0% acharam este documento útil (0 voto)
17 visualizações71 páginas

O Búfalo

Enviado por

weedkillerm777
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
17 visualizações71 páginas

O Búfalo

Enviado por

weedkillerm777
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 71

O BÚFALO

— Hope is a dangerous thing for a woman like me to have

- but I have it.


EVANI

Um ano não muito favorável para as minhas controversas

crises de identidade me conscientiza de que quando uma

pessoa que não merece a injustiça de um mundo supérfluo

comete um crime intragável, na verdade, seu maior

arrependimento é estar no seu próprio corpo corrupto.

1 Glória,

para o meu coração coral ardente.

sou.
“Cuidado, meu bem, vai cair!” Cai.

Cai num riso magnífico com meu calor extrovertido que o mágico céu

me concedeu na noite em que você me viu moça que concebe vida.

Quando você me viu suja e sem carisma. “Não, mamãe, fuja! Estou

imunda, não ’tô bonita.” Virei a cara. Um passo fresco ela deu, ela andou,

pisou na Terra; e senti em mim, pisando massagem, invertendo os

papéis, como eu costumava andar em cima de você quando o dia tinha

sido longo. Senti seu peso nas minhas costas e chorei de alívio. Seus

braços colossais de mãe me envolvendo quente, sussurrava o seu amor

com gestos leves e eis a lei da natureza: nunca precisar pedir: era abrigo

sem saber: louvada Glória: Mãe Natureza.

Mãe — como um cavaleiro a bradar —, digo-te uma glória, mamãe: pari.

Mateus nasceu. Sou abrigo, sou aurora flórea. Hoje, sou Glória também.
2 Eu estive alí; e estive prestes; estive tamanha; e estive absurda. Nunca

foi em vão, o cachorro late porque sabe que é bom, e mal eu não faço à

ele. Você faz? O precipício bate quando a esfera é um sótão. Terra, cadê?

Nunca foi em vão. O osso que é desenvolvido e o que não é; porque é

facílimo dizer que é bom ficar de pernas para o ar quando se tem mais do

mais do que ser aquela que hei; me exemplifico: coloque-se no meu

lugar. Você é bom cão também, leal também? Assim que sou forma viva:

sou pobre, sou fudida, sou bisneta de escrava e faminta de gozo. Eu

estive alí, e reboquei o seu nariz com cola quente; lhe atirei a Bíblia como

esmola; e de repente não somos mais uma multidão excêntrica. Palco.

De. Horror. Somos. Foi fatal; chorei; amassei a cara no sofá; me

desmanchei; horroroso! Insuficientemente, fui à Varsóvia e gritei,

porque já não basta dançar indiferente ao colectar dos pulmões te

rasgando por dentro. Quando eles machucam o corpo em cada e em cada

respiro. Eu surgi, eu fui. Eu. Eu. Eu. Eu. Eu. Eu. Eu estive ali e fui,

porque não errar era um cortejo forçado ao branco que não sabe o que é

perder. É fatal. É demais para os pulmões, e se agrava perdidamente.

“Aumentará a dose e dormirei por cem anos.” Sarcástica nesse divã,

frente a frente ao erro, observando cada linha, cada ruga, cada marca que
carrega essa velhice sapiente. Essa velha com seu sorrisinho, seu carinho,

seu jeito de quem sabe

— Trovejo nesse couro

Faço uma maior lambança

A velha goza no sapatear fantástico, a velha sabe de tudo.

Eu choro nesse carpete branco. Um despedaço de corpo vestido. Sou.

Meus crimes e eu, nessa suíte, um elefante. Eu. Posta em jogo, sou o peão

que vai à luta e ao tentar sou engolida. Sarcástica, nesse divã te conto a

verdade absoluta: É uma serpente, é um elefante! Calma, eu, ou

possuída, eu, continuo a blefar: Você: Satanás, desgraça, pecado. Para a

Serpente do paraíso que um dia na Terra existiu…: não me engolirá de

novo (sem exclamação, sem assombro, porque “preciso provar minha

paciência” - Raduan Nassar) e continuarei a blefar: aprecie o ponto final.

“Uma comparação jogada no mar como sobrevivente. Onde cabe o amor

nessa história, Evani?” Bendita psiquiatra é um obrigado, lida com os

acúmulos. Rasteja em meu terror. Graciosa é, tem minha palavra.

Sua cabeça posta para o lado, querendo entender. Seu olhar são

segundos que não passam. Ela fisga o conhecimento e assume a

sabedoria. Já te saquei, garota, já te tenho em mente. É o que quer dizer.


penso que, Isabel, Dona do Bem, eu também quero dizer. É diferente de

você!: perdoe-me: eu digo. Pois pondo o fim em mente a língua bate

como um ponteiro de relógio com ascendente em sino católico e meu

corpo ardendo em brasa fumegante de calêndulas anuncia a meia noite

de natal: Or, à celui qui peut faire, par la puissance qui agit en nous,

infiniment au-delà de tout ce que nous demandons ou pensons, à lui soit

la gloire dans l`Église et en Jésus Christ, dans toutes les générations,

aux siècles des siècles! Amen!

“Dona Isabel, sou mais o crepúsculo. E nele me caibo melhor. Não

dormirei novamente, está dito! Gosto da senhora, de verdade, com isso,

pare e pense, por favor, não me faça ir embora.”

Meus olhos naquele mancebo vintage, meu casaco como refém da minha

indecisão. Pensei em ir de vez. Pensei mesmo? Penso: se tenho

consciência dos meus atos, me questionam, eu respondo que sou a

mulher ciente do fim. Se me levam para a cadeira, eu respondo uma

bíblia, um baseado e uma torta de salmão. Me blasfemam por

permanecer a mesma, eu verbo-mulher-consciente: “a história acontece

com ou sem nossa permissão.” É um provérbio.


“Caçoara de mim até então, com os seus colegas intelectuais, pelas

botas que comprei já pensando em meu próximo destino? Você sempre

soube que eu acabaria morta de novo.” A língua rasteja para fora da

boca, esse músculo viscoso desce até meu queixo babando a minha roupa

e quando sinto que acabou ele se estica maaais e maaais, e se enrola em

espiral na frente de duas mulheres pagas. Eu fico vesga tentando

enxergar o espetáculo e não faço esforço algum para trazê-la para dentro

de mim, já que como toda natureza, é preciso respeitar a vida, e como

toda vida, é preciso respeitar a arte.

saio de cena.

Não recebi resposta. Não foi preciso.

“Trouxe o diário que te pedi?” Remediou. E mesmo se me instigasse à

raiva, não importa o que dissesse, eu nunca estaria disposta a sair

daquele apartamento, não com o peso do silêncio intocável que carrego

comigo. Pois desde a minha saída da prisão, Dona Isabel é a única pessoa

que eu tenho contato, que ainda posso conversar. E como um sinal de

melhora eu não me submeteria novamente à autoagressão que é a

solidão frustrada que se destrincha dessa minha falta de viver.

“porque-tudo-isso-pesa-como-um-caminhão.”
“Como?”

“Como um caminhão.”

ela ajeita sua postura. Eu, um olho d 'água. Ela, querendo se afundar.

não compreendemos.

Como quando você brinca com seu filho de colocar cada bloco

geométrico de forma que eles se encaixem perfeitamente em seus

respectivos lugares. Mas o seu filho, não, o meu filho não saíra dos

primeiros meses e mal sabe ainda a dor que é existir. E por um instante,

parece tão inocente, tentando encaixar as peças que ali ou lá não

pertencem. E eu gargalho, da mesma forma que, depois de tudo o que

vivi, gargalhei quando me diziam que era impossível me entender.


Quando existir se tornou tão cansativo? É exaustivo explicar a

ausência do ser como produtor, alimentando-se por si só em meio a

cadeia alimentar e..;

É exaustivo saber que eu existo.

Minha vida só depende de mim, mas se vivi transtornada e implorando

por misericórdia, por favor, me libertem! eu só tenho dezenove. No

fundo, eu não quero aceitar que posso realmente me livrar desses

encostos, para enfim viajar em alma pelo universo, e a vida como deve

ser vivida. Eu tentei muitas vezes e não fui capaz. Mas eu desejo que

algum dia eu possa me vingar de tudo que me fez crer que eu fosse esta

inimaginável repugnância. a morte do opressor é o fim da

sentença do inocente que não merece o horror.

Eu queria poder ser outra pessoa. E é uma afirmação bastante

contraditória já que na maioria das vezes eu não entendo que estou

verdadeiramente aqui. É confuso, é estranho, planos que chamei de

desesperadores. Porque eu não sinto que me conheço ao ponto de

afirmar que ao me olhar no espelho aquilo que vejo sou eu.

Posso dizer que me tenho como num vazio coberto de gosma e

lentidão. É meio demorado processando e fica mais complicado quando


a vida constantemente parece um caminhão que, lesma e com prazer,

destroça o seu esqueleto por inteiro.

Colhi da bolsa o caderno do pretérito e a entreguei com charme e

cinematográfica, sentei novamente com as pernas cruzadas e o cotovelo

esquerdo sobre o apoio do divã, minhas mãos dançavam uma com a

outra de forma despretensiosa e meus olhos não paravam de encarar

aquele rosto flácido. Ela abriu o livro de súbito no meio e uma onda de

poeira subiu pelo seu nariz, espirrou três vezes e arregalou as bolebas

com minha letra de guerra. Senti seus olhos secos como se fossem os

meus.

“Esse sangue nas páginas…” Folheou brevemente “é seu?”

Minha carranca se contorceu de leve. A velha percebe o incômodo,

porque não se esconde a verdade. E se um fato é refutado, é o inferno

chamando que tanto chega até para os mais verdadeiros. E o meu veneno

se torna letal até para o meu próprio organismo. Não aguentaremos. Se

procura a verdade então eis aqui a verdade!!!: Me despejei sem medo

nessa bandeja, e por gratidão, ofereço meu coração pulsante, que em

cirurgia roubei de mim mesma para te presentear! Datilografo: O meu


almoço que é carne de búfalo ainda vivo, porque ao me cansar dos meus

próprios dejetos procurei por carne fresca. E ouça: é o sofrimento que

me alimenta de verdade; se reproduzem meus receptores de dopamina, e

que delícia é viver!!!!!!! Tudo se mistura numa acidez em forma de

vômito bolento, e ao virar a cabeça para baixo, tentando ver sob outras

perspectivas, submeto ao cérebro a efervescente carne enfim mortificada

pela bile. Passando pelos canais de onde mesmo veio — E não sei se você

reconhece, e não sei se ainda está viva, e não sei se ainda há esperança.

Se essa enchente de jantar não esteve atenta com esses lasers

infravermelhos entre esses canais e orifícios — como eu não estive ao

roubar uma vida para o meu proveito —, mas entre toda formalidade,

entre toda segurança, entre todos os bons costumes digeridos pela má

evolução humana, a depravação ainda exista, haja visto excelente

conselho: bote a culpa na luxúria e conte o caso ao padre. Confissões.

Confissões. Confissões. E ele será bondoso como um marido que

compreende as adversidades de uma borboleta borderline vivente à

procura de cura. Então-só feito em líquido meus neurônios, a desvirtude

ultrapassa o crânio derretido e se esvai para o próximo hospedeiro. Eu

digo que vai, faça outra vítima, depressão, e se sobreviver, volte para me

contar esta história, amiga.

“Evani? ‘tá tudo bem?”


atenta,

insana,

corrupta.

deixo a cena do crime.

— Guerra. — As recordações pulsantes, e a mensagem carregada de

agonia. Ouçam e lembrarão de seus caminhos:

ponto final; trunfo.

— Escrevi essa carta com sangue escorrendo do rosto.


10 de setembro de 1992

Compreendo que a relação que encardo comigo mesma ultrapassa o

natural da morte. Mas quem sou eu, afinal? Ao me olhar no espelho,

apenas vejo você. Longe de ser o único lugar em que te vejo. Você está

nos meus erros, nas minhas vergonhas, nas minhas culpas... Onde você

não está? Não me culpo, na verdade, por ser um estado em reação

constante, coeso por tudo que não me reage cem porcento real. Admito

que me entrego à irrealidade, como sendo, peço perdão, um estigma da

minha própria fé, já obsoleta. Mas a existência do inferno te faz real, e

isso assusta. Quando comparo minha cabeça ao inferno, tenho tu como

os meus demônios. Minha morte tardia beija-lhe, corpo que abriga o

inferno. Mas se não conheço o inferno material, como então consigo

tocá-lo? Chego a uma conclusão: sou onipresente como Deus. Não cuido

do meu próprio nariz porque não o enxergo, não o enxergo porque não

existo. Sou como Deus, que não tem piedade dos que moram às margens

do complexo. Amiúde, machuco-me por devoção ao caos.


No entanto, se o inferno for realmente tão quente quanto o forno que

queima o frango de Natal, e tão sufocante quanto estar com meu próprio

cônjuge, posso me fazer de boa moça e conhecer Virgem Maria. Ou quem

sabe Deus não me reconhece mais como uma de suas grandes amigas

quanto nos tempos em que eu abdiquei de me vingar dos que me

cortaram as asas e me fizeram acreditar que, na vida, tudo apenas nasce,

cresce, reproduz e enfim decai à mortalidade, quando, na verdade, eu

abusei de muito mais que isso em poucos anos de vida.

Estou aqui, e pairo como uma pergunta: Quem é você?

Quando te visito com a minha alma, é você que tem vantagem sobre

mim. Alma que é porta para os desamparados, corpo que é a chave do

desejo. Há meu corpo frágil na multidão que se enxerga por fora em

meio a bagunça, cravejado no mistério das suas encaradas. Privilégio é

me encontrar numa noite sacada; sentinela; meu passado em desordem

dentro da minha habitualidade, dado que é, de fato, ser vivente no mais

velho — maior experiência no abismo é digno de devoção —, mais

intocável, mais pragmático coração coral ardente.

Esclareço meus tendões, nervos e juntas com caminhos que dão vida ao

que quero dizer com essas palavras: me anseio na verdade absoluta do

que é estar viva. Para que num salão desabrigado eu possa me sentir

carente da dança. E dançar, dançarei, liberta como uma libélula, a qual

antes foi ninfa, para que, com clareza, se tornasse caçadora. Observando
quaisquer movimentos por detrás do meu crânio massivo pois ainda que

sozinha, sou vulnerável a rachá-lo com meus pensamentos que, de mim,

só esperam a derrota. Assíduos na robustez da vingança. Vingança que

convém ao complexo da não clareza comunicada. Estou cansada de viver

à mercê do complexo, às margens. Me banho com o inesgotável da

profundidade. Mergulhei neste transe psíquico e paradoxal de uma

mente que se recusa a estar presente, e toda vez que você chega eu

explodo e o lago esvazia. Mas eu ainda estou aqui, não vê?

Preencho os espaços com o vazio. Ocupo. Deixo inabitável para os

outros. Me espalho como um cacto amaldiçoado à crescer eternamente.

Ao me enrolar na filha, cresço. Não há possibilidade de me autoconhecer,

apenas sei que soo como o silêncio constrangedor na fila indiana que te

obriga a ser rabugento quanto ao clima quando esta, na verdade, é sua

estação favorita. Eles amam o inverno, você também. Quando se acham

sionistas você tá na banda. Se Caetano é viado, tu concorda. A economia

da Polônia só te surpreende!!! Eles matam as fadas, mas você as odeia

muito mais, não é? Você faz farofa. Você se contradiz. Apresento-te à

graciosidade da dúvida: quem eu fui em toda a minha vida até este

momento? Você se encara por horas no reflexo do elevador. Pessoas

entram e saem. Pessoas vivem. Mas eu não consigo existir. “Quem sou

eu, afinal?” Sou como o vazio, estou cheia dele. E não podem ter certeza

de que ainda estou aqui até saberem do meu passado. De quem eu fui até
este momento. Mas até lá sou apenas um espaço, um machucado

preenchido com a dor resultante da falta de cuidado. Só isso me explica.

Minha pele, contraditória à profundidade da minha mente, é rala como

um café mal feito, sem cuidado — diferente do meu cérebro, que é

ultraprocessado. Acompanho a cafeína com meu córtex pré-frontal, e

assim permaneço alimentada. Minha pele rala, rala. Ralada ao se

comover com a empiria, num desses momentos em que me reanimo

mais que uma mente magnética ao teórico.

Comovo-me com a carência dos mendigos. No fundo, sou carente de

agressão, escondo minha real versão. Estou entre o vão da moradia e o

suicídio. O preço que pago por viver é o cúmulo da fricção química. Atuar

humana na realidade me contorce doentia, mas preciso voltar ao crucial

do acordar, atirar-lhe da cama o corpo que mantenho pensador, mas não

posso, não consigo. Engordar-me-ei igualada a um porco. Comerei do

meu marido seu vômito. Lamberei do seu golfo. Preciso sobreviver.

Levar-me-ei obesa ao matadouro. Hão de me abaterem. Moerão meus

músculos, destroça-lo-ão em porções cada vez menores até chegarem em

seu ápice destrutivo. Sou um cordeiro de sorte, estarei no goto de

brasileiros mendigos, estarei no vômito de muitos ceifeiros — então o

ciclo se repete. Serei a dor da meia-noite, o parto da madrugada, a ânsia

do profundo intocável, mas esta sou eu.


“Esperarei pela manhã, o guardarei, meu tesouro vívido. Estará livre

pela manhã.”

Então mordam a carne para fora do meu corpo presunçoso, hospedeiro

da minha mente autodestrutiva! Rasgue a carne e o retire, o cérebro que

almeja o estrago de tudo que me foi construído sem sequer me dosarem

com qualquer êmese ordinária de alguma fração de consciência sadia,

porque isso o fere pessoalmente. Me vibrem na ousadia do banquete

noturno. Ocupem o salão, desnorteados. Estarei alí em alma.

Vinguem-me com a dança, mendigos. Comam meu corpo que é morada,

o qual reconhece seus desejos de carne divina. Colham a chave e entrem

nesse espaço que é estar em alma pelo universo. Me exemplifico: estou

em alma pelo universo de tal forma que continuo na Vila Noroeste, visito

meus pais e eles ainda lembram que estou aqui, logo, estou de verdade,

devo admitir. Com um carinho inigualável: “Filha, não nade com as

piranhas!” Então eles esquecem, e isso deixa mais fácil viver. Pai, eu

choro. Pai, tenho culpa. Pai, peço perdão. Pai, que me escute!: fui longe

demais.
Sempre um mistério, não é? Sempre uma paixão.
3 Kaluanã. Menino certeiro como se nunca viu igual, não há imitação.

Escondido, entre feitas figueiras me trouxe dali, monótona, cheia do que

dar, e me levou para o amor. Menino esperto que guarda o dia no bolso,

e com ele nunca vejo o amanhã chegar. Em presença é sujeito à meu

deleite, traz sempre contigo folhas ácidas de menta, seu cabelo longo e

obscuro, seu joelho forte, e mais acima, seu pênis duro como aço. Nunca

soube de onde vinha. Parecia dono da criação. Do céu e do mar. Mas

principalmente das grandes árvores, dos carvalhos, das figueiras e dos

eucaliptos. Especialmente dos carvalhos, onde na copa-altura era de uma

fantasia imaculada a vegetação dócil em sua imensidão pelas milhas, que

pareciam excitadas, desejando os meus pés no corpo a ser explorado,

corpo esse a própria Terra cantada. E com essa inexplicável fonte de

mudança que era o amor, eu me sentia como uma multidão decidida a

descobrir o segredo por trás das honrosas montanhas do Amazonas. E

nesse matagal eu corro como energia flutuante, que devora a matéria

com o angelical das situações cheias de liberdade. Tudo em mim vibra

em emoção, e o verde dos seus olhos, tal qual verde de folha azedinha,

me come por dentro como a loucura de um dia bom. Te amo pra sempre,

coração. Desejo é medida positiva do retrato entre dois animais

selvagens. Desejo, de prontidão, te mostrar o que é loucura, e hoje te

chamo pra correr flamejante que machuca apenas a solidão e todos

aqueles eufemismos que inventaram para a preguiça. Se depressão me


comesse pelo cu, estaria morta com o veneno do sentir puro. E por isso te

peço mais uma vez: não fuja de mim, e se aparecer de novo, grite, que

estarei à espera, e de novo e de novo e de novo curvarei à esperança de

ser alegre novamente. E se nossos corpos, como prova de contato, são

poesia; se longe daqui nos encontrássemos, seria êxtase febril.

Consciência possessiva de glória. Eu te desnuo como amor da minha

vida, e seremos Adão e Eva dos finalmente são e salvos. Ainda assim, a

vida é tola, e o limite, mesmo que farsante, é ilusão que deixamos nos

levar à broxante coroação das consequências que ainda virão. “é tudo

bobagem”, sussurro no pé de seu ouvido. Eu quero a vida com você.

Quero você como vida. Eu quero te comer com vida. E como a vida, te

comer. Eu quero comer a vida, começando pela bexiga. E me deixar ser

comida viva, pela vida ou por você, por Deus ou por mim. Quero

vivíssima me comer gostoso e passarinha, e por fim viver de novo e de

novo e de novo. Viver, eu quero dizer, devorando um quero-quero toda

cheia de tesão. Nunca então se foi maluco, isso é desejo de estar situado

no cosmos em posição de satisfazer a histeria que é compartilhada entre

duas almas que estão sedentas para conhecer o além da situação,

divergentes entre essa tal de humanidade que é dividida e arcaica para

demais. Somos vida que quer ser vida. E se não procedermos ao acaso de

nos tornarmos poesia ardente em sintonia cósmica, como poderemos

saber o que é ter o mundo para nós? Porque sei que posso ser pouca às
vezes, mas com você, se posso tudo, por que não tentar? Se me

despedaço hoje, quero dizer, se a Terra me leva para o outro lado da vida,

que é o nada, mas também, o tudo, se possível, não terei vivido senão

apenas a viagem até minha morte. E isso não dói em você também? Viver

é estar em improviso intenso e se jogar nessa correnteza que te leva e

você não precisa temer. Amor, se a vida me levou até você, venha

comigo, venha ver. Em cima desse carvalho, o mundo é lindo, é vasto, é

propenso a ser. É possível. E nós dois, donos do poder, temos de

aproveitar. Te chamo então para o festival da nossa própria harmonia

enquanto corrida pelo portal da beleza onde mesmo centenária árvore

cheira à juventude.

Você me pergunta quanto ao meu desejo de saber sobre todas as coisas

que compõem o universo, mas quanto a todas as coisas do universo, a

maior parte das coisas está na consciência das coisas. E se eu pudesse

todos os pensamentos ler, saberia o suficiente para me manter calada.

Mas, mesmo calada, gritei. Há milhares de coisas das quais eu devo me

retratar, e desde que me tornei mais enfática sobre as coisas que eu

posso fazer, está me custando cada vez mais caro me olhar no espelho e

ter que me ver sucessivamente afundada nas lembranças de vidas que eu

nunca terei; e de quando eu vivi pelas beiradas me tornando mais um


nada nessa imensidão até me realizar de que o perigo mais próximo, na

verdade, é não estar viva para ver este espetáculo viral que é me

encontrar de vez. Pois craqueja a chuva, e nossos tentáculos como ficam?

Intactos!!! eles ficam. A Vila Noroeste sempre fora para mim algo mais

que um lugar, quase mítico. Como um espaço que na verdade não é.

Porque não está para alguns. É irreal. E não existe para tais demais

exteriores seres, caçadores, historiadores, biólogos. Todo tipo de gente

que por fim só serve a um mandato de brancos sem coração. Eu já vira

algumas espécimes dessa gente e garanto que não era uma boa visão.

Todos tão artificialmente humanos, quem são? Cada um com suas

histórias destinadas, destinos que são: fracasso. O que os levou até ali foi

só o acesso à vida não aproveitada. Duvido que sejam felizes. Mas eu que

já não fui feliz, não tenho o que, talvez, de duvidar. Não que o fracasso

seja a sina de alguns, mas o destino dos mal-amados. Me divirto com a

crença. Nunca me ensinaram a ser amiga de Deus, mas devota (no

entanto, submissão não faz parte de mim, mas da minha inocência). Com

esforço entendo o que querem dizer, porém me obrigam a duvidar da

minha sanidade ou como dizem os mais crentes líderes: “nunca duvide

de Sua razão divina”. E eu fico meio… Minha mente tropeça, enlouquece,

deforma o material do corpo embarcando numa longa viagem. Penso que

talvez… Não. Não. Não. Penso que devora. Quem? Devora eu? Devora a
lua? Porque não a vejo há dias. Devora o choro, devora o mar, devora o

rio, devora o lago, devora o… ahh!!! gemo de magia.

Devora Deus(?).

Lembro de um dia pedir a Kaluanã para me trazer uma Bíblia. Sabia que

ele vagava por aí. Furtivo, com certeza. Engenhoso. Dizia que já, já

voltava. E me trazia presentes daquele mundo. Comida, normalmente.

Ele me falava: "Coma! Coma! Coma! É uma delícia!" Sentava sobre a

terra calmamente com as pernas dobradas, sentindo o meu olhar sobre

sua face, esperando o meu voto. Piscava absurdas vezes, como uma

criancinha ansiosa ao entregar seu desenho à mãe para saber o que ela

achava. Ela elogiava, claro, não importa quão feio estivesse. Então ele

pula no seu colo e a abraça. Eles caem para trás, alegres, rindo, rindo

muito! Ele a faz deitar no chão, sem perigo. E senta sobre sua pelvis.

Derrama teu corpo sobre ela e a beija com desejo. Invertendo os papéis.

O desenho voa da mão dela, cai também no chão. Ela não sabe o que

fazer, ela não tem reação. Ele movimenta a bunda, para frente e para

trás. E diz: "Quero dar pra você, Evani", "Me coma, Evani." Com os

corpos colados e molhados depois de um banho no Lago Vida, os cabelos

pingavam, gota por gota sobre a terra úmida, e dali nasceria uma beleza

de árvore. Uma pavoa, imaginava. Eles se beijavam envolventes. O


churros estava caído e proliferado de formigas. Kaluanã esfregava o seu

pênis excitado sobre a barriga de Evani. Pele com pele. E insistia: "Me

coma, Evani, me devore!" Corpos nus em procissão de glória, lutando

contra os despejos, aproximando os corações. Ele continuava a se

esfregar, arfava, pressentia o jorrar, ia leve, ia rápido. Um ritmo

pulsante. Sem ela ao menos perceber, suas mãos estavam apertando a

bunda dele contra seu corpo, o ajudando a friccionar o pênis. Não

entendiam o que estava a ocorrer, mas gemiam de uma forma fora do

comum. Kaluanã estava louco, a cabeça apoiada em um dos ombros de

Evani, seu pescoço se contorcia e gemia agudo como um gatinho,

arranhando os braços de sua namorada. Era paradisíaco. A buceta de

Evani se enxarcava com aquela situação, se comovia, brotava louvores

daquela cachoeira. Tirou a mão de um dos glúteos de Kaluanã e no

mesmo momento em que seus dedos se encontraram na entrada de sua

buceta, sentiu em si uma energia adormecida ascendendo, subindo

andares, passando pela barriga e ali deixando um formigamento intenso,

um rastro cheio de ternura, passou para os seus seios, imediatamente

enrijecendo os seus mamilos como pedra, e pela sua garganta sentiu que

toda a impureza estava sendo vomitada para fora, seu corpo agora

emergindo o brilho de uma anã branca, aquele fluxo evoluindo,

eclodindo, via tudo. Tinha o universo na palma da mão. Tal fluxo de

energia, ao chegar em seu cérebro, a fez urrar significativamente. Sentiu


os gemidos de Kaluanã se aprofundarem no seu ouvido como notas de

harpa que se sobressaem com o vento, e como um ovo de som oco,

explode no seu tímpano, tremulando as pernas e a fazendo cair. Evani se

exaltou, virou o jogo, ficou por cima de Kaluanã. Ele, por sua vez,

escondeu o rosto com uma de suas mãos. Seus olhos lacrimejavam, e seu

rosto vermelho, como uma imitação da glande de seu pênis. Estava

terrivelmente envergonhado. Da glande, vazava uma enorme quantidade

de pré-gozo, que logo atrelou desejo à boca de Evani. Ela lambeu a

cabeça daquela pica com tanto gosto que o corpo todo de Kaluanã

tremeu em satisfação. Chupou com vontade, de cima pra baixo, sugava

aquele pau com sentimento. Kaluanã que temia ao máximo se

intrometer, e ainda assim não houve rédeas, pois, para o pensamento de

que necessitava afundar a sua pica severamente na goela de Evani. O que

o fez soltar um som tão-só angelical que os pássaros que ali estavam

próximos, ouviram e invejaram tal voz. "Ahhn~, anhn~" Kaluanã não

conseguia mais segurar. Eclodiu pureza. Jorrou.

gozou uma enorme leitada naquela garganta.


“Kaluanã! Para de bobeira! Não precisa ter vergonha.”

Ele estava agachado contra o tronco de uma figueira, com as duas mãos

no rosto. E mexia os dedinhos do pé freneticamente – pareciam dedos

pensativos batucando uma mesa, um por um, respectivamente,

sinfônicos, ponderavam no que fariam a seguir.

Pois assim aconteceu. Levantou-se de uma vez. Eu, que estava agachada

ao lado dele, quase como arremessada, caí para trás com as mãos no

chão. Ele me deu uma olhada rápida, curiosa, infantil. Um humano sem

a percepção de que já não é mais um bebê. Ele correu para o leste e logo

mais deu um pulo e uma risada. Virou para trás com um sorriso, e me

chamou com um gesto: “Vem!” Voltou a correr. Eu me levantei

desajeitadamente e corri atrás dele. Seu pênis subia e descia, um rabinho

que abanava. Ele me levou para um lugar não tão diferente de onde

estávamos, parecia haver nada de especial. Mas então ele começou a

cavar e eu sabia que dali sairia algo interessantíssimo. Me agachei à

medida que a escavação parecia mais profunda. Fiquei de quatro e o

observei a nuca. Seu cabelo caía grandioso sobre os ombros. Ele deu uma

olhada para cima com um sorriso lindo, enquanto continuava a cavar. Alí

nos enxergamos almas floridas. Senti vontade de beijá-lo novamente.


Não durou muito, de lá ele tirou um livro. Era um livro grosso, maior que

os que ele costumava me dar. Kaluanã passou a mão sobre a capa para

retirar a sujeira e me entregou, deitou a cabeça sobre o meu colo e ficou

esperando uma reação. Eu rapidamente li: “Bíblia Sagrada” Olhei

novamente para ele, que estava sorrindo inquieto. Eu retribuí o sorriso.

Ele fez um biquinho, abaixei o pescoço e o dei um selinho. Ele se

esperneou no meu colo como uma criança alegre e se virou de lado,

abraçando minha cintura. “Gostou?” Ele falou com a voz abafada, com a

boca colada no meu ventre. Eu não tinha forças ou não sabia como, para

com gratidão, demonstrar meu encantamento, então apenas larguei o

livro sobre a terra e acariciei o cabelo do meu namorado enquanto

cantava Estrela D’alva pra mamãe Oxum.


Kaluanã de passo firme. Ore. Somos quem? Eu vim da Vila Noroeste e

você? Sempre esteve floresta?; existiu? Sempre existiu sabendo que era

você? Não existo longe da história. Você existe de longe? Você… existe?

O que garante que a história há de continuar?

— queimamos incessantemente.
“A esfera é um sótão. Terra, cadê?” Este não é o começo do mundo.

4 Terra, cadê?.
pois jurou; pediu à Deus que fosse anjo e pudesse voar; charada matou:

mas quem é deus em ser maior? Via tu, quente no asfalto “sem

termostato; esse moço é violento.” pensei. Pensei, sim! — Demorava a

carona, não é?! Via tu por uma hora e dissociei — Pensei nas nuvens, que

demorava também a chuvarada a descer, “bem que podia se molhar,”

passei um bom tempo querendo. E me absorva a força de querer;

sentindo, você também, compreenda: bendita chuva seja à vontade, pois

hoje quero que me lamba as gotas! as que me pingam sobre a pele,

debaixo da folhagem de oliveira, Kaluanã de passo firme. Cadê tu, que és

meu deus em ser anjo?

Uma chuva forte se espreita, eu pressinto, é real demais — e calúnia não

acreditar. É calúnia ser deus e não rir. Porque é bandido de humanidade

toda essa questão de instinto. Não é real ser privado, é visível demais

existir, e machuca cair antes de tudo; antes do chão. Machuca cair antes

da queda e precisar dela para amortecer o machucar; que não me é viável

nessas horas em que preciso focalizar esta rajada de poder que é: a

culpa.

Optei que você não me visse, homem. Calada nas sombras, me refiro ao

que imprime no ciclo. Ativo arquétipo de bicho inato na caça e no


instinto, isto é, de amamentar a cria. Nessa fenda vertiginosa,

recosturo o alcance do manto, e, do magma, transbordo luz ao

intérprete da emoção. Não há culpa, há decepção, seu destino era uma

missão e interferi na imagem.

não há culpa: um convite a reformular,

A mulher chega em seu jeep, chamando Cordelius, cheia de si. Ele pega

suas bolsas do chão e as coloca no banco de trás, onde havia outro

homem. Ela estava impaciente. Acelerou de leve e o carro andou.

Gargalhou da cara de Cordelius. Ele então respira fundo, e corre à frente.

A mulher rindo, rindo, rindo, olhou para o lado. Encarou o matagal e deu

um basta no próprio histerismo. Não. Encarou eu. Kaluanã aparece em

seguida, com a mão em meu ombro.

“Indiazinha!!!” Em um riso frisson.

oremos.

Justo sou essa patife que insiste em não ser real. Lúdica. Eu vim de uma

loucura que não existe nas mentes atuais, no derivado: ultimamente me

esbeiro já obsoleta entre estas e outras regras. Já viu que cavei países,
extrapolei horrores, bati de quebra na barreira, troquei elétrons por

amor, sorri até não ter motivo, vaiei a taça dos senhores, roubei as

peças de artilharia para que os cupins as devorassem. Por tudo que a

vida empreste, sou cupim de romancistas, sou o pingo de água que

dissolve a tinta e o pincel fica mais leve. Sou o executar, sou a defunta.

Me insisto no físico animal, perambulando entre os cânticos desse

espaço florestal. Dentro da minha cadeia muscular, esbeira-se a força,

sobrenaturalmente, força de mulher, quero dizer: sou frágil como a

folha que descosturo do galho com a minha própria insanidade em

ventania. Não tão singela assim, me autosaboto e saboto você.

Ela sai do carro e bate a porta. Ele vai atrás. O outro bota a cara na

janela. Era branco como as nuvens. Não, eu era tão escura quanto as

nuvens que naquele momento derrubaram todas as toneladas de água

que estavam aguentando.

O porta-malas foi aberto. De lá, tirou uma besta.

e em questão de tempo já basta ser humano.

Em minha direção, com a besta na palma da mão. Kaluanã então, jovem

a se arrastar. Seu rosto aparece em minha frente.


“Não, não, não! Não, não, não! Kaluanã, o que faz aqui? FUJA!”

“O que houve, Evani?!” Seus olhos expressivos e arregalados. “Me

explique!”

“Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!

Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!

Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!

Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!

Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!

Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!

Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!

Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!

Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!

Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!

Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!

Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!

Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra! Corra!”

Eu estava aos joelhos em frente ao eletrônico vendo aquelas notas

voarem para o ar e serem possuídas pela atmosfera. Forró em Santo


André estrelando do rádio afora para o centro de todas as coisas,

porque papai ama um jazz à solta em noites de climão.

“Trota, trota, trota…” Inventava minha própria letra.

até que o rádio chiou,

barulho irritou,

minha mão de mulher socou minha própria boca.

foi minha mesmo?

minha culpa?

minha culpa é mulher?

ficamos sem jazz,

sem improviso,

e sem vida.

derramei meu choro sofredor.

(c)o(r)remos.
“O que pensa que está fazendo, Lucía?” Ouvi ao longe.

“O que acha, hein?! Buscando uma nova especiaria…”

Corremos pela própria vida. E se parássemos, ouviríamos os passos da

Morte nos seguindo. Eu já estava sem fôlego. Kaluanã disse então para

subirmos numa grande árvore e Ela não nos veria. Mas a Morte estava

mais próxima do que achávamos. Kaluanã com sua excelência, já estava

bem acima de mim, e enquanto eu escalava o tronco, Ela chegou.

Atirou-me uma flecha na perna, e me lembro da dor que engoli. Eu dei

uma última olhada para cima, e lá estava Kaluanã com seus olhos d’água.

Eu me rendi. E derrapei. Deixei o corpo cair, e a flecha ao entrar em

contato com o chão, se enfiou ainda mais no músculo. Eu me vi de

repente apagar. E mesmo o rosto Dela perante o meu, não me foi

possível distinguir normalmente. Já era tarde demais.


— Kaluanã, ore por mim, ore por nós.
Me visto nas dobras múltiplas dos cânticos. Essa é a norma bruta dos

anjos. O além é mais do mesmo para quem não consegue ver, e a espécie
humana, frágil e lesma se fosse gente. Um anjo é capaz de piscar e abrir

fendas, pode-se nas dobras, e atravessar-lhe o corpo ao limbo das almas

que querem tudo (sou uma delas). No além, vejo mesmo? O pelo tem

mais relevo na cegueira. A ereção tormenta em cheio no

cotidiano-asneira. Mas houve entre nós, abertura de um vão para

encaixá-la. Caprichou nessa fenda, hein. Piscou. Eu tropeço nesse

abismo. Suas ações são viris, é facto, e abrange o desassossego das

margens. A coluna congênita eclode nas ondas que não é mar, mas que

impactam a crosta. Possui vida na base do abismo, seu diâmetro é um

fim massante. Meu bebê se fosse gênio, explodia tosco em seu colo, mas

apenas se não fosse seu, seria gênio. Paradoxo. Não explodiria. Você é o

problema.

no cosmos há jazz à solta, no cosmos há mãe elefante, no cosmos há

costura à vista, no cosmos há maldade; carniça. Na minha mão:

maldade; cinzas.

evoluo só. Recosturo vívida.

“Escaldeirou porque existiu fora do corpo. Escaldeirou porque era você.

Não tive culpa, tive receio. E não foi por isso que menti, foi por covardia

que não aceito mais. Já estive solta, mergulhada num paraíso. Sem

mortes secas, sem verde pastel, sem mangueirinha pra lavar o cu. E hoje
me diz: ‘tu é burra ou se faz?’ Me diz, sempre tão caprichoso com a boca

flácida? Aprendi a ser engraçadinha também.

Tire os olhos do meu bebê que tiro do seu noivado também! Qualquer

coisa é de Kaluanã. O que a velha vai fazer? Matar, só por cima de mim!

E se tentar, vem socorrê-la. Porque diante de tudo, sou boa até o mal me

fazer. Sou virgem até a lasca de pau me contorcer jararaca mais tecida.”

raiva sentida; cintilar.

Ouvimos um chavear. Era Ela.


5 — Negrinha!!! — Retumbava ao longe os gritos do feitor esfaqueado.
Evani corria pela sua vida. Era uma manhã do novembro de 1884.

Não me lembro ao certo, dizia ela. Um evento lhe ocorreu. Não decerto

com a menina. Mas um evento que decidiu o restante de toda a sua vida.

Aluízio, seu senhor, seu dono, havia infartado. Todos os habitantes da

casa estavam no quarto do velho, inclusive o feitor que a vigiava, que ao

ouvir os gritos da filha do senhor, correu direto para onde vinha o som

saber o que estava acontecendo. Seu senhor já não andava bem havia

meses, e provavelmente já havia deixado um testamento que exercia a

posse de suas propriedades ao seu filho mais velho.

Evani conhecia bem o filho mais velho de Aluízio, seu nome era Romero.

Lindo. Cabelos castanhos e bem curtos. Olhos também castanhos, mas

que neles habitavam uma tamanha profundidade que Evani conhecia

perfeitamente quando percebia estar sendo encarada por ele. Ela era de

tal modo uma figurinha esbelta. Tinha os cabelos curtos e crespos,

sempre no mesmo penteado, o que dava espaço para ela abusar de sua

tiarinha preta. Que combinava tão inteiramente com a sua imagem que

sua própria aparência parecia ter saído de uma personagem feita e

intrinsecamente colocada no mundo. Tinha um ou dois pares de vestidos

longos que antes eram da filha de Seu Aluízio – ele detestava ver Evani

tão suja, não porque tinha pena, longe disso. Mas porque se submetia à
uma índole de extremo perfeccionismo, e qualquer indício de sujeira,

poeira, migalhas, um chão não ariado, uma blusa manchada, raspas de

madeira ou de parede, eram para o Senhor uma desagradável vista que

quase o destinava à um ataque cardíaco (risos). Era uma criatura

pequena, não exercia mais que um metro e cinquenta de altura, mas o

que não tinha de tamanho, ela esbanjava em um belo sorriso, mesmo

quando suas oportunidades de sorrir eram tão poucas. A primeira vez

que sorriu ainda era uma pequenina criança de colo. Sorriu para sua

mãe. E no momento em que sorriu, sua mãe soube: viverá bem. Tal

pensamento poderia ser tudo, instinto de mãe ou, talvez, apenas uma

vontade imensa de ver sua filha feliz, tendo uma vida melhor que a sua,

que já havia se agravando e degradando há tempos. Sua pele era flácida e

enrugada, por conta do sol. E seu esforço já era mínimo, não tinha mais

esperança de lutar. Mas tinha Evani, e prometeu que a teria porque

sentia que desta vez seria diferente.

Os únicos momentos em que a pequena ficava a se alegrar era ao lado de

Romero, com aquela pinta de conquistador profissional, que mesmo sua

esposa não conseguiu apagar. Odiava sua esposa, reclavama.

Tão-mes-qui-nha.

Era restrito. Não tímido, com certeza não era tímido, sabia muito bem

excitar qualquer tipo de pessoa, digo, pessoas mesmo, não somente


mulheres. Um cara apaixonado, na época em que servia ao exército

português, o fez levar a palavra loucura à outro nível de fantasia. Foi

romântico, ele disse, mas trágico também. Como toda espécie de

romance proibido. Uma obviedade, enfatizou. Odiava essas obviedades.

Evani concordou: Odiavam o sistema atual. Nunca contou tal ato para

ninguém, nem para uma borboleta, ou então, lagartinha. Mas confiou

seu segredo à pobre e silenciosa escrava, pensava sarcasticamente Evani.

Mas ele gostava dela, de verdade. Não como fingia gostar de Gisele, sua

esposa. Amava Evani. E não mentiria ao dizer que só visitava o pai para

vê-la. E temia, também, que esse caso, tal qual comer do Fruto Proibido,

acabaria em tragédia.

então houve o seu fim, como todo mundo esperava. Velho medíocre.

Vida medíocre. Evani com todo o seu desejo de vida, com todo o seu

fulgor, correu rápida ao perceber a situação. Nem ligou que todos os

pratos ensaboados por ti haviam se despedaçado todos no chão com seu

exalto. Parecia um elemento em inércia contra a realidade, liberdade

correndo em suas veias e energizando seus músculos. Correu ao portão e

esperava que conseguisse pular, parecia mais baixo na sua única

perspetiva que o conhecia, dentro de casa. Tentou arrastá-lo furiosa, mas

estava trancado. As grossas botas do oficial já eram audíveis se

aproximando, e seu rosto bem previsível e grandioso na porta do salão


era uma perfeita imagem na mente de Evani. “Abra portão!!! Abra,

desgraça!!!” Não tinha mais forças, escorreu as costas no portão até seu

corpo se encontrar completamente derretido, anêmico e suado contra o

chão áspero. Chorava todas as lágrimas que guardou em sua vida. Não

podia fazer mais nada, estava tudo desperdiçado. Se não fosse morta,

então morta seria de tanto apanhar. Não iriam pegar leve, ela tinha

certeza. Murmurava: era loucura como um instante poderia mudar tão

rapidamente, estava tão próxima da vitória, se viu livre por um glorioso

momento de euforia, seu desejo de viver se transformava numa

necessidade. Um querer que se trasmutava, porque aquilo não era vida.

Vida mesmo seria ver sua mãe novamente e abraçá-la. Não fazia ideia se

depois da invasão no quilombo ela continuava viva, e aquele pensamento

a emaranhava numa profunda tristeza. Só queria sair dali e sentir o

vento a carregando como num ninar de colo, saber que o quilombo havia

se revigorado e então poderia lá viver contanto que algum dia acordasse

e se visse numa realidade melhor, nadando com os peixes. Pegaria um

nas mãos, o beijaria na testa e o deixaria continuar a nadar alegre até o

fim dos tempos. Era isso que queria: morar na sociedade dos peixes, ser

a deusa submarina deles, receber cócegas de suas barbatanas, virar o

rosto para os céus e rir para o universo. Era o que merecia, sabia disso.

Sentia isso.
Mas quando seu desejo de viver tem o seu único obstáculo que é a

própria vida, então por que continuar tentando? Lutando por uma boa

memória, um grande anseio de harmonia, um pau, uma mulher, dois

vinténs de alegria. Pois percebo que é a loucura que domina o mundo,

mas não os sãos! Os sãos que, tratados como possuídos, decaem, e no

final proferem mesmo que o melhor era terem nascido loucos, sendo

xoxos, serem brancos. Ai, ai de mim! Que não sou louca, mas por

decorrência do mistério-mundo-abusivo sou severamente instável. Então

venha oficial, mostre os dentes, mostre a rudeza, mostre o peitoral! que

estou armada. Que eu bato na minha própria cara, mas não pago pau.

Malditos! Injustos! Terríveis! Mostre a cara, oficial, que a arranho. Mas

como numa profecia! Quase divina, foi. Ao aparecer do grande homem

na porta, nem teve escolha a não ser cair de joelhos perante a menina.

quase uma deusa.

Foi de propósito que carregou consigo a melhor faca da cozinha, foi para

coisa desse tipo. Esfaqueou o oficial e não teve remorso. Se sentia mais

forte, mais poderosa, mais dona de si. Mas não teve tempo de remoer

tais sentimentos, precisava sair dali. Pegou as chaves da cinta do homem

e abriu o enorme portão, se libertando pássara daquela gaiola. Correu.

Correu e não foi pouco. E quando outros da casa se reuniram para acudir
o homem, ela já estava longe, e os gritos da grande peste bradavam

mudos.

às espreitas de uma mata sincera

evani não perde a festa, observa

era lindo de se ver


indiozinhos rebolando

dava gosto pertencer

olhe então por onde anda

pois senão eles verão

neguinha de lado esperando

ser chamada pelos irmãos.

sawubona

ela disse

sawubona

se casou

sawubona

teve filhos

a mais nova teve Glória

e Glória à Evani.

coração

pétalas

e armagedom.

eu te vejo.

Bem te vi.

GLÓRIA
1 para o meu coração coral ardente, benditas sejam as almas prezadas.

Graças a Deus sou alegre, por coisas da vida que se perdem e se

encontram ao meu torso. Malditas calhas, vencidas telhas. Sou mais esse

passarinho que rasteja, um Dó de passarinho, e ai ai, não queira!!!!! me

enamorar cantante sem prova de que prezada alma seja você.

cantante!!!! não há espaço para poesia onde percevejo toma gosto de ser,

deles não simpatizo. e se digo assim, se acostume, sou poesia pura e à

ninguém me dirijo. Se dirija a mim, você!

vamos recomeçar, te dou outra chance de me conhecer.

Falo sobre mim: minha vida é estar acesa. converso com os meus

dedilhados. eles estalam em gratidão à Deus, com compilados de brilho

na atmosfera. ó, eu me movo em direção à luz, porque é lá que a

orquestra grita: não amar sem poesia!

Eu choro, louca de alívio, em cumprimento, e encontro a mim mesma

como estrela que cabe na palma da mão do Senhor. Me encontro pássara

de um cantar qué som de cura paralítica.

“Seus olhos de homem… ouvinte homem, só me escuta porque quer me

comer?”
Ele dá um pulo em seu assento, “nada disso moça, tu que é tão

interessante e tem lábia magnífica” tenta se redimir.

uhum uhum uhum.

continuo: Quando se tornas mais abatido com o machucado, é então

quando deves um passarinho chamar, e este canto que cura paralítica é,

te curará.

não compreendeu.

escute,

devo te contar então que

Certo dia vi um rabo-branco-rubro machucado entre a mata às bordas

do Lago Vida. Suas asas sangrando. Mal conseguia se mexer “ó pequeno

bicho, que antes de encontrado escapara de coisa feia. e se não

encontrado, não escaparia, coisa feia comeria, coisa feia mataria.” Levei

ele pra cuidar, passei das melhor erva nas suas asa pra sarar tão-só

rápido que nem veria, amamentei com meu peito cheio, com meu leite de

Evani, seu bico beijava o meu bico. E, Ah!! como gargalhava Evani. E

Ah!! como abençoava o Cosmos.


O vi crescer colorido como o poeta Sol. Logo aprendendo a ser estrela,

daqueles boas quedas que quer ser desejo, eu vejo no fundo do meu

coração que jura alcançar a superfície. Pois foi bem numa noitinha de

primavera que acordou-me num rebuliço, cantando para quem quisesse

ouvir – quem merecia, ouviria; destino; mudança; canto tal é cura

paralítica; caminhe. Cantava ainda mais bonito, comunicação aflorada

que eu compreendo e você dança.

Estava se despedindo, me chamando para ver como é bom ser pássaro.

Senti a luz embebedar-me, e de repente flutuava como fada flutua. brilho

estalando, poesia cantando: deseje um coração que saiba gritar.

Ele voou num disparo, e o segui, seu rastro: de pó dourado, me guiando,

a orquestra cura.

Em frente ao Lago Vida, antes de sobrevoá-lo, resolvi pousar, sentir a

água, poder me banhar. O rabo-branco-rubro me olhou mais uma vez

antes de voar além das águas da vida.

É esse pôr do sol que quer ser mar e se fundir com a areia; nos reflete:

não há (a)mar sem poesia. A terra que cabe na sola do pé é a superfície

que nos arrebata. tensionando-a, gente que quer correr (do que?), mas

que fofa é essa areia, deixa-nos ater as mãos e parar com o vermelho cor

de vivência feia. Eu te amo, besteira é não aceitar que o meteorito cai e

pode ser em você. Há o corte da cabeça com o corpo, cérebro autônomo


que tem medo e se arregaça no ar, pula na água e já se foi. Perdido é o

corpo que não tem a voz de Deus dizendo:

bobinho feito de barro, não se amedronte, você pensa com o coração.

e me diga,

o que ele quer?


“ser desejo.”

2 monólogo manifesto.
“De onde vem o amor materno senão do instinto animal? Mãe

animalesca que cria na cria uma paixão ilimitada. E nasce o amar. É

instantâneo e todos sabem que é. E o que não condiz é apenas ideologia

daqueles que injustamente só querem ser o que não os pertencem. E o

que delito aqui é que a compaixão vem de um lugar intocável onde o céu

já é espaço lotado de cães salvadores, mas a Terra é inabitável de

conselhos prósperos de sabedoria.

Duvido que já me viram alegre de montão desde a morte de mamãe. E

duvido mais ainda que não se interessem pelo achado das mudanças a

que me submeti desde então.

Vocês são vadias que pregam o que próprias não fazem. Viciadas em

abusar.

Se me parte pelas costas saberão que nada acaba até o peito, o coração

doer…”

A colheita de arroz que está tão próxima quanto o seu gosto no meu

paladar. Como pode haver arroz em nossa língua se é no campo que deve

viver o arroz? Amor(?), não é vivo o seu grão e dá broto à sua natureza

em maior potencial? mas se extravasa da família como um ninguém para

a língua. É tudo influência dos meus. E se Deus que está tanto na minha

língua quanto na sua, não somos nós que o extravasamos, e ele como

quem já se deixou transmutar há tempo?


chance de se remediar: uma? duas? Essas foram caos formidável. E sua

pipoca estava em jogo? Amor. Ainda não citamos as minorias em derrota

abrupta. Disfarçamos sem evoluir, tudo em comunhão de desordem,

todo o preconceito como crianças brincalhonas, e uma comunhão… essa

comunidade que partilha o café, e o café com o seu cheiro singular. E o

café pelo mundo com o seu mesmo cheiro ainda cheio de interpretações.

O meu café é ralo. E não é com esse cheiro que a morte se assimila?

Morto, seu cheiro te incomoda tal qual o arrependimento tardio.

essa não é a questão: existe deus pecador.

Cravejo a palma em tinta no cartaz. Infância concomitância. Cravejo o

vermelho na palma. Agora, cravejo o vermelho na palma da mão. Desde

aquele pingente que se quebra sem cálcio, daquele portão que observa o

ultrapasse. Pois bem, sou agora o caminhão que adoece meus irmãos. Foi

rude a esperança, já não creio em mais nada. Sou esse pé no saco de

arroz obrigado a ser arroz.

Embarco já nessa noite que é turva, mas num tosco azul que precisa do

escuro para satisfazer o oculto. Não me contento em personificá-la pois

bonita como céu e Estrela D'alva que canta, não quero mesmo enchê-los
de sentimento que é humano, no entanto, pecaminosa sou eu na própria

promessa. O ser humano é um doloroso bicho e desnudo de atenção.

Embargam o calor e estendem nesse varal sem calor a calamidade

encharcada. Não se seca, não se cura. Apanha a calamidade a mãe e a

veste humilde sem o privilégio da espera. É ou não é no impulso que se

move as velhas? mas eu mesma não tenho o que jogar para o ar, e rugir

não irei, não pretendo. Não me visto no rugido porque não hei de ter

certeza, nessas trilhas, da minha capacidade, e por isso procuro o muro

que divide o sentimento do realismo. Sou realmente capaz? E me perco

nessa mesma fazenda que essas outras anteriores andarilhas

carimbaram seus fósseis na terra.

Na tua palma eu estou maior, Deus. Sou quente por natureza, sou

arcaica por semântica. Me movo, sim, diante do orquestral. Nunca fui em

uma orquestra, afinal, a arte se move diante da luz, e é preciso brilhar de

fato para achá-la.

(luz = arte).

É cômico dizer que estrelas não cabem na palma.


Estrela cadente que retrocede no céu é desejo que não quer ser desejo.

Temer o desejo fluindo é necessidade de estar na palma de Deus para se

recuperar. Pequena, sou estrela que retrocede se o passado não morre

comigo, mas se a Terra chamar, nada realmente parte, quando se tem

chama para revidar.

Eu digo que glória é estar em procissão, mas você resmunga porque

odeia a ideia do progresso, e odeia que progresso seja sinônimo de ser

mulher. Você corre para longe de nós logo quando estou pronta para te

mostrar o que venho planejando para você, então preciso te amarrar e

pedir educadamente para que não grite muito alto.

No Cosmos, luta de anjos rebobina a expectativa. Esperta sou eu neste

ranger da porta, e meus desejos já aparentes e estonteantes me comovem

mais que a lucidez da qual os raios solares sempre me concederam.

Tenho medo que meu filho vá crer nos absurdos que são pregados por

sua goela. Conduta sistêmica e colateral, isto é, a chacina particular da

vida que deve ser sentida. Isso não se ensina.

Meus vermes à passagem avalanche. Veemente protesto abrupto.

caso na decepção de ser limitada.


Dançando, e dançou como se nos bastássemos, como se não houvesse

culpados. Como se não bastasse ser filho, ser ateu e dono de MEU

protesto. Dançando, e dancei como se houvesse prazo. Como se o meu

barato, o doce de jaca estragado, o prato mal-lavado e as raízes!, raízes

de um bordel centenário fossem como esse estalo, esse crack no talo,

esse embaraço, esse gasto de cerâmica na reforma do banheiro como se

fossem: Meu Deus, por que tanta cerâmica?

Bato no peito e arrebato, um estalo de calor. Gemo seu nome nesta

instância, mon amour. Brota no útero, um calo, um menino sadio e

cobiçado pelos deuses, jorrado na praga como inquilino. Saído do escroto

como lindo, reverente aos náufragos, pede perdão, não pode levá-los.

Mas ao chegar em broto na terra de rupturas, percebe-se que é a flor e

não o que a beija, percebe-se que não vive, floresce, tem cheiro e se

estreita corcundo ao nascer para o sofrimento.

morte.

Quero saber qual é o muro que divide o crime do pecado. Não que o

fracasso seja sina para alguns, mas o destino dos mal-amados… Me

divirto com a crença. Nunca me ensinaram a ser amiga de Deus, mas


devota. Submissão não faz parte de mim, mas da minha inocência. No

entanto, com esforço, entendo o que querem dizer, porém obrigam-me a

duvidar da minha sanidade ou, então, da sua razão divina. Amigos não

escondem segredos nem crimes. Então por quê? porque é o fumo do meu

cigarro. Fumo essas incógnitas das quais não me interpreto mais.

Pensando em muros, por quê? Essa precedência nula de virtude que é a

separação não me encaixa, e engatinho na esperança de derrubá-los

sozinha nesta minha última noite que sonho. Lembro do muro de Berlin

e das perguntas como: "Quando o muro foi derrubado para que lado

correram?" Para o lado onde estavam suas famílias, eu penso.

Família é meu primogênito que só quem é deus sabe se seguirá minha

linhagem.

— Nasce depois de mim, menino Jesus, e antes, quem era tu?

bastou.

— Evani, Cordelius, eu era! Não sou mais, já abandonei; superei, porquê:

aos cacos, sou bastarda. Sem por onde correr a mão esvaziada, dei tudo
de mim!, até minha buceta eu dei pra não ser castigada. Digo cabisbaixa:

já basta descender escravos, escrava ter que ser à?

Sou dor, por ser mordida. Projeto ela em você; revido o peso. para a dor

é: pense.

— Evani sou, ops… Kaluanã já era! E no conjunto, pasme não, éramos!

PASME NÃO!!! eu era, não era, não? No seu melhor momento, o meu

sofrimento era, mas nunca foi tão bom quanto o prestes a ser o seu: ore.

Para a dor é: ore. imensamente. peça. sou. cardume imerso em euforia.

sou. pele por pele. sou. maldita lambança. só. ou. vida; vingança; melhor

lembrança pós-morte. ouvida sou sua. sinta isso. ore. digira com sabor.

pasme não!; digira.

“Torço todos os dias para que um gorila agarre em sua mandíbula e a

amasse.”

foi meu último pensamento.

3 — Tem certeza que é nessa espelunca, Cordelius? — Era a voz de Lucía.

Do carro, eu tinha certeza, havia pássaros, e até, talvez, uma cachoeira


próxima. Kaluanã e eu estávamos abraçados, suas mãos trêmulas. Os

olhos fechados com força.

não queria ver o que estava por vir.

O outro homem ainda estava no carro, no telefone. Este parecia intimo

de Cordélius, mas antipatizava com a outra.

— Longe de tudo! É perfeita, eu garanto. — Ele a respondeu.

— Ô, filho da puta! Anda logo aí e vem me ajudar com esses bixo. — Era

recíproco. A mulher também não gostava do pálido.

Ele se desculpa pelo telefone e o desliga. A porta do carro bate com força.

Resmungava coisas como “você não tem esse direito” “você é só a minha

cunhada” “não te dei esse direito” e a não querida — de grosso modo —,

com seus calaabocacalaabocacalaaboca. Foi tenso e durou ainda uns

instantes de vida.

O porta-malas foi aberto. De lá, tirou uma besta. A claridade das luzes

artificiais ao pé da estrada me atingiu como um gongo ao pé da orelha.

Meus pés e mãos certamente amarrados por um gorila, e a boca


amordaçada. Os dois homens levantaram Kaluanã que permanecia com

os olhos fechados, procurando forças, era o que eu sentia. Eu tentei me

soltar da mulher, me esperneando, mas minha perna doía tanto! Olhei

para baixo e vi minha canela direita coberta por uma faixa enrolada e

levemente manchada de vermelho. Memórias vieram em vários flashs,

um show de luzes trágico. Tentei lembrar de forma devida, mas o colapso

do passado com o tiro de acordar prisioneira fazia o meu cérebro se

contorcer em convulsão.

E em como a linguagem vem com o tempo, as cores vieram. Nesse meu

em pé mais desajeitado, a minha postura mais cozida e moída, fui fervida

viva até a pele descolar, sinto que isso é ser traída pela vida.

Mas e se a vida não se importar? E se Deus NÃO TIVER

CORAGEM DE ADMITIR QUE É

UMA PIADA?

Era noite.
Caminhamos à fachada do lar do Diabo. Cores pálidas me fizeram

vomitar. Madame Satã me soca e ordena: aprenda a voar antes de

morrer. Minha cabeça doía, queria que o calor do asfalto me consumisse,

então pelo menos não seriam os brancos. Fomos levados para dentro,

subimos uma escada estreita e desconfortável, senti uma arma na cintura

do branquelo. Já no segundo andar, ele abre um compartimento no teto

da casa e desce uma escada dobradiça. A mulher me empurra de cara na

escadinha, tive tempo para rapidamente olhar para a escuridão que alí

em cima se acumulava. Ela mandou subir, mas minhas mãos estavam

amarradas. Arrastando o corpo naquela madeira comida, lamentava por

minha perna que choramingava. Falhei num piscar estreito e decolei

para trás como míssil que não para até a física material se opor. Minhas

costas se esmigalharam no azulejo de mandala, Cordelius tentou me

ajudar, mas Lucia torceu sua mão. Precisei me levantar antes de morrer

naquele piso. Precisei subir as escadas antes de morrer naquele dia,

precisei orar antes de morrer faminta e dormir abraçada com Kaluanã

antes de morrer sozinha.

Era dia.

Amanhecemos no escuro. Como se fosse impossível não haver sol, mas

foi. Encorajava os meus próprios nervos a reagir: trabalhem, trabalhem,


trabalhem, colônia de células! e como grosseira era a minha atitude…

Minha perna doía como a vida de um sem teto. A tíbia chorando, e eu só

podia lamentar, dizer à tíbia que era uma pena, dizer à tíbia que Deus

sabe o que faz, dizer à tíbia para manter a calma, dizer a tíbia para

segurar a minha mão, dizer a tíbia que nada iria acontecer, dizer a tíbia

que tudo passa, dizer a tíbia que tudo passa, menos o fim.

Quero mesmo um alívio, mas se der, um castigo menor. Culpo o meu

colapso por tudo que me orbita, e nem disfarço. Quanta influência essa,

minha sobre os planetas peões, indefine: quem sou se não sou também

um peão. O Astro Gordo. eu atraí tudo isso. Inaceitável é o sentimento

de querer um castigo menor, como se aceitar o mal fosse tão fácil para

mim. E como destrincho os tecidos para descobrir o que é mal: o bem

não pune, ou pune?”

a justiça pune.

Inaceitável é acreditar que o ferimento, quando é no tempo, se cura.

exemplo fisico: ruptura. rachadura, funebre ira, arte que se descostura,

ops, que descosturam. Eu mesma não tenho fim, concomitância pura.

mamãe teve, sem armadura. Moço sem termostato explodiu sem ternura.
Homem,

retumba nessa crua vida que não carrega sinônimo de realidade vivida.

Serei tua morte cala matança.

Abre com ousadia a portilha, um baque que ecoa a madeira dura no

assoalho.

Lá me encararam os chifres cintilantes da besta, e talvez, por isso, confiei

meu tempo a você, Cordelius.

Você olhou diretamente para a minha nudez, eu me escondi atrás de

caixas, barris, talvez, fantasias, santos, revistas de crochê e retratos. Pura

preservação.

Teu corpo sobressaiu como lagarta da terra ( hoje a lembrança de

pequenos insetos me faz mais amena). Escorei minhas mãos sobre as

paredes úmidas daquele sótão, num canto, numa dobradiça. Te vi se

aproximar, tomando passos de avestruz. Ave grande e gulosa. Um feixe

de luz vindo do andar debaixo de repente decola em seu rosto, consigo

sentir o brilho em seus olhos irritar a minha pele. Eu tento me fundir

com as paredes, tento me recolocar no espaço, tento ser menos gente,

mas não tão menos para não virar bicho e ser maltratada. Eu sou como
você, então me deixe ir, livre de mim e Kaluanã toda essa falta de amor

que duas crianças não merecem. tenha piedade. seja anjo. Eu torço para

que você seja um anjo. Eu torço para que me deixe fugir. Eu torço para

que continue orando pelas menores peças. Eu torço para que sua fé

ainda esteja aí. Eu torço para que Deus seja justiça e que a vida não

sucumba aqui e agora.


você me maltratou mesmo assim, me viu como uma cachorra e me

estuprou. Eu tive que fingir que gostava, porque você disse que atiraria

na minha cabeça e daria meus miolos aos porcos.

“Não me olhe assim”

“Não gosto desse olhar”

“Eu amo você, Evani”


“Tão linda…”

O preço de viver pode ser osso que não se roe. Eu tento juntar minhas

entranhas para dentro da minha barriga e recosturá-la, parece que

alguém me acordou. Minhas orelhas arqueadas estão esperando pelo

abate, meus olhos de peixe prevê o pior. minhas entranhas continuam se

esvaziando, uma cachoeira de vida própria. Eu tento me repor.

Colocando-as para dentro, mas meu estômago é um olho de furacão e as

reprime. Sentada, me agacho com o peito contra a madeira, ponho meus

antebraços apoiados no chão em minha frente e tento puxar tudo para

dentro de mim, como quem tem o desejo de enxugar a água do mar.

Fadigante, minha respiração se instabiliza. Exerço o mesmo ttabalho

toda vez, vou maus rápido, passa a passo, me agacho, faço uma rede com

meus membros, arrastando tudo para dentro de uma vez, e da mesma

forma que entram, também saem, se vomitando, e eu grito com a dor das

linhas do buraco se rompendo. Mais uma vez, chorando de agonia, me

agacho, faço uma rede com meus membros, ponho tudo para dentro de

uma vez, deixando um rastro de líquido corrosivo, o rastro do odor que

carrego, me deito num grunhido, sem precedências, com o bucho para

cima, esperando que nada se expila novamente, sinto meu interior se

remexendo, deixando um vazio desconfortável dentro de mim, já não


sinto meus nutrientes me dando vida, estão buscando viver por eles,

abandonam o corpo inútil. Sou uma hospedeira da ciência que se rebela.

Os humanos se acham donos do próprio corpo. É uma história dos

diabos: eles que nos dominam. Coleciono caules de árvores, não corro,

não me exercito, para controlar a temperatura do meu corpo. Como um

cacto, sou. Me pergunte! Me pergunte! eu digo: Antes me mato, mas não

desperdiço o meu suor. Colho folhas de menta para cultivo, reparando o

luto de uma vida que não volta. Mãe é um bicho esperto: eu tento em

vão. Um ensinamento: “A ferida quando é no tempo, não se cura.” Em

parceria com o fim, só então boto a mão no feijão fervendo para

exclamar que essa é a certeza singular que todos devemos ter. Apenas me

esforço para me manter inteira, meus órgãos não aguentam o meu odor

de peixe. Com os olhos arregalados eu prevejo o pior. Olho para o lado e

vejo minha máquina de costura abandonada, em cima da escrivaninha.

Me arrasto, sem meu talento sobrenatural de explorar o mundo com o

poder de uma perna saudável. Me apoio sobre a cabeceira com

dificuldade, sentindo uma dor do caralho. Um tórax aberto dói mais que

um coração estourado. Me debruço sobre a máquina, sinto minhas

lombrigas se debatendo ao escorrerem pelas pernas abatidas. sinto tudo

me esvaziando novamente, buscando refugio. Busco eu a sobrevivência,

o suficiente me basta. Mórbida, respirando ardido pela boca,

violentamente derrubo tudo ao lado da máquina com um movimento


etéreo dos braços, apoio minhas costas curvadas sobre a pequena mesa e

arrumo de maneira desajeitada a posição de minha barriga descosturada

debaixo da agulha, me encaixando perfeitamente entre a base e a

posterior na História das Deplorações. Minha cabeça cai para trás, sem

apoio, observo o sótão do mundo invertido. Penso se tudo ficaria melhor

se meus pés grudassem no telhado e meu cérebro realmente seguisse

minhas ordens. Penso se se eu vivesse num mundo invertido eu andaria

pelas nuvens e descobriria se elas realmente são feitas de algodão, que

com a companhia do vento, reprova a planta e voa para o céu para ter

algum sentido além de censurar o corpo humano. Fecho os olhos com

pesar, minhas lágrimas não flutuam como deveriam, e derrubo sobre a

esperança as cinco, seis, sete toneladas da realidade. No mundo

invertido, abocanho nas alturas uma cumulonimbus e a quebra da

rigidez dielétrica nessa descarga frisson me carrega de uma maneira

curiosa. Não sofremos tanto no clímax do cúmulo, mas sim quando o

sofrimento rouba nosso rosto, você me disse uma vez. Foi quando

percebi que o que você via ao me ver não era sua esposa, mas ali, nesse

rosto entrecortado por fios de cabelo quebradiços, se encontrava seu

sofrimento, não é? Eu me pergunto quem sou eu ao me olhar no espelho.

Eu penso que hoje meus pais me veriam como um inseto gigante,

grotesco, em seu auge, mutado, asqueroso e peçonho. Sou peçonha no

meu mais habitual contexto. Talvez, por isso, confiei meu tempo a você,
Cordelius. Nos identificamos, aracnídeos, aranhescando em teia numa

conjunção visivelmente caricata de um futuro crime.

Você também pode gostar