arte
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A Semana de Arte
Moderna de 1922 –
cem anos depois
Elza Ajzenberg
arte semana de arte moderna
A
Semana de Arte Moderna No jornal Correio Paulistano, a 29 de
de fevereiro de 1922, rea- janeiro de 1922, uma nota anuncia a rea-
lizada em São Paulo, con- lização de uma semana de arte no Thea-
tinua sendo importante tro Municipal, entre 11 e 18 de fevereiro,
referencial para reflexões com a participação de escritores, músicos,
estéticas e para a crítica de artistas e arquitetos de São Paulo e do
arte do país. Essa manifes- Rio de Janeiro. De acordo com a notí-
tação é potencializada pelo cia, a Semana organizada por intelectuais
contexto em que ocorre. das duas cidades, tendo Graça Aranha à
As questões associadas ao frente, tem por objetivo dar ao público
nacionalismo emergente do de São Paulo “a perfeita demonstração do
pós-Segunda Guerra Mundial e à industria- que havia em nosso meio em escultura,
lização que se estabelece, especialmente em em arquitetura, em música e em literatura
São Paulo, motivam intelectuais e jovens sob o ponto de vista rigorosamente atual”
artistas entusiasmados a rever e criar novos (Thiollier, s/d, p. 5).
projetos culturais. No comitê patrocinador estão presentes,
As comemorações do Centenário da entre outros, Paulo Prado, Alfredo Pujol,
Independência do Brasil incentivam um René Thiollier e José Carlos Macedo
grupo inquieto diante das possibilidades Soares. E, entre os participantes, figu-
de traçar um perfil mais livre, com que-
bra de cânones que emperram a criativi-
dade artística. As ideias começam a tomar
corpo com vários encontros e discussões.
Os debates em torno da exposição de Anita ELZA AJZENBERG é professora da Escola de
Comunicações e Artes da USP e coordenadora
Malfatti em 1917/18 originam a organiza- do Centro Mario Schenberg de Documentação
ção da Semana. da Pesquisa em Artes (ECA-USP).
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Sylvia Masini
Theatro Municipal de São Paulo, vista externa, arquiteto Ramos de Azevedo, 1911
ram músicos como Villa-Lobos, Guiomar similar aos festivais culturais de Deauville,
Novaes, Ernani Braga e Frutuoso Viana. França. Em Viagem da minha vida, Di
No grupo de escritores, estão: Mário de Cavalcanti chama para si a paternidade da
Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Semana, dizendo: “Falamos naquela noite e
Picchia, Guilherme de Almeida, Ribeiro em outros encontros, da Semana de Deau-
Couto e Sérgio Milliet. Como diversos ville [...]. Eu sugeri a Paulo Prado a nossa
participantes da Semana ocupam cargos semana [...]” (Di Cavalcanti, 1955, p. 85)1.
de destaque nas redações de importantes Seja quem for o autor da ideia, o
jornais da época, o evento tem desde o objetivo da Semana é renovar o estag-
início grande divulgação, embora também nado ambiente artístico e cultural de São
não falte quem se oponha à sua concre- Paulo e do país. Acentua-se a necessidade
tização (Leite, 1979, p. 672). de “descobrir” ou “redescobrir” o Bra-
Na notícia do Correio Paulistano, Graça sil, repensando-o de modo a desvinculá-
Aranha é posto como autor da iniciativa. -lo, esteticamente, das amarras que ainda
Entretanto, para alguns pesquisadores, é o prendiam à Europa. É verdade que os
mais provável que essa prioridade se deva
a Emiliano Di Cavalcanti, acatando uma
sugestão de Marinette Prado, esposa de
Paulo Prado, que se refere à possibilidade 1 Manuel Bandeira (1954), na sua apresentação de Poesia
brasileira, referindo-se à organização da Semana, men-
de se fazer em São Paulo alguma coisa ciona Di Cavalcanti: “pintor de quem partiu a ideia”.
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ão
jovens participantes da proposta inovadora
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procuram a “proteção”, a diplomacia ou a
arregimentação de Graça Aranha – espécie
de avalista ou de “carro-chefe” –, capaz
de impor respeito a setores menos aber-
tos à modernidade (Di Cavalcanti, 1955,
pp. 112-114).
Chega-se a 1922. A ideia cresce e
avança levada por Paulo Prado, figura
representativa da intelectualidade e da
alta camada social paulista. Os equívocos
são muitos. A comissão organizadora, de
cunho mais tradicionalista, está distante
da sensibilidade realmente moderna de
Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Di Cavalcanti, Villa-Lobos, Brecheret e
Anita Malfatti.
A Semana realizou-se perante aplau-
sos e vaias. Enquanto nos dias 13, 15 e Di Cavalcanti, cartaz da exposição, 1922
17 de fevereiro ocorrem, no interior do
Theatro Municipal, conferências e concer-
tos, no saguão os artistas e os arquitetos
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expõem seus trabalhos. Não são todos os
anunciados na nota do Correio Paulistano,
pois Regina Graz não participa. Tampouco
apenas os citados no catálogo da mostra
(Amaral, 1970, pp. 129 e segs.). Alguns
artistas só estão representados com suas
obras, mas ausentes do país.
O catálogo idealizado por Di Caval-
canti registra as participações dos arqui-
tetos Antônio Moya e Georg Przyrembel,
dos escultores Victor Brecheret e Wilhelm
Haarberg, e dos pintores e desenhistas
Anita Malfatti, Di Cavalcanti, John Graz,
Martins Ribeiro, Zina Aita, João Fernando
(Yan) de Almeida Prado, Ignácio da Costa
Ferreira (Ferrignac) e Vicente do Rego
Di Cavalcanti, capa do catálogo, 1922 Monteiro. O discutível modernismo das
obras expostas e a confusão estilística em
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Di Cavalcanti, Fantoches da meia-noite, c. 1917,
guache s/ papel, 38 x 40 cm, coleção particular, São Paulo
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Antonio Moya, Monumento, 1922, desenho
que se debatem seus autores traduzem-se
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nos títulos equivocados de algumas pin-
turas e desenhos, tais como, Impressão
divisionista (Anita Malfatti), Impressões
(Zina Aita), Natureza dadaísta (Ferrignac)
ou Cubismo (Vicente do Rego Monteiro).
Os “futuristas” de 1922, como o público
equivocado à época insiste em denominá-
-los, praticam de tudo um pouco, ponti-
lhismo ou expressionismo, menos futurismo
propriamente dito. O essencial é escapar
Vicente do Rego Monteiro,
Retrato de Ronald de Carvalho, 1921,
óleo s/ tela, 49 x 36 cm, coleção Gilberto
Chateaubriand, MAM, Rio de Janeiro
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Vicente do Rego Monteiro, Cabeça de negras, 1920,
óleo s/ tela, 41 x 50 cm, coleção particular, São Paulo
ao que é conhecido como academicismo
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(Andrade, 1922).
Até hoje, a Semana de 1922 é envolvida
por questões como: o evento provoca cho-
ques e rupturas? Assenta um “tom festivo”,
ou seja, não é um movimento sério? Alcança
parâmetros mais críticos em relação à arte?
É de natureza mais destrutiva ou constrói
novas perspectivas para a estética do país?
Os debates persistem.
John Graz, Paisagem da Espanha - Puente
de Ronda, 1920, óleo s/ tela, 73 x 58 cm,
Pinacoteca do Estado, São Paulo
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Zina Aita, Homens trabalhando, 1922, óleo s/ tela, 22 x 29 cm, coleção particular, São Paulo
Na revisão do próprio Di Cavalcanti, da época assinalam que a Semana tem
a Semana segue para “um tom festivo, mais inimigos do que amigos: “inimigos
irreconciliável talvez com o sentido de inteligentes”. Entre as críticas, está que os
transformação social”, que para o artista envolvidos são barulhentos e o movimento
deve estar no fundo de uma revolução não passa de um “estratagema” (Di Caval-
artística e literária (Di Cavalcanti, 1955, canti, 1955, p. 114).
p. 114). Entretanto, Di Cavalcanti elabora A exposição de arte, propriamente
uma versão mais positiva. Para o artista, dita, recebe alguns comentários, atra-
a Semana é um acontecimento de signifi- vés das notas de Graça Aranha, Menotti
cado e abre para o país perspectivas que, Del Picchia e Mário de Andrade. Porém,
extrapolando o campo puramente cultural, considera-se que as ideias, disseminadas
têm repercussões inclusive na área política. pelos conferencistas Graça Aranha, Menotti
Alguns críticos consideram imensa a Del Picchia e Mário de Andrade, alcan-
repercussão obtida pela Semana. Outros çam muito mais eco. Essas questões não
negam o fato. É o caso de Carlos Drum- impedem, contudo, que obras mostradas
mond de Andrade, que se encontra em Belo no saguão do Theatro Municipal suscitem
Horizonte, e de Rodrigo Melo Franco de à maioria do público sentimentos oscilan-
Andrade, no Rio de Janeiro. Os jornais tes entre divertimento e indignação. Os
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Foto da Semana de 22: Mario de Andrade (à frente), Zina Aita (à esq., em pé) e Anita Malfatti (à dir.)
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Victor Brecheret, O sepultamento,
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1923, mármore, 226 x 365 cm,
Cemitério da Consolação, São Paulo
(túmulo de Olívia Guedes Penteado,
premiado no Salon d’Automne, Paris, 1923)
Victor Brecheret, Cabeça de Cristo
(Cristo de trancinhas), 1920,
coleção IEB-USP, São Paulo
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grandes alvos são os trabalhos de Anita ocorrido anteriormente de maneira iso-
Malfatti e Victor Brecheret. lada, não está consolidada num movimento
Embora, hoje, o Modernismo exposto organizado. Nesse sentido, escreve Paulo
pela Semana pareça pouco moderno, que Mendes de Almeida que não se trata de
todos os fatos do contexto e artífices um gesto isolado de rebeldia, “mas um
nem sempre sejam devidamente citados clamor em coro, um movimento de grupo
ou lembrados e ainda que as ideias esté- [...] um safanão naquele adormecido em
ticas de seus líderes sejam confusas, não berço esplêndido Brasil [...]” (Almeida,
se pode negar que a Semana de 1922 é 1976, pp. 34-35).
um marco. A Semana representa para a Talvez não se encontre nunca um con-
evolução artística brasileira um verdadeiro senso na conceituação da Semana de 1922,
“divisor de águas”. ou de sua validade ou alcance na evolução
Ocorrida no ano do Centenário da Inde- do campo estético e das artes plásticas no
pendência do Brasil, a Semana difunde a Brasil. Entretanto, as constantes revisões
ideia de renovação que, embora já tenha assinalam, cada vez mais, a “lição de liber-
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Anita Malfatti, A ventania, 1915-17, óleo s/ tela, 51 x 61 cm, coleção Palácio dos Bandeirantes, São Paulo
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Anita Malfatti, O farol, 1915, óleo s/ tela, 46,5 x 61 cm,
coleção Chateaubriand Bandeira de Mello, Rio de Janeiro
dade no espírito e na pesquisa plástica”, de interesse dos promotores da Semana”.
presente nos passos seguintes da arte no Para Pedrosa, essas contribuições definem
país. Mário de Andrade enfatiza que o a evolução intelectual e artística do país.
artista brasileiro passa a ter “diante de si Nesse sentido, é lembrada a “plasticidade
uma verdade social, uma liberdade (infe- presente nos textos de Mário de Andrade.
lizmente, só estética), uma independência, Através da imagem verbal, em sua projeção,
um direito a suas pesquisas, conquistados o universal” (Andrade, 1967, pp. 241-2). Na
pelos modernistas da Semana (Andrade, linguagem atualizada, o primitivo encontra
1967, pp. 241-242). expressão sem fronteiras. Como conquista
As conquistas da Semana têm desdo- o autor de Pauliceia desvairada e Macu-
bramentos que marcam sensivelmente as naíma, que alcança o objetivo duplo do
buscas de um novo modo de pensar. Nesse Modernismo: a atualização e o nacional
ponto, Mário Pedrosa é incisivo e acentua (Pedrosa, 1964, pp. 130-1).
aspectos: “A pintura e a escultura alargam Hoje ainda permanecem muitas dúvidas
extraordinariamente o campo de visão e sobre o alcance, objetivos e as metas da
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Semana de Arte Moderna de 1922. Lide- cido. Deve-se retomar a proposta de Mário
ranças e grupos de artistas envolvidos com de Andrade: a busca por caminhos – a
os eventos enfatizam ruptura, inovação, pesquisa. Não perder de vista o processo
experimentação e, de modo especial, um criativo inovador. Ter presente a arte como
olhar para o futuro. território livre ou a arte como plataforma
Nos momentos seguintes à Semana da humanidade.
houve redescobertas sobre as raízes his- Em síntese, o contexto que envolve a
tóricas e culturais do país. Publicações, Semana de Arte de 1922 possui denso e
projetos urbanísticos com participação de rico acervo, envolve questões que mere-
gestores, artistas, arquitetos e paisagistas cem novas reflexões. Porém, as várias
foram desenvolvidos em várias regiões. possibilidades de abordagem não devem
Instituições, museus e bienais seguiram perder de vista a assertiva de Mário de
vertentes desse olhar para o futuro. Andrade, pois a Semana logra atingir os
Os tempos continuam difíceis. Vive-se seus objetivos primordiais: “o direito per-
um período de grave pandemia. Multipli- manente à pesquisa estética, a atualiza-
cam-se conflitos socioeconômicos e polí- ção da inteligência artística brasileira e a
ticos, nacionais e internacionais. Porém, estabilização de uma consciência criadora
o legado da Semana não deve ser esque- nacional” (Andrade, 1967, pp. 241 e segs.).
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Tarsila do Amaral, São Paulo, 1924, óleo s/ tela, 67 x 80 cm, Pinacoteca do Estado, São Paulo
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Tarsila do Amaral, Autorretrato, 1924, óleo s/ tela, 38 x 33 cm,
Acervo Artístico-Cultural do Palácio do Governo, São Paulo
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Tarsila do Amaral, Abaporu, 1928, óleo s/ tela, 85 x 72 cm,
Museu de Arte Latino-Americana – Malba, Buenos Aires
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