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Nietzsche e A Critica Ao Historicismo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

MÁRCIO JOSÉ SILVA LIMA

NIETZSCHE E A CRÍTICA AO HISTORICISMO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA


RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E VIDA NA SEGUNDA CONSIDERAÇÃO
INTEMPESTIVA

JOÃO PESSOA – PB
2012
MÁRCIO JOSÉ SILVA LIMA

NIETZSCHE E A CRÍTICA AO HISTORICISMO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA


RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E VIDA NA SEGUNDA CONSIDERAÇÃO
INTEMPESTIVA

Dissertação apresentada ao programa de Pós-


Graduação em Filosofia, do centro de Ciências
Humanas Letras e Artes da Universidade Federal da
Paraíba – UFPB, em cumprimento às exigências
para obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Robson Costa Cordeiro.

JOÃO PESSOA – PB
2012
L732n Lima, Márcio José Silva.
Nietzsche e a crítica ao historicismo: uma análise a partir da
relação entre história e vida na segunda consideração
intempestiva / Márcio José Silva Lima.- João Pessoa, 2012.
89f.
Orientador: Robson Costa Cordeiro
Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCHLA
1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 – crítica e
interpretação. 2. Filosofia. 3. História. 4. Historicismo. 5. Vida.
6. Força plástica.

UFPB/BC CDU: 1(043)


MÁRCIO JOSÉ SILVA LIMA

NIETZSCHE E A CRÍTICA AO HISTORICISMO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA


RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E VIDA NA SEGUNDA CONSIDERAÇÃO
INTEMPESTIVA

Avaliado em _____/____/____
Nota/conceito _____________

Banca examinadora

_________________________________________
Dr. Robson Costa Cordeiro
Orientador

_________________________________________
Dr. Miguel Antonio do Nascimento
Membro interno

_________________________________________
Dr. Stefan Vasilev Krastanov
Membro externo
Dedicado a minha família: pai, mãe,
irmãos, esposa, filhas, cunhadas e
cunhados. Ao meu orientador, aos
professores e amigos por ter me
auxiliado na execução desta pesquisa.
AGRADECIMENTOS

A minha esposa Ana Maria Marques Vieira, minhas filhas Bárbara Correia
Lima e Bruna Maria Marques Lima, aos meus pais Sebastião Ferreira de Lima
e Maria das Graças Silva Lima e aos meus irmãos Maricélia Silva Lima, José
Marcelo Silva Lima e Marenilda Silva Lima pela admiração, o incentivo e a
dedicação.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Filosofia em especial ao


professor Robson Costa Cordeiro por ter me iniciado na filosofia de Nietzsche,
pela orientação e principalmente pela amizade; ao professor Bartolomeu Leite
da Silva pelo convívio acadêmico, a amizade e o aprendizado; aos professores
Miguel Antonio do Nascimento e Sérgio Luís Persch pelas importantes
observações e sugestões durante a qualificação e ao professor Stefan Vasilev
Krastanov por ter participado da banca, contribuindo com sua experiência e
conhecimento.

Aos funcionários do PPGFIL, sobretudo, Chico, Paulo e Fátima pelo apoio nos
problemas de ordens burocráticas. Ao coordenador professor Anderson D’arc
pelas aulas e pelo auxílio sempre quando necessário. Aos funcionários das
bibliotecas do SENAC, do Centro de Educação – UFPB e da FUNESC por
conservar um lugar tão aconchegante, calmo e sereno.

Aos colegas da UFPB, principalmente, Aurenívia Gomes da Costa, Cláudio


Vasconcelos dos Santos, Josimar R. Herculano, Felix Antonio de Medeiros
Filho, Gustavo de Castro, Luciano Pereira da Silva, Marco de Holanda, Neilton
de Oliveira Silva, Francialisson Berto C. Diniz, Simone de Oliveira Beltrão
Leite e Rodolfo Ramalho de Souza, pelos momentos de discussão e
principalmente pela amizade.

Aos demais amigos, que de forma direta ou indireta, colaboraram com meus
estudos, em especial aos amigos Luís Felipe, Jarcelma Clícia, Cláudio Lima e
Adelmo Santos pelo apoio e colaboração nos momentos em que deles precisei.
À CAPES-REUNI pela concessão da bolsa de estudos, o que acabou por
possibilitar o financiamento e viabilizar o melhor desenvolvimento da pesquisa
através da aquisição de livros, participação em encontros dentro e fora do
Estado, etc.
“Até hoje Nietzsche foi ou bem
elogiado e imitado ou bem insultado e
explorado”

Martin Heidegger
RESUMO

O presente trabalho tem por finalidade analisar, através de uma leitura interpretativa, a crítica
nietzschiana ao historicismo a partir da relação entre história e vida. O historicismo é
compreendido nesta dissertação como o uso exagerado do conhecimento histórico, a crença
em uma filosofia da história conforme apresentou o hegelianismo e a objetividade da história
enquanto ciência moderna. Segundo Nietzsche, a forma como se concebia a história no século
XIX, tornava a vida doente e degenerada. O excesso de cultura histórica retirava do homem o
poder próprio da criação e lhe restringia a mera reprodução do passado. O passado era visto
como um modelo a ser copiado, pois, influenciado pela filosofia da história que apontava para
um devir determinado por uma entidade metafísica e o cientificismo que concebia a história
como uma ciência que descreve com exatidão o passado, o homem tornou-se incapaz de criar
e passou apenas a viver a história dos outros, a história daqueles que já foram. A humanidade
tornou-se velha, caduca, sem vitalidade. Neste contexto, em sua Segunda Intempestiva, o
filósofo alemão aponta para aquilo que seria uma utilização proveitosa da história a serviço da
vida. Refletindo sua utilidade e sua desvantagem, o pensador direciona os rumos da história
para um outro sentido. Uma nova maneira de se conceber a história como atividade criativa
em extrema consonância com a vida.

PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche, História, Historicismo, Vida, Força Plástica.


ABSTRACT

The present work has for purpose analyze through a interpretative reading, the critical of the
Nietzsche to the historicism starting from the relationship between history and life. The
historicism is understood in this dissertation as the exaggerating use of the historical
knowledge, the faith in a philosophy of the history as it presented the Hegelianism and the
objectivity of the history while modern science. According to Nietzsche, the way the story
was conceived in the nineteenth century, it turned the life sick and degenerate. The excess of
historical culture removed the power of man's own creation and it restricted the mere
reproduction of the past. The past was seen as a model to be copied, therefore, influenced by
the philosophy of history that pointed to a becoming by an entity determined by metaphysics
and scientism which conceived of history as a science that accurately describes the past, man
has become incapable create and passed only to live the history of others, the history of those
that had died. Humanity has become old, obsolete, without vitality. In this context, on his
Second Untimely, the German philosopher appears for that that would be a profitable use of
the history to service of the life. Reflecting her usefulness and her disadvantage, the thinker
addresses the directions of the history for another sense. A new way to conceive the history as
creative activity in extreme consonance with the life.

KEY WORDS: Nietzsche, History, Historicism, Life, Plastic Forces.


SUMÁRIO:

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11
1 A INFLUÊNCIA DE JACOB BURCKHARDT NA CRÍTICA NIETZSCHIANA AO
HISTORICISMO ...................................................................................................................... 14
1.1 O encontro com Burckhardt ............................................................................................... 14
1.2 A filosofia da história e o seu progresso............................................................................. 15
1.3 O ideal de grandeza ............................................................................................................ 17
1.4 A arte como criação ............................................................................................................ 21
1.5 O legado de Burckhardt ...................................................................................................... 24
2 A CRÍTICA AO HISTORICISMO ....................................................................................... 27
2.1.1 Precedentes gerais da filosofia da história em Hegel ...................................................... 27
2.1.2 O olhar nietzschiano ........................................................................................................ 32
2.2 A história como ciência na Modernidade ........................................................................... 40
2.2.1 Sobre a objetividade e a cientificidade da história .......................................................... 40
2.2.2 A posição de Nietzsche sobre a história enquanto ciência .............................................. 45
3 DA RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E VIDA ..................................................................... 53
3.1 Os perigos da história para uma época: o excesso de cultura histórica .............................. 53
3.2 Sobre as três espécies de história ........................................................................................ 65
3.2.1 A história monumental .................................................................................................... 66
3.2.2 A história antiquária ........................................................................................................ 69
3.2.3 A história crítica .............................................................................................................. 72
3.2.4 Considerações acerca das três espécies de história ......................................................... 75
3.3 Esquecimento, memória e força plástica ............................................................................ 77
CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 84
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 87
INTRODUÇÃO

A Segunda Consideração Intempestiva configura o texto mais longo e consistente


daquilo que concerne à crítica nietzschiana à historiografia de sua época. Escrito em 1873 e
publicado em 1874, o texto traz à tona uma nova percepção e uma nova forma de se conceber
a história. Nele Nietzsche afirma que pela primeira vez a história fora tratada como uma
doença (NIETZSCHE, 2009, p. 64). Tanto é que a princípio o texto deveria ser chamado de
“A Doença Histórica”, mas talvez por indicação do seu editor, fora lançado com o título de
Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben (Da Utilidade e Desvantagem da
História Para a Vida).
O texto surge como a segunda das quatro extemporâneas, conjunto de obras pela qual
Nietzsche após publicar o Nascimento da Tragédia, quis levar a cabo toda sua crítica dirigida
à sociedade da época (SOBRINHO, 2005, p. 13). Tratando da história dentro do âmbito da
filosofia, Nietzsche traça duras críticas às diversas correntes e abordagens historiográficas de
seu tempo, especialmente ao hegelianismo e à cientificidade do conhecimento histórico.
Paralelamente, sua crítica também é endereçada ao próprio excesso de “cultura histórica”
compreendida aqui como historicismo. Para Eugen Fink, “trata-se de uma crítica do sentido
histórico como sinal de uma decadência cultural” (FINK, 1983, p. 38).
Segundo Reis, Nietzsche foi um dos primeiros pensadores a recusar a tirania da razão
sobre o sentido histórico (REIS, 2005, p. 42). A crença e os valores em que o homem
moderno estava inserido, prefigurava para Nietzsche, uma cultura doente. Uma cultura
impregnada de cristianismo, pessimismo, ciência, racionalismo e que ainda se autodestruia
pelo excesso histórico. A crença, a valoração moral e o historicismo enquanto excesso de
cultura histórica foi, pelo filósofo alemão, tomado como sintoma de uma decadência que já
aparecera desde a Grécia socrático-platônica. É neste ambiente que o esforço de Nietzsche, a
partir de O Nascimento da Tragédia, foi concentrado na tentativa de buscar a restituição da
“Vida”1 que passou a se degenerar a partir do platonismo.

1
A vida tratada aqui não é algo no sentido meramente fisiológico ou biológico. Ela é compreendida como aquilo
que surge a partir da dimensão não-histórica do acontecer. Ou seja, vida é aquilo que surge diante do que ainda
não existiu, do que ainda não é histórico e que proporciona a criação, a possibilidade para o criar (história é
vida). A vida seria então, esse todo temporal que em seu eterno devir, através do homem, lembra e esquece, cria
e destrói. Isso no âmbito da Segunda Intempestiva, porque analisando as obras posteriores, podemos
compreender vida como Vontade de Poder. Assim sendo, a Vontade de Poder enquanto vida seria o poder
criador que de súbito se faz presente, uma afecção que arrebata para um possível modo de ser. Em outras
palavras, a Vontade de Poder é uma possibilidade, uma perspectiva de vida que aparece e norteia o homem em
direção a um sentido. Contudo, por termos nos centrado na Segunda Intempestiva e o conceito de Vontade de
Poder ter sido desenvolvido posteriormente, evitamos utilizá-lo nesta pesquisa.

11
Já para o filósofo italiano Gianni Vattimo, a Segunda Consideração Intempestiva
apresenta-se genuinamente como a primeira crítica ao historicismo do século XIX. Para ele, a
crítica direcionou-se não tanto à forma metafísica hegeliana de se compreender a história
como um devir dialético, mas, sobretudo, à própria historiografia enquanto ciência tão
caracterizada na educação do homem oitocentista (VATTIMO, 1990, p. 28). De fato, como já
foi dito antes, o próprio Nietzsche ao escrever sua obra Ecce Homo, declarou que na Segunda
Intempestiva o sentido histórico pela primeira vez fora reconhecido como uma doença.
Todavia, Vattimo não deixa de enfatizar a crítica nietzschiana em relação ao hegelianismo e
ao cristianismo (VATTIMO, 1990, p. 28).
Ao criticar as historiografias existentes em sua época, Nietzsche abraçou o
pensamento de seu amigo Jacob Burckhardt e a partir dele construiu sua própria maneira de
conceber a história. Buscaremos evidenciar no primeiro capítulo, que influenciado e inspirado
pela forma como o amigo pensador percebia a história, Nietzsche deixa transbordar seu
pensamento para daí em diante elaborar sua própria forma de compreender a utilidade e
desvantagem da história para a vida. Utilizando-se de uma apropriação produtiva do
pensamento de Burckhardt, nosso filósofo passa a criar – não simplesmente reproduzindo o
mestre – sua forma peculiar de perceber como a história poderia configurar um bem à serviço
da vida.
No segundo capítulo, mostraremos que além de criticar a história enquanto um
excesso de conhecimento, enquanto um exacerbamento de cultura histórica, será também
tema central na crítica nietzschiana, a filosofia da história apresentada pelo idealismo
hegeliano, bem como a história enquanto disciplina científica aos moldes da ciência moderna.
Em outras palavras, Nietzsche além de criticar a historiografia científica que influenciada pelo
positivismo buscava descrever com precisão os eventos passados, criticou também o
hegelianismo por apresentar uma teleologia conformista em relação ao presente, um modelo
cuja finalidade estaria submetida à realização do Espírito Absoluto frente ao Estado,
desdobrando tais acontecimentos no fim da história.
Assim, tanto o hegelianismo com o seu providencialismo, seu progresso e seu fim da
história, quanto o cientificismo histórico positivista são duas faces de uma mesma moeda em
que Nietzsche não economiza esforços para criticar em sua Segunda Intempestiva. Para
Nietzsche, falar de cultura histórica no século XIX era falar em exacerbamento, em excesso,
em exagero de conhecimento sobre o passado. Tal exagero tanto tinha sido construído pela
filosofia da história hegeliana quanto pela pretensão de se elevar a história ao patamar de uma
disciplina científica exata, tal como era tratada a Física e a Matemática.

12
A este exacerbamento de cultura histórica, a este excesso de conhecimento do passado,
Nietzsche vai chamar doença histórica. A cultura no século XIX, aos olhos do filósofo
alemão estava doente, em decadência, ou seja, aos poucos se degenerava. Como solução
Nietzsche apresenta o esquecimento. Trataremos deste tema no terceiro capítulo mostrando
que é o poder esquecer que vai tornar a cultura histórica mais salutar. Haveria então de se
tomar uma justa medida entre o lembrar e o esquecer, ou seja, era preciso saber lembrar e
saber esquecer na medida certa. Esta medida seria proporcionada por uma força ativa,
expansiva e criadora que Nietzsche destacou tanto na Segunda Extemporânea quanto na
Genealogia da Moral e que ele denominou força plástica. A história acabaria por se tornar
uma utilidade para a vida. Ela desoneraria o fardo do passado que o homem é condenado a
carregar e possibilitaria a criação de um novo tempo em que haveria o transbordamento da
vida. A vida vista dessa forma seria representada não cientificamente como queria o
cientificismo, mas modelada segundo a arte criativa da força plástica.
Neste contexto, veremos que a crítica nietzschiana à cultura histórica insere-se em um
recorte temporal que é próprio da Modernidade, para ser mais preciso, do século XIX. Neste
período, o homem moderno apela para aquilo que é próprio da “objetividade”, ou seja, a
submissão do passado ao presente por meio da passividade historiográfica, do mito da
neutralidade do historiador frente ao evento passado e do mito da verdade única revelada pelo
trabalho científico-metodológico do historiador. Na verdade tudo acontece como se o
historiador tomasse para ele “o dever de ser juiz das grandes ações, das grandes
individualidades do passado, como se o fato de ter chegado tarde lhe desse alguma
superioridade sem ter que provar nada mais” (LEFRANC, 2008, p. 290).
Seria preciso, pois, uma história capaz de criar. Tal história deveria compreender uma
luta contra o determinismo, o reducionismo, o destino inescapável, o mecanicismo e a direção
única do viver. Para que a história fosse útil à vida, ela deveria lutar contra o sentido histórico,
a história universal e contra os eventos que só servem para serem copiados (REIS, 2005. p.
44). Para possibilitar a criação artística, a história deveria defender o direito à vida, não se
limitar pela tradição e seguir os instintos, a imaginação, a possibilidade de criar. Esta foi a
proposta de Nietzsche ao longo da Segunda Intempestiva, apresentar como a história deveria
ser tomada como um propósito para tornar saudável a vida. É com base neste pensamento e
buscando interpretar sua filosofia que vamos procurar expor de modo claro e sucinto neste
trabalho dissertativo aquilo que Nietzsche compreendeu como a “utilidade e a desvantagem
da história para a vida”.

13
1 A INFLUÊNCIA DE JACOB BURCKHARDT NA CRÍTICA NIETZSCHIANA AO
HISTORICISMO

1.1 O encontro com Burckhardt

Em 1869, aos vinte e quatro anos de idade, o jovem Nietzsche chega à Universidade
de Basiléia para ser professor de filologia clássica. Lá encontra o professor Jacob Burckhardt
por quem tem grande admiração e passa a assistir suas aulas sobre o estudo da história. Em
uma de suas cartas endereçadas a Von Geersdorff em 1870, Nietzsche fala de sua admiração
pelo mestre historiador acreditando ser o único, entre os seus alunos, a entender
verdadeiramente a sua linha de pensamento. E vai mais adiante, afirma que pela primeira vez
gostou realmente de uma palestra e que aquela era o tipo de palestra que ele seria capaz de
ministrar quando estivesse mais maduro (NIETZSCHE apud DRU, 2003, p. 83).
Segundo Peter Burke, a concepção burckhardtiana de história era totalmente
divergente da maioria dos seus contemporâneos. Burckhardt rejeitava tanto o hegelianismo
quanto o positivismo que atribuía à história o caráter de ciência no sentido moderno. Sobre a
filosofia da história hegeliana, ensinava aos seus alunos que suas aulas sobre o estudo da
história estavam dissociadas de “qualquer filosofia da história”. Sendo para ele, tal filosofia
um contra-senso, uma vez que a história era a-filosófica e a filosofia a-histórica (BURKE,
2009, p. 19-20). Ou seja, em filosofia não há historicidade, no sentido do pensamento ser
sempre permanente, e em história não há filosofia no sentido de não existir nela uma filosofia
da história aos moldes do hegelianismo.
Quanto à ideia de uma história aos moldes da ciência moderna, Burckhardt discordava,
pois para ele a história deveria ser vista como uma arte. A história era uma modalidade
literária equivalente à poesia, pois era uma arte produzida para agradar o espírito. Por isso,
procurava no passado aquilo que de mais interessante este pudesse lhe oferecer. Não gostava
de acumular fatos, pois para ele, os fatos necessários ao homem são aqueles que traduzem
uma ideia de grandeza ou que marcaram de forma extraordinária uma época (BURKE, 2009,
p. 19-20). A história para Burckhardt, assim como para Nietzsche, deveria ser caracterizada
por uma força magistral que estivesse a serviço da vida e que fosse capaz de gerar grandes
homens.
A análise da Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e desvantagem da
história para a vida e das aulas proferida por Burckhardt em Basiléia, mais tarde editada com
o título Reflexões sobre a história, permite-nos observar a influência de Burckhardt no

14
pensamento de Nietzsche, sobretudo, no que concerne a pontos chaves como: a ideia de
grandeza, a inexistência de grandes homens na modernidade, a influência da arte no processo
de criação e as críticas ao historicismo e ao progresso da história. São os temas proferidos por
Burckhardt em suas aulas que fizeram o jovem Nietzsche ruminá-las e comentá-las a sua
maneira ao falar da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida.

1.2 A filosofia da história e o seu progresso

Mesmo sendo de uma época em que a filosofia da história e o cientificismo histórico


estavam em alta, Burckhardt esteve pouco à vontade com tais acontecimentos. Em sua obra
póstuma Reflexões Sobre a História, editada a partir dos escritos para as suas aulas em
Basiléia, Burckhardt descreve a filosofia da história com as seguintes palavras:

No concernente às qualidades características da filosofia histórica vigente


até agora, cumpre-nos observar que ela seguia a História e fornecia-nos
visões longitudinais dos acontecimentos, em outras palavras: ela seguia um
critério cronológico. Desta maneira tentava elaborar um programa geral da
evolução mundial, na maioria das vezes sob um ponto de vista
extremamente otimista (BURCKHARDT, 1961, p. 10-11).

Segundo Burckhardt, Hegel afirmara a razão como o único pensamento acrescentado


pela filosofia a comandar o mundo. Concluía-se deste pensamento que o resultado da história
universal deveria ser o reconhecimento de um processo evolutivo do Espírito em todo o
mundo. Hegel desenvolveu a ideia segundo a qual, a história universal seria formada a partir
de um processo evolutivo do espírito que chega a consciência plena de sua própria
significação. Dessa forma, seria possível perceber um progresso que tinha como finalidade,
levar a história ao processo de liberdade através dos tempos; pois no Oriente, a liberdade
pertencia a um só, o rei, na Grécia clássica, a poucos, os cidadãos, e, nos tempos modernos, a
todos, pois todos se tornaram livres (NÓBREGA, 2007, p. 70).
Entretanto, a ironia de Burckhardt se faz presente ao afirmar que “não fomos iniciados
nos desígnios da sabedoria eterna e, portanto não os conhecemos. Esta audaz antecipação de
um plano mundial conduz a erros por partir de premissas errôneas” (BURCKHARDT, 1961,
p. 11). Para Burckhardt, a ideia de um Espírito Absoluto determinando a história universal,
não passa de premissas equivocadas que não são capazes de convencer por si só. Este era para
ele, o perigo de toda e qualquer filosofia da história cuja estrutura estivesse posta
cronologicamente: degenerar-se em uma visão universal da história desconsiderando suas
15
particularidades, como se a história fosse sempre homogênea e limitada aos acontecimentos
em torno do Estado.
Assim como Nietzsche, Burckhardt acreditava que a história estava em constante
reativação. Por isso, não existiam retas que a conduzissem para um bem ou para um mal.
Consequentemente, não havia um fim determinando a história, pois ela se auto-regula sem
que haja a presença de leis externas que a determinem. Para Lima:

Burckhardt descrê que a história tenha leis ou esteja investida de um fim,


mas, para ele, tampouco se confunde com uma arena em que se
entredevoram lobos que falam. Em vez de ser isso ou aquilo, a História é a
residência de um animal contraditório, capaz de atrocidades, de promover e
de suportar dores incríveis e de criação (LIMA, 2003, p. 14).

Segundo Burckhardt, “ao passo que os filósofos da história estão presos à especulação
em torno às origens e devem, portanto, falar também do futuro, nós podemos dispensar essa
teoria das origens, desligando-nos também, consequentemente das teorias finais, da
escatologia” (BURCKHARDT, 1961, p. 12). Por conseguinte, seu interesse parece não ter
sido o da especulação relacionada a uma determinada filosofia da história. Sua motivação
maior foi analisar o ser humano a partir de suas atribuições diárias, “tal como ele é, sempre foi
e será”. Este aspecto do pensamento de Burckhardt foi de perto acompanhado pelo jovem
Nietzsche que fez de sua Segunda Consideração Intempestiva um verdadeiro campo de
batalha contra a cientificidade da história e o hegelianismo que com sua filosofia da história
buscou explicar o processo histórico mediante a realização do Espírito Absoluto, ignorando o
homem em sua peculiaridade.
Sobre o que concerne à ideia de progresso, Burckhardt diz – em suas Reflexões sobre a
história – que existe em nós uma falsa crença em acreditar que uma determinada época seja
mais importante que outra. Ou seja, a crença de que a época atual seja “melhor” que as
passadas. Isto acontece pelo fato de sermos egoístas e de nossos anseios pelo conforto nos
fazer enaltecer as forças e os homens de épocas passadas como os responsáveis pelo nosso
conforto atual. Perceber a época atual como a melhor, concebê-la como uma época construída
progressivamente e que as épocas anteriores foram inferiores à nossa é tão somente uma falsa
crença determinada por nossa vontade de sermos melhores, pois:

Procedemos como se o mundo e a História existisse meramente em função


de nossas sagradas pessoas, assim, cada um de nós imagina que a sua época
é o apogeu de todas as épocas precedentes e não, como acontece realmente,
uma de inúmeras ondas que se sucedem no tempo. [...] Devido ao fato da

16
vida da humanidade constituir um todo indivisível, as sua oscilações
temporárias e locais só podem ser consideradas “felizes” ou “infelizes”,
“boas” ou “más” por nossa capacidade limitada de julgar os acontecimentos
que, na verdade, procedem de uma necessidade superior e inexorável
(BURCKHARDT, 1961, p. 261-262).

Nietzsche parece corroborar com este pensamento, pois ao longo da Segunda


Consideração Intempestiva, sua crítica ao ideal de progresso tal como preconizavam os
positivistas se torna recorrente. Mais tarde em O Anticristo, o filósofo reforça sua crítica
alegando que:

A humanidade não representa um desenvolvimento para melhor ou mais


forte ou mais elevado, do modo como hoje se acredita. O “progresso” é
apenas uma idéia moderna, ou seja, uma ideia errada. O europeu de hoje
permanece em seu valor muito abaixo do europeu da renascença; mais
desenvolvimento não significa absolutamente, por alguma necessidade,
elevação, aumento, fortalecimento (NIETZSCHE, 2007, p. 11).

Assim sendo, a ideia de progresso torna-se vazia e diz respeito apenas ao nosso ponto
de vista. Somos nós com nosso modo próprio de ver o mundo, permeado pela cultura e pelo
pensamento de nossa época que fazemos conjecturas, qualificando nosso tempo como tendo
progredido. É certo que há mudanças de uma era para outra, pois isto já é próprio da natureza
histórica, entretanto, tal vicissitude não implica necessariamente progresso.

1.3 O ideal de grandeza

Uma ideia sempre recorrente no pensamento de Burckhardt e que é muito encontrada


nos escritos de Nietzsche – principalmente na Segunda Intempestiva – é o ideal de grandeza.
Em Reflexões Sobre a História, Burckhardt nos diz que a noção de grandeza nos é
indispensável, por isso não devemos ser privados dela. Mas, o que nos faz procurar este ideal?
Qual o seu significado para o ser humano? O que torna um homem grande?
Segundo Burckhardt, nossas respostas para estas perguntas podem variar de acordo
com a nossa idade ou de acordo com a soma de conhecimentos que tivermos adquirido ao
longo da vida. Isso ocorre devido a nossa pequenez individual para julgar a grandeza, pois “a
grandeza é tudo aquilo que nós não somos” (BURCKHARDT, 1961, p. 212). Dessa forma,
movido pela necessidade e pelo sentimento, construímos arquétipos de grandeza para que
possamos enfim saciar nossa pequenez. Assim sendo “tendemos, fatalmente, a considerar
grandes os indivíduos, mortos ou vivos, cujas ações exercem influência decisiva sobre nossas
17
próprias existências e sem cuja interferência nem poderíamos imaginar como seria nossa
vida” (BURCKHARDT, 1961, p. 213).
Acabamos então, por confundir e considerar por grande também os homens que nos
trouxeram grandes males. Em nossa carência de fundamentar aquilo que realmente é grande,
confundimos grandeza com poderio. O ideal de grandeza termina sendo aplicado a um
constructo criado para favorecer um determinado interesse particular. Diante da problemática
para se delimitar o que é a grandeza, esta nos permanece um mistério. Portanto, não é o
testemunho de um documento, nem a palavra de um especialista que deve fundamentar a
grandiosidade de alguém.
Ainda segundo Burckhardt, quando determinamos a grandeza de alguém aplicamos
critérios incertos, desiguais e incoerentes, pois julgamos tal grandeza de acordo com os
cânones intelectuais, as qualidades morais do indivíduo, depoimentos escritos sobre a
personalidade em questão, ou de acordo com a nossa reação pessoal que nos leva, de alguma
forma, a reconhecer tal indivíduo como grande. Por isso em alguns casos, determinados
indivíduos nos parecem grandes por nossa própria convicção e em outros, somos
influenciados por uma opinião amplamente divulgada.
Percebemos então que o conceito de grandeza está extremamente ligado à soma global
das considerações que atribuímos à personalidade de um indivíduo. É este indivíduo que
consideramos grande, pois ele nos influencia de maneira extraordinária através dos séculos e
dos povos. Em outras palavras, somos tomados por uma força que nos fascina e nos leva a
considerar tais pessoas como grandes. Mas, quais são os atributos de um grande homem? Para
Burckhardt:

Um grande homem é aquele sem o qual o mundo nos pareceria incompleto,


porque determinadas grandes ações só podiam ser concretizadas por ele, em
sua própria época e ambiente, sendo inconcebível sem ele. O grande homem
está fundamentalmente ligado ao grande fluxo central das causas e efeitos.
Há um provérbio que diz: “nenhum ser humano é indispensável”, mas
justamente os poucos que os são, são grandes homens (BURCKHARDT,
1961, p. 214-215).

O grande homem é aquele que deixa marcada a sua impressão na história. O som de
sua ação ecoa e pode ser escutado além dos limites de sua época. É ele que tomado pelo
instante em que vida se apresenta como uma eterna possibilidade de vir a ser, torna-se
responsável pela criação de algo tão valioso que o torna singular. Ele se torna único, pois:

18
Só é único e insubstituível o homem que dispuser de forças intelectuais e
morais extraordinárias, cuja atividade se reflete sobre uma coletividade, isto
é, sobre povos e culturas inteiros ou até mesmo sobre toda a humanidade.
Entre parênteses seja-nos permitido acrescentar que há um certo tipo de
grandeza que abrange todo um povo e ainda que há outra espécie de
grandeza ainda que podemos chamar de parcial ou momentânea, que se
produz sempre que um indivíduo sacrifica a si próprio ou sua vida em prol
de uma coletividade. Um ser capaz dessa abnegação atinge, então, um
estado de elevação tal que o afasta das vicissitudes terrenas e o transfigura
como um ser superior (BURCKHARDT, 1961, p. 215).

Em sua descrição sobre os grandes homens, Burckhardt enfatiza as ações produzidas


pelos artistas, pelos poetas e pelos filósofos. Estes, segundo ele, exercem uma dupla função
que tem como meta “captar o espírito de seu tempo e do mundo em que viveram e de
transmiti-lo, como documentos eternos para a posteridade” (BURCKHARDT, 1961, p. 218).
Neste ponto, é distinguida a grandeza dos grandes inventores e descobridores, da grandeza
destas três categorias: os filósofos, os artistas e os poetas. Pois, para Burckhardt, as ações dos
primeiros nunca foram de todo grandes. Mesmo que a eles tenham sido edificados estátuas e
monumentos, nunca alcançaram a grandeza propriamente dita, pois por mais que seus
inventos e descobertas tenham influenciado o mundo e determinado os rumos da história,
ainda assim poderiam ter sido substituídos. Ou seja, posteriormente outros teriam criado seus
inventos ou feito suas mesmas descobertas.
Por outro lado, as ações dos artistas, poetas e filósofos se sobrepõem justamente pela
sua singularidade. Suas ações tornam-se únicas e impossíveis de serem repetidas. São
utilizadas como fontes de inspiração e reflexão, mas jamais podem ser reproduzidas. Aqui
Burckhardt cita como exemplo a descoberta da América por Cristóvão Colombo. A dedicação
e o empenho de Colombo em realizar a navegação que o fez descobrir a América não lhe fez
perfeitamente um grande homem, pois se ele não tivesse descoberto, outra pessoa teria. Em
contrapartida, a atividade produzida por homens como Platão, Ésquilo ou Rafael, jamais teria
sido apresentada à humanidade se não fosse por eles próprios desenvolvidas.
Sobre a grandeza daqueles que atuam no campo das ciências, Burckhardt afirma que a
grandeza dos cientistas também é determinada pela exaltação dos seus feitos em prol dos
benefícios que estes trazem para a humanidade. Como exemplo ele cita Nicolau Copérnico
cujos juízos sobre a órbita da terra em torno do Sol fez toda uma tradição ser refutada e um
novo modo de se perceber o sistema solar foi nas ciências cristalizado. Entra também para o
hall dos grandes cientistas Galileu e Kepler, pois “devemos aos resultados de suas pesquisas a
nossa concepção atual de mundo e toda a estrutura do pensamento moderno, classificamos
tais indivíduos, portanto, entre os filósofos” (BURCKHARDT, 1961, p. 220).
19
Burckhardt relaciona filósofos à grandeza, diz que é somente com eles que se inicia a
etapa de grandeza irrefutável, verdadeira, única e insubstituível. É nesta fase também, diz ele,
em que há um desencadeamento de energia capaz de transcender qualquer norma. Entretanto,
não são apenas os poetas, artistas e cientistas os únicos capazes de pertencer à categoria dos
filósofos. Logo, “devem ser incluídos na categoria de filósofos todos aqueles que vêem a vida
de maneira tão objetiva que parecem pairar acima dela, documentando essa sua
Weltanschauung transcendente em observações formuladas sobre os mais diversos assuntos”
(BURCKHARDT, 1961, p. 218).
Assim, a grandeza não pertence a uma elite que esteja determinando o curso da
história no campo da política ou da economia como preferiam os rankeanos positivistas2. A
grandeza também não concerne apenas ao homem que está inserido na categoria dos artistas,
dos poetas e dos filósofos. O homem dito comum que vê a vida como uma possibilidade para
o criar, o homem que desconhece os limites de sua criação e deixa seu legado para a
humanidade, este faz a história e a ele é concedido a inclusão burckhardtiana na categoria de
filósofos.
O jovem Nietzsche parece ter compreendido muito bem as lições do velho mestre
sobre grandeza, pois reafirmou em seus escritos que a grandeza pode ser encontrada em
qualquer homem que tomado e tocado pela vida, percebe que esta é uma eterna possibilidade
de vir a ser. Para Nietzsche, grande é aquele que em um instante extraordinário percebe vida
como sendo um profundo sem fundo que está sempre vindo a ser. É esta percepção da vida,
este pathos, esta afecção que faz o homem constituir-se como um determinado eu e, de forma
artística, passar a criar aquilo que o determinará como grande, pois grandes são também suas
ações na história. Foi tomado por esta afecção que os homens citados por Burckhardt – Platão,
Ésquilo, Rafael, Copérnico, Kepler, Galileu – chegaram à criação de algo tão grandioso que
acabaram por determinar os rumos da história.
Grande é o homem superior, o homem da experiência. Na Segunda Consideração
Intempestiva (2005, p. 127), Nietzsche fala que somente o homem grande pode escrever a
história, pois aquele que não tiver realizado uma experiência maior e mais elevada em relação
aos demais não poderá, de forma alguma, interpretar a grandeza do passado. Em Além do Bem
e do Mal, obra escrita após a Segunda Consideração Intempestiva, Nietzsche descreve de
forma magistral o seu conceito de grandeza quando diz que:

2
Criadores da moderna historiografia. Cf. Segundo capítulo.

20
[...] Hoje o ser-nobre, o querer-ser-para-si são parte da noção de
“grandeza”; e o filósofo revelará algo do seu próprio ideal quando afirmar:
“Será o maior aquele que puder ser o mais solitário, o mais oculto, o mais
divergente, o homem além do bem e do mal, o senhor de suas virtudes, o
transbordante de vontade; precisamente a isto se chamará grandeza: pode
ser tanto múltiplo como inteiro, tanto vasto como pleno” [...] (NIETZSCHE,
2005, p.107).

Nesta citação fica claro que para Nietzsche, assim como para Burckhardt, a grandeza
não pertence unicamente aos governantes nem aos indivíduos históricos universais como
afirmava Hegel. A grandeza pertence àquele que em um dado momento de compreensão da
vida passa a determinar de forma artística o desenvolver da sua história. Este é o grande
homem. Mais tarde, em Ecce Homo, Nietzsche fala, no parágrafo 10 do capítulo Porque sou
tão Inteligente, sobre o equívoco em se qualificar como grande aquilo que de fato não é
grande. Segundo ele:

O que a humanidade até agora considerou seriamente não são sequer


realidades, apenas construções; expresso com mais rigor, mentiras oriundas
dos instintos ruins de naturezas doentes, nocivas no sentido mais profundo –
todos os conceitos: “Deus”, “alma”, “virtude”, “além”, “verdade”, “vida
eterna”... Mas procurou-se neles a grandeza da natureza humana, sua
“divindade”... Todas as questões da política, da ordenação social, da
educação foram por eles falseados até a medula, por haver-se tomado os
homens mais nocivos por grandes – por ter-se ensinado a desprezar as
coisas “pequenas”, ou seja, os assuntos fundamentais da vida mesma...
(NIETZSCHE, 2008, p.47-48).

Fica claro, portanto, que o ideal de grandeza apresentado tanto por Nietzsche, quanto
por Burckhardt, diverge daquele apresentado pelo pensamento moderno, sobretudo, pelo
modelo hegeliano e pela metodologia metódico-positivista. Diferente de uma grandeza
aplicada aos grandes estadistas, responsáveis pelos desdobramentos político e econômicos do
Estado, Nietzsche e Burckhardt compreenderam grandeza como algo próprio daquele que
torna sua ação imponente. Ela pertence àquele que em um ato de criação torna a história um
bem a serviço da vida.

1.4 A arte como criação

Outro pensamento comum – mesmo que com sentidos distintos – tanto em Nietzsche
quanto em Burckhardt concerne ao ideal artístico. Assim como Nietzsche, Burckhardt

21
compreende as artes como forças criadoras capazes de elevar o homem a sua suprema
grandeza. Segundo Burckhardt:

As artes são capazes de atrair para seu círculo magnético quase que a
totalidade da existência humana, de elevar sua sensibilidade a um grau,
infinitamente mais elevado, de expressão, dando-lhe uma visão do mundo
livre dos escombros do acaso, reunindo numa imagem transfigurada
somente os elementos realmente grandiosos, importantes e belos, então, até
mesmo o seu aspecto trágico revela-se consolador.
As artes são uma capacidade expressiva, uma energia criadora. Sua força
motriz central mais importante, a fantasia, a imaginação, foi sempre
venerada como uma manifestação divina. Poder revelar mundos interiores,
de modo que esta interioridade retratada aja como uma revelação, constitui
realmente uma das virtudes mais raras que pode possuir o ser humano
(BURCKHARDT, 1961, p. 222).

Nietzsche entra em consonância com estas palavras ao construir seu pensamento sobre
a arte como forma de criação da vida, ou seja, a arte como ação no exercício da grandeza. Na
Segunda Consideração Intempestiva ao descrever o significado da história como algo a
circunscrever espirituosamente o passado em uma melodia do cotidiano, o filósofo alemão
declara que tal ação só será possível mediante uma grande potência artística. Sendo assim, a
história deve ser feita artisticamente. Através da afecção originária, o artista – enquanto
homem dotado de grandeza – lapida a história de forma que sua impressão fica marcada no
tempo. É quando ele se dá conta que, ao mesmo tempo em que compreende, também faz a
história.
A história deve então ser percebida como um mundo profundo de possibilidades, ela
deve ser antes de tudo uma fonte de criação, de poder e beleza. Nietzsche enfatiza que para a
utilização da história a serviço da vida:

[...] é requerida antes de tudo uma grande potência artística, um pairar


criativamente acima de tudo, uma imersão amorosa nos dados empíricos,
imaginar além do tipo dado – aliás, tudo isto diz respeito à objetividade,
mas somente como uma qualidade positiva. Todavia, objetividade é muito
freqüentemente apenas uma palavra (NIETZSCHE, 2003, p. 55).

A maneira como a história era tratada pelos historiadores do século XIX era o oposto
daquilo que Nietzsche compreendia como a utilização da historia por meio da arte. Fazendo
uso de uma de suas metáforas Nietzsche diz que “todo aquele a que se obriga a não mais amar
incondicionalmente cortou as raízes de sua força: ele se torna ressequido, ou seja, insincero”
(NIETZSCHE, 2003, p.59). Assim seria à história vista sem este poder transformador da arte.

22
De fato, ao atribuir a história os critérios de verdade irrefutáveis, imparcialidade total do
historiador e descrição fiel do passado, esta parece ter se tornado seca e sem mobilidade.
Portanto:

Sob tais efeitos, a história é o oposto da arte: e somente se a história suporta


converter-se em obra de arte, ou seja, tornar-se pura forma artística, ela
pode, talvez, conservar instintos e, até mesmo, despertá-los. No entanto,
uma tal historiografia poderia contradizer inteiramente o traço analítico e
não artístico de nossa época, sim, sentida por ele como uma falsificação
(NIETZSCHE, 2003, p.59).

É de fundamental importância ser considerado que quando Nietzsche menciona o


artista em seus escritos, seu pensamento não se encontra remetido apenas àquilo que é próprio
das belas artes, ou seja, a poesia, a pintura, ao teatro, à música... O sentido é bem mais amplo
e vai mais além. O artista a quem Nietzsche se refere concerne àquele que está tomado pelo
poder e pelo afeto da criação. Não obstante, o artista é aquele que é lançado neste instante
extraordinário proposto pela abertura – arte – e que está sempre vindo a se constituir como um
determinado “eu” (CORDEIRO, 2010, p. 16). Desta forma, o artista é aquele que está
perpassado pelo poder da arte, enquanto este aberto que constitui a vida nobre e que a partir
daí lança-se no que originariamente é vida. Ser tomado pelo poder da arte é perceber vida
como uma imensa perspectiva para o criar. É a partir desta perspectiva que o homem se lança
na vida e artisticamente passa a constituir sua própria história.
Em Nietzsche, a arte tem este caráter fundamental de revelar ao homem o nada
primordial em toda sua existência. Neste nada, ele assume a responsabilidade perante a
construção de sua história. É ao assumir a vida como este nada que constantemente retorna,
que o homem encontra-se eternamente construindo e reconstruindo o seu próprio ser. De
modo que é somente a partir deste ponto que ele se lança artisticamente no devir da sua
história e faz da vida o palco de sua criação. A história é então realizada pelo homem que
tomado pelo instante extraordinário em que vida se revela, é movido pela vontade de
exuberância, de abundância e de criação.
Contudo, Sendo a arte um fator determinante nas ações dos grandes homens, tanto
Burckhardt quanto Nietzsche reclamavam a inexistência destes na modernidade. Em seus
escritos, vez por outra, Nietzsche acusa o homem de sua época de não ser grande, como não
sendo capaz de se autoafirmar, impossibilitado de dizer sim a si mesmo. Da mesma forma, ao
finalizar seu capítulo sobre a grandeza histórica, Jacob Burckhardt afirma que “nossa época
distingue-se pelo seu poder de esfacelar os grandes indivíduos” (BURCKHARDT, 1961, p.

23
252). Apenas alguns aventureiros e visionários são erroneamente agraciados por seus
contemporâneos com o título de grande. Segundo Burckhardt, nem toda época conta com a
capacidade de produzir grandes homens. Sua época parecia estérea, mas o futuro lhe parecia
promissor, pois:

Deparamos com um nivelamento geral que nos autoriza a declarar


impossível o aparecimento de indivíduos superiores. No entanto, a intuição
nos diz que a crise atual abandonará o nível miserável de agora, passando
do plano da “concorrência mercantil, da posse e aquisição de bens
materiais” a outro plano e permitindo a aparição de um grande homem, o
qual, naturalmente, será seguido pelas massas (BURCKHARDT, 1961, p.
222).

Burckhardt compreende o grande homem como aquele que além de corresponder ao


que dele se exige em qualquer situação, ainda vai além e supera as suas próprias expectativas.
Por isso, estes homens mesmo escassos na modernidade, são necessários à vida, pois com eles
o processo histórico se libera, irrompe, flui. O homem que toma para si o curso da história,
levando em consideração seu poder de moldar e modelar os fatos se torna grande e faz da
história uma grandeza.
Respaldando o seu mestre em Basiléia, Nietzsche também anuncia a escassez de
grandes homens. Ao longo de sua obra e mais tarde em O Anticristo, o filósofo declara em seu
prólogo que o seu livro destina-se aos homens mais raros, porém talvez não se encontre um
único que ainda esteja vivo, pois há homens que nascem póstumos (NIETZSCHE, 2007, p.
09). Acredita Nietzsche, assim como Burckhardt, que somente o futuro poderá produzir
homens raros – ou grandes – e este parece ser, após as Intempestivas, a grande missão de
Nietzsche: encontrar homens raros que compreendam e vivam o seu Zaratustra. Homens que,
tomados pela eterna possibilidade que a vida oferece, possam artisticamente criar algo de
verdadeiramente grande, tornarem-se grandes e assim construírem de maneira grandiosa a sua
história.

1.5 O legado de Burckhardt

Em suas Reflexões sobre a história Burckhardt diz que não é seu propósito formar
historiadores “especialistas” em história, ou seja, historiadores com vasto conhecimento sobre
determinados fatos da história. Sua proposta é que ao invés de acumular conhecimento sobre
um evento isolado, desenvolva-se a capacidade de cultivar de maneira apropriada a cultura

24
histórica. Em outras palavras, Burckhardt almejava instigar em seus aprendizes a capacidade
de refletir, questionar e, principalmente, dosar até que ponto a história pode ser útil ao
homem. Em uma carta de 1874 endereçada a Nietzsche, Burckhardt reafirma sua postura
dizendo que:

Como professor e mestre, posso, contudo, declarar que nunca ensinei


história pelo está contido sob o pomposo nome de “história mundial”, mas
sim como um estudo propedêutico: meu objetivo tem sido dar às pessoas
a estrutura indispensável para que seus estudos futuros, sejam do que for,
não se tornem sem propósito (BURCKHARDT, 2003, p. 297).

O jovem Nietzsche mostrou ter aprendido muito bem as lições do mestre, pois a partir
de tais ensinamentos foi capaz de redigir um verdadeiro tratado sobre a utilidade e a
desvantagem da história para a vida3. Nesta mesma correspondência que tem como tema
principal a Segunda Extemporânea, Burckhardt elogia Nietzsche qualificando sua obra como
um poderoso e significativo trabalho. Indo mais além, o historiador relata que a obra em
questão exige ser desfrutada linha por linha para somente após muita consideração, poder
enfim ser avaliada.
Burckhardt parece ter se espantado com a capacidade criadora do jovem Nietzsche,
pois ao que se percebe o jovem filósofo introduziu no estudo histórico a possibilidade de se
pensar a própria vida. Com Nietzsche, influenciado pelo mestre historiador, a história é
condenada enquanto inconveniente e desejada enquanto uma utilidade a serviço da vida. Em
uma carta de 13 de setembro de 1882, Burckhardt faz a Nietzsche a seguinte indagação: “o
que resultaria disso tudo se você ensinasse história?” Em seguida ele mesmo encontra a
resposta:

Fundamentalmente, é claro, você está sempre ensinando história, e abriu


algumas assombrosas perspectivas históricas nesse livro, mas, eu digo –
se você iluminasse a história ex professo, com sua luz própria e a partir de
seu ângulo particular de visão: em comparação com o atual consensus
popolurum, tudo ficaria de cabeça para baixo da mais esplêndida maneira!
(BURCKHARDT, 2003, p. 371).

A admiração de Burckhardt diante da satisfação em colher os frutos de seus


ensinamentos a partir do pensamento no jovem Nietzsche vai mais adiante. Na mesma
correspondência ele declara:

3
Segunda Consideração Intempestiva: Da utilidade e desvantagem da história para a vida.

25
Quanto ao resto, muito do que você escreveu (e, temo eu, o melhor disso)
está muito além de minha pobre e velha mente; mas, até onde posso
acompanhar, regozijo-me como um sentimento de admiração pela imensa
riqueza, bem como pela forma concentrada, e posso ver claramente que
vantagem seria para a nossa ciência se alguém pudesse ver com os seus
olhos (BURCKHARDT, 2003, p. 371).

Assim, Nietzsche recebe o respaldo de seu velho mestre e amigo ao mostrar-se


apto na criação de algo grandioso. Ao apropriar-se do pensamento de Burckhardt, Nietzsche
passa a produzir seu próprio pensamento a partir de uma apropriação produtiva. Esta lição é
deixada por Nietzsche na própria Segunda Consideração Intempestiva quando acusa o uso
exacerbado das histórias monumental e antiquária de limitar a criação mediante o cultivo
exagerado do passado. Nietzsche não utilizou os ensinamentos de Burckhardt para tornar-se
um mero erudito conhecedor de história; mas através de seu pensamento, criou um novo
modo de se pensar a relação entre história e vida.

26
2 A CRÍTICA AO HISTORICISMO

2.1.1 Precedentes gerais da filosofia da história em Hegel4

A crença fundamental numa filosofia da história que tivesse por finalidade a


explicação do processo histórico, suas vicissitudes e seu devir, como algo que obedece a uma
lei universal, provavelmente tenha sido iniciada na filosofia ocidental a partir de Santo
Agostinho. Ao introduzir a ideia das duas cidades – de Deus e dos homens – Agostinho
procurou explicar a história segundo seu caráter teleológico e progressista na qual uma
entidade metafísica determinava o seu curso. Após o bispo de Hipona, o processo histórico
procurou ser explicado através da filosofia por diversos pensadores, dentre eles, Vico e os
iluministas. Porém, foi apenas no século XVIII, com Hegel, que a filosofia da história foi
lapidada com intenso rigor.
Segundo Sobrinho, a “principal expressão filosófica do historicismo do século XIX foi
o historicismo absoluto de Hegel e dos hegelianos como Strauss e Hartmann” (SOBRINHO,
2005, p. 33). Tal historicismo tinha como base o cristianismo, sendo justamente esta filiação
com o pensamento cristão que levou o jovem Nietzsche a comparar o historicismo com uma
nova teologia ou uma teologia disfarçada. Acreditando na ideia de progresso, o historicismo
hegeliano chegou a manifestar uma espécie de otimismo incoerente com a própria realidade.
Para Hegel, a história é autoconcretizada na realização do Espírito Absoluto. O
Espírito passa por um processo evolutivo que vai do subjetivo enquanto espírito humano
voltado para a sua interioridade, ao Absoluto, aperfeiçoando-se na consciência de liberdade,
no encontro consigo mesmo e no conhecimento de si. Este processo ocorre pela
conscientização ao longo de todos os momentos do Espírito objetivo nos quais estão inseridas
as instituições humanas compostas pelos agentes da história5 (NÓBREGA, 2005, p. 69-70).
Neste processo de conscientização, a liberdade é a peça chave na realização do
Espírito Absoluto na história. Para tanto, Hegel diferencia as essências da matéria e do
espírito. Assim, a gravidade passa a ser a essência da matéria e a liberdade a essência do
espírito (HEGEL, 1999, p. 23). Com o crescimento do espírito em sua fase objetiva, a
liberdade enquanto essência torna-se também ampla no processo histórico. A própria

4
Salientamos que não é nossa pretensão fazer aqui uma comparação entre duas filosofias ou dois pensamentos
para em seguida valorizar um em detrimento do outro. Não pretendemos realizar um confronto de pensamento
para em seguida apresentar Nietzsche como superior, melhor ou até mesmo como aquele que superou Hegel.
Nosso propósito é tão somente, apresentar aquilo que foi próprio da crítica de Nietzsche ao hegelianismo.
5
Segundo Nóbrega: o Espírito sofre uma subdivisão numa tese (Espírito Subjetivo), Antítese (Espírito Objetivo)
e numa Síntese (Espírito Absoluto). Cf. NOBREGA, Francisco Pereira. Compreender Hegel. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 2007.

27
historiografia evidencia o progresso da realização do espírito na história, pois na antiguidade a
liberdade pertencia a um, depois passou a pertencer a poucos e agora pertencia a todos.
A história para Hegel só torna-se possível no âmbito do Estado. Segundo ele, Estado é
uma cultura ou civilização organizada em torno da liberdade. Liberdade não no sentido de
uma licença individual, mas de uma organização permeada pela coletividade. Assim para ele,
a história seria impossível sem a existência de um Estado organizado (HEGEL, 1999, p. 39).
Nessa concepção, o Estado seria a comprovação do sucesso na história comprovada pelo
avanço do direito e da justiça na Modernidade. Assim, a história universal seria determinada
por uma ideia que através do tempo se realiza de forma necessária, objetiva e progressiva. Seu
escopo seria o próprio fim da história. Esse processo teria uma racionalidade cedida pela
Providência (SOBRINHO, 2005, p. 34).
A liberdade apresenta-se em Hegel como a essência de um espírito que se manifesta e
se realiza ao longo do processo histórico. Dessa forma, da antiguidade à época moderna
houve um devir progressivo que estaria bem perto de se consolidar como Espírito Absoluto.
Na Pérsia, um dos primeiros Estados conhecido por Hegel como um Estado organizado, a
liberdade era restrita apenas ao monarca. Na civilização grega e romana esta liberdade
pertencia apenas à aristocracia e a oligarquia. Mas, com a consolidação do Estado Moderno, a
liberdade seria de todos. O Espírito Absoluto finalmente se concretizaria e a história chegava
ao seu apogeu.
Em Hegel a liberdade como essência do espírito culmina na criação do Estado. Nele o
Espírito Absoluto se manifesta e se realiza. A matéria em que se conclui o objetivo final da
razão é o próprio agente subjetivo, a saber, os desejos humanos. Esta subjetividade aliada à
racionalidade, configura um conjunto moral conhecido na filosofia da história hegeliana como
Estado. Nele o indivíduo tem e goza de liberdade na condição de conhecer, acreditar e desejar
o universal. Este conceito difere, portanto, do simples ato de ser livre para ir e vir comumente
entendido. Para Hegel, esta forma de liberdade é tão somente, liberdade negativa (SINGER,
2003, p. 41).
A liberdade concerne a um sentido mais amplo, diz respeito ao coletivo, ao universal,
nela e somente nela, a lei, a moral e o Estado alcançam a sua plenitude. A conquista gradativa
dessa liberdade não ocorre via heroísmos ou altruísmos, mas por uma “astúcia da razão” que
utiliza os homens na história universal, fazendo com que a partir deles ocorra o progresso da
liberdade e chegue a um estágio superior de civilização. Ao longo da história, o Espírito se
revela num processo de conscientização que torna a liberdade cada vez mais ampla.

28
Ao revelar-se na história, a liberdade se realiza no momento em que o Espírito
Absoluto passa a existir por si mesmo. É nela que se encontra todo o valor que tem o homem.
No Estado o homem passa a ter consciência de sua realidade espiritual que é justamente a
consciência da sua própria essência, a presença da razão, a vontade livre de alcançar seu
objetivo. Dessa forma, o homem tem plena consciência do seu lugar e compartilha da vida
legal e moral do Estado. No Estado a moralidade resulta da união entre a vontade particular
do homem consciente de si, com a vontade coletiva formada por todos os homens, gerando
leis universais e racionais. Portanto:

O princípio geral que se manifesta no Estado e torna-se um objeto da


consciência, a forma sob a qual tudo se torna real, é isso que constitui a
cultura de uma nação. Porém, o conteúdo determinado que recebe a forma
de universalidade, e que existe na realidade concreta que é o Estado, é o
próprio espírito do povo. O Estado real é animado por esse espírito em
todos os seus interesses particulares: guerras, instituições etc. Mas o homem
precisa também conhecer esse seu espírito, a sua própria essência, e adquirir
consciência de sua unidade original, pois dissemos que a moralidade é a
unidade da vontade subjetiva e da vontade universal (HEGEL, 1999, p. 47-
48).

O Estado se torna a ferramenta principal na história do mundo. É nele que a liberdade


obtém sua objetividade legitimando suas leis a partir de uma vontade verdadeira. Somente
obedecendo esta lei, a vontade é livre, pois ela obedece a si mesma e estando em si, torna-se
livre e independente. O Estado proporciona uma comunidade de existência em que a vontade
subjetiva do homem se sujeita às suas leis e a contradição entre liberdade e necessidade acaba
por desaparecer. No Estado, o homem é livre quando reconhece suas leis e as segue como
sendo matéria do seu próprio ser. A vontade objetiva e a vontade subjetiva se conciliam e
formam um só conjunto em harmonia. Eis a consolidação do Espírito Absoluto. Por
conseguinte:

A história universal representa, pois, a marcha gradual da evolução do


princípio cujo conteúdo é a consciência da liberdade. A determinação mais
precisa desses estágios deve ser, em seu caráter geral, indicada de forma
lógica e em seu caráter concreto, de acordo com a filosofia do espírito
(HEGEL, 1999, p. 55).

A história é, portanto, o avanço coletivo da consciência de liberdade. O indivíduo


isolado não pode manifestar, apenas por sua vontade, a consciência universal de liberdade.
Por isso, apenas o Estado, enquanto resultado da coletividade, é capaz de tornar a liberdade
universal. Somente a partir daí, dá-se história. Os indivíduos sozinhos ou até mesmo aqueles

29
que se congregam no que Hegel chama de comunidade irracional da família, sem a ideia nem
a conscientização de Estado, não fazem história, pois neles a consciência de liberdade não é
de todo universal (HARTMAN, 2001, p.31).
Na filosofia de Hegel um movimento dialético domina a história desde os antigos até o
tempo presente (NÓBREGA, 2005, p. 43)6. Este movimento vai sofrendo gradações e
alcançando estágios progressivos. A primeira civilização a sofrer esse “estado de consciência”
foi a civilização grega. Nela vigorava uma moral tradicional, mas havia uma harmonia entre
os seus cidadãos que compartilhavam uma identidade mútua junto à comunidade, a oposição
entre eles era inexistente. A civilização grega prefigura na filosofia da história hegeliana o
ponto de partida para a realização do Espírito.
Entretanto, no mundo grego tal Espírito não conseguiu seu desenvolvimento pleno,
pois não havia entre eles o conceito de consciência individual e além disso, nem todos eram
livres. No ideal grego de liberdade a escravidão era permitida, pois enquanto os cidadãos
participavam das assembleias públicas, onde eram tomadas as decisões das cidades-estado, os
escravos executavam os trabalhos cotidianos. Fora isso, a liberdade estava mais ligada ao que
concerne a uma nação ser livre de outra, ou seja, liberdade de nação para nação. Quanto à
liberdade individual, os gregos pensavam em si mesmo como um todo pertencente à sua
cidade-estado e não distinguiam seus interesses pessoais do interesse da comunidade em que
estavam inseridos (SINGER, 2003, p. 26).
Assim, uma nova abordagem da consciência se fez necessária. Um novo movimento se
plasma em direção ao progresso da história. Hegel presenciou este progresso a partir dos
desdobramentos do Mundo Germânico7 com sua religiosidade cristã e através dos
acontecimentos decorrentes da Reforma Protestante (SINGER, 2003, p. 26). Como um bom
protestante Hegel viu na Reforma o reconhecimento do direito à liberdade. Porém, a Reforma
também se apresentou um sistema inadequado. Sua liberdade não foi totalizante, pois
apresentou, como resultado, as atrocidades da Revolução francesa. O mundo grego havia sido

6
“Se perguntamos, pois, a Hegel como as realidades se deduzem necessariamente, a resposta é esta: por um
movimento dialético. Se perguntamos por que o princípio imprincipiado não resta eternamente à única realidade,
a resposta está aí: ele carrega em si a contradição e a luta de opostos. [...] A dialética hegeliana tem três unidades
que ele denomina de Tese, Antítese e Síntese, ou mais frequentemente, Afirmação, negação e Negação da
Negação” (NÓBREGA, 2005, p. 43).
7
Hegel usa o termo Germanische, “germânico” em vez de “alemão”, e inclui não somente a Alemanha
propriamente dita mas também a Escandinávia, a Holanda e até a Grã-Bretanha. Como veremos, nem mesmo os
desenvolvimentos na Itália e na França foram ignorados, embora neste ponto falte uma justificativa de afinidades
linguísticas e raciais para estender o termo “germânico” a fim de incluir estes países. Pode-se suspeitar de um
certo grau de etnocentrismo por parte de Hegel ao designar esta era como o mundo “germânico”, mas a principal
razão para isso é que ele considera a Reforma o acontecimento chave da historia desde a época romana
(SINGER, 2003, p. 33).

30
insuficiente para a realização do Espírito, a Reforma também não havia vigorado o
sentimento de consciência universal. Mas, a partir da convivência dos contrários, um novo
movimento seria gerado, sendo o responsável por trazer a consciência de liberdade a sua
forma plena. A saber, a realização da história.
Na realização da história ocorre a manifestação do Espírito absoluto que se sucede na
fundação do Estado consciente de liberdade. Nele o ser humano se torna capaz de usar a razão
para julgar a bondade e a verdade levando a cabo o processo de conscientização universal. A
partir daí, as instituições sociais, lei, propriedade, moralidade social, governo... ajustam-se de
acordo com os princípios gerais da razão. Dessa forma, os indivíduos passam a aceitar e
aprovar as instituições do Estado sem que para isso, sintam-se obrigados. A lei, a moral e o
governo deixam assim de ser regras para os indivíduos que se sentem livres em obedecer ao
mecanismo do mundo em que vivem.
Como a essência do Espírito é a liberdade, o Estado se confirma a partir da
consciência coletiva de liberdade. Por Estado Hegel entende algo que seja totalmente objetivo
e específico. Uma instituição em que seus membros tenham realmente escolhido obedecer e
servir, um lugar em que os indivíduos concordem com seus princípios e encontrem satisfação
social por ser seus membros. Esta satisfação, contudo, só se torna possível com a
conscientização da liberdade não só no âmbito subjetivo, individual, mas principalmente, no
âmbito objetivo, universal. De forma puramente subjetiva o indivíduo entraria em conflito
consigo mesmo e com o Estado por não estar de acordo com suas leis, mas de forma livre não
há restrições à liberdade, pois há uma livre escolha entre a conduta do indivíduo e as
necessidades da sociedade. Somente a partir dessa conscientização a ideia de liberdade se
torna real e a história alcança sua meta.
Portanto, no movimento dialético da história uma determinada civilização compreende
a si mesma levando seu espírito em direção a outras civilizações. Este acontecimento faz o
Espírito do mundo surgir em alguns indivíduos fazendo com que apareça um novo povo em
uma nova civilização repleta de significado histórico. Dessa forma, ao analisar a história,
percebe-se que há um grau de aperfeiçoamento em seu percurso. Ela mostra uma trajetória
racionalmente necessária do Espírito do mundo. A natureza deste espírito permanece sempre a
mesma, porém, esta natureza se desdobra no curso do tempo, sendo, portanto, o resultado da
história. Nesse ínterim, a história do mundo se torna a história da consciência de liberdade que
avança rumo à concretização do Espírito Absoluto. Aqui “pode-se dizer que a história
universal é a representação do espírito no esforço de elaborar o conhecimento de que ele é em
si mesmo” (HEGEL, 1999, p. 24).

31
2.1.2 O olhar nietzschiano8

Em diversos trechos de sua obra e principalmente na Segunda Consideração


Intempestiva, Nietzsche traça uma crítica desenfreada ao historicismo de sua época. O alvo
principal de tal criticismo está inserido na filosofia da história de Hegel e dos hegelianos, por
quem Nietzsche nutre um intenso desdém. Esse desdém ocorre, sobretudo, pela forma como o
sistema hegeliano aceita o presente de forma submissa e conformativa. Além do mais, o
sistema hegeliano apresentava uma teleologia idealista fundamentada por uma entidade
metafísica. Em suas Lições sobre a filosofia da história universal, Hegel faz a seguinte
colocação:

[...] vale dizer, que o mundo não foi abandonado ao acaso e a causas
externas aleatórias, mas que é regido por uma Providência. [...] Então, a
verdade que uma Providência divina preside os acontecimentos universais
equivale ao princípio citado, pois a Providência divina é a sabedoria que,
com um poder infinito, concretiza os seus objetivos, isto é, o objetivo
absoluto e racional do mundo: a razão é o pensar livre e determinante de si
mesmo (Hegel, 1999, p.19).

Destarte, a crítica de Nietzsche ao hegelianismo parte justamente de sua atribuição a


uma finalidade absoluta para a história do mundo. Em seus fragmentos póstumos, bem como
ao longo de toda sua trajetória filosófico-literária, Nietzsche deixa bem claro que seria um
absurdo falar de um fim para a história universal, uma vez que não somos senhores do mundo
e não sabemos nada sobre o acaso. As ideias de Estado, povo e processo universal tal como
preconizava Hegel, transgridem a responsabilidade do indivíduo de criar e fazer valer sua
vontade de vida, uma vez que depositam suas forças na perspectiva de tais Instituições. O
Estado tira do homem a crença e a convicção de que ele é mais importante do que os meios
que asseguram a sua existência, de forma que o deixa cada vez mais dependente
(NIETZSCHE, Fragmento póstumo, II. 1 29 [74] 392 – 393, 2005, p. 240)9.
Por conseguinte, o historicismo hegeliano é questionado por Nietzsche quanto às
noções de totalidade, unidade, identidade de pensamento, ideias de causa e fim e a crença na

8
É de fundamental importância considerarmos as palavras de Gerard Lebrun com relação à crítica nietzschiana
ao hegelianismo. Segundo ele, a Segunda Intempestiva não apresenta uma interpretação detalhada da filosofia de
Hegel, Nela podemos encontrar o esboço de uma compreensão original realizada por Nietzsche acerca da
história hegeliana. Na verdade, “é através da polêmica anti-hegeliana de Schopenhauer que Nietzsche aprende a
conhecer Hegel, certamente a aspiração cristã da filosofia dialética não poderia impressioná-lo” (LEBRUN,
1988, p. 43).
9
As citações dos aforismos póstumos neste trabalho foram transcritas a partir da edição “Escritos Sobre
História”, traduzida e selecionada por Noéli Correia de Melo Sobrinho. Cf. referências.

32
evolução e no progresso. Tais conceitos e mediações segundo o hegelianismo, levariam ao
processo histórico percorrido pelo Espírito rumo à sua objetivação no mundo. Nessa
perspectiva, o processo histórico obedeceria a etapas, períodos, uma temporalidade própria.
Seu progresso da ideia seria lento, mas prosseguiria de forma necessária rumo à sua
realização. Esta realização desembocaria no fim da história, ou seja, na reconciliação entre o
Espírito Absoluto e o Estado Moderno (SOBRINHO, 2005, p. 35-36).
Para Nietzsche, no percurso da história não há a existência de nenhuma força externa
agindo sobre ela. Ver a história por este ângulo é querer tornar as coisas fáceis demais
(NIETZSCHE, Fragmento póstumo, II. 2 5 [16] 285. 2005, p. 241). É uma ironia acreditar na
intervenção de uma força exterior na história quando esta diz respeito unicamente à relação
entre vida e homem. Neste sentido, a única coisa a ser considerada deve ser somente a relação
entre historiografia e vida como um profundo sem fundo que não cessa de irromper sempre
sendo e vindo a ser. Sendo assim, para se encontrar um plano na história, basta procurar nos
desígnios do homem, pois é este e somente este que, a partir de uma afecção originária,
tomado e perpassado por uma dada possibilidade de poder vir a ser, torna-se o agente
causador da história.
Os hegelianos buscaram dar conta da história através do conceito de totalidade,
apresentando-a numa dimensão linear cuja humanidade atravessa os estágios de infância,
maturidade e velhice. Esse conceito para Nietzsche é somente um pressuposto, uma crença de
que o real é racional e o racional é real, pois a memória enquanto um jogo de lembrança e
esquecimento não permite a nenhum historiador a recuperação ou o resgate total dos fatos
históricos, não se tem como estabelecer a unidade sequencial destes fatos, nem muito menos a
indicação exata de seu início e fim (SOBRINHO, 2005, p. 36).
A história da humanidade é movida pelo acaso, não há, portanto, uma finalidade, não
há espírito nem sentido racional por trás dela, guiando e lhe conduzindo (NIETZSCHE,
Fragmento póstumo, IV 1 [63] 303. 2005, p. 258). Entretanto, não devemos nos entregar ao
acaso. É no acaso que o homem se torna senhor de si mesmo. Pois como diz o próprio
filósofo: “É claro que a minha vida não tem uma finalidade já que só devo o meu nascimento
ao acaso, que eu possa dar para mim uma finalidade, isto já é outra coisa. Mas um Estado não
tem um fim: somos nós que damos a ele este ou aquele fim” (NIETZSCHE, Fragmento
póstumo, II. 1 29 [72] 391. 2005, p. 238).
Segundo Nietzsche, se a história do mundo tivesse que alcançar um determinado fim,
se houvesse um estágio final para a história da humanidade conforme preconizava o

33
hegelianismo, este fim já teria sido alcançado10. De fato a história nos mostrou o equívoco
tanto na dialética do idealismo quanto no materialismo histórico11. Nietzsche vai
desconsiderar que Hegel teria imaginado que a concretização da história pelo Espírito
Absoluto se daria justamente no seio da sociedade germânica de sua época. Sobre isto, é
afirmado na Segunda Intempestiva que:

Chamou-se, com escárnio, esta história compreendida hegelianamente o


caminhar de Deus sobre a terra; mas um Deus criado por sua vez através da
história. Todavia este Deus se tornou transparente e compreensível para si
mesmo no interior da caixa craniana de Hegel e galgou todos os degraus
dialeticamente possíveis de seu vir a ser até a sua auto-revelação: de modo
que, para Hegel, o ponto culminante e o ponto final do processo do mundo
se confundiriam com a sua própria existência berlinense (NIETZSCHE,
2003, p.72).

Diferentemente de Hegel, Nietzsche afirma que a história, bem como a humanidade,


não tem um fim determinado, mas que pode dar a si mesmo um fim, não no sentido de
suprimi-la ou conservá-la, mas tão somente, no sentido de superá-la. A humanidade é
convidada a dar um fim a si próprio no sentido de se auto-superar, tornar grandioso aquilo que
de mais valioso lhe pertence, a saber, a vida. Todos os fins elaborados pelas diversas correntes
filosóficas foram destruídos, pois o tempo mostrou que foram ineficazes. A ciência se propõe
a mostrar o curso da história, mas não o seu fim. Cabe ao homem criar o seu próprio fim,
acabando com aquilo que a tradição construiu equivocadamente ao longo dos tempos e
encontrando um novo começo onde a vida e a vontade de viver possa enfim transbordar.
De acordo com este pensamento, a humanidade precisa colocar um fim para além de si
mesmo, mas não lhe situando em um mundo a ser conquistado posteriormente, mas ao
contrário, deve permanecer no presente e dar continuidade à sua ação. Aqui Nietzsche lança
sua crítica ao sistema socrático-platônico que ao dividir a realidade em sensível e inteligível
apresentou a segunda como sendo aquela que concerne à verdade, às ideias e à forma, à
episteme... Ficando a realidade sensível pertencendo ao campo das aparências, das cópias do

10
Sobre isto Nietzsche comenta em vários dos seus aforismos póstumos, como por exemplo, no V. 11 [292] 419
– 420 p. 262 e no XI 36 [15] 287 – 288 p. 273.
11
O materialismo histórico parte do movimento dialético hegeliano para explicar o processo histórico a partir da
luta de classes. Segundo tal pensamento, elaborado e apresentado pela filosofia marxista, o processo de
transformação social se dá através do conflito entre as diversas classes sociais. Da luta entre a burguesia (tese) e
o proletariado (antítese), chegar-se-ia a uma síntese realizada mediante o advento do socialismo/comunismo.
Assim, a história seria determinada pelo conflito entre classes que levaria à sociedade comunista. Em termos
hegelianos, ao Espírito Absoluto.

34
real, da doxa12. Mais tarde, o cristianismo apoiando-se na dualidade socrático-platônica –
estabelecida pelo platonismo – concebeu este mundo como um imenso vale de lágrimas e
depositou toda sua esperança numa realidade exterior, numa vida após a morte.
Na verdade Nietzsche não nega o devir no mundo, entretanto, o devir deve ser
explicado sem que se recorra a uma ideia de fim. O devir deve ser justificado a todo instante.
Na história não devemos justificar o passado em razão do presente, pois o presente deve ser
vivido com intensidade. É nele que o homem deve fazer surgir a possibilidade genuína do
criar. Por isso, Nietzsche nega a existência de um Espírito Absoluto determinando a história
do homem. A conscientização não acontece no sentido de deixar o Espírito Absoluto se
realizar no mundo. Conscientizar-se é deixar que prevaleça no homem o que mais tarde ficou
conhecido nas obras de Nietzsche como a vontade de potência, é deixar artisticamente a
criação fluir. Criar então, significa poder sentir a-historicamente sem que isto signifique
eliminar a história. É criar a partir do novo sem fazer do passado um mero espelho de
projeção.
Nietzsche acusa com veemência o cristianismo pelo fato de ter criado no homem a
ideia de que a humanidade precisa resolver uma tarefa global e consequentemente, tender para
um fim (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, XIII 11 [226] 275-277. 2005, p. 282). Segundo
ele, o cristianismo acabou por desprezar a vida colocando o homem a espera de uma
esperança futura, tirou dele o gosto pela vida e as forças para lutar por ela. A meta do homem
passou a ser a salvação de sua alma. A angústia e o sofrimento passaram a ser aceitáveis, pois
trazia a redenção (NIETZSCHE, Vol. II, 1991, p. 133).
Neste ponto é interessante perceber o contexto em que surgiu o cristianismo e de que
forma ele prevaleceu durante a Idade Média. O cristianismo foi desenvolvido como a salvação
de um povo que sofria a dominação do Império romano que perseguiu e abateu milhares de
seguidores. Com a queda do Império, a Europa se encontrou absolutamente caótica. A Igreja
era a Instituição de maior poder de organização social e não perdeu a oportunidade de
convencer, controlar e subordinar não só os cristãos, mas também os bárbaros que detinham
naquele momento o poder, mas, não sabia como organizar o povo em sociedade. Diante deste
quadro, não foi difícil construir a ideia de que este mundo era um antro de sofrimento e só o

12
É importante perceber, antes de tudo, que a crítica endereçada por Nietzsche ao modelo socrático-platônico é
uma caricatura. É aquilo que a tradição estabeleceu como sistema platônico. Segundo o filosofo alemão, a
racionalidade desenvolvida por Sócrates e Platão são sintomas da decadência iniciada ainda na Grécia arcaica
quando os instintos estéticos passaram a perder seu real valor em nome da razão. Cf. CORDEIRO, Robson C.
Nietzsche e vontade de poder como arte: uma leitura a partir de Heidegger. João Pessoa: ed. Universitária -
UFPB, 2010.

35
paraíso celeste seria capaz de trazer consolo. Dessa forma, a vida foi abnegada e a morte
desejada.
A história em sua linearidade necessitava caminhar para um determinado fim e
chegava à sua devida conclusão. Em A Cidade de Deus, ao presenciar o Império romano
sendo invadido pelas forças bárbaras, Santo Agostinho anunciava que a história da
humanidade era permeada por dois princípios distintos e opostos. Por um lado a cidade
terrena fomentada pelo egoísmo humano e por outro a cidade celeste criada pelo amor a Deus.
As duas cidades coexistiriam através do tempo e traçariam uma guerra entre si, a luta entre o
bem e o mal. A guerra chegaria ao fim apenas com o advento do juízo final, onde as duas
cidades se separariam e a cidade celeste triunfaria sobre a cidade terrena. Ou seja, o bem
venceria o mal. De qualquer forma, a crença numa prosperidade realizada ainda na terra fora
suprimida. Tais eventos mostram a falta de ânimo no criar consciente da própria história.
Na Alemanha de sua época, Nietzsche acusou a cultura histórica de desprezar os
grandes homens13. Diferentemente de Hegel, para ele os grandes homens da história não
foram aqueles que se destacaram no campo político ou econômico, não foram os grandes
conquistadores do mundo nem os que governaram por muito tempo, mas sim, aqueles que
foram capazes de dizer sim a si mesmo e deixar fluir a vida. A maneira como a história era
compreendida em sua época não tinha para ele qualquer sentido que fizesse nascer uma nova
cultura, estava morta, desfigurada. Os eruditos alemães estavam distante da verdadeira
história, procuraram fazer da história um tema religioso e a partir daí racionalizá-la. Sobre o
homem de sua época em Ecce Homo, Nietzsche faz a seguinte observação:

Como poderíamos nós, após tais visões, e com tal voracidade de ciência e
consciência, satisfazermos-nos com o homem atual? É muito mal, porém
inevitável, que olhemos as suas mais dignas metas e esperanças com
seriedade a custo mantida, e talvez se quer a olhemos mais... (NIETZSCHE,
2009, p. 81).

Além de uma força externa – no caso o Espírito Absoluto – guiando o percurso


histórico a um determinado fim, Nietzsche ainda discorda do caráter progressivo da história.
Segundo ele, o historicismo do século XIX concebe o progresso da história imaginando que
um determinado período progrediu a partir de um outro mais antigo. Assim, tudo o que há é
uma continuidade do passado que está em constante progressão. A história deste ponto de
vista se concentra em uma linearidade com começo, meio e fim, semelhante à linha do tempo

13
Crítica enfatizada ao longo de seu pensamento, principalmente na Segunda Consideração Intempestiva, e no
Crepúsculo dos Ídolos.

36
ocidental fundamentada pela cultura judaico-cristã. Tudo aquilo que ocorre no tempo presente
fora tomado emprestado do tempo passado, não há, portanto, criação no sentido de construção
do novo a partir do presente. Para Nietzsche, conceber a história de tal forma é perder toda a
originalidade do tempo em que o indivíduo se encontra14. É preciso saber sentir até onde é
possível considerar o passado, pois sendo o homem tomado pela força plástica15, deve poder
dosar corretamente memória e esquecimento. É ele quem deve através de suas criações,
construir o seu momento histórico e fazer uma nova história, criar uma nova cultura.
Nietzsche concebia o progresso como uma ideia tipicamente moderna, ou seja, uma
ideia resultante da própria visão de mundo da época. A humanidade não representava para ele
uma evolução para o melhor, uma evolução no sentido do fraco para o forte, do baixo para o
elevado. Perseguir a evolução de um povo não significa relacioná-lo ao seu crescimento, ao
seu aumento, a sua força. Mais tarde em O Anticristo (2007, p. 11), Nietzsche vai chamar
atenção para o fato de que na história sempre houve casos isolados de culturas diversas em
que se manifestou um tipo mais elevado, um povo que comparado ao restante da humanidade
fora instalado nele uma espécie de grandes homens. Possivelmente aqui Nietzsche faz
referências à Grécia arcaica. São casos que foram e serão sempre possíveis de êxitos. A ideia
de progresso parece permanecer no âmbito do equívoco, uma vez que estes povos em certas
circunstâncias, movidos por aquilo que Nietzsche chamou de força plástica, chegaram a
constituir-se.
Pelo fato do devir se fazer presente na história achamos que estamos em progresso,
que existe um processo evolutivo seguindo em frente. Contudo esta é uma aparência
enganadora. Para Nietzsche o século XIX não representava um progresso quando comparado
ao século XVIII. No fragmento póstumo (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, XIV. 15 [8]
177. 2005, p. 288) declara que os alemães de 1888 não estavam à frente em relação ao espírito
alemão de 1788, pois a humanidade não avança progressivamente rumo a um determinado
fim. No mesmo aforismo, Nietzsche chega a comparar o processo histórico a um imenso
laboratório de experiências onde algumas coisas obtêm sucessos enquanto outras não são bem
sucedidas. Não existe, portanto, homogeneidade, faltam algumas coisas que as
complementem: ordem, lógica, ligação, engajamento. Não há ligações que as tornem
universais e progressivas. Assim, diz ele, o próprio cristianismo pode ser tomado como
exemplo de decadência, pois na Modernidade a Reforma alemã recrudesceu nessa decadência.

14
Este modo de se conceber a história é tratado por Nietzsche na Segunda Consideração Intempestiva sob o
conceito de história monumental, história antiquária e história crítica. Trataremos desta temática no terceiro
capítulo deste trabalho.
15
O conceito nietzschiano de força plástica também será abordado no terceiro capítulo.

37
Em contrapartida, em outros tempos mais remotos, nas culturas hindus, egípcia e chinesa
floresceu um tipo superior de homem bem mais capaz do que aquele proposto pelo progresso
de seu tempo (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, XIII. 11 [413] 363-364. 2005, p. 284).
Quanto à influência da moralidade no processo histórico, a crítica nietzschiana é
endereçada tanto a Hegel quanto a Kant. Em 1784, Emmanuel Kant publica um pequeno
ensaio intitulado “Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita”, no
qual propõe a história do mundo como um desígnio da Natureza. De acordo com seu
pensamento haveria um princípio teleológico no qual os males da história seriam justificados
mediante a construção de uma sociedade cosmopolita cuja constituição jurídica abarcasse a
satisfação de todos. Para tanto, existiria neste processo, a determinação da natureza que
levaria a humanidade a agir em seu favor, o próprio desenvolvimento histórico se encarregaria
da sua conclusão. Sobre seu desenvolvimento, Kant afirma na quarta proposição de sua obra
que:

O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas


as suas disposições é o antagonismo delas na sociedade, na medida em que
ele se torna ao fim a causa de uma ordem regulada por leis desta
sociedade. Eu entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade dos
homens, ou seja, sua tendência a entrar em sociedade que está ligada a uma
oposição geral que ameaça constantemente dissolver esta sociedade
(KANT, 2004, p. 08).

A partir de suas propensões anti-sociais, os homens seriam conduzidos à construção de


uma sociedade que posteriormente, em conflito com outras sociedades, perceberia a
necessidade de uma constituição política perfeita, deixando assim a natureza desenvolver
plenamente sobre a humanidade todas as suas disposições. Criando assim, uma comunidade
humana universal legitimada pelo Direito e viabilizada por uma sociedade de nações.
Além do plano teleológico, mas também no plano moral, o sistema hegeliano
apresenta certa relação com o modelo kantiano. Por mais que Hegel tenha procurado refutar o
pensamento de Kant, fica praticamente impossível analisar as duas filosofias da história – a de
Kant e a de Hegel – sem fazer comparações. Tanto para Kant quanto para Hegel, a moral era
o fim supremo a ser alcançado pela história. Os dois filósofos deixaram isso muito bem claro
em suas obras, principalmente na Crítica da Razão Prática e na Filosofia do Direito.
Diferente de Kant que via o cumprimento do dever submetido à razão por meio do Imperativo
Categórico, Hegel achava que este estava justamente vinculado ao Estado, ou seja, o dever
seria cumprido não pelo estabelecimento do Imperativo Categórico, mas pela adesão do

38
indivíduo com outros indivíduos em servir ao Estado. A verdade é que ambos tinham como
meta a implantação de valores morais em suas filosofias da história. Tanto uma quanto a outra
acabaram por receber a crítica nietzschiana.
Em um de seus fragmentos póstumos comentando sobre o papel da moral na história,
Nietzsche faz a seguinte afirmação:

Hegel: o seu lado popular, a teoria da guerra e dos grandes homens.


O direito está com o vencedor: este representa o progresso da humanidade.
Tentativa de provar a dominação da moral a partir da história.
Kant: longe da posição, invisível, real, um reino de valores morais.
Hegel: uma evolução demonstrável, uma revelação
progressivamente visível do reino moral.
Não queremos nos deixar iludir nem à maneira kantiana, nem a
maneira hegeliana: – não acreditamos mais, como eles, na moral e não
temos por conseguinte qualquer necessidade de fundar filosofias para que a
moral conserve os seus direitos. Não é nisso que o criticismo, assim como o
historicismo, tem encanto para nós: – a propósito, que encanto então têm
eles? (NIETZSCHE Fragmento Póstumo XII 2 [195] 162. 2005, p. 147-
148).

Aqui fica evidente o seu desconforto em ralação à moralidade em Kant e em Hegel


pois, no “entender de Nietzsche, Kant e Hegel agora ocupam a mesma posição; Kant e Hegel
pertenciam à mesma família. Limitação do saber em proveito da razão prática, explosão do
devir em uma Verdade da história: duas figuras da mesma escatologia” (LEBRUN, 1988, p.
47). Ao que parece, Nietzsche não rejeita a moralidade simplesmente por ser contra qualquer
sistema moral, o que ele crê detectar é a ingenuidade e a incapacidade de tais sistemas
prosperarem. A seu ver tais sistemas desconsideraram a vontade e a ação individual,
esperando que cada um soubesse absolutamente qual seria a melhor maneira de servir ao
Estado.
Concluindo, percebemos que para Nietzsche aquilo que vive e que se move não está
obedecendo a um fim determinado. É só um produto da própria vida. O movimento do
homem está totalmente desprovido de fins, de objetivos determinados por uma condição
externa ou metafísica. Acreditar nisso é ter uma falsa confiança, é se submeter ao acaso e isto
sim pode ser prejudicial para a humanidade. O homem deve, portanto, fixar sua vontade na
criação de algo grandioso e fazer disto um fim em si mesmo. Pois, não há fim na natureza,
nem milagre nem espírito, apenas a “força” do próprio homem capaz de criar e transmutar
valores.
Em Nietzsche a história configura uma pluralidade de processos onde ascensão e
declínios são fatos simultâneos, não deve ser vista como uma totalidade rumo a um fim em

39
linha progressiva e guiada por uma razão absoluta. O mundo e com ele a história, não foi
criado, não teve um ponto de partida. Tudo está sempre passando sem que com isso seja
preciso atingir um fim. Os ideais humanos são contraditórios, as culturas são diferentes. Não
há portanto aqui nem totalidade nem progresso, nem plano e nem fim. Para o filósofo alemão,
o que determina o mundo e a história é uma potência cega. De modo que se há na história
uma necessidade de algo que a guie e a determine, trata-se então da necessidade do acaso
(SOBRINHO, 2005, p. 36).
Não é tarefa da história comprovar a existência de fins, isto não lhe é possível. O que a
história comprova é a contradição encontrada nos resultados alcançados que mostraram a
incompatibilidade entre o fim desejado e o fim alcançado. Por diversas vezes a história
mostrou que o fim almejado, sonhado e desejado jamais fora atingido (SOBRINHO, 2005, p.
38). O universalismo kantiano e o historicismo absoluto hegeliano parece ter-nos revelado que
não há uma história universal, um sentido universal, nem muito menos uma Providência
universal que se possa conhecer. “Os sentidos da história são dados pelos indivíduos
concretos, não pelas massas, não pelos povos, pois nenhuma idéia abstrata pode promover a
história ou levá-la a um termo” (SOBRINHO, 2005, p. 39).

2.2 A história como ciência na Modernidade

2.2.1 Sobre a objetividade e a cientificidade da história

A partir do século XIX, as filosofias da história começaram a entrar em desuso. A


história enquanto conhecimento das ações humanas através do tempo buscou a emancipação
das filosofias racionalistas visando tornarem-se científicas. Sob a influência do positivismo,
chegava-se à conclusão de que a metafísica seria impossível e, portanto, um pseudo-
conhecimento no que se refere à história (Historie). Concluíram que por ser a metafísica
incapaz de se justificar através do controle e da verificação empírica, esta não poderia
fornecer subsídios à investigação histórica nem revelar nada sobre a história (Geschichte)16.
Na história como uma atividade metodologicamente científica não havia mais a
pretensão em analisar filosoficamente o sentido histórico ou a história universal. Seu objetivo
era produzir um conhecimento cujos fatos fossem constatados de forma segura, objetiva,
16
Em alemão o termo Geschichte difere do termo Historie. Geschichte refere-se às atividades do homem em seu
cotidiano através do tempo, ou seja, concerne àquilo que pertence às ações humanas enquanto agentes históricos.
Já Historie diz respeito aos estudos da história e das teorias da história, refere-se à análise, à interpretação e à
representação daquilo que já passou. Portanto, Geschichte está ligado ao acontecer histórico, enquanto Historie
refere-se à historiografia.

40
confiável e empírica tal como acontece com as ciências exatas (REIS, 2005, p. 36). A história
passou a trabalhar com eventos únicos, individuais e singulares. A pesquisa do historiador
teve como alvo o evento datado, localizado no tempo e no espaço. O fato, após o crivo do
historiador, passou então a ser um “fato realmente acontecido”. Tal pensamento historicista
sustentava que a razão seria reduzida à história. Um sistema que apresentasse uma história
guiada por um sentido universal, tal como outrora celebrara Hegel, seria de imediato
recusado.
Segundo Reis, neste ponto as relações entre a filosofia e a história são invertidas, pois
agora seria a história quem compreendia a filosofia e não a filosofia que compreendia a
história como ocorria até então (REIS, 2005, p. 36). Consequentemente, não era mais
interesse do historiador a busca pela universalidade ontológica da história, mas a sua
possibilidade enquanto epistemologia universal. Neste contexto, merece destaque a Escola
rankeana justamente por lançar as bases metodológicas da história enquanto ciência.
A Escola rankeana está profundamente ligada a um eminente historiador do século
XIX, citado algumas vezes por Nietzsche ao longo de sua obra. Trata-se de Leopold von
Ranke citado indiretamente na Segunda Intempestiva como um “famoso historiador
contemporâneo” (REIS, 2011, p. 167).

Leopold von Ranke (1795-1886) foi o grande historiador acadêmico


positivista que daria seqüência e aprofundaria a nova teoria positivista da
História Proposta por Niebuhr. Von Ranke pode ser considerado o fundador
da moderna disciplina histórica, universitária, tanto do ponto de vista
epistemológico como administrativo. Estabeleceu pela primeira vez, a
disciplina na universidade, algo que tardaria muitas décadas em outros
lugares como na França (FUNARI e SILVA, 2008, p. 31).

Dono de uma aguda intelectualidade e de uma vasta obra sobre a história, Ranke via
nos documentos diplomáticos uma das principais fontes da pesquisa historiográfica. Para ele,
as iniciativas internas do Estado eram resultados das suas relações exteriores. Por isso,
interessava-se pela psicologia individual dos grandes homens políticos, pois acreditava serem
eles os responsáveis pelos desdobramentos do Estado e, por conseguinte, da história. Dessa
forma, Ranke buscava na objetivação dos documentos a exatidão dos fatos históricos (REIS,
2006, p. 15).
Leopold von Ranke pode ser considerado o fundador da moderna disciplina histórica,
pois com ele se deixava de considerar a história enquanto mera narrativa do passado ou devir
metafísico, e em seu lugar sedimentavam-se as metodologias científicas da época. Tais

41
metodologias, profundamente influenciadas pelo positivismo, tinham por objetivo descrever a
exatidão dos fatos a partir da crítica rigorosa das fontes que por sua vez, deveriam ser
constituídas por documentos oficiais.
Assim, nascia a história científica cujas características, formuladas por Ranke,
apresentavam o historiador não como um ser comum que nega ou compreende o passado, mas
como alguém que apenas descreve a realidade daquilo que se passou. Não poderia haver,
portanto, nenhuma relação entre o historiador e o evento histórico. Suas relações eram
estritamente de sujeito do conhecimento e objeto a ser conhecido. Neste processo, a
objetivação da história seria possível apenas mediante a apreciação dos documentos e a tarefa
do historiador consistia em levantar um número significativo destes documentos que fossem
capazes de descrever de forma “autêntica”, e sem margens de erro, a veracidade e a
comprovação do fato histórico.
Em seguida os fatos eram minuciosamente extraídos dos documentos e organizados
em ordem cronológica de modo que compusesse uma sequência narrativa. A partir daí, era
então constatado que a história enquadrava-se aos moldes de uma disciplina científica, capaz
de atingir sua objetividade desde que o historiador cientista obedecesse a seu paradigma 17. Era
esta a função do historiador e o papel da história no processo da pesquisa historiográfica:
levantar documentos, selecioná-los criticamente18 e narrá-los em ordem cronológica. O
acontecimento histórico só se tornava verossímil mediante a abordagem metodológica do
historiador. Este, por sua vez, tinha como obrigação de ofício, evitar a construção de
hipóteses, manter-se neutro, não julgar nem problematizar o real após a constatação do fato.
Segundo a Escola rankeana, os fatos existem por si só, são sedimentados, lapidados
pelo tempo e não podem ser recortados ou construídos. Podem apenas ser apanhados em sua
integridade para que daí seja possível alcançar sua veracidade. O historiador em sua
passividade se deixa possuir pela totalidade do evento mantendo distante deste toda e
qualquer parcialidade. Segundo Reis:

17
O termo “paradigma” surge em 1962, com Thomas Kuhn em A Estrutura das Revoluções Científicas, para
designar um conjunto específico de suposições gerais, leis e técnicas adotadas por uma comunidade científica. O
fracasso dos cientistas em relação a problemas dentro do paradigma leva à “anomalias” e o paradigma entra
numa crise que é aprofundada quando aparece um paradigma rival que põe em desuso o anterior ocorrendo o que
Kuhn denominou de Revolução Científica. Cf. CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? Tradução de Raul
Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993.
18
A historiografia moderna também foi tomada por crítica justamente pela busca em solucionar racionalmente
aquilo que fosse “verdade” na história. Entretanto, tal crítica exacerbou sua objetividade e acabou perdendo o
foco daquilo que mais importante à história pode nos conceder: suas lições sobre o criar. Chamadas de crítica
tanto por Nietzsche quanto pelos historiadores de sua época, tal história tinha para estes, propósitos distintos.

42
Passivo, o sujeito se deixa possuir pelo seu objeto, sem construí-lo ou
selecioná-lo. É uma consciência “recipiente”, que recebe o objeto exterior
em si, ou uma consciência “espelho”, que reflete o fato tal como ele é, ou,
ainda, uma consciência “plástica”, que toma a forma dos objetos que se
apresentam diante dela. Para obter esse resultado, o historiador deve se
manter isento, imparcial, emocionalmente frio e não se deixar condicionar
pelo seu ambiente sócio-político-cultural (REIS, 2006, p. 18)

Acreditavam os positivistas rankeanos que ao adotarem uma atitude de imparcialidade


em relação ao objeto pesquisado, o historiador chegaria a um conhecimento histórico
objetivo, total e inquestionável. Pois, distanciando-se de seu objeto, seria possível apresentar
o passado isento de qualquer distorção subjetiva, tal como acontecia com as ciências exatas: a
Matemática, a Física e a Química. Para os rankeanos, após seguir tal metodologia o
historiador narrava o fato tal como ele havia realmente acontecido. Mas que fatos eram estes?
Para tal concepção historiográfica, fato histórico significava um evento de natureza
política, administrativa, diplomática ou religiosa, ficando de fora os fatos cotidianos das
pessoas “vulgares”, as ações corriqueiras, as culturas populares, entre outros. Os grandes
eventos, diplomáticos, políticos, religiosos... Eram para a Escola rankeana, o centro e a base
do processo histórico, os demais eventos históricos eram destes derivados, algo como de
segunda ordem.
Logo, a historiografia rankeana acabou por considerar o passado pelo passado. Um
passado que completamente desvinculado do presente, apresentava os eventos apenas como
descrição narrativa e detalhada do passado. Como base deste método crítico-histórico, os
rankeanos utilizavam a Filologia, a história das religiões e a crítica bíblica. Estas eram peças
chaves na pesquisa historiográfica, pois permitiam ao historiador o exame minucioso de
manuscritos e textos que levariam à autenticidade do documento e comprovariam a exatidão
do fato histórico estudado (REIS, 2006, p. 19).
Neste contexto, podemos então elencar a Alemanha como o berço da escola
positivista, ou seja, como fundadora da História enquanto disciplina científica e acadêmica.
Segundo José Carlos Reis: “a Alemanha produziu a filosofia da história e seu antídoto: Hegel
e Ranke são, respectivamente, os maiores representantes da filosofia da história e da história
científica” (REIS, 2006, p. 15). Foram, portanto, acompanhados pelos franceses19 que

19
Até os dias atuais é grande a influência dos franceses na historiografia mundial, sobretudo, após o movimento
conhecido como Escola dos Annales. Movimento surgido na França em torno da revista Annales fundada pelos
historiadores Lucien Febvre e Marc Bloch. Tinham como objetivo uma nova metodologia do conhecimento
histórico diferente daquela proposta pelo positivismo, mais precisamente pela escola rankeana. Suas principais
características foram: a interdisciplinaridade, a cultura como objeto de estudo, análise das estruturas e a
multiplicidade de fontes históricas. Sobre os Annales Cf. Peter Burke em: A escrita da história: novas

43
praticaram os mesmos métodos aplicados por Ranke, destacando-se mundialmente como a
Escola metódica.
Assim se fez o modo de proceder do historiador rankeano/metódico/positivista do
século XIX, por meio do qual se buscou, através dos documentos, reconstituir de forma exata
o passado tal como um dia ele foi. À sua atribuição não cabia o papel de problematizar,
construir hipóteses, nem reler os fatos passados. Sua tarefa era reconstruir o evento tomando
como base a análise crítica dos documentos – e somente os documentos escritos oficiais,
ficando de fora outros artefatos importantes para a pesquisa historiográfica como fósseis, a
pintura, a música, os utensílios domésticos, etc. – tornando dessa maneira, o fato histórico
verdadeiro e digno de credibilidade.
Os historiadores do século XIX, seguindo esta metodologia tornaram-se senhores dos
eventos passados. Eram eles, e somente eles, quem determinavam à historicidade, ou não, de
um evento passado. O passado tornou-se o oposto do evento presente, pois o presente é
sempre mutável, imprevisível e constante. Já o passado, este podia ser analisado, mensurado,
datado e por isso, mais próximo do sujeito historiador que podia dele se distanciar mantendo-
se cada vez mais imparcial.
Dessa forma, deu-se também, a evasão da história por parte do historiador. Por almejar
uma descrição objetiva do fato passado, o historiador se distanciou do evento e passou a
observar a historia de forma exterior, como aquele que está fora da história, como se o evento
não lhe afetasse e este não tivesse qualquer participação no processo histórico. Segundo Reis:

Distanciando-se, o sujeito se retira do evento e o observa do exterior, como


se o evento não afetasse, como se fosse uma “coisa aí” sem qualquer
relação com o seu próprio vivido. A narração histórica separa-se do vivido e
se refere a ele “objetivamente”, narrando-o e descrevendo-o do exterior.
Trata-se de uma “racionalização” da tensão, da ameaça da dispersão, da
fragmentação do vivido (REIS, 2006, p. 31)

É justamente pela tentativa de descrever o passado com exatidão, por evadir o homem
de sua temporalidade histórica na busca pelo conhecimento do passado e por tornar a história
uma narração descritiva do evento passado que vai fazer Nietzsche criticar a História como
disciplina científica. Uma história que julga o passado, mas que deixa o homem ser sufocado
pelo excesso de conhecimento. Esta tentativa de tornar a história uma disciplina capaz de
explicar o que se passou, mas que pertence apenas aos historiadores sem que tenha nenhuma

perspectivas. Tradução de Magda Lopes, São Paulo: Unesp, 1992 e José Carlos Reis em: Escola dos Annales: a
inovação em história. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

44
vivência prática com o homem e com a vida é, para Nietzsche, um dos sintomas do que ele
chama de doença histórica (NIETZSCHE, 2003, p. 94).
O questionamento acerca da história como uma disciplina que descreve com exatidão
os eventos passados só veio a se cristalizar no século XX, sobretudo, a partir daquela que
ficou conhecida como Escola dos Annales. Poucos foram os pensadores que, ao lado de
Nietzsche, discordaram do método rankeano-positivista que na época se sobressaia como
paradigma vigente 20. Segundo Barros:

A solitária crítica à historiografia do século XIX, que neste primeiro


momento passaremos a examinar, foi produzida paradoxalmente, pelo
filósofo que possivelmente, entre todos os seus contemporâneos, teve maior
consciência histórica – mais especificamente no sentido de perceber
claramente que tudo está sujeito ao devir e de que nada tem valor absoluto.
[...] Em nenhum outro lugar na filosofia oitocentista, encontraremos uma
reflexão tão refinada sobre a incontornável faculdade humana de “lembrar”
– geradora da inevitável “consciência histórica” e aqui compreendida como
um pesado, mas inevitável fardo – em contraposição à vital necessidade de
“esquecer” (BARROS, 2011, p.159).

Ao lado de Nietzsche – que não era historiador, mas filólogo – esteve John Gustav
Droysen (1808 – 1884) e o suíço Jacob Burckhardt (1818 – 1897) de quem Nietzsche recebeu
grande influência21. Mas tarde, pensadores como Benedetto Croce (1866 – 1952) e Roger
Collinwood (1889 – 1943) reforçaram a ideia de que o passado só existe no presente daquele
que o descreve e que dessa maneira fica impossível à descrição objetiva do passado22.

2.2.2 A posição de Nietzsche sobre a história enquanto ciência

A crítica de Nietzsche à história está inserida em um contexto muito mais amplo que
concerne à forma como a ciência havia se apresentado na modernidade. Em sua obra
“Nietzsche e a verdade” (1999), Roberto Machado aponta a crítica Nietzschiana à vontade de
verdade atuante em torno do século XIX. A vontade de verdade seria, desta forma, uma
crença fundamental na ciência moderna, pois nela a verdade seria a legitimação de sua
atividade. Neste sentido, há sempre a necessidade de que os resultados apresentados pela

20
Ao longo da Segunda Intempestiva, Nietzsche não faz nenhuma referência direta ao Positivismo. Contudo
analisando a conjuntura historiográfica da época podemos perceber que toda historiografia vigente, tanto da
Escola rankeana quanto da Escola Metódica, era profundamente influenciada pelo Positivismo.
21
Cf. Primeiro capítulo.
22
Cf. FUNARI, Pedro Paulo; SILVA, Glaydson José da. Teoria da história. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Col.
Tudo é história, 152).

45
ciência sejam verdadeiros mesmo que para isto seja também postulado uma crença. No caso, a
crença de que o passado está sendo descrito exatamente como ocorreu.
Ao observar a forma como a história enquanto ciência moderna se comportava em sua
época, Nietzsche percebe a verdade como o centro de gravidade do discurso científico e a
concebe tão somente como uma crença (MACHADO, 1999, p. 75). É na crença em uma
superioridade da verdade que a ciência do século XIX se fundamenta. Neste contexto, ao
construir critérios de verdade que validassem a atividade científica, o que acabou por ser
posto sobre a pesquisa historiográfica foi a adoção de critérios originados a partir de uma
crença na qual os resultados daquela pesquisa seriam irrefutáveis e, portanto, verdadeiros.
Esta crítica no que concerne à “verdade” não diz respeito apenas à historia e às
ciências modernas. A própria história da filosofia se compõe como a história da metafísica
pela busca da verdade. A verdade apresenta-se como a legitimadora da racionalidade. Mas,
em que se baseiam ou se fundamentam tais critérios de verdade? É justamente neste ponto que
Nietzsche acena para a crença. Uma crença pela qual acreditamos e postulamos a veracidade
dos fatos, o que aos olhos de Nietzsche é mero engano, uma vez que “não há fatos, só
interpretações” conforme o mesmo apresentou mais tarde no parágrafo 481 da Vontade de
Poder.
Assim sendo, para o escritor das Intempestivas, o primeiro erro ao se conceber a
ciência histórica como um conhecimento determinado pela verdade foi acreditar no acesso a
uma estrutura básica e estável da realidade, considerando-a como verdadeira. Agir de tal
forma seria privilegiar uma determinada concepção mediante a exclusão de outra. De fato,
estudos recentes na historiografia puseram à prova eventos tidos como verdadeiros e
impossíveis de qualquer questionamento quanto a sua veracidade23. Isto confirma o que
Nietzsche pretendeu apresentar tempo depois da Segunda Consideração Intempestiva como
“interpretação”, pois só podemos interpretar parcelas dos fatos que nos são postos.
Formamos interpretações parciais e insuficientes sobre a estrutura da realidade, o que acaba
por tornar insuficiente qualquer formulação que tenha por finalidade tornar uma verdade
universal válida para todos os homens em qualquer temporalidade, lugar e circunstância.
O outro equívoco apontado por Nietzsche foi o de ignorarmos como são formadas tais
interpretações. Aqui se encontra a implantação da verdade como um valor ao conhecimento,

23
Na história do Brasil, por exemplo, temos os casos de personagens como Tiradentes que foi outrora
considerado vilão e inimigo da Coroa portuguesa, mas que com a Proclamação da República em 1889, sagrou-se
herói nacional pelos republicanos. Outro exemplo foi a abolição da escravatura. Durante muito tempo pensou-se
que sua assinatura havia sido um gesto solidário e generoso da Princesa Izabel, hoje sabemos que existiu todo
um contexto político-social que determinou sua ação.

46
pois ao interpretar valoramos e a partir do valor elaboramos critérios de verdade. Na
interpretação encontra-se contida uma perspectiva concernente ao que deve ser promovido,
evitado, indicado ou avaliado, encontra-se o que posteriormente ficou conhecido em seus
escritos por juízo moral.
Para Nietzsche, a impossibilidade de se conhecer com afinco um determinado fato,
isto é, determinar com exatidão o que aconteceu, dá-se justamente pelo fato do conhecimento
histórico ser apenas uma “nova experiência vivida” que se dá unicamente no âmbito do
presente, como as ideias e a visão de mundo no qual o historiador está inserido: o tempo
presente. É impossível ao historiador descrever de forma exata o passado, uma vez que este
não está deslocado no tempo, pois como ficou registrado em um de seus aforismos póstumos,
“não há caminho que conduza do conceito ao ser das coisas. Só há um meio de compreender a
tragédia grega: ser Sófocles” (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, I. 17 [185]317. 2005, p.
289). Desse modo:

Nietzsche reconheceu nessa pretensão de cientificidade do sentido histórico,


em primeiro lugar um erro, mas também um escudo e um disfarce para os
pregadores do fato consumado: um erro porque o passado não é passível de
ser reconstituído e narrado por um discurso rigoroso e exato: no final, o que
se obtém é somente o discurso e um discurso de resto sempre
comprometido; um disfarce porque aqueles que alegavam com a
neutralidade de suas visões estavam irremediavelmente situados no interior
de uma cultura que lhes instilava sem cessar os seus próprios valores, mas
sobretudo porque não se pode concordar que o homem atual esteja em
melhor condições ou em condições privilegiadas para falar objetivamente e
com propriedade do passado (SOBRINHO, 2005, p. 39).

Segundo o pensamento Nietzschiano, conceber a história como um saber objetivo


implicaria em um absurdo, pois agir de tal forma é acreditar que o fato pode ser analisado de
maneira tão imparcial que seu resultado não produziria nenhum efeito externo. Agir desta
maneira seria o equivalente à paisagem que o artista nada mais faz a não ser representá-la em
sua tela. Ora, pensado desta maneira, o historiador teria as mesmas habilidades do artista e o
termo “objetivo” designaria uma contemplação artística (NIETZSCHE, Fragmento Póstumo,
II 1 29 [96] 403 – 405. 2005, p. 296). Contudo, o artista na sua representação artística não
obedece a limites. Não existe uma mera passividade do artista para com o real, ao contrário, é
neste movimento que se dá criação. É ele, o artista, o responsável pela remodelação de sua
obra no seu constituir-se como arte. Esta parece ser a proposta de Nietzsche com relação à
história, pois o historiador no seu ofício não pode ser um mero reprodutor daquilo que ele
pensa ser uma narração descritiva e exata dos fatos passados.

47
Desse modo, aquilo que impulsiona o homem a buscar o passado e a partir dele tornar-
se senhor do tempo e de si mesmo não é o instinto de verdade, de objetividade e de exatidão,
mas tão somente, o instinto artístico. Para Nietzsche, ao pensar desta maneira, o resultado
final de qualquer pesquisa historiográfica acaba por se tornar obra de arte. Em outras palavras,
é a participação do historiador, enquanto sujeito histórico tomado e tocado pela historicidade,
que faz a historiografia se tornar uma arte a serviço da vida.
Segundo o autor de Assim falou Zaratustra, a história tal como preconizava a Escola
rankeana era totalmente desprovida de sentido artístico. Escondia-se por trás da aparente
segurança e exatidão dos rankeanos, uma falta de paixão e desejo de criação artística. A frieza
do historiador em relação ao passado procurava esconder sua participação no acontecer do
mesmo. Todavia, era ignorada em seu labor a força incontestável do presente. Para Nietzsche,
é apenas mediante a mais alta força do presente que o homem consegue interpretar o passado.
(NIETZSCHE, 2003, p. 56). É somente através do presente, no qual estamos inseridos com
nossa cultura e visão de mundo, que podemos selecionar do passado aquilo que pode ser
conhecido.
A proposta de Nietzsche é não acreditar numa historiografia que não tenha sido escrita
com grandeza, com visão de futuro e com alto teor artístico no sentido de criação. Por isso, é
o homem de ação que deve escrever a história. É o homem experiente, grande e nobre que
deve tomar para si a obrigação de produzir uma historiografia que não sirva apenas para
reprodução do passado pelo passado, mas de construir a partir do passado uma ponte para o
futuro, fazendo da história um bem a serviço da vida. Isto não se dá, entretanto, no âmbito da
autonomia de um eu-sujeito enquanto causador de sua ação. O eu é um acontecimento
secundário, pois é a cristalização de um aparecer, de uma perspectiva, de um modo de ser do
real. É preciso que antes já tenha sido aberto para ele um mundo de possibilidades, pois é
justamente esta afecção originária pelo mundo que o assalta e determina o destinar-se de sua
história.
Em um de seus aforismos póstumos, Nietzsche critica Ranke afirmando que a
maneira como este escreve a história tende a embelezar as coisas (NIETZSCHE, Fragmento
póstumo, XI 40 [62] 398. 2005, p. 306), pois mesmo que fosse possível compreender as
condições pelas quais um determinado fato ocorreu, ainda assim seria impossível concebê-lo
exatamente como este realmente aconteceu. Para Nietzsche, a ideia de equiparar a história às
ciências da natureza faz do historiador um advogado modesto dos fatos, faz o passado chegar
de maneira equânime ao presente. Porém, neste modo de proceder é ignorado a ação do tempo
presente no “modus operandi” do historiador. Em outras palavras, é desconsiderado que neste

48
caso o passado é um aspecto do presente e somente pode ser reconstituído a partir dos valores
vigentes em nossa época. Aí está a razão pela qual Nietzsche afirma que somente aquele que
constrói o futuro a partir do pensamento presente tem o direito de julgar o passado
(NIETZSCHE, 2003, p. 57).
Ainda sobre o labor do historiador, Nietzsche é claro ao afirmar que este não trabalha
com os fatos reais tal como um dia aconteceram, são apenas acontecimentos supostos. Sendo
assim, também só são apresentados supostos heróis, muitas vezes mais que fantasiados ao
gosto do historiador. Em Aurora – obra posterior às intempestivas – Nietzsche enfatiza que o
pretenso objetivo de se querer converter os fatos em história universal, torna-os apenas uma
construção de um conjunto de opiniões sobre supostos eventos e heróis que um dia
apareceram e que pereceram no tempo (NIETZSCHE, 2004, p. 189).

Eles vêem este passado como “fato consumado”, como algo morto que nada
mais ativa no presente. Eles acreditam resgatar o passado com neutralidade,
equanimidade e objetividade, mas na verdade o que fazem é somente
adequar o passado ao presente, forçar o passado pelo presente, dando uma
demonstração inequívoca da sua conformidade com o hoje. Para eles, o
presente é o único cânone da verdade e eles próprios são servidores desta
verdade, pois eles acham sãos os homens do conhecimento (SOBRINHO,
2005, p. 43).

Portanto, é ingênuo buscar a exatidão no fato passado, pois a história não mostra os
fatos diretamente como eles ocorreram. A documentação é tão somente uma seca coleção de
exemplos a validar o incomprovável. A época moderna conferiu à história o status de
objetividade e isto prefigura um devaneio, uma vez que serve apenas para acumular escritos
em que nada edifica a vida. Ver o passado pelo passado é se perder no infinito do tempo e não
se perceber como agente histórico responsável pelo presente, passado e futuro. A
imparcialidade do historiador frente ao evento pesquisado não diminui sua participação no
processo histórico, sendo a possível “exatidão” histórica nada mais que o resultado de sua
ação no tempo.
Na Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para
a vida, obra chave para a realização deste trabalho, Nietzsche indaga se o historiador de seus
dias seria o mais justo de sua época; ou seja, revelar os eventos tal como eles de fato
ocorreram faz do historiador um homem justo com sua época? Para Nietzsche, não! Manter-se
imparcial é negligenciar a visão de mundo presente e, assim sendo, também é negligenciada a
atividade criadora do homem. Por isso, essa imparcialidade frente ao passado é puramente

49
fictícia, sem fundamento. Não há como avaliar o passado sem fazer uso do presente. De modo
que:

Aqueles historiadores ingênuos chamam “objetividade” à mensuração de


opiniões e feitos passados a partir das opiniões mais disparatadas do
momento; aqui eles encontram o cânone de todas as verdades; seu trabalho
é adequar o passado à trivialidade contemporânea. Em contrapartida, eles
denominam “subjetivo” toda historiografia que não tome as opiniões
populares como canônicas (NIETZSCHE, 2003, p.52).

Desta forma, é tão somente uma ilusão acreditar numa pura objetividade histórica.
Acredita-se que ser objetivo é se manter neutro ao examinar o acontecimento em toda sua
dimensão temporal, sem que este acontecimento possa exercer a menor influência sobre
aquele que o examina. Compreende-se que ao apartar-se do objeto analisado – o tempo
passado – o historiador possa enfim, descrever de forma literal o passado de modo que este
seja descrito de forma tão exata quanto os resultados obtidos na Física e na Matemática.
Porém, ver a coisa por este ângulo é ignorar o historiador enquanto agente também causador
da historia e, portanto, imbricado nela.

Contudo, para Nietzsche, é uma mera ilusão e um preconceito nefasto


acreditar que se possa retratar fielmente um personagem ou um
acontecimento do passado: para o “demônio do conhecimento” o passado
não se deixa revelar; assim como é um equivoco admitir a passividade total
do historiador, pois as próprias coisas que ele investiga imprimem nele as
suas marcas, a despeito de todos os seus cuidados metodológicos
(SOBRINHO, 2005, p. 43).

Pensar a história como uma disciplina capaz de descrever o passado, separado do


presente, na sua mais completa exatidão é esquecer o presente como o momento de criação
mais vigoroso pelo qual o historiador, enquanto homem histórico pode ser tomado. Aqui o
presente toma um novo significado, pois concerne ao instante de irrupção da força de eclosão
criadora. Em outras palavras, é somente no presente que se dá criação. Ao formular sua
descrição da história o homem já se vê permeado por um instante extraordinário onde vida se
faz vida num eterno transbordamento de forças. O “instante” em sua dimensão temporal diz
respeito ao momento de irrupção criadora e concerne à existência enquanto algo que não
cessa de vir a ser, de aparecer, de eclodir e de irromper no movimento eterno de vida se
fazendo vida. É neste instante que se dá decisão e o homem precisa neste instante agir, pois
nele passado e futuro se chocam, encontram-se unidos numa só temporalidade como mais

50
tarde irá mostrar Nietzsche no discurso “da visão e do enigma”24, em que Zaratustra aponta
para um portal em que se entrecruzam passado e futuro (NIETZSCHE, 2010, p. 190-196).
Logo:

A história deve estar a serviço da vida, afirma peremptoriamente Nietzsche,


ela não deve, por conseguinte, se esgotar em um puro conhecimento do
passado, pois isto a tornaria necessariamente estéril. No entanto, a era
moderna estabeleceu uma nova relação entre a história e a vida, mas se
tratava de uma relação claramente hostil, na medida em que pretendia fazer
da história uma ciência, a “ciência do devir universal”, ou seja, um
conhecimento da “verdade” de todas as coisas do passado. Contudo, como é
evidente, os estudos históricos operam no campo das representações, das
imagens e das formas, isto é, trabalham com aparências e interpretações,
razão pela qual não podem pertencer à esfera da ciência no sentido rigoroso
do termo. Porém, esta tendência cientificista dos estudos históricos acabou
por afogar a cultura moderna no mais extremo historicismo, na condição de
segunda natureza do homem moderno (SOBRINHO, 2005, p. 44-45).

Em suma, a partir da leitura dos aforismos póstumos e da obra Nietzschiana, sobretudo


analisando a Segunda Consideração Intempestiva, percebemos que o questionamento de
Nietzsche em torno da historiografia – rankeana, metódica, positivista – gira em torno da
pretensão da mesma em descrever os fatos em sua mais completa exatidão, atribuindo a eles
um critério irrevogável de verdade, e, sobretudo, na suposta imparcialidade do historiador na
pesquisa historiográfica25. Ora, para Nietzsche, aos moldes como a história de seu tempo se
apresenta, a criação e a vida são estagnadas. E assim sendo, a história nunca estará a serviço
da vida, pois seu escopo sempre estará voltado para trás. Enquanto pensada desta maneira, a
história só tende a pensar o passado e o homem do presente fica preso ao passado sem criar e
sem agir. Esta é para Nietzsche uma história que nunca possibilitará a criação de uma
humanidade superior.
Da forma como a história moderna se apresenta, o homem volta-se cada vez mais para
o passado tornando-se cada vez mais velho em uma civilização caduca sem vigor, sem o valor
instintivo da vida e sem tendência ao criar e ao produzir. É neste contexto que Nietzsche

24
No discurso Da visão e do enigma de Assim Falou Zaratustra, obra posterior às Intempestivas, Zaratustra e o
anão se deparam com um portal em cujo frontispício está inscrito “instante” (augenblinck). O instante configura
a dimensão temporal em que passado e futuro se chocam. É o momento em que a vida como um profundo sem
fundo está eternamente irrompendo. Uma força súbita e gratuita que eternamente retorna, sendo e vindo a ser.
Portanto, o instante diz respeito à criação, concerne à existência enquanto algo que não cessa de vir-a-ser, de
aparecer, de eclodir e de irromper no movimento eterno de vida se fazendo vida. Este pensamento foi chamado
por Nietzsche de Eterno Retorno, todavia, por hora não nos deteremos neste tema, deixando-o para uma pesquisa
posterior.
25
Entendamos aqui também o homem que ao refletir sobre a história, limita-se apenas em pensar o passado sem
ver neste qualquer relação com o presente nem com o futuro. O homem sem capacidades de transformar, de
intervir e de criar, mas apenas de imitar o passado.

51
conclama o homem moderno a romper com esta linearidade histórica e desprender-se da teia
que o prende ao passado. É preciso, pois, criar uma história a partir do momento presente,
uma história em que nela o homem possa dizer sim a si mesmo e trazer de volta para si todo
aquele valor nobre que antes fora perdido. Fazer da história algo a serviço da vida sem estar
preso ao passado e sem se apegar a uma metodologia que exclua a vida. Levar a uma ação que
cure a humanidade da doença histórica. Esta é a proposta de Nietzsche para a história, este é o
seu legado no que concerne à relação entre história e vida.

52
3 DA RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E VIDA

3.1 Os perigos da história para uma época: o excesso de cultura histórica

Ao analisar a supersaturação de cultura histórica pela qual se servia o homem


moderno, Nietzsche vai apresentar sua inutilidade e seu perigo para a vida a partir de cinco
aspectos fundamentais. Tais aspectos são: o enfraquecimento da personalidade por meio da
oposição entre o interior e o exterior; a ideia de se possuir uma virtude mais elevada e,
consequentemente, compreender o conceito de justiça melhor que qualquer outro tempo; a
perturbação dos instintos do povo e do indivíduo que com isso tem seu amadurecimento
impedido; a crença perniciosa de se ser uma humanidade velha, tardia e epígona e, por fim, a
perigosa disposição da ironia sobre si mesmo, o que gera uma nova disposição, ainda mais
perigosa, para o cinismo (NIETZSCHE, 2003, p.40). Vejamos detalhadamente cada um
desses aspectos.
Ao se contentar apenas com a contemplação da história universal, o homem moderno
vê sua personalidade enfraquecida, pois ele não se dá conta que faz parte do próprio processo
histórico. O homem-historiador acredita estar olhando a história pelo lado de fora, como o
mero telespectador que assiste ao filme. Ele acredita observar, analisar e datar os eventos
históricos de forma completamente neutra, sem interferência e sem tomar partido. O moderno
historiador, dotado de “conhecimento”, acredita ser um exímio conhecedor do passado, um
intelectual, um homem culto que domina todo o passado, lê todos os textos, analisa todos os
documentos e, por isso, escreve, narra e descreve os fatos passados com exatidão. Para este
homem, todo e qualquer evento transforma-se rapidamente em uma descrição narrativa.
Páginas e mais páginas são compulsoriamente escritas. Tudo é registrado pelo homem viciado
em tentar descrever de forma neutra a história (REIS, 2011, p. 173).
Entretanto, para Nietzsche, este homem está perdendo a sua personalidade. Ele não se
vê mais como um componente do processo histórico. Perdeu sua força e capacidade de sentir
a história como um resultado de sua própria ação, como algo intrínseco à sua própria vida. O
homem moderno, considerado dotado de conhecimento histórico se vê fora do tempo e do
espaço, não se compreende como um agente histórico, mas como um observador frio, sem
afeto e sem emoção. Ele acredita compreender minuciosamente a história, mas esquece de
relacioná-la à vida. Sua contemplação, sua pesquisa e sua descrição da história, aos olhos de
Nietzsche, não tem vitalidade, é esmaecida e inerte, pois se separou da vida, não consegue
criar, apenas repetir.

53
Ao tornar-se pesquisador neutro da história, o homem moderno desligou-se da vida.
Dela se afastou no momento em que a abandonou como uma possibilidade para o criar e
passou apenas a tentar descrevê-la. Ele agora apenas acumula fatos históricos, tornou-se um
colecionador de eventos passados, não cria, não age nem se auto-supera. A história apresenta
infinitas possibilidades, oferece inúmeras condições, além de ampliar o horizonte da criação
humana. Porém, o homem moderno a concebe apenas como uma ciência, como uma forma de
conhecer o passado. Apenas a observa sem querer penetrar, mas somente vê-la objetivamente
de longe.
Nietzsche compara a historia a um grande harém. O homem-historiador seria o eunuco
que vive exclusivamente para vigiar as mulheres. A história enquanto vida seria este imenso
harém capaz de possibilitar prazer e felicidade. Todavia, o historiador enquanto eunuco nada
poderia fazer para dela desfrutar. Ele conheceria toda a sua estrutura, toda a sua característica,
saberia o nome e a idade de cada mulher desse harém, mas nem por isso não pode ou não
sente em si o instinto originário para dele participar. Assim como o eunuco, suas forças são
castradas, sua vontade é inibida e seus propósitos são outros. Sua função e contentamento
resumem-se apenas em vigiar a história e descrevê-la de forma objetiva sem ter com ela
qualquer tipo de relação.
Portanto, segundo Nietzsche, o homem moderno sofre de uma personalidade
enfraquecida que afeta diretamente sua liberdade. Não liberdade no sentido comumente aceito
de livre-arbítrio, de uma autonomia do sujeito. Mas, liberdade enquanto possibilidade de
tomar decisão no instante em que vida se revela como um profunda condição possível para o
agir e para o criar. É esta liberdade que neste homem está agrilhoada, sem força e sem
vitalidade. Sua predisposição apenas para observar, datar e descrever objetivamente os fatos o
tornou estéril, condicionado e incapaz de dizer sim à vida e a si mesmo. A cultura histórica tal
como apresentou a modernidade fez do homem um eunuco castrado e incapacitado para criar
e viver sua própria história. Para Nietzsche, a história deveria ser como um ponto de partida,
uma possibilidade de dizer sim a si mesmo e romper seus limites em busca de um novo
sentido.
A história deveria trazer de volta toda exuberância e grandeza da Grécia pré-socrática.
A ação do homem histórico deveria estar voltada para a criação, pois enquanto agente da
história ele se encontra extremamente ligado a ela e não fora dela. Ignorar isto revela quanto
enfraquecida tornou-se a personalidade do homem moderno, dotado de conhecimento
histórico, mas desprovido de ação em prol do criar. Um homem que conhece – ou acredita
conhecer – todos os detalhes da história, mas que, no entanto, desconhece todo o seu

54
significado para a ação e para o transbordamento da vida que é constitutivo do próprio
acontecer histórico.
O segundo aspecto da história que o filósofo alemão aponta como nocivo e perigoso à
vida concerne justamente em se conceber a época moderna como o período de maior virtude,
um período de maior conhecimento sobre a justiça. Neste sentido, o homem moderno acredita
ser neutro e objetivo em relação à história. Com isso, ele acredita também ser possível
compreender com exatidão o passado, sendo justo ao descrever de forma exata a história. O
homem moderno, historiador, científico e detentor do conhecimento, afirma ao apresentar
suas pesquisas o resultado justo do seu trabalho. Em outras palavras, por tentar aplicar na
história os mesmos métodos utilizados nas ciências naturais, o homem acredita estar
apresentando os resultados de forma justa, pois, ao longo da pesquisa, foi objetivo, manteve-
se neutro, não tomou partido e não fez nenhum juízo de valor.
No entanto, o homem histórico-científico esqueceu que a história é própria e
constitutiva da vida. História e vida são, pois, uma unidade peculiar à condição humana. Por
mais que o homem se esforce na tentativa de estar para fora desta realidade, ele não consegue,
pois faz parte desse processo unitário que é história e vida. Esta é a relação entre história e
vida que Nietzsche se propõe a demonstrar em sua Segunda Intempestiva. Achar que estamos
fora da história é crer que estamos fora da vida, pois é na história que a vida se apresenta
como esta imensa possibilidade para o criar. Ignorar isto é se entregar ao condicionamento, é
viver sem liberdade e não ter forças para a criação do novo, do grande, do exuberante.
Na busca exacerbada pela objetividade, o historiador moderno enxerga a justiça de
acordo com a confiabilidade das fontes. Para ele, ser justo é saber mensurar o grau de
originalidade destas fontes. A historiografia que não aceitar a canonicidade de tais opiniões é
logo declarada subjetiva, sendo portanto, pseudocientífica. Neste caso, a subjetividade do
historiador enquanto ser histórico não pode ser envolvida com a objetividade do historiador
cientista que observa, pesquisa e analisa. Para o homem-historiador da Modernidade, ser
objetivo é manter-se neutro frente aos fatos. É um nada querer de envolvimento com o
passado, mas apenas dissecá-lo e descrevê-lo. “Não se interessar por nada é a “objetividade”.
Ora, protesta Nietzsche, para que dedicar anos de trabalho árduo a essa “vontade de nada”?”
(REIS, 2011, p.175).
Segundo Nietzsche, este não é o modelo de história a ser seguido, pois em suas
próprias palavras: “objetividade e justiça não têm nada a ver uma com a outra” (NIETZSCHE,
2003, p. 52-53). Sendo assim, a compreensão da história não deve estar ligada à objetividade,
à neutralidade, à descrição exata dos fatos esmiuçados. A história deve ser compreendida

55
como uma possibilidade de se pensar a vida, manter com ela uma relação de profundidade
reflexiva, de beleza e de vontade de poder fazer. Neste caso, o que o homem precisa não é
apenas da objetividade científica, mas também de uma grande disponibilidade de poder
artístico. Poder este que Nietzsche vai denominar Força Plástica26.
Tanto o homem quanto o historiador devem tomar a história como uma possibilidade
criativa. Tendo a história como uma parte constitutiva da vida, ele deve percebê-la com a
sensibilidade de um artista, com a pré-disposição para o criar, para o agir. Sua tarefa consiste
em, a partir do passado, fundar o novo sem necessidade de copiá-lo nem descrevê-lo, pois o
passado deve ser visto apenas como uma fonte de inspiração, como um incentivo ao agir. É
preciso, antes de tudo, entender que a interpretação do passado ocorre mediante a força do
presente. O historiador, enquanto ente posto e pertencente à história, só interpreta esta com os
dados que sua visão de mundo lhe oferece. É apenas no momento presente, sob a tensão e a
pressão do agora, que ele consegue conceber no passado aquilo que deve ser preservado e
conservado. Este é o cultivo da verdadeira justiça.
Outro aspecto nocivo e perigoso à vida diz respeito ao comprometimento dos instintos
de um povo e dos indivíduos que ao ficarem perturbados com o excesso de história são
impedidos de amadurecer e tornarem-se experientes. O sentido histórico pelo qual estava
fundamentado o sistema hegeliano cuja história caminha em ordem progressiva mediante a
realização de um Espírito, era para Nietzsche, tão somente uma espécie de atrofiamento27. Em
suas palavras, o “sentido histórico quando vige “sem travas” e retira todas as suas
consequências, desenraiza o futuro, porque destrói as ilusões e retira a atmosfera das coisas na
qual podiam viver” (NIETZSCHE, 2003, p. 58). Este sentido histórico mais tarde
transformou-se em cientificidade.
O homem moderno, dotado de ciência e conhecimento histórico perdeu o amor pela
criação, pela superação, pela inovação. Para Nietzsche, o homem esqueceu de ver na história
toda sua peculiaridade artística, pois uma vez que ele voltou-se apenas para a análise objetiva
dos fatos, esta perdeu todo o seu brilho e a possibilidade reflexiva para a criação. O homem
não a vê mais como uma possibilidade para o criar, mas como uma forma erudita de se obter
conhecimento e vaidade. A história moderna, ao olhar do nosso filósofo, perdeu sua
plasticidade, suas forças tornaram-se estéreis. De modo que:

26
Força que possibilita saber lembrar e esquecer na medida certa. O conceito nietzschiano de força plástica será
abordado mais adiante.
27
Cf. capítulo sobre a crítica de Nietzsche ao hegelianismo.

56
“Se por detrás do impulso histórico não age nenhum impulso construtivo, se
nada é destruído e limpo para um futuro já vivo na esperança de construir
sua história sobre o solo, se a justiça vige sozinha, então o instinto criador é
enfraquecido e desencorajado” (NIETZSCHE, 2003, p. 58).

A moderna historiografia apresentada como ciência histórica, ignorou a capacidade


criativa da história, bem como a sua característica a-histórica. A historia moderna enquanto
ciência analítica, metódica, positivista, objetiva, fez o homem perder sua fé em si mesmo e
voltar-se apenas para o exterior. O homem aprendeu a datar, esmiuçar, quantificar, analisar,
objetivar e pôr em ordem cronológica a história. Porém, deixou de compreender sua
participação no processo de constituição da história enquanto vida. Ele perdeu sua ligação
natural com a história, pois de certa forma, não se vê mais como o componente principal neste
processo de ligação histórica. Este comportamento, no entanto, compromete o
amadurecimento do povo e do indivíduo como agente decisivo do acontecer histórico.

Agora, porém, se odeia o amadurecimento em geral, porque se honra a


história mais do que a vida. Sim, triunfa-se pelo fato de que agora a “ciência
começa a dominar a vida”: é possível que se alcance isso. Todavia, uma
vida dominada desta maneira não é certamente muito valiosa porque é
muito menos vida e assegura muito menos vida para o futuro do que a vida
outrora dominada não pelo saber, mas pelos instintos e pelas poderosas
imagens ilusórias (NIETZSCHE, 2003, p. 61).

Segundo Nietzsche, a cultura histórica como um excesso e como um exacerbamento


de conhecimento fez a história enquanto possibilidade de vida criativa, tornar-se uma história-
profissão. O jovem passou a ser escravo da ciência e permeado nela viu uma oportunidade de
se fazer carreira como um intelectual dotado de conhecimento sobre o passado. Segundo
Sobrinho:

Os estudantes de história logo deveriam aprender o método da história, e


com ele iriam selecionar um pedaço do passado para estudá-lo e dedicar
todo o seu tempo a ele. Eles deveriam finalmente se pôr como “servidores
da história”, de uma verdade já inscrita na “história universal”. Eles eram
iniciados em uma carreira cujo ponto de chegada seria a erudição, quer
dizer, uma erudição científica que poderia render certamente dinheiro e
privilégios para os que tinham maior senso de oportunidade. Eles deveriam
alcançar uma especialidade, deveriam ocupar um lugar na divisão do
trabalho social e deveriam aumentar a sua produtividade acadêmica
(SOBRINHO, 2005, p. 51).

Na Modernidade, o jovem estudante de história apresenta-se como o “herdeiro de um


esnobismo que se mostra já muito cedo, quase na adolescência”. Ele pesquisa sobre um

57
determinado fato histórico e transborda de satisfação. A moderna metodologia científica é o
seu passo a passo. Sua verdade vem da sua imparcialidade e objetividade. Infantilmente ele
diz orgulhoso que já produziu, que já criou, que já está pronto. Entretanto, Nietzsche é
taxativo ao declarar que “se os homens devem trabalhar na fábrica da ciência e se tornarem
úteis antes que amadureçam, então a ciência está arruinada do mesmo modo que todos os
escravos utilizados nesta fábrica desde cedo” (NIETZSCHE, 2003, p. 63).
Dessa forma, a cultura histórica moderna não possibilita o amadurecimento pleno dos
jovens, pois estes se tornaram funcionários da ciência histórica. A eles é ensinado aquilo que
se denomina sentido histórico, cultura histórica, objetividade, imparcialidade e cientificidade
histórica. Aprendem a conhecer em demasia o passado, mas desconhecem a história como
possibilidade de criação, como atitude reflexiva sobre a vida, como fonte de exuberância e
grandeza. Desconhecem como os homens podem ser capazes de tornar o novo possível e
traçar uma nova meta de valor frente à vida. Para Nietzsche, uma história que se apresenta ao
homem apenas como disciplina científica, como uma profissão a ser seguida, uma ciência que
busca a “verdade” via vontade de verdade, de fato não ama a vida, mas a odeia. A história
vista de tal maneira domina a vida, torna-lhe pouco valiosa, pois não se lança junto com ela
rumo ao futuro (REIS, 2011, p. 177).
O quarto aspecto apresentado por Nietzsche como nocivo à vida está na “crença
perniciosa na velhice da humanidade”, ou seja, o excesso de cultura histórica faz o indivíduo
acreditar que já amadureceu, que é tardio e epígono. Ao estabelecer contato direto com o
passado por meio das modernas metodologias historiográficas, o homem acredita conhecê-lo
profundamente e com isso acredita ser dotado de experiência suficiente para descrevê-lo. O
homem moderno crê estar à frente do antigo pelo fato de pesquisar, analisar e conhecer a
história deste. Por isso ele se considera melhor. Todavia, tal procedimento incorre numa falsa
crença. A supersaturação de conhecimento histórico é apenas uma maneira de se acumular
informações que muitas vezes são até questionadas28. O exacerbamento de cultura histórica,
ao invés de amadurecer acaba por impedir este amadurecimento.
O desenvolvimento científico do século XIX parece aos olhos de Nietzsche ter se
transformado numa espécie de religião capaz de remover todos os nossos problemas. Assim,
28
Michel de Certeau faz uma importante declaração sobre a “veracidade” na história. Segundo ele, os bons
tempos deste positivismo que tinha por finalidade a reconstituição “verdadeira” daquilo que havia acontecido,
estaria determinantemente acabado. Isto ocorre porque todo “fato histórico” já traz imiscuído na sua
“objetividade” a introdução de um sentido. Suas análises resultam de observações que não são “verificáveis”,
mas tão somente, por meio de uma crítica, falsificáveis. Falsificáveis no sentido de a qualquer momento novos
estudos, novas descobertas e novas pesquisas trazer à tona novas abordagens sobre o passado. Cf. CERTEAU,
Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2010.

58
se na Idade Média o cristianismo era visto como a Instituição determinante nas relações
sociais, culturais e econômicas, agora na Modernidade, cabia à ciência o cumprimento desta
tarefa. A ciência em seu progressivo desenvolvimento teria superado o período medieval e
agora dava as cartas. Novas abordagens, novas descobertas, novos paradigmas fizeram da
ciência a mais completa e mais acabada forma de conhecimento, superando o conhecimento
mitológico-religioso, o senso-comum e até mesmo o filosófico29. Este contexto contribuiu
para que a época moderna pensasse ser superior àquelas épocas que lhe antecederam, pois
agora tinham conhecimento acerca da natureza, da humanidade e da história.
Nestes termos, no que diz respeito às crenças continuamos a sermos medievos, pois
transferimos toda carga de valor, antes pertencente ao cristianismo, para a casta científica. “O
que se entregava outrora para a igreja concede-se agora, mesmo que parcimoniosamente, à
ciência” (NIETZSCHE, 2003, p. 69). E assim, acreditando demasiadamente nas maravilhas
que o pouco tempo de desenvolvimento científico moderno nos propiciou, acreditamos estar à
frente de nossos antepassados; pois eles não tinham uma ciência tão matematicamente
rigorosa como aquela desenvolvida na Modernidade. Destarte, o homem moderno se sente
tardio, experiente, “conhece” a sua história cientificamente. No entanto, isso é só uma ilusão:

Na verdade, paralisante e desanimadora em ser filho tardio de sua época.


Uma tal crença, porém, parece aterradora e dizimadora, se um dia idolatra
com uma franca exaltação este filho tardio como a meta e o sentido
verdadeiro de todos os acontecimentos anteriores, quando a sua miséria
sapiente é equiparada a um acabamento perfeito da história do mundo
(NIETZSCHE, 2003, p. 72).

Nietzsche acusa o povo alemão de ter facilmente se acostumado a falar de “processo


de mundo”. Um processo progressivo que iria do mais simples ao mais perfeito, de modo que
os desdobramentos da época moderna fossem resultados deste processo. A história era vista
como a culminância de uma trajetória cuja perfeição se daria de forma progressiva. O
hegelianismo, acompanhado pelas modernas metodologias científicas da história concebendo
a ciência histórica como um avanço ao conhecimento do passado, teria sido o propagador
desse pensamento. Assim o homem moderno, embriagado pelo sentido histórico e pela
cientificidade da história, pensou ter alcançado a maturidade, a experiência para o agir e a

29
Augusto Comte criador do positivismo aponta o conhecimento rumo a uma marcha teleológica. Ou seja, o
conhecimento progride sob três estados teóricos distintos: o estado teológico, o estado metafísico e o estado
científico ou positivo. Neste sentido, seu pensamento segue a mesma linha do hegelianismo, pois ambos estão
inseridos no contexto de uma filosofia da história. Cf. COMTE, Augusto. Plano dos trabalhos científicos
necessários para reorganizar a sociedade. In: COMTE, Augusto. Opúsculos de filosofia social. Tradução de Ivan
Lins e João Francisco de Souza. São Paulo: Edusp, 1972.

59
superação das épocas passadas. Todavia, perceber-se à frente de seu tempo sem disposição
para apreciar a grandeza, achar-se experiente, mas não saber criar o novo e ser maduro sem
experimentar a ação, para Nietzsche seria tão somente uma crença numa humanidade caduca
e epígona.
O último aspecto tratado por Nietzsche na Segunda Intempestiva como prejudicial à
vida concerne à perigosa disposição da ironia sobre si mesmo, gerando a partir dela, a
disposição para o cinismo. Segundo ele, “nesta porém, desenvolve-se cada vez mais uma
práxis astuta e egoísta, através da qual as forças vitais são inibidas e, por fim, destruídas”
(NIETZSCHE, 2003, p. 40). O homem moderno é orgulhoso por “conhecer” a história,
contudo, ao lado de seu orgulho reside a sua ironia em relação a si mesmo. Em outras
palavras, este homem crente que sabe e que conhece teme no futuro perder sua
“potencialidade”. Tem medo de ser ultrapassado, superado e que nada possa salvar suas
esperanças. Assim ele se torna cínico, pois procura, diante das incertezas, justificar o curso da
história, o desenvolvimento conjunto do mundo de acordo com a intenção do homem
moderno.
O cinismo obedece a um único cânone: “as coisas devem acontecer exatamente como
agora e o homem deve tornar-se como agora os homens o são e não de outro modo, ninguém
se pode insurgir contra este imperativo” (NIETZSCHE, 2003, p. 76). Envolto pelo cinismo, o
homem moderno acredita piamente ser o ponto culminante do processo do mundo30. Dessa
forma, este homem moderno acredita ser o filho recém-chegado, mas ao mesmo tempo, o
mais experiente da trajetória humana. Ele “chama seu modo de viver de acordo com o seu
tempo e completamente sem reflexão de “a entrega total da personalidade ao processo do
mundo”” (NIETZSCHE, 2003, p. 76). Os que vieram antes dele apenas prepararam o caminho
para ele se estabelecer e concretizar o curso da história.
Nesse contexto, o quarto e o quinto aspecto31 estão extremamente relacionados, pois a
predisposição que o homem moderno tem para a ironia e para o cinismo, já configura uma
consequência da falsa crença em achar-se epígono e tardio. Isto implica dizer que ao sentir-se

30
Segundo Reis (2011, p. 178), Nietzsche em vez de se referir e citar Hegel, direciona-se para a obra de Eduard
von Hartmann intitulada A Filosofia do Inconsciente publicada em 1872. Texto de grande sucesso em sua época,
A Filosofia do Inconsciente apresentou o “processo do mundo” como inconsciente. Sob este ponto de vista, o
mundo seguiria um devir teleológico rumo a um desenvolvimento infinito para o futuro. Sua meta seria o juízo
final. Haveria, pois, um inconsciente criador do mundo, tal como o “Espírito” hegeliano ou a “Vontade”
schopenhaueriana, que de forma cega e irracional levaria ao desenvolvimento progressivo. Isto faria com que a
história alcançasse um sentido, uma finalidade, a saber, a redenção do homem. De fato Nietzsche por muitas
vezes faz menção a Hartmann, entretanto, ao longo da Segunda Intempestiva, bem como ao longo de seus
escritos, também é recorrente a menção que ele faz a Hegel.
31
A crença perniciosa de ser epígono e tardio e a perigosa disposição para a ironia e o cinismo.

60
moderno, no sentido mais literal da palavra, o homem desenvolveu também um elevado grau
de ironia e cinismo. Ao acreditar ter se desenvolvido cientificamente em sua forma mais plena
o homem sentiu-se “sábio”, “conhecedor dos fatos”, senhor do passado. Entrementes, este
“conhecimento” não foi capaz de garantir que eles – os modernos – fossem os melhores da
saga humana na terra. Viriam outros depois deles? Seriam eles superados? Nunca souberam!
Apenas tiveram a ironia como fiel companheira e tornaram-se cínicos. Cínico por não admitir
suas limitações e mesmo assim tentar se firmar como único referencial. Cínico por querer
explicar o curso da história a partir das convicções apropriadas ao seu próprio uso. Cínico por
se apresentar como o próprio apogeu do processo do mundo.
Diante desse homem supersaturado de cultura histórica, que se orgulha por conhecer o
processo que o levou até o século XIX, Nietzsche lança sua crítica afirmando que há uma
grande distância entre o conhecimento improfíquo de cultura histórica e a pobreza do homem
moderno enquanto homem de ação. Toda gama de conhecimento e cultura adquirida pelo
homem do século XIX é inútil para ele enquanto um dizer sim à vida. Por outro lado, com
toda esta vasta cultura, ainda assim este homem é pobre de ação, pois só sabe copiar. Ele
deixa se envolver pelo “sentido histórico” acreditando estar vivendo o ápice de seu
desenvolvimento. Seu saber não lhe oferece nenhum tipo de subsídio para fazer fluir a vida.
Ele está tão profundamente imbricado no vir-a-ser do sentido histórico que perdeu todo o
domínio sobre si mesmo e já não consegue traçar metas, criar e constituir seu próprio
acontecer histórico.
Nietzsche conclama este homem a se desprender deste sentido histórico. Para ele, já
está mais que na hora de ativar os impulsos criadores adormecidos. Não há um sentido
universal capaz de submeter a humanidade ao determinismo indicado pelo processo do
mundo. Não há, portanto, um sentido universal guiando a humanidade rumo ao mais elevado,
nem tampouco, uma força exterior capaz de nos conduzir tal como queriam os hegelianos. É
tão somente o homem quem cria o sentido para sua história. Somente ele é capaz de traçar seu
alvo e sua meta rumo a algo que seja realmente grande, nobre e aristocrático. É o homem
enquanto ser dotado de história quem pode possibilitar um novo alvorecer isento de sentido
histórico e de “processo do mundo”, pois como já vimos, se este mundo tivesse um fim, um
objetivo, uma meta, este já o teria alcançado.
É nesta atmosfera permeada pelo historicismo que Nietzsche nos apresenta a forma
como a supersaturação de cultura histórica pode ser nociva para um povo e para uma época. O
excesso de historicismo tira do homem a sua mais digna capacidade e predisposição para o
criar. O exacerbamento de cultura histórica impede que o homem possa sentir e agir a-

61
historicamente, seja por meio da oposição entre o interior e o exterior; seja pela compreensão
equivocada do conceito de justiça; pela perturbação dos instintos; pela crença perniciosa de
ser uma humanidade tardia, ou seja, pela perigosa disposição para a ironia e para o cinismo.
Estes cinco aspectos nocivos à vida tornam o indivíduo, mesmo dotado de conhecimento
histórico, estéril, árido e seco. “Ele deixa de ser intransigente, acerta as contas e se pacifica
com os fatos, não se exalta, compreende que é necessário procurar o próprio proveito nas
vantagens e desvantagens alheias” (REIS, 2011, p. 179).
Nietzsche confia à juventude de sua época a difícil tarefa de conduzir a cultura
histórica por uma via mais salutar. Tal como o navegante perdido em alto mar ele grita:

Terra! Terra! Suficiente e mais do que suficiente, apaixonada busca e


viagem errante, por mares estranhos e obscuros! Agora finalmente mostra-
se uma costa: como quer que ela seja, nela deve se ancorar e o pior porto
emergencial é melhor do que tornar vacilante para a infinitude cética e sem
esperanças. Fiquemos em terra firme; encontraremos mais tarde com os
portos e facilitaremos a chegada dos que vierem depois (NIETZSCHE,
2003, p. 89).

A juventude seria então, a única capaz de curar a modernidade de sua doença histórica,
pois apenas o jovem dotado de vigor e saúde seria capaz de conduzir a história a um novo
patamar. Com a juventude uma nova era se tornaria possível. Isto, no entanto, dar-se-ia
mediante um novo processo educativo que fosse isento de exacerbamento e acúmulo
desnecessário de conhecimento. Uma educação que fosse capaz de instigar a reflexão e a
crítica sobre a própria condição histórica. Para Nietzsche, o conhecimento do passado deve
ser cultivado apenas como uma possibilidade para o criar, como um modo de dizer sim à vida
e não como uma obstrução, um limite, uma condição. A juventude é incitada a criar seu
próprio estilo de vida, conhecer suas próprias limitações, para que possa delas tirar o proveito
necessário. Ela precisa se auto-educar a partir dela mesma por meio de uma reflexão
consciente tanto do passado quanto do presente, sabendo lembrar e esquecer na medida certa.
Nietzsche confia no poder inspirador da juventude, pois foi ela quem o fez protestar
contra a “educação histórica, conduzida pelo homem moderno”. Ela fez o filósofo alemão
afirmar que o homem só deveria viver e utilizar a história a serviço da vida. A história,
portanto, deveria projetar o jovem em direção a um novo hábito e uma nova natureza (REIS,
2011, p. 179). Um hábito isento de historicismo e de exagero histórico. Uma nova natureza
em que eles percebessem a história não apenas como uma fonte de acúmulo de conhecimento
ou para copiar o passado, mas como uma forma de compreensão da história enquanto

62
possibilidade de criação. Uma história pela qual fosse possível o aparecimento e o
desenvolvimento da grandeza. O autor das Intempestivas enfatiza:

Que uma educação com tais metas e com estes resultados seja antinatural,
isso sente apenas o homem que ainda não foi formado nela, que sente
apenas o instinto da juventude porque esta ainda tem o instinto da natureza,
que só é rompido artificial e violentamente por esta educação. Mas quem
quiser romper esta educação deve ajudar a juventude a ganhar voz, deve
iluminar o caminho de sua resistência inconsciente com a clareza de
conceitos e transformá-la em consciência consciente e que fale alto. Como
ele pode alcançar uma meta tão estranha? (NIETZSCHE, 2003, p. 91).

A Modernidade apresentou um homem esfacelado, despedaçado, coberto por


conceitos, sem motivação para a vida. Este homem talvez ainda tenha o direito de dizer, à
maneira cartesiana, cogito ergo sum – penso logo existo – mas, não pode dizer: vivo logo
existo. Ele pensa, mas pensa sobre o passado, sobre o acúmulo de conhecimento. É, portanto,
na opinião nietzschiana, um ser vazio. Sua vida não é plena, sua ação lhe assegura apenas que
é um ser pensante, que “conhece”, mas não um ser que vive, que cria, que diz sim à vida. Isto
implica dizer que o excesso de cultura histórica se torna uma forma de degeneração da vida,
pois vida é pulsação, eterna possibilidade de vir-a-ser, um constante impulso para o criar.
Mais tarde Nietzsche vai alegar que vida é Vontade de Poder. Vista de outra maneira – à
maneira moderna – vida se resume em acumular conhecimento, exaurir-se de cultura histórica
e copiar o passado.
Por isso, a juventude é a única capaz de fazer fluir a vida. Quanto a isto, Nietzsche diz
que “nenhum deus e nenhum homem: somente a sua própria juventude: arrancai-a dos
grilhões e tereis com isto, libertado a vida. Pois a vida estava apenas oculta, na prisão, ela
ainda não apodreceu e se extinguiu – perguntai a vós mesmos!” (NIETZSCHE, 2003, p. 94).
Haveria ainda uma chance à vida. Estando doente, esta vida agrilhoada necessita ser curada,
pois não sabe utilizar o passado de forma conveniente. De modo que para salvar a vida que
degenera em uma terrível doença histórica, a juventude é conclamada. Segundo Nietzsche:

Se a juventude não tivesse o dom da vidência da natureza, então ninguém


saberia que isso é um mal e que um paraíso da saúde foi perdido. Esta
mesma juventude, porém, com os instintos curativos da mesma natureza,
também decifra como ganhar este paraíso de novo; ela conhece os bálsamos
e os medicamentos contra a doença histórica, contra o excesso de história
[...] (NIETZSCHE, 2003, p. 95).

63
Segundo Nietzsche, da mesma forma que sua época sofria pela supersaturação de
cultura histórica, ela teria também em mãos o antídoto, a saber, o a-histórico e o supra-
histórico. Com estes medicamentos, a juventude poderia desenvolver uma nova maneira de se
compreender a função da história em relação à vida. A história passaria a ter uma relação
estreita com a vida, sendo ambas, possibilidades de desenvolvimento e geração de grandeza.
O exacerbamento da história esgotou a ação criativa do homem moderno que passou apenas a
repetir a grandeza dos de outrora, sem forças para produzir a partir de si próprio. Diante dessa
situação Nietzsche indaga:

Será então que a vida deve dominar o conhecimento, a ciência, ou será que
o conhecimento deve dominar a vida? Qual destes dois poderes é o mais
elevado e decisivo? Ninguém duvidará: a vida é a mais elevada, o poder
dominante, pois o conhecer que aniquila a vida aniquilaria ao mesmo tempo
a si mesmo (NIETZSCHE, 2003, p. 96).

A vida é então o ponto de partida, a base fundamental da história, “conhecer pressupõe


a vida” (NIETZSCHE, 2003, p. 96). É preciso que haja uma determinada inspeção e controle
sobre a ciência – conhecimento – para que esta não venha se sobrepor à vida. Haverá de
existir uma “doutrina da saúde da vida” que exerça sobre a ciência a justa medida entre
memória e esquecimento. Lembrar e esquecer, como veremos adiante, fará com que o homem
doente pelo excesso de cultura histórica, possa novamente viver para a criação. A leitura da
Segunda Intempestiva mostra que da mesma forma que o excesso prejudica, o total
esquecimento também aniquila. Por isso, uma atitude salutar que saiba mediar lembrança e
esquecimento se faz necessário diante da história. Esta é a doutrina nietzschiana para lidar
com o historicismo do século XIX, pois “uma sentença desta doutrina da saúde diria: o a-
histórico e o supra-histórico são os antídotos naturais contra a asfixia da vida pelo histórico,
contra a doença histórica” (NIETZSCHE, 2003, p. 96).
Contudo, diante do historicismo e a exaltação às ciências que marcaram o século XIX,
Nietzsche também previu que um pensamento histórico que fosse contrário às metodologias
vigentes pudesse sofrer alguma reação adversa. “É provável que nós os doentes de história,
também tenhamos de sofrer com os antídotos” (NIETZSCHE, 2003, p. 96), diz o filósofo
apontando para uma possível acusação de inculto, irracional e antimoderno. Isto no entanto,
não abalará aquele que encontrou a devida relação entre história e vida por meio do a-
histórico e do supra-histórico. A ele será delegado uma nova esperança, um novo olhar para a
vida e para a história. Este será o papel de novo historiador, ou seja, um historiador-filósofo
capaz de reeducar a juventude. Este historiador-filósofo será responsável pela apresentação de
64
uma nova forma de história. Uma história que esteja ligada não às modernas metodologias
científicas, mas relacionada à vida na sua infinita possibilidade de superabundância,
transbordamento e exuberância.
O novo historiador mostrará que toda leitura é passível de interpretação e que toda
interpretação faz parte de uma dominação e de uma apropriação (REIS, 2011, p. 180). Ou
seja, a interpretação está em consonância com o valor que a ela atribuímos. Apropriamos-nos
e dominamos um determinado fato para a ele darmos nossa interpretação. O novo historiador
também ensinará que o homem será virtuoso quando não se prender mais ao passado para
copiar, mas tão somente para adquirir inspiração e produzir grandeza. O homem virtuoso, por
sua vez, saberá discernir entre memória e esquecimento para que possa enfim compreender a
utilidade e desvantagem da história para a vida.

3.2 Sobre as três espécies de história

Ao examinar a relação entre história e vida, ou seja, a maneira em que a história pode
ser transformada em um dispositivo a serviço da vida, Nietzsche declara sua utilidade ao
vivente afirmando que:

A história é pertinente ao vivente em três aspectos: ela lhe é pertinente


conforme ele age e aspira, preserva e venera, sofre e carece de libertação. A
esta tripla ligação correspondem três espécie de história, uma vez que é
permitido diferenciar entre uma espécie monumental, uma espécie
antiquária, e uma espécie crítica de história (NIETZSCHE, 2003, p. 17-18).

Dessa forma, em três aspectos distintos a história pode se útil à vida. Entrementes,
como veremos mesmo sendo distintas as histórias monumental, antiquária e crítica constituem
uma o complemento da outra, de modo que não se pode de maneira alguma priorizar esta ou
aquela. As três são, portanto, partes de um todo que faz o homem viver de acordo com aquilo
que configura um atributo incomensurável da vida, a saber, a possibilidade para a atividade
criadora.
Consequentemente, por três razões a história se torna um bem salutar para o homem.
Em outras palavras, o homem ao se caracterizar como um ser ativo que persegue fins e
objetivos, busca no passado, através de seus grandes personagens e acontecimentos, a
inspiração para que possa agir conforme suas disposições criativas. Esta disposição é
fornecida pela história monumental. Em seguida o homem se vê diante da necessidade de
preservar aquilo que é próprio de seu processo histórico, quer dizer, sua cultura, seu modus
65
vivendi e sua tradição. Tal condição para conservar e venerar sua tradição ele encontra na
história antiquária. Por fim, o homem busca na história crítica as forças necessárias para o
questionamento e o desprendimento do passado.
É neste contexto que a história torna-se um dispositivo capaz de inspirar a criação do
novo a partir daquilo que de mais grandioso já foi produzido através dos tempos. Ela também
torna possível a manutenção e a preservação daquilo que se tornou uma tradição, fazendo o
homem manter-se junto à sua trajetória histórica. Por último, torna-se salutar à vida
justamente por instigar a crítica daquilo que de mais incômodo o passado nos possa oferecer.
Todavia, a três espécies de história – monumental, antiquária e crítica – quando utilizadas
incorretamente causam, como veremos a seguir, o excesso histórico e a degeneração da vida.

3.2.1 A história monumental

A história monumental tem como função deixar seu legado de grandes feitos e
ostentações para as eras posteriores. Sua virtude consiste em oferecer exemplos de
grandiosidade para que enfim possam ser seguidos como fonte de inspiração. É a partir da
história monumental que os agentes históricos irão encontrar toda a inspiração necessária para
a criação e o porvir de novos tempos. Segundo Fernandes:

A história monumental como podemos entender, foi o sentido máximo de O


Nascimento da Tragédia que teve sempre como meta elucidar o sentido
maior possível de toda a tradição para potencializar o renascimento de uma
vitalidade humana de que o homem já fora capaz outrora na cultura grega
(FERNANDES, 2008, p. 65).

Por conseguinte, faz parte do propósito da história monumental produzir no homem o


estímulo e a sedução necessária para o processo do criar artisticamente. Ao preservar as
aventuras de outrora, a história monumental inspira a humanidade a lançar-se frente ao aberto
que é a vida, pois nela o homem encontra força para determinar seu acontecer histórico.
Assim, tal história mostra aos homens aventureiros do futuro que seus antepassados também
já passaram pelas mesmas adversidades que eles e foram capazes de superá-las. Para tanto,
bastou apenas virtude, grandeza e capacidade de dizer sim à sua condição humana.
É neste sentido que a história monumental apresenta seu caráter atemporal, pois suas
qualidades não são esvaziadas com o tempo, mas é através dele que ela se solidifica como

66
uma fonte inesgotável de exemplos para épocas vindouras e promissoras. Nas palavras de
Nietzsche:

Através de que se mostra útil para o homem do presente a consideração


monumental do passado, a ocupação com o que há de clássico e de raro nos
tempos mais antigos? Ele deduz daí que a grandeza, que já existiu, foi, em
todo caso, possível uma vez, e, por isto mesmo, com certeza, será algum dia
possível novamente; ele segue, com mais coragem, o seu caminho, pois
agora suprimiu-se do seu horizonte a dúvida que o acometia em horas de
fraqueza, e de que ele estivesse talvez querendo o impossível
(NIETZSCHE, 2003, p. 20).

A história monumental tem a missão de preservar a grandeza histórica de sua época


para que em épocas que se seguem o homem possa, a partir dela, observando seus exemplos,
criar algo novo e tão grandioso quanto outrora. É assim que o homem criativo, utilizando suas
faculdades artísticas, pode enfim dar continuidade de maneira digna e salutar à sua saga na
terra.
Tal espécie de história permite ao homem, na qualidade de gênio criativo que
constantemente se auto-supera, lançar-se sempre no aberto da existência e artisticamente
determinar seu processo histórico. São estes homens que inspirados pelas atribuições da
história monumental não deixam que a tradição torne-se um fardo, uma estaticidade, uma
constante presença. Pois, ao apropriar-se da história monumental como uma fonte de
inspiração, o homem revitaliza sua tradição, sua cultura e sua história. A história monumental
tem por finalidade preservar os grandes feitos não no sentido de permanência, mas como uma
ação criadora capaz de inovar e revitalizar a cultura.

O papel de estimular e seduzir o homem para a sua aventura criativa é o da


história monumental, que procura guardar os exemplos dos aventureiros de
outrora para consolar os aventureiros futuros de sua angústia e de sua
solidão, para servir como uma iluminação indicando que todas as trevas de
sua angústia um dia também já foram transpassadas por outros homens que
tiveram o vigor e a grandeza de enfrentá-las e buscar o caminho criador de
sua cultura através delas (FERNANDES, 2008, p. 66).

Portanto, a história monumental serve como uma grande encorajadora da ação


humana. A partir dela o homem passa a criar e a viver de forma plena sua época. Somente
mediante os grandes feitos do passado o homem encontra inspiração para constituir sua
própria história. Ou seja, na história monumental são os grandes feitos e as grandes
personalidades quem inspiram os homens do presente a agir de forma grandiosa. Com ela o

67
homem orienta sua ação para o futuro no qual ação, criação, esforço e sacrifício são atitudes
dignas e próprias de grandeza, pois foram inspiradas também pela grandeza.
Todavia, como enfatiza Rodrigo Guérom, Nietzsche revela também que quando uma
ação grandiosa se expande, consequentemente uma ação contrária a ela, uma força reativa se
desenvolve (GUÉRON, 2003, p.129). Assim, a história monumental enquanto realização dos
grandes feitos da humanidade e fonte de inspiração para o presente, quando utilizada
inadequadamente, desenvolve uma contra-força que não a concebe como fonte de
encorajamento, mas tão somente, como modelo a ser copiado. Tende-se então a menosprezar
o novo desqualificando-o como inferior àquilo que outrora fora criado. A história monumental
deixa de ser uma força de estímulo à criação e passa a ser meramente uma ideia a ser copiada.
Neste sentido, a história monumental perde o seu sentido originário e torna-se um desserviço
à vida.
É neste sentido que Nietzsche vai dizer em sua Intempestiva que a história
monumental, utilizada sem moderação, torna-se uma mitificação do passado. Uma mitificação
no sentido em que deixa de ser uma fonte de inspiração e passa a ser apenas um modelo a ser
copiado. Vista dessa forma, a história monumental apresenta seus antepassados como
arquétipos de grandeza que servem não de inspiração, mas tão somente de modelo a ser
copiado, imitado. Não há, portanto, esforço para a criação, não há força e vigor para criar o
novo, o inédito. O uso exagerado da história monumental traz em si também a degeneração e
o atrofiamento da vida
A historia monumental utilizada apenas enquanto modelo, torna o passado uma
espécie de alegoria em que heróis, guerreiros e povos virtuosos tornam-se idealizações a
serem copiadas. Aqui todas as adversidades e contradições humanas são escamoteadas. O
passado é visto em sua plena perfeição, não há adversidades nem imperfeições. Vista dessa
forma, a grandeza histórica não é de forma alguma questionada, não há suspeitas sobre a
dignidade do passado. Nada é capaz de violar o homem do presente que vê no passado um
ideal a ser seguido, pois para ele, a virtude de seus antepassados é tão sublime que necessita
ser imitada.
É assim que Nietzsche nos apresenta o perigo da história monumental. Na mesma
medida em que ela se mostra essencial à vida no sentido de nos inspirar e de nos mover na
criação do futuro; também se apresenta como um atrofiamento da vida enquanto capacidade e
possibilidade para o criar. Por conseguinte, o que há de importante na história monumental
não é sua virtude reprodutiva, mas tão somente, sua capacidade de inspirar o homem no
processo de criação. É ao inspirar-se nos acontecimentos de outrora que o homem passa a

68
criar e a moldar sua história que, por sua vez, passa a ser também monumental e capaz de
inspirar aqueles que vierem posteriormente.
Estar exacerbado pela história monumental é correr o risco de encontrar-se inutilizado
frente às adversidades da condição humana. Ou seja, corre o risco de não se estar preparado
para lidar com o processo de criação e se considerar fraco justamente por não conseguir
desenvolver as mesmas grandezas de seus ancestrais. É perceber-se inapto para o criar
artisticamente e conceder apenas ao antigo o título de grande, de capaz e de nobre. Agir de tal
forma significa para Nietzsche degenerar a vida, torná-la caduca, pois visto por este ângulo,
só o passado apresenta-se capaz de criar e guiar a história.
Segundo Nietzsche, a utilidade da história monumental é encontrada apenas na medida
em que esta se apresenta a serviço da ação humana, ou seja, na medida em que oferece ao
homem as condições necessárias para o criar artisticamente. A história monumental tem por
função encorajar o homem a moldar sua história e dignificar o presente perante o futuro, pois,
no futuro o presente se tornará passado e como tal deverá servir como fonte de inspiração para
os que virão. Sua desvantagem consiste justamente em tornar o passado um meio de estagnar
a ação criadora do homem. Em outras palavras, conceber a história como algo a ser apenas
copiado é remover dela todo seu potencial criativo e não mais concebê-la como uma
possibilidade.

3.2.2 A história antiquária

A função principal da história antiquária consiste em preservar a grandeza histórica


para que ela seja utilizada em épocas pouco criativas. Ela serve como um elemento
revitalizador no sentido que guarda no homem a responsabilidade de preservar todo o grande
feito que seus ancestrais se empenharam em realizar. É também uma forma de mostrar ao
homem do presente toda historicidade de outrora. Nela se encontra preservado todo o vigor
criativo da ação humana. Por isso, em tempo de pouca criatividade, ela permanece ostentando
todo o legado da aventura humana. Neste sentido, a história antiquária encontra-se
subordinada à história monumental, pois ela carrega em si a missão de proteger as realizações
desta (FERNANDES, 2008, p. 69).
Dessa forma, a história antiquária já faz parte da condição humana. Todos os homens
fazem parte dela na maneira em que preservam todo um conjunto de ações sociais e culturais.
Todo homem acaba, de alguma forma, por contribuir com a história antiquária na medida em

69
que preserva e dá continuidade aos seus hábitos culturais. Estes hábitos formam um conjunto
de costumes que são passados de pais para filhos, de professores para alunos... Assim, a
história antiquária parece ser intrínseca à vida. O pai que ensina ao filho seus costumes
sociais, o professor que transmite aos alunos o legado cultural através da história e até mesmo
o Estado com suas leis que são transmitidas rigorosamente; de alguma forma cultivam a
história antiquária, pois preservam um modo de ser e de proceder que está imbricado pela
continuação histórica.
Na história antiquária, a tradição é preservada para que as gerações futuras possam ter
acesso à grandeza acumulada pelas gerações passadas. Ao voltar-se para tal espécie de
história, o homem ou o historiador preserva as conquistas de outrora e as guarda com
veneração. “Conforme cuida, com mão precavida, do que ainda existe de antigo, busca
preservar as condições sobre as quais surgiu para aqueles que virão depois dele – e assim ele
serve à vida” (NIETZSCHE, 2003, p. 25). É a história antiquária que faz o homem ser fiel à
terra. Ele olha com amor e fidelidade para trás, para seu lugar de origem, o lugar onde se criou
e cuida daquilo que ainda existe. Ele preserva a tradição para aqueles que estão por vir, ou
seja, com sua alma preservadora e veneradora concebe o antigo como o seu território, como a
sua pátria. Ele conhece, preserva e venera a tradição de sua cidade, do seu país, do seu povo,
pois para ele, tudo faz parte de sua própria trajetória (REIS, 2011, p. 188).
É esta a principal característica da história antiquária, a saber, fazer com que o homem
não se desvencilhe de sua tradição. O homem da história antiquária se encontra na história do
seu povo, do seu lugar de origem e dos seus ancestrais. A história antiquária serve da melhor
forma à vida conectando as gerações e as populações menos favorecidas à sua terra natal, aos
seus hábitos, tornando impossível que percam as suas origens e sua identidade (NIETZSCHE,
2003, p. 25). Nela o homem não se perde no vácuo do tempo, não se esquece de suas origens,
de seu povo nem de seus costumes. Por vezes ele pode parecer insensato, mas sua insensatez é
saudável, pois conserva em si a capacidade de preservar sua história, sua cultura e sua
tradição para que outros possam também dela se apropriar.
Podemos dizer então que a história antiquária apresenta certas semelhanças com a
história monumental no sentido da valorização que ambas nutrem pelo passado, ainda que de
maneira distinta. É na história antiquária que valorizamos as particularidades do cotidiano e a
história passa a ser mais humana, mais real. É preservada a história do dia-a-dia e não apenas
os grandes monumentos, os grandes homens, os grandes acontecimentos. Aqui a história de
nossa cultura, nosso povo, nossa pequena cidade é também valorizada. É este tipo de história
que nos mantém em nosso lugar de origem (GUÉRON, 2003, p. 129). É o que nos faz dar

70
importância ao nosso povo, nosso lugar e nossa cultura, pois com ela percebemos nosso valor
cultivando a força e a vontade de persistir.
Por ser uma força conservadora, a história antiquária corresponde bem à função de
conservar toda força criadora e transformadora que a história possa oferecer. Contudo, seu
excesso é tão prejudicial quanto o da história monumental, pois ao supervalorizar seus
hábitos, suas crenças e sua cultura ao ponto de tê-los como único referencial, o homem perde
toda sua capacidade criativa e torna-se infértil. Em outras palavras, ele perde aquilo que de
mais importante lhe pertence: a capacidade de agir e de criar artisticamente.
O exacerbamento da tradição faz o homem rejeitar tudo aquilo que seja alheio a ela. A
história torna-se, portanto, uma doença32. Tudo aquilo que se apresenta como novo, como
próprio do presente, torna-se rejeitado. Ao homem tomado pelo excesso de história antiquária
resta apenas aquilo que lhe é fornecido pela tradição. Sua natureza, história e visão de mundo
tornam-se limitada àquilo que ele aprendeu e conservou ao longo do tempo. Tudo aquilo que
é novo, estranho, diferente, torna-se indesejável, renunciável e rejeitado.
Dessa forma, na mesma medida em que a história antiquária confere uma utilidade a
serviço da vida enquanto conservação da força criadora; ela pode também tornar-se
prejudicial no sentido de estagnar a ação humana perante a atividade criativa. O novo passa
então a ser repugnado justamente por não fazer parte da tradição. Não há, portanto, a justa
medida entre a preservação e a criação. O passado se torna tão forte ao ponto de submeter e
dominar o presente. A história antiquária vista por este ângulo passa então a oferecer um
desserviço para a vida e sua ação negativa se equipara a da história monumental, pois ambas
fazem o homem tornar-se prisioneiro do passado.
O risco da história antiquária está justamente na sua veneração ao antigo, pois nela o
elemento criativo tende a ficar esquecido. Deste modo, aquilo que ela mais deveria preservar
e conservar – a capacidade criativa – fica adormecida e não oferece nenhuma utilidade à vida.
Segundo Nietzsche, no exacerbamento da história antiquária:

O homem envolve-se com um cheiro de mofo; através da mania antiquária,


ele consegue reduzir uma disposição mais significativa, uma necessidade
nobre, a uma sede insaciável por novidade, ou, mais corretamente, por
antiguidade, e por tudo e por cada coisa; freqüentemente ele desce tão baixo
que acaba por ficar satisfeito com qualquer migalha de alimento e devora
com prazer mesmo a poeira de minúcias bibliográficas (NIETZSCHE,
2003, p.28-29).

32
A doença histórica.

71
A utilização inadequada da história antiquária provoca no homem a veneração ao
antigo fazendo com que ele fique absorto no mar da tradição. Seu amor excessivo pela
tradição impede que nele se desenvolva a capacidade artística da criação, tornando-o um tipo
decadente, sem força, sem vigor e sem brilho.
Em outras palavras, queremos dizer que consumido pela veneração ao passado, aquilo
que a tradição ostenta como grande e que a história antiquária conserva, faz o homem perder o
foco daquilo que de mais grandioso lhe pertence: a vida, a conquista, a eterna possibilidade de
criar e desenvolver a história. Exacerbado pela tradição, o horizonte humano da criação é
definitivamente esquecido. A veneração ao velho torna-se sua única opção. Sua cultura torna-
se velha, caduca, sem novidades, pois todas as suas forças são empenhadas na conservação do
antigo. A história antiquária perde então sua função de mantenedora das ações humanas, ou
seja, sua disposição para preservar aquilo que de mais grandioso fora produzido e passa a ser
um mero modo de se venerar o passado.
Portanto, fica claro que a proposta de Nietzsche para a história antiquária não é esta.
Sua proposta é que com ela o homem possa preservar e venerar sua tradição. Em outras
palavras, que ele possa olhar para trás com amor e fidelidade à sua terra natal, aos seus
hábitos e ao seu povo. Ela prefigura uma possibilidade de preservarmos nosso passado, mas
que paralelamente a esta preservação possamos também poder criar algo de grandioso, algo
que faça com que a nossa história torne-se diferente e original. Esta é a função da história
antiquária, fazer com que o homem não se esqueça que a vida é uma eterna possibilidade de
se desenvolver sua própria história.

3.2.3 A história crítica

A história crítica é a terceira espécie de história apresentada por Nietzsche ao longo da


Segunda extemporânea, ou seja, é a história daquele que “sofre e carece de libertação”
(NIETZSCHE, 2003, p.18). Ela possibilita ao homem explodir e dissolver o passado a fim de
poder viver. Ou seja, com ela o homem traz o passado para o tribunal, inquirindo-o e
condenando-o. Esta sentença não é concedida nem pela justiça nem pela misericórdia, mas
pela própria vida que é, por assim dizer, um poder obscuro, impulsionador e inesgotável que
deseja a si mesmo. É dessa maneira que a história crítica “corresponde a uma atitude
fundamental que, em primeiro lugar se abre para o presente, faz dele padrão das coisas

72
passadas, conduz a história ao fórum do presente” (FINK, 1983, p. 38). Com a história crítica
é possível então julgar e esquecer um passado pouco produtível.

Aqui fica claro o quão necessariamente o homem, ao lado do modo


monumental e antiquário de considerar o passado, também precisa muito
freqüentemente de um terceiro modo, o modo crítico: e, em verdade, este
também uma vez mais a serviço da vida. Ele precisa ter a força e aplicá-la
de tempos em tempos para explodir e dissolver um passado, a fim de poder
viver: ele alcança um tal efeito conforme traz o passado para diante do
tribunal, inquirindo-o penosamente e finalmente condenando-o; no entanto,
todo passado é digno de ser condenado – pois é assim que se passa com as
coisas humanas: sempre houve nelas violência e fraqueza humanas potentes
(NIETZSCHE, 2003, p 29-30).

O homem necessita da história crítica pelo simples fato desta carregar em si a


possibilidade de se romper com o passado. É certo que o homem conserva o passado por meio
das histórias monumental e antiquária, mas em certo momento precisa destruí-las para poder
construir algo de novo. É quando entra em cena todo esplendor da história crítica. Nela o
passado nos aparece de forma mais real, possível e acessível. Na história crítica o homem
avalia seu devir histórico, reflete sobre o presente e, a partir dele, desprende-se do passado no
sentido de não deixá-lo influenciar de forma negativa em sua atividade criativa. É na história
crítica que o passado é julgado e apenas aquilo que se apresenta como útil à vida é
considerado. O que não vale a pena é descartado.
Porém, o perigo da história crítica reside justamente na ruptura definitiva com o
passado. Seu perigo está no desapego completo do passado ficando totalmente isolado no
presente. Para Fernandes, “é o perigo de cortar as suas raízes tão profundamente que a planta
acabe se extinguindo com a extirpação” (FERNANDES, 2008, p. 71). Como já vimos
anteriormente, a história é necessária no sentido de conservar a grandeza histórica para que
sirva de exemplo aos que vierem depois. Por isso, se a renegarmos por completo estaremos
desperdiçando todo nosso legado. A ruptura total com o passado nos torna crianças recém
nascidas sem força e sem ação. Este é o perigo da história crítica quando não utilizada na
medida correta.
Assim sendo, na história crítica se faz necessário saber dosar e saber separar aquilo
que configura um passado morto e sem possibilidade de vida, daquilo que apresenta uma nova
vida em potencial. Dosar a história crítica é fazer nascer a planta da semente que o passado
produziu. É separar no passado aquilo que é próprio da vida daquilo que a degenera. Olhando
por este ângulo, a história crítica parece ser a mais especial das três espécies de histórias
apontadas por Nietzsche. Entretanto, não devemos nos deixar iludir. Sem a grandeza deixada
73
pela história monumental e a conservação apresentada pela história antiquária, a história
crítica se tornaria inerte, pois perderia todo seu referencial, não tendo ponto de apoio e não
sabendo o que criticar.
A visão crítica da história quando utilizada de forma exagerada acaba por destruir o
passado de forma tão radical que nos faz desconhecê-lo. A crítica só é salutar na medida em
que se torna capaz de, com os erros e acertos, construir algo de grandioso na história.
Entrementes, se a crítica tem por objetivo apenas o afastamento do passado para que possa
dele se abster por completo, então sua finalidade perde o foco e aquilo que de útil ela podia
oferecer transforma-se em doença. Sua utilidade só ocorre mediante a ponderação e a reflexão
sobre as ações humanas no passado, para que no presente, e consequentemente no futuro,
possa enfim, transformar-se em algo puramente grandioso.
É dessa forma que a história crítica consegue se sobressair como uma espécie de
história instauradora da vida, pois sua ação constrói no futuro um passado que não
alcançamos e que só percebemos graças à sua crítica (GUÉRON, 2003, p. 131). Sendo assim,
é este olhar crítico do passado que nos faz procurar o diferente, o novo, o artístico. É este
olhar crítico da história que possibilita ao homem a busca incessante pela criação não só
daquilo que o passado não lhe concedeu, mas também daquilo que fora proporcionado pela
história monumental e antiquária.
Como foi apresentado anteriormente33, o excesso de história crítica se transforma
também em excesso de erudição tal como ocorreu no século XIX em que a história sagrou-se
como ciência. Foi o excesso de conhecimento histórico e o desejo de – a partir da análise
crítica – descrever matematicamente os fatos que fizeram a história se auto-insuflar de
conhecimentos que em nada edificavam a vida34. A história enquanto ciência apenas
acumulava erudição e tentava em vão descrever os eventos passados exatamente como eles
haviam ocorrido.
Para Nietzsche, a história enquanto ciência moderna abdicou de toda sua utilidade para
a edificação da vida e voltou-se apenas para a pesquisa imparcial dos fatos a fim de descrevê-
los fielmente. Tudo isso sem nenhuma pretensão, sem nenhuma finalidade, sem nenhum
compromisso que levasse à criação e à manutenção da vida; apenas movido pelo desejo de
resgatar com exatidão os eventos passados e acumular conhecimento.

33
Cf. segundo capítulo quando Nietzsche critica a história como ciência na Modernidade.
34
Nesta época, a análise crítica da história concernia a busca pela verdade ou falsidade dos fatos passados e não
pela sua utilidade ou desvantagem para a vida presente.

74
Como consequência desta supervalorização da história crítica, o homem passou a
julgar o passado achando-se mais justo e virtuoso que seus ancestrais. O homem tornou-se
juiz dos fatos históricos delimitando o que lhe era “verdadeiro” ou “falso”. Tal como o objeto
nas mãos do cientista, o passado passou a ser minuciosamente analisado, julgado falso ou
verdadeiro, objetivado e cientificamente datado. Nesse contexto, o homem-historiador sentiu-
se fora da história, olhando-a e analisando-a como um observador externo que estivesse livre
de qualquer comprometimento com o passado, o presente e o futuro. Tudo em nome de uma
cientificidade histórica que o fez desapartar do processo histórico como se este fosse um
movimento extrínseco sem qualquer relação com suas atitudes e ações.
Assim, a história enquanto ciência, supervalorizada pelo exacerbamento da história
crítica desenvolveu no homem do século XIX um sentimento de desapego à vida como
possibilidade para a construção de sua história. A crítica foi levada às suas últimas
consequências quando perdeu o foco do novo, do grande e do inédito para esquecer
totalmente o passado ou tentar descrevê-lo com exatidão.

3.2.4 Considerações acerca das três espécies de história

As histórias monumental, antiquária e crítica estão, pois, imbricadas uma na outra. São
ao mesmo tempo inseparáveis e complementares, uma vez que uma encontra-se ancorada na
outra. Em outras palavras, a história monumental apresenta os grandes feitos da humanidade
para que deles possamos também criar a nossa própria grandeza. A história antiquária
preserva em nós a grandeza estipulada pela cultura e pela tradição, sobretudo não nos
deixando esquecer nossa força potencial para a criação. Por fim, a historia crítica que nos faz
considerar o passado para que dele possamos exercer nossas atividades criativas. Seria
ingenuidade imaginar uma ausente da outra, pois o monumento, a tradição e a crítica
oferecem virtudes distintas e complementares à vida.
As três espécies de histórias quando consideradas na medida certa propiciam o
aparecimento de uma atmosfera a-histórica a partir da qual pode surgir uma nova história.
Tomado por esta atmosfera, o homem lança-se neste aberto que é a vida e passa a construir o
desenrolar de sua própria história. É nesta perspectiva que a história apresenta suas
disposições para a ação criativa. Sua utilidade consiste justamente em instigar no homem suas
faculdades criativas para que este possa enfim determinar o curso do seu devir.

75
As histórias monumental, antiquária e crítica são então inseparáveis, pois com a
primeira temos os grandes feitos deixados por aqueles que um dia, tocados pela força
propulsora da vida, deixaram seu legado para as nações posteriores. Depois temos a história
antiquária que se propõe a preservar a cultura e os costumes da terra e do lugar. E por fim,
temos a história crítica destinada a servir à vida daquele que tem necessidade de libertação.
Sendo, portanto, “aquela que julga o passado e, como diz Nietzsche, sempre o condena”
(GUÉRON, 2003, p. 131). É neste sentido que Nietzsche declara a utilidade e desvantagem da
história para a vida35. Contudo, como fica claro na Segunda Consideração Intempestiva, “as
três espécies de história existentes só encontram plenamente o que lhes cabe em um único
solo e sob um único clima: em qualquer outra condição a história se transforma em uma
excrescência desertificadora” (NIETZSCHE, 2003 p. 24-25). Isto implica dizer que o seu
excesso configura uma doença e as três espécies de história, utilizada de forma exacerbada,
constituem uma unidade capaz de fazer compreender o modo inadequado em que a história
era utilizada no século XIX. Segundo Vattimo:

Todos estes são os danos que o excesso de historiografia produz numa


sociedade; a vida, de fato, tem necessidade de “esquecimento”, de um
horizonte definido, de um certo grau de inconsciência. Isto não quer dizer
porém que o conhecimento do passado não tenha também uma utilidade
para a vida: é a utilidade que se manifesta nas três formas “positivas em que
Nietzsche acha que se articula o estudo histórico: a historiografia
monumental, a historiografia Antiquária e a crítica. Nenhuma destas três
formas, importa sublinhar, coincide com a atitude que domina a
historiografia oitocentista: nenhuma, de fato, procura no passado um “curso
lógico” de acontecimentos que sirva para justificar o presente, para educar a
força de trabalho ou para cultivar o sentido do inexorável fluir das coisas
humanas (o momento mori) (VATTIMO, 1990, p. 30).

Como solução para o problema do excesso, Nietzsche nos apresenta o esquecimento.


O esquecimento seria então, a instância capaz de fazer o homem repensar a história levando
em consideração o saber lembrar e o saber esquecer na medida correta. A memória e o
esquecimento se tornam as duas dimensões que mediados pela força plástica combatem o
historicismo e mostram ao homem a relação existente entre história e vida.

35
A utilidade da história decorre da possibilidade de criação. É o estar a serviço do agir, da conservação das
forças criadoras, da ponderação e da reflexão sobre o passado. A utilidade da história para a vida, dar-se-á
enquanto edificação e instigação das forças criativas. Utilidade aqui não diz respeito, portanto, a juízo de valor
daquilo que seja bom ou ruim na história.

76
3.3 Esquecimento, memória e força plástica

Esquecer e lembrar são ambas condições da história. Em outras palavras, esquecer é


poder tornar-se a-histórico para assim poder agir e criar. O esquecimento não é uma força
inercial, é como uma espécie de tábula rasa da consciência, zelador da ordem psíquica, fonte
de esperança, fonte do porvir. Só aquele que se afirma no limiar do momento e esquece todo
o passado, aquele que não se submete a um ponto fixo e mostra-se capacitado para a ação
através do esquecer, este sabe utilizar a história a seu favor. Por isso, o esquecimento é
próprio dos homens nobres, pois faz com que eles olhem para o futuro enquanto os homens
fracos olham para o antigo e ficam a contemplar as dores passadas. Para Nietzsche, é possível
viver quase sem lembrança e ainda assim ser feliz. A memória, embora imprescindível para o
homem como ser histórico, precisa ser colocada a serviço do esquecimento para que possa
haver história e criação. Isto porque as lembranças devem existir apenas para os elementos
capazes de fomentar a ação, o restante deve ser esquecido, jamais copiado.
A faculdade de esquecer é enfatizada por Nietzsche através de uma espécie de
metáfora logo no início de sua obra36:

Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é
ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita
de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira
fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto,
nem melancólico nem enfadado. Ver isto desgosta duramente o homem
porque ele se vangloria de sua humanidade frente ao animal, embora olhe
invejoso para sua felicidade – pois o homem quer apenas isso, viver como o
animal, sem melancolia, sem dor; e o quer entretanto em vão, porque não
quer como o animal. O homem pergunta mesmo um dia ao animal: por que
não me falas sobre tua felicidade e apenas me observas? O animal quer
também responder e falar, isso se deve ao fato de que sempre esquece o que
queria dizer mas também já esqueceu esta resposta e silencia: de tal modo
que o homem se admira disso (NIETZSCHE, 2003, p. 07).

Desta forma, o animal encontra a felicidade e vive feliz justamente por não possuir
história. O homem, por sua vez, observa o animal e inveja sua felicidade. O animal possui
tudo aquilo que o homem almeja, ou seja, uma vida feliz ausente de dores e melancolia. Esta
suposta felicidade no animal decorre do fato deste estar sempre a esquecer o que aconteceu e
se entregar sempre ao momento presente. Ao contrário, o homem, por não saber esquecer vê-
se sempre preso ao passado, determinado e condicionado por ele.

36
Segunda Consideração Intempestiva: da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida.

77
O esquecimento é, deste modo, a condição para a ação humana, pois, “a todo agir liga-
se um esquecer: assim como a vida de tudo o que é orgânico diz respeito não apenas à luz,
mas também à obscuridade” (NIETZSCHE, 2003, p. 09). Não esquecer é deixar ser dominado
pelo passado, é deixar ser condicionado pelas lembranças sem acreditar na sua própria
possibilidade. O peso do passado o oprime, pois o puxa incessantemente para trás. A criança
no alvorecer dos seus primeiros anos não distingue presente, passado e futuro. Sua inocência
frente a um efêmero passado, o ignora. Ela brinca despreocupadamente. Porém, assim que a
criança é arrancada do seu feliz esquecimento, ela logo compreende a palavra “foi” e começa
a se entrelaçar na teia do passado.
Isso mostra que o homem, diferentemente do animal, possui de forma intrínseca, a
capacidade de lembrar. Faz parte da condição humana a capacidade de estar sempre, por meio
das lembranças, em relação com o passado. Ao contrário do animal que só tem relação com o
presente, o homem está intrinsecamente em consonância com as lembranças. Diante desta
situação, própria da condição humana, o que fazer? Nietzsche percebeu o homem do século
XIX saturado pela lembrança e o diagnosticou como doente. A cultura histórica oitocentista,
permeada pela influência do hegelianismo e do positivismo sofria de uma doença: a doença
histórica. Para ele, o homem moderno estava tão voltado para suas lembranças que acabara
por tornar-se doente.
A solução seria apresentada por meio do esquecimento. Este esquecimento seria a
própria condição da história, pois somente por meio dele seria possível realizar o desapego
daquilo que já passou e criar o inédito. É o esquecimento “que cria em torno do sujeito da
decisão uma espécie de zona obscura subtraída à consciência histórica, é o que Nietzsche
chama o elemento não histórico, a atmosfera em que apenas a ação pode nascer” (VATTIMO,
2010, p. 19). De modo que o esquecimento é o ponto de partida para a ação, para o criar. É
por meio dele e nele que algo de grande é enfim realizado. Nele a grandeza é única e nova,
não necessita do tempo passado como continuidade para ser executado. Mais tarde, já na
segunda dissertação de sua Genealogia da Moral Nietzsche vai dizer que:

Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como creem os
superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso
sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós
acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao
qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo multiforme
processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física” (NIETZSCHE,
2009, p. 43).

78
O esquecimento é, pois, o ponto essencial na compreensão que Nietzsche faz acerca da
história como aquilo que pode ser útil para a vida. Saber esquecer faz o homem abdicar do
fardo que o passado pôs em suas costas e desenvolver em si a busca criativa pelo genuíno. O
esquecimento torna-se um elemento de fundamental importância para o acontecer histórico
que está por vir. Não abandonando completamente a memória, mas a dosando de forma
correta com o esquecimento, o homem torna-se capaz de criar, renovar e modificar o antigo.
Através da justa medida entre memória e esquecimento, o passado serve apenas para inspirar
– e não copiar – a criação artística do novo, preservar os grandes feitos – para que também
sirvam de inspiração – e julgar aquilo que seja útil ou inútil para a vida. Portanto:

[...] que se saiba mesmo tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar
no tempo certo; que se pressinta com um poderoso instinto quando é
necessário sentir de modo histórico, quando de modo a-histórico. Esta é
justamente a sentença que o leitor está convidado a considerar: o histórico e
o a-histórico são na mesma medida necessários para a saúde de um
indivíduo, de um povo e uma cultura (NIETZSCHE, 2003, p. 07).

Esta predisposição para esquecer e lembrar de maneira correta é determinada pela


força plástica presente nos grandes homens. Este termo parece ter surgido pela primeira vez
na Segunda Consideração Intempestiva, quando Nietzsche indaga sobre o grau de tal força
existente em um homem, em um povo, em uma cultura. Tal força para Nietzsche é pensada
como capaz de transformar e incorporar aquilo que é estranho e passado. A força plástica tem
a capacidade de curar feridas, restabelecer o que fora perdido e reconstituir por si mesmo as
forças perdidas. Entretanto, Nietzsche denuncia que há homens tão desprovidos dessa força
que ao menor sinal de adversidade se esvaece como se aquilo fosse o fim. Por outro lado,
aqueles dotados da força plástica apresentam tanta grandeza que as mais terríveis
adversidades em nada lhes maculam. Gianni Vattimo comenta que:

O ser vivo tem necessidade de um “horizonte” dentro do qual possa se


estabelecer e se estruturar, como em uma solução nutritiva; um horizonte só
existe enquanto tem limites, e a capacidade de traçar esses limites
escolhendo, aceitando, recusando, é aquilo que Nietzsche denomina aqui
força plástica. A medida em que o estudo e o conhecimento do passado são
úteis para a vida é dada pela medida de força plástica de que um indivíduo
ou uma civilização dispõem: quanto menos a força plástica, tanto maior é o
perigo de que o estudo da história leve à doença histórica, da qual
precisamente sofre nosso tempo (VATTIMO, 2010, p. 19-20).

79
Em uma passagem da Segunda Extemporânea, Nietzsche ao afirmar o excesso de
cultura histórica como uma doença para vida, diz que o excesso afetou a força plástica de
forma tão profunda que a vida encontra-se inativa. “Ela não sabe mais como se servir do
passado como um alimento poderoso” (NIETZSCHE, 2003, p. 94-95). Desse modo, o
passado não serve mais como um elemento de fortalecimento à vida, sua saúde está perdida e
a capacidade criativa do homem tornou-se estática, pois sua visão está completamente voltada
para o passado. É ele, o passado, quem delimita e determina a ação humana. Este, por sua vez,
limita-se apenas a copiar e relembrar suas aventuras históricas. Nele a força plástica encontra-
se dormente.
Todavia, a força plástica enquanto força expansiva, controladora das lembranças e do
esquecimento se sobrepõe e se estabelece como o antídoto para o excesso. Ou seja, a força
plástica oferece contra a patologia do excesso histórico a cura através dos poderes a-histórico
e supra-histórico. Em outras palavras Nietzsche quer dizer que:

Com a palavra “a-histórico” denomino a arte e a força do poder esquecer e


de se inserir em um horizonte limitado; com a palavra “supra-histórico”
denomino os poderes que desviam o olhar do vir a ser e o dirigem ao que dá
à existência o caráter do eterno e do estável em sua significação, para a arte
e a religião (NIETZSCHE, 2003, p. 95).

O poder a-histórico – enquanto a capacidade de esquecer o passado como único fator


determinante do presente – e o poder supra-histórico – enquanto poder que desvia o olhar do
vir-a-ser dando um novo sentido à existência – são variações do esquecimento causado pela
força plástica. Saber esquecer e lembrar na medida correta torna-se a sublime função da força
plástica.
Alguns anos após ter escrito A Segunda Intempestiva, já na Genealogia da Moral,
Nietzsche retoma a questão do esquecimento e novamente traz à tona as qualidades da força
plástica. Na primeira dissertação desta obra, o filósofo enfatiza as características desta força
como sendo a força modeladora, regeneradora, remodeladora e propiciadora do esquecimento
(NIETZSCHE, 2009, p. 28). A força plástica seria então a capacidade de se autoafirmar
diante da perspectiva que a vida oferece. Ao modelar, regenerar e propiciar o esquecimento,
ela oferece ao homem a possibilidade de esquecer tudo aquilo que lhe impede de criar, agir e
estabelecer sua própria condição como agente histórico. É com ela que o homem vê-se frente
a frente com a sua condição de ente dotado de história, pois é ele próprio que sabendo
esquecer e lembrar na medida justa passa a construir uma nova história que esteja a serviço da
vida.
80
Através da força plástica o homem forte se distingue do homem vulgar. O homem
nobre, dotado desta força, é capaz de estabelecer relação com a história, pois sabe lembrar e
esquecer na medida certa. Ele diz sim à vida, aceita suas condições e sabe utilizar o
movimento histórico a seu favor. O homem dotado de força plástica, ao saber lembrar e ao
saber esquecer, trilha o seu próprio caminho, torna-se a sua própria verdade e sabe viver
intensamente seu instante. O instante em que a vida se apresenta como sendo um profundo
sem fundo, uma eterna condição de possibilidade para o criar e o fazer a história.
Todavia, convém ressaltar que a força plástica não é determinada pela autonomia de
um sujeito ontológico que escolhe ser dotado de tal força. Ela não é cartesiana no sentido de
ser um objeto escolhido e manipulado pelo sujeito que a controla (REIS, 2011, p. 185). De
forma que não é um eu-sujeito quem escolhe ser possuidor da força plástica. Não é um eu
autônomo quem decide ser portador de uma força capaz de lembrar e esquecer na medida
certa. Não é o homem quem decide de maneira autônoma sua ação. A ação ocorre desde uma
“abertura”, de um instante extraordinário em que vida se apresenta como esta eterna
possibilidade de vir a ser. É neste instante que o homem é tomado e tocado pela força plástica
que lhe dá o suporte necessário para saber controlar a lembrança e o esquecimento, chegando
então a constituir sua própria história dizendo sim a si mesmo e criando algo de novo.
Há uma sintonia entre a vida, o homem e a força plástica, de modo a permitir a
“digestão” do passado no presente, permitindo assim o alcance de uma futura história. Há
uma exuberância de força capaz de fazer o homem superar todo o passado e criar algo de
grandioso no presente, pois ele se tornou forte e sabe conviver tanto com a memória quanto
com o esquecimento. Ao tornar-se forte o homem perde o apego excessivo pelo passado ao
mesmo tempo em que também abandona o apego demasiado às expectativas futuras, tal como
apresentam as diversas filosofias da história. O homem torna-se então, o homem do amor ao
destino, passando a amar o tempo e a história, sabendo assimilar no presente o passado
histórico (Historie), determinando assim o seu próprio acontecer histórico (Geschichte) e o
próprio futuro da história.
Segundo Reis, a força plástica exige do homem uma série de características essenciais
à sua função, tais como “flexibilidade, observação atenta, ruptura com o passado como um
todo e seleção daquela lembrança que irá potencializar a vida” (REIS, 2011, p. 185). De modo
que através dos poderes a-históricos e supra-historicos, o homem nem fica preso ao passado –
tomado como um referencial a ser copiado – nem tampouco, toma o futuro como sua única
direção. Para o homem de força plástica, presente, passado e futuro se entrecruzam em um

81
portal37 sobre o qual está escrito “instante” que representa o instante extraordinário em que
vida aparece e se revela como uma infinita possibilidade para o criar. Cabe a ele apenas se
deixar tomar por esta força, este poder, e viver a experiência própria da existência, a saber, a
capacidade de agir e criar uma nova situação histórica.
A força plástica é a capacidade de se autoafirmar e ser senhor de si mesmo, é a força
ativa que expande. Ela é a única capaz de criar e de restabelecer o que já foi perdido. Porém,
poucos homens são possuidores desta força. Para aqueles que são dotados de força plástica as
mais terríveis ocorrências da vida em nada lhes maculam, não se deixam afetar pelas
condições adversas, chegando a um estado de bem-estar e consciência tranquila. Pelo
contrário, os que são desprovidos da força plástica são tão fracos que ao sinal da menor
adversidade se desvanecem como se aquilo fosse o fim.
Para Nietzsche, a história utilizada como um componente a serviço da vida não pode
ser concebida como uma ciência no sentido moderno, mas sim desde a força plástica. Desde o
poder de saber dosar memória e esquecimento. A força plástica é de fundamental importância
para o homem, pois permite encontrar o limite entre o histórico e o não histórico, ambos
essenciais à vida. Porém, como já foi dito, o excesso de história é prejudicial à vida, então, é
preciso, por meio da força plástica, tornar-se a-histórico, pois só a partir deste ponto cresce
em nós algo reto, saudável e grandioso.
Dessa forma, o homem consegue controlar o seu elemento a-histórico e pensar,
refletir, comparar, separar e concluir. Aqui o homem se torna homem através da capacidade
de utilizar aquilo que já passou ao seu favor, em prol da vida e do fazer história a partir do que
aconteceu. Caso contrário, se o homem se perder no excesso da história, toda potência do a-
histórico se atrofiará e jamais se manifestará. A força plástica torna-se então um poder capaz
de dosar na justa medida memória e esquecimento. O homem criador, aquele dominado pela
força plástica, é aquele capaz de criar e determinar sua história. Este também pode ser
denominado de homem nobre, que aqui não tem o sentido comum do aristocrata que apenas
herda direitos e benefícios, mas aquele que não é ressentido, que com alegria e sabedoria diz
sim a si mesmo e à vida. “O ressentimento não o domina, porque ele não leva a sério nem
seus inimigos nem seus fracassos, nem os seus maus feitos. Ele tem uma superabundância de
“força plástica” que permite a ele se esquecer e se regenerar” (REIS, 2011, p. 156).
A absorção da história em excesso, como foi dito anteriormente, é um sinal de
carência de força plástica, prefigura aquilo que faz o homem ficar impossibilitado de

37
Cf. discurso Da visão e do enigma da obra Assim Falou Zaratustra.

82
aproveitar a história como uma fonte de inspiração para a vida. É preciso, portanto, impor-se
a-historicamente para que a força do esquecimento faça fluir a vida. O esquecer aqui adquire
o caráter de expansão, busca pela vida. Para Nietzsche, a ciência ignora o esquecimento
justamente por considerar como verdade apenas aquilo que vê, aquilo que seja passível de
análise empírica, aquilo que é histórico. Portanto, a ciência moderna é incapaz de perceber o
poder transformador da força plástica, que faz o indivíduo esquecer e através do
esquecimento criar, fluir, fazer aparecer a vida.
A mensagem que Nietzsche deixa é que a história não seja entendida como uma
disciplina científica que sirva apenas para investigar o passado e apresentar sua versão para os
fatos. Não é apenas a memória o ponto de partida da história, mas também, o esquecimento. É
o esquecimento quem deve transformar o homem em um indivíduo a-histórico e supra-
histórico. O passado não deve ser acolhido como uma fonte de inspiração apenas para copiar
os grandes feitos da humanidade. É preciso criar e para criar é preciso ativar a força plástica
adormecida dentro de nós. A partir dela podemos lembrar e esquecer na medida certa
passando a gerar vida. A história deve ser utilizada com o intuito de gerar vida e não de
degenerá-la.

83
CONCLUSÃO

O estudo da Segunda Consideração Intempestiva se torna relevante em decorrência da


necessidade de se pesquisar a questão da cultura histórica no âmbito da filosofia, pois por se
tratar de um tema pouco abordado, é de fundamental importância, tanto para a Filosofia
quanto para a História, a análise do pensamento Nietzschiano em relação a esta temática. Por
isso, começamos levantando a hipótese de que em Nietzsche havia uma concepção de história
diferente daquela compreendida no século XIX. Logo, fez-se necessário, antes de tudo,
pesquisar de forma detalhada aquilo que o pensador alemão quis dizer sobre a utilidade e
desvantagem da história para a vida dentro do contexto da época, a saber, o século XIX.
Ainda vale enfatizar neste trabalho que não foi a finalidade do jovem Nietzsche
desmerecer nem execrar o mérito da razão, das ciências ou da história. Como filólogo,
Nietzsche sabia da importância de se conhecer o passado para a compreensão do presente. Na
verdade, sua crítica se volta para o uso equivocado e exacerbado da razão (racionalidade
excessiva), a cientificidade da história, como se o passado pudesse ser quantificado,
observado, provado e comprovado. Isto não quer dizer que a história (Historie) não deva ser
uma disciplina rigorosa. Seu rigor deve decorrer da utilidade para a vida, da sua maneira de
propiciar criação, da forma rigorosa como a olhamos para dela tirar proveito e constituir
criativamente nossa história (Geschichte).
São os valores atribuídos à razão, às ciências e à história na Modernidade que se
tornam objetos da crítica nietzschiana ao longo não só da Segunda Intempestiva, mas ao longo
de toda sua obra filosófica. É a forma com que a razão, ciência e história são utilizadas que
vai prefigurar a decadência da modernidade. Uma decadência que não se inicia na época
moderna, mas desde muito tempo, ainda na Grécia antiga, quando ele percebeu Sócrates como
sintoma dessa degeneração que foi levada adiante pelo platonismo. O que Nietzsche critica é
o excesso e a supervalorização que a modernidade atribui à razão, à ciência e à história sem
refletir sua utilidade e desvantagem para a vida, sem se perguntar pelo seu fundamento, sem
saber dosar de forma correta lembrança e esquecimento.
O escopo da Segunda Consideração Intempestiva talvez não seja enfatizar tanto a
discussão sobre uma determinada filosofia da história que de alguma forma se contraponha
àquela representada pelo hegelianismo. Nem tampouco tem por objetivo apresentar uma
correta metodologia da história enquanto ciência. O que Nietzsche busca é delimitar a posição
e o significado do conhecimento histórico como um dispositivo que seja útil para a vida. O
que Nietzsche propõe não é a completa extinção dos estudos históricos. Sua crítica contra seu

84
tempo e sua cultura não visa de forma alguma suprimir o conhecimento do passado, mas tão
somente denunciar o niilismo encoberto por aquilo que é próprio do historicismo, do excesso,
do exacerbamento de conhecimento histórico para a vida. Sua crítica se dirige a busca do
passado pelo passado sem disposição para o criar.
Por fim, podemos concluir apresentando os resultados obtidos nesta pesquisa. Isto é,
aquilo que chegou ao nosso entendimento a partir da análise e da leitura hermenêutica da
Segunda Consideração Intempestiva, das demais obras de Nietzsche, bem como de toda
bibliografia auxiliar. Em primeiro lugar confirmamos nossa hipótese de que o filósofo alemão
concebia um modelo diferente daquele que era comumente aceito no século XIX. Para ele, a
história deveria configurar um momento de atividade criativa. Seu estudo deveria tornar o
homem apto ao processo de desenvolvimento do seu próprio acontecer histórico e não uma
forma de se acumular conhecimento sobre o passado. Esta maneira de se pensar a história –
considerando o ideal de grandeza, a arte como criação, a crítica ao historicismo e ao
progresso, entre outros – Nietzsche parece ter adquirido a partir de sua aproximação com
Jacob Burckhardt, mestre e colega em Basiléia.
Outro resultado foi a constatação da crítica nietzschiana ao hegelianismo e ao
cientificismo de sua época – motivação principal de sua Segunda Extemporânea. A história
enquanto um devir progressivo determinada por uma força absoluta que caminhava rumo a
um determinado fim era para Nietzsche um absurdo, pois segundo ele próprio, se este mundo
tivesse um fim a ser alcançado, este já teria ocorrido. Isso porque o progresso como um fim a
ser alcançado é somente uma ideia para se compreender as vicissitudes do tempo e justificar
aquilo que os povos e indivíduos quiseram, mas que nunca foi alcançado como eles
desejaram. Por outro lado, a concepção moderna de que a história deveria ser vista como uma
ciência aos moldes das ciências exatas era também um absurdo. Para Nietzsche, uma história
utilizada apenas para descrever os fatos de forma imparcial e objetiva remetia o homem para
fora do processo histórico como se este fosse um mero expectador que observa de longe, mas
não participa dos eventos da história. A história vista tanto pelo modelo hegeliano quanto pelo
modelo cientificista seria apenas uma forma de se acumular erudição e vaidade. Um
conhecimento que em nada era útil à vida, por isso sua posição de que o século XIX sofria de
uma doença histórica.
O último resultado diz respeito à constatação de que para Nietzsche, a história deve ser
vista como um modelo de inspiração para o processo de criação. Ao se deparar com os
grandes feitos do passado, o homem deve se sentir estimulado para o criar. Conhecer o
passado não deve ser entendido como um processo de acúmulo de conhecimento nem, muito

85
menos, como aquilo que fornece um modelo a ser copiado. Assim, a história pertence ao
homem nobre, aquele dotado de força plástica, que vê a história numa relação direta com a
vida. É no irromper e brotar-se da vida, no instante em que o homem é tomado e tocado por
força plástica que ele passa a lembrar e esquecer na medida certa, constituindo
continuamente, por meio da criação, sua história.
Portanto, o pensamento de Nietzsche em relação à história marca uma ruptura com os
modelos em vigor do século XIX, originando uma nova ordem de investigação tanto do
campo da Filosofia quanto no campo da História (Historie). Ao longo desta pesquisa, apesar
da análise criteriosa, da leitura minuciosa dos textos e da observação do contexto em que se
inseriu a crítica nietzschiana ao pensamento moderno, não nos foi possível esgotar o assunto,
dada à complexidade e aprofundamento que o mesmo exige. Apesar de termos nos centrado
na análise da Segunda Consideração Intempestiva, percebemos que a temática da história no
pensamento de Nietzsche vai bem mais além, chegando às suas obras posteriores como em A
Gaia Ciência, Assim Falou Zaratustra, Além do Bem e do Mal, Crepúsculo dos Ídolos e Ecce
Homo.
Desse modo, ficou de fora nesta pesquisa, a análise da problemática em torno do
Niilismo e do Eterno Retorno do Mesmo como elementos cruciais no estudo da temporalidade
em Nietzsche. Acreditamos que o Eterno Retorno do Mesmo constitui uma continuação do
pensamento nietzschiano acerca da crítica ao historicismo. Por isso, ficamos com a opinião de
Gianni Vattimo que afirma ser o eterno retorno um conceito pelo qual Nietzsche se propunha
a resolver, desde suas obras iniciais, o problema da posição do homem diante do tempo
(VATTIMO, 2010, p.11).
A doença histórica tratada pelo jovem Nietzsche na Segunda Intempestiva desemboca
também, já em suas obras posteriores, no problema do niilismo. Ou seja, na fase de
maturidade nietzschiana, “a doença histórica continua a ser um dos aspectos fundamentais
pelos quais o niilismo se define em sua origem e desenvolvimento” (VATTIMO, 2010, p.26).
Entretanto, pelo fato de nossa pesquisa ter se concentrado na análise da Segunda
Consideração Intempestiva e os problemas do Eterno Retorno e do Niilismo pertencerem a
uma faze do Nietzsche mais maduro; deixamos de fora – pelo menos por enquanto – o estudo
e a análise destes conceitos, reservando-os para uma pesquisa posterior.

86
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