislou
sobre o tema da virtualização das relações jurídicas e humanas. Nesse sentido,
dada a ineficiência estatal e da própria essência da ciência do Direito é possível
afirmar a existência de uma Sociedade em Estol, ou seja, uma sociedade em
declínio, que cede o espaço para a tecnologia, mas acaba esquecendo de dar
efetividade aos direitos primários de seus cidadãos.
Desse modo, diante de todo esse contexto problemático e preocupante
da situação da sociedade moderna, verifica-se que é essencial a inclusão de
uma nova geração de Direitos Humanos, o Direito à Proteção Virtual, tendo em
501
Dromologia e a usuarialização do ser: a velocidade e a (...)
vista que as dimensões presentes na atual estrutura são insuficientes para
conduzir os déficits sociais decorrentes do vetor velocidade.
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CALDAS, Camilo Onoda Luiz; CALDAS, Pedro Neris Luiz. Estado, democracia
e tecnologia: conflitos políticos e vulnerabilidade no contexto do big-data,
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VIRILIO, Paul. A arte do motor. Tradução Paulo Roberto Pires. São Paulo:
Editora Estação Liberdade, 1996.
502
Utilização algorítmica de dados transnacional e democracia: os
impactos nos processos políticos e nos direitos humanos à
proteção de dados e à particição política
Marco Bruno Miranda Clementino 1
Maíra Arcoverde Barreto Pinto 2
1 INTRODUÇÃO
A utilização algorítmica de dados para fins de direcionamento de conteúdo
e convencimento de pessoas é uma realidade cada vez mais presente no
cotidiano social e corresponde a uma atividade econômica em desenvolvimento
progressivo. Além do impacto social, político e financeiro, a utilização algorítmica
de dados também tem sido empregada como instrumento de afetação em
processos políticos.
É fato incontroverso que a referida atividade econômica se desenvolve na
internet, cuja natureza transfronteiriça atrai aspectos essenciais do direito
internacional. Demonstrada a internacionalidade da discussão, é importante
compreender de que modo a utilização algorítmica de informações pessoais tem
afetado o resultado de processos democráticos, bem como quais os direitos
humanos que podem ser atingidos.
Para compreender o tema, tem-se três objetivos: esclarecer de que forma
funciona a utilização algorítmica de dados e a sua aplicação em processos
eleitorais; identificar os impactos da referida atividade na democracia e nos
direitos humanos, em especiais os direitos políticos; e compreender como a
efetivação dos direitos humanos à proteção de dados e à participação política
podem ser ferramentas para impedir eventuais violações.
Para tal, foi utilizada a pesquisa bibliográfica através do estudo de artigos
sobre o tema, assim como a análise de casos internacionais que repercutiram
sobre o tema. A pesquisa é de incontestável relevância em razão do atual
1
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Juiz Federal. Doutor em Direito
pela Universidade Federal de Pernambuco.
2
Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Alumni da Academia
de Direito Internacional da Haia.
503
Utilização algorítmica de dados transnacional e democracia: (...)
contexto de envolvimento entre tecnologia e política que afeta o direito e exige
resposta da comunidade acadêmica.
Ao final do estudo, é perceptível a necessidade de aprimorar os métodos
de efetivação à proteção de dados e à participação política que, além de
precisarem ser tutelados como direitos humanos, são ferramentas essenciais à
tutela da democracia em um contexto de sociedade digital.
2 DISSEMINAÇÃO DE INFORMAÇÕES FRAUDULENTAS E
DEMOCRACIA
No presente tópico, pretende-se esclarecer o que são as denominadas
fake news e como elas são capazes de afetar processos político-democráticos e
a formação do livre convencimento dos indivíduos. Ainda, objetiva-se esclarecer
o que torna tão veloz a disseminação de conteúdo inverídico.
Nesse sentido, importa investigar de que forma a utilização algorítmica de
dados e o direcionamento de conteúdo estão intimamente relacionados com a
disseminação de informações falsas. Sob tais premissas, analisam-se também
os acontecimentos do caso Cambridge Analytica e como eles são um parâmetro
importante para compreender o funcionamento dos sistemas digitais.
2.1 O CONCEITO DE NOTÍCIAS FRAUDULENTAS
Diferente do conceito que se atribui no senso comum às fake news, estas
não consistem em toda e qualquer informação inverídica propagada e também
não se restringem à internet. De acordo com o relatório do High Level
Group – HLEG (Grupo Independente de Alto Nível sobre as notícias falsas e a
desinformação on-line), é recomendável abandonar o termo fake news para
adotar “desinformação” ou “informação fraudulenta”, haja vista a dificuldade de
conceituá-lo, assim como a sua má utilização por determinados grupos
políticos 3.
Dessa forma, neste trabalho científico recorre-se ao conceito de notícia
fraudulenta de Diogo Rais: “Enfim, talvez um conceito aproximado do direito,
porém distante da polissemia empregada em seu uso comum, poderia ser
3
HIGH-LEVEL GROUP OF EXPERTS TO ADVISE ON POLICY INITIATIVES TO COUNTER
FAKE NEWS AND DISINFORMATION SPREAD ONLINE (União Europeia). A multi-
dimensional approach to disinformation. Belgium: European Union, 2018. 44 p.
504
Marco Bruno Miranda Clementino & Maíra Arcoverde Barreto Pinto
identificada como uma mensagem propositadamente mentirosa capaz de gerar
dano efetivo ou potencial em busca de alguma vantagem” 4. No relatório do
HLEG, de forma complementar, a desinformação foi definida como “todas as
formas de informações falsas, imprecisas ou enganadoras criadas,
apresentadas e promovidas para causar prejuízo de maneira proposital ou para
fins lucrativos”. 5
A veiculação de desinformação, além de pressupor a falsidade da notícia,
contém o elemento proposital. Em outras palavras, o disseminador reconhece
que a informação não é verdadeira e a veicula mesmo assim com o intuito de
gerar um prejuízo a alguém ou para obter lucro. Essa compreensão é relevante
para que se entenda que os usuários que acreditam na informação que recebem,
apesar de serem vetores da desinformação, não são propagadores de
desinformação.
Também na análise do Professor Diogo Rais, não existiria “fake news
culposa”, já que, para sua caracterização, é indispensável a existência de dano
e dolo. Nesse contexto, o erro não seria alcançado e, portanto, é um mero erro
jornalístico, que sempre existirá e deve ser reconhecido o mais breve possível 6.
Nessa perspectiva, informações fraudulentas envolvem necessariamente três
elementos: a falsidade, o dolo e o dano.
As notícias fraudulentas não se reduzem a uma preocupação acadêmica.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem enfrentado a matéria em diversas
oportunidades, especialmente no Inquérito (INQ) 4781 7, que trata
especificamente sobre a disseminação de informações falsas contra a própria
Corte Constitucional, seus ministros e respectivos familiares.
2.2 O SISTEMA ALGORÍTMICO DE DISSEMINAÇÃO DE
INFORMAÇÕES E DIRECIONAMENTO DE CONTEÚDO
4
RAIS, Diogo. FAKE NEWS: a conexão entre desinformação e o direito. In: RAIS, Diogo. FAKE
NEWS: a conexão entre desinformação e o direito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
Cap. 1. p. 25-52.
5
HIGH-LEVEL GROUP OF EXPERTS TO ADVISE ON POLICY INITIATIVES TO COUNTER
FAKE NEWS AND DISINFORMATION SPREAD ONLINE (União Europeia). A multi-
dimensional approach to disinformation. Belgium: European Union, 2018. 44 p.
6
Idem item 3.
7
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 4781. Diário Oficial da União. Brasília, 2019.
505
Utilização algorítmica de dados transnacional e democracia: (...)
Segundo Marcos Castilho, Fabiano Silva e Daniel Weingaertner, algoritmo
é uma sequência de instruções que, quando lida e executada, produz o resultado
esperado, que deve ser a solução de um problema. 8 O que é essencial para o
presente trabalho é compreender de que forma os algoritmos são utilizados nas
plataformas digitais para fins de direcionamento de conteúdo.
Num primeiro momento, as plataformas digitais providenciam o espaço
digital em que os usuários se inserem para fins de comunicação, em regra. Num
segundo momento, com o passar do tempo, os usuários passam a utilizar as
plataformas por cada vez mais tempo, realizando o consumo de conteúdo e
fornecendo seus dados e informações nas plataformas que lhes são
disponibilizadas. Por fim, num terceiro instante, a partir dessas informações, o
algoritmo devidamente desenvolvido vai seguir instruções previamente
programadas pelas plataformas para oferecer uma resposta a determinado
conjunto de fatores.
Dessa forma, tem-se que, através dos dados que são disponibilizados
pelos usuários, é possível que os algoritmos, seguindo a programação
previamente estabelecida, realize uma apuração desses perfis para segmentar
os grupos e direcionar o conteúdo que é interessante para cada um dos núcleos.
É por esse motivo que a gestão algorítmica da atenção se torna uma estratégia
fundamental para os modos de capitalização de serviços digitais, assim como
para os modos de influenciar e persuadir o comportamento humano 9. Sob esse
pano de fundo, as notícias fraudulentas ganham ainda mais força.
A partir do direcionamento de conteúdo que já é realizado pelas
plataformas digitais, como pressuposto da própria existência da atividade
econômica, os indivíduos que propagam desinformações são capazes de
direcioná-las de modo a garantir sua perpetuação para segmentos sociais
interessados no assunto.
8
“[...] é uma sequência extremamente precisa de instruções que, quando lida e executada por
uma outra pessoa, produz o resultado esperado, isto é, a solução de um problema. Esta
sequência de instruções é nada mais nada menos que um registro escrito da sequência de
passos necessários que devem executados para manipular informações, ou dados, para se
chegar na resposta do problema”
9
BENTES, Anna. A GESTÃO ALGORÍTMICA DA ATENÇÃO: ENGANCHAR, CONHECER E
PERSUADIR. In: POLIDO, Fabrício; ANJOS, Lucas; BRANDÃO, Luiza (org.). Políticas, Internet
e Sociedade. Belo Horizonte: Instituto de Referência em Internet e Sociedade, 2019. p. 222-234.
506
Marco Bruno Miranda Clementino & Maíra Arcoverde Barreto Pinto
Isso se explica no fato de que os algoritmos trabalham com a previsão dos
comportamentos futuros dentro da economia digital e através deles é possível
extrair o valor dos dados. A utilização algorítmica de dados define os perfis de
usuários que serão alvos específicos para sugestão de conteúdos diferenciados,
de forma personalizada 10.
Sob a compreensão de que a utilização algorítmica de dados para o fim
de direcionamento de conteúdo é a atividade crescente de grupos econômicos,
Anna Bentes conceitua a possibilidade de converter determinado conteúdo em
consumo como “economia da atenção” 11. Nesse sentido, a inteligência artificial
pode ser desenvolvida por empresas dos mais diversos ramos, de modo a
veicular seus produtos e serviços de forma melhor direcionada ao público
interessado, captando a máxima atenção possível, caso tenham acesso aos
referidos bancos de dados 12.
Essa atividade econômica é legítima e funciona dentro da legalidade, mas
serve de vetor para a propagação das informações fraudulentas. Empresas de
comunicação estratégica são capazes de disseminar notícias falsas com um
maior percentual de aceitação em razão do referido direcionamento. É imperioso
destacar que esse tipo de gestão de dados e de afetação algorítmica pode se
dar a partir de qualquer lugar do mundo, pelo que não é necessário que a
empresa tenha sede ou sócios no país no qual haverá o impacto antidemocrático
para executar essa dinâmica.
Partindo dos referenciais mencionados, é possível que uma empresa de
comunicação estratégica realize o tratamento de dados de cidadãos brasileiros
ou que morem no Brasil, sem estar sediada neste país.
Além do desafio do sopesamento entre liberdade de expressão e
democracia, a ser enfrentado adiante, é importante reconhecer o direito humano
à proteção de dados pessoais para o combate às notícias fraudulentas. Isso
porque as plataformas digitais e empresas de comunicação estratégica
perpassam necessariamente a utilização dos dados pessoais de indivíduos.
Dessa forma, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) foi editada para proteger
10
Idem item 7.
11
Idem item 7.
12
COULDRY, Nick; MEJIAS, Ulises A.. The costs of connection: how data is colonizing human
life and appropriating it for capitalism. Stanford: Stanford University Press, 2019.
507
Utilização algorítmica de dados transnacional e democracia: (...)
os direitos de privacidade e de livre formação da personalidade de cada
indivíduo. Em outras palavras, a LGPD antecipa a relevância da proteção dos
dados dos usuários no próprio contexto da atividade econômica. Entre os artigos
2º e 8º, são indicados os princípios, objetivos e conceitos basilares à
sistematização da proteção de dados dos indivíduos.
Em uma síntese, as normas brasileiras estão se sedimentando para gerar
no país um espaço de regulação do tratamento de dados pessoais e, por
consequência, o estabelecimento de limites à atuação da atividade econômica
que realiza o direcionamento de conteúdo.
Entretanto, como já mencionado neste tópico, é sabido que o tratamento
de dados pode vir a ser realizado por empresas que sequer tenham sede no país
no qual foram coletadas as informações pessoais, o que pode dificultar a eficácia
das normas de proteção de dados, se estas não forem pensadas num contexto
do direito internacional.
3 O IMPACTO DA DISSEMINAÇÃO DE INFORMAÇÕES FALSAS NA
DEMOCRACIA
Por meio dos algoritmos, as redes sociais transformam o conteúdo
depositado por seus usuários em perfis em dados, os quais passam a receber
informações em consonância com o que naturalmente os agrada.
Evidentemente, esse tipo de inteligência artificial atrai enormemente empresas
que podem veicular seus produtos e serviços de forma melhor direcionada ao
público possivelmente interessado.
Em 2018, veio à tona um caso emblemático: a empresa britânica
Cambridge Analytica 13, responsável pela campanha do ex-presidente dos
Estados Unidos Donald Trump, utilizou os dados de usuários do Facebook 14 para
realização de propaganda eleitoral, inclusive empregando a desinformação
como estratégia de comunicação. A repercussão acerca do caso foi extensa,
mas se concentrou na violação de privacidade dos usuários, atraindo a atenção
dos governos britânico e estadunidense.
No entanto, para além da discussão acerca do direito à privacidade, há
outra questão a ser estudada. O caso trata de uma manipulação do eleitorado e,
13
Empresa britânica de análise de dados.
14
Rede Social de Comunicação.
508
Marco Bruno Miranda Clementino & Maíra Arcoverde Barreto Pinto
portanto, da afetação do processo democrático. O caso Cambridge Analytica é
a exemplificação da utilização de dados de uma rede social por outra instituição
que trabalha com algoritmos. Na oportunidade, a empresa britânica que dá nome
ao caso foi contratada pelo empresário Donald Trump, então candidato à
presidência dos Estados Unidos, para a realização de sua campanha virtual.
A empresa é especializada em análise de dados e também foi a mesma
responsável pela assessoria do grupo que promoveu o Brexit, demonstrando o
quanto a repercussão dessa atividade está intimamente relacionada com
assuntos que ultrapassam bastante as fronteiras nacionais.
De acordo com as investigações, o que se constatou é que o trabalho da
empresa começou ainda em 2014, criando um jogo de perguntas virtual 15 em
que os usuários do Facebook, ao responderem, autorizavam o acesso a todos
os seus dados e, além disso, dos dados de todos os seus amigos na rede social.
Dessa forma, as informações coletadas envolviam detalhes dos perfis dos
indivíduos, como nome, localização do domicílio, religião, gostos e hábitos 16.
Uma média de 270 mil pessoas fizeram o teste de personalidade e, em
razão da rede de amigos, mais de 50 milhões de perfis foram acessados. Dessa
forma, os dados coletados pela Cambridge Analytica foram utilizados para
catalogar os indivíduos de acordo com suas vivências e preferências. Por meio
dessa catalogação, a empresa era capaz de direcionar as mensagens, notícias
e informações sobre o candidato Donald Trump da forma que melhor
interessasse aos usuários. O caso é paradigmático porque demonstra a
proporção que a utilização de dados pode alcançar e de que forma é plenamente
possível que o direcionamento de conteúdo efetivamente afete um sistema
democrático a partir da disseminação de informações falsas.
Para além dos contornos delimitados sobre o impacto nos processos
decisórios propriamente ditos, é importante identificar que as notícias
fraudulentas também impactam na política de saúde. Com a pandemia da
COVID-19, o Brasil enfrentou uma massiva disseminação de informações
fraudulentas sobre as vacinas contra a doença. A própria Agência Nacional de
15
Jogo virtual de perguntas e respostas.
16
KAISER, Brittany. Manipulados: Como a Cambridge Analytica e o Facebook invadiram a
privacidade de milhões e botaram a democracia em xeque. Nova Iorque: Harpercollins, 2019.
Tradução de: Bruno Fiuza e Roberta Karr.
509
Utilização algorítmica de dados transnacional e democracia: (...)
Vigilância Sanitária (ANIVISA) realizou publicação no site oficial do governo para
esclarecer que “os materiais sobre mortes após o uso de vacina contra COVID-
19 são falsos e não possuem nenhum embasamento científico” 17.
Além das informações falsas sobre COVID-19, o movimento antivacina
tem crescido porque grupos de indivíduos propagam conteúdos falsos, alegando
que as composições químicas das vacinas são prejudiciais à população. Como
consequência da propagação dessas falsas informações, tem-se um
crescimento alarmante no número de casos de sarampo no Brasil e no mundo
nos últimos 05 (cinco) anos 18, na contramão da política sanitária e de saúde das
últimas décadas.
Ainda no Brasil, em 2014, a disseminação de fake news provocou o
linchamento de uma mulher até a morte por moradores da cidade de Guarujá,
em São Paulo. Fabiane Maria de Jesus tinha 33 anos, era dona de casa, casada,
mãe de duas crianças, e foi confundida com uma suposta sequestradora de
crianças, cujo retrato falado, que havia sido feito dois anos antes, estava
circulando nas redes sociais 19.
4 DO DIREITO HUMANO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DA
NECESSÁRIA PRESERVAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O ponto fundamental deste trabalho é enfrentar o sopesamento entre o
direito à liberdade de expressão e a disseminação de informações fraudulentas
que possam vir a afetar a esfera pessoal de terceiro, mas em especial a
democracia. Para a referida análise, é preciso identificar a tutela do direito à
liberdade de expressão.
No Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, o direito
à liberdade de expressão encontra-se alicerçado no artigo 13 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos.
17
SAÚDE, Ministério da. Cuidado com as ‘fake news’ sobre vacinas contra Covid-19. 2021.
Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2021/cuidado-com-as-
2018fake-news2019-sobre-vacinas-contra-covid-19. Acesso em: 17 jun. 2023.
18
UNICEF. Surto global de sarampo, uma ameaça crescente para crianças. 2019. Disponível
em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/surto-global-de-sarampo-uma-
ameaca-crescente-para-criancas. Acesso em: 17 jun. 2023.
19
GLOBO. Oito anos após mulher ser espancada até a morte em SP, fake news segue
fazendo vítimas como o turista queimado vivo no México. 2022. Disponível em:
https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2022/06/15/oito-anos-apos-mulher-ser-
espancada-ate-a-morte-em-sp-fake-news-segue-fazendo-vitimas-como-o-turista-queimado-
vivo-no-mexico.ghtml. Acesso em: 17 jun. 2023.
510
Marco Bruno Miranda Clementino & Maíra Arcoverde Barreto Pinto
No mesmo sentido, a liberdade de expressão é protegida, no âmbito do
sistema interamericano, Declaração de Direitos e Deveres do Homem, em seu
artigo IV 20, e na Carta Democrática 21. Da irrefutável relevância desse direito,
tem-se que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos criou a Declaração
de Princípios da Liberdade de Expressão. Dos princípios listados, é essencial
destacar que a Declaração estabelece que “o acesso à informação em poder do
Estado é um direito fundamental do indivíduo”.
Veja-se que a própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos
compreende o direito ao acesso à informação como elemento essencial para o
pleno desenvolvimento da liberdade de expressão, o que evidentemente
encontra óbice na disseminação de notícias fraudulentas. Apesar disso, a
mesma Declaração também veda expressamente qualquer forma de
interferência sobre expressão, opinião ou informação. 22
No mais, além da incontestável relevância da liberdade de expressão
como direito humano, ele também se apresenta como fundamento do Estado
Democrático de Direito. Na análise do Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do
Araguaia”) vs. Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o
Brasil, dispondo que a Lei da Anistia é incompatível com a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos e que o Estado é responsável pelo
desaparecimento forçado de 62 pessoas desaparecidas na Guerrilha do
Araguaia. O tribunal foi enfático particularmente quanto à violação aos direitos à
personalidade jurídica, à vida e à liberdade de expressão das vítimas,
sancionando um rol extenso de reparações a serem adotadas pela União 23.
20
Artigo IV. Toda pessoa tem direito à liberdade de investigação, de opinião e de expressão e
difusão do pensamento, por qualquer meio
21
Artigo 4: São componentes fundamentais do exercício da democracia a transparência das
atividades governamentais, a probidade, a responsabilidade dos governos na gestão pública, o
respeito dos direitos sociais e a liberdade de expressão e de imprensa. A subordinação
constitucional de todas as instituições do Estado à autoridade civil legalmente constituída e o
respeito ao Estado de Direito por todas as instituições e setores da sociedade são igualmente
fundamentais para a democracia.
22
“5. A censura prévia, a interferência ou pressão direta ou indireta sobre qualquer expressão,
opinião ou informação através de qualquer meio de comunicação oral, escrita, artística, visual ou
eletrônica, deve ser proibida por lei. As restrições à livre circulação de ideias e opiniões, assim
como a imposição arbitrária de informação e a criação de obstáculos ao livre fluxo de informação,
violam o direito à liberdade de expressão.”
23
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros
(“Guerrilha Do Araguaia”) vs. Brasil. Disponível em :
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em: 30 jan. 2023. p.
33.
511
Utilização algorítmica de dados transnacional e democracia: (...)
Ainda, ao examinar as alegadas violações aos direitos à liberdade de
pensamento e de expressão, a corte entendeu que esse conjunto de direitos se
manifesta não só pela ideia clássica de todos os indivíduos poderem expressar
de modo livre e deliberado suas opiniões, mas, também, pela dimensão de cada
pessoa poder buscar e receber informações e ideias 24. Em outras palavras, é
possível concluir que se trata da liberdade de expressão associada ao acesso à
informação e ao conhecimento da verdade, que devem estar garantidos numa
sociedade que se diz democrática 25.
Tem-se, portanto, que, partindo da análise dos próprios mecanismos
utilizados pelo Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos,
inclusive na análise da própria corte, a liberdade de expressão em si também
está associada ao acesso à informação e ao conhecimento da verdade, sendo
incompatível com a veiculação de notícias fraudulentas.
Além do entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos
sobre o que é a liberdade de expressão que, por si só, já garante juridicamente
a tutela da verdade e do acesso à informação real – o que importa no combate
às fake news –, é necessário destacar que o artigo 13 da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos estabelece que é vedada a censura prévia, mas não se
afasta a responsabilização posterior para assegurar o respeito aos direitos ou à
reputação das demais pessoas, ou a proteção da segurança nacional, da ordem
pública, da saúde ou da moral públicas.
Inequivocamente, a democracia pressupõe a livre manifestação de
pensamento e se faz horizontal se a igualdade de chances na participação for
efetivada, o que pressupõe naturalmente o acesso à informação. Dessa forma,
para que possa ter autonomia política, é preciso aplicar o conceito de liberdade
de expressão reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no
sentido de, não apenas oportunizar que os indivíduos tenham o direito de se
expressar, mas especialmente para abarcar o conhecimento da verdade.
24
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e Outros
(“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Disponível em :
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em: 30 jan. 2023. p.
68-85.
25
MENDONÇA, Camila Diógenes de. 40 ANOS DA LEI DA ANISTIA: UMA ANÁLISE SOBRE
A (DES)CONTINUIDADE DO DISCURSO AUTORITÁRIO BRASILEIRO À LUZ DA JUSTIÇA
DE TRANSIÇÃO. 2019. 91 f. TCC (Graduação) - Curso de Direito, UFRN, Natal, 2019.
512
Marco Bruno Miranda Clementino & Maíra Arcoverde Barreto Pinto
Habermas 26 valoriza a ideia da liberdade comunicativa dos indivíduos
que, em conjunto, constituem o poder. 27
A liberdade comunicativa pressupõe a liberdade de expressão e a
autonomia na livre formação de discernimento, atribuindo poder democrático ao
agir conjunto. O indivíduo por si só não tem o poder no seu isolamento, mas o
desenvolve na atividade coletiva. O poder que advém da soberania popular está
alicerçado justamente na característica humana da comunicabilidade. Isolado, o
indivíduo não consegue promover o poder que emana de si, sendo-lhe
necessário o agir comunicativo para que o amálgama democrático se torne
imperativo e o poder factualmente emane do povo.
Partindo desses referenciais teóricos, é irrefutável que o sopesamento de
direitos humanos, diante de notícias fraudulentas, perpassa o próprio conceito
de liberdade de expressão. Trata-se de dever dos atores sociais públicos e
privados de adotar providências para evitar a disseminação de informações
inverídicas, sem que isso corresponda a qualquer mitigação do direito humano
à liberdade de expressão.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depreende-se do presente trabalho que a utilização algorítmica de dados
para direcionamento de conteúdo é uma atividade econômica legítima que é
fomentada a partir da internet, mas que pode servir de vetor da disseminação de
notícias fraudulentas. Por esse motivo, é necessário compreender o direito à
liberdade de expressão em seu conceito mais amplo.
Para tanto, entende-se que notícias fraudulentas são aquelas
disseminadas dolosamente, com ciência do indivíduo sobre a falsidade da
informação, no intuito de causar dano. Evidentemente, as denominadas fake
news, além do impacto individual na vida daqueles que afeta, também implica
fragilização da democracia e da própria liberdade de expressão.
26
“O conceito de autonomia política, apoiado numa teoria do discurso, abre uma perspectiva
completamente diferente, ao esclarecer por que a produção de um direito legítimo implica a
mobilização das liberdades comunicativas dos cidadãos. Tal esclarecimento coloca a legislação
na dependência do poder comunicativo, o qual, segundo Hannah Arendt, ninguém pode “possuir”
verdadeiramente: “O poder surge entre os homens quando agem em conjunto, desaparecendo
tão logo eles se espalham”
27
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997.
513
Utilização algorítmica de dados transnacional e democracia: (...)
Isso porque, no âmbito do Sistema Americano de Proteção dos Direitos
Humanos, liberdade de expressão deve ser reconhecida não só como o direito
de manifestar livremente o pensamento, mas também o direito de acesso à
informação e à verdade. Nesse sentido, por mais que seja a internet um espaço
para a livre manifestação de pensamento, é necessário o constante
sopesamento de valores para evitar a propagação desenfreada de notícias
falsas, de modo a garantir o direito à democracia e a uma participação política
efetiva.
Também foi possível compreender que o direcionamento de conteúdo
promovido pelas plataformas digitais é realizado através de uma perfilização que
garante maior efetividade na disseminação de notícias fraudulentas, alcançando
indivíduos mais suscetíveis à informação, como aconteceu no caso
paradigmático Cambridge Analytica.
Essa possibilidade de afetação em massa do discernimento de um grupo
significativo de pessoas afeta a liberdade comunicativa, a autodeterminação
política e, como consequência, a liberdade de expressão e a democracia.
Ainda, é indiscutível que existem diversas formas de determinado usuário
estabelecer uma relação jurídica com um provedor de aplicações que não tenha
sede ou softwares no país em que está localizado. Da mesma forma, também é
possível que empresas de comunicação estratégica realizem o tratamento de
dados pessoais para fins de direcionamento de conteúdo em um país no qual
não exista norma de proteção de dados.
No mais, é evidente que essa atividade econômica, de grande relevância
na contemporaneidade, utiliza-se essencialmente de dados e é possível evitar
excessos e violações a direitos humanos a partir normas protetivas efetivas.
Sob essa égide, ao analisar a natureza da atividade econômica, concluiu-
se pela sua legitimidade e relevância, desde que observados os direitos
humanos à proteção de dados pessoais e à autodeterminação informativa,
evitando que haja uma utilização irrazoável de informações pessoais e a
disseminação de informações falsas com a finalidade de ludibriar os indivíduos
sobre determinado fato.
É indispensável frisar ainda o caráter complexo da liberdade de
expressão. Isso porque, apesar da extraordinária plataforma para manifestação
de pensamento em que a internet consiste, há indubitável legitimidade em
514
Marco Bruno Miranda Clementino & Maíra Arcoverde Barreto Pinto
preservar não só a possibilidade de manifestação dos indivíduos, mas também
o acesso a informações verídicas. Por essa razão, a liberdade de expressão é
pressuposto democrático e, também por isso, não existe qualquer violação ao
referido direito na remoção posterior de conteúdo reconhecidamente falso, pelas
plataformas ou pelo Poder Judiciário.
6 REFERÊNCIAS
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of Data Realms and its Implications for the WTO, Journal of International
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Efetividade da proteção dos migrantes nas relações
empregatícias no ordenamento jurídico brasileiro
Carla Cecília Marcelino Alves 1
1. INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, 2
em seu Artigo 1º, consagra a dignidade da pessoa humana como um dos seus
pilares fundamentais, princípio esse que desempenha um papel essencial na
construção do Estado Democrático de Direito. 3 Em seu artigo 3º, busca promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação. Trata-se, portanto, da seguridade do bem
comum. 4 A mesma Carta Magna, em seu artigo 6º, determina serem direitos
mínimos e indispensáveis à garantia de uma existência digna o direito à
educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao
lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade, à infância e
a assistência aos desamparados. 5 Esse mesmo documento concebe, em seu
art. 7º, como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que
visem à melhoria de sua condição social, o reconhecimento das convenções e
acordos coletivos de trabalho, dentre tantos outros. 6
Os direitos sociais mencionados nesses artigos se desdobram em
diversos outros pontos da Constituição Federal, como evidenciado na atuação
do Estado na ordem econômica. Essa atuação é baseada na valorização do
trabalho humano, com o objetivo de garantir a redução das desigualdades
sociais e o alcance do pleno emprego, conforme estipulado no art. 170. Tudo
1
Graduada em Filosofia (UFRN). Graduanda em Direito (UFRN). E-mail:
[email protected].
2
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 05 de outubro de 1988. Disponível em:
[https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm]. Acesso em: 06 de out. de
2023.
3
Art. 1º, III, da Constituição Federal.
4
Art. 3º, IV, CF.
5
Art. 6º, CF.
6
Art. 7º, XXVI, CF.
518
Carla Cecília Marcelino Alves
isso visa proporcionar a todos uma vida digna, em consonância com os princípios
da justiça social. 7
A harmonização do Direito interno com os compromissos internacionais é
evidenciada nos mencionados artigos. O Artigo 170, por exemplo, alinha-se com
tratados, como a Carta Social Europeia, adotada pelo Brasil em 1992,
comprometendo-se a promover condições de trabalho justas e aprimoramento
das condições de vida.
O princípio da dignidade da pessoa humana é estabelecido como um dos
fundamentos essenciais no Artigo 1º, desempenhando papel crucial na
construção do Estado Democrático de Direito. Internacionalmente respaldado
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, proclama a
universalidade da dignidade humana. O Artigo 3º visa promover o bem de todos,
alinhando-se a acordos internacionais, como o Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. O Artigo 6º lista direitos mínimos para
assegurar uma existência digna, refletindo compromissos internacionais,
enquanto o Artigo 7º, ao reconhecer convenções e acordos coletivos de trabalho,
está em consonância com as diretrizes da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), especialmente na Convenção nº 98 sobre o Direito de
Sindicalização e de Negociação Coletiva.
Portanto, torna-se evidente a necessidade de uma interpretação
abrangente do direito interno brasileiro, com o propósito de ampliar sua
aplicabilidade não apenas aos cidadãos brasileiros, mas também aos migrantes
que ingressam no Estado, mesmo que de maneira não legítima. 8
A utilização do termo 'migrante' não é casual, pois esse conceito é um
termo abrangente 9 que engloba três grupos distintos: os migrantes, cujas
intenções e vontades são plenamente consideradas; os imigrantes, cujos
7
Art. 170, VII e VIII, CF.
8
MEDEIROS, B. As Lacunas e Imprecisões do Tratamento dos Refugiados e Apátridas no Brasil.
TCC (Bachael em Direito), UFRN, Natal, p. 73, 2019.
9
OIM. Termes clés de la migration. Disponível em: [http://www.iom.int/fr/termes-cles-de-la-
migration]. Acesso em: 05.03.2023.
519
Efetividade da proteção dos migrantes nas relações (...)
desejos são totalmente aniquilados; e os refugiados, que podem ser subdivididos
em várias categorias. 10
A questão da imigração, por ser um tema cujas ramificações acessam
uma variedade de problemas sociais complexos, transcende facilmente o âmbito
jurídico, abrangendo questões ambientais, de saúde, éticas, psicológicas,
filosóficas, entre outras. 11
É relevante ressaltar que, dentro do cenário do Direito Internacional dos
Direitos Humanos, a normativa existente não consagra explicitamente o direito
humano de imigrar, mas, em contrapartida, enfatiza o direito de emigrar. 12 Essa
distinção destaca a complexidade do tema, sugerindo que, ao invés de uma mera
garantia de entrada, o foco reside na liberdade de deixar um país.
Os direitos trabalhistas dos migrantes no Brasil são respaldados por
dispositivos legais que buscam assegurar condições justas e equitativas. Os
migrantes regularmente admitidos usufruem dos mesmos direitos trabalhistas
que os cidadãos brasileiros, englobando salário mínimo, jornada de trabalho
regulamentada, férias remuneradas e benefícios previdenciários.
O Brasil, como signatário de convenções internacionais, procura alinhar
suas práticas laborais aos padrões internacionais, garantindo proteção contra
discriminação e exploração. Entretanto, persistem desafios em relação à efetiva
implementação desses direitos, especialmente para migrantes em situação mais
vulnerável. Isso demanda uma atenção constante às políticas públicas e uma
fiscalização rigorosa para assegurar uma aplicação adequada e eficaz dessas
medidas.
A dignidade da pessoa humana emerge como um princípio fundamental
em todas as sociedades contemporâneas e deve ser preservada acima de
10
BICHARA, Jahyr-Philippe. A Relativização da Soberania Estatal Diante das Migrações
Internacionais e a Ressurgência do Direito de Entrada. 2023. p. 02. Tese (Tese para Professor
Titular). Departamento de Direito Público (DPU). Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Natal, 2023.
11
CANOTILHO, J. J. G. Enquadramento jurídico da imigração. In: Actas do I Congresso
Imigração em Portugal: Diversidade-Cidadania-Integração. Lisboa. ACIME, pp. 151-167, 2003.
Disponível: [http://fudepa.org/Biblioteca/recursos/ficheros/BMI20070000078/Capitulo8.pdf].
Acesso em: 09 de out. de 2023, p. 168-169.
12
MOREIRA, Thiago Oliveira. A concretização dos direitos humanos dos migrantes pela
jurisdição brasileira. Curitiba: Instituto Memória. Centro de Estudos da Contemporaneidade,
2019, p. 406.
520
Carla Cecília Marcelino Alves
quaisquer considerações burocráticas ou procedimentos governamentais.
Indubitavelmente, esta afirmação traz consigo as tensões históricas em que, de
um lado, estão o poder e a soberania de cada Estado, e do outro, o Direito
Internacional com sua indiscutível supremacia. 13 No entanto,
independentemente das circunstâncias, a prioridade incontestável deve
permanecer na proteção dos direitos humanos de cada indivíduo. 14
Sendo assim, esta pesquisa, predominantemente, foca nos aspectos
jurídicos, especialmente nas questões laborais enfrentadas por esses migrantes
ao ingressarem no Brasil. Além disso, busca identificar as alterações ocorridas
no ordenamento jurídico brasileiro nos últimos anos relacionadas a esse tema,
alinhando-as aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. [2].
Investigar se as garantias e direitos dos migrantes estão sendo assegurados em
solo brasileiro com base na jurisprudência, analisando a conduta brasileira em
situações em que os direitos trabalhistas dos migrantes foram violados. [3].
2. O CONCEITO DE MIGRANTE E REFUGIADO
A Organização Internacional para as Migrações (OIM) destaca que, desde
1990, o número de migrantes internacionais tem aumentado continuamente,
alcançando 281 milhões de pessoas fora de seus países de origem em 2021. 15
Nos últimos 15 anos, a América Latina e o Caribe testemunharam um aumento
significativo, com o número de migrantes mais do que dobrando, passando de 7
milhões para 15 milhões. Esses dados refletem a crescente complexidade e
globalização dos movimentos migratórios, destacando a necessidade de
13
BICHARA, Jahyr-Philippe. A Relativização da Soberania Estatal Diante das Migrações
Internacionais e a Ressurgência do Direito de Entrada. 2023. p. 02. Tese (Tese para Professor
Titular). Departamento de Direito Público (DPU). Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Natal, 2023.
14
No âmbito brasileiro, no entanto, Leonardo Brant afirma de maneira enfática que a soberania
desempenha um papel central na estruturação do Direito Internacional. De acordo com Brant, a
capacidade do Estado de exercer sua autoridade e tomar decisões autônomas é fundamental
para a compreensão das dinâmicas jurídicas no cenário internacional. Ver em BRANT, Leonardo
Nemer Caldeira. Soberania e Direito Internacional. Cadernos Adenauer, Ano XXI, 2020, nº 3,
Soberania na atualidade. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, pp. 99-155, outubro de
2020, p. 99.
15
ORGANISATION INTERNATIONAL POUR LES MIGRATIONS (OIM). État de la migration
dans le monde 2022, p. 25. Disponível em: [https://publications.iom.int/books/rapport-etat-de-la-
migration-dans-le-monde-2022]. Acesso em 06.03.2023.
521
Efetividade da proteção dos migrantes nas relações (...)
abordagens cuidadosas e políticas inclusivas para lidar com esse fenômeno em
constante evolução. 16
De acordo com a definição da OIM, considera-se "migrante" qualquer
indivíduo que, ao deixar sua residência, se desloca para outro Estado, sem levar
em conta o estatuto jurídico, a natureza voluntária ou compulsória do
deslocamento, os motivos ou a duração da estadia. Em diferentes perspectivas
do fenômeno migratório, o termo "imigrante" refere-se àquele que ingressa em
um Estado que não é o de sua nacionalidade com a intenção de se estabelecer,
enquanto "emigrante" descreve a pessoa que deixa o Estado de sua residência
habitual. 17
É válido notar que o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, é
independente do status da pessoa, seja ela nacional de um Estado ou
estrangeira. O direito à mobilidade internacional se estende a todas as pessoas,
sem distinção de sexo, cor, idade ou nacionalidade. 18 De maneira mais clara,
cabe aos Estados partes nos tratados mencionados a obrigação de não criar
entraves à saída das pessoas, incumbindo-lhes apenas a competência
administrativa para facilitar o acesso a esse direito, especialmente no que diz
respeito ao cumprimento da obrigação de apresentar um documento de
identificação. 19
A interação entre a soberania estatal e as demandas humanitárias,
especialmente diante das migrações irregulares presentes em todo o mundo,
representa um desafio complexo. O exercício da soberania dos Estados em
ações humanitárias está intrinsecamente ligado à necessidade de fornecer
16
Idem.
17
ORGANISATION INTERNATIONAL POUR LES MIGRATIONS (OIM). État de la migration
dans le monde 2022. Disponível em: [https://publications.iom.int/books/rapport-etat-de-la-
migration-dans-le-monde-2022]. Acesso em 06.03.2023.
18
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. Miguel González del Rio v. Peru, Comunicação nº
263/1987, UN Doc. CCPR/C/46/D/263/1987 (1992). Disponível em:
[http://hrlibrary.umn.edu/hrcommittee/French/jurisprudence/263-1987.html]. Acesso em
08.03.2023.
19
BICHARA, Jahyr-Philippe. A Relativização da Soberania Estatal Diante das Migrações
Internacionais e a Ressurgência do Direito de Entrada. 2023. p. 05. Tese (Tese para Professor
Titular). Departamento de Direito Público (DPU). Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Natal, 2023.
522
Carla Cecília Marcelino Alves
assistência imediata e urgente, exigindo uma abordagem equilibrada para
enfrentar eficazmente as questões relacionadas à migração. 20
Nessa perspectiva, observa-se que o Estado brasileiro demonstra
interesse e disposição em se adaptar aos imperativos das preocupações
internacionais. De fato, a intensificação dos movimentos migratórios nas últimas
décadas pode ser parcialmente atribuída à solidariedade manifestada por vários
Estados em relação ao acolhimento humanitário, considerado uma necessidade
premente. 21
Essa postura reflete não apenas uma reação às dinâmicas globais, mas
também uma demonstração deliberada do Brasil em alinhar suas políticas de
migração aos padrões internacionais, posicionando-se como um agente ativo na
construção de respostas efetivas diante dos desafios humanitários associados à
migração. 22
No âmbito do direito brasileiro, a nova Lei de Migração, de número 13.445,
datada de 24 de maio de 2017, segue a tendência permissiva e traz inovações
em relação às convenções internacionais firmadas pelo Estado brasileiro,
especialmente no que diz respeito à proteção de refugiados, apátridas e
cooperação jurídica internacional. 23 Ou seja, a legislação não se restringe
apenas aos migrantes econômicos, mas abrange também refugiados, apátridas
e qualquer pessoa que opte por estabelecer-se temporária ou definitivamente no
20
BICHARA, Jahyr-Philippe. O tratamento do fluxo migratório venezuelano de 2015 a 2019: do
Direito Internacional ao direito brasileiro. Revista dos Tribunais. Ano 108, v. 1010, pp. 93-117,
2019, p. 100. Ver também, mais especificamente sobre o jus cogens, BICHARA, Jahyr-Philippe.
Imigração ilegal e direito internacional: alguns aspectos da atualidade. In: Bruno Manoel Viana
De Araujo, Kiwonghi Bizawu, Margareth Anne Leister. (Org.). Direito internacional dos direitos
humanos II. 1 ed.Florianópolis: CONPEDI, 2015, v., pp. 221-240.
21
BICHARA, Jahyr-Philippe. O tratamento do fluxo migratório venezuelano de 2015 a 2019: do
Direito Internacional ao direito brasileiro, op. cit., p. 96.
22
Segundo Thiago Oliveira Moreira, com a Lei de Migração (13.445/2017), é possível utilizar a
prática da acolhida humanitária, uma vez que o art. 14, §3º autoriza a concessão de visto
temporário para essa acolhida em situações "de grave ou iminente instabilidade institucional, de
conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação
de direitos humanos ou de direito internacional humanitário" (Fonte: Lei de Migração,
13.445/2017, Artigo 14, §3º). Ver mais em MOREIRA, Thiago Oliveira. A CONCRETIZAÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS DOS MIGRANTES PELA JURISDIÇÃO BRASILEIRA. 2018. p. 228.
Tese (Tese de doutorado) . Universidad del Pais Vasco UPV/EHU, San Sebastián, 2018.
23
BRASIL. Lei nº 13. 445, de 24 de maio de 2017, publicada no DOU, do dia 25 de maio de 2017.
Com seu Decreto de regulamentação, n° 9.199, de 20 de novembro de 2017, publicado no DOU,
do dia 21 de novembro de 2017.
523
Efetividade da proteção dos migrantes nas relações (...)
Brasil. Essa abordagem reflete um comprometimento mais amplo com a
proteção e integração de indivíduos em situação migratória diversificada,
alinhando-se aos princípios internacionais de direitos humanos e cooperação
global. 24
As normas destacam a gestão do processo migratório em termos de
entrada, permanência e saída, buscando garantir o respeito aos direitos dos
migrantes. A abordagem integra normas internacionais à legislação interna,
visando uma gestão migratória justa e alinhada aos princípios e direitos
humanos. Analisando a influência das diretrizes do Mercosul nas políticas
brasileiras, a entrada e residência em qualquer estado-membro são
simplificadas, exigindo apenas um passaporte válido, com a possibilidade de
converter a residência temporária em permanente.
Em suma, todo migrante do Mercosul tem o direito de residir em outro
Estado do bloco, o que desencadeia uma série de outros direitos, como a
liberdade para exercer qualquer atividade, seja por conta própria ou de terceiros.
Além disso, são assegurados direitos como a reunião familiar, a igualdade de
tratamento e a transferência de renda para o país de origem, entre outros
benefícios. Entretanto, é importante destacar que o direito de residir não é
automático e está sujeito às autoridades nacionais de controle migratório. 25 Essa
abordagem visa facilitar a integração e mobilidade dos migrantes no âmbito do
Mercosul, promovendo uma comunidade mais unida e harmoniosa. 26
24
Friedrich destaca que a Lei de Migração se destaca por sua natureza inclusiva e cidadã,
apresentando uma aplicação abrangente. Ver em FRIEDRICH, Tatyana Scheila. Direito dos
Migrantes e dos refugiados no Brasil: acesso à cidadania e reconhecimento de competências.
In: Migrantes e refugiados: uma aproximação baseada na centralidade do trabalho e na justiça
do trabalho.Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes;Priscila Moreto de Paula (org.). Brasília: Ministério
Público do Trabalho, 2021, pp. 163-177, p. 165.
25
Os Artigos 4 e 6 do Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercado
Comum do Sul – Mercosul, Bolívia e Chile tratam das condições e procedimentos relacionados
à residência de nacionais desses Estados. Esses artigos estabelecem as bases para o direito de
residência, contemplando aspectos como os documentos necessários para a obtenção desse
direito, os prazos de validade e a possibilidade de conversão de residência temporária em
permanente. A análise detalhada desses artigos proporciona uma compreensão mais
aprofundada sobre as normativas que regem a residência de nacionais no contexto do Mercosul,
Bolívia e Chile.
26
FARIA, Maria Rita Fontes. Migrações Internacionais no plano multilateral: reflexões para a
política externa brasileira. Brasília: FUNAG, 2015, pp. 100 e 101.
524
Carla Cecília Marcelino Alves
No âmbito trabalhista, é crucial destacar que, à luz das obrigações
internacionais, o Estado brasileiro, como signatário de diversos acordos da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), reforça seu compromisso em
proporcionar uma proteção adequada aos migrantes. Ao alinhar suas políticas
de migração aos padrões internacionais, o Brasil busca não apenas garantir o
acolhimento humanitário, mas também assegurar a proteção integral dos direitos
trabalhistas dos migrantes, em conformidade com os instrumentos da OIT.
O Brasil, como parte de seu compromisso internacional na proteção dos
direitos trabalhistas, é signatário de diversas convenções da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) relacionadas à migração e ao emprego.
Destacam-se algumas das principais convenções que delineiam diretrizes
fundamentais para garantir condições justas e equitativas aos trabalhadores
migrantes.
A Convenção nº 97, Trabalhadores Migrantes (1949), foi ratificada pelo
Brasil em 1965, estabelecendo princípios essenciais para a proteção dos direitos
dos trabalhadores migrantes. 27 Já a Convenção nº 143,Trabalhadores Migrantes
(Revisada) (1975), incorpora diretrizes adicionais sobre a assistência aos
trabalhadores migrantes em situações de emergência. Esses compromissos
refletem a postura diligente do Brasil na promoção de padrões internacionais e
na proteção abrangente dos direitos trabalhistas, inclusive para aqueles que
atravessam fronteiras em busca de oportunidades laborais. 28
A Convenção nº 181, sobre Agências de Emprego Privado (1997),
lamentavelmente ainda não ratificada pelo Brasil - porém com um decreto cuja
intenção demonstra uma mudança nesse cenário - aborda questões pertinentes
às agências de emprego privado, sendo relevante para a migração laboral ao
27
Esse acordo foi aprovado através do Decreto Legislativo n. 20, de 1965, do Congresso
Nacional. A ratificação foi feita em 18 de junho de 1965. A promulgação do Decreto n. 58.819,
de 14.7.66 ocorreu em 18 de junho de 1966. Ver em OIT. C097 - Trabalhadores Migrantes
(Revista). Disponível em: [https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235186/lang--
pt/index.htm]. Acesso em: 15 de setembro de 2023.
28
OIT. C143 - Convenção Sobre as Imigrações Efectuadas em Condições Abusivas e Sobre a
Promoção da Igualdade de Oportunidades e de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes.
Disponível em[https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242707/lang--pt/index.htm#note].
Acesso em 15 de setembro de 2023.
525
Efetividade da proteção dos migrantes nas relações (...)
estabelecer diretrizes que visam práticas justas nesse contexto. 29 Em referência
à Convenção nº 189, sobre o Trabalho Decente para Trabalhadores Domésticos
(2011), foi ratificada pelo Brasil em 2018, tratando dos direitos dos trabalhadores
domésticos, grupo no qual muitos podem ser migrantes, promovendo condições
dignas de trabalho. 30
Este compromisso abrange a garantia de justiça e igualdade para essa
população, que incluem a observância do salário mínimo, a regulamentação da
jornada de trabalho, o direito às férias remuneradas e o acesso aos benefícios
previdenciários. A experiência de acolhimento dos migrantes venezuelanos
reflete a aplicação diligente dessas salvaguardas, evidenciando a postura do
Brasil na promoção ativa da justiça social e laboral para todos aqueles que
buscam refúgio em território brasileiro 31. O alinhamento com os princípios da OIT
reforça o comprometimento do país em criar um ambiente de trabalho justo e
digno para os migrantes, contribuindo para a construção de uma sociedade mais
inclusiva e igualitária.
3. A REGULARIDADE MIGRATÓRIA NO DIREITO AO TRABALHO
A Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em seu
preâmbulo, reflete a preocupação global com a "defesa dos interesses dos
empregados no estrangeiro". A missão central da OIT é assegurar a dignidade
de todos os trabalhadores, independentemente de sua nacionalidade. Para
concretizar essa proteção, foram adotadas três convenções específicas focadas
nos direitos dos trabalhadores migrantes: a Convenção nº 97 (1949), a
Convenção n° 143 (1975), com disposições adicionais, e a Convenção nº 189
(Trabalho Decente para Trabalhadoras e Trabalhadores Domésticos).
29
PROJETO DE LEI N.º 8.772, DE 2017. Disponível em:
[https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1613024]. Acesso
em 15 de setembro de 2023.
30
OIT. Brasil ratifica Convenção 189 da OIT sobre trabalho doméstico. Disponível em
[https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_616754/lang--pt/index.htm]. Acesso em 15 de
setembro de 2023.
31
A experiência do Brasil é esclarecedora nesse ponto de vista, especialmente quando recebeu
mais de 120.000 migrantes venezuelanos em fuga de uma profunda crise econômica e política.
Ver mais em UNICEF. Crise Migratória Venezuelana no Brasil. 2019. Disponível em:
[https://www.unicef.org/brazil/crise-migratoria-venezuelana-no-brasil]. Acesso em: 24 de outubro
de 2023.
526
Carla Cecília Marcelino Alves
Todos os Estados signatários desses tratados estão sujeitos a um sistema
de monitoramento interno para garantir sua implementação. Anualmente, são
elaborados relatórios que avaliam a eficiência administrativa e prática dos
Estados em relação a esses compromissos, proporcionando uma avaliação
contínua do cumprimento das obrigações no âmbito da proteção dos direitos dos
trabalhadores migrantes.
Conforme mencionado anteriormente, o Brasil, por ser signatário da
maioria desses tratados, é constantemente monitorado para assegurar a
garantia do bem estar dos migrantes em solo brasileiro. A Organização Mundial
da Migração (OIM), em seu Relatório Mundial sobre Migração de 2022, afirma
que a atual situação na Venezuela teve um impacto significativo nos fluxos
migratórios na região e continua sendo uma das maiores crises de deslocamento
e migração em todo o mundo. 32 Aproximadamente 5,6 milhões de venezuelanos
haviam deixado o país até junho de 2021, e cerca de 85% (aproximadamente
4,6 milhões) se mudaram para outro país na América Latina e no Caribe. A
maioria expressiva desses indivíduos tem encontrado acolhimento em países da
América Latina e do Caribe, sendo o Brasil o quinto destino mais buscado pelos
venezuelanos. 33 O estado de Roraima se destaca como o principal ponto de
entrada dessa população, com uma significativa atuação de organizações
vinculadas à plataforma R4V. 34
No entanto, a análise exclusiva de dados estatísticos não proporciona
uma compreensão precisa do tratamento jurídico que esses indivíduos estão
32
OIM. Parceiros da Plataforma R4V solicitam US$ 126 milhões para atendimento humanitário
a refugiados e migrantes da Venezuela no Brasil. Disponível em: [https://brazil.iom.int/pt-
br/news/parceiros-da-plataforma-r4v-solicitam-us-126-milhoes-para-atendimento-humanitario-
refugiados-e-migrantes-da-venezuela-no-brasil]. Acesso em 23 de novembro de 2023.
33
INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION (ILO). World Migration Report 2022. Disponível
em: [https://brazil.iom.int/sites/g/files/tmzbdl1496/files/WMR-2022-EN.pdf]. Acesso em novembro
de 2023.
34
A plataforma R4V, co-liderada pelo ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) e pela OIM
(Agência da ONU para Migrações), desempenha um papel crucial ao atender mais de 171 mil
refugiadas, refugiados e migrantes vulneráveis da Venezuela, assim como brasileiros das
comunidades de acolhida, ao longo de 2021. Isso é realizado por meio de uma gama
diversificada de serviços que visam integração e proteção, evidenciando a importância do
trabalho conjunto para enfrentar os desafios humanitários associados a essa complexa situação
migratória. Ver mais em R4V. O QUE É A PLATAFORMA R4V? Disponível em:
[https://www.r4v.info/pt/brazil]. Acesso em 15 de novembro de 2023.
527
Efetividade da proteção dos migrantes nas relações (...)
recebendo no Brasil, especialmente quando se trata de questões trabalhistas.
Diante dessa lacuna, torna-se necessário examinar o quadro jurisprudencial,
cuja perspectiva permite construir um panorama sobre como os direitos
trabalhistas dos migrantes estão sendo protegidos quando eles se encontram
em situações laborais vulneráveis.
Um exemplo relevante é o caso de um professor estrangeiro que teve seu
direito trabalhista assegurado mesmo que sua situação como imigrante fosse
irregular. A 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região
reconheceu o vínculo empregatício de um professor norte-americano com uma
escola de idiomas em Blumenau (SC), mesmo considerando sua situação
irregular no Brasil entre 2013 e 2016. O estrangeiro, morando de forma irregular,
foi convidado pela escola para dar aulas de inglês. A empresa, em recurso,
alegou a impossibilidade de contratação regular devido à falta de documentação
e alegou que a legislação não reconhece vínculo empregatício nessas
circunstâncias. A desembargadora relatora destacou a manutenção da
prestação de serviços por quase três anos, indo contra a legislação, e citou
jurisprudência do TST para afirmar que, em respeito aos princípios da igualdade
e dignidade da pessoa humana, o autor tem direito ao reconhecimento do vínculo
empregatício. 35
Outro caso semelhante ao mencionado foi o da 10ª Turma do TRT da 2ª
Região, que rejeitou, por unanimidade, o pedido de uma loja de produtos
diversos que buscava encerrar um caso trabalhista de um imigrante em situação
irregular no Brasil, alegando a expiração do prazo de validade do Registro
Nacional de Estrangeiros. A desembargadora-relatora Ana Maria Moraes
Barbosa Macedo destacou que a condição irregular do trabalhador evidencia sua
vulnerabilidade social, e, citando a Constituição Federal, enfatizou a igualdade
entre brasileiros e estrangeiros, rejeitando um entendimento que poderia
perpetuar condições análogas à escravidão. A magistrada condenou a empresa
ao pagamento de diversas verbas, ressaltando que a Justiça do Trabalho não
35
CONJUR. Professor americano em situação irregular tem vínculo de emprego reconhecido.
Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2021-ago-17/estrangeiro-situacao-irregular-vinculo-
emprego-reconhecido/]. Acesso em 23 de novembro de 2023.
528
Carla Cecília Marcelino Alves
deve decidir sobre a regularidade migratória, mas assegurar os direitos dos
trabalhadores. 36
Outro grande feito da jurisdição brasileira foi a do Conselho Superior da
Justiça do Trabalho (CSJT). Este admitiu, por unanimidade, o procedimento de
Ato Normativo para aprovar a edição de uma Resolução que institui o Programa
Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo e ao Tráfico de Pessoas e de
Proteção ao Trabalho do Migrante no âmbito da Justiça do Trabalho. O relatório
destaca a relevância da medida diante da problemática recorrente de trabalho
escravo e tráfico de pessoas, alinhando-se aos compromissos internacionais, à
legislação brasileira, como a Lei de Migração, e aos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável da ONU. O Programa visa promover o trabalho
decente e sustentável, abordando questões de relevância social e garantindo a
dignidade e direitos dos trabalhadores migrantes. 37
É possível concluir, portanto, que a análise da jurisprudência brasileira
destaca casos positivos, mas ressalta a necessidade de uma abordagem mais
abrangente para assegurar a aplicação consistente dos princípios de igualdade
e dignidade da pessoa humana em todos os casos. Além disso, a complexidade
das questões migratórias exige uma resposta sistêmica que vai além de meras
decisões isoladas, mesmo considerando os esforços do Brasil na aprimoração
legislativa sobre o tema.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, a conjunção das medidas de reparação preconizadas pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos e a legislação brasileira,
exemplificada pela Lei n.º 13.445 de 2017, destaca o compromisso do Brasil na
abordagem de desafios como o trabalho escravo e as violações de direitos
36
TRT. JUSTIÇA DO TRABALHO. ESTRANGEIRO EM SITUAÇÃO IRREGULAR NÃO ESTÁ
IMPEDIDO DE AJUIZAR AÇÃO TRABALHISTA. Disponível em:
[https://ww2.trt2.jus.br/noticias/noticias/noticia/estrangeiro-em-situacao-irregular-nao-esta-
impedido-de-ajuizar-acao-trabalhista]. Acesso em: 23 de novembro de 2023.
37
Conselho Superior da Justiça do Trabalho. Acórdão no. 3452-85.2023.5.90.0000.
Procedimento de Ato Normativo: Proposta de Edição de Resolução para o Programa Nacional
de Enfrentamento ao Trabalho Escravo e ao Tráfico de Pessoas e de Proteção ao Trabalho do
Migrante. Brasília, DF, 29 de dezembro de 2023. Disponível em:
[file:///C:/Users/Ceci/Downloads/ACÓRDÃO%20TST%20(1).pdf]. Acesso em 29 de novembro de
2023.
529
Efetividade da proteção dos migrantes nas relações (...)
humanos enfrentadas pela população imigrante. O evidente esforço nacional em
alinhar políticas internas aos padrões internacionais, especialmente refletido no
Programa Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, ao Tráfico de
Pessoas e de Proteção ao Trabalho do Migrante, ressalta uma busca por
soluções coordenadas na esfera da Justiça do Trabalho. Entretanto, a situação
representativa do professor estrangeiro destaca a necessidade de avanços
contínuos.
Portanto, a Constituição de 1988, ao consagrar a dignidade da pessoa
humana e os direitos fundamentais, juntamente com a Lei de Migração de 2017,
reforça o compromisso brasileiro com a seguridade do bem comum. Contudo,
diante das lacunas evidenciadas na atual crise migratória, uma abordagem mais
ampla e sistêmica se faz essencial para garantir a proteção integral dos direitos
dos migrantes, assegurando uma sociedade justa e inclusiva. Este caminho de
aprimoramento contínuo é vital para consolidar os esforços brasileiros na
promoção do trabalho decente e sustentável para todos que buscam uma vida
digna em território nacional.
REFERÊNCIAS
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Migrações Internacionais e a Ressurgência do Direito de Entrada. 2023.
p. 02. Tese (Tese para Professor Titular). Departamento de Direito Público
(DPU). Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal,
2023.
BICHARA, Jahyr-Philippe. A Relativização da Soberania Estatal Diante das
Migrações Internacionais e a Ressurgência do Direito de Entrada. 2023.
Tese (Tese para Professor Titular). Departamento de Direito Público
(DPU). Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal,
2023.
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2015 a 2019: do Direito Internacional ao direito brasileiro, op. cit., p. 96.
BICHARA, Jahyr-Philippe. O tratamento do fluxo migratório venezuelano de
2015 a 2019: do Direito Internacional ao direito brasileiro. Revista dos
Tribunais. Ano 108, v. 1010, pp. 93-117, 2019, p. 100. Ver também, mais
especificamente sobre o jus cogens, BICHARA, Jahyr-Philippe. Imigração
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Manoel Viana De Araujo, Kiwonghi Bizawu, Margareth Anne Leister.
(Org.). Direito internacional dos direitos humanos II. 1 ed.Florianópolis:
CONPEDI, 2015, v., pp. 221-240.
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maio de 2017. Com seu Decreto de regulamentação, n° 9.199, de 20 de
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Acesso em: 24 de outubro de 2023.
532
Bluewashing e a publicidade enganosa
Maria Clara Tavares Santana da Silveira 1
Fabrício Germano Alves 2
O presente trabalho trata da publicidade enganosa sobre o consumidor no
que tange ao seu discernimento no momento do consumo, mediante, sobretudo, ao
marketing atrativo dos empresários e sociedades empresariais que se dizem
socialmente responsáveis – quando, na verdade, estas trazem em suas campanhas
publicitárias valores éticos e morais apenas com o intuito de ampliar as vendas, com
uma responsabilidade social que, na prática, inexiste, configurando o bluewashing.
A fim de trazer considerações acerca da instigação do consumidor que
adquire bens e/ou serviços de fornecedores que se aproveitam de pautas sociais por
meio de uma divulgação ardilosa, é trazida à baila noções pertinentes ao art. 37 da
Lei n° 8.078/1990, que configura o que seria a publicidade enganosa, além de
apontar, em seu § 1°, a capacidade de induzimento do consumidor ao erro: prática
esta que fomenta o fenômeno do bluewashing. Busca-se, assim, compreender a
relação existente entre a ocorrência da publicidade enganosa enquanto meio, do
qual alguns empresários e sociedades empresariais se utilizam para alavancar suas
campanhas publicitárias; e o bluewashing como resultado, dado o engano do
consumidor que, acreditando estar corroborando para pautas sociais através do
consumo daqueles produtos e/ou serviços ditos socialmente responsáveis, acaba
deixando-se levar pela publicidade enganosa que os fomenta.
Então, para o suporte metodológico, estudaram-se casos concretos,
legislação e jurisprudência, junto de análise de doutrina, por meio do método
qualitativo-indutivo.
Destarte, fez-se mister inferir esta colaboração da publicidade enganosa
para a realização do bluewashing, sobretudo ao propor uma comercialização que se
vale de causas nobres para angariar clientela de maneira a induzir, por conseguinte,
1
Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bolsista
de iniciação científica (CNPQ) pelo projeto ‘’Tutela coletiva na defesa do consumidor’’.
2
Orientador. Advogado e docente do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN).
533
Bluewashing e a publicidade enganosa
o consumidor ao erro, nos termos do art. 37, § 1°, do Código de Defesa do
Consumidor.
1 INTRODUÇÃO
A globalização econômica trouxe consigo mudanças irremediáveis no
contexto do mercado de consumo, e, consequentemente, também na maneira como
as sociedades empresariais agem em seu entorno. É fato que a forma de se
comercializar, sobretudo nos meandros do século XXI, alcançou níveis de
publicidade nunca antes vistos, em parte pelo advento da internet, em parte pela
própria reformulação de negociação, propiciada pelo avanço das redes.
Nesse sentido, urgiu um significado diferente para a responsabilidade
social dos fornecedores tidos como empresários, uma vez que, se o meio de
comércio se atualizou, a responsabilização teve de acompanhá-lo em inúmeros
sentidos. Em termos de direito, contudo, essa responsabilidade social tange
especificamente à ideia de um compromisso voltado tanto à proteção quanto à
manutenção dos direitos humanos.
Para tanto, eleva-se uma ferramenta essencial, denominada de ‘’marketing
social’’, tomando para si a função de criar uma associação quase que intrínseca
entre o consumidor, a empresa a quem ele consome, a marca desta e o objeto ou
objetivo de cunho social, por vezes humanístico, que chama a atenção justamente
por esse efeito benfeitor, com destaque para valores éticos e morais. Tal
instrumento é tão útil no contexto do mercado consumerista que, a título de exemplo,
possibilita o aumento do quadro de vendas, bem como a limpeza da imagem
corporativa, dizendo-se socialmente responsável.
Quando utilizado para os devidos fins, o marketing social é benéfico, dado
que aproxima a contribuição das grandes empresas para a solução ou o
apaziguamento de problemas da sociedade, seja a nível municipal, regional,
nacional ou, até mesmo, global. No entanto, na perspectiva do Bluewashing, a
função desse instrumento é parcial ou completamente desviada, servindo como uma
fachada moral para a captação de público que, sensibilizado mediante o suposto
compromisso humanístico, passa a consumir mais do fornecedor em questão — cujo
intuito, na realidade, é pouco voltado para essas temáticas.
534
Maria Clara Tavares Santana da Silveira & Fabrício Germano Alves
Perante o Bluewashing, as sociedades empresárias se valem de debates
relevantes à humanidade para finalidades meramente financeiras, visando o lucro a
qualquer custo. Isso se dá, sobremaneira, em decorrência da criação de uma
imagem solidária que agrega valor ao seu produto ou serviço final, na maioria das
vezes, sendo veiculada através da publicidade enganosa, que atrai uma quantia
considerável de consumidores ludibriados pela proposta de responsabilidade social.
Por óbvio, tal responsabilidade inexiste, não passando de pretexto para a captação
de clientela.
Desta feita, o presente trabalho busca compreender o fenômeno do
Bluewashing e sua correlação direta com a publicidade enganosa, atrelada à prática
do marketing social, e responsável por levar os consumidores a obterem produtos ou
serviços de um fornecedor empresário que se diz, supostamente, engajado com as
causas humanitárias. A discussão da responsabilidade coletiva das instituições em
destaque é de relevância na discussão, de modo que, sem ela, não haveria como se
tratar das causas e tampouco dos efeitos da ‘’lavagem azul’’. De método qualitativo-
indutivo, utilizou-se de ampla pesquisa bibliográfica, análise de casos concretos,
consulta jurisprudencial e comparação legislativa.
2 O FENÔMENO DO BLUEWASHING E A RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS
EMPRESAS
Infere-se, a priori, que a prática do Bluewashing se popularizou com o
advento da globalização econômica, beneficiando-se, acima de tudo, pelos meios de
veiculação rápida e em massa das informações, o que aumentou exponencialmente
a oferta de produtos e serviços. Tal fato, somado ao perfil do consumerista do século
XXI, isto é, aquele em que o consumidor não compra tão somente pelas
características primárias do bem, mas também pela mensagem, pelo valor atribuído
a ele, criaram um cenário favorável à atuação do marketing social desviado, logo,
também ao efeito de ‘’lavagem azul’’: uma interferência reconhecida na esfera do
direito, com o ‘’direito de produção’’ se impondo sobre o direito positivo, em
destaque ao empresarial 3
3
FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo. Malheiros Editores. 1ª ed. 4ª
tiragem, 2004.
535
Bluewashing e a publicidade enganosa
Em suma, o Bluewashing pode ser entendido como uma prática
predominantemente corporativa, em que uma determinada empresa se
autodenomina como socialmente responsável – ou, no caso, ‘’azul’’ –, quando na
verdade desrespeita ou pouco se importa com os direitos humanos que tanto alega
proteger 4.
Para tal, é empregada uma estratégia de veiculação da oferta através do
marketing social, sustentando o discurso humanitário e autoconsciente de que a
instituição em específico é engajada com causas de teor humanitário, podendo, até
mesmo, estar relacionada com projetos e organizações não-governamentais que as
discutem. Entretanto, a mensagem transmitida não passa de jogada financeira, com
o objetivo basilar de captação de clientela. O consumidor, então, vulnerável por
natureza na relação jurídica, deixa-se levar pelos valores éticos desse tipo de
publicidade, vindo a achar, por exemplo, que ao adquirir o produto ou serviço
daquele fornecedor ‘’azul’’, está corroborando para as pautas sociais que ele diz
contribuir 5.
Discute-se, então, a responsabilidade social que estas empresas tendem a
mascarar com fins evidentemente lucrativos. Em termos conceituais, ela pode estar
atrelada ao contrato social de Rousseau, como uma extensão que prega o
compromisso entre a sociedade e o indivíduo 6; bem como um compromisso entre a
instituição e o indivíduo, desde que suas ações contribuam para o desenvolvimento
sustentável 7; ou, ainda, como a concretização fática da função social da empresa 8.
Semelhante ao que acontece com o marketing social, a responsabilidade
empresarial nessa esfera comunitária, em seu cerne, é algo benéfico para o
desenvolvimento sustentável, aproximando grandes atores globais à perspectiva dos
4
WAKAHARA, Roberto. Bluewashing, desrespeito aos direitos fundamentais laborais e propaganda
enganosa. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, SP, n. 50, p. 165-175,
jan./jun. 2017. p. 169.
5
VERBICARO, Dennis; OHANA, Gabriela. O reconhecimento do dano moral coletivo consumerista
diante da prática empresarial do bluewashing. Revista de Direito do Consumidor. Ano 29. v. 129.
maio-jun./2020. p. 369-398.
6
KOCHAN, Thomas A. Reconstructing America’s Social Contract in Employment: the role of policy,
institutions, and practices. Chicago-Kent Law Review, v. 75, 1999, p. 137-150.
7
ASHLEY, Patrícia Almeida. Ética e responsabilidade social nos negócios. São Paulo: Saraiva, 2002.
8
FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Função social e função ética da empresa. Revista
Jurídica da UniFil, n. 2, 2005, p. 67-85.
536
Maria Clara Tavares Santana da Silveira & Fabrício Germano Alves
problemas mundiais; porém, no contexto da ‘’lavagem azul’’, a finalidade é desviada,
tendo esse discurso o único pretexto de angariar público a fim de adquirir recursos.
O próprio termo Bluewashing, inclusive, remete à ligação com essas
causas sociais. Cunhado em referência aos ‘’cabeças azuis’’ da Organização das
Nações Unidas (ONU), trata-se de um conceito de rechaço às missões de paz, em
sua grande maioria, de pouco impacto ou nenhuma resolução a curto prazo. Noutras
palavras, quando levado à baila quanto às corporações, critica justamente o
posicionamento errôneo destas que se dizem comprometidas com a defesa dos
direitos humanos e pautas globais, apenas para agregarem valor ao seu produto ou
serviço final.
É comum, a propósito, que as mesmas empresas que se dizem
socialmente responsáveis e tão engajadas com essas causas de enorme valia
descumpram os direitos humanos em seu interior, ou seja, na própria cadeia de
produção, indo contra, por exemplo, à dignidade de seus trabalhadores 9: o que se
entende por ‘’dumping trabalhista’’, com a eliminação de concorrência através da
violação recorrente dos direitos laborais de maneira desleal, com o objetivo de
auferir para si vantagens financeiras e econômicas 10.
De igual forma, aquelas instituições que participam do Pacto Global das
Nações Unidas por intento de avanço das relações públicas, sem real compromisso
com a melhora de suas atividades empresariais ou zelo aos direitos humanos,
também se encaixam no fenômeno de ‘’lavagem azul’’ 11, embora o programa, em si,
seja o maior da atualidade no que tange ao corporativismo voluntário de
responsabilidade sócio-ambiental.
À vista disso, quanto maior a empresa, maior a responsabilidade social que
ela detém, bem como o marketing em cima de sua marca deve acompanhar esse
gigantismo. No que concerne às funções ou repartições dessa responsabilidade,
sabe-se que ela pode estar voltada à sociedade como um todo, combatendo, a título
9
FERREIRA, Vanessa Rocha; Pereira, Zaira Manuela Castro de. A precarização do direito social ao
trabalho e o fenômeno da terceirização. In: Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 15 (29). jul.-dez. 2015,
p. 201-221.
10
FERREIRA, Vanessa Rocha, RODRIGUES, Leonardo Nascimento. Dumping social trabalhista: a
concorrência desleal e a violação aos direitos dos trabalhadores. Cadernos de Direito, Piracicaba, v.
14(27): 217-230, jul.-dez. 2014.
11
HARPUR, Paul. New governance and the role of public and private monitoring of labor conditions:
sweatshops and china social compliance for textile and apparel industry/CSC9000T. The Internet
Journal of Rutgers School of Law, v. 38, 2011.
537
Bluewashing e a publicidade enganosa
de exemplo, a pobreza; à área de afetação de alguma atividade sua, quiçá, numa
comunidade ribeirinha; ou focada em seu quadro de produção, garantindo melhores
condições laborais para seus empregados, o aprimoramento das técnicas de gestão,
etc 12.
Dessarte, quanto maior a empresa e seu alcance publicitário, maiores são
as consequências do Bluewashing. Afinal, denota-se uma preocupação imensa que
as mesmas têm com sua própria imagem, que é a principal chave de retorno
financeiro, o que torna a sua veiculação imprescindível e a façanha moral, no
mínimo, questionável. No âmbito jurídico, pode ser considerado como prática de
publicidade enganosa, já que a informação propagada não necessita,
prioritariamente, ter ligação somente com o produto ou serviço ofertado, e sim com
qualquer meio, direto ou indireto, do qual a empresa se utiliza para vendê-los 13.
Nisso, tomando o direito como uma ferramenta de restauração danosa,
hodiernamente, há de se considerar que existe, tanto na previsão legal quanto no
reconhecimento do meio jurídico, a possibilidade de se reparar os danos de natureza
moral, em destaque para aqueles oriundos do desrespeito aos direitos trabalhistas
no enleio das instituições envolvidas 14, e os referentes à publicidade enganosa, nos
termos do artigo 37, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor de 1990 15.
3 A PUBLICIDADE ENGANOSA
Em princípio, muito se discute doutrinariamente qual é o verdadeiro
conceito de ‘’publicidade’’, e se este difere ou não do de ‘’propaganda’’. Em um
sentido mais amplo, é tida como uma indomável força que comanda o mundo
negocial 16, o símbolo próprio e verdadeiro da identidade moderna 17, o principal meio
12
WAKAHARA, Roberto. Bluewashing, desrespeito aos direitos fundamentais laborais e propaganda
enganosa. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, SP, n. 50, p. 165-175,
jan./jun. 2017. p. 167.
13
WAKAHARA, Roberto. Bluewashing, desrespeito aos direitos fundamentais laborais e propaganda
enganosa. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, SP, n. 50, p. 165-175,
jan./jun. 2017. p. 171.
14
VERBICARO, Dennis; OHANA, Gabriela. O reconhecimento do dano moral coletivo consumerista
diante da prática empresarial do bluewashing. Revista de Direito do Consumidor. Ano 29. v. 129.
maio/jun. 2020. p. 394.
15
BRASIL. Lei n. 8078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 07 set. 2023.
16
BITTAR FILHO, Carlos Alberto. “O controle da publicidade: sancionamento a mensagens
enganosas e abusivas”. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, 126-31, 1992, p. 127.
538
Maria Clara Tavares Santana da Silveira & Fabrício Germano Alves
de veiculação de oferta, tomando forma de um verdadeiro fenômeno cultural. Em
território brasileira, possui regulamentação mista. Isto é, em parte, privada, pelo
Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR); em parte,
pública-legal, pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), com o controle exercido
por órgãos como o Ministério Público.
Em seu cerne, possui quatro princípios principais, cada qual norteando
uma função-organizadora diferente. São eles: o da Obrigatoriedade da Informação,
pelo qual toda informação disponibilizada deve ser clara e suficientemente precisa
(artigo 30); o da Veracidade, com a devida indicação verídica das informações
basilares e pertinentes ao produto ou serviço oferecido (artigo 37, § 1º); o da
Disponibilidade, atrelado à disposição de todo e qualquer dado, seja este fático,
científico ou técnico artigo 36, parágrafo único; e o da Transparência (artigo 36), que
como a própria nomenclatura já sugere, não permite nenhum tipo de mensagem
publicitária subliminar, falsa ou dissimulada, de onde urge o dever de informar.
Criam-se, assim, verdadeiras expectativas no consumidor, que precisam ser
protegidas pelo direito 18.
Não deve ser confundida com o dever de informar. Este, por outro lado, é
subsidiário, uma vez que é de faculdade do fornecedor a maneira como pode ofertar
seus produtos e serviços. Publicidade, noutros termos, serve de artifício, de
instrumento, de meio de veiculação, razão pela qual sua regulação é orquestrada
pelo CDC 19, especificamente no capítulo V, seção II.
Há de se destacar, então, que existe uma distinção, embora meramente
doutrinária, entre ‘’propaganda’’ e ‘’publicidade’’. A primeira, mais ampla, do latim
propagare, significa propagar algo, a termo de uma ideia, de uma teoria, seja no
âmbito político, ou mesmo no econômico, religioso, social, filosófico e ideológico 20;
ao passo em que a segunda, direcionada, também do latim publicus, é associada
17
ALPA, Guido. Diritto Privato dei Consumi, Editora A. Guiffrè, Milano, 1976, p. 123.
18
DIAS, Lucia Ancona Lopez de Magalhães. Publicidade e direito. São Paulo: Saraiva Educação,
2018. p. 91.
19
ALEXY, Robert: Teoria dos Direitos Fundamentais, trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros Editores, 2011.
20
CHAISE, Valéria Falcão. A Publicidade em face do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo:
Saraiva, 2001, p. 10.
539
Bluewashing e a publicidade enganosa
àquilo que é de conotação pública, necessitando para tal, de negociação, com
finalidade comercial 21.
Ademais, a propaganda, por si só, não é objeto de regulação do CDC, não
conseguindo, por fim, engendrar relações jurídicas de consumo, motivo pelo qual
não faz parte do microssistema em análise 22.
Em matéria legislativa, a publicidade contempla essa mesma finalidade
comercial, cuja divulgação de toda e qualquer informação é voltada para o ensejo do
consumo, ou seja, do estímulo, por mais que direto ou indireto, da aquisição daquele
produto ou serviço em específico, independente de qual o meio utilizado para isso.
Não pode e tampouco deve, então, o anúncio publicitário faltar com a verdade no
que é ofertado ao público, seja por ação ou por omissão, e ainda que sob a
manipulação capaz de induzir ao erro 23.
Todavia, ao se tratar de publicidade ilícita como gênero, é que se aborda
sobre publicidade abusiva e enganosa como espécies. Publicidade ilícita, em
resumo, é aquela capaz de atingir a vulnerabilidade inerente ao consumidor
juntamente aos seus valores enquanto ser humano, infringindo, desta feita, a
legislação consumerista em seu cerne, além do próprio preceito constitucional de
dignidade da pessoa humana 24. É veemente proibida pelo artigo 37 da Lei n° 8.078
de 1990, o CDC.
Publicidade abusiva, perante tal viés, abrange as mensagens publicitárias
que afetam a vulnerabilidade do consumidor, isto é, do polo mais fraco da relação
jurídica consumerista, desviando-se, por reação em cadeia, dos princípios
constitucionais da dignidade humana, do trabalho digno, do pluralismo político, etc.
É de ataque direto, manifestando-se sob a forma discriminatória, podendo incitar
também, por exemplo, a violência, além de se dirigir a grupos hipervulneráveis,
como crianças e idosos 25 – momento em que a ingenuidade e o pouco senso crítico
21
JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Publicidade no Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense,
1996, p. 8.
22
ALVES, Fabrício Germano. Direito publicitário: proteção do consumidor. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2020, p. 114.
23
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 448.
24
EFING, Antônio Carlos; BERGSTEIN, Laís Gomes; GIBRAN, Fernanda Mara. A ilicitude da
publicidade invisível sob a perspectiva da ordem jurídica de proteção e defesa do consumidor.
Revista de Direito do Consumidor, v. 21, nº 81, p. 91-116. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan/mar.
2012.
25
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor
Comentado pelos Autores do Anteprojeto. São Paulo: Forense Universitária, 2018.
540
Maria Clara Tavares Santana da Silveira & Fabrício Germano Alves
são levados em consideração 26, a fim de facilitar a manipulação voltada a esses
contingentes.
Diferentemente da anterior, mas igualmente danosa, a publicidade
enganosa é a responsável por induzir o consumidor ao erro, ao inverter o sentido de
determinada mensagem publicitária e até modificá-lo, de maneira a intervir logo no
momento decisório da aquisição de determinado produto ou serviço. Tal sentido não
precisa ser necessária e totalmente dissimulado, bastando apenas uma pequena
parte da informação para que se configure o tipo.
Divide-se em comissiva, quando subsiste a legítima intenção de acarretar o
dano, afirmando-se algo que não é de fato; e omissiva, no que se deixa de informar
algo essencial ao produto ou serviço em questão, e que decerto influenciaria no
momento decisório de aquisição 27. Ambas as formas, contudo, possuem a mesma
premissa, ou seja, de levar o consumidor ao erro, quer seja de maneira direta, quer
seja de maneira indireta: característica importante quando vinculada ao fenômeno
de Bluewashing.
4 A RESPONSABILIDADE CIVIL NO CASO DE PUBLICIDADE ENGANOSA
ATRELADA AO BLUEWASHING
A relação entre o Bluewashing e a publicidade enganosa aduz, desta feita,
ao fato de que as empresas, ao se utilizarem da estratégia do marketing social e
manipularem a mensagem publicitária, autoproclamando-se como ‘’azuis’’ ou
‘’socialmente responsáveis’’, manifestam nos consumidores a vontade destes em
adquirirem seus produtos ou serviços, por meio do ideal falsamente humanitário.
Isso acontece em decorrência do efeito do consumismo do capitalismo
contemporâneo, em que o consumidor crê, através dos anúncios publicitários que
ensejam a prática do Bluewashing, estar sendo inserido em uma cadeia de produção
sustentável e solidária, participando, mesmo que indiretamente, do combate às
mazelas mundiais, como a pobreza, a fome, e a degradação ambiental 28.
26
PORTO, Renato. Pequenos navegantes: a influência da mídia nos hábitos de consumo do público
infanto-juvenil. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti (coord.). Direito
digital: direito privado e internet. 3. ed. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 532.
27
GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do consumidor. 5 ed. Niterói: Impetus, 2009, p. 226.
28
VERBICARO, Dennis; SILVA, Luíza Tuma da Ponte; SIMÕES, Sandro Alex. A relevância da
atuação estatal no combate às práticas empresariais de greenwashing e bluewashing nas relações de
consumo. Revista Jurídica Cesumar. v. 21 n. 1. jan./abr. 2021. p. 69.
541
Bluewashing e a publicidade enganosa
Tal efeito, ainda, por ser tão abrangente e persuasivo, pode se dar por
meio de qualquer molde publicitário, desde o promocional, o misto, e sobretudo o
institucional.
Na publicidade promocional, que tem por escopo promover a venda de
produtos ou serviços ofertados no mercado de consumo pelo fornecedor 29, a
mensagem subliminar ou modificada traz em seu discurso um valor humanitário,
dando a entender que aquele consumidor que por acaso o adquirir, estará
contribuindo para uma determinada causa social.
Por outro parâmetro, na publicidade mista, que tanto promove a venda do
produto ou serviço quanto os valores supostamente éticos e morais da marca 30, o
anúncio ora pode levar o consumidor a adquirir o bem que é tido como sustentável,
ora é capaz de trazer a lavagem azul à imagem do fornecedor.
E por fim, na publicidade institucional, em precisão, a publicidade
corporativa, a divulgação apenas do nome ou da marca do fornecedor-anunciante
traz consigo um objetivo indireto, implícito 31, que ao imergir no fenômeno do
Bluewashing, trata a empresa como sustentável, responsável, e até devidamente
interligada às causas sociais. Não há oferta explícita do produto ou serviço que o
consumidor venha a adquirir, mas o intuito velado de fazer com que este se
sensibilize com a proposta solidária do polo mais forte da relação jurídica, bem no
momento decisório da compra.
Porquanto, na ocasião de um dano a certo sujeito, usa-se a
responsabilidade civil para obrigar o causador a repará-lo e/ou indenizá-lo, desde
que a indenização seja suficiente de repor as pessoas e coisas ao estado anterior,
sujeitas à deterioração – para as coisas – e às perdas e danos – para as coisas e
também as pessoas 32.
No que tange à legislação consumerista, a responsabilidade levada à baila
é a responsabilidade objetiva, cujo embasamento se sustenta, sobremaneira, na
29
BRITO, Dante Ponte de. Publicidade subliminar na internet: identificação e responsabilização nas
relações de consumo. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2017. p. 147.
30
BRITO, Dante Ponte de. Publicidade subliminar na internet: identificação e responsabilização nas
relações de consumo. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2017. p. 148.
31
ALVES, Fabrício Germano. Direito publicitário: proteção do consumidor. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2020. p. 144.
32
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Manual de direito civil: obrigações. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 253.
542
Maria Clara Tavares Santana da Silveira & Fabrício Germano Alves
Teoria do Risco, na qual se acredita que todo produto ou serviço, ao ser lançado no
mercado de consumo, está sujeito à geração de infortúnios e o fabricante, então,
aos riscos do empreendimento 33, com previsão nos artigos 12 e 14 do CDC.
Tomando a publicidade ilícita como gênero e a publicidade abusiva e
enganosa como espécies, infere-se que são vedadas pelo artigo 37 do mesmo
dispositivo, e a responsabilidade cabível, a objetiva, independendo de quaisquer
apreciações subjetivas dos que auxiliaram na sua inserção no mercado de
consumo 34.
Seguem-se os moldes dos artigos 30 e 35 para a responsabilização,
denotando que o anunciante, em outras palavras, o fornecedor, é aquele que será
responsabilizado objetivamente; na medida em que para o veículo de comunicação,
deverá ser comprovada a culpa ou dolo de sua conduta, sob o desiderato da
responsabilidade subjetiva.
Já no artigo 7°, parágrafo único, entende-se que a responsabilização é
distribuída solidariamente entre todos os envolvidos na veiculação da oferta,
reparando-se a todos os danos subsequentes. Caso haja patente de publicidade
enganosa ou quando a empresa de comunicação se encontra ciente da lavagem
azul, torna-se reconhecida a responsabilidade deste pela violação aos deveres de
vigilância e boa-fé dos anúncios que se propõe a veicular 35.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, tem-se que há uma interseção entre o fenômeno do
Bluewashing e a propagação da publicidade enganosa através do marketing social,
sob a luz do Código de Defesa do Consumidor de 1990. A lavagem azul, enquanto
estratégia de captação de clientes, busca promover uma imagem socialmente
responsável das grandes empresas que pouco ou nada se comprometem de
verdade com causas de grande valor, potencializando uma percepção distorcida da
realidade que muito é proveitosa no cenário do capitalismo contemporâneo.
33
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
34
PASSOS, Michelle Barreto. O controle jurídico da publicidade ilícita. 1. ed. Goiânia, Edição do
Autor, 2013. E-book.
35
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Grupo GEN, 2019. E-
book, p. 163.
543
Bluewashing e a publicidade enganosa
Por meio do marketing social em todos os âmbitos da publicidade, isto é, a
promocional, a institucional e a mista, identificou-se a origem do engano deliberado
dos consumidores que, induzidos ao erro, sustentam e corroboram, mesmo que
inconscientemente, para a manutenção desses grandes fornecedores no mercado
de consumo, em um patamar em que estes sejam capazes de assumir a figura de
atores globais.
Foi trazida à baila, também, a questão da responsabilidade civil sob a égide
normativa do CDC, destacando seus tipos – objetiva e subjetiva – e casos de
cabimento, que diferem, por óbvio, da usualidade do Código Civil de 2002. Via de
regra, percebeu-se que ela é objetiva, todavia, ao se debruçar sobre o envolvimento
das empresas de comunicação, por exemplo, é aplicada a subjetiva, com a devida
comprovação da culpa ou dolo da conduta anunciante para a imputação de
reparação.
Outrossim, ao se analisar a natureza dinâmica do fenômeno com suas
diferentes estratégias de veiculação de oferta, pode-se levantar um ponto importante
quanto à segurança jurídica atribuída ao tipo de regulamentação e fiscalização dos
anunciantes, sejam eles os próprios fornecedores ou terceiros, uma vez que, no
Brasil, é adotado o regime misto, logo, em parte privado, pelo CONAR; em parte
público, pelo Ministério Público e órgãos afins.
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e propaganda enganosa. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª
Região, Campinas, SP, n. 50, p. 165-175, jan./jun. 2017.
546
Análise da participação ativa das pessoas com deficiência nas
eleições paraibanas de 2018 e 2022
Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira 1
Célia Virgínia Almeida da Costa 2
Luis Henrique Mendes de Melo 3
1. Introdução
Cotidianamente veem-se debates, nas mais variadas esferas do
conhecimento e da comunicação sobre a temática de inclusão e/ou de exclusão
social das pessoas com deficiência (PcD). Fruto de muita luta, a inclusão das
pessoas com deficiência no âmbito social e jurídico é relativamente recente,
podendo-se destacar três marcos históricos: a) Declaração Universal dos
Direitos Humanos proclamada em 10 de dezembro de 1948, por meio do art. 25.
Resolução 217, ao fazer menção à pessoa “inválida”; b) Declaração dos Direitos
das Pessoas Portadoras de Deficiências aprovada pela assembleia geral da
Organização das Nações Unidas e instituída pela Resolução 30/84, de 09 de
dezembro de 1975, a qual garantiu aos portadores de deficiência os direitos
inerentes à dignidade humana, assegurando, inclusive, direitos civis e políticos;
c) o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146, de 6 de Julho de 2015),
que em seu art. 1º elenca seu principal objetivo que se traduz na observância de
se “assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos
e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua
inclusão social e cidadania” 4, possibilitando, assim, trazer para as mesas de
tomadores de decisão e formuladores de políticas públicas temas desafiadores
de condão humanitário relacionados às pessoas com deficiência, como
acessibilidade, educação especial e inclusiva, tecnologia assistida voltada para
os PcD.
Mesmo com significativos avanços normativos em prol da inclusão social
das PcD, Paiva; Bendassolli 5 destacam que ainda há desigualdades, em áreas
essenciais ao pleno exercício da cidadania, como trabalho, educação e salário,
1 Professora Doutora e professora da UEPB e UNIPÊ - PB.
2 Mestranda do Programa de Mestrado em Direito pela UNIPÊ PB.
3 Mestre pelo PRODEMA/UFPB e especialista em Direito Constitucional.
4 (BRASIL, 2015)
5 Paiva; Bendassolli (2017, p. 426)
547
Análise da participação ativa das pessoas com deficiência nas (...)
quando comparadas às populações com e sem deficiência, tendo a última mais
acesso em todos os quesitos. Fatos estes que fazem surgir diversos
questionamentos, a exemplo de: Como resolver essa crescente demanda da
população das pessoas com deficiência? Como mitigar os efeitos deletérios e
excludentes dessa realidade?
Partindo da premissa que a República Federativa do Brasil é um Estado
Democrático de Direito, na qual possui como fundamentos tanto a cidadania
como a dignidade da pessoa humana, em seu art. 1º, faz-se necessária a
reflexão quanto ao direito das pessoas com deficiência de exercerem
plenamente sua cidadania. Na busca da promoção desta cidadania inclusiva,
torna-se essencial a efetivação dos direitos políticos, sejam passivos ou ativos.
Isso posto, surge a principal indagação do presente trabalho: o ordenamento
jurídico brasileiro dispõe de ferramentas capazes de viabilizar o exercício da
capacidade eleitoral ativa das pessoas com deficiência?
Neste diapasão, o trabalho teve como objetivo principal analisar o
exercício da capacidade eleitoral plena das PcD nas eleições no estado da
Paraíba, tomando por base as eleições gerais de 2018 e 2022. Dentro desse
cenário, no intuito de viabilizar de forma mais clara o estudo, objetivou-se,
especificamente, investigar a evolução legislativa da ideia jurídica de deficiência.
Assim como, avaliar o normativo eleitoral brasileiro acerca do exercício da
capacidade eleitoral ativa e passiva da pessoa com deficiência. Por fim,
identificar os dados das eleições gerais paraibanas de 2018 e 2022, com relação
à participação ativa da PcD.
Quanto à materialização da pesquisa, optou-se por organizá-la em três
etapas. A primeira é de caráter introdutório abordando sobre a evolução
legislativa da ideia jurídica de deficiência, elegendo-se por realizar uma pesquisa
teórica a partir de pesquisa bibliográfica em literatura nacional e internacional
recente, assim como na legislação nacional pertinente à temática.
A segunda etapa buscou-se o conceito e especificidades do exercício da
capacidade eleitoral ativa e passiva, avaliando o ordenamento jurídico eleitoral
brasileiro, buscando desse modo identificar a existência ou não de ferramentas
capazes de viabilizar o exercício da capacidade eleitoral ativa das PcD.
Igualmente a primeira seção, realizou-se pesquisa teórica em bibliografia
nacional e em legislação específica.
548
Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira, Célia Virgínia Almeida da
Costa & Luis Henrique Mendes de Melo
Diante dessa construção, coube à terceira fase, e última parte, avaliar os
dados das eleições gerais no estado da Paraíba no poder legislativo, federal e
estadual e poder executivo, nacional e estadual que ocorreram nos pleitos de
2018 e 2022, tendo como foco a participação ativa das pessoas com deficiência.
Utilizando-se de análises quantitativas e qualitativas de dados oriundos de
bancos de dados populacionais (v.g. IBGE), assim como dados eleitorais de
consulta pública (TSE e TRE-PB), com o intuito de dar visibilidade à realidade
da participação eleitoral da população PcD com domicílio eleitoral na Paraíba.
2. Evolução da ideia jurídica de pessoa com deficiência no Brasil
O ordenamento jurídico brasileiro, baseia-se em sua essência, na visão
hierarquizada de Kelsen, tendo como fonte formal primária a Constituição, da
qual se irradiam as demais normas infraconstitucionais, estas criadas,
precipuamente, por um poder legislativo de representação indireta, na tentativa
de atender às demandas sociais da coletividade ou a grupos específicos, em um
determinado espaço e tempo.
Posto isso, é premente entender que, mesmo sendo pacificado em todas
as esferas da sociedade, toda pessoa tida como PcD é detentora de capacidade
de fato e de direito, seja na esfera cível, quanto nas demais, ao longo de nossa
história jurídica, nem sempre houve clareza quanto ao conceito de pessoa com
deficiência. Sendo assim, faz-se necessária uma reflexão, mesmo que sintética,
da evolução temporal da ideia jurídica de pessoa com deficiência no Brasil.
Segundo Silva 6, historicamente as deficiências e doenças incapacitantes
estiveram presentes na vida humana e as nomenclaturas utilizadas para
designar as PcD foram das mais variadas, preconceituosas e retratam
concepções equivocadas, a seguir: “inválido”, “deficiente”, “excepcional”,
“pessoa portadora de deficiência”, “pessoa portadora de necessidades
especiais”, “louco de todo gênero, “pessoa com deficiência”.
Outro autor que corrobora com essa temática é Leite 7, ao ponderar que
os termos “excepcional”, “inválido” e “deficiente” têm conteúdo flagrantemente
preconceituoso, pois trazem a ideia de que as pessoas que se encontram fora
6 Silva (2009, p. 117).
7 Leite (2007, p. 107).
549
Análise da participação ativa das pessoas com deficiência nas (...)
dos padrões, não são válidas, não são eficientes, e também excludente, porque
ressaltam mais as diferenças que as similitudes, em relação aos demais, dos
indivíduos que qualificam.
No tocante à conceituação, os doutrinadores evoluíram seus
entendimentos acerca da pessoa com deficiência, passando a utilizarem
concepções mais inclusivas e menos discriminatórias. Assim, para Pontes de
Miranda 8, antes da CF/88, as PcD eram: “pessoas que, por falta ou defeitos
físicos ou psíquicos, ou por procedência anormal (nascido, por exemplo, em
meio perigoso), precisam de assistência.” Decorridas mais de duas décadas, a
ideia mudou, como preceitua Samir Dib Bachour ”Partindo-se da evolução atual
do conceito de deficiência, que a correlaciona às barreiras existentes na
interação de certas pessoas com o meio, se há insuficiência ou falha, a
deficiência consiste justamente na remoção destes óbices. A percepção por esta
outra perspectiva retira a conotação negativa que recai sobre a pessoa e a
desloca para a insuficiência da adaptação do meio à diversidade das
necessidades de todos aqueles que integram a coletividade” 9.
No que tange à evolução legislativa no Brasil e, consequente, proteção
aos direitos fundamentais das pessoas com deficiência, as primeiras
Constituições Federais do Brasil (1824 e 1891) previram, na primeira, o direito à
igualdade, no art. 179, XIII e na segunda, o direito à igualdade, no art. 72, §2º e
à aposentadoria por invalidez dos funcionários públicos, no art. 75.
O art. 138 da Constituição de 1934, acrescentou aos direitos
anteriormente propugnados, o direito à integração social da pessoa deficiente e
incumbiu a União, dos Estados e dos Municípios a “assegurar amparo aos
desvalidos”. Por sua vez, as Constituições de 1937, 1946 e 1967 previram o
direito à igualdade; o direito à aposentadoria dos funcionários públicos por
invalidez e direito à previdência ao trabalhador que se tornar inválido.
A Emenda Constitucional n. 12 à Constituição de 1967, de 17 de outubro
de 1978, “trouxe a maior e mais expressiva inovação em relação à proteção
específica das pessoas com deficiência, fazendo prever os direitos a não
discriminação, ao acesso ao trabalho, à educação especial, à assistência e à
acessibilidade” 10. Foi com esta emenda constitucional que as pessoas com
8 Pontes de Miranda (2003 apud LEITE, 2007, p. 98).
9 (BACHOUR, 2011, p. 30).
10 (HIDALGO, 2011, p. 98).
550
Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira, Célia Virgínia Almeida da
Costa & Luis Henrique Mendes de Melo
deficiência, mesmo de forma incipiente, começaram a ter seus direitos
assegurados.
Um divisor de águas para as pessoas com deficiência, foi a Constituição
Federal de 1998, mesmo que estas foram equivocadamente referidas como
“pessoa portadora de deficiência”, expressão esta que foi questionada. De igual
modo, pode-se aferir com a nomenclatura “pessoa com necessidade especial".
Outra terminologia observada em diplomas legais infraconstitucionais, era a
expressão “loucos de todo gênero” sendo abolida pelo legislador no novo Código
Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) e substituída por “enfermidade ou
deficiência mental”, da qual decorra falta de discernimento (art. 3º, II),
posteriormente, o Estatuto das Pessoas com Deficiência suprimiu o termo 11,12,13.
É evidente que esta luta por dignidade e cidadania das pessoas com
deficiência não teve início com a Carta Magna de 1988. A Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo aprovou em
Nova Iorque, em 30 de março de 2007, a expressão pessoa com deficiência
tendo, na década seguinte, sido acolhida pela Lei n. 13.146, de 6 de julho de
2015 que, atualmente, estabelece a inclusão da PcD e se destina a “assegurar
e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das
liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão
social e cidadania".
Compreendido o que é pessoa com deficiência para efeito de sua tutela
jurídica, passa-se à abordagem do sistema normativo eleitoral brasileiro.
3. Avaliação do ordenamento jurídico brasileiro acerca do exercício da
capacidade eleitoral ativa e passiva da PcD
Um dos princípios norteadores da democracia é a participação popular, o
exercício dos direitos políticos por cidadãos ativos e plurais corroboram para a
justiça social e o Estado Democrático de Direito, pois não há democracia sem a
participação popular, trata-se de um círculo virtuoso onde democracia, cidadania
e direitos políticos se completam. Para Pateman 14, um sistema realmente
11 (SILVA, 2009).
12 (LEITE, 2007).
13 (BRASIL, 2002).
14 Pateman (1992, p. 41).
551
Análise da participação ativa das pessoas com deficiência nas (...)
democrático deve favorecer a máxima implicação dos cidadãos e cidadãs na
definição das leis e no delineamento das políticas: em seu ambiente, o processo
participativo deve assegurar que nenhum indivíduo ou grupo esteja acima de
outros indivíduos ou grupos; as camadas sociais são dependentes entre si e,
desse modo, devem igualmente ser abrigadas pelo sistema legal.
Outrossim o capítulo IV - Do Direito à Participação na Vida Pública e
Política -, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, (Lei nº 13.146/ 2015) versa
acerca do direito de votar e ser votado e reconhece o exercício do direito político
como tradução do princípio da dignidade humana das pessoas com deficiência,
em consonância com a cláusula pétrea da CF/1988, que estabelece que “todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente”. O entendimento de Santos 15 uniformiza-se com o Estatuto da
Pessoa com Deficiência, quando fala: ”Temos o direito a ser iguais quando a
nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa
igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que
reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou
reproduza as desigualdades.”
Ultrapassadas essas primeiras ponderações, mister se faz conceituar
capacidade eleitoral ativa e passiva. No pleito de 2022, o Brasil possuía
156.454.011 de eleitores aptos a votar, isso significa dizer que essa quantidade
de cidadãos brasileiros são detentores de capacidade eleitoral ativa 16. Segundo
o Glossário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a capacidade eleitoral ativa é o
reconhecimento legal da qualidade de eleitor, no tocante ao exercício do
sufrágio. Assim, O eleitor, alistado na forma da lei, no gozo dos seus direitos
políticos e apto a exercer a soberania popular, por meio do sufrágio universal,
pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos e mediante os instrumentos
de plebiscito, referendo e iniciativa popular das leis tem capacidade eleitoral
ativa. Já capacidade eleitoral passiva, é a susceptibilidade de ser eleito, portanto,
para ser candidato, o eleitor deve estar em dia com as suas obrigações eleitorais,
cumprir as condições de elegibilidade preconizadas no art. 14 da CF/1988 e não
incorrer em nenhuma situação de inelegibilidade prevista na Lei Complementar
nº 64/1990 e no art. 14 da CF/1988 17.
15 Santos (2003, p. 30).
16 (TSE, 2023).
17 (TSE, 2023).
552
Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira, Célia Virgínia Almeida da
Costa & Luis Henrique Mendes de Melo
A capacidade eleitoral ativa e passiva é um direito fundamental do cidadão
brasileiro, inclusive daqueles que possuem deficiência e o ordenamento jurídico
eleitoral brasileiro tem evoluído para garantir a inclusão das pessoas com
deficiência no processo eleitoral 18.
Como dito acima, a lei nº.13.146/ 2015 trouxe grande avanço para os
direitos políticos das pessoas com deficiência e, por força do artigo 114, que
restringiu a incapacidade civil absoluta a uma única hipótese,- a dos menores de
16 anos-, assegurando, capacidade política ativa e passiva aos indivíduos com
deficiência intelectual ou mental. Importante frisar que as pessoas com
deficiência e em regime de curatela têm capacidade eleitoral ativa, no entanto
não dispõem da capacidade eleitoral passiva, conforme preconiza o art. 85, § 1o,
do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Assim sendo, com fulcro no §1º do art. 14 da CF/1988, o alistamento e o
voto das pessoas com deficiência são obrigatórios, entretanto, o eleitor que não
tenha condições de cumprir com as obrigações eleitorais, pode requerer a
isenção das sanções legais decorrentes da ausência do alistamento e do
exercício do voto, nos termos do art. 15, §3º da Resolução TSE nº 23.659/2021 19.
Por outro lado, o Código Eleitoral 20 prevê condições especiais para
auxiliar o exercício do voto, como por exemplo, do eleitor deficiente visual no dia
da eleição, facultando a ele a utilização do sistema Braille, uso do sistema de
áudio ou usar qualquer elemento mecânico que levar consigo ou lhe for fornecido
pela Mesa, a fim de que possa exercer o direito de voto com autonomia.
Semelhantemente, é o do votante que, por sua condição, necessite do auxílio do
acompanhante para efetivamente votar, neste caso, o presidente da seção,
verificando ser imprescindível, autoriza o ingresso de pessoa da confiança do
eleitor na cabina de votação.
Entendida a capacidade eleitoral ativa e passiva das pessoas com
deficiência e seu exercício, segue-se para a análise dos dados das eleições
gerais paraibanas de 2018 e 2022.
18 (TSE, 2023).
19 (TSE, 2023).
20 (BRASIL, 1965).
553
Análise da participação ativa das pessoas com deficiência nas (...)
4. Análise das eleições paraibanas de 2018 e 2022, com relação à
participação ativa de PcD
Utilizando-se dados do TSE 21, no intuito de se ter um retrato da evolução
da participação de PcD eleições gerais (presidente, governador, senadores,
deputados federais e estaduais), analisaram-se comparativamente, os dados
referentes ao quantitativo de eleitores totais e o composto por PcD no Brasil e
na Paraíba, tendo como marca temporal os anos de 2018 e 2022.
No Brasil, para as eleições de 2018, existiam 147.306.275 eleitores aptos
a votar no país e no exterior, sendo 52,5% do sexo feminino (77.339.897),
47,45% masculino (69.902.977) e não informado 0,04% (63.401). Com relação
ao eleitorado das pessoas com deficiência 482.735 eram do sexo feminino,
457.046 masculino e não informado 134, totalizando 939.915 no pleito geral de
2018. Número este que representa 0,64% do eleitoral.
Em comparação, nas eleições de 2022 no Brasil, o eleitorado feminino
contabilizava 82.373.164 (52,65%), com deficiência 642.441 (0,78%). Os
eleitores do sexo masculino eram 74.044.065 (47,33%), com deficiência 628.827
(0,85%) e não informado 36.782 (0,02%), PcD 113 (0,31%), totalizando
156.454.011 e eleitores com deficiência 1.271.381 representando assim 0,81%
do eleitorado brasileiro. Comparando-se os dois pleitos, observou-se um dado
interessante: enquanto o eleitorado total brasileiro cresceu apenas 6,20%, o
eleitorado composto por PcD teve um considerável aumento de 35,7%.
Na Paraíba, nas eleições gerais de 2018, existiam 2.867.649 de eleitores
aptos a votar no país e no exterior, sendo 52,92% do sexo feminino (1.517.567),
47,08% masculino (1.350.082). Com relação ao eleitorado das pessoas com
deficiência 6.197 ( 0,41%) eram do sexo feminino, 6.881 (0,51%) masculino,
totalizando 13.078 nas eleições paraibanas de 2018 (0,22% do eleitorado total
paraibano).
Em paralelo, nas eleições paraibanas de 2022, o eleitorado feminino
contabilizava 1.634.223 (52,86%), com deficiência 8.226 (0,50%). Os eleitores
do sexo masculino eram 1.457.461 (414%), com deficiência 9.706 (0,67%),
totalizando 3.091.684 e eleitores com deficiência 17.932 (0,58%), o que
presentam um aumento duas vezes maior se comprarado com o período de
2018. Seguindo a tendência do cenário nacional, quando comprado o aumento
21 (TSE, 2023).
554
Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira, Célia Virgínia Almeida da
Costa & Luis Henrique Mendes de Melo
de eleitores totais no estado da Paraíba, no período em tela, houve um discreto
aumento de 7,81%. O grande diferencial aqui é o expressivo aumento de 289,7%
no eleitorado que se apresenta como PcD, deste período.
Importa destacar também que, quanto a participação passiva, ou seja, no
que concernente ao registro de candidaturas de pessoas com deficiência, em
consulta à base de dados do TSE, constatou-se que não existem dados
publicados no painel de estatísticas 22.
As primeiras informações referentes às candidaturas de pessoas com
deficiência se reportam aos anos legislativos de 2020 e 2022. A partir da eleição
geral de 2020, o TSE incluiu o preenchimento opcional da autodeclaração de
deficiência no registro de pedidos de candidaturas. Assim, em face da ausência
de dados relativos às candidaturas de pessoas com deficiência para as eleições
de 2018, seguem-se os dados para a eleição de 2022 no país.
No Brasil no pleito de 2022 foram candidatos 476 pessoas com deficiência
e 10 candidatos à reeleição 23. De acordo com o portal da Câmara dos
Deputados, no sufrágio de 2018, 02 candidatos com deficiência foram eleitos
para representá-los no Senado e na Câmara dos Deputados. Eleito pelo estado
do Espírito Santo, Felipe Rigoni foi o único deputado federal com deficiência
visual na Câmara dos Deputados e, para o cargo de Senadora, Mara Gabrilli, de
São Paulo 24.
Na Paraíba, Maria Aparecida Ramos de Meneses, conhecida como Cida
Ramos, foi eleita deputada estadual nas legislaturas de 2018 e 2022, atualmente
preside a Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência na
Assembleia Legislativa da Paraíba, em conformidade com o portal de notícias do
referido parlamento.
5. Considerações finais
Diante do exposto, ficou evidenciado que a evolução legislativa da ideia
jurídica de pessoa com deficiência no Brasil é um processo contínuo e em
22 Estatísticas eleitorais. Disponível em: https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/r/seai/sig-
eleicao/home?session=227642756574274 Acesso em 28/12/2023.
23 Disponível em: https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/r/seai/sig-
candidaturas/defici%C3%AAncia?p0_ano=2022&session=227642756574274) . Acesso em
31/12/2023.
24 (PRIETO, 2018)
555
Análise da participação ativa das pessoas com deficiência nas (...)
constante evolução, cabendo ao ordenamento jurídico eleitoral garantir os
direitos das pessoas com deficiência e promover sua inclusão social para a
construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Neste sentido, ficou demonstrado que houve uma considerável mudança
de paradigma quanto à inclusão das pessoas com deficiência, notadamente,
quanto à efetivação da cidadania política e busca pela dignidade da pessoa
humana. Fato este evidenciado pela crescente normatização que protege e
possibilita efetivar direitos e garantias fundamentais, a exemplo da crescente
participação na seara política das pessoas com deficiência.
Ademais, as pessoas com deficiência devem atuar em várias frentes, tais
como geração de renda, educação, impacto da pobreza, exercício da capacidade
eleitoral passiva, dentre outros. Precipuamente, é mister que se eduque a
sociedade civil e os representantes políticos a respeito dos direitos e garantias
fundamentais das PcD, a fim de que as futuras gerações aceitem as pessoas
com deficiência como participantes iguais da sociedade.
Outro ponto de relevância ficou constatado nos dados: a participação
política ficou mais evidente, em especial, na capacidade eleitoral ativa do público
alvo deste trabalho. Acredita-se que esse resultado se deve ao aprimoramento
da legislação eleitoral brasileira, assim como em programas de enfrentamento
ao preconceito, ao capacitismo e exclusão social e política das PcD, a exemplo
do programa “Sou PCD”, realizado de forma contínua pelo TRE-PB. Salienta-se
também a necessidade de estímulo à participação passiva de PcD, haja vista
que, por se tratar de esferas, de legislativo, assim como executivo (nacional e
estadual), acredita-se que novas normas e políticas públicas poderão otimizar
sua eficiência, quando elaborada pelas mãos de quem vivencia tais demandas.
Por fim, com base na análise dos dados das eleições gerais nacionais e
paraibanas de 2018 e 2022, com relação à participação ativa da PcD, conclui-se
que, em ambos os cenários houve um modesto aumento no eleitorado, quando
comparado ao quantitativo total de 2018 e 2022. Contudo, algo de muito positivo
foi observado quando analisou-se o quantitativo do eleitorado PcD, tanto a nível
nacional, com um aumento expressivo de 37,5%, , quanto na Paraíba, o qual
apresentou um aumento de 289,7%. Provavelmente esse crescimento é fruto
desse aprimoramento legislativo, servindo de base no fomento de futuras
556
Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira, Célia Virgínia Almeida da
Costa & Luis Henrique Mendes de Melo
tomadas de decisões e formulação de políticas públicas que garantam ainda
mais o acesso de PcD aos cenários políticos.
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4274) . Acesso em 18/12/2023.
558
Profissionalização das empresas familiares como instrumento de
sustentabilidade e crescimento econômico
Manuelina Pires Barbosa 1
Hélcia Macedo Carvalho Diniz e Silva 2
1 INTRODUÇÃO
O cenário empresarial familiar contemporâneo enfrenta uma crescente demanda
por práticas que transcendem a mera busca pelo lucro, abraçando compromissos
éticos e responsabilidades socioambientais. Nesse contexto, a profissionalização das
empresas emerge como uma ferramenta estratégica crucial para impulsionar a
sustentabilidade e o crescimento econômico. À medida que as organizações se
adaptam a um ambiente de negócios dinâmico, a integração de práticas sustentáveis
não apenas atende às expectativas da sociedade, mas também se revela como um
diferencial competitivo substancial.
A profissionalização vai muito além de um processo meramente estrutural;
abrange toda uma transformação cultural, abraçando valores e práticas que alinham
o desenvolvimento econômico com a responsabilidade social e ambiental. Este artigo
propõe uma análise do papel da profissionalização como uma ferramenta eficaz para
impulsionar a sustentabilidade nas empresas familiares. Buscaremos compreender
como esta estratégia influencia tendências no mercado, modelos de gestão e ações
operacionais, integrando a sustentabilidade de maneira intrínseca à cultura
empresarial.
Com a nossa pergunta-problema: A falta de profissionalismo é obstáculo para
a efetivação das ações das empresas familiares para iniciar o processo de
sustentabilidade e consequentemente seu crescimento econômico? Ao explorar essa
1
Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo Centro Universitário de João Pessoa –
UNIPÊ; bolsista pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba.
2
Doutora em Filosofia pela PUC Rio/2016, Mestrado na UFPB/2006, licenciatura e bacharelado na
UFPB/2003; doutorado em linguística na PROLING/UFPB/2015; Doutorado sanduíche na
Universidade de Buenos Aires na CAPES/2014, mestrado em Letras Português na UFPB/2016
559
Profissionalização das empresas familiares como instrumento (...)
interconexão entre profissionalismo e sustentabilidade, objetivamos contribuir para o
desenvolvimento do conhecimento que não apenas reconheça a importância da
profissionalização como catalisadora da sustentabilidade, mas também forneça
insights práticos e orientações para empresas familiares que buscam adotar e/ou
fortalecer essas práticas.
Aqui vamos nos ater como empresa familiar, conforme a Amcham Brasil que
é a maior câmara Americana de comércio fora dos Estados Unidos, sendo um dos
modelos mais antigos do mundo. São sonhos entre pais, filhos e parentes que se
tornam uma organização de trabalho e renda. Onde membros da mesma família
trabalham na administração da empresa, nos investimentos e principalmente no
operacional de um negócio. Seja essa participação direta ou indireta. Em termos
jurídicos a confusão patrimonial entre os participantes na gestão de ativos. Outro
aspecto característico da empresa familiar é a relação entre integrantes não ser uma
relação estritamente profissional. Mesmo nos casos onde há regras bem definidas de
comportamento e convivência, há um fator emocional e de proximidade entre os
membros participantes da empresa que se unem para superar os desafios. Vale
lembrar que no Brasil, 90% das empresas são de perfil familiar.
E a profissionalização da empresa podemos entender como sendo aceitar
novos e muitas vezes externos sistemas de gestão, propriedades e práticas
familiares. Para Prof. John A. Davis do Cambridge Institute For Family Enterprise há
seis pilares para uma empresa familiar ser considerada profissional. Primeiramente,
ser atraente, desenvolver e reter colaboradores talentosos, tanto os internos como os
externos da família; tomar grandes decisões oportunas, ter o compromisso e
fortalecer a disciplina familiar, respeitar a hierarquia de gestão e capacitar aos
funcionários a ter gerência quanto a suas atividades, criar meios para ter
desempenhos e um ambiente de justiça constantemente e ter valores essenciais…..
“Que fique claro, a profissionalização da empresa não tem relação se os cargos são
de familiares ou não, e sim, com atitudes e comportamentos dos profissionais,
familiares ou não.”
Outro ponto foi conceituado pela Organização das Nações Unidas - ONU em
1987, “Sustentabilidade é suprir as necessidades do presente sem comprometer a
capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades.”
560
Manuelina Pires Barbosa & Hélcia Macedo Carvalho Diniz e Silva
Essa definição, vem da Our Common Future, Nosso Futuro Comum, da Comissão
Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada em 1983 pela ONU e foi
a primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland que presidiu.
A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica de autores nacionais e
estrangeiros, de natureza qualitativa e com o método hipotético-dedutivo. Iniciaremos
com uma abordagem sobre a contextualização da profissionalização de empresas
familiares; depois faremos uma conexão com os objetivos do desenvolvimento
sustentável e em seguida relacionamos com as dimensões jurídicas da
profissionalização das empresas familiares, finalizamos com as nossas
considerações finais e questionamentos para futuras pesquisas.
Neste contexto, nossa pesquisa se alinha ao imperativo global de alcançar
os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ODS da Organização das Nações
Unidas, estabelecendo a base para organizações mais conscientes e responsáveis
em busca de um equilíbrio sustentável entre o crescimento econômico e o impacto
positivo no meio ambiente e na sociedade.
2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA PROFISSIONALIZAÇÃO DE EMPRESAS
FAMILIARES
No panorama empresarial contemporâneo, as empresas familiares
desempenham um papel significativo na economia global. Segundo, a EY and
University of St. Gallen Family Business Index, nos revelou que agora em 2023 as
empresas familiares mais importantes no mundo apresentam um crescimento mais
rápido que o restante da economia global.
Entretanto, muitas dessas organizações enfrentam desafios únicos devido à
inserção entre as dinâmicas familiares e estratégias de negócios. A transição de
práticas informais para estruturas mais profissionais emerge como um elemento para
a manutenção e sucesso das empresas em um ambiente de negócios em constante
ebulição.
Ainda conforme a pesquisa da EY a receita de US$8,02 trilhões das 500 maiores
empresas familiares corresponde um aumento de 10% em relação ao ano de 2021.
Destaca o início de novas empresas familiares, em especial na Europa que houve um
acréscimo de 35%. Desse número 62% fizeram o registro na bolsa de valores e 47%
561
Profissionalização das empresas familiares como instrumento (...)
são do setor industrial que reflete uma recuperação nesse setor produtivo. E ao
mesmo tempo de extrema importância pela geração de empregos.
E outro dado que apresentaram é o inexpressivo índice de 23% das mulheres em
assentos em conselhos. Ou seja, há uma urgência nesta temática para avançar no
sentido de equiparar as oportunidades de género nas empresas familiares.
Historicamente, as empresas familiares são associadas a estruturas informais
de gestão, onde as relações familiares influenciam decisões operacionais e
estratégicas. Nas maiores 500 empresas familiares iniciaram suas atividades desta
maneira. Contudo, no contexto global, tornou-se evidente o impulsionamento pelas
complexidades do mercado, pelas regulamentações crescentes e ainda mais por uma
imagem corporativa sólida. É uma mudança estrutural, mas uma verdadeira
transformação cultural e operacional. Isso inclui a capacidade de gerir eficientemente
a transição de lideranças familiares para profissionais externos, bem como a
implementação de processos operacionais mais eficazes.
As empresas familiares estão reconhecendo a importância de adotar padrões
de gestão mais robustos, incorporando estratégias de negócios formais e
estabelecendo estruturas de governança corporativa que atendam às expectativas do
mercado e às demandas regulatórias. Essa mudança visa mitigar conflitos internos,
melhorar a tomada de decisões e fortalecer a imagem da empresa perante
investidores, clientes e outros stakeholders, que se compreendem por grupos e/ou
indivíduos que apresentam interesse pelos projetos, atividades e pelos resultados de
uma empresa.
Podemos perceber em alguns casos, que o processo de profissionalização não se
trata da renúncia dos valores familiares passados culturalmente a todos que fazem
parte da empresa. Mas, sim, pela incorporação de uma métodos de trabalhos,
protocolos, certificações para desenvolver profissionalmente ações que podem
garantir uma certa sustentabilidade e o crescimento econômico a longo prazo. Sendo
portando a gestão com base na profissionalização traz expertise externa, mas
também contribui para a inovação, competitividade e a capacidade de se adaptar
rapidamente a um ambiente de negócios em constante transformação.
Já as expectativas sociais e as dinâmicas do mercado, nas empresas familiares
emergem como um ponto crucial, um imperativo estratégico a partir da
profissionalização. Podemos perceber que essa transição contribui para a
continuidade dos negócios familiares, mas também, contribui para a construção de
562
Manuelina Pires Barbosa & Hélcia Macedo Carvalho Diniz e Silva
organizações mais sólidas, éticas e alinhadas com as exigências contemporâneas.
Com essa contextualização, uma análise mais profunda, novos estudos da
profissionalização das empresas familiares e todos seus desdobramentos evidenciam
o essencial para a compreensão abrangente do papel vital que essas empresas
desempenham no cenário global.
3 FATOR DETERMINANTE DA PROFISSIONALIZAÇÃO
A profissionalização nas empresas familiares é um processo multifacetado,
sendo guiado por diversos fatores que impactam diretamente o sucesso e a
viabilização da empresa. Para Davis, “culturas profissionais de empresas são
cultivadas pelos esforços dos líderes e por processos “formais” – tais como definir
metas e regras claras, avaliar desempenho e ética dos funcionários e contratar e
promover com base na capacidade de contribuir.”
Vamos explorar três elementos fundamentais desse processo: A valorização
do valor da empresa; A permanência de recursos competentes e a Inovação na
gestão.
3.1 A VALORIZAÇÃO DA EMPRESA FAMILIAR
A valorização do valor monetário da empresa representa entre outros pontos
um imperativo estratégico para qualquer empreendimento, inclusive para as
empresas familiares que buscam a profissionalização da empresa como fator
determinante na implementação de práticas que transcendem a visão puramente
financeira, incorporando aspectos de reputação e imagem da marca. Além da
transparência nas operações, com a comunicação eficaz e a entrega consistente de
produtos ou serviços de alta qualidade são elementos-chave nesse processo. A
respeito da construção de uma marca contribui para a lealdade dos clientes, atrai
investidores e favorece a criação de uma base sólida para o crescimento econômico
sustentável.
3.2 A PERMANÊNCIA DE RECURSOS HUMANOS COMPETENTES
Nesse é ponto primordial para a profissionalização da empresa familiar
porque é com a retenção de talentos nos mais diversos setores e cargos que vai criar
e estabelecer estratégias para atrair e garantir a permanência de recursos
competentes. Isso inclui a criação de um ambiente de trabalho positivo, políticas de
563
Profissionalização das empresas familiares como instrumento (...)
bônus e premiações, além de uma remuneração competitivas e o desenvolvimento
de programas de capacitação e progressão de carreira. Sim, pode ter também a
implementação de uma cultura organizacional que valoriza a contribuição individual,
reconhece o mérito e promove a vida profissional dos seus colaboradores. A
permanência de talentos assegura a continuidade operacional e impulsiona a
inovação e a excelência.
3.3 INOVAÇÃO NA GESTÃO
Na adoção de práticas modernas, a inovação na gestão é um elemento
transformador para as empresas familiares para incorporar e garantir a
profissionalização empresarial. Sendo imprescindível o investimento em tecnologias
avançadas, bem como os métodos de tomada de decisões baseados em dados
coletados. A integração de sistemas de gestão eficientes, a automação de processos
repetitivos e a utilização de análises de dados para previsões e estratégias são pontos
centrais. Como citamos acima na valorização de talentos, aqui, a promoção desses
colaboradores com uma mentalidade inovadora, como já sinalizamos em todos os
níveis da organização, encoraja a busca constante por melhorias e a adaptação às
mudanças do ambiente das empresas familiares.
Para avançarmos para questões jurídicas, podemos compreender que esses
três elementos interconectados formam a base para a profissionalização eficaz nas
empresas familiares. Essa valorização da empresa cria uma base sólida de confiança
e de respeito, o que facilita a permanência de recursos humanos competentes que
assegura a continuidade do conhecimento e da expertise, enquanto a inovação na
gestão proporciona a agilidade necessária para enfrentar desafios e explorar
oportunidades no dinâmico cenário empresarial atual. A integração harmoniosa
desses fatores promove o desenvolvimento de toda a empresa, bem como fortalece
com a resiliência e o potencial de crescimento a longo prazo das empresas familiares.
3 DIMENSÕES JURÍDICAS DA PROFISSIONALIZAÇÃO DAS EMPRESAS
FAMILIARES
3.1 ESTRUTURA LEGAL ADEQUADA
É fundamental para as empresas familiares na profissionalização ter uma
estrutura legal sólida que atenda às suas formalidades básicas.
564
Manuelina Pires Barbosa & Hélcia Macedo Carvalho Diniz e Silva
Nesta dimensão, destaca-se a importância da criação de acordos de acionistas,
quando for o caso, ou de sócios, documentos que delineiam claramente as
responsabilidades e direitos de cada parte.
Além de estabelecer uma governança empresarial, com políticas bem definidas
para a tomada de decisões e para a prestação de contas.
E é claro que a adequação à legislação trabalhista e ambiental é imperativa para
mitigar riscos legais, promover a conformidade e fortalecer a reputação da empresa.
A implementação de estratégias fiscais e tributárias também é parte integrante
desta dimensão jurídica. Adotar práticas que estejam em conformidade com a
legislação vigente, ao mesmo tempo em que buscam otimizar sua carga tributária,
tudo isso contribui para a eficiência financeira e para a sustentabilidade da empresa
ao longo prazo. Tendo uma estrutura legal adequada proporciona à empresa familiar
uma base robusta para operar, crescer e enfrentar os desafios jurídicos
contemporâneos. Sendo assim, esclarecemos alguns pontos para podemos
compreender a profissionalização da empresa familiar como instrumento para a
sustentabilidade e crescimento econômico.
3.2 ASPECTOS JURÍDICOS NA GESTÃO DE CONFLITO
Na realidade, em qualquer ambiente organizacional a gestão de conflitos é
primordial inclusive nas empresas familiares. Destacamos a importância de
estratégias legais para a prevenção e resolução dos conflitos internos. A criação de
políticas internas, como a medição de disputas e comitês de ética, a elaboração de
contratos claros podem ajudar a evitar litígios e a proteger os interesses da
empresa.Neste aspecto abrange também a mediação e negociação, fornecendo
ferramentas legais para resolver disputas. Além disso, a criação de cláusulas
contratuais específicas para situações de conflito pode ser uma estratégia preventiva
valiosa.
3.3 CONFORMIDADE JURÍDICA NA ADOÇÃO DE PRÁTICAS
SUSTENTÁVEIS
A crescente corrente global para a prática de condutas que favoreçam e
estabeleçam a sustentabilidade, conforme conceituamos no começo do nosso artigo,
565
Profissionalização das empresas familiares como instrumento (...)
exige que as empresas familiares incorporem dimensões jurídicas em suas práticas
de negócios. Isso envolve a conformidade com as regulamentações básicas da
atividade da empresa familiar. Que tratamos como estrutura legal adequada. Nas
quais essas políticas promovem a responsabilidade social da empresa. A criação de
códigos de ética e conduta alinhados às normas legais e padrões internacionais são
primordiais para uma abordagem sustentável e socialmente responsável. Isso porque
envolve a conformidade com regulamentações ambientais, mas a adoção de políticas
que promovam a responsabilidade social.
Nessa dimensão jurídica da sustentabilidade inclui a implementação de medidas
que possam proteger a empresa contra possíveis litígios relacionados a questões que
vão além das questões ambientais. Abrange contratos que refletem práticas
sustentáveis, políticas de gestão de resíduos, bem como, a devida diligência legal em
iniciativas ambientais que são consideradas essenciais. Tudo isso para garantir a
conformidade jurídica para atender as demandas sociais e ambientais, mas também
para proteger a empresa contra riscos legais e reputacionais.
Assim, com essas três dimensões jurídicas que formam um arcabouço para a
profissionalização da empresa seja bem sucedida. Com essa estrutura legal
adequada, com a gestão de conflitos e a conformidade legal na adoção de práticas
sustentáveis, as empresas familiares podem enfrentar os desafios jurídicos
contemporâneos e construir uma base sólida para o crescimento sustentável.
4 CONEXÃO DA SUSTENTABILIDADE E O CRESCIMENTO ECONÔMICO
NA PERSPECTIVA DO ODS 8: TRABALHO DECENTE E CRESCIMENTO
ECONÔMICO
Essa interseção entre a sustentabilidade e o crescimento econômico são
considerados de grande relevância no contexto empresarial contemporâneo. E mais
ainda, com a conexão intrínseca que pode coexistir com o ODS 8 na adoção de
práticas sustentáveis e com o impulso ao crescimento econômico, neste caso, elas
se fortalecem mutuamente, e são essenciais para a construção de empresas
familiares duradouras e responsáveis.
566
Manuelina Pires Barbosa & Hélcia Macedo Carvalho Diniz e Silva
4.1 EMPREGO SUSTENTÁVEL E DIGNO
O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável - ODS 8 da Agenda 2030 da ONU,
intitulado “Trabalho Decente e Crescimento Econômico”, serve de conexão, como
explicamos acima, mas também como uma estratégia para a busca de práticas que
promovam a sustentabilidade e estimulem o crescimento econômico, alinhando-se
assim aos objetivos sociais e os econômicos.
O ODS 8 enfatiza a promoção do emprego sustentável e digno como um
componente vital para o crescimento econômico. As empresas que priorizam práticas
sustentáveis geram empregos, mas também, se comprometem com condições
laborais justas, respeitando os direitos trabalhistas e contribuindo para a construção
de uma força de trabalho engajada e produtiva.
4.2 CRESCIMENTO ECONÔMICO
O crescimento econômico que se refere no ODS 8 é o crescimento econômico
que podemos considerá-lo como inclussivo, ou seja, onde o desenvolvimento
beneficia toda a sociedade. Empresas que adotam práticas sustentáveis contribuem
para a redução das desigualdades sociais, fornecendo oportunidades de emprego,
acesso à capacitação e inclusão econômica para comunidades, inclusive as que são
marginalizadas. Segundo a própria a ONU. Esse crescimento inclusivo fortalece as
bases sociais, mas também cria mercados fortes e sustentáveis.
4.3 INOVAÇÃO E PRODUTIVIDADE
A importância da inovação e o aumento da produtividade como impulsionadores
do crescimento econômico destaca-se no ODS 8. São as empresas sustentáveis que
buscam constantemente inovar nas suas práticas, adotando tecnologias limpas,
eficiência energética e processos mais sustentáveis. Essa abordagem alinha a
empresa com os objetivos do ODS 8, mas também a posiciona como líder em setores
inovadores, impulsionando a produtividade e o crescimento econômico.
As empresas familiares ao integrar com os princípios do ODS 8 em suas práticas
contribuem para o alcance de metas globais mas também garantem uma abordagem
567
Profissionalização das empresas familiares como instrumento (...)
sustentável para o crescimento econômico. Diante de tantos desafios globais, a
implementação eficaz desses elementos oferece benefícios para as empresas
individualmente, mas também, contribui para a construção de um futuro mais
equitativo, próspero e sustentável para a sociedade global.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante esse estudo, relacionamos a relação entre sustentabilidade e
crescimento econômico sob uma perspectiva do ODS 8. À medida que avançamos
podemos compreender que o ODS 8 como guia orientador de práticas empresariais,
destaca a promoção de empregos sustentáveis e dignos como fator determinante
para a sustentabilidade e o crescimento econômico. Empresas comprometidas com
condições de trabalho justas atendem às demandas sociais, mas também contribuem
para a construção de uma força de trabalho engajada e produtiva.
Ressaltamos que o crescimento econômico pode ser considerado inclusivo
quando o lucro é perseguido junto com a responsabilidade social empresarial para a
redução de desigualdades sociais. Além da implementação da constante inovação
tecnológica em toda cadeia produtiva que promove a eficiência e a competitividade.
Vamos sinalizar pontos interessantes para futuras investigações como: o impacto
da sustentabilidade nas micros e pequenas empresas - MPEs; E ao mesmo tempo
incluindo o ODS 8 que podem fornecer insights valiosos sobre desafios e benefícios;
Mensuração da responsabilidade social empresarial.
Concluímos, com a integração dos princípios do ODS 8 nas práticas empresariais,
como uma escolha ética para garantir um sucesso que vai além do almejado e
necessário lucro para uma prosperidade a longo prazo. Na perspectiva de atender a
expectativas de uma sociedade mais moderna socialmente que aponte para um
cenário empresarial consciente. Desta forma poderão prosperar nos mercados
contemporâneos produzindo um mundo mais equitativo, justo e sustentável.
REFERÊNCIAS
Centro de Formação Empresarial Guedes (CFEG). (2023). Profissionalizando a
empresa familiar: não é o que se pensa. Recuperado de [URL]:
https://cfeg.com.br/profissionalizando-a-empresa-familiar-nao-e-o-que-se-
pensa/
568
Manuelina Pires Barbosa & Hélcia Macedo Carvalho Diniz e Silva
Macedo, H. (2017). Raízes Filosóficas da Filosofia Bakhtiniana da Linguagem. João
Pessoa: CCTA/UFPB.
PricewaterhouseCoopers (PwC). (2023). Pesquisa Global de Empresas Familiares
2023. Recuperado de [URL]: https://www.pwc.com.br/pt/estudos/setores-
atividade/empresas-familiares/2023/pesquisa-global-de-empresas-familiares-
2023.html
Ernst & Young (EY). (s.d.). Family Business Index. Recuperado de [URL]:
https://www.ey.com/pt_br/family-enterprise/family-business-index
Câmara Americana de Comércio (Amcham Brasil). (s.d.). Empresa familiar.
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mbros%20da%20fam%C3%ADlia
Organização/Instituição. (Ano). Título do documento ou página. Recuperado de
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Nações Unidas - Brasil. (s.d.). Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
Recuperado de [URL]: https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-
desenvolvimento-sustent%C3%A1vel
569
O direito das mulheres a uma vida livre da violência como norma
de jus cogens a partir da interpretação da Corte Interamericana
de Direitos Humanos
Layla de Oliveira Lima Linhares 1
Thiago Oliveira Moreira 2
Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras 3
1 INTRODUÇÃO
Conforme se extrai do relatório elaborado pela Comissão Econômica
para a América Latina e Caribe – CEPAL, após pesquisa realizada em seis
países da região, entre 60% e 76% das mulheres foram vítimas de violência de
gênero em diversos âmbitos de sua vida. Além disso, em média 1 em cada 3
mulheres foi vítima ou vive violência física, psicológica ou sexual por um
perpetrador que era ou é seu companheiro, o que compreende o risco da
violência letal 4.
De acordo com o Observatório de Gênero do mesmo organismo regional
das Nações Unidas, “ao menos 4.091 mulheres foram vítimas de feminicídio em
2020 na América Latina e no Caribe, apesar da maior visibilidade e condenação
1
Mestra em Direito com Área de Concentração em Constituição e Garantia de Direitos pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Linha de Pesquisa III: Direito Internacional
e Concretização de Direitos, com ênfase em Direito e Gênero. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7486429143620572. https://orcid.org/0000-0002-1724-5675. E-mail:
[email protected].
2
Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Graduação e Mestrado).
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela
UFRN. Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Coordenador do Programa de Pós-
Graduação em Direito da UFRN. Líder do Grupo de Pesquisa Direito Internacional dos Direitos
Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8030681636075210. https://orcid.org/0000-0001-6010-976X. E-mail:
[email protected].
3
Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Graduação e Mestrado).
Pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos pelo IGC/CDH da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. Doutora em Ciências Sociais pela UFRN. Mestre em Direito pela
UFBA e em Ciências Sociais pela UFRN. Promotora de Justiça/MPRN. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6098251246978722. E-mail: [email protected].
4
CEPAL, Comissão Econômica para a América Latina e Caribe. Observatorio de Igualdad de
Género de América Latina y el Caribe. Enfrentar la violencia contra las mujeres y las niñas
durante y después de la pandemia de COVID-19 requiere financiamento, respuesta,
prevención y recopilación de datos, nov. 2020. Disponível em:
https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/46422/5/S2000875_es.pdf. Acesso em: 02
jan. 2022.
570
Layla de Oliveira Lima Linhares, Thiago Oliveira Moreira & Érica
Verícia Canuto de Oliveira Veras1
social” 5. Em 2021, foram 1.319 feminicídios apenas no Brasil, o que representa,
em média, a morte de uma mulher a cada 7 horas 6.
A realidade acima exposta sugere prioridade e cuidado, além de
evidenciar a importância da adoção de medidas que visem garantir às mulheres
o direito a uma vida livre de violência, cediço que a violência de gênero impede
e/ou anula o exercício pleno dos seus direitos civis, políticos, econômicos,
sociais e culturais 7. Desse modo, o presente estudo presta-se à solução da
seguinte questão: o direito de toda mulher a viver livre de violência enquadra-se
como norma de caráter imperativo e inderrogável?
Como hipótese, supõe-se que a consolidação aludido direito compõe
domínio do jus cogens, sob a premissa de que a violência de gênero constitui
prática discriminatória.
A presente pesquisa, portanto, tem por escopo geral analisar o direito
das mulheres a uma vida livre de violência como norma de jus cogens, a partir
do exame da ampliação do seu conteúdo pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos, sabido que o estudo dos sistemas regionais de proteção apresenta-
se como campo propício para avaliar o amadurecimento do direito internacional
dos Direitos Humanos, uma vez que suplanta a mera transcrição literal de
Tratados e dedica-se ao exame de sua aplicação através das interpretações
judiciais.
Para cumprir o propósito estabelecido, o estudo se concentra na
seguinte investigação: inicialmente, dedicar-se-á ao tracejamento histórico-
conceitual do jus cogens, cuja origem é atribuída ao ius publicum romano e a
noção é fruto da construção advinda de múltiplas fontes do Direito Internacional.
Na segunda seção, aborda-se a proteção internacional dos Direitos
Humanos das mulheres, engendradas breves considerações acerca da
5
CEPAL, Comissão Econômica para a América Latina e Caribe. CEPAL: Ao menos 4.091
mulheres foram vítimas de feminicídio em 2020 na América Latina e no Caribe, apesar da
maior visibilidade e condenação social. Disponível em: https://www.cepal.org/pt-
br/comunicados/cepal-menos-4091-mulheres-foram-vitimas-feminicidio-2020-america-latina-
caribe-apesar. Acesso em: 11 mar. 2022.
6
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Violência contra mulheres em 2021.
Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/03/violencia-contra-
mulher-2021-v5.pdf. Acesso em: 11 mar. 2022.
7
Artigo 5°, “Convenção de Belém do Pará”.
571
O direito das mulheres a uma vida livre da violência como (...)
construção histórica da aludida custódia, como também sobre os principais
instrumentos que compõem o corpus iuris interamericano de tutela da mulher e
o direito das mulheres a uma vida livre de violência.
O terceiro capítulo dedica-se a examinar a atuação da Corte
Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), no que pertine ao direito das
mulheres a uma vida livre da violência. Por último, expõem-se as considerações
finais, no intuito de sintetizar os principais achados da investigação e propor
soluções para a efetivação do direito sob análise.
Trata-se de pesquisa qualitativa, viabilizada pelo método dedutivo, que
permitirá, através de breve exposição bibliográfica, a elucidação da temática
abordada, utilizada como técnica a documentação indireta. Para tanto, far-se-á
o levantamento da literatura jurídica pertinente, tomando por base os preceitos
abarcados pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Destaca-se, ainda, o alinhamento do estudo à meta 05 (cinco) 8 dos
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecidos em 2015 pela
Assembleia Geral das Nações Unidas, bem como sua perfeita adequação à linha
temática n° 11, “Gênero e Direitos Humanos”, do IV Congresso de Direitos
Humanos e Direito Eleitora, de modo que visa fornecer subsídios para o
aprimoramento do debate acadêmico sobre a violência de gênero, além de
propor soluções capazes de contribuir para o avanço da matéria no contexto
internacional.
2 TRACEJAMENTO HISTÓRICO-CONCEITUAL DAS NORMAS
INTERNACIONAIS DE CARÁTER PEREMPTÓRIO (JUS COGENS)
A inderrogabilidade de uma norma de jus cogens, uma de suas
características fundamentais, encontra respaldo no ius publicum romano, cujo
ponto de partida é o pensamento elaborado por Grócio, ao diferenciar o ius
gentium primário, vinculado ao direito natural e considerado imodificável e
imperativo, do ius secundário ou positivo, entendido como mutável.
Grócio, embora afaste o direito natural como base jurídica para os
Estados, reconhece a existência do direito das gentes primário sob o alicerce do
direito natural. Esse paradigma, aprimorado ao longo do tempo, levou alguns
8
Igualdade de gênero: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e
meninas – itens 5.1, 5.6 e 5.c.
572
Layla de Oliveira Lima Linhares, Thiago Oliveira Moreira & Érica
Verícia Canuto de Oliveira Veras1
estudiosos, já no período entre guerras, a se manifestarem como defensores do
jus cogens.
Em meados do século XX, uma minoria contestava a existência de
normas internacionais peremptórias, argumentando que apenas o princípio
pacta sunt servanda era inderrogável. No entanto, a maioria dos teóricos da
época defendia a existência de normas pertencentes ao domínio do jus cogens,
utilizando como parâmetro jurídico-imperativo o direito natural ou normas e
princípios costumeiros do direito internacional dotados de natureza cogente 9_10.
Pode-se definir como norma que compõe o domínio do jus cogens aquela
que representa um valor universal e cujo respeito é indispensável para a
existência e amadurecimento do corpo jurídico internacional. Tais normas
representam exigências de ordem moral, econômica e política que se
sobrepõem à vontade dos Estados, portanto, qualificadas como imperativas, ou
seja, obrigatórias e inderrogáveis, que não admitem disposição em
contrário 11_12.
A mera conceituação, no entanto, não é suficiente para os fins da presente
pesquisa, faz-se necessário decifrar e compreender a essência do conceito de
jus cogens, fruto da construção, ainda que não explícita, advinda de múltiplas
fontes do Direito Internacional 13, inclusive jurisprudenciais. Sua definição está
intimamente ligada à lei natural e seu caráter peremptório é resultado da
importância substancial dos interesses e valores sob proteção.
9
GARCÍA, Juan David Castro. Jus Cogens: Derecho Internacional Imperativo. Bogotá:
Universidad Externado de Colombia, 1994, p. 14.
10
MOREIRA, Thiago Oliveira. O Direito Internacional e as normas de Jus Cogens: uma questão
filosófica. FIDES, Natal, v. 3, n. 1, p. 24-42, jan./jun. 2012.
11
GARCÍA, Juan David Castro. Jus Cogens: Derecho Internacional Imperativo. Bogotá:
Universidad Externado de Colombia, 1994, p. 14.
12
Pode-se definir as normas que pertencem ao domínio do jus cogens, como aquelas de caráter
imperativo - universal e irrevogável -, que retiram dos metaprincípios e/ou das normas
preexistentes a fundação que estrutura os Estados, vinculando-os e atuando como fator de
limitação/mitigação da própria soberania. Por sua natureza, ocupam o mais alto nível hierárquico
no sistema jurídico internacional. MOREIRA, Thiago Oliveira. O Direito Internacional e as normas
de Jus Cogens: uma questão filosófica. FIDES, Natal, v. 3, n. 1, p. 24-42, jan./jun. 2012.
13
MOREIRA, Thiago Oliveira. O Direito Internacional e as normas de Jus Cogens: uma
questão filosófica. Disponível em: revistafides.ufrn.br/index.php/br/article/view/97/102. Acesso
em: 02 jan. 2022.
573
O direito das mulheres a uma vida livre da violência como (...)
Nada obstante, calhou à Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados
de 1969 positivar, em seu artigo 53, a conceituação das normas em comento 14,
que, conforme lecionam Aguiar e Godoy, “são normas peremptórias de direito
internacional público” 15.
Por força do citado dispositivo, “é nulo o tratado que, no momento de sua
conclusão, conflita com uma norma imperativa de direito internacional geral”.
Desse modo, o instrumento internacional que viole uma norma jus cogens é
ineficaz e deve ser declarado nulo com efeitos retroativos à sua finalização (ex
tunc) 16. Na mesma toada, caso a incompatibilidade seja identificada com a
superveniência de uma norma internacional de caráter peremptório, “(...)
qualquer tratado existente que estiver em conflito com essa norma torna-se nulo
e termina” 17.
Em que pese seu caráter irrevogável, são normas passíveis de
substituição por outras que carreguem consigo iguais características e força
perante a comunidade internacional 18, de maneira que a observância das
transformações sociais constitui fator de elevada importância na interpretação e
ampliação do conteúdo material das normas de jus cogens, papel delegado às
Cortes Internacionais, cujos posicionamentos sobre as normas peremptórias
podem contribuir, sobremaneira, para o desenvolvimento ou estagnação de
determinadas matérias.
Ao analisar a jurisprudência da Corte IDH, é perceptível sua dedicação
em identificar questões relacionadas ao jus cogens, de maneira que
desempenha papel fundamental no progresso do direito internacional ao
reconhecer normas gerais que ensejam obrigações à comunidade internacional.
14
Artigo 53. Tratado em conflito com uma norma imperativa de direito internacional geral (jus
cogens). É nulo o tratado que, no momento de sua conclusão, conflita com uma norma imperativa
de direito internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de
direito internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos
Estados no seu conjunto, como uma norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só
pode ser modificada por norma de direito internacional geral da mesma natureza”.
15
AGUIAR, Ana Laura Becker. GODOY, Gabriel Gualano de. Corte Interamericana de Direitos
Humanos e a ampliação do conteúdo material do conceito de Jus Cogens. Revista IBDH, v. 8,
n. 8, p. 25-34, jul. 2016.
16
MOREIRA, Thiago Oliveira. O Direito Internacional e as normas de Jus Cogens: uma questão
filosófica. FIDES, Natal, v. 3, n. 1, p. 24-42, jan./jun. 2012.
17
Artigo 64. Se aparecer uma norma imperativa de Direito Internacional geral, qualquer Tratado
existente que estiver em conflito com essa norma torna-se nulo e termina.
18
É o que se extrai da parte final do artigo 53 da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados
de 1969: “(...) como uma norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser
modificada por norma de direito internacional geral da mesma natureza”.
574
Layla de Oliveira Lima Linhares, Thiago Oliveira Moreira & Érica
Verícia Canuto de Oliveira Veras1
Como exemplos das normas de jus cogens identificadas pela
jurisprudência da Corte IDH, pode-se mencionar a proibição da prática de
genocídio, da tortura, o princípio de não-discriminação e da igualdade perante a
lei, o direito fundamental à vida, e o direito ao acesso à justiça 19.
Tal processo de identificação, assim como o toda a construção histórica
em torno dos direitos humanos, é lento, contínuo e não unânime. Traçando um
paralelo entre o caso Goiburú y otros Vs. Paraguay, de 2006, e o caso
Trabajadores Cesados del Congreso Vs. Perú, de 2007, nota-se que a própria
Corte IDH não adotou posicionamento linear, uma vez que no primeiro caso
identificou o direito ao acesso à justiça como norma de jus cogens, no entanto,
apenas um ano após, ao analisar o segundo caso, optou por não o fazer 20.
Nada obstante, desde o caso Blake vs. Guatemala, de 1998, o primeiro
em que houve menção ao jus cogens pela Corte IDH, - oportunidade em que
interpretou o delito de desaparecimento forçado como crime que viola norma jus
cogens – detalhou-se a tese da emergência de obrigações erga omnes de
proteção e da necessidade de desenvolvê-la na seara do direito internacional
dos direitos humanos 21.
Tal reconhecimento fortaleceu o entendimento de que o direito
internacional não está restrito ao direito dos tratados e ao arbítrio dos Estados,
mas “emana da consciência comum do que é juridicamente necessário (opinio
juris communis necessitatis)” 22, noção que reforça o posicionamento
19
AGUIAR, Ana Laura Becker. GODOY, Gabriel Gualano de. Corte Interamericana de Direitos
Humanos e a ampliação do conteúdo material do conceito de Jus Cogens. Revista IBDH, v. 8,
n. 8, p. 25-34, jul. 2016.
20
AGUIAR, Ana Laura Becker. GODOY, Gabriel Gualano de. Corte Interamericana de Direitos
Humanos e a ampliação do conteúdo material do conceito de Jus Cogens. Revista IBDH, v. 8,
n. 8, p. 25-34, jul. 2016.
21
Naquela oportunidade, Cançado Trindade, ao mencionar o papel da Corte IDH em seu voto
separado, explicou: Nuestro propósito debe residir precisamente en el desarrollo doctrinal y
jurisprudencial de las normas perentorias del Derecho Internacional (jus cogens) y de las
correspondientes obligaciones erga omnes de protección del ser humano. Es por medio del
desarrollo en este sentido que lograremos traspasar los obstáculos de los dogmas del pasado,
así como las actuales inadecuaciones y ambigüedades del derecho de los tratados, de modo a
aproximarnos de la plenitud de la protección internacional del ser humano. CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Blake Vs. Guatemala. Sentença de 24
de janeiro de 1998. Voto do Cançado Trindade, parágrafo 12. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_36_esp.pdf. Acesso em: 15 fev.
2022.
22
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A Humanização do Direito Internacional . Belo
Horizonte: Del Rey, 2006, p. 88.
575
O direito das mulheres a uma vida livre da violência como (...)
hierarquicamente superior dos direitos humanos que compõem o jus cogens,
bem como dá azo à humanização do direito internacional.
A expansão do conteúdo substantivo do conceito normativo de jus cogens
pela Corte IDH não apenas fortalece a proteção regional dos direitos humanos,
mas também sinaliza um avanço significativo em direção a um modelo
comunitário em desenvolvimento 23. O reconhecimento e a incorporação dessas
pela Corte IDH refletem um compromisso sólido, contribuindo para a
consolidação de uma abordagem mais abrangente e eficaz na defesa dos
direitos humanos em âmbito internacional, como se verá a diante.
3 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS DAS
MULHERES
A despeito de reconhecer a importância da Declaração Universal de 1948
na construção de um sistema normativo global de proteção dos direitos
humanos 24, considerar o indivíduo de forma genérica e abstrata mostrou-se
insuficiente para a proteção, sobretudo, dos grupos mais vulneráveis.
Ora, determinados grupos de pessoas, em razão sobretudo de suas
vulnerabilidades, demandam atenção específica, visto que a aplicação genérica
dos direitos humanos já consagrados não lhes confere a proteção de que
necessitam. Esse é o caso das mulheres e demais minorias sociais, como a
população negra, os indígenas, os povos e comunidades tradicionais, os
refugiados, as crianças e adolescentes, os idosos, as pessoas com deficiência,
a população em situação de rua etc.
Diante desse cenário, a formulação dos instrumentos para a proteção das
mulheres deve ser pautada nas especificidades e peculiaridades de sua
condição social. Segundo Flávia Piovesan 25, a garantia do direito à diferença
implica no reconhecimento identitário e, consequentemente, na incorporação da
perspectiva de gênero. Dessa forma, a autora defende que os direitos humanos
23
AGUIAR, Ana Laura Becker. GODOY, Gabriel Gualano de. Corte Interamericana de Direitos
Humanos e a ampliação do conteúdo material do conceito de Jus Cogens. Revista IBDH, v. 8,
n. 8, p. 25-34, jul. 2016.
24
MONTEBELLO, Marianna. A Proteção Internacional aos Direitos da Mulher. Revista da
EMERJ, v. 3, n. 11, Rio de Janeiro: 2000.
25
PIOVESAN, Flávia. A proteção internacional dos direitos humanos das mulheres. R. EMERJ,
Rio de Janeiro, v. 15, n. 57 (Edição Especial), p. 70-89, jan.-mar. 2012.
576
Layla de Oliveira Lima Linhares, Thiago Oliveira Moreira & Érica
Verícia Canuto de Oliveira Veras1
devem ser repensados, revisitados e reconceitualizados a partir da relação entre
os gêneros, enquanto tema transversal.
Desta feita, paralelamente a um sistema geral de proteção aos direitos
humanos, foram sendo construídos sistemas especiais de proteção internacional
para as mulheres 26.
Nesse contexto, convém mencionar a Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
(Convenção de Belém do Pará), de 1994.
A primeira delas, elaborada no âmbito da Organização das Nações
Unidas (ONU), integra o sistema normativo global. Por sua vez, a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,
pensada no bojo da Organização dos Estados Americanos (OEA), insere-se no
que é costumeiramente chamado pelo direito internacional de sistema regional
de proteção, in casu, o americano 27.
Ressalte-se, entretanto, que inexiste hierarquia entre os instrumentos de
proteção integrantes do sistema global e aqueles que se inserem no plano
regional. Pelo contrário, eles são complementares. À medida em que o primeiro
traça um panorama geral a ser seguido, o segundo contextualiza a proteção à
realidade regional.
Importa ressaltar que, apesar de comporem sistemas de proteção
distintos, ambas reconhecem que a violência cometida contra as mulheres, seja
no âmbito público ou privado, reflete as relações de poder desiguais entre
homens e mulheres e viola os direitos humanos, restringindo total ou
parcialmente o exercício tanto dos direitos sociais, econômicos e culturais, como
dos direitos civis e políticos, tendo em vista a indivisibilidade desses direitos.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará”, de 1994, ocupa espaço singular
no corpus iuris interamericano de tutela dos direitos humanos das mulheres.
26
MONTEBELLO, Marianna. A Proteção Internacional aos Direitos da Mulher. Revista da
EMERJ, v. 3, n. 11, Rio de Janeiro: 2000.
27
MONTEBELLO, Marianna. A Proteção Internacional aos Direitos da Mulher. Revista da
EMERJ, v. 3, n. 11, Rio de Janeiro: 2000.
577
O direito das mulheres a uma vida livre da violência como (...)
Trata-se do instrumento que inaugurou o espaço formal de engajamento dos
países no combate à violência contra a mulher, assim como demarcou uma nova
fase na ordem jurídica internacional, contraditória ao poder político patriarcal 28.
Cuida-se das condutas violentas que se desenvolvem geralmente no
âmbito doméstico como manifestação das relações de poder historicamente
desiguais entre mulheres e homens, que supõem a reificação das primeiras 29.
Além de ratificar, no âmbito interamericano, a validade dos direitos
humanos das mulheres, o instrumento contém disposição central em que os
Estados-Partes “condenam todas as formas de violência contra a mulher e
convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas
destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência”.
A prática do sistema interamericano mostra um nível de realidade em que
se garante a impunidade das violações dos direitos humanos das mulheres e
que a denegação de justiça leva à petição internacional 30.
A Convenção de Belém do Pará, ao elencar os direitos sob salvaguarda,
coloca em primeiro lugar o direito de toda mulher a ser livre de violência, tanto
na esfera pública como na privada 31. Tal disposição, consoante se extrai do teor
do instrumento internacional, impõe aos Estados-Partes a obrigação de proteger
a mulher tanto da violência doméstica, quanto daquela cometida pelo próprio
Estado, dita institucional.
Judith Butler descreve a violência como “(...) uma mancha terrível, uma
maneira de expor, da forma mais aterrorizante, a vulnerabilidade humana a
outros seres humanos” 32.
28
BANDEIRA, Lourdes Maria; ALMEIDA, Tânia Mara Campos de. Vinte anos da Convenção de
Belém do Pará e a Lei Maria da Penha. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 23, n.2, mai./ago.
2015.
29
PINTO, Mônica. De los derechos humanos, del género y de la violência. In: MINISTERIO
PUBLICO DE LA DEFENSA. Discriminación y Género: Las formas de violência. Disponível em:
https://bibliotecacorteidh.winkel.la/Product/ViewerProduct/1323#page=1. Acesso em: 15 fev.
2022.
30
PINTO, Mônica. De los derechos humanos, del género y de la violência. In: MINISTERIO
PUBLICO DE LA DEFENSA. Discriminación y Género: Las formas de violência. Disponível em:
https://bibliotecacorteidh.winkel.la/Product/ViewerProduct/1323#page=1. Acesso em: 15 fev.
2022.
31
Art. 3° da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher, “Convenção de Belém do Pará”, de 1994.
32
BUTLER, Judith. Vida Precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica,
2019, p. 49.
578
Layla de Oliveira Lima Linhares, Thiago Oliveira Moreira & Érica
Verícia Canuto de Oliveira Veras1
Virgínia Vargas Valente, ao propor uma reflexão feminista acerca da
cidadania, afirma que a ausência de consciência do “direito a ter direitos” tem
efeitos de alcance ampliado, notadamente no que diz respeito à distorção do
sentido dos direitos e normalização da exclusão. A violência contra a mulher,
segundo a autora, é um bom exemplo da citada normalização. A existência, per
si, de legislação voltada à proteção da mulher, não é suficiente para o efetivo
registro e abordagem da violência e seu caráter nefasto. A sociedade tende a
subestimá-la e a mulher entende a violência como uma questão íntima, rodeada
de culpa e vergonha. Por outro lado, observa-se que apenas algumas cidades
incorporam a violência contra a mulher como parte da violência urbana e assunto
que compõe as políticas de segurança cidadã.
Desse modo, superar a subjetividade da exclusão requer uma cultura de
direitos e de diálogo democrático. Trata-se de espaço de interesses
compartilhados entre o Estado, a cidade e a cidadania 33.
A respeito da citada segurança cidadã, em 31 de dezembro de 2009, a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou o Relatório Sobre
Segurança Cidadã e Direitos Humanos que, levando em consideração os
elevados índices de criminalidade identificados nos países da América Latina,
definiu o conceito de segurança cidadã e apontou obrigações positivas e
negativas dos Estados para que assegurem a proteção dos direitos das
mulheres 34.
No mesmo relatório, a CIDH destaca que na ordem jurídica internacional
dos direitos humanos não se encontra expressamente o direito à segurança
frente à criminalidade e violência. No entanto, do sistema de proteção dos
direitos humanos é possível extrair a obrigação do Estado de garantir a
segurança às pessoas, nos termos do art. 3° da Declaração Universal dos
Direitos Humanos: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal”; do artigo 1° da Declaração Americana dos Direitos e
33
VALENTE, Virgínia Vargas. Una Reflexión Feminista de la ciudadanía. In: Feminismos en
América Latina: Su aporte a la política y a la democracia. Programa Democracia y
Transformación Global: Lima, 2008, p. 333-335.
34
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório Sobre Segurança
Cidadã e Direitos Humanos. Disponível em:
http://cidh.oas.org/pdf%20files/seguridad%20ciudadana%202009%20port.pdf. Acesso em: 02
jan. 2022.
579
O direito das mulheres a uma vida livre da violência como (...)
Deveres do Homem: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à
segurança de sua pessoa”; do artigo 7° da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos: “Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais”; e do
artigo 9 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: “Todo indivíduo em
direito à liberdade e à segurança da sua pessoa” 35.
Contudo, consideradas as normas internacionais mencionadas no último
parágrafo, bem como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher e a Convenção de Belém do Pará, é inegável que
os Estados seguem enfrentando obstáculos na garantida dos direitos do grupo
mais vulnerável sob análise, se eximindo de atuar com a devida diligência na
prevenção e persecução dos atores dos delitos contra as mulheres, com especial
destaque às mulheres indígenas e afrodescendentes especialmente vulneráveis.
Destarte, na concepção de segurança cidadã, constitui dever dos Estados
a adoção das medidas necessárias para prevenir e punir delitos que constituam
violação aos direitos humanos, ante à restrição da integridade pessoal, do pleno
gozo dos direitos civis e dos seus bens. Por ser assim, é necessária atenção
especial violência de gênero 36.
A salvaguarda do direito das mulheres a uma existência isenta de
violência e discriminação figura como um desafio de primordial relevância nos
contextos regional e internacional dos sistemas de proteção dos direitos
humanos. A promulgação de tratados internacionais destinados a assegurar o
referido direito reflete o consenso e o reconhecimento explícito, por parte dos
Estados, da inequívoca discriminação historicamente imposta às mulheres em
suas respectivas sociedades. Tal discriminação culmina na condição de vítimas,
sujeitas a distintas manifestações de violência, abrangendo dimensões como a
violência sexual, psicológica e física, bem como o abuso de seus corpos 37.
35
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório Sobre Segurança
Cidadã e Direitos Humanos. Disponível em:
http://cidh.oas.org/pdf%20files/seguridad%20ciudadana%202009%20port.pdf. Acesso em: 02
jan. 2022.
36
LEGALE, Siddharta. RIBEIRO, Raisa D. CAMPOS, Lara. Feminicídio e Imunidades
Parlamentares: uma análise do caso Márcia Barbosa vs. Brasil na Corte IDH. Rio de Janeiro:
Núcleo Interamericano de Direitos Humanos, 2021, p. 180-182.
37
LEGALE, Siddharta. RIBEIRO, Raisa D. CAMPOS, Lara. Feminicídio e Imunidades
Parlamentares: uma análise do caso Márcia Barbosa vs. Brasil na Corte IDH. Rio de Janeiro:
Núcleo Interamericano de Direitos Humanos, 2021, p. 180-182.
580
Layla de Oliveira Lima Linhares, Thiago Oliveira Moreira & Érica
Verícia Canuto de Oliveira Veras1
Nada obstante, o citado consenso e reconhecimento, aparentemente, não
impulsiona os Estados a romper a inércia e adotar medidas que visem efetivar
em favor da mulher os consagrados princípios da igualdade e não-discriminação.
Acredita-se, portanto, que aguardar o voluntarismo dos Estados enquanto as
mulheres sofrem violações dia após dia não parece a medida mais eficaz para
garanti-las uma vida livre da violência.
4 A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E O DIREITO DAS
MULHERES A UMA VIDA LIVRE DA VIOLÊNCIA COMO NORMA DE JUS
COGENS
Antes de passar ao cerne da problemática proposta, convém considerar
que, do ponto de vista doutrinário, nem todas as normas protetivas de Direitos
Humanos podem receber a chancela de jus cogens. “Com efeito, somente
aquelas mais fundamentais que gravitam em torno da dignidade da pessoa
humana, seja do ponto de vista coletivo ou individual, podem ser reconhecidas
como normas imperativas inderrogáveis, intangíveis” 38.
No cenário histórico, o conceito de igualdade fundamenta-se nos
postulados trazidos pelos pensadores gregos Sólon (640-560 a. C.), Platão (429-
437 a. C.) e os estoicos enquanto ideal de igualdade valorativa e natural entre
os seres humanos, que ultrapassa a ideia da escravidão.
Contudo, a acepção de igualdade como atualmente se conhece, deriva
das Revoluções Norte-Americana e Francesa, cuja definição a priori significava
tão somente a isonomia perante a lei, hoje denominada igualdade formal. Nesse
contexto, é conferida ênfase tão somente aos cidadãos diante legislação, com
óbice a distinções de qualquer natureza 39.
O direito à igualdade, nesse contexto, encontra-se posto na Declaração
de Direitos do Estado da Virgínia de 1776 e na Declaração Francesa dos Direitos
do Homem e do Cidadão do 1789, compondo, ambas, as noções de que os
homens nascem livres e iguais. Importante mencionar, ainda, a Carta
38
MOREIRA, Thiago Oliveira. O Direito Internacional e as normas de Jus Cogens: uma questão
filosófica. FIDES, Natal, v. 3, n. 1, p. 24-42, jan./jun. 2012.
39
LUCENA FILHO, Humberto de Lima. Relações de gênero, trabalho e não-discriminação: uma
abordagem da concretização do princípio da igualdade substantiva. Revista do TRT 6, Recife,
v. 21, n. 38, p. 130 – 152, 2011.
581
O direito das mulheres a uma vida livre da violência como (...)
Internacional dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, bem
como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969.
Não obstante, a evolução histórica e as necessidades advindas do
convívio em sociedade demonstraram a premência de readequação daquilo que
se abstraía do conceito de igualdade, a fim de que as especificidades e
diferenças entre os sujeitos detentores de direitos passassem a ser realmente
observadas e respeitadas.
O direito-princípio fundamental da igualdade e da não-discriminação,
proposto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ecoou ao
redor do globo, consolidando-se, ainda que meramente no plano normativo, em
diversos tratados internacionais de direitos humanos 40.
Tratados, no entanto, não são instrumentos estáticos, de maneira que sua
interpretação deve se dar à luz das transformações sociais vigentes.
Nesse deslinde, convém mencionar o Parecer Consultivo n° 18 sobre a
Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes Indocumentados de 2003, quando a
Corte IDH afirmou, pela primeira vez, que o jus cogens não tem se limitado ao
direito dos tratados, em via diversa, tal domínio tem se ampliado, manifestando-
se, inclusive, no direito da responsabilidade internacional dos Estados, bem
como “incidido, em última instância, nos próprios fundamentos do ordenamento
jurídico internacional” 41.
Por ocasião do Parecer, a Corte IDH foi unânime ao considerar que os
princípios da igualdade e não-discriminação podem ser considerados como
normas peremptórias do direito internacional geral, uma vez que são oponíveis
a todos os Estados 42.
40
LIMA, Fernanda da Silva; DUARTE, Mônica. O princípio da igualdade e não discriminação
como norma de jus cogens na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caderno de Relações
Internacionais, vol. 8, nº 15, jul-dez. 2017.
41
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Parecer Consultivo n° 18 sobre
a Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes Indocumentados, de 17 de setembro de 2003,
parágrafo 25. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/m.Belem.do.Para.htm.
Acesso em: 15 fev. 2022.
42
(...) este Tribunal considera que el principio de igualdad ante la ley, igual protección ante la ley
y no discriminación, pertenece al jus cogens, puesto que sobre él descansa todo el andamiaje
jurídico del orden público nacional e internacional y es un principio fundamental que permea
todo ordenamiento jurídico. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS.
Parecer Consultivo n° 18 sobre a Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes
Indocumentados, de 17 de setembro de 2003, parágrafo 110. Disponível em:
https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/m.Belem.do.Para.htm. Acesso em: 15 fev. 2022.
582
Layla de Oliveira Lima Linhares, Thiago Oliveira Moreira & Érica
Verícia Canuto de Oliveira Veras1
Tal Parecer Consultivo, que compõe o corpus iuris interamericano de
proteção dos direitos humanos, representou importante passo em direção à
humanização do direito internacional. De acordo com Cançado Trindade, a
noção do jus cogens como categoria aberta que se expande em medida
diretamente proporcional ao nível de consciência jurídica universal, contribui
para o avanço da matéria no âmbito internacional 43, noção que traz à tona a
resolução da problemática proposta em sede introdutória: o direito de toda
mulher a ser livre de violência enquadra-se como norma de caráter imperativo e
inderrogável?
A igualdade e o reconhecimento da diferença impuseram, como dever de
abstenção, a não discriminação, tida como desdobramento do princípio da
igualdade, que visa alcançar duplo intuito, posto que de um lado busca propiciar
garantia individual contra perseguições e, de outro, obstar favoritismos 44.
Em sentença publicada no dia 24 de novembro de 2021, a Corte IDH
responsabilizou o Brasil pelo uso indevido da imunidade parlamentar na
investigação de um feminicídio – Caso Barbosa de Souza e outro contra Brasil 45
- e reafirmou que o princípio fundamental da igualdade e não-discriminação
ingressou no domínio de jus cogens, de modo que é incompatível com o corpus
iuris interamericano toda situação que, por considerar inferior determinado grupo
o trate com hostilidade ou discrimine de qualquer forma no gozo de direitos
reconhecidos a quem não são considerados como incluídos.
43
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Parecer Consultivo n° 18 sobre
a Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes Indocumentados, de 17 de setembro de 2003,
voto do juiz Caçado Trindade, parágrafo 68. Disponível em:
https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/m.Belem.do.Para.htm. Acesso em: 15 fev. 2022.
44
MELLO, Celso Antônia Bandeira de. O conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed.
21. tir., São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 23.
45
Em 7 de setembro de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu sentença
mediante a qual declarou a responsabilidade internacional da República Federativa do Brasil
pelas violações dos direitos às garantias judiciais, à igualdade perante a lei e à proteção judicial,
com relação às obrigações de respeitar e garantir direitos sem discriminação e ao dever de
adotar disposições de direito interno e com a obrigação de atuar com a devida diligência para
prevenir, investigar e sancionar a violência contra a mulher, em prejuízo de M.B.S e S.R.S., mãe
e pai de Márcia Barbosa de Souza. Isso, como consequência da aplicação indevida da imunidade
parlamentar em benefício do principal responsável pelo homicídio da senhora Barbosa de Souza,
da falta de devida diligência nas investigações realizadas sobre os fatos, do caráter
discriminatório em razão de gênero de tais investigações, assim como da violação do prazo
razoável.
583
O direito das mulheres a uma vida livre da violência como (...)
Os Estados, de acordo com a Corte IDH, devem abster-se de realizar
ações que, de qualquer maneira, estejam dirigidas, direta ou indiretamente, a
criar situações de discriminação de jure ou de facto 46. Nesse contexto, convém
revisitar o significado da expressão “discriminação contra a mulher”, definido
pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra
a Mulher de 1979, como “(...) a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo
e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo
ou exercício (...), dos direitos humanos e liberdades fundamentais” 47.
E, por conseguinte, a definição de violência contra a mulher, contida na
“Convenção de Belém do Pará”: “qualquer ato ou conduta baseada nas
diferenças de gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, tanto na esfera pública quanto na esfera privada”.
A essa altura, vale relembrar que o caráter peremptório das normas que
compõem o domínio do jus cogens decorrem da vultuosa importância dos
interesse sob guarida. Tratou-se, ao longo do presente estudo do direito das
mulheres a uma vida livre de violência, encartado no art. 3° da Convenção de
Belém do Pará, instrumento regional de proteção dos interesses da mulher, que
compõe grupo social vulnerável cuja tutela é imprescindível ao pleno gozo de
suas liberdades fundamentais.
Ademais, a natureza mutável do jus cogens dá farta margem à ampliação
do seu conteúdo material, que se desenvolve na medida em que evolui a
consciência jurídica universal acerca de determinada matéria.
Acerca do direito sob análise, não restam dúvidas sobre a importância do
seu reconhecimento enquanto norma de jus cogens, como consectário lógico
dos princípios da igualdade e não discriminação, evidente que a violência de
gênero constitui prática discriminatória.
Destarte, forçoso reconhecer, à luz das definições incluídas nos
instrumentos protetivos acima citados, bem como da interpretação da Corte
Interamericana de Direitos Humanos acerca da posição ocupada pelos dos
46
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Barbosa de Souza e outros
vs. Brasil. Sentença de 07 de Setembro de 2021. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf. Acesso em: 02 jan. 2022.
47
ONU, Organização das Nações Unidas. Convenção sobre a Eliminação de todas as formas
de Discriminação contra a Mulher de 1979. Disponível em:
https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf. Acesso
em: 02 jan. 2022.
584
Layla de Oliveira Lima Linhares, Thiago Oliveira Moreira & Érica
Verícia Canuto de Oliveira Veras1
princípios da igualdade e não-discriminação, que o direito de toda mulher a ser
livre de violência constitui norma de jus cogens, de caráter imperativo, que
implica na submissão da comunidade internacional aos ditames que levam à
concretização do direito no plano interno.
5 CONCLUSÃO
Por todo o exposto, a presente pesquisa trouxe à discussão o direito das
mulheres a uma vida livre de violência como norma de jus cogens, a partir da
interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca da matéria,
uma vez que a mera existência de instrumentos internacionais de tutela dos
Direitos Humanos das mulheres não se mostra efetiva na alteração da realidade
da violência baseada no gênero, que, diuturnamente, ceifa vidas e priva a mulher
do pleno exercício dos seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e
culturais.
Para alcançar os objetivos propostos em sede introdutória, o estudo
dedicou-se primeiramente ao delineamento histórico-conceitual do jus cogens,
cujas normas que pertencem ao seu domínio são conceituadas como aquelas
de caráter imperativo - universal e irrevogável -, que retiram dos metaprincípios
e/ou das normas preexistentes a fundação que estrutura os Estados, vinculando-
os e atuando como fator de limitação/mitigação da própria soberania.
Para após, abordar a proteção internacional dos Direitos Humanos das
mulheres e tecer considerações acerca dos principais instrumentos que
compõem o corpus iuris interamericano de tutela da mulher, bem como sobre o
direito das mulheres a uma vida livre de violência. Sabido que a violência de
gênero contra a mulher é manifestação das relações de poder historicamente
desiguais, que constitui violação dos direitos humanos e liberdades
fundamentais, ambos detentores de espaço singular na sociedade
contemporânea, de forma que sua transgressão afronta a própria estrutura
democrática, inolvidável a implementação de medidas eficazes de prevenção,
punição e erradicação da violência a mulher.
E, por último, passar ao âmago da presente pesquisa, cujo desenlace, se
dá com base na noção de que o jus cogens constitui domínio aberto que se
585
O direito das mulheres a uma vida livre da violência como (...)
desenvolve na proporção em que evolui a consciência jurídica universal, e que
sua relevância está relacionada ao caráter peremptório das normas que o
compõem, que não dá espaço ao voluntarismo e discricionariedade da
comunidade internacional que se submete aos ditames imperativos, mitigada a
própria soberania dos Estados.
Por todo o exposto, diante da iminente necessidade de repensar, revisitar
e reconceitualizar os direitos humanos considerando a perspectiva de gênero,
ampliar o conteúdo normativo de jus cogens, incluído o direito das mulheres a
uma vida livre de violência como consectário lógico dos princípios fundamentais
da igualdade e não discriminação fortalece a proteção internacional dos direitos
humanos da mulheres e sua acolhida representa o robustecimento de um
modelo comum em desenvolvimento.
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588
A aplicação do direito interamericano dos direitos humanos pela
justiça federal no Rio Grande do Norte
Hermínia Boracini Bichinim Costa Silva 1
Joel Vidal de Negreiros Neto 2
Thiago Oliveira Moreira 3
1 INTRODUÇÃO
O Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a
Recomendação n.º 123, de 07 de janeiro de 2022, que busca fomentar a
observância das convenções internacionais de direitos humanos e a utilização da
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) pelos
órgãos do Poder Judiciário brasileiro.
Nessa senda, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), em agosto
de 2022, aderiu ao Pacto Nacional do Judiciário pelos Direitos Humanos, bem como
foi o primeiro tribunal do País a criar uma unidade de monitoramento do
cumprimento das decisões da Corte IDH (UMF/JF5).
No entanto, apesar dos significativos avanços, ainda existem desafios a
serem superados pelo Poder Judiciário brasileiro como, por exemplo, o déficit na
aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) e da
jurisprudência da Corte IDH, conforme concluiu o relatório “Comportamento judicial
em relação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: uma análise empírica
1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisadora
do Grupo Direito Internacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade
(CNPq/UFRN); do Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte
(OBDI/CNPq/UFRN), na linha Direito Internacional dos Direitos Humanos, e do Grupo Constituição
Federal e sua Concretização pela Justiça Constitucional. E-mail: [email protected].
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4491259128663987. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5153-3489.
2 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisador
do Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte (OBDI/CNPq/UFRN), na linha
Direito Internacional dos Direitos Humanos; e do Grupo Direito Internacional dos Direitos Humanos
e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (CNPq/UFRN). E-mail:
[email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1069568882497184. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5173-0175.
3 Professor Adjunto IV da UFRN (Graduação e Mestrado). Doutor e Mestre em Direito pela
Universidade do País Basco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela UFRN. Doutorando em Direito pela
Universidade de Coimbra, com Estância de Investigação na Universidad Externado de Colombia.
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRN. Líder do Grupo de Pesquisa
Direito Internacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade
(CNPq/UFRN). E-mail: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8030681636075210.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6010-976X.
589
A aplicação do direito interamericano dos direitos humanos pela (...)
do Poder Judiciário brasileiro”, que trata dos resultados da pesquisa desenvolvida
pelo CNJ em colaboração com a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-
PR), em 2023.
Diante disso, urge a necessidade de compreender de que forma tem se
dado a aplicação do direito interamericano dos direitos humanos no TRF-5, com
ênfase em uma das Seções Judiciárias que integram o referido Tribunal, haja vista
a necessidade de restringir o escopo do trabalho, razão pela qual se fez a opção
pela Seção Judiciária do Rio Grande do Norte (SJRN).
Assim, esta pesquisa almeja responder à seguinte indagação: os
magistrados da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte (SJRN) têm aplicado o
direito interamericano dos direitos humanos?
Nessa toada, o objetivo geral do estudo é identificar de que forma os
magistrados da SJRN têm aplicado o direito interamericano dos direitos humanos
em suas decisões. E, especificamente, busca-se abordar os aspectos básicos do
Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIPDH); compreender
o cenário atual quanto à aplicação do direito internacional pelos magistrados
brasileiros; e analisar as decisões proferidas pelos magistrados vinculados à SJRN
que observam o direito interamericano.
Para alcançar esses objetivos, o presente estudo empírico, de natureza
quanti-qualitativa, utilizará como ferramentas metodológicas as pesquisas
bibliográfica, documental e jurisprudencial, sendo esta oriunda dos dados obtidos,
durante o período de 20 a 29 de maio de 2023, por meio da ferramenta “Julia |
Busca Fácil”, disponibilizada no sítio eletrônico do TRF-5.
Ademais, o trabalho em tela justifica-se pela necessidade de compreender
a postura adotada pelos magistrados brasileiros quanto à observância do direito
interamericano, bem como coaduna com a construção de instituições eficazes,
responsáveis e inclusivas, conforme o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável
(ODS) n.º 16 da Organização das Nações Unidas (ONU).
Desse modo, espera-se que o presente trabalho corrobore para a
discussão jurídica nacional acerca da concretização dos direitos humanos,
notadamente quanto a sua aplicação pelo Poder Judiciário brasileiro.
590
Hermínia Boracini Bichinim Costa Silva, Joel Vidal de Negreiros Neto
& Thiago Oliveira Moreira
2 ASPECTOS BÁSICOS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS
DIREITOS HUMANOS
Inicialmente, faz-se importante destacar alguns pontos acerca do Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIPDH), especialmente no que
toca à sua formação, jurisdição e atuação para a proteção dos Direitos Humanos
na região.
A formação do que veio a se tornar o SIPDH, deu-se, no ano de 1948, com
a Declaração Americana dos Direitos do Homem (DADH). Seguia-se um ideal
mundial pós-guerra, da necessidade de se concretizar um arcabouço de direitos
inerentes a toda pessoa, e, em movimentos contemporâneos, foram criados tanto
a Organização das Nações Unidas (ONU), a nível global, como também os
sistemas regionais de proteção de direitos humanos, aqui o europeu e o americano
e, mais tardiamente, o africano. 4
No âmbito americano, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(CADH) é o principal documento, sendo com base nela que todo o sistema se
estrutura. Nesse instrumento jurídico, há a previsão, por exemplo, da instalação da
já citada Corte IDH, que passou a ter funcionamento em 1978, a qual foi criada com
natureza de órgão judiciário internacional com competência consultiva-
interpretativa e contenciosa. 5- 6- 7
Ademais, conforme Bolfarini 8, o papel desempenhado pela Corte não se
restringe a situações individuais de violação de direitos, sendo dotado também de
um caráter preventivo, a fim de evitar novas violações na região e do retorno aos
regimes autoritários. Além disso, o cumprimento de suas decisões é, nas palavras
de Kibrit 9, “[...] uma imposição também em razão do status e da posição hierárquica
4 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos.
Brasília: FUNAG, 2013.
5 Ibidem.
6 MARTINELLI, João Paulo Orsini; FREVELATO, Fabio. O Sistema Interamericano de Proteção dos
Direitos Humanos. Revista de Direitos Fundamentais, Jundiaí, v. 1, n. 1, jan./jun. 2019, p. 23-36.
Disponível em: https://revistas.anchieta.br/index.php/DireitosFundamentais/article/view/1446.
Acesso em: 27 dez. 2023.
7 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019.
8 BOLFARINI, Isabella Christina da Mota. Força Vinculante das Sentenças da Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Salvador: JusPodivm, 2019. p. 40.
9 KIBRIT, Orly. Atuação Contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos no
Contexto Brasileiro e a Proteção Unitária dos Direitos Humanos na Consagração da
591
A aplicação do direito interamericano dos direitos humanos pela (...)
que a Convenção Americana de Direitos Humanos ocupa em nosso ordenamento
jurídico”.
Para além da Corte, é importante lembrar a existência da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a qual foi criada por meio da
Resolução VIII e tem como função, consoante o art. 106.1 da Carta da Organização
dos Estados Americanos (OEA), “[...] promover o respeito e a defesa dos direitos
humanos e servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria” 10.
No âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos,
também existem outros tratados internacionais que merecem ser mencionados
como a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, adotada pela
Assembléia Geral da OEA, em 9 dezembro de 1985, e ratificada pelo Brasil em 20
de julho de 1989. Essa Convenção, como pontua Albernaz, reafirma o direito à
integridade pessoal, também assegurado na CADH, bem como estabelece os
parâmetros mínimos para a proteção do direito fundamental a não ser torturado. 11
Além disso, o Estado brasileiro é signatário da Convenção Interamericana
sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, adotada em 1994 pela Assembleia
Geral da OEA e que, em 2016, passou a integrar o ordenamento jurídico brasileiro
com hierarquia de norma supralegal. Conforme destaca Pereira 12, a referida
Convenção foi o primeiro instrumento internacional, com força normativa vinculante,
a tratar do desaparecimento forçado de pessoas, uma das muitas violações de
direitos humanos comumente perpetradas em regimes ditatoriais.
Outro tratado internacional firmado no âmbito regional foi a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,
Cidadania Transnacional. 2018. 200 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2018. Disponível em:
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wed=y. Acesso em: 22 dez. 2023. p. 146.
10 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS [OEA]. Carta da Organização dos Estados
Americanos. 1948. Disponível em: http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-
41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm. Acesso em: 20 dez.
2023. p. de internet.
11 ALBERNAZ, Flávio Boechat. Os Tratados Internacionais contra a Tortura e o Direito Penal
Brasileiro. 2007. 191 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em:
https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/7506/1/Flavio.pdf. Acesso em: 21 dez. 2023.
12 PEREIRA, Luciano Meneguetti. A Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado
de Pessoas e seus impactos no Brasil. Anuario Mexicano de Derecho Internacional, Ciudad de
México, v. 18, n. 1, p. 213-252, 2018. Disponível em: scielo.org.mx/pdf/amdi/v18/1870-4654-amdi-
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592
Hermínia Boracini Bichinim Costa Silva, Joel Vidal de Negreiros Neto
& Thiago Oliveira Moreira
também denominada de Convenção de Belém do Pará, adotada em 9 de junho de
1994 pela Assembleia Geral da OEA e que almeja resguardar a integridade
feminina e enquadrar a violência contra a mulher como uma violação aos direitos
humanos e às liberdades fundamentais. 13
Também merece destaque a Convenção Interamericana para a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de
Deficiência, aprovada em junho de 1999 pela OEA e que almeja prevenir e eliminar
todas as formas de discriminação contra as pessoas com deficiência e propiciar a
sua plena integração à sociedade. 14
Ademais, tem-se a Convenção Interamericana contra o Racismo, a
Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, a qual foi adotada na 43ª
Sessão Ordinária da Assembleia Geral da OEA, na Guatemala, em 2013, e
assinada pelo Estado brasileiro no mesmo ano. Essa convenção, conforme Moreira
e Maia 15, apresenta, dentre outros, as definições de racismo e discriminação racial
para os seus efeitos, bem como inova ao tratar da discriminação racial indireta,
tema que costuma ser negligenciado pela legislação pátria.
Nessa conjuntura, vislumbra-se a existência de diversos instrumentos
jurídicos internacionais, que têm como escopo assegurar a proteção aos direitos
humanos no contexto das Américas. Desse modo, vê-se, consoante Almeida e
Moreira 16, que o SIPDH, assim com os demais sistemas regionais de proteção,
13 TAVARES, Ludmila Aparecida; CAMPOS, Carmen Hein de. A Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará”, e a Lei
Maria Da Penha. Interfaces Científicas - Humanas e Sociais, Aracaju, v. 6, n. 3, p. 9-18, fev. 2018.
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15 MAIA, Luana Olímpio; MOREIRA, Thiago Oliveira . Direitos Humanos e Antirracismo: a convenção
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impactos para o Brasil. In: 10º Coninter - Congresso Internacional Interdisciplinar Em Sociais E
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16 ALMEIDA, Maria Clara Araújo de; MOREIRA, Thiago Oliveira. O Futuro Tratado Internacional
sobre Empresas e Direitos Humanos e Seus Potenciais Impactos no Sistema Jurídico Brasileiro.
Homa Publica-Revista Internacional de Derechos Humanos y Empresas, [s.l.], v. 5, n. 2, p. 091-
091, 2021. Disponível em:
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servic
593
A aplicação do direito interamericano dos direitos humanos pela (...)
revela a existência de um esforço internacional para a criação de um corpus juris
de salvaguarda do ser humano, independentemente de quaisquer circunstâncias.
Assim, vistos os aspectos essenciais do Sistema Interamericano de
Proteção aos Direitos Humanos, passa-se à análise da utilização do Direito
Internacional dos Direitos Humanos pela magistratura nacional.
3 CENÁRIO ATUAL QUANTO À APLICAÇÃO DO DIREITO INTERAMERICANO
DOS DIREITOS HUMANOS PELOS MAGISTRADOS BRASILEIROS
Na 5ª edição do Justiça Pesquisa, iniciativa do CNJ, que tem por propósito
executar pesquisas de relevância para o Poder Judiciário brasileiro mediante a
contratação de instituições sem finalidade lucrativa, foi desenvolvido relatório
intitulado “Comportamento judicial em relação à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos: uma análise empírica do Poder Judiciário brasileiro”, executado
pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), que teve como escopo
identificar os motivos que resultam na baixa utilização da CADH pelo Judiciário
brasileiro, bem como efetuar uma análise do seu uso ao longo dos últimos 13 anos.
O mencionado relatório concluiu, dentre outros, que existe um déficit na
aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da jurisprudência da
Corte Interamericana, assim como da técnica do controle de convencionalidade
pelo Poder Judiciário brasileiro. Além disso, o referido estudo verificou que há baixa
familiaridade dos magistrados brasileiros com o SIPDH e com as formas de
aplicação do DIDH. 17
Assim, visto o panorama geral de utilização do DIDH pelos magistrados
brasileiros, passa-se à análise quanti-qualitativa das decisões da Seção Judiciária
do Rio Grande do Norte que empregam o Direito Interamericano dos Direitos
Humanos.
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17 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA [CNJ]; PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO
PARANÁ [PUCPR]. Comportamento judicial em relação à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos: uma análise empírica do Poder Judiciário brasileiro. Brasília: CNJ, 2023.
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594
Hermínia Boracini Bichinim Costa Silva, Joel Vidal de Negreiros Neto
& Thiago Oliveira Moreira
4 ANÁLISE QUANTI-QUALITATIVA DAS DECISÕES PROFERIDAS PELOS
MAGISTRADOS VINCULADOS À SEÇÃO JUDICIÁRIA DO RIO GRANDE DO
NORTE
A pesquisa jurisprudencial foi realizada por meio da ferramenta “Julia |
Busca Fácil”, hospedada no sítio eletrônico do TRF-5, durante o período de 20 a 29
de maio de 2023, tendo sido utilizados os seguintes filtros: (i) unidade: JFRN; e (ii)
instância: 1º grau. Além disso, em conjunto com a unidade e a instância
selecionadas, os seguintes termos foram inseridos sequencialmente no buscador:
“Convenção Americana”; “Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a
Tortura”; “Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de
Pessoas”; “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher”; “Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência”;
“Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas
Correlatas de Intolerância”.
Desse modo, feitos os esclarecimento quanto à metodologia empregada na
pesquisa, passa-se a análise quantitativa das decisões judiciais que foram
extraídas da ferramenta “Julia | Busca Fácil”.
4.1 Análise quantitativa das decisões
Mediante a aplicação dos critérios de busca supramencionados no
buscador de jurisprudência do TRF-5, foram obtidos ao todo 63 (sessenta e três)
resultados, dos quais 39 (trinta e nove) se tratavam de decisões interlocutórias e
24 (vinte e quatro) sentenças.
Ademais, a distribuição desses resultados para cada um dos termos
empregados na pesquisa, deu-se da seguinte forma. Para a expressão “Convenção
Americana”, foram localizadas 36 (trinta e seis) decisões interlocutórias e 23 (vinte
e três) sentenças. No entanto, verificou-se que duas dessas sentenças não
tratavam da CADH, mas sim da Convenção Americana de Direitos das Pessoas
com Deficiência – comumente denominada de Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência –, a qual não consiste em instrumento
pactuado pelo Estado brasileiro no âmbito do SIPDH. Assim, optou pela exclusão
595
A aplicação do direito interamericano dos direitos humanos pela (...)
dessas duas decisões judiciais, uma vez que fogem da delimitação deste estudo.
Em razão disso, restaram 21 (vinte e uma) sentenças para a expressão “Convenção
Americana”.
Já os termos “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher” e “Convenção Interamericana contra o Racismo, a
Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância” foram localizados,
respectivamente, em 3 (três) decisões interlocutórias e em 1 (uma) sentença.
Por fim, não foi obtido nenhum resultado para os termos “Convenção
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura”, “Convenção Interamericana sobre
o Desaparecimento Forçado de Pessoas” e “Convenção Interamericana para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras
de Deficiência”.
Nessa senda, os dados evidenciam, a priori, um tímido emprego do Direito
Interamericano dos Direitos Humanos nas decisões judiciais proferidas pelos(as)
magistrados(as) da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, tendo em vista o
baixo quantitativo de decisões judiciais – 39 (trinta e nove) decisões interlocutórias
e 22 (vinte e duas) sentenças – que mencionam as principais convenções do
SIPDH.
Assim, passadas as considerações quantitativas acerca das decisões
obtidas por meio da ferramenta “Julia | Busca Fácil”, faz-se necessário avançar para
sua análise qualitativa, com o fito de verificar de que forma se deu a utilização das
referidas convenções pelos magistrados vinculados à Seção Judiciária do Rio
Grande do Norte.
4.2 Análise qualitativa das decisões
A análise qualitativa foi realizada a partir da leitura integral das 39 (trinta e
nove) decisões interlocutórias e das 22 (vinte e duas) sentenças, a fim de verificar
de que forma se deu a menção às palavras-chave utilizadas na pesquisa
jurisprudencial.
A partir disso, as decisões judiciais foram distribuídas em 2 (duas)
categorias, sendo que a primeira compreende aquelas que fizeram mera citação
aos termos utilizados na pesquisa, sem ter sido realizado qualquer tipo de
aprofundamento, a exemplo dos casos em que a convenção somente foi citada no
596
Hermínia Boracini Bichinim Costa Silva, Joel Vidal de Negreiros Neto
& Thiago Oliveira Moreira
relatório. Já, no segundo grupo, se encontram os julgados que abordam a
relevância do Direito Interamericano dos Direitos Humanos, seja mediante
aplicação direta, controle de convencionalidade, diálogo ou, ainda, seguimento de
condenação da Corte IDH.
Feito o referido exame, verificou-se que, em relação aos resultados obtidos
com o emprego do termo “Convenção Americana”, 29 (vinte e nove) das 36 (trinta
e seis) decisões interlocutórias, isto é, 80,55% (oitenta vírgula cinquenta e cinco
por cento) se enquadram na primeira categoria. Nesse sentido, em 15 (quinze)
dessas 29 (vinte e nove) decisões interlocutórias, observou-se a mera citação ao
art. 7º, item 5 da Convenção Americana como um dos amparos para a realização
da audiência de custódia, conforme exemplo a seguir: “A presente audiência de
custódia encontra amparo no art. 7º, item 5, da Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), promulgada por meio do Decreto
Presidencial nº 678/1992 [...]” 18.
Além disso, em 9 (nove) decisões interlocutórias, verificou que a citação à
expressão “Convenção Americana” não se deu ao longo da decisão, mas sim no
corpo de um julgado que foi citado pelo(a) magistrado(a), não tendo se verificado
um aprofundamento em relação à Convenção ou ao dispositivo mencionado em
sua fundamentação, razão pela qual essas decisões também foram enquadradas
na primeira categoria. E outras 5 (cinco) decisões interlocutórias também foram
categorizadas no primeiro grupo, dessa vez, em virtude do termo “Convenção
Americana” somente ter sido citado como um dos argumentos apresentados pelas
partes.
Por outro lado, agora tratando das 7 (sete) decisões interlocutórias que
foram além da mera citação à expressão “Convenção Americana”, observou-se
uma certa diversidade no contexto em que ela foi inserida. Isso porque uma das
decisões fundamentou que, para além da previsão na Constituição Federal (CF), o
direito à livre manifestação também é assegurado pelos tratados internacionais
incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, caso da Convenção Americana
18Trecho extraído da decisão interlocutória proferida em 08 de março de 2023, nos autos n.º
0800405-38.2023.4.05.8401, o qual se repete nas demais 14 (quatorze) decisões.
597
A aplicação do direito interamericano dos direitos humanos pela (...)
sobre Direitos Humanos (CADH). 19 A expressão “Convenção Americana” também
foi mencionada como fundamento para assegurar a proteção ao direito à vida 20, ao
acesso à informação 21 e ao direito de toda pessoa de não ser obrigada a depor
contra si mesma, nem de se declarar culpada 22.
Verificou-se também que, em umas das decisões interlocutórias, foi travada
a discussão quanto à (in)convencionalidade do crime de desacato. Nesse caso, a
Defensoria Pública da União, que estava assistindo a parte ré na execução penal,
pleiteou a extinção da punibilidade em virtude do crime de desacato ser
inconvencional perante a CADH.
No entanto, o magistrado trouxe em sua fundamentação que, apesar da
Comissão Interamericana ter decidido que a criminalização do desacato contraria
o art. 13 da Convenção, o Supremo Tribunal Federal (STF) não acolheu a tese de
que o desacato deixou de ser crime no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro.
O magistrado também afirmou que “a Corte Interamericana [...] já deixou claro em
mais de um julgamento que o Direito Penal pode punir as condutas que
representem excessos no exercício da liberdade de expressão” 23.
Por fim, uma das decisões fez menção à obrigação de respeitar os direitos,
prevista no art. 1º da CADH, para conceder a autorização de viagem ao condenado,
não nacional no Brasil, ao seu país de origem com intuito de visitar os seus
familiares. Na oportunidade, apesar do parecer desfavorável emitido pelo Ministério
Público Federal, o magistrado entendeu que o Estado brasileiro não pode
diferenciar os critérios exigidos para esse tipo de autorização com base no fato de
o condenado ser ou não nacional 24.
Em relação às sentenças que mencionaram o termo “Convenção
Americana”, constatou-se que 9 (nove) das 21 (vinte e uma) se enquadram na
19 Plantão Judiciário. Interdito Proibitório. Processo n.º 0809900-80.2021.4.05.8400. Magistrado:
José Carlos Dantas Teixeira de Souza. 30 out. 2021.
20 Plantão Judiciário. Ação Ordinária. Processo n.º 0800946-42.2021.4.05.8401. Magistrado: Kepler
Gomes Ribeiro. 06 jun. 2021.
21 Plantão Judiciário. Agravo de Execução Penal. Processo n.º 0800737-47.2019.4.05.8400.
Magistrado: Walter Nunes da Silva Junior. 22 mar. 2019.
22 9ª Vara Federal. Ação Ordinária. Processo n.º 0800095-97.2021.4.05.8402. Magistrada: Lianne
Pereira da Motta Pires Oliveira. 25 jun. 2021.
23 8ª Vara Federal. Execução Penal. Processo n.º 0800120-89.2016.4.05.8401. Magistrado: Orlando
Donato Rocha. 31 ago. 2017.
24 2ª Vara Federal. Petição. Processo n.º 0805984-77.2017.4.05.8400. Magistrado: Mario Azevedo
Jambo. 25 jul. 2017.
598
Hermínia Boracini Bichinim Costa Silva, Joel Vidal de Negreiros Neto
& Thiago Oliveira Moreira
primeira categoria, uma vez que 7 (sete) sentenças somente citaram a referida
expressão como argumento apresentado pelas partes e 2 (duas) no corpo de um
julgado que foi citado pelo(a) magistrado(a).
Nas demais sentenças, foi possível visualizar a utilização da CADH para
tratar do direito à vida 25, à defesa técnica 26- 27, ao acesso à informação 28- 29- 30
eà
resposta 31- 32 e do dever assistencial que incumbe aos membros integrantes da
família 33. Além disso, em uma sentença, o magistrado esclareceu que o princípio
do ne bis in idem, apesar de não ser expressamente mencionado na Constituição
Federal, foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro pela Convenção
Americana 34. Também foi possível verificar duas sentenças acerca do crime de
desacato perante a interpretação da Convenção Americana, sendo que, na decisão
judicial mais recente, o magistrado concluiu pela convencionalidade do crime de
desacato 35, ao passo que a outra – proferida em fevereiro de 2017 e,
consequentemente, anterior à decisão da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça
(STJ) que decidiu não haver incompatibilidade entre a CADH e o delito de desacato
–, concluiu pela inconvencionalidade do crime de desacato, pelo que determinou o
arquivamento do inquérito policial que apurava o seu cometimento 36.
25 8ª Vara Federal. Ação Civil Pública. Processo n.º 0800637-65.2014.4.05.8401. Magistrado: Orlan
Donato Rocha. 14 dez. 2020.
26 14ª Vara Federal. Ação Penal. Processo n.º 0810345-40.2017.4.05.8400. Magistrado: Francisco
Eduardo Guimarães Farias. 09 out. 2019.
27 14ª Vara Federal. Ação Penal. Processo n.º 0813304-81.2017.4.05.8400. Magistrado: Francisco
Eduardo Guimarães Farias. 18 nov. 2020.
28 Corregedoria Judicial da Penitenciária Federal. Petição. Processo n.º 0807750-
34.2018.4.05.8400. Magistrado: Walter Nunes da Silva Junior. 06 nov. 2018.
29 Corregedoria Judicial da Penitenciária Federal. Petição. Processo n.º 0802635-
32.2018.4.05.8400. Magistrado: Walter Nunes da Silva Junior. 07 ago. 2018.
30 Corregedoria Judicial da Penitenciária Federal. Petição. Processo n.º 0801907-
22.2017.4.05.8401. Magistrado: Walter Nunes da Silva Junior. 11 dez. 2017.
31 4ª Vara Federal. Procedimento Ordinário. Processo n.º 0802887-40.2015.4.05.8400. Magistrado:
Janailson Bezerra de Siqueira. 12 maio 2016.
32 4ª Vara Federal. Procedimento Ordinário. Processo n.º 0806174-11.2015.4.05.8400. Magistrado:
Janailson Bezerra de Siqueira. 20 nov. 2015.
33 6ª Vara Federal. Embargos à Execução Fiscal. Processo n.º 0808228-47.2015.4.05.8400.
Magistrado: Marco Bruno Miranda Clementino. 15 jun. 2016.
34 2ª Vara Federal. Ação Penal. Processo n.º 0806470-28.2018.4.05.8400. Magistrado: Mário
Azevedo Jambo. 31 jul. 2019.
35 10ª Vara Federal. Ação Penal. Processo n.º 0800129-80.2018.4.05.8401. Magistrado: Lauro
Henrique Lobo Bandeira. 20 nov. 2018.
36 2ª Vara Federal. Procedimento Investigatório Criminal. Processo n.º 0811518-36.2016.4.05.8400.
Magistrado: Mario Azevedo Jambo. 24 fev. 2017.
599
A aplicação do direito interamericano dos direitos humanos pela (...)
No que se refere às 3 (três) decisões interlocutórias que mencionaram o
termo “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher”, essas foram categorizadas no segundo grupo, uma vez que não
se tratou de mera citação, já que a Convenção foi efetivamente utilizada para
estabelecer a competência da Justiça Federal.
Nesses casos, apesar das ações serem relativas a aplicação de medidas
protetivas de urgência – cuja apreciação do pedido cabe, em regra, à Justiça
Comum Estadual –, os magistrados entenderam que as práticas de ameaças contra
as mulheres partiram de locais situados no exterior, o que demonstraria a natureza
transnacional do delito, bem como a necessidade aplicação da Convenção de
Belém do Pará, o que resultaria na conformação desses casos à previsão do art.
109, V, da CF, que estabelece a competência da Justiça Federal para processar e
julgar “[...] crimes previstos em tratados ou convenção internacional, quando,
iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no
estrangeiro, ou reciprocamente” 37.
Por fim, após a análise da única decisão judicial em que foi localizada a
menção à palavra-chave “Convenção Interamericana contra o Racismo, a
Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância”, concluiu-se pela sua
inclusão no primeiro grupo, uma vez que o magistrado somente procedeu com a
mera citação desse termo no relatório da sentença.
5 CONCLUSÃO
Conforme visto, este estudo buscou responder à seguinte indagação: os
magistrados da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte (SJRN) têm aplicado o
direito interamericano dos direitos humanos? Para tanto, o presente trabalho
abordou os aspectos básicos do SIPDH, tratou do cenário atual da aplicação do
direito internacional pelos magistrados brasileiros; e, ainda, analisou as decisões
proferidas pelos magistrados vinculados à SJRN que observam o direito
interamericano.
37 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 27 dez.
2023. p. de internet.
600
Hermínia Boracini Bichinim Costa Silva, Joel Vidal de Negreiros Neto
& Thiago Oliveira Moreira
Para a concretização dessa última fase, foi empregada a técnica
procedimental da pesquisa jurisprudencial. Por meio da qual foram localizadas 39
(trinta e nove) decisões interlocutórias e 22 (vinte e duas) sentenças, proferidas no
âmbito da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, que mencionam algumas das
convenções intermaricanas das quais o Estado brasileiro é signatário, isto é: a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e Convenção Interamericana
contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.
Contudo, não foi possível localizar nenhuma menção a Convenção
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura; a Convenção Interamericana sobre
o Desaparecimento Forçado de Pessoas; e a Convenção Interamericana para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras
de Deficiência.
Além disso, após a análise qualitativa, observou-se que, dentre as 61
(sessenta e uma) decisões judiciais localizadas, 63,93% (sessenta e três vírgula
noventa e três por cento) – 29 (vinte e nove) decisões interlocutórias e 10 (dez)
sentenças – se limitaram a mencionar as respectivas convenções interamericanas,
por exemplo, no relatório, como argumento das partes, ou na ementa de algum
julgado citado pelo(a) magistrado(a). Em contrapartida, somente em 36,07% (trinta
e seis vírgula sete por cento) dos casos, especificamente em 10 (dez) decisões
interlocutórias e em 12 (doze) sentenças, essas convenções foram utilizadas como
fundamentação pelo(a) juiz(a).
Logo, diante dos dados coletados, evidencia-se que, dentro de um universo
de milhares de decisões proferidas pelos magistrados da Seção Judiciária do Rio
Grande do Norte, a utilização do Direito Interamericano ainda tem se dado de
maneira tímida.
Apesar disso, verifica-se uma tendência no TRF-5, que inclui a JFRN, de
buscar a maior observância do direito interamericano, tendo em vista, por exemplo,
a recente adesão ao Pacto Nacional do Judiciário pelos Direitos Humanos do CNJ,
a criação da primeira Unidade de Monitoramento e Fiscalização de decisões,
deliberações e recomendações do Sistema Interamericano de Proteção aos direitos
Humanos, no âmbito da Justiça Federal da 5ª Região (UMF/JF5), bem como a
601
A aplicação do direito interamericano dos direitos humanos pela (...)
adoção de medidas de fomento, como cursos de aperfeiçoamento de
magistrados(as) acerca da temática.
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Disponível em:
https://periodicos.set.edu.br/humanas/article/view/3536/2672. Acesso em:
20 dez. 2023.
603
A análise estatística e a perspectiva jurimétrica do contencioso
tributário como fundamento para incentivo da transação tributária
Danilo Marques de Queiroz 1
1. INTRODUÇÃO
O instituto da transação tributária como método consensual de resolução de
litígios fiscais está amparado por uma evolução normativa constitucional e
infraconstitucional. Na perspectiva constitucional, destaca-se o art. 150, §6º, da
Constituição Federal 2onde menciona que qualquer subsídio ou isenção, concessão
de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou
contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica. Em síntese, desde
que haja lei específica concedendo benefício tributário, nas limitações da constituição,
é permitido a regulamentação por norma infraconstitucional.
Ato contínuo, o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/66) 3aborda de forma
mais específica o instituto da transação tributária. No art. 156, inciso III, da respectiva
norma, menciona que a transação é uma das modalidades da extinção do crédito
tributário. Além disso, ainda no Código Tributário Nacional, o art. 171, caput, menciona
expressamente que será facultado à lei estabelecer condições aos sujeitos passivo e
ativo para celebrar transação, mediante concessões mútuas, viabilizando a extinção
do crédito tributário. Outrossim, o parágrafo único do art. 171 do CTN informa que
caberá à lei indicar a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso.
No cenário atual, a norma que se refere o Código Tributário Nacional
relacionada a Transação Tributária está regulamentada pela Lei do Contribuinte Legal
1
Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestrando em Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Advogado. E-mail: [email protected]
2
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Acesso em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Brasília, DF: Senado Federal:
Centro Gráfico, 1988. Acesso: 10 jan. 2023.
3
BRASIL. Lei 5.172, 25 out. 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais
de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, 27 out. 1966. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm >.
Acesso em: 10. jan. 2023
604
Danilo Marques de Queiroz
(Lei nº 13.988/2020) 4, com a possibilidade de transação por adesão ou por proposta
individual (Contribuinte ou Fazenda Pública), contendo as limitações legais para
concessão de redução de juros, multa e encargos legais, demonstrando-se os critérios
existentes para celebração do acordo com a Fazenda Pública.
Diante desse cenário, é interessante explicitar as possíveis razões que levaram
o legislador e ao poder público a investir na regulamentação da transação tributária e
estímulo aos métodos consensuais de resolução de conflitos. Em primeiro plano, nota-
se que o contencioso tributário também é reflexo da existência de uma cultura de
litigiosidade entre contribuinte e administração pública, além da ausência de
mecanismos que permitissem uma confiança recíproca para instauração de um
diálogo entre as partes envolvidas.
Inclusive, Lucas Borges Carvalho 5 demonstra a importância do pragmatismo e
do pressuposto de confiança na relação da administração pública com o administrado,
afastando-se de ritos e formalidades excessivas que não resolvem o problema
efetivamente, tendo como base os resultados e entrega aos administrados. O referido
conceito é totalmente possível ser aplicado na perspectiva tributária, emergindo uma
cultura cooperativa e dialógica do fisco com o contribuinte.
Além disso, a litigiosidade tributária esteve relacionada por muito tempo como
um pressuposto de que a via judicial seria o único método eficaz para resolução de
litígios, muitas vezes onerando a máquina pública de forma desnecessária ou a
Fazenda Pública investindo em litigância em ações judiciais em que haveria uma
probabilidade estatística de prejuízo ao erário público, sendo uma decisão ineficiente
sob perspectiva econômica, assim entende Humberto Theodoro Júnior 6.
4
BRASIL. Lei Ordinária nº 13.988, de 14 de abril de 2020. Dispõe sobre a transação nas hipóteses que
especifica; e altera as leis nº 13.464, de 10 de julho de 2017, e 10.552, de 19 de julho de 2002. Brasília,
2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L13988.htm Acesso
em 10 jan. 2023.
5
BORGES DE CARVALHO, L. Governo digital e direito administrativo: entre a burocracia, a confiança
e a inovação. Revista de Direito Administrativo, [S. l.], v. 279, n. 3, 2000, p. 137. DOI:
10.12660/rda.v279.2020.82959. Disponível em:
https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/82959. Acesso em: 06 jan. 2023.
6
“(...) combater o excesso de litigiosidade que domina a sociedade contemporânea, que crê na
jurisdição como a única via pacificadora de conflitos, elevando a um número tão gigantesco de
processos aforados, que supera a capacidade de vazão dos órgãos e estruturas do serviço judicial
disponível.” THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do direito
processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 56. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2015, vol. I. p. 126.
605
A análise estatística e a perspectiva jurimétrica do contencioso (...)
Em razão disso, percebe-se que o investimento na produção de estatísticas
sobre as demandas judiciais do contencioso tributário, com ênfase nas matérias que
mais ocasionam prejuízo para o erário público, demonstram uma informação
estratégica importante para tomada de decisão, com objetivo de gerar maior eficiência
arrecadatória aos cofres públicos.
Nesse sentido, Marcelo Guedes Nunes na sua obra “Jurimetria: como a
estatística pode reinventar o direito” 7
traz o seguinte conceito para estatística: “A
estatística lida com a coleta, organização e análise de conjuntos de dados. Seu
objetivo é descrever esses conjuntos e obter, a partir deles, a maior quantidade de
conhecimento possível.”, ou seja, com a coleta de informações, é possível tratar os
dados obtidos para tomada de decisão estratégica para o contencioso tributário, seja
pela manutenção do litígio ou implementação de outro mecanismo de arrecadação
tributária.
Em um contexto que se pretende unir a estatística e o direito, é possível a
utilização de métodos jurimétricos como forma de obter informações que permitam
uma decisão ainda mais coerente com objetivo da análise. Ainda na doutrina de
Marcelo Guedes Nunes 8, ele traz um conceito sobre Jurimetria, aduzindo que:
“Jurimetria como a disciplina do conhecimento que utiliza a metodologia estatística
para investigar o funcionamento de uma ordem jurídica.”
De forma ainda mais aprofundada, a jurimetria se consolida como uma
aproximação entre os conceitos jurídicos e estatísticos, permitindo que os operadores
do direito tenham uma visão estratégica na tomada de decisão. Como exposto por
Manoel Tavares Menezes Netto 9, a jurimetria oferece ao operador do direito a
superação do plano puramente argumentativo, oferecendo mecanismos práticos que
permitem adoção de estratégias, como o cenário probabilístico de teses por parte do
Poder Judiciário, o volume de demandas que tem ocasionado maior período de tempo
ou prejuízo econômico ao erário, entre outras projeções baseadas em dados da
própria realidade que permitem a tomada de decisão mais eficiente.
7
NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria [livro eletrônico]: como a estatística pode reinventar o Direito.
São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2016. P. 44.
8
NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria [livro eletrônico]: como a estatística pode reinventar o Direito.
São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2016. P. 91.
9
NETTO, Manoel Tavares de Menezes. O papel do Laboratório de Jurimetria e Inovação Jurídica
(LABJUD) no aprimoramento da representação judicial da Fazenda Nacional. Dissertação (mestrado)
– Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Acesso em:
https://hdl.handle.net/10438/32215. 2022. P. 23
606
Danilo Marques de Queiroz
Dessa maneira, percebe-se que a estatística e a perspectiva jurimetrica sobre
o contencioso tributário traduz a obtenção de informações que permitem analisar a
viabilidade na permanência no contencioso tributário ou a possibilidade de estimular
a conciliação através do incentivo a transação tributária. Ou seja, nos casos em que
não há eficiência arrecadatória, com base em pesquisas jurimetricas, a transação
tributária torna-se um canal para aumento da arrecadação pública com uma redução
de risco operacional.
Isto posto, com base na perspectiva exposta, pretende-se examinar a
importância da análise estatística e da utilização da jurimetria nos casos de
contencioso tributário como mecanismos estratégico para proposição da transação
tributária, visando maior eficiência arrecadatória e redução dos riscos da litigiosidade
fiscal da Fazenda Pública no poder judiciário.
2. METODOLOGIA
Em relação a metodologia do referido trabalho, estará concentrada na coleta
de dados para análise de dados estatísticos através do estudo feito no “Justiça em
Números” desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 10 para análise da
litigiosidade tributária no judiciário, análise do “PGFN em Números” que permite
visualizar os dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional 11
sobre resultados
econômicos obtidos com o exercício da transação tributária, além demonstração da
Fazenda Nacional quanto a utilização de ferramentas jurimétricas através da criação
interna do setor de núcleo de trabalho da Divisão de Jurimetria (DIJUR) e Laboratório
10
CNJ. Justiça em Números - Portal CNJ. Principal fonte das estatísticas oficiais do Poder Judiciário,
anualmente, desde 2004, o Relatório Justiça em Números divulga a realidade dos tribunais brasileiros,
com muitos detalhamentos da estrutura e litigiosidade, além dos indicadores e das análises essenciais
para subsidiar a Gestão Judiciária brasileira. Acesso em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-
judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em: 10 jan. 2023.
11
PGFN. PGFN em Números. O “PGFN em Números” é um relatório anual, publicado no início de cada
exercício, contendo um resumo das principais iniciativas, atuações e conquistas da Procuradoria-Geral
da Fazenda Nacional no ano anterior. Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/acesso-a-
informacao/institucional/pgfn-em-numeros. Acesso em: 06 jan. 2023.
607
A análise estatística e a perspectiva jurimétrica do contencioso (...)
de Jurimetria e Inovação Jurídica (LABJUD), ambos regulamentados pelas Portarias
Administrativas PGFN/ME nº 9.652/2022 12
e PGFN nº 22.726/2020 13
Além disso, pretende-se examinar o “Justiça Pesquisa - Diagnóstico do
Contencioso Tributário” desenvolvido pelo INSPER/CNJ 14 em que se analisa o estudo
estatísticos sobre o posicionamento dos tribunais a respeito do contencioso tributário,
a demonstração da complexidade das causas tributárias e índices que permitem a
análise da conjuntura atual e adoção de medidas estratégicas.
Além disso, com a análise de artigos científicos e doutrina sobre envolvendo
contencioso tributário, execução fiscal e transação tributária, é possível analisar o
custo da Execução Fiscal no Brasil, a quantificação do contencioso tributário nos
principais tribunais do país e o impacto econômico gerado em jurisprudência defensiva
em teses contrárias ao entendimento do fisco e, por fim, as hipóteses em que é
sugerida a promoção da transação tributária como aprimoramento da advocacia
pública.
Noutro pórtico, além da demonstração de análise estatística e dos estudos
jurímétricos sobre o contencioso tributário, há também que mencionar a utilização
metodológica hipotético-dedutiva, partindo de uma ideia geral e abstrata para
situações particulares. 15
Nesse viés, houve a realização de coleta de dados de estudos jurimétricos
sobre as questões envolvendo o contencioso tributário, com a possibilidade de realizar
análise das informações obtidas para demonstrar o cenário atual da litigiosidade
tributária e também como a transação tributária surge como uma possibilidade de
contribuir com os efeitos negativos do contencioso tributário.
12
PGFN. Portaria PGFN/ME nº 9652/2022. Institui a Rede de Estratégias Judiciais da Fazenda
Nacional (REJ) e dispõe sobre as balizas orientativas de inclusão e exclusão de matérias e processos
em acompanhamento especial, a gestão de processos prioritários e os fluxos de comunicação entre as
equipes da representação judicial da PGFN. Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-
br/assuntos/representacao-judicial/temas-com-dispensa-de-contestar-e-recorrer/portaria_9652-
2022_rede-de-estrategias-judiciais.pdf. Acesso em: 07 jan. 2023.
13
PGFN. Portaria PGFN/ME nº 22726/2020. Institui e disciplina o Sistema Nacional da Representação
Judicial, no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Disponível em:
https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/representacao-judicial/temas-com-dispensa-de-contestar-e-
recorrer/portaria-no-22726-de-23-de-outubro-de-2020.pdf. Acesso em: 07 jan. 2023.
14
CNJ. INSPER. Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro: relatório final de pesquisa.
Acesso em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-contencioso-tributario-final-
v10-2.pdf. Brasília: CNJ, 2022. Acesso em: 06 jan. 2023.
15
MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Cláudia Servilha. Manual de metodologia da pesquisa no direito.
5ªed. São Paulo: Saraiva, 2009.
608
Danilo Marques de Queiroz
Outrossim, destaque-se o caráter inovador da temática, justificada com a
implementação embrionária da jurimetria nos órgãos públicos fazendários, sobretudo
nas Procuradorias Estaduais e Municipais, que estão envolvidos na análise estatística
da transação do contencioso tributário, o que demonstra da análise de dados e estudo
teórico sobre o tema.
3. DA JURIMETRIA E TRANSAÇÃO TRIBUTÁRIA.
De início, cabe mencionar também os resultados obtidos com análise do
“Justiça Pesquisa – Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro”
16
elaborado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER) através do requerimento
feito por meio do Edital de Convocação Pública e Seleção (Dispensa de Licitação –
Processo nº 08400/2020) pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Neste viés, houve a elaboração de 12 hipóteses como referencial teórico, com
objetivo de gerar correlação entre os pontos suscitados nas hipóteses para proposição
da pesquisa e propor resultados com base na análise estatística feita. Dentre elas,
para o presente trabalho, destaca-se as seguintes hipóteses:
(i) Hipótese nº 04 – Responsabilização Financeira das Partes
– “Existe relação entre a ausência ou a reduzida onerosidade
(responsabilização financeira) para as partes e a alta
litigiosidade tributária.”;
(ii) Hipótese nº 06 - Meios Alternativos de Conflitos
Tributários - “Existe relação de causalidade entre o estoque de
débitos exigíveis e a adoção dos meios alternativos de solução
17
de conflitos tributários.”
16
CNJ. INSPER. Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro: relatório final de pesquisa.
Acesso em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-contencioso-tributario-final-
v10-2.pdf. Brasília: CNJ, 2022. Acesso em: 06 jan. 2023.
17
CNJ. INSPER. Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro: relatório final de pesquisa.
Acesso em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-contencioso-tributario-final-
v10-2.pdf. Brasília: CNJ, 2022. Acesso em: 06 jan. 2023. Pgs. 37-41
609
A análise estatística e a perspectiva jurimétrica do contencioso (...)
Na hipótese 04 obteve-se uma preocupação em analisar a perspectiva da
economia comportamental em relação a litigiosidade fiscal,a analisando os elementos
indutores de comportamentos que levariam o contribuinte a litigar com a Fazenda
Pública, sobretudo em razão da própria judicialização da demanda envolve incertezas
e riscos, buscando identificar uma correlação entre essas duas vertentes.
Dessa maneira, o referido estudo teve como pressuposto a comparação em
grupos de ações judiciais que há pouca ou nenhuma onerosidade em comparação
com aquelas que detém risco econômico (custas judiciais e/ou honorários
sucumbenciais), como maneira de concluir se aquelas ações que não detém custo de
litigiosidade influenciam no aumento da litigância fiscal.
Noutro pórtico, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) através do
“PGFN em Números – 2022” 18
reconhece que a disponibilidade e ampliação dos
programas de transação tributária representou mais de 200 bilhões em negociação
em transação, representando um avanço na perspectiva de regularização dos créditos
tributários.
Ainda referenciando o “PGFN em Números – 2022”, demonstra-se a criação do
Laboratório de Jurimetria e Inovação Jurídica (LABUD), criado através das Portarias
PGFN/ME nº 9.652/2022 e Portaria nº 22.726/2020, com objetivo de centralizar
informações para gerenciar a tomada de decisão da Fazenda Nacional e definição de
estratégia jurídica. Dentre elas, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional reconhece
a transação tributária como um tema importante para análise de estudo dentro do
Laboratório de Jurimetria.
Nesse prisma observacional, nota-se que a coleta de dados realizada no
presente artigo permite abordar discussões a respeito da importância da jurimetria
como método estratégico para análise do contencioso tributário e, eventualmente, a
utilização da transação tributária como promoção da arrecadação tributária mais
eficiente.
O ato de pensar e materializar o estado de cidadania fiscal pela administração
pública tem se tornado cada vez mais importante. Isso porque, cada vez mais
superado o estigma de que o litígio é a única maneira de lidar com a administração
18
PGFN. PGFN em Números 2022. O “PGFN em Números” é um relatório anual, publicado no início
de cada exercício, contendo um resumo das principais iniciativas, atuações e conquistas da
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional no ano anterior. Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-
br/acesso-a-informacao/institucional/pgfn-em-numeros/pgfn_em_numeros25042022-compressed.pdf.
Acesso em: 08 jan. 2023.
610
Danilo Marques de Queiroz
pública tributária, emerge-se, no cenário vigente, uma figura cooperativa e dialógica
do poder público, como primado da confiança, em que o contribuinte encontra a
possibilidade de exercer a transparência e expor cenários para regularidade fiscal.
Na doutrina de José Casalta Navais 19 onde aduz as implicações do Estado
Fiscal, afirma a existência de um dever fundamental de pagar impostos do
contribuinte, o imposto não pode ser reputado como uma mera prerrogativa estatal,
tampouco como mero sacrifício para os cidadãos, mas deve ser encarado como um
elemento de participação individual e coletiva próspera de todos os membros da
comunidade organizada em Estado.
Nesse viés, nota-se que há um tratamento lógico por parte da tributação. Não
se tributa pela tributação em si mesma, não há sentido na arrecadação tributária, se
esta não é acompanhada de uma razão ética para tal desiderato. A função
arrecadatória permite que o Estado execute as finalidades que lhe são imputadas pela
Constituição Federal e pelos normativos infraconstitucionais, mas também tem a
função de expor externalidades comportamentais, estimulando ou desestimulando o
comportamento dos indivíduos.
Nos dizeres de Luís Eduardo Schoueri 20, o Estado constitucional vigente não é
neutro, pois o constituinte originário demonstrou-se inconformado com a ordem
econômica, o que permite a consecução de medidas que permitam a intervenção
estatal na ordem econômica e social, objetivando o bem comum. É possível, portanto,
ter a intervenção do Estado para gerar comportamentos positivos, que estimulem a
percepção da tributação como um dever coletivo e necessário para manutenção de
um projeto de Estado.
Ser cidadão também é ser contribuinte, é estar na condição de agente
participativo no sistema de manutenção e financiamento estatal como lembra Regina
Helena Costa 21. Em razão disso, na condição cooperativa para o financiamento de
um projeto de nação, é esperado que haja confiança entre as partes envolvidas e um
sentimento de cooperação pelo poder público.
Assim sendo, o aprimoramento da atuação do poder público com a ferramenta
jurimetria, com a possibilidade de unir a estatística ao direito, permite a visualização
19
NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Almedina: Coimbra, 1998 p. 185.
20
SCHOUERI, Luís Eduardo, Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 36
21
COSTA, Regina Helena. Curso de direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 29.
611
A análise estatística e a perspectiva jurimétrica do contencioso (...)
de cenários probabilísticos e, mediante essas constatações, propor soluções mais
eficientes para arrecadação tributária e regularização fiscal do contribuinte.
Quando se propõe a utilização de ferramentas jurimétricas e análise estatística
do contencioso tributário como fundamento de inclusão para transação tributária,
busca-se dizer que as ferramentas permitem uma ótica mais objetiva da realidade e a
tomada de decisão pautada em cenários probabilísticos que permitem a adoção de
medidas de forma mais racional.
Na coleta de dados desenvolvida nos resultados extraídos do “Justiça em
Números” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 22, percebe-se que as execuções
fiscais contribuem de maneira substancial para o assoberbamento de ações no poder
judiciário. Há muitos anos vem se discutindo acerca do problema na prestação
jurisdicional a respeito da celeridade processual que, em contrapartida, é
comprometida com a quantidade de processos em trâmite, e acaba afetando o tempo
de tramitação desses processos.
Além da quantidade substancial de execuções fiscais, há que se mencionar
também a taxa de congestionamento das execuções fiscais no judiciário brasileiro,
demonstrando que o último índice referido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
no “Justiça em Números 2022” está cerca de 90%, 23
o que demonstra que o tempo
de tramitação dessas ações é considerável e merece atenção devida.
Ademais, com base na coleta de dados do referido estudo, é possível concluir
que as execuções fiscais em comparação com as execuções de forma geral, aquelas
de matéria tributária detém percentual de congestionamento superior em todos os
anos de análise feitos. Isso significa dizer que a execução fiscal carrega um tempo de
tramitação maior, o que muitas vezes traduz em um maior custo de litigiosidade para
o poder público. Ademais, o tempo longevo de uma execução fiscal significa também
a irregularidade do crédito tributário por mais tempo.
22
CNJ. Justiça em Números - Portal CNJ. Principal fonte das estatísticas oficiais do Poder Judiciário,
anualmente, desde 2004, o Relatório Justiça em Números divulga a realidade dos tribunais brasileiros,
com muitos detalhamentos da estrutura e litigiosidade, além dos indicadores e das análises essenciais
para subsidiar a Gestão Judiciária brasileira. Acesso em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-
judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em: 10 jan. 2023.
23
PGFN. PGFN em Números 2022. O “PGFN em Números” é um relatório anual, publicado no início de cada
exercício, contendo um resumo das principais iniciativas, atuações e conquistas da Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional no ano anterior. Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/pgfn-
em-numeros/pgfn_em_numeros25042022-compressed.pdf. Acesso em: 08 jan. 2023. P. 170
612
Danilo Marques de Queiroz
Noutro pórtico, o estudo realizado pelo INSPER/CNJ demonstrou que não há
uma relação de causalidade entre a ausência de responsabilização financeira
(onerosidade) do contribuinte no litígio de ações judiciais como estímulo a litigância
tributária. Isso porque, os instrumentos utilizados como o Mandado de Segurança
(ação mais utilizada) é impetrada em virtude da celeridade processual e também pela
maior probabilidade de êxito da demanda. Ou seja, não há uma clareza acerca do fato
do baixo risco econômico ser o fator que estimula a litigiosidade fiscal.
Entretanto, sabe-se que a transação tributária tem sido um fator positivo para
regularização do crédito tributário e aumento da arrecadação pública, inobstante o
aumento de execuções fiscais ajuizadas. Denota-se, portanto, que a adoção de
mecanismos de Negócio Jurídico Processual tem sido vantajoso para o poder público
nesse momento inicial. Cabe aos órgãos manter a análise dos dados para verificar a
permanência desse elemento positivo.
Ainda sob o estudo mencionado, o autor Pablo Enrique Carneiro Baldivieso no
artigo “Litigiosidade tributária e suas repercussões econômicas: uma análise do
relatório Insper/CNJ 2022” 24
menciona a importância do primado da confiança e
cooperação das partes na resolução do litígio tributário traduz um comportamento que
desestimula a litigiosidade fiscal.
Noutra perspectiva, é de suma importância demonstrar o impacto da jurimetria
dentro da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) na viabilidade de
transação do contencioso tributário através da criação do Laboratório de Jurimetria e
Inovação Jurídica (LABJUD), através da Portaria PGFN/ME nº 9.652/2022, no art. 7º,
inciso XIII c/c 28, caput, da referida norma. Além disso, o art. 4º, inciso V, da Portaria
nº 22.726/2020 menciona que a representação judicial da Fazenda Nacional poderá
utilizar a Jurimetria.
Tal contexto demonstra um avanço significativo da Fazenda Nacional em
relação a utilização de ferramentas jurimetricas, demonstrando uma ênfase nas
demandas de contencioso tributário para adoção de medidas estratégicas. E, diante
desse contexto, a visualização de demandas que ocasionam prejuízo econômico ou
que demonstram um alto risco ao poder público podem ser objetivo de transação
24
BALDIVIESO, Pablo Enrique Carneiro. Litigiosidade tributária e suas repercussões econômicas: uma análise
do relatório Insper/CNJ 2022. R. Trib. Reg. Fed. 1ª Região, Brasília, DF, ano 34, n. 2, 2022. Disponível em:
https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/168667. Acesso em: 15 jan. 2023.
613
A análise estatística e a perspectiva jurimétrica do contencioso (...)
tributária, pois assim é possível visualizar um cenário de arrecadação tributária mais
eficiente.
Diante desse cenário, é importante mencionar o trabalho de Manoel Tavares
de Menezes Neto em relação a Dissertação de Mestrado com título “O papel do
laboratório de jurimetria e inovação jurídica (LABJUD) 25 no aprimoramento da
representação judicial da Fazenda Nacional”. O referido autor menciona que há um
“Eixo Jurimetria” que é responsável pela análise de dados do contencioso judicial e
uma equipe responsável pela análise e tomada de decisões estratégicas sobre o
tema.
Isto posto, verifica-se que os dados apresentados demonstram a importância
da análise estatística e da perspectiva jurimetrica do contencioso tributário como
forma de adoção de estratégicas à Fazenda Pública. Dentre elas, destaca-se a
promoção da transação tributária como forma de gerar a arrecadação tributária cada
vez mais eficiente, com redução de riscos litigiosos e de incertezas oriundas da
judicialização de demandas controvertidas.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos termos expostos, o presente artigo teve por objetivo demonstrar que o
tema abordado detém uma relação de cunho constitucional por um aspecto
principiológico e normativo, como também de cunho infraconstitucional, destacando-
se o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/66) e a Lei do Contribuinte Legal
(13.988/2020), com enfoque na regulamentação da transação tributária.
Ato contínuo, foi abordado a respeito dos métodos de resolução de conflitos
fiscais. De um lado, subsiste a execução fiscal como forma litigiosa e de cunho forçado
para cobrança do crédito tributário, que atualmente permanece sendo o principal meio
de cobrança da Fazenda Pública. A insistência nas execuções fiscais ocasionou uma
cultura de litigiosidade que corroborou em um judiciário assoberbado de processos,
com um tempo de tramitação judicial bastante elevado, além de uma taxa de
congestionamento que chega a incríveis 90%, o que torna um cenário que necessita
de melhorias.
25
NETTO, Manoel Tavares de Menezes. O papel do Laboratório de Jurimetria e Inovação Jurídica
(LABJUD) no aprimoramento da representação judicial da Fazenda Nacional. Dissertação (mestrado)
– Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Acesso em:
https://hdl.handle.net/10438/32215. 2022. PG. 39
614
Danilo Marques de Queiroz
Evidencia-se que, nos casos em que há permanência de uma execução fiscal
por muitos anos, com a realização de métodos constritivos sem êxito, além de
demonstrar uma ineficiência no método arrecadatório, ocasiona um problema social,
posto que o contribuinte permanece em situação de irregularidade, sem qualquer
estímulo do poder público em mudar tal cenário.
A irregularidade tributária, diante de partes norteadas pela boa-fé, não
interessa a ninguém. Perde o contribuinte, perde o Estado. Daí porque a necessidade
do poder público em criar mecanismos de estímulo positivo, pautado na confiança,
diálogo e transparência nos seus atos, permitindo um ambiente em que o contribuinte
sinta confortável para expor os problemas e discutir soluções.
Se há apenas a litigiosidade como forma de arrecadação do crédito tributário,
somente restaria ao poder público tentativas incansáveis de garantir o adimplemento
da dívida. Do contrário, o contribuinte permaneceria em situação de irregularidade e
o Estado sem perspectiva arrecadatória.
Em outro cenário, com a regulamentação da transação tributária, vislumbra-se
um novo cenário em que é possível dialogar com a administração pública a fim de
regularizar a situação do contribuinte. Através do referido instituto, as concessões
fiscais são feitas proporcionalmente a situação de dificuldade econômica vivenciada
pelo contribuinte, o que torna a equidade tributária presente nos incentivos fiscais
colocados.
Além disso, o estímulo à transação tributária por meio da jurimetria permite uma
justificativa sólida e concreta, fugindo-se de argumentos retóricos e dando ênfase
cenários de arrecadação tributária mais eficiente, além de permitir ao contribuinte um
caminho da confiança e cooperação para regularização do crédito tributário.
Por fim, há uma consciência da complexidade do tema e do seu caráter
inovador, vislumbrando-se que, em curto espaço de tempo, a jurimetria servirá como
um elemento fundamental para tomada de decisões da Fazenda Pública e permitirá
maior segurança jurídica ao Procurador Fazendário na realização de transações
tributárias que venham estimular a arrecadação, que seja uma forma de estimular o
contribuinte ao adimplemento do tributo e permite o desenvolvendo mais racional do
Estado, verificando-se, com entusiasmo, com os cenários positivos que estarão por
vir com essa medida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
615
A análise estatística e a perspectiva jurimétrica do contencioso (...)
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Acesso
em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei 5.172, 25 out. 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui
normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios.
Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 27 out. 1966. Disponível em:
< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm >.
BRASIL. Lei Ordinária nº 13.988, de 14 de abril de 2020. Dispõe sobre a transação
nas hipóteses que especifica; e altera as leis nº 13.464, de 10 de julho de 2017,
e 10.552, de 19 de julho de 2002. Brasília, 2020. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L13988.htm
BORGES DE CARVALHO, L. Governo digital e direito administrativo: entre a
burocracia, a confiança e a inovação. Revista de Direito Administrativo, [S. l.],
v. 279, n. 3, 2000, p. 137. DOI: 10.12660/rda.v279.2020.82959. Disponível em:
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BALDIVIESO, Pablo Enrique Carneiro. Litigiosidade tributária e suas repercussões
econômicas: uma análise do relatório Insper/CNJ 2022. R. Trib. Reg. Fed. 1ª
Região, Brasília, DF, ano 34, n. 2, 2022. Disponível em:
https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/168667.
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estrutura e litigiosidade, além dos indicadores e das análises essenciais para
subsidiar a Gestão Judiciária brasileira. Acesso em:
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616
Danilo Marques de Queiroz
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617
A análise estatística e a perspectiva jurimétrica do contencioso (...)
exclusão de matérias e processos em acompanhamento especial, a gestão de
processos prioritários e os fluxos de comunicação entre as equipes da
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618
O papel das normas de direitos humanos em face das mudanças
climáticas: a posição adotada pelo sistema interamericano de
proteção aos direitos humanos
Joel Vidal de Negreiros Neto 1
Hermínia Boracini Bichinim Costa Silva 2
Thiago Oliveira Moreira 3
1 INTRODUÇÃO
O mundo tem sido afetado simultaneamente por diversos eventos
adversos, decorrentes das mudanças climáticas provocadas pela ação humana.
A questão, que já vinha causando efeitos pontuais no planeta, parece estar
avançando rapidamente para o agravamento e, consequente, aumento dos
danos infligidos à Terra, e, assim, a toda a população.
Diante de tantos problemas, o debate acerca da necessidade de
diferentes ações e, ao mesmo tempo, integradas, deve ser visto,
verdadeiramente, como a solução para a manutenção da vida humana na Terra
e, não só isso, mas também para garantir a vida digna, com a fruição de direitos
por todos.
Tal destaque deve ser dado ao se considerar a intrínseca relação entre
enfrentamento das mudanças climáticas e garantia de direitos humanos a todas
1 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisador
do Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte (OBDI/UFRN); e do Grupo
Direito Internacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade
(CNPq/UFRN). E-mail: [email protected]. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1069568882497184. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5173-0175.
2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Pesquisadora do Grupo Direito Internacional dos Direitos Humanos e as Pessoas em Situação
de Vulnerabilidade (UFRN); do Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte
(OBDI/UFRN), e do Grupo Constituição Federal e sua Concretização pela Justiça Constitucional.
E-mail:
[email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4491259128663987. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5153-3489.
3 Professor Adjunto IV da UFRN. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco
(UPV/EHU). Mestre em Direito pela UFRN. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em
Direito da UFRN (PPGD/UFRN). Líder do Grupo de Pesquisa Direito Internacional dos Direitos
Humanos e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade (UFRN). Professor orientador do
Observatório de Direito Internacional do Rio Grande do Norte (OBDI/UFRN). E-mail:
[email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8030681636075210. Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-6010-976X.
619
O papel das normas de direitos humanos em face das (...)
as pessoas, uma vez que os eventos climáticos têm sido responsáveis por
impedir o gozo de direitos humanos por diferentes grupos populacionais.
Neste recorte, pode-se dizer que o continente americano tem sido palco
de muitos desses fenômenos climáticos causados e/ou intensificados pela ação
humana, a exemplo de enchentes e secas vividas em diferentes países durante
o ano de 2023 e do chamado super el niño, que tem sido responsável por mudar
drasticamente o clima da América do Sul nos últimos meses de 2023 e que,
segundo especialistas, deverá continuar no ano de 2024.
Sabe-se que tais fenômenos climáticos interferem fortemente na dinâmica
de vida das populações locais, sobretudo na vida de pessoas mais vulneráveis,
influenciando inclusive no acesso a direitos mínimos de todos, como o acesso à
água potável, alimentação e saúde.
Diante de tal situação, tem-se visto como possível a aplicação de
diplomas internacionais de direitos humanos para garantia de um clima estável
a todos, buscando no Direito Internacional dos Direitos Humanos mecanismos
de efetivação da proteção do clima.
Neste sentido, no âmbito do SIPDH, é de elevado interesse entender se
e como a Corte IDH tem pautado a relação entre direitos humanos e mudanças
climáticas, sobretudo através de suas decisões que impactam na questão,
incluindo-se, ainda, a emissão de Opiniões Consultivas demandadas à Corte
pelos Estados-parte da CADH.
Para tanto, faz-se necessário alcançar alguns objetivos específicos, como
compreender a relação entre direitos humanos e mudanças climáticas, os
diplomas regionais de direitos humanos passíveis de aplicação ao tema e a
busca jurisprudencial no site da Corte acerca do tema, o que permitirá, enfim,
compreender como esta se posiciona e se têm sido aplicados os diplomas
regionais de proteção aos direitos humanos para a tutela do clima.
Trata-se de pesquisa de natureza qualitativa e que se utiliza de pesquisa
bibliográfica, documental e jurisprudencial, sendo esta com base em decisões
prolatadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Por fim, espera-se
que o presente estudo contribua para a discussão jurídico nacional sobre a
temática em tela.
620
Joel Vidal de Negreiros Neto, Hermínia Boracini Bichinim Costa
Silva & Thiago Oliveira Moreira
2 DIREITOS HUMANOS E MUDANÇAS CLIMÁTICAS
A relação existente, atualmente, entre os resultados das mudanças
climáticas causadas pela ação antrópica e as diferentes situações de violação
de direitos humanos, sobretudo de populações vulneráveis, deve ser estudado
e analisado com atenção elevada.
Segundo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (IPCC, na sigla em inglês para Intergovernmental Panel on Climate
Change), publicado no primeiro semestre do ano de 2023, as emissões de gases
de efeito estufa foram fortemente incrementadas ao longo da última década 4 – é
dizer, entre 2010 e 2019.
Ainda conforme o Relatório, as mudanças climáticas têm dado causa a
diferentes eventos climáticos adversos e, enfatiza-se, extremos. Nesse sentido,
são vistas diferentes consequências para a garantia da segurança alimentar e
hídrica, consequências sentidas especialmente por populações vulneráveis
socioeconomicamente, que, no entanto, apresentam historicamente uma menor
contribuição para as mudanças climáticas, sendo, contraditoriamente, as mais
afetadas 5.
Partindo para um recorte regional, no contexto Latino-americano,
segundo informações do Relatório Estado del clima en América Latina y el Caribe
en 2022, desenvolvido pela Organização Meteorológica Mundial (OMM),
ressaltou-se o aumento do nível do Oceano Atlântico, os longos períodos de
seca favoreceram o surgimento de queimadas históricas em diversos países da
América do Sul, como é o caso do Brasil, especialmente no Pantanal e na
Floresta Amazônica 6.
Na contramão das queimadas, o mesmo relatório também sobreleva a
ocorrência de fortes chuvas em diferentes regionais sul-americanas,
ocasionando centenas de vítimas fatais, como também muitos desabrigados em
4 INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE (IPCC). Synthesis Report (SYR)
of the IPCC Sixth Assessment Report (AR6). Genebra: IPCC, 2023, p. 42. doi:
10.59327/IPCC/AR6-9789291691647. Disponível em:
https://www.ipcc.ch/report/ar6/syr/downloads/report/IPCC_AR6_SYR_LongerReport.pdf.
Acesso em: 05 de setembro de 2023.
5 Ibidem.
6 ORGANIZAÇÃO METEOROLÓGICA MUNDIAL. Estado del clima en América Latina y el
Caribe en 2022. Genebra: OMM, 2023, pp. 12, 15-17, ISBN 978-92-63-31322-5. Disponível em:
https://library.wmo.int/idurl/4/66322. Acesso em: 15 de setembro de 2023.
621
O papel das normas de direitos humanos em face das (...)
diversos países, destacando-se o caso ocorrido na cidade de Petrópolis, na
região serrana do Rio de Janeiro 7.
Ainda segundo a Organização Mundial Meteorológica 8, em toda a
América do Sul, foram cerca de 10 milhões de pessoas afetadas pelos
fenômenos climáticos, principalmente enchentes e tempestades.
Calcula-se, ainda, que os danos econômicos tenham alcançado a cifra de
9 bilhões de dólares, dado este que pode não representar o real custo do dano,
ao levar-se em conta a falta de informação e acesso a dados em alguns países 9,
ou seja, o custo econômico dos desastres pode ser ainda maior.
Voltando ao Relatório do IPCC, apesar de ser alarmante a situação
apresentada, ainda são vislumbradas possibilidades de mitigar a situação, por
meio de medidas que precisam ser tomadas antes que esta se torne irreversível.
Ressaltou-se ainda, por exemplo, a importância da UNFCCC, do Protocolo de
Kyoto, como também do Acordo de Paris, para a tomada de decisões por parte
dos Estados na implementação de Políticas Climáticas no âmbito interno 10.
Ainda no bojo das discussões sobre o Relatório, como afirma Sarlet, Wedy
e Fensterseifer 11, é possível concluir pela necessidade de se reconhecer
imediatamente um direito humano a um clima estável.
A questão, como já foi citado, se relaciona diretamente com a fruição de
muitos outros direitos humanos, como o direito à saúde, à alimentação
adequada, ao acesso à água potável, entre outros.
Assim como o Direito à água passou a ser reconhecido apenas por volta
dos anos 2000 como um direito humano – quando o Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais estabeleceu o entendimento, por meio da
Observação Geral n.º 15, que a água é essencial para o usufruto de outros
direitos contidos no Pacto, sendo indispensável para manter um nível de vida
adequado 12, o Direito ao Clima também deve ser reconhecido como direito
7 Ibidem.
8 Ibidem, p. 21.
9 Ibidem.
10 Opus citatum, p. 52.
11 SARLET, Ingo Wolfgang; WEDY, Gabriel; FENSTERSEIFER, Tiago. Litígios Climáticos e
Direitos Fundamentais no Brasil. Revista Direito Ambiental e Sociedade, vol. 12, n. 1, p. 18,
2022, pp. 12-30, ISSN 2237-0021. Disponível em:
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/direitoambiental/article/view/11031/5175. Acesso em:
03 de setembro de 2023.
12 MARTÍNEZ, Adriana N.; DEFELIPPE, Óscar E. Derecho Humano al Agua y Control de
Convencionalidad. Revista de la Facultad de Derecho, nº 70. Lima: PUCP, 2013, pp. 109, ISSN
622
Joel Vidal de Negreiros Neto, Hermínia Boracini Bichinim Costa
Silva & Thiago Oliveira Moreira
humano, ao passo que é apenas com um clima estável que se pode usufruir de
muitos outros direitos humanos, mesmo o direito à água.
Pode-se dizer que, atualmente, os principais fundamentos jurídicos do
direito climático – mais precisamente de um direito ao clima estável –, encontra-
se na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas
(UNFCCC), promulgada pelo Brasil na forma do Decreto n.º 2.652, de 1º de julho
1998, como também no Acordo de Paris, firmado em 2015, constituindo parte
das discussões desenvolvidas no âmbito da 21ª Conferência das Partes.
Sobreleva citar ainda que um dos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, o
Objetivo 13, é a de uma Ação contra a Mudança Global do Clima, demonstrando
a importância do tema.
No mesmo sentido, à nível regional, a Organização dos Estados
Americanos (OEA), ainda em 2008, por meio da Resolução n.º 2429 “Direitos
Humanos e Mudança Climática nas Américas”, já falava na relação existente
entre mudanças climáticas e o gozo pleno de direitos humanos, como também
na necessidade de melhor se estudar tal dinâmica 13.
Não menos importante, há de se lembrar que, no âmbito do ordenamento
jurídico brasileiro, a própria Constituição Federal, em seu art. 225, assegura um
direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, devendo ser
assegurado às presentes e futuras gerações. Nesse sentido, é sabido que não
se assemelha possível a existência de um meio ambiente ecologicamente
equilibrado sem que haja, concomitante, e de forma intrínseca a ele, um clima
estável.
Ainda há de se falar na relação entre a questão climática atual, o impacto
na vida das futuras gerações e o direito a um futuro em conformidade com a
dignidade humana dessas gerações vindouras, como veio a reconhecer o
Tribunal Constitucional Federal Alemão ao apreciar as metas apresentadas pelo
país, no julgamento do Caso Neubauer e Outros Vs. Alemanha.
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setembro de 2023.
13 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. AG/RES. 2429 (XXXVIII-O/08) Direitos
Humanos y Cambio Climático en las Américas. Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2009/6977.pdf. Acesso em: 14 de setembro
de 2023.
623
O papel das normas de direitos humanos em face das (...)
No caso, buscou-se a via judicial para discutir as metas de redução de
emissão de Gases do Efeito Estufa (GEE) no país europeu, pelo o que restou
reconhecido na decisão, como afirma Sarlet e Fensterseifer 14, a
desproporcionalidade entre as metas estabelecidas a serem cumpridas pelas
presentes (metas até 2030) e futuras gerações (metas entre 2030 e 2050).
O Tribunal reconheceu que, ao estipular metas somente até 2030,
deixando em aberto as metas posteriores, a Lei Federal sobre Proteção
Climática alemã violou os deveres de proteger o meio ambiente e o clima. Sendo
assim, como reconheceu a Corte Constitucional Alemã, as decisões tomadas na
atualidade, em matéria de clima, não podem comprometer as possibilidades
vislumbradas pelas futuras gerações.
Trata-se apenas de um exemplo entre muitos outros que têm se
multiplicado nos muitos tribunais pelo mundo 15. Cada vez mais tem se
vislumbrado a possibilidade de uma litigância climática com vistas a dar efetivo
cumprimento aos tratados internacionais em matéria de mudanças climáticas,
compelindo governos, mas também empresas a cumprirem as metas de redução
dos níveis de poluição atmosféricas, como no caso Shell 16.
3 O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS
HUMANOS E AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS
Sem dúvidas, ao longo dos últimos anos, pode-se dizer que o SIPDH tem
passado por um processo de esverdeamento 17. Apesar de não ter como objeto
o direito ambiental, a CADH tem sido utilizada pela Corte IDH e pela CIDH para
amparar a proteção do meio ambiente de forma transversal 18, o mesmo tem sido
14 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos Fundamentais e Deveres de
Proteção Climática na Constituição Brasileira de 1988. Revista de Direito Ambiental, vol. 27, n.
108, p. 05. Disponível em: https://www.direitorp.usp.br/wp-content/uploads/2023/03/I-artigo-
completo.pdf. Acesso em: 21 de setembro de 2023.
15 CAVALLO, Gonzalo Aguilar; ROJAS, Cristian Contreras; PANTOJA, Jairo Lucero. Acceso a
la justicia climática: El derecho al acceso a la justicia ambiental como instrumento de control
frente al cambio climático. Rio de Janeiro: Revista Publicum, vol. 7, n. 1, 2021, p. 47.
Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/publicum. Acesso em: 19 de
setembro de 2023.
16 Ibidem, p. 47.
17 MAZZUOLI, Valério de Oliveira; TEIXEIRA, Gustavo de Faria Moreira. O Direito Internacional
do Meio Ambiente e o Greening da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Revista
Direito GV, vol. 9, nº 1, pp. 199, jan. 2013. Disponível em:
https://periodicos.fgv.br/revdireitogv/article/view/20905. Acesso em: 13 de setembro de 2023.
18 Ibidem.
624
Joel Vidal de Negreiros Neto, Hermínia Boracini Bichinim Costa
Silva & Thiago Oliveira Moreira
visto em diferentes tribunais pelo mundo, surgindo a alcunha de
“esverdeamento” (ou no inglês, greening, como tem sido mais utilizado).
Nesse sentido, apesar de o dito “processo de esverdeamento” ser
inicialmente citado como a atuação dos sistemas de proteção aos direitos
humanos para a proteção ambiental, este também tem se estendido para uma
perspectiva de proteção climática.
Como já anteriormente apontado, fica cada vez mais evidente que os
efeitos das mudanças climáticas têm intrínseca relação com muitas das
problemáticas humanitárias vivenciadas em todo o globo, desde secas históricas
até grandes enchentes, pelo o que se pode falar em um direito humano a um
clima estável e são 19.
Não apenas relacionado aos direitos humanos, é notável a intrincada
relação existente entre mudanças climáticas e proteção ambiental (o que é
facilmente notado pelos próprios exemplos acima citados), não se afigurando
possível discutir de proteção do clima sem uma tutela ambiental, sendo a
recíproca também verdadeira 20.
É sabido que as mudanças climáticas têm sido as razões para a
ocorrência de diversos desastres, e estes, por sua vez, interferem diretamente
na dinâmica de vida da população, causando mortes, levando, por exemplo, a
grandes movimentos populacionais. As mudanças climáticas, causadas pela
ação antrópica – reforça-se –, é a razão pela qual pessoas por todo o globo,
especialmente aqueles grupos em situação de maior vulnerabilidade, têm seus
direitos humanos violados.
Partindo para a análise no âmbito do Sistema Interamericano, pode-se
notar que a discussão ainda se apresenta a nível bastante embrionário, tendo
sido o foco principal, muitas vezes, as problemáticas ambientais, citando-se as
mudanças climáticas apenas de forma parcial. As discussões realizadas estão
ligadas, especialmente, à proteção de direitos de povos originários
americanos 21.
19 Opus citatum, p. 4.
20 Pode-se dizer que, provavelmente, por esta mesma proximidade, muitas vezes há uma
dificuldade em se reconhecer o direito ao clima são, sua tutela específica e diferenciada da
proteção ao meio ambiente, sendo importante a realização deste debate.
21 TELES, Patrícia Galvão. Direitos Humanos e Alterações Climáticas. Anuario Hispano-Luso
Americano de Derecho Internacional, vol. 24, pp. 93-132, 2019-2020.
625
O papel das normas de direitos humanos em face das (...)
Um dos primeiros casos apresentados no SIPDH, mais precisamente, que
foi levado a CIDH, no ano de 2005, o Caso do Povo Inuit contra os Estados
Unidos, em que se buscou a tutela de direitos deste grupo que vive na região do
Alaska frente às consequências das mudanças climáticas 22. Apesar de ter sido
negada a demanda, esta se apresenta como um pontapé inicial para a litigância
climática no âmbito do SIPDH.
Posteriormente, no ano de 2009, a Corte IDH julgou o Caso Kawas-
Fernández v. Honduras. Trata-se de julgamento acerca da responsabilidade do
Estado hondurenho, por omissões na apuração dos envolvidos no assassinato
de Jeannette Kawas-Fernández, no ano de 1995. À época, Jeannette era líder
de um movimento que lutava por direitos das populações que viviam na região
da Baía de Tela, em Honduras 23.
A vítima denunciou a apropriação ilegal de terras na região por agentes
privados, como também a contaminação dos lagos e degradação das florestas
locais, sendo apontado o assassinato como provável retaliação por seu trabalho
na região.
Apesar de não tratar diretamente sobre as questões ambientais,
tampouco climáticas, estas matérias se relacionavam diretamente com o caso,
não por menos foram citadas repetidas vezes no julgamento, demonstrando que,
apesar de não terem sido, na ocasião, submetidas à apreciação da Corte, estas
foram tratadas e trabalhadas de forma transversal, demonstrando a preocupação
já existente em relação aos problemas ambientais e climáticos enfrentados na
região 24.
Mais recentemente, em março de 2016, por meio de uma solicitação de
Opinião Consultiva, a República da Colômbia instou a Corte IDH a se pronunciar
acerca da responsabilidade dos Estados, quando da realização de obras de
infraestrutura, e os possíveis impactos na preservação do ambiente marinho na
região da Grande Canária, sendo uma das primeiras iniciativas a buscarem
respostas diretamente sobre a proteção do meio ambiente com base na CADH 25.
22 Ibidem.
23 CORTE IDH. Caso Kawas Fernández Vs. Honduras. Sentença de 03 de abril de 2009,
Mérito, Reparações e Custas. 2009: San José, pp. 1-2. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_196_esp.pdf. Acesso em: 17 de setembro
de 2023.
24 Ibidem, p. 44.
25 CORTE IDH. Opinião Consultiva nº 23/2017, solicitada pela República Colombiana. San
José: Corte IDH, 15 de Novembro de 2017. 2017: San José. Disponível em:
626
Joel Vidal de Negreiros Neto, Hermínia Boracini Bichinim Costa
Silva & Thiago Oliveira Moreira
Mais uma vez, salienta-se que as mudanças climáticas não eram objeto
direto, estas vieram a ser pautadas nas discussões que culminaram na Opinião
Consultiva n.º 24, de 2017. Na ocasião, recobrou a Corte que, no caso já citado
acima, Kawas-Fernández v. Honduras, que reconheceu o impacto das
mudanças climáticas no desfrute de diferentes direitos humanos 26, agravando
problemas como a miséria, a fome 27 e a saúde de diferentes grupos
populacionais de forma acentuada.
Não menos importante, mas ainda pendente de resultado, tem-se a
solicitação de parecer consultivo demandada pela República da Colômbia e pela
República do Chile à Corte IDH, que trata diretamente da responsabilidade dos
Estados no tocante às mudanças climáticas 28.
Visualize-se uma Opinião Consultiva, cuja resposta terá o condão de ser
bastante paradigmática e relevante para o tema das mudanças climáticas na
região, dado que a Corte poderá tratar diretamente da relação entre clima e
direitos humanos. Pelo o que, a partir do resultado apresentado, serão firmadas
balizas para o enfrentamento da questão na região.
4 CONCLUSÃO
A discussão acerca da relação entre mudanças climáticas e violação de
direitos é de extrema importância. A questão tem sido vista como fundamental
na efetivação da proteção do direito ao clima estável em diversos litígios
climáticos pelo mundo, como nos casos citados, julgados por tribunais na
Alemanha e Holanda. Este litígio que busca a tutela do clima vem sendo também
explorado no âmbito interno brasileiro, podendo isso ocorrer também no âmbito
regional, afigurando-se como importante base de enfrentamento às mudanças
climáticas.
No Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, a questão
foi abordada, ao longo de anos, em caráter especialmente transversal a outras
temáticas. Tendo sido abordada diretamente, pela primeira vez, pela OEA, ao
https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/sci/dados-da-atuacao/corte-
idh/OpiniaoConsultiva23versofinal.pdf. Acesso em: 16 de setembro de 2023.
26 Idem, p. 22.
27 Idem, p. 26.
28 CORTE IDH. Pedido de Parecer Consultivo da República da Colômbia e da República do
Chile à Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre Emergência Climática e Direitos
Humanos. Solicitado em 9 de janeiro de 2023. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/soc_1_2023_pt.pdf.
627
O papel das normas de direitos humanos em face das (...)
tratar sobre a relação Direitos Humanos e mudanças climáticas, por meio da
Resolução 2429.
Nos demais casos, como ocorreu no Caso Kawas-Fernández, esta foi
tratada de forma parcial, dado que não era o objeto principal, todavia já se
apontava um direcionamento para o reconhecimento das mudanças climáticas
como barreiras que impactam diretamente na fruição dos direitos humanos,
cabendo aí uma necessária ação contra estes fenômenos.
Todavia, como foi tratado, com a solicitação de Opinião Consultiva por
parte das Repúblicas do Chile e Colômbia, vislumbra-se a possibilidade de a
Corte IDH adotar posicionamento claro e frontal em relação ao tema, dado que,
nesta solicitação em específico, o tema das mudanças climáticas é o objeto
principal, o que permitirá conhecer de um posicionamento direto da Corte sobre
a questão.
O resultado desta Opinião Consultiva terá elevada importância para o
enfrentamento das mudanças climáticas na região, especialmente por servir de
baliza para as futuras decisões da Corte, mas também dos tribunais internos dos
países, além de orientar a atuação dos próprios executivos nacionais dos
Estados-parte.
Sendo assim, apesar de não ter tratado objetivamente sobre o tema,
compreende-se que o SIPDH tem adotado posicionamento no sentido de
reconhecer a relação estabelecida entre os Direitos Humanos e as mudanças
climáticas, visualizando as problemáticas criadas por estas no exercício
daqueles.
Acredita-se que, com o parecer consultivo uma vez apresentado, este
poderá reforçar e fixar este posicionamento que já tem sido delineado ao longo
dos anos pela Corte.
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Joel Vidal de Negreiros Neto, Hermínia Boracini Bichinim Costa
Silva & Thiago Oliveira Moreira
CORTE IDH. Opinião Consultiva nº 23/2017, solicitada pela República
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132, 2019-2020.
629
Plano de defesa para domínio de cidades como estratégia de
proteção dos direitos humanos
Romildson Farias Uchôa 1
Lucélio Ferreira Martins Faria França 2
1 INTRODUÇÃO
O artigo se concentra na modalidade de roubo a bancos, bases de guarda
e transporte de valores, e congêneres, conhecida como Domínio de Cidades
(DC), caracterizada por um uso excepcional e violento de armas longas e
explosivos, com alto poder de destruição, estratégias de guerrilha, escudos
humanos, subjugo local das forças de segurança (ataques a batalhões,
delegacias, etc.), bloqueio de vias, pontes e ações correlatas.
Essa singularidade criminal brasileira 3, começou a se delinear em
novembro de 2015 em Campinas/SP (primeiro evento) 4 e continua até os
eventos recentes em Confresa/MT. O estudo destaca a importância e
necessidade dos Planos de Defesa (PD) como instrumentos de salvaguarda dos
direitos humanos, que funcionam como respostas efetivas a esses crimes
violentos e complexos contra o patrimônio, justificando o presente estudo.
Além de modalidade específica de roubo, é um modus operandi, que pode
ser utilizado para a fuga de criminosos de estabelecimentos prisionais 5, ataques
1
Mestrando em Direito Constitucional pela UFRN. Agente de Polícia Federal. CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/0638825753480032. E-mail: [email protected].
2
Tenente Coronel da Polícia Militar do Estado do Mato Grosso, Mestrando em Física Ambiental
pela UFMT. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9896750454436369. E-mail:
[email protected].
3
Embora surgida no Brasil, houve uma ação em Ciudad Del Este, Paraguai, em 2017, perpetrada
por criminosos brasileiros, melhor detalhada em: SILVA JUNIOR, R. C. et. al. The 'Robbery of
the Century' [...]. Forensic Science International: Reports, v. 5, p. 100262, 2022. Disponível em:
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/ S2665910722000081?via3Dihub. Acesso em
07 jul. 2023. p. 1-9.
4
UCHÔA, R.F.. Ataques às bases de transporte de valores: um crime comum no Brasil?
Disponível em: https://fenapef.org.br/ataques-as-bases-de-transporte-de-valores-um-crime-
comum-no-brasil/. Acesso em: 12 jun. 2023. n.p.
5
ADORNO, Luis. PCC tenta novo resgate de Marcola ao custo de R$ 100 milhões [...]. G1. São
Paulo, 01 nov. 2018. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2018/11/01/nova-fuga-marcola-pcc-presidente-venceslau-sp.htm.
630
Romildson Farias Uchôa & Lucélio Ferreira Martins Faria França
a autoridades do sistema de justiça criminal, políticos 6, e a qualquer obstáculo
para que os criminosos alcancem algum intento.
Especificamente, o estudo trata dos Planos de Defesa, que são diretrizes
de resposta a emergências, a serem criados e atualizados pelos governos
federal, estadual e municipal e suas entidades vinculadas, principalmente as
polícias militares, que detém a responsabilidade territorial, e em regra dão a
primeira resposta aos incidentes. Seus objetivos principais são a preservação da
vida, e a aplicação da lei.
Devido à complexidade dos eventos, que resultam muitas vezes em
confrontos armados e imprevisíveis, há desafios em harmonizar normas de
direito criminal e administrativo, e ainda regrar um eventual conflito bélico
assemelhado a guerras, mas regido por uma legislação de paz, e por um
ordenamento jurídico obediente a uma constituição, e alheio às regras do Direito
Humanitário Internacional 7.
A pesquisa pretende investigar a compatibilidade dos Planos 8, com o
arcabouço jurídico brasileiro, bem como sua necessidade e conveniência como
ferramenta para o cumprimento do dever de proteção eficiente, para a defesa
dos direitos humanos (DH) e fundamentais. A metodologia empregada consiste
6
MAIA, Elijonas. CNN Brasil. Brasília. 18 set. 2023. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/justica-recebe-denuncia-contra-integrantes-do-pcc-que-
planejaram-sequestrar-e-matar-sergio-moro/. Acesso em: 16 dez. 2023.
7
A terminologia Direito Humanitário Internacional também pode dar azo à confusão
terminológica, mas, refere-se ao Direito dos Conflitos Armados (DICA), que regula as relações
entre países, em conflito, neutros, e combatentes, e à proteção dos civis. É regulado pelas
convenções de Genebra, Haia e Nova York (COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA
(CICV). Direito Internacional Humanitário (DIH). 2004. p. 4-7. Disponível em:
https://www.icrc.org/pt/publication/direito-internacional-humanitario-dih-respostas-suas-
perguntas. Acesso em: 17 out. 2023.).
8
O Plano de Defesa é um conjunto de medidas que compõem um planejamento maior, e
contempla três fases distintas, são elas: fase preventiva (antes do roubo), com a confecção de
documentos regulatórios, cooptação de colaboradores e sensores, treinamentos, simulações e
ações dissuasivas; fase repressiva indireta (durante o roubo), onde se colocam em prática os
planos e ações previamente planejadas, como a confecção de bloqueios, emprego do atirador
designado, troca de informações ágeis, etc.; e fase repressiva direta (após o roubo) em seguida
à quebra do plano de fuga dos criminosos, os bloqueios e barreiras são transformados em
barreiras fiscalizatórias perfazendo um cerco no perímetro onde os criminosos entraram na mata.
Também estabelece um gabinete de comando e controle, onde se concentram todas as
informações da operação e de onde emanam as decisões para novas diligências. Nesta fase, é
que as equipes do Bope realizam incursões nas matas em busca dos criminosos.
631
Plano de defesa para domínio de cidades como estratégia de (...)
em pesquisa bibliográfica, com uma abordagem hipotético-dedutiva e finalidade
descritiva.
Inicialmente foram traçadas linhas gerais sobre direitos humanos e
fundamentais, a seguir tratou-se do conceito, histórico, e atualidades sobre plano
de defesa, e no último capítulo foi enfrentada a questão do porquê de os planos
de defesa serem uma estratégia de promoção dos direitos humanos.
2 DIREITOS HUMANOS, DIREITOS FUNDAMENTAIS E EVOLUÇÃO DO
CONCEITO DE POLÍCIA
Os Direitos Humanos são inerentes a todos os seres humanos,
independente de condicionantes de origem, sexo, religião, etc. Podem ser
citadas como características: historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade,
irrenunciabilidade. Possuem relação direta, e previsão em documentos
internacionais, mas precedem a própria ideia de positivação (direitos naturais,
inalienáveis e sagrados 9). A Organização das Nações Unidas oferece seu
próprio conceito:
Os direitos humanos são direitos que possuímos simplesmente porque
existimos como seres humanos — não são concedidos por nenhum
Estado. Estes direitos universais são inerentes a todos nós,
independentemente da nacionalidade, sexo, origem nacional ou étnica,
cor, religião, língua ou qualquer outra situação. Eles vão desde os mais
fundamentais — o direito à vida – até aqueles que fazem a vida valer
a pena, como os direitos à alimentação, à educação, ao trabalho, à
saúde e à liberdade 10.
Já os direitos fundamentais são os direitos humanos
constitucionalizados nas cartas de cada país, e que seguiram o movimento de
Constitucionalização deflagrado com a Revolução Francesa. Para Robert
Alexy 11, são os direitos do homem transformados em direito positivo.
9
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26 ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p.
562.
10
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). O que são direitos humanos? [n.p].
Disponível em: https://www.ohchr.org/en/what-are-human-rights. Acesso em: 16 out. 2023.
11
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 121.
632
Romildson Farias Uchôa & Lucélio Ferreira Martins Faria França
Há posições contrárias às afirmações de pré-estatalidade dos direitos
fundamentais, segundo às quais, nenhuma regra, direito, ou obrigação poderia
ser deduzida da natureza humana. Um direito, só existiria juridicamente apenas
a partir de sua positivação 12.
Conforme uma dessas posições, direitos fundamentais podem ser
conceituados como direitos públicos subjetivos de pessoas, físicas ou jurídicas,
contidos em disposições constitucionais, que, desse modo, encerram caráter de
normatividade supremo na ordem estatal, tendo como finalidade liminar o
exercício do poder estatal, face à liberdade individual 13.
Embora não exista consenso, com variação terminológica entre muitos
autores, podem ser citadas como características dos direitos fundamentais, com
ampla aceitação: a) universalidade; b) imprescritibilidade; c) irrenunciabilidade;
d) inalienabilidade; e) inviolabilidade; f) efetividade; h) interdependência 14.
Transpondo-se para a atividade de persecução criminal, os direitos
fundamentais (1) são normas de proteção à dignidade da pessoa humana que,
no processo penal, são limitações ao exercício do dever-poder de punir, do
Estado; (2) conquanto essenciais, não são absolutos, mantendo relação
sistemática; (3) com frequência, apresentam colisão entre si; e (4) apresentam
dimensão internacional 15.
Uma das principais formas de exercício do dever de proteção eficiente,
principalmente na seara da segurança pública, é o exercício da atividade de
persecução criminal, na repressão imediata quando da ocorrência de ilícitos, ou
na investigação criminal, para que se possibilite a opinio delicti do ministério
público, a ser deduzida no processo criminal, e então a eventual atribuição de
penas, ou medidas diversas, que só são possíveis com o respeito aos direitos
fundamentais, em todo esse processo.
12
DIMOULIS. Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 7. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 57.
13
Ibid., p. 56.
14
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral. 12ª Edição. São Paulo:
Gen/Atlas, 2021. p. 20–21.
15
SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: teoria constitucional do
processo penal. 3 ed. Natal: OWL, 2021. p. 198.
633
Plano de defesa para domínio de cidades como estratégia de (...)
No cotidiano, em documentos, na percepção do público, e dos policiais,
muitas vezes se confundem os termos direitos humanos e os fundamentais. Até
mesmo algumas terminologias de órgãos encarregados de proteção a direitos
induzem à celeuma: secretarias, conselhos, políticas, planos, comitês, e vários
outros órgãos e instrumentos de direitos humanos.
Genericamente, os termos, e a posição garantista, são reputados, por
parte dos integrantes de órgãos de segurança e de grande parcela da população,
acuada pela insegurança, como entraves à prestação de segurança pública pelo
Estado — que é decorrente da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, e
se traduz em dever de proteção eficiente, de cuidado. Aliás, o direito fundamental
à segurança é condição indispensável para o exercício de outros direitos como
a vida, liberdade, propriedade, direitos sociais, etc.
Considerada o primeiro documento constitucional do ocidente e
precursor dos direitos humanos, a Magna Carta inglesa de 1215 limitou o poder
de punir, como garantia, contra abusos praticados pelo poder estatal,
expressando, à guisa de exemplo, em seu artigo 39: “Nenhum homem livre será
detido ou preso, nem privado de seus bens, banido ou exilado, ou de algum
modo prejudicado, nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão
mediante um juízo legal de seus pares ou segundo a lei da terra” 16.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de
agosto de 1789, após a Revolução Francesa, tinha como destinatário o gênero
humano, sendo a mais abstrata das formulações solenes já feita acerca da
liberdade 17. Previa, inclusive, em seu artigo 12, que “A garantia de direitos do
homem e do cidadão necessita de uma Força Pública; esta força é, pois,
instituída para a fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles que a
quem é confiada” 18. A rigor, o lema revolucionário, gravado pelo gentio político
16
SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: teoria constitucional do
processo penal. 3 ed. Natal: OWL, 2021. p. 131.
17
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26 ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p.
562.
18
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Disponível em:
https://br.ambafrance.org/A-Declaracao-dos-Direitos-do-Homem-e-do-Cidadao. Acesso em: 17
out. 2023.
634
Romildson Farias Uchôa & Lucélio Ferreira Martins Faria França
francês, enunciou em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos
direitos fundamentais, profetizando inclusive a sequência histórica da sua
institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade 19.
No período pós-segunda guerra, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 1948, influenciou a adesão de muitos países à implementação de
um estado social, e não mais somente um estado que limitasse o absolutismo e
o totalitarismo, mas, concretizasse direitos e garantias fundamentais em uma
postura proativa. Estabeleceu, pela primeira vez, os direitos comuns que devem
ser protegidos por todas as nações, e embasou vários tratados internacionais
que protegem esses direitos até a atualidade 20.
Os direitos fundamentais passaram a ter, no âmbito constitucional, efetiva
normatividade, tornando-se direitos públicos subjetivos, contidos em dispositivos
constitucionais, com caráter normativo superior 21. Relacionam-se com preceitos
básicos da própria natureza humana, sendo a dignidade humana o preceito
universal e básico, que pode ser mais bem-conceituado da seguinte forma:
Trata-se de princípio com um visível fundamento ético que é
anterior ao direito e à sua positivação na ordem jurídica,
representando no valor do homem em si e na sua existência,
esta afirmada como autonomia e respeito à natureza humana,
mas sobretudo, plantada na consciência do reconhecimento de
que todos são iguais. É nesse sentido que o homem está acima
de todas as coisas e se constitui um fim em si mesmo, no estilo
do imperativo categórico kantiano. É com esse perfil que a
dignidade da pessoa humana é mais que um compromisso
normativo, é uma fonte moral onde a democracia vai ganhar
substância 22.
O reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais, passam a ser
de obrigatória observância pelos três poderes da República, e a informar toda a
19
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26 ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p.
562.
20
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH). Disponível em: https://www.un.org/en/about-us/universal-declaration-of-human-rights.
Acesso em: 16 out. 2023.
21
DIMOULIS. Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 7ª Ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 56.
22
BONIFÁCIO, Artur Cortez. O direito constitucional internacional e a proteção dos direitos
fundamentais. São Paulo: Método, 2008. p. 175.
635
Plano de defesa para domínio de cidades como estratégia de (...)
atividade legiferante. Estão em consonância com o que o Estado brasileiro se
comprometeu a defender, no Pacto de San José da Costa Rica em 1969
(incorporado pelo Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992), em cujo artigo
8º, alínea 2, constam garantias processuais de todo cidadão que seja acusado.
As garantias processuais, já se fazem presentes desde a atividade
rotineira de policiamento, na qual podem ocorrer, abordagens, violações
justificadas de domicílio, uso da força, e outras flexibilizações de garantias, na
investigação após o cometimento de crimes, passando pelo processo criminal e
findando na execução das penas.
Somente em 1988 sobreveio a Constituição cidadã, o que exigiu uma
transformação, das instituições policiais e da segurança pública, ainda em curso,
para uma atuação cidadã, como guardiã de direitos fundamentais, e não mais
com foco na defesa do Estado. Embora, a defesa das instituições democráticas
seja pressuposto de uma regularidade do regime, e condição para o exercício e
a prestação de direitos (e garantias) fundamentais.
O artigo 1º da Constituição (CF), prescreve que a República do Brasil se
constitui em Estado Democrático de Direito, e tem como seus fundamentos,
entre outros, a dignidade da pessoa humana (inc. III). No art. 5º, em seu caput,
garante-se a inviolabilidade do direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e
à propriedade. Há um extenso rol de outros direitos e garantias, nos incisos
seguintes. Dessa previsão da segurança como direito fundamental, do artigo 6º
(como direito social), extrai-se o à segurança pública, cuja instrumentalização,
através da previsão dos órgãos da segurança, se dá no artigo 144.
Historicamente, as atividades policiais, no Brasil, se entrelaçaram com as
atividades de segurança e preservação da ordem pública, ora se confundindo,
ora se complementando 23.
23
Um exemplo deste entrelaçamento é a criação da Intendência Geral de Polícia da Corte e do
Estado do Brasil pelo Alvará de 10 de maio de 1808, por Dom João VI, com missão de implantar
a ordem na cidade do Rio de Janeiro. O Intendente tinha mais do que se entende hoje como
funções de um prefeito que propriamente de uma instituição policial (EGE, Flávio Tadeu. Uma
breve história da polícia no Brasil: Militarização, mitos e contradições. São Paulo: Editora
Santarém, 2017. p. 35–36).
636
Romildson Farias Uchôa & Lucélio Ferreira Martins Faria França
Na origem, o conceito de polícia advém de pólis, politeia, variando
conforme as concepções políticas dos estágios iniciais da ideia de estado,
literalmente é governo da cidade.
Embora estudos considerem que os gregos e os romanos jamais
conheceram algo como uma polícia na acepção que se conhece
modernamente 24, já havia órgãos de manutenção da ordem.
Entretanto, a polícia é uma criação da modernidade, segundo Michel
Foucault 25. Na sua formulação original, gizada na declaração de direitos
francesa de 1789, tinha dois objetivos primordiais: a) manutenção da ordem
pública; b) garantia dos direitos do cidadão. Não é difícil a qualquer observador
perceber que a manutenção da ordem, foi priorizada ao longo do tempo. A atual
ordem constitucional, exige que desempenhe o papel de garantidora de direitos.
As atividades de segurança pública, no estágio atual, são um conjunto de
ações mais abrangentes que as atividades policiais (em sentido estrito), porém,
para a compreensão do contexto de enfrentamento de uma atividade
especializada e profissionalizada como são os crimes típicos de Domínio de
Cidades, necessário estabelecer conceitos intrínsecos à atividade policial.
David Bayley, aponta como característica principal da atividade policial a
autorização para o uso da força física, não pelo uso real em si, para a garantia
das relações sociais entre as pessoas 26.
A principal atividade da polícia é o patrulhamento preventivo, de sorte a
evitar crimes ou distúrbios que afetem a comunidade local 27. Integra o desiderato
de toda força pública, que não ocorram crimes, mas que, se verificados, haja a
imediata repressão e, se possível, a devida responsabilização.
24
COTA, Francis Albert. Matizes do Sistema Policial Brasileiro. Belo Horizonte: Crisálida, 2012.
p. 30.
25
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no College de France
(1977–1978). Ed. Michel Senellart. Trad. Eduardo Brandão. Rev. Claudia Berlinder. São Paulo:
Martins Fontes, 2008. p. 420–422.
26
BAYLEY, D. Padrões de policiamento. Tradução: René Alexandre Belmonte. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2017. p. 20.
27
Ibid., p. 32.
637
Plano de defesa para domínio de cidades como estratégia de (...)
Ocorre que, no contexto dos crimes violentos contra o patrimônio, em
especial o Domínio de Cidades 28, nem sempre essa atuação positiva e
repressiva direta sobre a ação criminosa é a melhor solução, dados os riscos, e
seus possíveis efeitos colaterais, o que se passa a tratar, no capítulo seguinte.
3 PLANOS DE DEFESA
O Plano de Defesa, tem suas raízes nas ações do Batalhão de Operações
Policiais Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso (PMMT),
após um roubo a banco em 3 de setembro de 2008, na cidade de Comodoro, a
644 km a oeste de Cuiabá/MT 29. Naquela ocasião, o oficial de operações (Ten.
Paccola), do BOPE/PMMT, apresentou ao, comandante do policiamento local
(Ten. Pereira), uma proposta inovadora: bloquear as vias de acesso à cidade
durante a execução do roubo ao banco pelos criminosos, em vez de confrontá-
los nas proximidades das agências bancárias. Esta sugestão era uma resposta
à crescente onda de crimes semelhantes, conhecidos como Novo Cangaço, e a
uma série de mortes de policiais, nas proximidades das agências bancárias.
A preocupação central era a vulnerabilidade dos policiais em situações de
assaltos a bancos. Tradicionalmente, os militares se dirigiam ao local das
ocorrências, e restavam vitimizados pelos assaltantes, que frequentemente
usavam reféns como escudos humanos. A sugestão do oficial do BOPE era que,
em vez de se aproximarem das agências, os policiais deveriam planejar e
realizar bloqueios nas saídas das cidades, pois a presença de reféns, impedia
qualquer ação direta de abordagem contra os criminosos.
28
“Nova modalidade de conflito não convencional, tipicamente brasileiro e advindo da evolução
de crimes violentos contra o patrimônio, na qual grupos articulados compostos por diversos
criminosos, divididos em tarefas específicas, subjugam a ação do poder público por meio do
planejamento e execução de roubos majorados para subtrair o máximo possível de valores em
espécie e/ou objetos valiosos, ou o resgate de detentos de estabelecimentos prisionais,
utilizando ponto de apoio para concentração dos criminosos, artefatos explosivos, armas
portáteis de cano longo e calibre restrito, veículos potentes e blindados, rotas de fuga
predeterminadas, miguelitos, bloqueio de estradas, vias e rodovias com automóveis em chamas,
além da colaboração de olheiros.” (RODRIGUES, Ricardo Matias. Domínio de Cidades [...]. In:
FRANÇA, L.F.M.F. (Org.). Alpha Bravo Brasil. Crimes Violentos contra o Patrimônio. 1.ed.
Curitiba: CRV Editora, 2020. p. 64.).
29
PACCOLA, Marcos. PREFÁCIO 2. In: FRANÇA, L.F.M.F. (Org.). Alpha Bravo Brasil. Crimes
Violentos contra o Patrimônio. 1.ed. Curitiba: CRV Editora, 2020. p. 19–24.
638
Romildson Farias Uchôa & Lucélio Ferreira Martins Faria França
Vários incidentes ilustram a gravidade da situação, com a morte e o
ferimento de policiais e cidadãos civis, muitos vitimados por tiros de fuzis, entre
1998 e 2008, nas cidades de Rondonópolis, Vila Rica, Guiratinga, Campinápolis,
todas no estado do Mato Grosso 30.
Em 08 de agosto de 2012, em Campos de Júlio/MT, criminosos atacaram
a agência do Banco do Brasil. O comandante local, ao tomar conhecimento da
ação, recordou as sugestões recebidas e orientou seus subordinados a não irem
para as imediações do banco, e embora não houvesse um plano escrito, foram
executados bloqueios. Durante o deslocamento, o oficial encontrou os
assaltantes em uma camionete com reféns. Surpreendidos e assustados ao
cruzar com os policiais, os criminosos realizaram uma frenagem brusca,
entrando em uma estrada vicinal e atolando a camionete. Com o veículo atolado,
abandonaram os reféns, e fugiram para a mata, em uma área não prevista em
seu plano de fuga. Mesmo não havendo ainda qualquer documento escrito, à
época, cada policial já sabia o que fazer, e o comandante da unidade policial
militar da área, colocou em prática um plano de defesa. Assim, foram realizados
três bloqueios nas saídas da cidade, fora do perímetro urbano. O desfecho dessa
ocorrência foi um confronto na mata, cerca de vinte e quatro horas após o ataque
à agência bancária, servindo de reforço positivo para que, os bloqueios são
eficientes e precisam ser realizados.
Essa ocorrência, resultou na morte de nove assaltantes, recuperação do
dinheiro e na apreensão das armas, após confronto com policiais do BOPE que
adentraram à mata, quando já havia segurança de que todos os reféns haviam
sido liberados. Pela sistemática, os assaltantes, possuem tempo hábil para se
livrar do armamento, empreenderem fuga, ou mesmo se renderem. Essas
incursões na mata, e atuação do atirador designado (similar ao sniper) são as
únicas ações diretas que a metodologia do plano de defesa propõe.
30
FRANÇA, L.F.M.F.. Normas de conduta policial: os desafios impostos pelas ocorrências de
roubo a banco na modalidade novo cangaço. In: FRANÇA, L.F.M.F.(Org.). Alpha Bravo Brasil —
Crimes Violentos contra o Patrimônio. 1.ed. Curitiba: CRV Editora, 2020. p. 48–53. Entre os anos
de 2010 e 2012 foram registrados vinte e cinco casos de assaltos a bancos no estado do MT.
639
Plano de defesa para domínio de cidades como estratégia de (...)
Ambas são realizadas por policiais altamente treinados, com armamento,
equipamento e fardamento que funcionam como multiplicadores de força, o que
lhes dá uma segurança relativa se bem empregado. No caso do atirador
designado, ele ainda possui um plano de emprego, escrito preventivamente,
antes que o roubo ocorra.
Vários outros eventos se seguiram, porém, com o uso dessa metodologia
inicialmente concebida, o desfecho das ocorrências restou favorável às forças
de segurança. Com os bloqueios, os criminosos têm o seu plano inicial de fuga
quebrado, e invariavelmente acabam tendo que tentar a fuga pela mata, com a
liberação de reféns. Entre os eventos seguintes pode ser listado o ataque aos
bancos em Comodoro/MT, em 30 de outubro de 2012.
Pesquisas mostram que o enfrentamento direto a esses crimes, pelas
polícias, causam enormes efeitos colaterais, com morte de policiais, de cidadãos
e dos criminosos, razão pela qual a proposta do plano de defesa, que propõe o
não enfrentamento direto, se apresenta como uma política de direitos humanos
e preservação da vida. Pode-se concluir que os efeitos colaterais de confrontos
nas cidades, são imensuráveis 31.
O tipo de ocorrência que se delineava no estado do Mato Grosso (Novo
Cangaço; Cangaço Noturno), e que originou a ideia dos planos, sofreu
evolução 32, tanto no modus operandi, bem como dos grupos criminosos
especializados em atacar bancos, e que passaram a atacar locais onde
houvesse somas milionárias de valores. Tais locais se tornaram, inclusive,
depósitos de valores para diversas agências e instituições bancárias, e são as
Bases de Guarda e Transporte de Valores. Essa evolução, originou a
modalidade já citada, Domínio de Cidades.
31
Ibid., p. 51–55.
32
Para entender a evolução criminal das modalidades: UCHÔA, Romildson Farias. Explosões
de Caixas Eletrônicos: antecedentes, evolução e tendências. In: FRANÇA, L.F.M.F. (Org.). Alpha
bravo Brasil — Crimes Violentos contra o Patrimônio. 1.ed. Curitiba: CRV Editora, 2020.
640
Romildson Farias Uchôa & Lucélio Ferreira Martins Faria França
Convém observar que na Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) n.º 635 33, há determinação de um planejamento prévio
para haver a intervenção em áreas conflagradas, também chamadas
comunidades ou favelas. O controle judicial e legal, inclusive prévio, é cada vez
maior na administração pública. Tal ideia de um plano de ação prévio, está em
linha com a ideia dos planos de defesa, a qual é evitar ou mitigar a legalidade
policial, e os efeitos colaterais de conflitos armados com a presença de civis.
No plano legal, com a Lei do Sistema Único de Segurança Pública
(SUSP), Lei n.º 13.675, de 11 de junho de 2018, há a criação da Política Nacional
de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), prevendo a atuação conjunta,
coordenada, sistêmica e integrada dos órgãos da segurança pública e da defesa
social da União, estados, Distrito Federal e dos Municípios, em articulação com
a sociedade (art. 1º). Há princípios previstos na PNDPDS, em seu artigo 4º e
incisos, e destacamos todos como correlatos à concepção dos planos de defesa,
entre os quais podemos destacar: I) respeito ao ordenamento jurídico, aos
direitos e garantias individuais e coletivos; II) proteção aos direitos humanos,
respeito dos direitos fundamentais e promoção da cidadania e da dignidade
humana; III) eficiência na prevenção e controle das infrações penais; IV) uso
proporcional e comedido da força 34. Podem ser apontados, assim, como
pressupostos legais dos planos de defesa.
4 PLANOS DE DEFESA: INSTRUMENTOS DE PROTEÇÃO DE DIREITOS
O plano de defesa, como dito, foi concebido pela necessidade de
encontrar alguma forma de prevenir e reprimir os crimes violentos contra o
patrimônio, denominados como Novo Cangaço, que não fosse o enfrentamento
direto durante essas ações. Após seu processo evolutivo de mais de uma
década, agregou ferramentas, como um planejamento robusto, prática de
33
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 635 MC/RJ, Rel. Min. Edson Fachin. Julgada em
03 fev. 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5816502.
Acesso em: 17 jul. 2023.
34
BRASIL. Lei n.º 13.675, de 11 de junho de 2018. Disciplina a organização e o funcionamento
dos órgãos responsáveis pela segurança […] Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13675.htm. Acesso em: 18 ago.
2023.
641
Plano de defesa para domínio de cidades como estratégia de (...)
simulações rotineiras, a habilitação e participação de sensores/colaboradores,
policiais e civis, e, por fim, o atirador designado.
Até aqui, o tempo consolidou o plano de defesa como uma estratégia do
não enfrentamento direto aos roubos a banco como uma forma eficiente de
prevenir e reprimir essas ações, bem como de evitar a morte de policiais, civis e
criminosas. A flexibilidade da metodologia do plano, fez com que ele fosse
eficiente contra a ações para os quais foi idealizado, mas também vem se
mostrando uma alternativa eficiente nas ações de DC, contra bases de valores,
ou arrebatamento de presos, como os ocorridos em Piraquara/PR e João
Pessoa/PB 35, ou as fugas planejadas pela maior facção criminosa do país.
Essa estratégia ficou ainda mais evidente após o crime violento contra o
patrimônio alcançar o patamar de domínio de cidades.
De 2015 até 2023, nas ações de domínio de cidades, onde a polícia
reagiu, indo para o enfrentamento direto com os assaltantes, resultaram na morte
de vários criminosos, policiais, e de cidadãos inocentes vítimas de balas
perdidas. Isso tudo em um verdadeiro cenário de guerra, que além das vidas
perdidas, resulta em traumas emocionais para os moradores das cidades que
são alvos dessas ações.
Nesse contexto, a estratégia do plano de defesa, que se iniciou após o
recrudescimento das ações violentas, visando evitar a morte de policiais,
evidenciou a importância do não enfrentamento direto como estratégia primordial
de preservação da vida, pois além da vida de policiais, também preserva a vida
dos cidadãos moradores (reféns ou não) das cidades alvos dessas ações, e dos
criminosos, que após terem seus planos desarticulados, podem se entregar e
serem presos, uma alternativa aos confrontos com a polícia.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
35
Vídeo mostra momento da explosão e fuga de presídio [...]. G1. 24, set. 2018. Disponível em:
https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2018/09/24/video-mostra-momento-da-explosao-e-fuga-
de- presidio-de-seguranca-maxima-na-pb.html. Acesso em: 12 dez. 2023. Além de diversos
planejamentos frustrados pelas forças de segurança no país.
642
Romildson Farias Uchôa & Lucélio Ferreira Martins Faria França
O Domínio de Cidades, singularidade criminal e modalidade de roubo
tipicamente brasileira, vem, nos últimos anos, apresentando novos desafios à
segurança pública e exigindo uma atuação cada vez mais concertada entre os
órgãos policiais, de execução e planejamento. Trata-se de um degrau superior
da modalidade novo cangaço.
A complexidade desses eventos, a quantidade de criminosos, poderio
bélico e a logística exige a capacidade de articular múltiplas decisões e emprego
do efetivo em um, ou múltiplos estados da Federação, bem como minimizar ou
evitar a perda de vidas humanas. Daí surge a concepção dos planos de defesa,
os quais são respostas articuladas pelos órgãos policiais a situações de
emergência, quando da ocorrência assaltos a banco.
A atuação dos órgãos, muitas vezes com a necessidade de uso da força
e flexibilização de direitos, demanda um estudo da compatibilidade dos planos
de defesa como ferramentas de proteção dos direitos humanos e fundamentais.
Nessa medida, reafirma-se que os direitos fundamentais, são inerentes a
todos os seres humanos e que gozam de proteção em diplomas internacionais,
mas também no plano interno, ao serem constitucionalizados, passando a
denominar-se direitos fundamentais.
No plano interno, os órgãos policiais incumbidos de aplicar a lei, são,
especialmente, as polícias militares, em um primeiro momento, e na sequência
as polícias civis. Ambas integrando o ciclo da persecução criminal, em sua fase
pré-processual. Há, ainda, outros órgãos policiais constitucionalmente previstos.
A evolução das modalidades criminosas imprimem novos desafios aos
órgãos de segurança, e planejar vai ao encontro do princípio constitucional da
eficiência, bem como permite a melhor aplicação da lei, e a aferição de
legalidade das ações.
O estudo conclui que os Planos de Defesa são necessários, compatíveis
e eficazes, constituindo-se em estratégia para a proteção dos direitos humanos
e fundamentais e a preservação da vida, nas situações em questão, por evitar
confrontos diretos nas ações, com danos colaterais, permitir uma via de
643
Plano de defesa para domínio de cidades como estratégia de (...)
escoamento e fuga dos criminosos, inclusive permitindo a liberação de reféns,
cumprindo enfim seus principais objetivos que são, salvar vidas e aplicar a lei.
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momento-da-explosao-e-fuga-de- presidio-de-seguranca-maxima-na-
pb.html. Acesso em: 12 dez. 2023.
645
"Los grandes cambios comienzan con cosas sencillas,
el promover el respeto a los derechos humanos, no permitir
injusticias, no ser cómplices de los atropellos y sobre todo
ser agentes de cambios para tener un mundo en dónde
impere la paz".
Antonio Sorela Castillo