Nietzsche e A Critica Ao Historicismo
Nietzsche e A Critica Ao Historicismo
JOÃO PESSOA – PB
2012
MÁRCIO JOSÉ SILVA LIMA
JOÃO PESSOA – PB
2012
L732n Lima, Márcio José Silva.
Nietzsche e a crítica ao historicismo: uma análise a partir da
relação entre história e vida na segunda consideração
intempestiva / Márcio José Silva Lima.- João Pessoa, 2012.
89f.
Orientador: Robson Costa Cordeiro
Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCHLA
1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 – crítica e
interpretação. 2. Filosofia. 3. História. 4. Historicismo. 5. Vida.
6. Força plástica.
Avaliado em _____/____/____
Nota/conceito _____________
Banca examinadora
_________________________________________
Dr. Robson Costa Cordeiro
Orientador
_________________________________________
Dr. Miguel Antonio do Nascimento
Membro interno
_________________________________________
Dr. Stefan Vasilev Krastanov
Membro externo
Dedicado a minha família: pai, mãe,
irmãos, esposa, filhas, cunhadas e
cunhados. Ao meu orientador, aos
professores e amigos por ter me
auxiliado na execução desta pesquisa.
AGRADECIMENTOS
A minha esposa Ana Maria Marques Vieira, minhas filhas Bárbara Correia
Lima e Bruna Maria Marques Lima, aos meus pais Sebastião Ferreira de Lima
e Maria das Graças Silva Lima e aos meus irmãos Maricélia Silva Lima, José
Marcelo Silva Lima e Marenilda Silva Lima pela admiração, o incentivo e a
dedicação.
Aos funcionários do PPGFIL, sobretudo, Chico, Paulo e Fátima pelo apoio nos
problemas de ordens burocráticas. Ao coordenador professor Anderson D’arc
pelas aulas e pelo auxílio sempre quando necessário. Aos funcionários das
bibliotecas do SENAC, do Centro de Educação – UFPB e da FUNESC por
conservar um lugar tão aconchegante, calmo e sereno.
Aos demais amigos, que de forma direta ou indireta, colaboraram com meus
estudos, em especial aos amigos Luís Felipe, Jarcelma Clícia, Cláudio Lima e
Adelmo Santos pelo apoio e colaboração nos momentos em que deles precisei.
À CAPES-REUNI pela concessão da bolsa de estudos, o que acabou por
possibilitar o financiamento e viabilizar o melhor desenvolvimento da pesquisa
através da aquisição de livros, participação em encontros dentro e fora do
Estado, etc.
“Até hoje Nietzsche foi ou bem
elogiado e imitado ou bem insultado e
explorado”
Martin Heidegger
RESUMO
O presente trabalho tem por finalidade analisar, através de uma leitura interpretativa, a crítica
nietzschiana ao historicismo a partir da relação entre história e vida. O historicismo é
compreendido nesta dissertação como o uso exagerado do conhecimento histórico, a crença
em uma filosofia da história conforme apresentou o hegelianismo e a objetividade da história
enquanto ciência moderna. Segundo Nietzsche, a forma como se concebia a história no século
XIX, tornava a vida doente e degenerada. O excesso de cultura histórica retirava do homem o
poder próprio da criação e lhe restringia a mera reprodução do passado. O passado era visto
como um modelo a ser copiado, pois, influenciado pela filosofia da história que apontava para
um devir determinado por uma entidade metafísica e o cientificismo que concebia a história
como uma ciência que descreve com exatidão o passado, o homem tornou-se incapaz de criar
e passou apenas a viver a história dos outros, a história daqueles que já foram. A humanidade
tornou-se velha, caduca, sem vitalidade. Neste contexto, em sua Segunda Intempestiva, o
filósofo alemão aponta para aquilo que seria uma utilização proveitosa da história a serviço da
vida. Refletindo sua utilidade e sua desvantagem, o pensador direciona os rumos da história
para um outro sentido. Uma nova maneira de se conceber a história como atividade criativa
em extrema consonância com a vida.
The present work has for purpose analyze through a interpretative reading, the critical of the
Nietzsche to the historicism starting from the relationship between history and life. The
historicism is understood in this dissertation as the exaggerating use of the historical
knowledge, the faith in a philosophy of the history as it presented the Hegelianism and the
objectivity of the history while modern science. According to Nietzsche, the way the story
was conceived in the nineteenth century, it turned the life sick and degenerate. The excess of
historical culture removed the power of man's own creation and it restricted the mere
reproduction of the past. The past was seen as a model to be copied, therefore, influenced by
the philosophy of history that pointed to a becoming by an entity determined by metaphysics
and scientism which conceived of history as a science that accurately describes the past, man
has become incapable create and passed only to live the history of others, the history of those
that had died. Humanity has become old, obsolete, without vitality. In this context, on his
Second Untimely, the German philosopher appears for that that would be a profitable use of
the history to service of the life. Reflecting her usefulness and her disadvantage, the thinker
addresses the directions of the history for another sense. A new way to conceive the history as
creative activity in extreme consonance with the life.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11
1 A INFLUÊNCIA DE JACOB BURCKHARDT NA CRÍTICA NIETZSCHIANA AO
HISTORICISMO ...................................................................................................................... 14
1.1 O encontro com Burckhardt ............................................................................................... 14
1.2 A filosofia da história e o seu progresso............................................................................. 15
1.3 O ideal de grandeza ............................................................................................................ 17
1.4 A arte como criação ............................................................................................................ 21
1.5 O legado de Burckhardt ...................................................................................................... 24
2 A CRÍTICA AO HISTORICISMO ....................................................................................... 27
2.1.1 Precedentes gerais da filosofia da história em Hegel ...................................................... 27
2.1.2 O olhar nietzschiano ........................................................................................................ 32
2.2 A história como ciência na Modernidade ........................................................................... 40
2.2.1 Sobre a objetividade e a cientificidade da história .......................................................... 40
2.2.2 A posição de Nietzsche sobre a história enquanto ciência .............................................. 45
3 DA RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E VIDA ..................................................................... 53
3.1 Os perigos da história para uma época: o excesso de cultura histórica .............................. 53
3.2 Sobre as três espécies de história ........................................................................................ 65
3.2.1 A história monumental .................................................................................................... 66
3.2.2 A história antiquária ........................................................................................................ 69
3.2.3 A história crítica .............................................................................................................. 72
3.2.4 Considerações acerca das três espécies de história ......................................................... 75
3.3 Esquecimento, memória e força plástica ............................................................................ 77
CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 84
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 87
INTRODUÇÃO
1
A vida tratada aqui não é algo no sentido meramente fisiológico ou biológico. Ela é compreendida como aquilo
que surge a partir da dimensão não-histórica do acontecer. Ou seja, vida é aquilo que surge diante do que ainda
não existiu, do que ainda não é histórico e que proporciona a criação, a possibilidade para o criar (história é
vida). A vida seria então, esse todo temporal que em seu eterno devir, através do homem, lembra e esquece, cria
e destrói. Isso no âmbito da Segunda Intempestiva, porque analisando as obras posteriores, podemos
compreender vida como Vontade de Poder. Assim sendo, a Vontade de Poder enquanto vida seria o poder
criador que de súbito se faz presente, uma afecção que arrebata para um possível modo de ser. Em outras
palavras, a Vontade de Poder é uma possibilidade, uma perspectiva de vida que aparece e norteia o homem em
direção a um sentido. Contudo, por termos nos centrado na Segunda Intempestiva e o conceito de Vontade de
Poder ter sido desenvolvido posteriormente, evitamos utilizá-lo nesta pesquisa.
11
Já para o filósofo italiano Gianni Vattimo, a Segunda Consideração Intempestiva
apresenta-se genuinamente como a primeira crítica ao historicismo do século XIX. Para ele, a
crítica direcionou-se não tanto à forma metafísica hegeliana de se compreender a história
como um devir dialético, mas, sobretudo, à própria historiografia enquanto ciência tão
caracterizada na educação do homem oitocentista (VATTIMO, 1990, p. 28). De fato, como já
foi dito antes, o próprio Nietzsche ao escrever sua obra Ecce Homo, declarou que na Segunda
Intempestiva o sentido histórico pela primeira vez fora reconhecido como uma doença.
Todavia, Vattimo não deixa de enfatizar a crítica nietzschiana em relação ao hegelianismo e
ao cristianismo (VATTIMO, 1990, p. 28).
Ao criticar as historiografias existentes em sua época, Nietzsche abraçou o
pensamento de seu amigo Jacob Burckhardt e a partir dele construiu sua própria maneira de
conceber a história. Buscaremos evidenciar no primeiro capítulo, que influenciado e inspirado
pela forma como o amigo pensador percebia a história, Nietzsche deixa transbordar seu
pensamento para daí em diante elaborar sua própria forma de compreender a utilidade e
desvantagem da história para a vida. Utilizando-se de uma apropriação produtiva do
pensamento de Burckhardt, nosso filósofo passa a criar – não simplesmente reproduzindo o
mestre – sua forma peculiar de perceber como a história poderia configurar um bem à serviço
da vida.
No segundo capítulo, mostraremos que além de criticar a história enquanto um
excesso de conhecimento, enquanto um exacerbamento de cultura histórica, será também
tema central na crítica nietzschiana, a filosofia da história apresentada pelo idealismo
hegeliano, bem como a história enquanto disciplina científica aos moldes da ciência moderna.
Em outras palavras, Nietzsche além de criticar a historiografia científica que influenciada pelo
positivismo buscava descrever com precisão os eventos passados, criticou também o
hegelianismo por apresentar uma teleologia conformista em relação ao presente, um modelo
cuja finalidade estaria submetida à realização do Espírito Absoluto frente ao Estado,
desdobrando tais acontecimentos no fim da história.
Assim, tanto o hegelianismo com o seu providencialismo, seu progresso e seu fim da
história, quanto o cientificismo histórico positivista são duas faces de uma mesma moeda em
que Nietzsche não economiza esforços para criticar em sua Segunda Intempestiva. Para
Nietzsche, falar de cultura histórica no século XIX era falar em exacerbamento, em excesso,
em exagero de conhecimento sobre o passado. Tal exagero tanto tinha sido construído pela
filosofia da história hegeliana quanto pela pretensão de se elevar a história ao patamar de uma
disciplina científica exata, tal como era tratada a Física e a Matemática.
12
A este exacerbamento de cultura histórica, a este excesso de conhecimento do passado,
Nietzsche vai chamar doença histórica. A cultura no século XIX, aos olhos do filósofo
alemão estava doente, em decadência, ou seja, aos poucos se degenerava. Como solução
Nietzsche apresenta o esquecimento. Trataremos deste tema no terceiro capítulo mostrando
que é o poder esquecer que vai tornar a cultura histórica mais salutar. Haveria então de se
tomar uma justa medida entre o lembrar e o esquecer, ou seja, era preciso saber lembrar e
saber esquecer na medida certa. Esta medida seria proporcionada por uma força ativa,
expansiva e criadora que Nietzsche destacou tanto na Segunda Extemporânea quanto na
Genealogia da Moral e que ele denominou força plástica. A história acabaria por se tornar
uma utilidade para a vida. Ela desoneraria o fardo do passado que o homem é condenado a
carregar e possibilitaria a criação de um novo tempo em que haveria o transbordamento da
vida. A vida vista dessa forma seria representada não cientificamente como queria o
cientificismo, mas modelada segundo a arte criativa da força plástica.
Neste contexto, veremos que a crítica nietzschiana à cultura histórica insere-se em um
recorte temporal que é próprio da Modernidade, para ser mais preciso, do século XIX. Neste
período, o homem moderno apela para aquilo que é próprio da “objetividade”, ou seja, a
submissão do passado ao presente por meio da passividade historiográfica, do mito da
neutralidade do historiador frente ao evento passado e do mito da verdade única revelada pelo
trabalho científico-metodológico do historiador. Na verdade tudo acontece como se o
historiador tomasse para ele “o dever de ser juiz das grandes ações, das grandes
individualidades do passado, como se o fato de ter chegado tarde lhe desse alguma
superioridade sem ter que provar nada mais” (LEFRANC, 2008, p. 290).
Seria preciso, pois, uma história capaz de criar. Tal história deveria compreender uma
luta contra o determinismo, o reducionismo, o destino inescapável, o mecanicismo e a direção
única do viver. Para que a história fosse útil à vida, ela deveria lutar contra o sentido histórico,
a história universal e contra os eventos que só servem para serem copiados (REIS, 2005. p.
44). Para possibilitar a criação artística, a história deveria defender o direito à vida, não se
limitar pela tradição e seguir os instintos, a imaginação, a possibilidade de criar. Esta foi a
proposta de Nietzsche ao longo da Segunda Intempestiva, apresentar como a história deveria
ser tomada como um propósito para tornar saudável a vida. É com base neste pensamento e
buscando interpretar sua filosofia que vamos procurar expor de modo claro e sucinto neste
trabalho dissertativo aquilo que Nietzsche compreendeu como a “utilidade e a desvantagem
da história para a vida”.
13
1 A INFLUÊNCIA DE JACOB BURCKHARDT NA CRÍTICA NIETZSCHIANA AO
HISTORICISMO
Em 1869, aos vinte e quatro anos de idade, o jovem Nietzsche chega à Universidade
de Basiléia para ser professor de filologia clássica. Lá encontra o professor Jacob Burckhardt
por quem tem grande admiração e passa a assistir suas aulas sobre o estudo da história. Em
uma de suas cartas endereçadas a Von Geersdorff em 1870, Nietzsche fala de sua admiração
pelo mestre historiador acreditando ser o único, entre os seus alunos, a entender
verdadeiramente a sua linha de pensamento. E vai mais adiante, afirma que pela primeira vez
gostou realmente de uma palestra e que aquela era o tipo de palestra que ele seria capaz de
ministrar quando estivesse mais maduro (NIETZSCHE apud DRU, 2003, p. 83).
Segundo Peter Burke, a concepção burckhardtiana de história era totalmente
divergente da maioria dos seus contemporâneos. Burckhardt rejeitava tanto o hegelianismo
quanto o positivismo que atribuía à história o caráter de ciência no sentido moderno. Sobre a
filosofia da história hegeliana, ensinava aos seus alunos que suas aulas sobre o estudo da
história estavam dissociadas de “qualquer filosofia da história”. Sendo para ele, tal filosofia
um contra-senso, uma vez que a história era a-filosófica e a filosofia a-histórica (BURKE,
2009, p. 19-20). Ou seja, em filosofia não há historicidade, no sentido do pensamento ser
sempre permanente, e em história não há filosofia no sentido de não existir nela uma filosofia
da história aos moldes do hegelianismo.
Quanto à ideia de uma história aos moldes da ciência moderna, Burckhardt discordava,
pois para ele a história deveria ser vista como uma arte. A história era uma modalidade
literária equivalente à poesia, pois era uma arte produzida para agradar o espírito. Por isso,
procurava no passado aquilo que de mais interessante este pudesse lhe oferecer. Não gostava
de acumular fatos, pois para ele, os fatos necessários ao homem são aqueles que traduzem
uma ideia de grandeza ou que marcaram de forma extraordinária uma época (BURKE, 2009,
p. 19-20). A história para Burckhardt, assim como para Nietzsche, deveria ser caracterizada
por uma força magistral que estivesse a serviço da vida e que fosse capaz de gerar grandes
homens.
A análise da Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e desvantagem da
história para a vida e das aulas proferida por Burckhardt em Basiléia, mais tarde editada com
o título Reflexões sobre a história, permite-nos observar a influência de Burckhardt no
14
pensamento de Nietzsche, sobretudo, no que concerne a pontos chaves como: a ideia de
grandeza, a inexistência de grandes homens na modernidade, a influência da arte no processo
de criação e as críticas ao historicismo e ao progresso da história. São os temas proferidos por
Burckhardt em suas aulas que fizeram o jovem Nietzsche ruminá-las e comentá-las a sua
maneira ao falar da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida.
Segundo Burckhardt, “ao passo que os filósofos da história estão presos à especulação
em torno às origens e devem, portanto, falar também do futuro, nós podemos dispensar essa
teoria das origens, desligando-nos também, consequentemente das teorias finais, da
escatologia” (BURCKHARDT, 1961, p. 12). Por conseguinte, seu interesse parece não ter
sido o da especulação relacionada a uma determinada filosofia da história. Sua motivação
maior foi analisar o ser humano a partir de suas atribuições diárias, “tal como ele é, sempre foi
e será”. Este aspecto do pensamento de Burckhardt foi de perto acompanhado pelo jovem
Nietzsche que fez de sua Segunda Consideração Intempestiva um verdadeiro campo de
batalha contra a cientificidade da história e o hegelianismo que com sua filosofia da história
buscou explicar o processo histórico mediante a realização do Espírito Absoluto, ignorando o
homem em sua peculiaridade.
Sobre o que concerne à ideia de progresso, Burckhardt diz – em suas Reflexões sobre a
história – que existe em nós uma falsa crença em acreditar que uma determinada época seja
mais importante que outra. Ou seja, a crença de que a época atual seja “melhor” que as
passadas. Isto acontece pelo fato de sermos egoístas e de nossos anseios pelo conforto nos
fazer enaltecer as forças e os homens de épocas passadas como os responsáveis pelo nosso
conforto atual. Perceber a época atual como a melhor, concebê-la como uma época construída
progressivamente e que as épocas anteriores foram inferiores à nossa é tão somente uma falsa
crença determinada por nossa vontade de sermos melhores, pois:
16
vida da humanidade constituir um todo indivisível, as sua oscilações
temporárias e locais só podem ser consideradas “felizes” ou “infelizes”,
“boas” ou “más” por nossa capacidade limitada de julgar os acontecimentos
que, na verdade, procedem de uma necessidade superior e inexorável
(BURCKHARDT, 1961, p. 261-262).
Assim sendo, a ideia de progresso torna-se vazia e diz respeito apenas ao nosso ponto
de vista. Somos nós com nosso modo próprio de ver o mundo, permeado pela cultura e pelo
pensamento de nossa época que fazemos conjecturas, qualificando nosso tempo como tendo
progredido. É certo que há mudanças de uma era para outra, pois isto já é próprio da natureza
histórica, entretanto, tal vicissitude não implica necessariamente progresso.
O grande homem é aquele que deixa marcada a sua impressão na história. O som de
sua ação ecoa e pode ser escutado além dos limites de sua época. É ele que tomado pelo
instante em que vida se apresenta como uma eterna possibilidade de vir a ser, torna-se
responsável pela criação de algo tão valioso que o torna singular. Ele se torna único, pois:
18
Só é único e insubstituível o homem que dispuser de forças intelectuais e
morais extraordinárias, cuja atividade se reflete sobre uma coletividade, isto
é, sobre povos e culturas inteiros ou até mesmo sobre toda a humanidade.
Entre parênteses seja-nos permitido acrescentar que há um certo tipo de
grandeza que abrange todo um povo e ainda que há outra espécie de
grandeza ainda que podemos chamar de parcial ou momentânea, que se
produz sempre que um indivíduo sacrifica a si próprio ou sua vida em prol
de uma coletividade. Um ser capaz dessa abnegação atinge, então, um
estado de elevação tal que o afasta das vicissitudes terrenas e o transfigura
como um ser superior (BURCKHARDT, 1961, p. 215).
2
Criadores da moderna historiografia. Cf. Segundo capítulo.
20
[...] Hoje o ser-nobre, o querer-ser-para-si são parte da noção de
“grandeza”; e o filósofo revelará algo do seu próprio ideal quando afirmar:
“Será o maior aquele que puder ser o mais solitário, o mais oculto, o mais
divergente, o homem além do bem e do mal, o senhor de suas virtudes, o
transbordante de vontade; precisamente a isto se chamará grandeza: pode
ser tanto múltiplo como inteiro, tanto vasto como pleno” [...] (NIETZSCHE,
2005, p.107).
Nesta citação fica claro que para Nietzsche, assim como para Burckhardt, a grandeza
não pertence unicamente aos governantes nem aos indivíduos históricos universais como
afirmava Hegel. A grandeza pertence àquele que em um dado momento de compreensão da
vida passa a determinar de forma artística o desenvolver da sua história. Este é o grande
homem. Mais tarde, em Ecce Homo, Nietzsche fala, no parágrafo 10 do capítulo Porque sou
tão Inteligente, sobre o equívoco em se qualificar como grande aquilo que de fato não é
grande. Segundo ele:
Fica claro, portanto, que o ideal de grandeza apresentado tanto por Nietzsche, quanto
por Burckhardt, diverge daquele apresentado pelo pensamento moderno, sobretudo, pelo
modelo hegeliano e pela metodologia metódico-positivista. Diferente de uma grandeza
aplicada aos grandes estadistas, responsáveis pelos desdobramentos político e econômicos do
Estado, Nietzsche e Burckhardt compreenderam grandeza como algo próprio daquele que
torna sua ação imponente. Ela pertence àquele que em um ato de criação torna a história um
bem a serviço da vida.
Outro pensamento comum – mesmo que com sentidos distintos – tanto em Nietzsche
quanto em Burckhardt concerne ao ideal artístico. Assim como Nietzsche, Burckhardt
21
compreende as artes como forças criadoras capazes de elevar o homem a sua suprema
grandeza. Segundo Burckhardt:
As artes são capazes de atrair para seu círculo magnético quase que a
totalidade da existência humana, de elevar sua sensibilidade a um grau,
infinitamente mais elevado, de expressão, dando-lhe uma visão do mundo
livre dos escombros do acaso, reunindo numa imagem transfigurada
somente os elementos realmente grandiosos, importantes e belos, então, até
mesmo o seu aspecto trágico revela-se consolador.
As artes são uma capacidade expressiva, uma energia criadora. Sua força
motriz central mais importante, a fantasia, a imaginação, foi sempre
venerada como uma manifestação divina. Poder revelar mundos interiores,
de modo que esta interioridade retratada aja como uma revelação, constitui
realmente uma das virtudes mais raras que pode possuir o ser humano
(BURCKHARDT, 1961, p. 222).
Nietzsche entra em consonância com estas palavras ao construir seu pensamento sobre
a arte como forma de criação da vida, ou seja, a arte como ação no exercício da grandeza. Na
Segunda Consideração Intempestiva ao descrever o significado da história como algo a
circunscrever espirituosamente o passado em uma melodia do cotidiano, o filósofo alemão
declara que tal ação só será possível mediante uma grande potência artística. Sendo assim, a
história deve ser feita artisticamente. Através da afecção originária, o artista – enquanto
homem dotado de grandeza – lapida a história de forma que sua impressão fica marcada no
tempo. É quando ele se dá conta que, ao mesmo tempo em que compreende, também faz a
história.
A história deve então ser percebida como um mundo profundo de possibilidades, ela
deve ser antes de tudo uma fonte de criação, de poder e beleza. Nietzsche enfatiza que para a
utilização da história a serviço da vida:
A maneira como a história era tratada pelos historiadores do século XIX era o oposto
daquilo que Nietzsche compreendia como a utilização da historia por meio da arte. Fazendo
uso de uma de suas metáforas Nietzsche diz que “todo aquele a que se obriga a não mais amar
incondicionalmente cortou as raízes de sua força: ele se torna ressequido, ou seja, insincero”
(NIETZSCHE, 2003, p.59). Assim seria à história vista sem este poder transformador da arte.
22
De fato, ao atribuir a história os critérios de verdade irrefutáveis, imparcialidade total do
historiador e descrição fiel do passado, esta parece ter se tornado seca e sem mobilidade.
Portanto:
23
252). Apenas alguns aventureiros e visionários são erroneamente agraciados por seus
contemporâneos com o título de grande. Segundo Burckhardt, nem toda época conta com a
capacidade de produzir grandes homens. Sua época parecia estérea, mas o futuro lhe parecia
promissor, pois:
Em suas Reflexões sobre a história Burckhardt diz que não é seu propósito formar
historiadores “especialistas” em história, ou seja, historiadores com vasto conhecimento sobre
determinados fatos da história. Sua proposta é que ao invés de acumular conhecimento sobre
um evento isolado, desenvolva-se a capacidade de cultivar de maneira apropriada a cultura
24
histórica. Em outras palavras, Burckhardt almejava instigar em seus aprendizes a capacidade
de refletir, questionar e, principalmente, dosar até que ponto a história pode ser útil ao
homem. Em uma carta de 1874 endereçada a Nietzsche, Burckhardt reafirma sua postura
dizendo que:
O jovem Nietzsche mostrou ter aprendido muito bem as lições do mestre, pois a partir
de tais ensinamentos foi capaz de redigir um verdadeiro tratado sobre a utilidade e a
desvantagem da história para a vida3. Nesta mesma correspondência que tem como tema
principal a Segunda Extemporânea, Burckhardt elogia Nietzsche qualificando sua obra como
um poderoso e significativo trabalho. Indo mais além, o historiador relata que a obra em
questão exige ser desfrutada linha por linha para somente após muita consideração, poder
enfim ser avaliada.
Burckhardt parece ter se espantado com a capacidade criadora do jovem Nietzsche,
pois ao que se percebe o jovem filósofo introduziu no estudo histórico a possibilidade de se
pensar a própria vida. Com Nietzsche, influenciado pelo mestre historiador, a história é
condenada enquanto inconveniente e desejada enquanto uma utilidade a serviço da vida. Em
uma carta de 13 de setembro de 1882, Burckhardt faz a Nietzsche a seguinte indagação: “o
que resultaria disso tudo se você ensinasse história?” Em seguida ele mesmo encontra a
resposta:
3
Segunda Consideração Intempestiva: Da utilidade e desvantagem da história para a vida.
25
Quanto ao resto, muito do que você escreveu (e, temo eu, o melhor disso)
está muito além de minha pobre e velha mente; mas, até onde posso
acompanhar, regozijo-me como um sentimento de admiração pela imensa
riqueza, bem como pela forma concentrada, e posso ver claramente que
vantagem seria para a nossa ciência se alguém pudesse ver com os seus
olhos (BURCKHARDT, 2003, p. 371).
26
2 A CRÍTICA AO HISTORICISMO
4
Salientamos que não é nossa pretensão fazer aqui uma comparação entre duas filosofias ou dois pensamentos
para em seguida valorizar um em detrimento do outro. Não pretendemos realizar um confronto de pensamento
para em seguida apresentar Nietzsche como superior, melhor ou até mesmo como aquele que superou Hegel.
Nosso propósito é tão somente, apresentar aquilo que foi próprio da crítica de Nietzsche ao hegelianismo.
5
Segundo Nóbrega: o Espírito sofre uma subdivisão numa tese (Espírito Subjetivo), Antítese (Espírito Objetivo)
e numa Síntese (Espírito Absoluto). Cf. NOBREGA, Francisco Pereira. Compreender Hegel. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Vozes, 2007.
27
historiografia evidencia o progresso da realização do espírito na história, pois na antiguidade a
liberdade pertencia a um, depois passou a pertencer a poucos e agora pertencia a todos.
A história para Hegel só torna-se possível no âmbito do Estado. Segundo ele, Estado é
uma cultura ou civilização organizada em torno da liberdade. Liberdade não no sentido de
uma licença individual, mas de uma organização permeada pela coletividade. Assim para ele,
a história seria impossível sem a existência de um Estado organizado (HEGEL, 1999, p. 39).
Nessa concepção, o Estado seria a comprovação do sucesso na história comprovada pelo
avanço do direito e da justiça na Modernidade. Assim, a história universal seria determinada
por uma ideia que através do tempo se realiza de forma necessária, objetiva e progressiva. Seu
escopo seria o próprio fim da história. Esse processo teria uma racionalidade cedida pela
Providência (SOBRINHO, 2005, p. 34).
A liberdade apresenta-se em Hegel como a essência de um espírito que se manifesta e
se realiza ao longo do processo histórico. Dessa forma, da antiguidade à época moderna
houve um devir progressivo que estaria bem perto de se consolidar como Espírito Absoluto.
Na Pérsia, um dos primeiros Estados conhecido por Hegel como um Estado organizado, a
liberdade era restrita apenas ao monarca. Na civilização grega e romana esta liberdade
pertencia apenas à aristocracia e a oligarquia. Mas, com a consolidação do Estado Moderno, a
liberdade seria de todos. O Espírito Absoluto finalmente se concretizaria e a história chegava
ao seu apogeu.
Em Hegel a liberdade como essência do espírito culmina na criação do Estado. Nele o
Espírito Absoluto se manifesta e se realiza. A matéria em que se conclui o objetivo final da
razão é o próprio agente subjetivo, a saber, os desejos humanos. Esta subjetividade aliada à
racionalidade, configura um conjunto moral conhecido na filosofia da história hegeliana como
Estado. Nele o indivíduo tem e goza de liberdade na condição de conhecer, acreditar e desejar
o universal. Este conceito difere, portanto, do simples ato de ser livre para ir e vir comumente
entendido. Para Hegel, esta forma de liberdade é tão somente, liberdade negativa (SINGER,
2003, p. 41).
A liberdade concerne a um sentido mais amplo, diz respeito ao coletivo, ao universal,
nela e somente nela, a lei, a moral e o Estado alcançam a sua plenitude. A conquista gradativa
dessa liberdade não ocorre via heroísmos ou altruísmos, mas por uma “astúcia da razão” que
utiliza os homens na história universal, fazendo com que a partir deles ocorra o progresso da
liberdade e chegue a um estágio superior de civilização. Ao longo da história, o Espírito se
revela num processo de conscientização que torna a liberdade cada vez mais ampla.
28
Ao revelar-se na história, a liberdade se realiza no momento em que o Espírito
Absoluto passa a existir por si mesmo. É nela que se encontra todo o valor que tem o homem.
No Estado o homem passa a ter consciência de sua realidade espiritual que é justamente a
consciência da sua própria essência, a presença da razão, a vontade livre de alcançar seu
objetivo. Dessa forma, o homem tem plena consciência do seu lugar e compartilha da vida
legal e moral do Estado. No Estado a moralidade resulta da união entre a vontade particular
do homem consciente de si, com a vontade coletiva formada por todos os homens, gerando
leis universais e racionais. Portanto:
29
que se congregam no que Hegel chama de comunidade irracional da família, sem a ideia nem
a conscientização de Estado, não fazem história, pois neles a consciência de liberdade não é
de todo universal (HARTMAN, 2001, p.31).
Na filosofia de Hegel um movimento dialético domina a história desde os antigos até o
tempo presente (NÓBREGA, 2005, p. 43)6. Este movimento vai sofrendo gradações e
alcançando estágios progressivos. A primeira civilização a sofrer esse “estado de consciência”
foi a civilização grega. Nela vigorava uma moral tradicional, mas havia uma harmonia entre
os seus cidadãos que compartilhavam uma identidade mútua junto à comunidade, a oposição
entre eles era inexistente. A civilização grega prefigura na filosofia da história hegeliana o
ponto de partida para a realização do Espírito.
Entretanto, no mundo grego tal Espírito não conseguiu seu desenvolvimento pleno,
pois não havia entre eles o conceito de consciência individual e além disso, nem todos eram
livres. No ideal grego de liberdade a escravidão era permitida, pois enquanto os cidadãos
participavam das assembleias públicas, onde eram tomadas as decisões das cidades-estado, os
escravos executavam os trabalhos cotidianos. Fora isso, a liberdade estava mais ligada ao que
concerne a uma nação ser livre de outra, ou seja, liberdade de nação para nação. Quanto à
liberdade individual, os gregos pensavam em si mesmo como um todo pertencente à sua
cidade-estado e não distinguiam seus interesses pessoais do interesse da comunidade em que
estavam inseridos (SINGER, 2003, p. 26).
Assim, uma nova abordagem da consciência se fez necessária. Um novo movimento se
plasma em direção ao progresso da história. Hegel presenciou este progresso a partir dos
desdobramentos do Mundo Germânico7 com sua religiosidade cristã e através dos
acontecimentos decorrentes da Reforma Protestante (SINGER, 2003, p. 26). Como um bom
protestante Hegel viu na Reforma o reconhecimento do direito à liberdade. Porém, a Reforma
também se apresentou um sistema inadequado. Sua liberdade não foi totalizante, pois
apresentou, como resultado, as atrocidades da Revolução francesa. O mundo grego havia sido
6
“Se perguntamos, pois, a Hegel como as realidades se deduzem necessariamente, a resposta é esta: por um
movimento dialético. Se perguntamos por que o princípio imprincipiado não resta eternamente à única realidade,
a resposta está aí: ele carrega em si a contradição e a luta de opostos. [...] A dialética hegeliana tem três unidades
que ele denomina de Tese, Antítese e Síntese, ou mais frequentemente, Afirmação, negação e Negação da
Negação” (NÓBREGA, 2005, p. 43).
7
Hegel usa o termo Germanische, “germânico” em vez de “alemão”, e inclui não somente a Alemanha
propriamente dita mas também a Escandinávia, a Holanda e até a Grã-Bretanha. Como veremos, nem mesmo os
desenvolvimentos na Itália e na França foram ignorados, embora neste ponto falte uma justificativa de afinidades
linguísticas e raciais para estender o termo “germânico” a fim de incluir estes países. Pode-se suspeitar de um
certo grau de etnocentrismo por parte de Hegel ao designar esta era como o mundo “germânico”, mas a principal
razão para isso é que ele considera a Reforma o acontecimento chave da historia desde a época romana
(SINGER, 2003, p. 33).
30
insuficiente para a realização do Espírito, a Reforma também não havia vigorado o
sentimento de consciência universal. Mas, a partir da convivência dos contrários, um novo
movimento seria gerado, sendo o responsável por trazer a consciência de liberdade a sua
forma plena. A saber, a realização da história.
Na realização da história ocorre a manifestação do Espírito absoluto que se sucede na
fundação do Estado consciente de liberdade. Nele o ser humano se torna capaz de usar a razão
para julgar a bondade e a verdade levando a cabo o processo de conscientização universal. A
partir daí, as instituições sociais, lei, propriedade, moralidade social, governo... ajustam-se de
acordo com os princípios gerais da razão. Dessa forma, os indivíduos passam a aceitar e
aprovar as instituições do Estado sem que para isso, sintam-se obrigados. A lei, a moral e o
governo deixam assim de ser regras para os indivíduos que se sentem livres em obedecer ao
mecanismo do mundo em que vivem.
Como a essência do Espírito é a liberdade, o Estado se confirma a partir da
consciência coletiva de liberdade. Por Estado Hegel entende algo que seja totalmente objetivo
e específico. Uma instituição em que seus membros tenham realmente escolhido obedecer e
servir, um lugar em que os indivíduos concordem com seus princípios e encontrem satisfação
social por ser seus membros. Esta satisfação, contudo, só se torna possível com a
conscientização da liberdade não só no âmbito subjetivo, individual, mas principalmente, no
âmbito objetivo, universal. De forma puramente subjetiva o indivíduo entraria em conflito
consigo mesmo e com o Estado por não estar de acordo com suas leis, mas de forma livre não
há restrições à liberdade, pois há uma livre escolha entre a conduta do indivíduo e as
necessidades da sociedade. Somente a partir dessa conscientização a ideia de liberdade se
torna real e a história alcança sua meta.
Portanto, no movimento dialético da história uma determinada civilização compreende
a si mesma levando seu espírito em direção a outras civilizações. Este acontecimento faz o
Espírito do mundo surgir em alguns indivíduos fazendo com que apareça um novo povo em
uma nova civilização repleta de significado histórico. Dessa forma, ao analisar a história,
percebe-se que há um grau de aperfeiçoamento em seu percurso. Ela mostra uma trajetória
racionalmente necessária do Espírito do mundo. A natureza deste espírito permanece sempre a
mesma, porém, esta natureza se desdobra no curso do tempo, sendo, portanto, o resultado da
história. Nesse ínterim, a história do mundo se torna a história da consciência de liberdade que
avança rumo à concretização do Espírito Absoluto. Aqui “pode-se dizer que a história
universal é a representação do espírito no esforço de elaborar o conhecimento de que ele é em
si mesmo” (HEGEL, 1999, p. 24).
31
2.1.2 O olhar nietzschiano8
[...] vale dizer, que o mundo não foi abandonado ao acaso e a causas
externas aleatórias, mas que é regido por uma Providência. [...] Então, a
verdade que uma Providência divina preside os acontecimentos universais
equivale ao princípio citado, pois a Providência divina é a sabedoria que,
com um poder infinito, concretiza os seus objetivos, isto é, o objetivo
absoluto e racional do mundo: a razão é o pensar livre e determinante de si
mesmo (Hegel, 1999, p.19).
8
É de fundamental importância considerarmos as palavras de Gerard Lebrun com relação à crítica nietzschiana
ao hegelianismo. Segundo ele, a Segunda Intempestiva não apresenta uma interpretação detalhada da filosofia de
Hegel, Nela podemos encontrar o esboço de uma compreensão original realizada por Nietzsche acerca da
história hegeliana. Na verdade, “é através da polêmica anti-hegeliana de Schopenhauer que Nietzsche aprende a
conhecer Hegel, certamente a aspiração cristã da filosofia dialética não poderia impressioná-lo” (LEBRUN,
1988, p. 43).
9
As citações dos aforismos póstumos neste trabalho foram transcritas a partir da edição “Escritos Sobre
História”, traduzida e selecionada por Noéli Correia de Melo Sobrinho. Cf. referências.
32
evolução e no progresso. Tais conceitos e mediações segundo o hegelianismo, levariam ao
processo histórico percorrido pelo Espírito rumo à sua objetivação no mundo. Nessa
perspectiva, o processo histórico obedeceria a etapas, períodos, uma temporalidade própria.
Seu progresso da ideia seria lento, mas prosseguiria de forma necessária rumo à sua
realização. Esta realização desembocaria no fim da história, ou seja, na reconciliação entre o
Espírito Absoluto e o Estado Moderno (SOBRINHO, 2005, p. 35-36).
Para Nietzsche, no percurso da história não há a existência de nenhuma força externa
agindo sobre ela. Ver a história por este ângulo é querer tornar as coisas fáceis demais
(NIETZSCHE, Fragmento póstumo, II. 2 5 [16] 285. 2005, p. 241). É uma ironia acreditar na
intervenção de uma força exterior na história quando esta diz respeito unicamente à relação
entre vida e homem. Neste sentido, a única coisa a ser considerada deve ser somente a relação
entre historiografia e vida como um profundo sem fundo que não cessa de irromper sempre
sendo e vindo a ser. Sendo assim, para se encontrar um plano na história, basta procurar nos
desígnios do homem, pois é este e somente este que, a partir de uma afecção originária,
tomado e perpassado por uma dada possibilidade de poder vir a ser, torna-se o agente
causador da história.
Os hegelianos buscaram dar conta da história através do conceito de totalidade,
apresentando-a numa dimensão linear cuja humanidade atravessa os estágios de infância,
maturidade e velhice. Esse conceito para Nietzsche é somente um pressuposto, uma crença de
que o real é racional e o racional é real, pois a memória enquanto um jogo de lembrança e
esquecimento não permite a nenhum historiador a recuperação ou o resgate total dos fatos
históricos, não se tem como estabelecer a unidade sequencial destes fatos, nem muito menos a
indicação exata de seu início e fim (SOBRINHO, 2005, p. 36).
A história da humanidade é movida pelo acaso, não há, portanto, uma finalidade, não
há espírito nem sentido racional por trás dela, guiando e lhe conduzindo (NIETZSCHE,
Fragmento póstumo, IV 1 [63] 303. 2005, p. 258). Entretanto, não devemos nos entregar ao
acaso. É no acaso que o homem se torna senhor de si mesmo. Pois como diz o próprio
filósofo: “É claro que a minha vida não tem uma finalidade já que só devo o meu nascimento
ao acaso, que eu possa dar para mim uma finalidade, isto já é outra coisa. Mas um Estado não
tem um fim: somos nós que damos a ele este ou aquele fim” (NIETZSCHE, Fragmento
póstumo, II. 1 29 [72] 391. 2005, p. 238).
Segundo Nietzsche, se a história do mundo tivesse que alcançar um determinado fim,
se houvesse um estágio final para a história da humanidade conforme preconizava o
33
hegelianismo, este fim já teria sido alcançado10. De fato a história nos mostrou o equívoco
tanto na dialética do idealismo quanto no materialismo histórico11. Nietzsche vai
desconsiderar que Hegel teria imaginado que a concretização da história pelo Espírito
Absoluto se daria justamente no seio da sociedade germânica de sua época. Sobre isto, é
afirmado na Segunda Intempestiva que:
10
Sobre isto Nietzsche comenta em vários dos seus aforismos póstumos, como por exemplo, no V. 11 [292] 419
– 420 p. 262 e no XI 36 [15] 287 – 288 p. 273.
11
O materialismo histórico parte do movimento dialético hegeliano para explicar o processo histórico a partir da
luta de classes. Segundo tal pensamento, elaborado e apresentado pela filosofia marxista, o processo de
transformação social se dá através do conflito entre as diversas classes sociais. Da luta entre a burguesia (tese) e
o proletariado (antítese), chegar-se-ia a uma síntese realizada mediante o advento do socialismo/comunismo.
Assim, a história seria determinada pelo conflito entre classes que levaria à sociedade comunista. Em termos
hegelianos, ao Espírito Absoluto.
34
real, da doxa12. Mais tarde, o cristianismo apoiando-se na dualidade socrático-platônica –
estabelecida pelo platonismo – concebeu este mundo como um imenso vale de lágrimas e
depositou toda sua esperança numa realidade exterior, numa vida após a morte.
Na verdade Nietzsche não nega o devir no mundo, entretanto, o devir deve ser
explicado sem que se recorra a uma ideia de fim. O devir deve ser justificado a todo instante.
Na história não devemos justificar o passado em razão do presente, pois o presente deve ser
vivido com intensidade. É nele que o homem deve fazer surgir a possibilidade genuína do
criar. Por isso, Nietzsche nega a existência de um Espírito Absoluto determinando a história
do homem. A conscientização não acontece no sentido de deixar o Espírito Absoluto se
realizar no mundo. Conscientizar-se é deixar que prevaleça no homem o que mais tarde ficou
conhecido nas obras de Nietzsche como a vontade de potência, é deixar artisticamente a
criação fluir. Criar então, significa poder sentir a-historicamente sem que isto signifique
eliminar a história. É criar a partir do novo sem fazer do passado um mero espelho de
projeção.
Nietzsche acusa com veemência o cristianismo pelo fato de ter criado no homem a
ideia de que a humanidade precisa resolver uma tarefa global e consequentemente, tender para
um fim (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, XIII 11 [226] 275-277. 2005, p. 282). Segundo
ele, o cristianismo acabou por desprezar a vida colocando o homem a espera de uma
esperança futura, tirou dele o gosto pela vida e as forças para lutar por ela. A meta do homem
passou a ser a salvação de sua alma. A angústia e o sofrimento passaram a ser aceitáveis, pois
trazia a redenção (NIETZSCHE, Vol. II, 1991, p. 133).
Neste ponto é interessante perceber o contexto em que surgiu o cristianismo e de que
forma ele prevaleceu durante a Idade Média. O cristianismo foi desenvolvido como a salvação
de um povo que sofria a dominação do Império romano que perseguiu e abateu milhares de
seguidores. Com a queda do Império, a Europa se encontrou absolutamente caótica. A Igreja
era a Instituição de maior poder de organização social e não perdeu a oportunidade de
convencer, controlar e subordinar não só os cristãos, mas também os bárbaros que detinham
naquele momento o poder, mas, não sabia como organizar o povo em sociedade. Diante deste
quadro, não foi difícil construir a ideia de que este mundo era um antro de sofrimento e só o
12
É importante perceber, antes de tudo, que a crítica endereçada por Nietzsche ao modelo socrático-platônico é
uma caricatura. É aquilo que a tradição estabeleceu como sistema platônico. Segundo o filosofo alemão, a
racionalidade desenvolvida por Sócrates e Platão são sintomas da decadência iniciada ainda na Grécia arcaica
quando os instintos estéticos passaram a perder seu real valor em nome da razão. Cf. CORDEIRO, Robson C.
Nietzsche e vontade de poder como arte: uma leitura a partir de Heidegger. João Pessoa: ed. Universitária -
UFPB, 2010.
35
paraíso celeste seria capaz de trazer consolo. Dessa forma, a vida foi abnegada e a morte
desejada.
A história em sua linearidade necessitava caminhar para um determinado fim e
chegava à sua devida conclusão. Em A Cidade de Deus, ao presenciar o Império romano
sendo invadido pelas forças bárbaras, Santo Agostinho anunciava que a história da
humanidade era permeada por dois princípios distintos e opostos. Por um lado a cidade
terrena fomentada pelo egoísmo humano e por outro a cidade celeste criada pelo amor a Deus.
As duas cidades coexistiriam através do tempo e traçariam uma guerra entre si, a luta entre o
bem e o mal. A guerra chegaria ao fim apenas com o advento do juízo final, onde as duas
cidades se separariam e a cidade celeste triunfaria sobre a cidade terrena. Ou seja, o bem
venceria o mal. De qualquer forma, a crença numa prosperidade realizada ainda na terra fora
suprimida. Tais eventos mostram a falta de ânimo no criar consciente da própria história.
Na Alemanha de sua época, Nietzsche acusou a cultura histórica de desprezar os
grandes homens13. Diferentemente de Hegel, para ele os grandes homens da história não
foram aqueles que se destacaram no campo político ou econômico, não foram os grandes
conquistadores do mundo nem os que governaram por muito tempo, mas sim, aqueles que
foram capazes de dizer sim a si mesmo e deixar fluir a vida. A maneira como a história era
compreendida em sua época não tinha para ele qualquer sentido que fizesse nascer uma nova
cultura, estava morta, desfigurada. Os eruditos alemães estavam distante da verdadeira
história, procuraram fazer da história um tema religioso e a partir daí racionalizá-la. Sobre o
homem de sua época em Ecce Homo, Nietzsche faz a seguinte observação:
Como poderíamos nós, após tais visões, e com tal voracidade de ciência e
consciência, satisfazermos-nos com o homem atual? É muito mal, porém
inevitável, que olhemos as suas mais dignas metas e esperanças com
seriedade a custo mantida, e talvez se quer a olhemos mais... (NIETZSCHE,
2009, p. 81).
13
Crítica enfatizada ao longo de seu pensamento, principalmente na Segunda Consideração Intempestiva, e no
Crepúsculo dos Ídolos.
36
ocidental fundamentada pela cultura judaico-cristã. Tudo aquilo que ocorre no tempo presente
fora tomado emprestado do tempo passado, não há, portanto, criação no sentido de construção
do novo a partir do presente. Para Nietzsche, conceber a história de tal forma é perder toda a
originalidade do tempo em que o indivíduo se encontra14. É preciso saber sentir até onde é
possível considerar o passado, pois sendo o homem tomado pela força plástica15, deve poder
dosar corretamente memória e esquecimento. É ele quem deve através de suas criações,
construir o seu momento histórico e fazer uma nova história, criar uma nova cultura.
Nietzsche concebia o progresso como uma ideia tipicamente moderna, ou seja, uma
ideia resultante da própria visão de mundo da época. A humanidade não representava para ele
uma evolução para o melhor, uma evolução no sentido do fraco para o forte, do baixo para o
elevado. Perseguir a evolução de um povo não significa relacioná-lo ao seu crescimento, ao
seu aumento, a sua força. Mais tarde em O Anticristo (2007, p. 11), Nietzsche vai chamar
atenção para o fato de que na história sempre houve casos isolados de culturas diversas em
que se manifestou um tipo mais elevado, um povo que comparado ao restante da humanidade
fora instalado nele uma espécie de grandes homens. Possivelmente aqui Nietzsche faz
referências à Grécia arcaica. São casos que foram e serão sempre possíveis de êxitos. A ideia
de progresso parece permanecer no âmbito do equívoco, uma vez que estes povos em certas
circunstâncias, movidos por aquilo que Nietzsche chamou de força plástica, chegaram a
constituir-se.
Pelo fato do devir se fazer presente na história achamos que estamos em progresso,
que existe um processo evolutivo seguindo em frente. Contudo esta é uma aparência
enganadora. Para Nietzsche o século XIX não representava um progresso quando comparado
ao século XVIII. No fragmento póstumo (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, XIV. 15 [8]
177. 2005, p. 288) declara que os alemães de 1888 não estavam à frente em relação ao espírito
alemão de 1788, pois a humanidade não avança progressivamente rumo a um determinado
fim. No mesmo aforismo, Nietzsche chega a comparar o processo histórico a um imenso
laboratório de experiências onde algumas coisas obtêm sucessos enquanto outras não são bem
sucedidas. Não existe, portanto, homogeneidade, faltam algumas coisas que as
complementem: ordem, lógica, ligação, engajamento. Não há ligações que as tornem
universais e progressivas. Assim, diz ele, o próprio cristianismo pode ser tomado como
exemplo de decadência, pois na Modernidade a Reforma alemã recrudesceu nessa decadência.
14
Este modo de se conceber a história é tratado por Nietzsche na Segunda Consideração Intempestiva sob o
conceito de história monumental, história antiquária e história crítica. Trataremos desta temática no terceiro
capítulo deste trabalho.
15
O conceito nietzschiano de força plástica também será abordado no terceiro capítulo.
37
Em contrapartida, em outros tempos mais remotos, nas culturas hindus, egípcia e chinesa
floresceu um tipo superior de homem bem mais capaz do que aquele proposto pelo progresso
de seu tempo (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, XIII. 11 [413] 363-364. 2005, p. 284).
Quanto à influência da moralidade no processo histórico, a crítica nietzschiana é
endereçada tanto a Hegel quanto a Kant. Em 1784, Emmanuel Kant publica um pequeno
ensaio intitulado “Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita”, no
qual propõe a história do mundo como um desígnio da Natureza. De acordo com seu
pensamento haveria um princípio teleológico no qual os males da história seriam justificados
mediante a construção de uma sociedade cosmopolita cuja constituição jurídica abarcasse a
satisfação de todos. Para tanto, existiria neste processo, a determinação da natureza que
levaria a humanidade a agir em seu favor, o próprio desenvolvimento histórico se encarregaria
da sua conclusão. Sobre seu desenvolvimento, Kant afirma na quarta proposição de sua obra
que:
38
indivíduo com outros indivíduos em servir ao Estado. A verdade é que ambos tinham como
meta a implantação de valores morais em suas filosofias da história. Tanto uma quanto a outra
acabaram por receber a crítica nietzschiana.
Em um de seus fragmentos póstumos comentando sobre o papel da moral na história,
Nietzsche faz a seguinte afirmação:
39
linha progressiva e guiada por uma razão absoluta. O mundo e com ele a história, não foi
criado, não teve um ponto de partida. Tudo está sempre passando sem que com isso seja
preciso atingir um fim. Os ideais humanos são contraditórios, as culturas são diferentes. Não
há portanto aqui nem totalidade nem progresso, nem plano e nem fim. Para o filósofo alemão,
o que determina o mundo e a história é uma potência cega. De modo que se há na história
uma necessidade de algo que a guie e a determine, trata-se então da necessidade do acaso
(SOBRINHO, 2005, p. 36).
Não é tarefa da história comprovar a existência de fins, isto não lhe é possível. O que a
história comprova é a contradição encontrada nos resultados alcançados que mostraram a
incompatibilidade entre o fim desejado e o fim alcançado. Por diversas vezes a história
mostrou que o fim almejado, sonhado e desejado jamais fora atingido (SOBRINHO, 2005, p.
38). O universalismo kantiano e o historicismo absoluto hegeliano parece ter-nos revelado que
não há uma história universal, um sentido universal, nem muito menos uma Providência
universal que se possa conhecer. “Os sentidos da história são dados pelos indivíduos
concretos, não pelas massas, não pelos povos, pois nenhuma idéia abstrata pode promover a
história ou levá-la a um termo” (SOBRINHO, 2005, p. 39).
40
confiável e empírica tal como acontece com as ciências exatas (REIS, 2005, p. 36). A história
passou a trabalhar com eventos únicos, individuais e singulares. A pesquisa do historiador
teve como alvo o evento datado, localizado no tempo e no espaço. O fato, após o crivo do
historiador, passou então a ser um “fato realmente acontecido”. Tal pensamento historicista
sustentava que a razão seria reduzida à história. Um sistema que apresentasse uma história
guiada por um sentido universal, tal como outrora celebrara Hegel, seria de imediato
recusado.
Segundo Reis, neste ponto as relações entre a filosofia e a história são invertidas, pois
agora seria a história quem compreendia a filosofia e não a filosofia que compreendia a
história como ocorria até então (REIS, 2005, p. 36). Consequentemente, não era mais
interesse do historiador a busca pela universalidade ontológica da história, mas a sua
possibilidade enquanto epistemologia universal. Neste contexto, merece destaque a Escola
rankeana justamente por lançar as bases metodológicas da história enquanto ciência.
A Escola rankeana está profundamente ligada a um eminente historiador do século
XIX, citado algumas vezes por Nietzsche ao longo de sua obra. Trata-se de Leopold von
Ranke citado indiretamente na Segunda Intempestiva como um “famoso historiador
contemporâneo” (REIS, 2011, p. 167).
Dono de uma aguda intelectualidade e de uma vasta obra sobre a história, Ranke via
nos documentos diplomáticos uma das principais fontes da pesquisa historiográfica. Para ele,
as iniciativas internas do Estado eram resultados das suas relações exteriores. Por isso,
interessava-se pela psicologia individual dos grandes homens políticos, pois acreditava serem
eles os responsáveis pelos desdobramentos do Estado e, por conseguinte, da história. Dessa
forma, Ranke buscava na objetivação dos documentos a exatidão dos fatos históricos (REIS,
2006, p. 15).
Leopold von Ranke pode ser considerado o fundador da moderna disciplina histórica,
pois com ele se deixava de considerar a história enquanto mera narrativa do passado ou devir
metafísico, e em seu lugar sedimentavam-se as metodologias científicas da época. Tais
41
metodologias, profundamente influenciadas pelo positivismo, tinham por objetivo descrever a
exatidão dos fatos a partir da crítica rigorosa das fontes que por sua vez, deveriam ser
constituídas por documentos oficiais.
Assim, nascia a história científica cujas características, formuladas por Ranke,
apresentavam o historiador não como um ser comum que nega ou compreende o passado, mas
como alguém que apenas descreve a realidade daquilo que se passou. Não poderia haver,
portanto, nenhuma relação entre o historiador e o evento histórico. Suas relações eram
estritamente de sujeito do conhecimento e objeto a ser conhecido. Neste processo, a
objetivação da história seria possível apenas mediante a apreciação dos documentos e a tarefa
do historiador consistia em levantar um número significativo destes documentos que fossem
capazes de descrever de forma “autêntica”, e sem margens de erro, a veracidade e a
comprovação do fato histórico.
Em seguida os fatos eram minuciosamente extraídos dos documentos e organizados
em ordem cronológica de modo que compusesse uma sequência narrativa. A partir daí, era
então constatado que a história enquadrava-se aos moldes de uma disciplina científica, capaz
de atingir sua objetividade desde que o historiador cientista obedecesse a seu paradigma 17. Era
esta a função do historiador e o papel da história no processo da pesquisa historiográfica:
levantar documentos, selecioná-los criticamente18 e narrá-los em ordem cronológica. O
acontecimento histórico só se tornava verossímil mediante a abordagem metodológica do
historiador. Este, por sua vez, tinha como obrigação de ofício, evitar a construção de
hipóteses, manter-se neutro, não julgar nem problematizar o real após a constatação do fato.
Segundo a Escola rankeana, os fatos existem por si só, são sedimentados, lapidados
pelo tempo e não podem ser recortados ou construídos. Podem apenas ser apanhados em sua
integridade para que daí seja possível alcançar sua veracidade. O historiador em sua
passividade se deixa possuir pela totalidade do evento mantendo distante deste toda e
qualquer parcialidade. Segundo Reis:
17
O termo “paradigma” surge em 1962, com Thomas Kuhn em A Estrutura das Revoluções Científicas, para
designar um conjunto específico de suposições gerais, leis e técnicas adotadas por uma comunidade científica. O
fracasso dos cientistas em relação a problemas dentro do paradigma leva à “anomalias” e o paradigma entra
numa crise que é aprofundada quando aparece um paradigma rival que põe em desuso o anterior ocorrendo o que
Kuhn denominou de Revolução Científica. Cf. CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? Tradução de Raul
Fiker. São Paulo: Brasiliense, 1993.
18
A historiografia moderna também foi tomada por crítica justamente pela busca em solucionar racionalmente
aquilo que fosse “verdade” na história. Entretanto, tal crítica exacerbou sua objetividade e acabou perdendo o
foco daquilo que mais importante à história pode nos conceder: suas lições sobre o criar. Chamadas de crítica
tanto por Nietzsche quanto pelos historiadores de sua época, tal história tinha para estes, propósitos distintos.
42
Passivo, o sujeito se deixa possuir pelo seu objeto, sem construí-lo ou
selecioná-lo. É uma consciência “recipiente”, que recebe o objeto exterior
em si, ou uma consciência “espelho”, que reflete o fato tal como ele é, ou,
ainda, uma consciência “plástica”, que toma a forma dos objetos que se
apresentam diante dela. Para obter esse resultado, o historiador deve se
manter isento, imparcial, emocionalmente frio e não se deixar condicionar
pelo seu ambiente sócio-político-cultural (REIS, 2006, p. 18)
19
Até os dias atuais é grande a influência dos franceses na historiografia mundial, sobretudo, após o movimento
conhecido como Escola dos Annales. Movimento surgido na França em torno da revista Annales fundada pelos
historiadores Lucien Febvre e Marc Bloch. Tinham como objetivo uma nova metodologia do conhecimento
histórico diferente daquela proposta pelo positivismo, mais precisamente pela escola rankeana. Suas principais
características foram: a interdisciplinaridade, a cultura como objeto de estudo, análise das estruturas e a
multiplicidade de fontes históricas. Sobre os Annales Cf. Peter Burke em: A escrita da história: novas
43
praticaram os mesmos métodos aplicados por Ranke, destacando-se mundialmente como a
Escola metódica.
Assim se fez o modo de proceder do historiador rankeano/metódico/positivista do
século XIX, por meio do qual se buscou, através dos documentos, reconstituir de forma exata
o passado tal como um dia ele foi. À sua atribuição não cabia o papel de problematizar,
construir hipóteses, nem reler os fatos passados. Sua tarefa era reconstruir o evento tomando
como base a análise crítica dos documentos – e somente os documentos escritos oficiais,
ficando de fora outros artefatos importantes para a pesquisa historiográfica como fósseis, a
pintura, a música, os utensílios domésticos, etc. – tornando dessa maneira, o fato histórico
verdadeiro e digno de credibilidade.
Os historiadores do século XIX, seguindo esta metodologia tornaram-se senhores dos
eventos passados. Eram eles, e somente eles, quem determinavam à historicidade, ou não, de
um evento passado. O passado tornou-se o oposto do evento presente, pois o presente é
sempre mutável, imprevisível e constante. Já o passado, este podia ser analisado, mensurado,
datado e por isso, mais próximo do sujeito historiador que podia dele se distanciar mantendo-
se cada vez mais imparcial.
Dessa forma, deu-se também, a evasão da história por parte do historiador. Por almejar
uma descrição objetiva do fato passado, o historiador se distanciou do evento e passou a
observar a historia de forma exterior, como aquele que está fora da história, como se o evento
não lhe afetasse e este não tivesse qualquer participação no processo histórico. Segundo Reis:
É justamente pela tentativa de descrever o passado com exatidão, por evadir o homem
de sua temporalidade histórica na busca pelo conhecimento do passado e por tornar a história
uma narração descritiva do evento passado que vai fazer Nietzsche criticar a História como
disciplina científica. Uma história que julga o passado, mas que deixa o homem ser sufocado
pelo excesso de conhecimento. Esta tentativa de tornar a história uma disciplina capaz de
explicar o que se passou, mas que pertence apenas aos historiadores sem que tenha nenhuma
perspectivas. Tradução de Magda Lopes, São Paulo: Unesp, 1992 e José Carlos Reis em: Escola dos Annales: a
inovação em história. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
44
vivência prática com o homem e com a vida é, para Nietzsche, um dos sintomas do que ele
chama de doença histórica (NIETZSCHE, 2003, p. 94).
O questionamento acerca da história como uma disciplina que descreve com exatidão
os eventos passados só veio a se cristalizar no século XX, sobretudo, a partir daquela que
ficou conhecida como Escola dos Annales. Poucos foram os pensadores que, ao lado de
Nietzsche, discordaram do método rankeano-positivista que na época se sobressaia como
paradigma vigente 20. Segundo Barros:
Ao lado de Nietzsche – que não era historiador, mas filólogo – esteve John Gustav
Droysen (1808 – 1884) e o suíço Jacob Burckhardt (1818 – 1897) de quem Nietzsche recebeu
grande influência21. Mas tarde, pensadores como Benedetto Croce (1866 – 1952) e Roger
Collinwood (1889 – 1943) reforçaram a ideia de que o passado só existe no presente daquele
que o descreve e que dessa maneira fica impossível à descrição objetiva do passado22.
A crítica de Nietzsche à história está inserida em um contexto muito mais amplo que
concerne à forma como a ciência havia se apresentado na modernidade. Em sua obra
“Nietzsche e a verdade” (1999), Roberto Machado aponta a crítica Nietzschiana à vontade de
verdade atuante em torno do século XIX. A vontade de verdade seria, desta forma, uma
crença fundamental na ciência moderna, pois nela a verdade seria a legitimação de sua
atividade. Neste sentido, há sempre a necessidade de que os resultados apresentados pela
20
Ao longo da Segunda Intempestiva, Nietzsche não faz nenhuma referência direta ao Positivismo. Contudo
analisando a conjuntura historiográfica da época podemos perceber que toda historiografia vigente, tanto da
Escola rankeana quanto da Escola Metódica, era profundamente influenciada pelo Positivismo.
21
Cf. Primeiro capítulo.
22
Cf. FUNARI, Pedro Paulo; SILVA, Glaydson José da. Teoria da história. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Col.
Tudo é história, 152).
45
ciência sejam verdadeiros mesmo que para isto seja também postulado uma crença. No caso, a
crença de que o passado está sendo descrito exatamente como ocorreu.
Ao observar a forma como a história enquanto ciência moderna se comportava em sua
época, Nietzsche percebe a verdade como o centro de gravidade do discurso científico e a
concebe tão somente como uma crença (MACHADO, 1999, p. 75). É na crença em uma
superioridade da verdade que a ciência do século XIX se fundamenta. Neste contexto, ao
construir critérios de verdade que validassem a atividade científica, o que acabou por ser
posto sobre a pesquisa historiográfica foi a adoção de critérios originados a partir de uma
crença na qual os resultados daquela pesquisa seriam irrefutáveis e, portanto, verdadeiros.
Esta crítica no que concerne à “verdade” não diz respeito apenas à historia e às
ciências modernas. A própria história da filosofia se compõe como a história da metafísica
pela busca da verdade. A verdade apresenta-se como a legitimadora da racionalidade. Mas,
em que se baseiam ou se fundamentam tais critérios de verdade? É justamente neste ponto que
Nietzsche acena para a crença. Uma crença pela qual acreditamos e postulamos a veracidade
dos fatos, o que aos olhos de Nietzsche é mero engano, uma vez que “não há fatos, só
interpretações” conforme o mesmo apresentou mais tarde no parágrafo 481 da Vontade de
Poder.
Assim sendo, para o escritor das Intempestivas, o primeiro erro ao se conceber a
ciência histórica como um conhecimento determinado pela verdade foi acreditar no acesso a
uma estrutura básica e estável da realidade, considerando-a como verdadeira. Agir de tal
forma seria privilegiar uma determinada concepção mediante a exclusão de outra. De fato,
estudos recentes na historiografia puseram à prova eventos tidos como verdadeiros e
impossíveis de qualquer questionamento quanto a sua veracidade23. Isto confirma o que
Nietzsche pretendeu apresentar tempo depois da Segunda Consideração Intempestiva como
“interpretação”, pois só podemos interpretar parcelas dos fatos que nos são postos.
Formamos interpretações parciais e insuficientes sobre a estrutura da realidade, o que acaba
por tornar insuficiente qualquer formulação que tenha por finalidade tornar uma verdade
universal válida para todos os homens em qualquer temporalidade, lugar e circunstância.
O outro equívoco apontado por Nietzsche foi o de ignorarmos como são formadas tais
interpretações. Aqui se encontra a implantação da verdade como um valor ao conhecimento,
23
Na história do Brasil, por exemplo, temos os casos de personagens como Tiradentes que foi outrora
considerado vilão e inimigo da Coroa portuguesa, mas que com a Proclamação da República em 1889, sagrou-se
herói nacional pelos republicanos. Outro exemplo foi a abolição da escravatura. Durante muito tempo pensou-se
que sua assinatura havia sido um gesto solidário e generoso da Princesa Izabel, hoje sabemos que existiu todo
um contexto político-social que determinou sua ação.
46
pois ao interpretar valoramos e a partir do valor elaboramos critérios de verdade. Na
interpretação encontra-se contida uma perspectiva concernente ao que deve ser promovido,
evitado, indicado ou avaliado, encontra-se o que posteriormente ficou conhecido em seus
escritos por juízo moral.
Para Nietzsche, a impossibilidade de se conhecer com afinco um determinado fato,
isto é, determinar com exatidão o que aconteceu, dá-se justamente pelo fato do conhecimento
histórico ser apenas uma “nova experiência vivida” que se dá unicamente no âmbito do
presente, como as ideias e a visão de mundo no qual o historiador está inserido: o tempo
presente. É impossível ao historiador descrever de forma exata o passado, uma vez que este
não está deslocado no tempo, pois como ficou registrado em um de seus aforismos póstumos,
“não há caminho que conduza do conceito ao ser das coisas. Só há um meio de compreender a
tragédia grega: ser Sófocles” (NIETZSCHE, Fragmento póstumo, I. 17 [185]317. 2005, p.
289). Desse modo:
47
Desse modo, aquilo que impulsiona o homem a buscar o passado e a partir dele tornar-
se senhor do tempo e de si mesmo não é o instinto de verdade, de objetividade e de exatidão,
mas tão somente, o instinto artístico. Para Nietzsche, ao pensar desta maneira, o resultado
final de qualquer pesquisa historiográfica acaba por se tornar obra de arte. Em outras palavras,
é a participação do historiador, enquanto sujeito histórico tomado e tocado pela historicidade,
que faz a historiografia se tornar uma arte a serviço da vida.
Segundo o autor de Assim falou Zaratustra, a história tal como preconizava a Escola
rankeana era totalmente desprovida de sentido artístico. Escondia-se por trás da aparente
segurança e exatidão dos rankeanos, uma falta de paixão e desejo de criação artística. A frieza
do historiador em relação ao passado procurava esconder sua participação no acontecer do
mesmo. Todavia, era ignorada em seu labor a força incontestável do presente. Para Nietzsche,
é apenas mediante a mais alta força do presente que o homem consegue interpretar o passado.
(NIETZSCHE, 2003, p. 56). É somente através do presente, no qual estamos inseridos com
nossa cultura e visão de mundo, que podemos selecionar do passado aquilo que pode ser
conhecido.
A proposta de Nietzsche é não acreditar numa historiografia que não tenha sido escrita
com grandeza, com visão de futuro e com alto teor artístico no sentido de criação. Por isso, é
o homem de ação que deve escrever a história. É o homem experiente, grande e nobre que
deve tomar para si a obrigação de produzir uma historiografia que não sirva apenas para
reprodução do passado pelo passado, mas de construir a partir do passado uma ponte para o
futuro, fazendo da história um bem a serviço da vida. Isto não se dá, entretanto, no âmbito da
autonomia de um eu-sujeito enquanto causador de sua ação. O eu é um acontecimento
secundário, pois é a cristalização de um aparecer, de uma perspectiva, de um modo de ser do
real. É preciso que antes já tenha sido aberto para ele um mundo de possibilidades, pois é
justamente esta afecção originária pelo mundo que o assalta e determina o destinar-se de sua
história.
Em um de seus aforismos póstumos, Nietzsche critica Ranke afirmando que a
maneira como este escreve a história tende a embelezar as coisas (NIETZSCHE, Fragmento
póstumo, XI 40 [62] 398. 2005, p. 306), pois mesmo que fosse possível compreender as
condições pelas quais um determinado fato ocorreu, ainda assim seria impossível concebê-lo
exatamente como este realmente aconteceu. Para Nietzsche, a ideia de equiparar a história às
ciências da natureza faz do historiador um advogado modesto dos fatos, faz o passado chegar
de maneira equânime ao presente. Porém, neste modo de proceder é ignorado a ação do tempo
presente no “modus operandi” do historiador. Em outras palavras, é desconsiderado que neste
48
caso o passado é um aspecto do presente e somente pode ser reconstituído a partir dos valores
vigentes em nossa época. Aí está a razão pela qual Nietzsche afirma que somente aquele que
constrói o futuro a partir do pensamento presente tem o direito de julgar o passado
(NIETZSCHE, 2003, p. 57).
Ainda sobre o labor do historiador, Nietzsche é claro ao afirmar que este não trabalha
com os fatos reais tal como um dia aconteceram, são apenas acontecimentos supostos. Sendo
assim, também só são apresentados supostos heróis, muitas vezes mais que fantasiados ao
gosto do historiador. Em Aurora – obra posterior às intempestivas – Nietzsche enfatiza que o
pretenso objetivo de se querer converter os fatos em história universal, torna-os apenas uma
construção de um conjunto de opiniões sobre supostos eventos e heróis que um dia
apareceram e que pereceram no tempo (NIETZSCHE, 2004, p. 189).
Eles vêem este passado como “fato consumado”, como algo morto que nada
mais ativa no presente. Eles acreditam resgatar o passado com neutralidade,
equanimidade e objetividade, mas na verdade o que fazem é somente
adequar o passado ao presente, forçar o passado pelo presente, dando uma
demonstração inequívoca da sua conformidade com o hoje. Para eles, o
presente é o único cânone da verdade e eles próprios são servidores desta
verdade, pois eles acham sãos os homens do conhecimento (SOBRINHO,
2005, p. 43).
Portanto, é ingênuo buscar a exatidão no fato passado, pois a história não mostra os
fatos diretamente como eles ocorreram. A documentação é tão somente uma seca coleção de
exemplos a validar o incomprovável. A época moderna conferiu à história o status de
objetividade e isto prefigura um devaneio, uma vez que serve apenas para acumular escritos
em que nada edifica a vida. Ver o passado pelo passado é se perder no infinito do tempo e não
se perceber como agente histórico responsável pelo presente, passado e futuro. A
imparcialidade do historiador frente ao evento pesquisado não diminui sua participação no
processo histórico, sendo a possível “exatidão” histórica nada mais que o resultado de sua
ação no tempo.
Na Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para
a vida, obra chave para a realização deste trabalho, Nietzsche indaga se o historiador de seus
dias seria o mais justo de sua época; ou seja, revelar os eventos tal como eles de fato
ocorreram faz do historiador um homem justo com sua época? Para Nietzsche, não! Manter-se
imparcial é negligenciar a visão de mundo presente e, assim sendo, também é negligenciada a
atividade criadora do homem. Por isso, essa imparcialidade frente ao passado é puramente
49
fictícia, sem fundamento. Não há como avaliar o passado sem fazer uso do presente. De modo
que:
Desta forma, é tão somente uma ilusão acreditar numa pura objetividade histórica.
Acredita-se que ser objetivo é se manter neutro ao examinar o acontecimento em toda sua
dimensão temporal, sem que este acontecimento possa exercer a menor influência sobre
aquele que o examina. Compreende-se que ao apartar-se do objeto analisado – o tempo
passado – o historiador possa enfim, descrever de forma literal o passado de modo que este
seja descrito de forma tão exata quanto os resultados obtidos na Física e na Matemática.
Porém, ver a coisa por este ângulo é ignorar o historiador enquanto agente também causador
da historia e, portanto, imbricado nela.
50
tarde irá mostrar Nietzsche no discurso “da visão e do enigma”24, em que Zaratustra aponta
para um portal em que se entrecruzam passado e futuro (NIETZSCHE, 2010, p. 190-196).
Logo:
24
No discurso Da visão e do enigma de Assim Falou Zaratustra, obra posterior às Intempestivas, Zaratustra e o
anão se deparam com um portal em cujo frontispício está inscrito “instante” (augenblinck). O instante configura
a dimensão temporal em que passado e futuro se chocam. É o momento em que a vida como um profundo sem
fundo está eternamente irrompendo. Uma força súbita e gratuita que eternamente retorna, sendo e vindo a ser.
Portanto, o instante diz respeito à criação, concerne à existência enquanto algo que não cessa de vir-a-ser, de
aparecer, de eclodir e de irromper no movimento eterno de vida se fazendo vida. Este pensamento foi chamado
por Nietzsche de Eterno Retorno, todavia, por hora não nos deteremos neste tema, deixando-o para uma pesquisa
posterior.
25
Entendamos aqui também o homem que ao refletir sobre a história, limita-se apenas em pensar o passado sem
ver neste qualquer relação com o presente nem com o futuro. O homem sem capacidades de transformar, de
intervir e de criar, mas apenas de imitar o passado.
51
conclama o homem moderno a romper com esta linearidade histórica e desprender-se da teia
que o prende ao passado. É preciso, pois, criar uma história a partir do momento presente,
uma história em que nela o homem possa dizer sim a si mesmo e trazer de volta para si todo
aquele valor nobre que antes fora perdido. Fazer da história algo a serviço da vida sem estar
preso ao passado e sem se apegar a uma metodologia que exclua a vida. Levar a uma ação que
cure a humanidade da doença histórica. Esta é a proposta de Nietzsche para a história, este é o
seu legado no que concerne à relação entre história e vida.
52
3 DA RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E VIDA
53
Ao tornar-se pesquisador neutro da história, o homem moderno desligou-se da vida.
Dela se afastou no momento em que a abandonou como uma possibilidade para o criar e
passou apenas a tentar descrevê-la. Ele agora apenas acumula fatos históricos, tornou-se um
colecionador de eventos passados, não cria, não age nem se auto-supera. A história apresenta
infinitas possibilidades, oferece inúmeras condições, além de ampliar o horizonte da criação
humana. Porém, o homem moderno a concebe apenas como uma ciência, como uma forma de
conhecer o passado. Apenas a observa sem querer penetrar, mas somente vê-la objetivamente
de longe.
Nietzsche compara a historia a um grande harém. O homem-historiador seria o eunuco
que vive exclusivamente para vigiar as mulheres. A história enquanto vida seria este imenso
harém capaz de possibilitar prazer e felicidade. Todavia, o historiador enquanto eunuco nada
poderia fazer para dela desfrutar. Ele conheceria toda a sua estrutura, toda a sua característica,
saberia o nome e a idade de cada mulher desse harém, mas nem por isso não pode ou não
sente em si o instinto originário para dele participar. Assim como o eunuco, suas forças são
castradas, sua vontade é inibida e seus propósitos são outros. Sua função e contentamento
resumem-se apenas em vigiar a história e descrevê-la de forma objetiva sem ter com ela
qualquer tipo de relação.
Portanto, segundo Nietzsche, o homem moderno sofre de uma personalidade
enfraquecida que afeta diretamente sua liberdade. Não liberdade no sentido comumente aceito
de livre-arbítrio, de uma autonomia do sujeito. Mas, liberdade enquanto possibilidade de
tomar decisão no instante em que vida se revela como um profunda condição possível para o
agir e para o criar. É esta liberdade que neste homem está agrilhoada, sem força e sem
vitalidade. Sua predisposição apenas para observar, datar e descrever objetivamente os fatos o
tornou estéril, condicionado e incapaz de dizer sim à vida e a si mesmo. A cultura histórica tal
como apresentou a modernidade fez do homem um eunuco castrado e incapacitado para criar
e viver sua própria história. Para Nietzsche, a história deveria ser como um ponto de partida,
uma possibilidade de dizer sim a si mesmo e romper seus limites em busca de um novo
sentido.
A história deveria trazer de volta toda exuberância e grandeza da Grécia pré-socrática.
A ação do homem histórico deveria estar voltada para a criação, pois enquanto agente da
história ele se encontra extremamente ligado a ela e não fora dela. Ignorar isto revela quanto
enfraquecida tornou-se a personalidade do homem moderno, dotado de conhecimento
histórico, mas desprovido de ação em prol do criar. Um homem que conhece – ou acredita
conhecer – todos os detalhes da história, mas que, no entanto, desconhece todo o seu
54
significado para a ação e para o transbordamento da vida que é constitutivo do próprio
acontecer histórico.
O segundo aspecto da história que o filósofo alemão aponta como nocivo e perigoso à
vida concerne justamente em se conceber a época moderna como o período de maior virtude,
um período de maior conhecimento sobre a justiça. Neste sentido, o homem moderno acredita
ser neutro e objetivo em relação à história. Com isso, ele acredita também ser possível
compreender com exatidão o passado, sendo justo ao descrever de forma exata a história. O
homem moderno, historiador, científico e detentor do conhecimento, afirma ao apresentar
suas pesquisas o resultado justo do seu trabalho. Em outras palavras, por tentar aplicar na
história os mesmos métodos utilizados nas ciências naturais, o homem acredita estar
apresentando os resultados de forma justa, pois, ao longo da pesquisa, foi objetivo, manteve-
se neutro, não tomou partido e não fez nenhum juízo de valor.
No entanto, o homem histórico-científico esqueceu que a história é própria e
constitutiva da vida. História e vida são, pois, uma unidade peculiar à condição humana. Por
mais que o homem se esforce na tentativa de estar para fora desta realidade, ele não consegue,
pois faz parte desse processo unitário que é história e vida. Esta é a relação entre história e
vida que Nietzsche se propõe a demonstrar em sua Segunda Intempestiva. Achar que estamos
fora da história é crer que estamos fora da vida, pois é na história que a vida se apresenta
como esta imensa possibilidade para o criar. Ignorar isto é se entregar ao condicionamento, é
viver sem liberdade e não ter forças para a criação do novo, do grande, do exuberante.
Na busca exacerbada pela objetividade, o historiador moderno enxerga a justiça de
acordo com a confiabilidade das fontes. Para ele, ser justo é saber mensurar o grau de
originalidade destas fontes. A historiografia que não aceitar a canonicidade de tais opiniões é
logo declarada subjetiva, sendo portanto, pseudocientífica. Neste caso, a subjetividade do
historiador enquanto ser histórico não pode ser envolvida com a objetividade do historiador
cientista que observa, pesquisa e analisa. Para o homem-historiador da Modernidade, ser
objetivo é manter-se neutro frente aos fatos. É um nada querer de envolvimento com o
passado, mas apenas dissecá-lo e descrevê-lo. “Não se interessar por nada é a “objetividade”.
Ora, protesta Nietzsche, para que dedicar anos de trabalho árduo a essa “vontade de nada”?”
(REIS, 2011, p.175).
Segundo Nietzsche, este não é o modelo de história a ser seguido, pois em suas
próprias palavras: “objetividade e justiça não têm nada a ver uma com a outra” (NIETZSCHE,
2003, p. 52-53). Sendo assim, a compreensão da história não deve estar ligada à objetividade,
à neutralidade, à descrição exata dos fatos esmiuçados. A história deve ser compreendida
55
como uma possibilidade de se pensar a vida, manter com ela uma relação de profundidade
reflexiva, de beleza e de vontade de poder fazer. Neste caso, o que o homem precisa não é
apenas da objetividade científica, mas também de uma grande disponibilidade de poder
artístico. Poder este que Nietzsche vai denominar Força Plástica26.
Tanto o homem quanto o historiador devem tomar a história como uma possibilidade
criativa. Tendo a história como uma parte constitutiva da vida, ele deve percebê-la com a
sensibilidade de um artista, com a pré-disposição para o criar, para o agir. Sua tarefa consiste
em, a partir do passado, fundar o novo sem necessidade de copiá-lo nem descrevê-lo, pois o
passado deve ser visto apenas como uma fonte de inspiração, como um incentivo ao agir. É
preciso, antes de tudo, entender que a interpretação do passado ocorre mediante a força do
presente. O historiador, enquanto ente posto e pertencente à história, só interpreta esta com os
dados que sua visão de mundo lhe oferece. É apenas no momento presente, sob a tensão e a
pressão do agora, que ele consegue conceber no passado aquilo que deve ser preservado e
conservado. Este é o cultivo da verdadeira justiça.
Outro aspecto nocivo e perigoso à vida diz respeito ao comprometimento dos instintos
de um povo e dos indivíduos que ao ficarem perturbados com o excesso de história são
impedidos de amadurecer e tornarem-se experientes. O sentido histórico pelo qual estava
fundamentado o sistema hegeliano cuja história caminha em ordem progressiva mediante a
realização de um Espírito, era para Nietzsche, tão somente uma espécie de atrofiamento27. Em
suas palavras, o “sentido histórico quando vige “sem travas” e retira todas as suas
consequências, desenraiza o futuro, porque destrói as ilusões e retira a atmosfera das coisas na
qual podiam viver” (NIETZSCHE, 2003, p. 58). Este sentido histórico mais tarde
transformou-se em cientificidade.
O homem moderno, dotado de ciência e conhecimento histórico perdeu o amor pela
criação, pela superação, pela inovação. Para Nietzsche, o homem esqueceu de ver na história
toda sua peculiaridade artística, pois uma vez que ele voltou-se apenas para a análise objetiva
dos fatos, esta perdeu todo o seu brilho e a possibilidade reflexiva para a criação. O homem
não a vê mais como uma possibilidade para o criar, mas como uma forma erudita de se obter
conhecimento e vaidade. A história moderna, ao olhar do nosso filósofo, perdeu sua
plasticidade, suas forças tornaram-se estéreis. De modo que:
26
Força que possibilita saber lembrar e esquecer na medida certa. O conceito nietzschiano de força plástica será
abordado mais adiante.
27
Cf. capítulo sobre a crítica de Nietzsche ao hegelianismo.
56
“Se por detrás do impulso histórico não age nenhum impulso construtivo, se
nada é destruído e limpo para um futuro já vivo na esperança de construir
sua história sobre o solo, se a justiça vige sozinha, então o instinto criador é
enfraquecido e desencorajado” (NIETZSCHE, 2003, p. 58).
57
determinado fato histórico e transborda de satisfação. A moderna metodologia científica é o
seu passo a passo. Sua verdade vem da sua imparcialidade e objetividade. Infantilmente ele
diz orgulhoso que já produziu, que já criou, que já está pronto. Entretanto, Nietzsche é
taxativo ao declarar que “se os homens devem trabalhar na fábrica da ciência e se tornarem
úteis antes que amadureçam, então a ciência está arruinada do mesmo modo que todos os
escravos utilizados nesta fábrica desde cedo” (NIETZSCHE, 2003, p. 63).
Dessa forma, a cultura histórica moderna não possibilita o amadurecimento pleno dos
jovens, pois estes se tornaram funcionários da ciência histórica. A eles é ensinado aquilo que
se denomina sentido histórico, cultura histórica, objetividade, imparcialidade e cientificidade
histórica. Aprendem a conhecer em demasia o passado, mas desconhecem a história como
possibilidade de criação, como atitude reflexiva sobre a vida, como fonte de exuberância e
grandeza. Desconhecem como os homens podem ser capazes de tornar o novo possível e
traçar uma nova meta de valor frente à vida. Para Nietzsche, uma história que se apresenta ao
homem apenas como disciplina científica, como uma profissão a ser seguida, uma ciência que
busca a “verdade” via vontade de verdade, de fato não ama a vida, mas a odeia. A história
vista de tal maneira domina a vida, torna-lhe pouco valiosa, pois não se lança junto com ela
rumo ao futuro (REIS, 2011, p. 177).
O quarto aspecto apresentado por Nietzsche como nocivo à vida está na “crença
perniciosa na velhice da humanidade”, ou seja, o excesso de cultura histórica faz o indivíduo
acreditar que já amadureceu, que é tardio e epígono. Ao estabelecer contato direto com o
passado por meio das modernas metodologias historiográficas, o homem acredita conhecê-lo
profundamente e com isso acredita ser dotado de experiência suficiente para descrevê-lo. O
homem moderno crê estar à frente do antigo pelo fato de pesquisar, analisar e conhecer a
história deste. Por isso ele se considera melhor. Todavia, tal procedimento incorre numa falsa
crença. A supersaturação de conhecimento histórico é apenas uma maneira de se acumular
informações que muitas vezes são até questionadas28. O exacerbamento de cultura histórica,
ao invés de amadurecer acaba por impedir este amadurecimento.
O desenvolvimento científico do século XIX parece aos olhos de Nietzsche ter se
transformado numa espécie de religião capaz de remover todos os nossos problemas. Assim,
28
Michel de Certeau faz uma importante declaração sobre a “veracidade” na história. Segundo ele, os bons
tempos deste positivismo que tinha por finalidade a reconstituição “verdadeira” daquilo que havia acontecido,
estaria determinantemente acabado. Isto ocorre porque todo “fato histórico” já traz imiscuído na sua
“objetividade” a introdução de um sentido. Suas análises resultam de observações que não são “verificáveis”,
mas tão somente, por meio de uma crítica, falsificáveis. Falsificáveis no sentido de a qualquer momento novos
estudos, novas descobertas e novas pesquisas trazer à tona novas abordagens sobre o passado. Cf. CERTEAU,
Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2010.
58
se na Idade Média o cristianismo era visto como a Instituição determinante nas relações
sociais, culturais e econômicas, agora na Modernidade, cabia à ciência o cumprimento desta
tarefa. A ciência em seu progressivo desenvolvimento teria superado o período medieval e
agora dava as cartas. Novas abordagens, novas descobertas, novos paradigmas fizeram da
ciência a mais completa e mais acabada forma de conhecimento, superando o conhecimento
mitológico-religioso, o senso-comum e até mesmo o filosófico29. Este contexto contribuiu
para que a época moderna pensasse ser superior àquelas épocas que lhe antecederam, pois
agora tinham conhecimento acerca da natureza, da humanidade e da história.
Nestes termos, no que diz respeito às crenças continuamos a sermos medievos, pois
transferimos toda carga de valor, antes pertencente ao cristianismo, para a casta científica. “O
que se entregava outrora para a igreja concede-se agora, mesmo que parcimoniosamente, à
ciência” (NIETZSCHE, 2003, p. 69). E assim, acreditando demasiadamente nas maravilhas
que o pouco tempo de desenvolvimento científico moderno nos propiciou, acreditamos estar à
frente de nossos antepassados; pois eles não tinham uma ciência tão matematicamente
rigorosa como aquela desenvolvida na Modernidade. Destarte, o homem moderno se sente
tardio, experiente, “conhece” a sua história cientificamente. No entanto, isso é só uma ilusão:
29
Augusto Comte criador do positivismo aponta o conhecimento rumo a uma marcha teleológica. Ou seja, o
conhecimento progride sob três estados teóricos distintos: o estado teológico, o estado metafísico e o estado
científico ou positivo. Neste sentido, seu pensamento segue a mesma linha do hegelianismo, pois ambos estão
inseridos no contexto de uma filosofia da história. Cf. COMTE, Augusto. Plano dos trabalhos científicos
necessários para reorganizar a sociedade. In: COMTE, Augusto. Opúsculos de filosofia social. Tradução de Ivan
Lins e João Francisco de Souza. São Paulo: Edusp, 1972.
59
superação das épocas passadas. Todavia, perceber-se à frente de seu tempo sem disposição
para apreciar a grandeza, achar-se experiente, mas não saber criar o novo e ser maduro sem
experimentar a ação, para Nietzsche seria tão somente uma crença numa humanidade caduca
e epígona.
O último aspecto tratado por Nietzsche na Segunda Intempestiva como prejudicial à
vida concerne à perigosa disposição da ironia sobre si mesmo, gerando a partir dela, a
disposição para o cinismo. Segundo ele, “nesta porém, desenvolve-se cada vez mais uma
práxis astuta e egoísta, através da qual as forças vitais são inibidas e, por fim, destruídas”
(NIETZSCHE, 2003, p. 40). O homem moderno é orgulhoso por “conhecer” a história,
contudo, ao lado de seu orgulho reside a sua ironia em relação a si mesmo. Em outras
palavras, este homem crente que sabe e que conhece teme no futuro perder sua
“potencialidade”. Tem medo de ser ultrapassado, superado e que nada possa salvar suas
esperanças. Assim ele se torna cínico, pois procura, diante das incertezas, justificar o curso da
história, o desenvolvimento conjunto do mundo de acordo com a intenção do homem
moderno.
O cinismo obedece a um único cânone: “as coisas devem acontecer exatamente como
agora e o homem deve tornar-se como agora os homens o são e não de outro modo, ninguém
se pode insurgir contra este imperativo” (NIETZSCHE, 2003, p. 76). Envolto pelo cinismo, o
homem moderno acredita piamente ser o ponto culminante do processo do mundo30. Dessa
forma, este homem moderno acredita ser o filho recém-chegado, mas ao mesmo tempo, o
mais experiente da trajetória humana. Ele “chama seu modo de viver de acordo com o seu
tempo e completamente sem reflexão de “a entrega total da personalidade ao processo do
mundo”” (NIETZSCHE, 2003, p. 76). Os que vieram antes dele apenas prepararam o caminho
para ele se estabelecer e concretizar o curso da história.
Nesse contexto, o quarto e o quinto aspecto31 estão extremamente relacionados, pois a
predisposição que o homem moderno tem para a ironia e para o cinismo, já configura uma
consequência da falsa crença em achar-se epígono e tardio. Isto implica dizer que ao sentir-se
30
Segundo Reis (2011, p. 178), Nietzsche em vez de se referir e citar Hegel, direciona-se para a obra de Eduard
von Hartmann intitulada A Filosofia do Inconsciente publicada em 1872. Texto de grande sucesso em sua época,
A Filosofia do Inconsciente apresentou o “processo do mundo” como inconsciente. Sob este ponto de vista, o
mundo seguiria um devir teleológico rumo a um desenvolvimento infinito para o futuro. Sua meta seria o juízo
final. Haveria, pois, um inconsciente criador do mundo, tal como o “Espírito” hegeliano ou a “Vontade”
schopenhaueriana, que de forma cega e irracional levaria ao desenvolvimento progressivo. Isto faria com que a
história alcançasse um sentido, uma finalidade, a saber, a redenção do homem. De fato Nietzsche por muitas
vezes faz menção a Hartmann, entretanto, ao longo da Segunda Intempestiva, bem como ao longo de seus
escritos, também é recorrente a menção que ele faz a Hegel.
31
A crença perniciosa de ser epígono e tardio e a perigosa disposição para a ironia e o cinismo.
60
moderno, no sentido mais literal da palavra, o homem desenvolveu também um elevado grau
de ironia e cinismo. Ao acreditar ter se desenvolvido cientificamente em sua forma mais plena
o homem sentiu-se “sábio”, “conhecedor dos fatos”, senhor do passado. Entrementes, este
“conhecimento” não foi capaz de garantir que eles – os modernos – fossem os melhores da
saga humana na terra. Viriam outros depois deles? Seriam eles superados? Nunca souberam!
Apenas tiveram a ironia como fiel companheira e tornaram-se cínicos. Cínico por não admitir
suas limitações e mesmo assim tentar se firmar como único referencial. Cínico por querer
explicar o curso da história a partir das convicções apropriadas ao seu próprio uso. Cínico por
se apresentar como o próprio apogeu do processo do mundo.
Diante desse homem supersaturado de cultura histórica, que se orgulha por conhecer o
processo que o levou até o século XIX, Nietzsche lança sua crítica afirmando que há uma
grande distância entre o conhecimento improfíquo de cultura histórica e a pobreza do homem
moderno enquanto homem de ação. Toda gama de conhecimento e cultura adquirida pelo
homem do século XIX é inútil para ele enquanto um dizer sim à vida. Por outro lado, com
toda esta vasta cultura, ainda assim este homem é pobre de ação, pois só sabe copiar. Ele
deixa se envolver pelo “sentido histórico” acreditando estar vivendo o ápice de seu
desenvolvimento. Seu saber não lhe oferece nenhum tipo de subsídio para fazer fluir a vida.
Ele está tão profundamente imbricado no vir-a-ser do sentido histórico que perdeu todo o
domínio sobre si mesmo e já não consegue traçar metas, criar e constituir seu próprio
acontecer histórico.
Nietzsche conclama este homem a se desprender deste sentido histórico. Para ele, já
está mais que na hora de ativar os impulsos criadores adormecidos. Não há um sentido
universal capaz de submeter a humanidade ao determinismo indicado pelo processo do
mundo. Não há, portanto, um sentido universal guiando a humanidade rumo ao mais elevado,
nem tampouco, uma força exterior capaz de nos conduzir tal como queriam os hegelianos. É
tão somente o homem quem cria o sentido para sua história. Somente ele é capaz de traçar seu
alvo e sua meta rumo a algo que seja realmente grande, nobre e aristocrático. É o homem
enquanto ser dotado de história quem pode possibilitar um novo alvorecer isento de sentido
histórico e de “processo do mundo”, pois como já vimos, se este mundo tivesse um fim, um
objetivo, uma meta, este já o teria alcançado.
É nesta atmosfera permeada pelo historicismo que Nietzsche nos apresenta a forma
como a supersaturação de cultura histórica pode ser nociva para um povo e para uma época. O
excesso de historicismo tira do homem a sua mais digna capacidade e predisposição para o
criar. O exacerbamento de cultura histórica impede que o homem possa sentir e agir a-
61
historicamente, seja por meio da oposição entre o interior e o exterior; seja pela compreensão
equivocada do conceito de justiça; pela perturbação dos instintos; pela crença perniciosa de
ser uma humanidade tardia, ou seja, pela perigosa disposição para a ironia e para o cinismo.
Estes cinco aspectos nocivos à vida tornam o indivíduo, mesmo dotado de conhecimento
histórico, estéril, árido e seco. “Ele deixa de ser intransigente, acerta as contas e se pacifica
com os fatos, não se exalta, compreende que é necessário procurar o próprio proveito nas
vantagens e desvantagens alheias” (REIS, 2011, p. 179).
Nietzsche confia à juventude de sua época a difícil tarefa de conduzir a cultura
histórica por uma via mais salutar. Tal como o navegante perdido em alto mar ele grita:
A juventude seria então, a única capaz de curar a modernidade de sua doença histórica,
pois apenas o jovem dotado de vigor e saúde seria capaz de conduzir a história a um novo
patamar. Com a juventude uma nova era se tornaria possível. Isto, no entanto, dar-se-ia
mediante um novo processo educativo que fosse isento de exacerbamento e acúmulo
desnecessário de conhecimento. Uma educação que fosse capaz de instigar a reflexão e a
crítica sobre a própria condição histórica. Para Nietzsche, o conhecimento do passado deve
ser cultivado apenas como uma possibilidade para o criar, como um modo de dizer sim à vida
e não como uma obstrução, um limite, uma condição. A juventude é incitada a criar seu
próprio estilo de vida, conhecer suas próprias limitações, para que possa delas tirar o proveito
necessário. Ela precisa se auto-educar a partir dela mesma por meio de uma reflexão
consciente tanto do passado quanto do presente, sabendo lembrar e esquecer na medida certa.
Nietzsche confia no poder inspirador da juventude, pois foi ela quem o fez protestar
contra a “educação histórica, conduzida pelo homem moderno”. Ela fez o filósofo alemão
afirmar que o homem só deveria viver e utilizar a história a serviço da vida. A história,
portanto, deveria projetar o jovem em direção a um novo hábito e uma nova natureza (REIS,
2011, p. 179). Um hábito isento de historicismo e de exagero histórico. Uma nova natureza
em que eles percebessem a história não apenas como uma fonte de acúmulo de conhecimento
ou para copiar o passado, mas como uma forma de compreensão da história enquanto
62
possibilidade de criação. Uma história pela qual fosse possível o aparecimento e o
desenvolvimento da grandeza. O autor das Intempestivas enfatiza:
Que uma educação com tais metas e com estes resultados seja antinatural,
isso sente apenas o homem que ainda não foi formado nela, que sente
apenas o instinto da juventude porque esta ainda tem o instinto da natureza,
que só é rompido artificial e violentamente por esta educação. Mas quem
quiser romper esta educação deve ajudar a juventude a ganhar voz, deve
iluminar o caminho de sua resistência inconsciente com a clareza de
conceitos e transformá-la em consciência consciente e que fale alto. Como
ele pode alcançar uma meta tão estranha? (NIETZSCHE, 2003, p. 91).
63
Segundo Nietzsche, da mesma forma que sua época sofria pela supersaturação de
cultura histórica, ela teria também em mãos o antídoto, a saber, o a-histórico e o supra-
histórico. Com estes medicamentos, a juventude poderia desenvolver uma nova maneira de se
compreender a função da história em relação à vida. A história passaria a ter uma relação
estreita com a vida, sendo ambas, possibilidades de desenvolvimento e geração de grandeza.
O exacerbamento da história esgotou a ação criativa do homem moderno que passou apenas a
repetir a grandeza dos de outrora, sem forças para produzir a partir de si próprio. Diante dessa
situação Nietzsche indaga:
Será então que a vida deve dominar o conhecimento, a ciência, ou será que
o conhecimento deve dominar a vida? Qual destes dois poderes é o mais
elevado e decisivo? Ninguém duvidará: a vida é a mais elevada, o poder
dominante, pois o conhecer que aniquila a vida aniquilaria ao mesmo tempo
a si mesmo (NIETZSCHE, 2003, p. 96).
Ao examinar a relação entre história e vida, ou seja, a maneira em que a história pode
ser transformada em um dispositivo a serviço da vida, Nietzsche declara sua utilidade ao
vivente afirmando que:
Dessa forma, em três aspectos distintos a história pode se útil à vida. Entrementes,
como veremos mesmo sendo distintas as histórias monumental, antiquária e crítica constituem
uma o complemento da outra, de modo que não se pode de maneira alguma priorizar esta ou
aquela. As três são, portanto, partes de um todo que faz o homem viver de acordo com aquilo
que configura um atributo incomensurável da vida, a saber, a possibilidade para a atividade
criadora.
Consequentemente, por três razões a história se torna um bem salutar para o homem.
Em outras palavras, o homem ao se caracterizar como um ser ativo que persegue fins e
objetivos, busca no passado, através de seus grandes personagens e acontecimentos, a
inspiração para que possa agir conforme suas disposições criativas. Esta disposição é
fornecida pela história monumental. Em seguida o homem se vê diante da necessidade de
preservar aquilo que é próprio de seu processo histórico, quer dizer, sua cultura, seu modus
65
vivendi e sua tradição. Tal condição para conservar e venerar sua tradição ele encontra na
história antiquária. Por fim, o homem busca na história crítica as forças necessárias para o
questionamento e o desprendimento do passado.
É neste contexto que a história torna-se um dispositivo capaz de inspirar a criação do
novo a partir daquilo que de mais grandioso já foi produzido através dos tempos. Ela também
torna possível a manutenção e a preservação daquilo que se tornou uma tradição, fazendo o
homem manter-se junto à sua trajetória histórica. Por último, torna-se salutar à vida
justamente por instigar a crítica daquilo que de mais incômodo o passado nos possa oferecer.
Todavia, a três espécies de história – monumental, antiquária e crítica – quando utilizadas
incorretamente causam, como veremos a seguir, o excesso histórico e a degeneração da vida.
A história monumental tem como função deixar seu legado de grandes feitos e
ostentações para as eras posteriores. Sua virtude consiste em oferecer exemplos de
grandiosidade para que enfim possam ser seguidos como fonte de inspiração. É a partir da
história monumental que os agentes históricos irão encontrar toda a inspiração necessária para
a criação e o porvir de novos tempos. Segundo Fernandes:
66
uma fonte inesgotável de exemplos para épocas vindouras e promissoras. Nas palavras de
Nietzsche:
67
homem orienta sua ação para o futuro no qual ação, criação, esforço e sacrifício são atitudes
dignas e próprias de grandeza, pois foram inspiradas também pela grandeza.
Todavia, como enfatiza Rodrigo Guérom, Nietzsche revela também que quando uma
ação grandiosa se expande, consequentemente uma ação contrária a ela, uma força reativa se
desenvolve (GUÉRON, 2003, p.129). Assim, a história monumental enquanto realização dos
grandes feitos da humanidade e fonte de inspiração para o presente, quando utilizada
inadequadamente, desenvolve uma contra-força que não a concebe como fonte de
encorajamento, mas tão somente, como modelo a ser copiado. Tende-se então a menosprezar
o novo desqualificando-o como inferior àquilo que outrora fora criado. A história monumental
deixa de ser uma força de estímulo à criação e passa a ser meramente uma ideia a ser copiada.
Neste sentido, a história monumental perde o seu sentido originário e torna-se um desserviço
à vida.
É neste sentido que Nietzsche vai dizer em sua Intempestiva que a história
monumental, utilizada sem moderação, torna-se uma mitificação do passado. Uma mitificação
no sentido em que deixa de ser uma fonte de inspiração e passa a ser apenas um modelo a ser
copiado. Vista dessa forma, a história monumental apresenta seus antepassados como
arquétipos de grandeza que servem não de inspiração, mas tão somente de modelo a ser
copiado, imitado. Não há, portanto, esforço para a criação, não há força e vigor para criar o
novo, o inédito. O uso exagerado da história monumental traz em si também a degeneração e
o atrofiamento da vida
A historia monumental utilizada apenas enquanto modelo, torna o passado uma
espécie de alegoria em que heróis, guerreiros e povos virtuosos tornam-se idealizações a
serem copiadas. Aqui todas as adversidades e contradições humanas são escamoteadas. O
passado é visto em sua plena perfeição, não há adversidades nem imperfeições. Vista dessa
forma, a grandeza histórica não é de forma alguma questionada, não há suspeitas sobre a
dignidade do passado. Nada é capaz de violar o homem do presente que vê no passado um
ideal a ser seguido, pois para ele, a virtude de seus antepassados é tão sublime que necessita
ser imitada.
É assim que Nietzsche nos apresenta o perigo da história monumental. Na mesma
medida em que ela se mostra essencial à vida no sentido de nos inspirar e de nos mover na
criação do futuro; também se apresenta como um atrofiamento da vida enquanto capacidade e
possibilidade para o criar. Por conseguinte, o que há de importante na história monumental
não é sua virtude reprodutiva, mas tão somente, sua capacidade de inspirar o homem no
processo de criação. É ao inspirar-se nos acontecimentos de outrora que o homem passa a
68
criar e a moldar sua história que, por sua vez, passa a ser também monumental e capaz de
inspirar aqueles que vierem posteriormente.
Estar exacerbado pela história monumental é correr o risco de encontrar-se inutilizado
frente às adversidades da condição humana. Ou seja, corre o risco de não se estar preparado
para lidar com o processo de criação e se considerar fraco justamente por não conseguir
desenvolver as mesmas grandezas de seus ancestrais. É perceber-se inapto para o criar
artisticamente e conceder apenas ao antigo o título de grande, de capaz e de nobre. Agir de tal
forma significa para Nietzsche degenerar a vida, torná-la caduca, pois visto por este ângulo,
só o passado apresenta-se capaz de criar e guiar a história.
Segundo Nietzsche, a utilidade da história monumental é encontrada apenas na medida
em que esta se apresenta a serviço da ação humana, ou seja, na medida em que oferece ao
homem as condições necessárias para o criar artisticamente. A história monumental tem por
função encorajar o homem a moldar sua história e dignificar o presente perante o futuro, pois,
no futuro o presente se tornará passado e como tal deverá servir como fonte de inspiração para
os que virão. Sua desvantagem consiste justamente em tornar o passado um meio de estagnar
a ação criadora do homem. Em outras palavras, conceber a história como algo a ser apenas
copiado é remover dela todo seu potencial criativo e não mais concebê-la como uma
possibilidade.
69
que preserva e dá continuidade aos seus hábitos culturais. Estes hábitos formam um conjunto
de costumes que são passados de pais para filhos, de professores para alunos... Assim, a
história antiquária parece ser intrínseca à vida. O pai que ensina ao filho seus costumes
sociais, o professor que transmite aos alunos o legado cultural através da história e até mesmo
o Estado com suas leis que são transmitidas rigorosamente; de alguma forma cultivam a
história antiquária, pois preservam um modo de ser e de proceder que está imbricado pela
continuação histórica.
Na história antiquária, a tradição é preservada para que as gerações futuras possam ter
acesso à grandeza acumulada pelas gerações passadas. Ao voltar-se para tal espécie de
história, o homem ou o historiador preserva as conquistas de outrora e as guarda com
veneração. “Conforme cuida, com mão precavida, do que ainda existe de antigo, busca
preservar as condições sobre as quais surgiu para aqueles que virão depois dele – e assim ele
serve à vida” (NIETZSCHE, 2003, p. 25). É a história antiquária que faz o homem ser fiel à
terra. Ele olha com amor e fidelidade para trás, para seu lugar de origem, o lugar onde se criou
e cuida daquilo que ainda existe. Ele preserva a tradição para aqueles que estão por vir, ou
seja, com sua alma preservadora e veneradora concebe o antigo como o seu território, como a
sua pátria. Ele conhece, preserva e venera a tradição de sua cidade, do seu país, do seu povo,
pois para ele, tudo faz parte de sua própria trajetória (REIS, 2011, p. 188).
É esta a principal característica da história antiquária, a saber, fazer com que o homem
não se desvencilhe de sua tradição. O homem da história antiquária se encontra na história do
seu povo, do seu lugar de origem e dos seus ancestrais. A história antiquária serve da melhor
forma à vida conectando as gerações e as populações menos favorecidas à sua terra natal, aos
seus hábitos, tornando impossível que percam as suas origens e sua identidade (NIETZSCHE,
2003, p. 25). Nela o homem não se perde no vácuo do tempo, não se esquece de suas origens,
de seu povo nem de seus costumes. Por vezes ele pode parecer insensato, mas sua insensatez é
saudável, pois conserva em si a capacidade de preservar sua história, sua cultura e sua
tradição para que outros possam também dela se apropriar.
Podemos dizer então que a história antiquária apresenta certas semelhanças com a
história monumental no sentido da valorização que ambas nutrem pelo passado, ainda que de
maneira distinta. É na história antiquária que valorizamos as particularidades do cotidiano e a
história passa a ser mais humana, mais real. É preservada a história do dia-a-dia e não apenas
os grandes monumentos, os grandes homens, os grandes acontecimentos. Aqui a história de
nossa cultura, nosso povo, nossa pequena cidade é também valorizada. É este tipo de história
que nos mantém em nosso lugar de origem (GUÉRON, 2003, p. 129). É o que nos faz dar
70
importância ao nosso povo, nosso lugar e nossa cultura, pois com ela percebemos nosso valor
cultivando a força e a vontade de persistir.
Por ser uma força conservadora, a história antiquária corresponde bem à função de
conservar toda força criadora e transformadora que a história possa oferecer. Contudo, seu
excesso é tão prejudicial quanto o da história monumental, pois ao supervalorizar seus
hábitos, suas crenças e sua cultura ao ponto de tê-los como único referencial, o homem perde
toda sua capacidade criativa e torna-se infértil. Em outras palavras, ele perde aquilo que de
mais importante lhe pertence: a capacidade de agir e de criar artisticamente.
O exacerbamento da tradição faz o homem rejeitar tudo aquilo que seja alheio a ela. A
história torna-se, portanto, uma doença32. Tudo aquilo que se apresenta como novo, como
próprio do presente, torna-se rejeitado. Ao homem tomado pelo excesso de história antiquária
resta apenas aquilo que lhe é fornecido pela tradição. Sua natureza, história e visão de mundo
tornam-se limitada àquilo que ele aprendeu e conservou ao longo do tempo. Tudo aquilo que
é novo, estranho, diferente, torna-se indesejável, renunciável e rejeitado.
Dessa forma, na mesma medida em que a história antiquária confere uma utilidade a
serviço da vida enquanto conservação da força criadora; ela pode também tornar-se
prejudicial no sentido de estagnar a ação humana perante a atividade criativa. O novo passa
então a ser repugnado justamente por não fazer parte da tradição. Não há, portanto, a justa
medida entre a preservação e a criação. O passado se torna tão forte ao ponto de submeter e
dominar o presente. A história antiquária vista por este ângulo passa então a oferecer um
desserviço para a vida e sua ação negativa se equipara a da história monumental, pois ambas
fazem o homem tornar-se prisioneiro do passado.
O risco da história antiquária está justamente na sua veneração ao antigo, pois nela o
elemento criativo tende a ficar esquecido. Deste modo, aquilo que ela mais deveria preservar
e conservar – a capacidade criativa – fica adormecida e não oferece nenhuma utilidade à vida.
Segundo Nietzsche, no exacerbamento da história antiquária:
32
A doença histórica.
71
A utilização inadequada da história antiquária provoca no homem a veneração ao
antigo fazendo com que ele fique absorto no mar da tradição. Seu amor excessivo pela
tradição impede que nele se desenvolva a capacidade artística da criação, tornando-o um tipo
decadente, sem força, sem vigor e sem brilho.
Em outras palavras, queremos dizer que consumido pela veneração ao passado, aquilo
que a tradição ostenta como grande e que a história antiquária conserva, faz o homem perder o
foco daquilo que de mais grandioso lhe pertence: a vida, a conquista, a eterna possibilidade de
criar e desenvolver a história. Exacerbado pela tradição, o horizonte humano da criação é
definitivamente esquecido. A veneração ao velho torna-se sua única opção. Sua cultura torna-
se velha, caduca, sem novidades, pois todas as suas forças são empenhadas na conservação do
antigo. A história antiquária perde então sua função de mantenedora das ações humanas, ou
seja, sua disposição para preservar aquilo que de mais grandioso fora produzido e passa a ser
um mero modo de se venerar o passado.
Portanto, fica claro que a proposta de Nietzsche para a história antiquária não é esta.
Sua proposta é que com ela o homem possa preservar e venerar sua tradição. Em outras
palavras, que ele possa olhar para trás com amor e fidelidade à sua terra natal, aos seus
hábitos e ao seu povo. Ela prefigura uma possibilidade de preservarmos nosso passado, mas
que paralelamente a esta preservação possamos também poder criar algo de grandioso, algo
que faça com que a nossa história torne-se diferente e original. Esta é a função da história
antiquária, fazer com que o homem não se esqueça que a vida é uma eterna possibilidade de
se desenvolver sua própria história.
72
passadas, conduz a história ao fórum do presente” (FINK, 1983, p. 38). Com a história crítica
é possível então julgar e esquecer um passado pouco produtível.
33
Cf. segundo capítulo quando Nietzsche critica a história como ciência na Modernidade.
34
Nesta época, a análise crítica da história concernia a busca pela verdade ou falsidade dos fatos passados e não
pela sua utilidade ou desvantagem para a vida presente.
74
Como consequência desta supervalorização da história crítica, o homem passou a
julgar o passado achando-se mais justo e virtuoso que seus ancestrais. O homem tornou-se
juiz dos fatos históricos delimitando o que lhe era “verdadeiro” ou “falso”. Tal como o objeto
nas mãos do cientista, o passado passou a ser minuciosamente analisado, julgado falso ou
verdadeiro, objetivado e cientificamente datado. Nesse contexto, o homem-historiador sentiu-
se fora da história, olhando-a e analisando-a como um observador externo que estivesse livre
de qualquer comprometimento com o passado, o presente e o futuro. Tudo em nome de uma
cientificidade histórica que o fez desapartar do processo histórico como se este fosse um
movimento extrínseco sem qualquer relação com suas atitudes e ações.
Assim, a história enquanto ciência, supervalorizada pelo exacerbamento da história
crítica desenvolveu no homem do século XIX um sentimento de desapego à vida como
possibilidade para a construção de sua história. A crítica foi levada às suas últimas
consequências quando perdeu o foco do novo, do grande e do inédito para esquecer
totalmente o passado ou tentar descrevê-lo com exatidão.
As histórias monumental, antiquária e crítica estão, pois, imbricadas uma na outra. São
ao mesmo tempo inseparáveis e complementares, uma vez que uma encontra-se ancorada na
outra. Em outras palavras, a história monumental apresenta os grandes feitos da humanidade
para que deles possamos também criar a nossa própria grandeza. A história antiquária
preserva em nós a grandeza estipulada pela cultura e pela tradição, sobretudo não nos
deixando esquecer nossa força potencial para a criação. Por fim, a historia crítica que nos faz
considerar o passado para que dele possamos exercer nossas atividades criativas. Seria
ingenuidade imaginar uma ausente da outra, pois o monumento, a tradição e a crítica
oferecem virtudes distintas e complementares à vida.
As três espécies de histórias quando consideradas na medida certa propiciam o
aparecimento de uma atmosfera a-histórica a partir da qual pode surgir uma nova história.
Tomado por esta atmosfera, o homem lança-se neste aberto que é a vida e passa a construir o
desenrolar de sua própria história. É nesta perspectiva que a história apresenta suas
disposições para a ação criativa. Sua utilidade consiste justamente em instigar no homem suas
faculdades criativas para que este possa enfim determinar o curso do seu devir.
75
As histórias monumental, antiquária e crítica são então inseparáveis, pois com a
primeira temos os grandes feitos deixados por aqueles que um dia, tocados pela força
propulsora da vida, deixaram seu legado para as nações posteriores. Depois temos a história
antiquária que se propõe a preservar a cultura e os costumes da terra e do lugar. E por fim,
temos a história crítica destinada a servir à vida daquele que tem necessidade de libertação.
Sendo, portanto, “aquela que julga o passado e, como diz Nietzsche, sempre o condena”
(GUÉRON, 2003, p. 131). É neste sentido que Nietzsche declara a utilidade e desvantagem da
história para a vida35. Contudo, como fica claro na Segunda Consideração Intempestiva, “as
três espécies de história existentes só encontram plenamente o que lhes cabe em um único
solo e sob um único clima: em qualquer outra condição a história se transforma em uma
excrescência desertificadora” (NIETZSCHE, 2003 p. 24-25). Isto implica dizer que o seu
excesso configura uma doença e as três espécies de história, utilizada de forma exacerbada,
constituem uma unidade capaz de fazer compreender o modo inadequado em que a história
era utilizada no século XIX. Segundo Vattimo:
35
A utilidade da história decorre da possibilidade de criação. É o estar a serviço do agir, da conservação das
forças criadoras, da ponderação e da reflexão sobre o passado. A utilidade da história para a vida, dar-se-á
enquanto edificação e instigação das forças criativas. Utilidade aqui não diz respeito, portanto, a juízo de valor
daquilo que seja bom ou ruim na história.
76
3.3 Esquecimento, memória e força plástica
Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é
ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita
de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira
fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto,
nem melancólico nem enfadado. Ver isto desgosta duramente o homem
porque ele se vangloria de sua humanidade frente ao animal, embora olhe
invejoso para sua felicidade – pois o homem quer apenas isso, viver como o
animal, sem melancolia, sem dor; e o quer entretanto em vão, porque não
quer como o animal. O homem pergunta mesmo um dia ao animal: por que
não me falas sobre tua felicidade e apenas me observas? O animal quer
também responder e falar, isso se deve ao fato de que sempre esquece o que
queria dizer mas também já esqueceu esta resposta e silencia: de tal modo
que o homem se admira disso (NIETZSCHE, 2003, p. 07).
Desta forma, o animal encontra a felicidade e vive feliz justamente por não possuir
história. O homem, por sua vez, observa o animal e inveja sua felicidade. O animal possui
tudo aquilo que o homem almeja, ou seja, uma vida feliz ausente de dores e melancolia. Esta
suposta felicidade no animal decorre do fato deste estar sempre a esquecer o que aconteceu e
se entregar sempre ao momento presente. Ao contrário, o homem, por não saber esquecer vê-
se sempre preso ao passado, determinado e condicionado por ele.
36
Segunda Consideração Intempestiva: da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida.
77
O esquecimento é, deste modo, a condição para a ação humana, pois, “a todo agir liga-
se um esquecer: assim como a vida de tudo o que é orgânico diz respeito não apenas à luz,
mas também à obscuridade” (NIETZSCHE, 2003, p. 09). Não esquecer é deixar ser dominado
pelo passado, é deixar ser condicionado pelas lembranças sem acreditar na sua própria
possibilidade. O peso do passado o oprime, pois o puxa incessantemente para trás. A criança
no alvorecer dos seus primeiros anos não distingue presente, passado e futuro. Sua inocência
frente a um efêmero passado, o ignora. Ela brinca despreocupadamente. Porém, assim que a
criança é arrancada do seu feliz esquecimento, ela logo compreende a palavra “foi” e começa
a se entrelaçar na teia do passado.
Isso mostra que o homem, diferentemente do animal, possui de forma intrínseca, a
capacidade de lembrar. Faz parte da condição humana a capacidade de estar sempre, por meio
das lembranças, em relação com o passado. Ao contrário do animal que só tem relação com o
presente, o homem está intrinsecamente em consonância com as lembranças. Diante desta
situação, própria da condição humana, o que fazer? Nietzsche percebeu o homem do século
XIX saturado pela lembrança e o diagnosticou como doente. A cultura histórica oitocentista,
permeada pela influência do hegelianismo e do positivismo sofria de uma doença: a doença
histórica. Para ele, o homem moderno estava tão voltado para suas lembranças que acabara
por tornar-se doente.
A solução seria apresentada por meio do esquecimento. Este esquecimento seria a
própria condição da história, pois somente por meio dele seria possível realizar o desapego
daquilo que já passou e criar o inédito. É o esquecimento “que cria em torno do sujeito da
decisão uma espécie de zona obscura subtraída à consciência histórica, é o que Nietzsche
chama o elemento não histórico, a atmosfera em que apenas a ação pode nascer” (VATTIMO,
2010, p. 19). De modo que o esquecimento é o ponto de partida para a ação, para o criar. É
por meio dele e nele que algo de grande é enfim realizado. Nele a grandeza é única e nova,
não necessita do tempo passado como continuidade para ser executado. Mais tarde, já na
segunda dissertação de sua Genealogia da Moral Nietzsche vai dizer que:
Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como creem os
superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso
sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós
acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao
qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo multiforme
processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física” (NIETZSCHE,
2009, p. 43).
78
O esquecimento é, pois, o ponto essencial na compreensão que Nietzsche faz acerca da
história como aquilo que pode ser útil para a vida. Saber esquecer faz o homem abdicar do
fardo que o passado pôs em suas costas e desenvolver em si a busca criativa pelo genuíno. O
esquecimento torna-se um elemento de fundamental importância para o acontecer histórico
que está por vir. Não abandonando completamente a memória, mas a dosando de forma
correta com o esquecimento, o homem torna-se capaz de criar, renovar e modificar o antigo.
Através da justa medida entre memória e esquecimento, o passado serve apenas para inspirar
– e não copiar – a criação artística do novo, preservar os grandes feitos – para que também
sirvam de inspiração – e julgar aquilo que seja útil ou inútil para a vida. Portanto:
[...] que se saiba mesmo tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar
no tempo certo; que se pressinta com um poderoso instinto quando é
necessário sentir de modo histórico, quando de modo a-histórico. Esta é
justamente a sentença que o leitor está convidado a considerar: o histórico e
o a-histórico são na mesma medida necessários para a saúde de um
indivíduo, de um povo e uma cultura (NIETZSCHE, 2003, p. 07).
79
Em uma passagem da Segunda Extemporânea, Nietzsche ao afirmar o excesso de
cultura histórica como uma doença para vida, diz que o excesso afetou a força plástica de
forma tão profunda que a vida encontra-se inativa. “Ela não sabe mais como se servir do
passado como um alimento poderoso” (NIETZSCHE, 2003, p. 94-95). Desse modo, o
passado não serve mais como um elemento de fortalecimento à vida, sua saúde está perdida e
a capacidade criativa do homem tornou-se estática, pois sua visão está completamente voltada
para o passado. É ele, o passado, quem delimita e determina a ação humana. Este, por sua vez,
limita-se apenas a copiar e relembrar suas aventuras históricas. Nele a força plástica encontra-
se dormente.
Todavia, a força plástica enquanto força expansiva, controladora das lembranças e do
esquecimento se sobrepõe e se estabelece como o antídoto para o excesso. Ou seja, a força
plástica oferece contra a patologia do excesso histórico a cura através dos poderes a-histórico
e supra-histórico. Em outras palavras Nietzsche quer dizer que:
81
portal37 sobre o qual está escrito “instante” que representa o instante extraordinário em que
vida aparece e se revela como uma infinita possibilidade para o criar. Cabe a ele apenas se
deixar tomar por esta força, este poder, e viver a experiência própria da existência, a saber, a
capacidade de agir e criar uma nova situação histórica.
A força plástica é a capacidade de se autoafirmar e ser senhor de si mesmo, é a força
ativa que expande. Ela é a única capaz de criar e de restabelecer o que já foi perdido. Porém,
poucos homens são possuidores desta força. Para aqueles que são dotados de força plástica as
mais terríveis ocorrências da vida em nada lhes maculam, não se deixam afetar pelas
condições adversas, chegando a um estado de bem-estar e consciência tranquila. Pelo
contrário, os que são desprovidos da força plástica são tão fracos que ao sinal da menor
adversidade se desvanecem como se aquilo fosse o fim.
Para Nietzsche, a história utilizada como um componente a serviço da vida não pode
ser concebida como uma ciência no sentido moderno, mas sim desde a força plástica. Desde o
poder de saber dosar memória e esquecimento. A força plástica é de fundamental importância
para o homem, pois permite encontrar o limite entre o histórico e o não histórico, ambos
essenciais à vida. Porém, como já foi dito, o excesso de história é prejudicial à vida, então, é
preciso, por meio da força plástica, tornar-se a-histórico, pois só a partir deste ponto cresce
em nós algo reto, saudável e grandioso.
Dessa forma, o homem consegue controlar o seu elemento a-histórico e pensar,
refletir, comparar, separar e concluir. Aqui o homem se torna homem através da capacidade
de utilizar aquilo que já passou ao seu favor, em prol da vida e do fazer história a partir do que
aconteceu. Caso contrário, se o homem se perder no excesso da história, toda potência do a-
histórico se atrofiará e jamais se manifestará. A força plástica torna-se então um poder capaz
de dosar na justa medida memória e esquecimento. O homem criador, aquele dominado pela
força plástica, é aquele capaz de criar e determinar sua história. Este também pode ser
denominado de homem nobre, que aqui não tem o sentido comum do aristocrata que apenas
herda direitos e benefícios, mas aquele que não é ressentido, que com alegria e sabedoria diz
sim a si mesmo e à vida. “O ressentimento não o domina, porque ele não leva a sério nem
seus inimigos nem seus fracassos, nem os seus maus feitos. Ele tem uma superabundância de
“força plástica” que permite a ele se esquecer e se regenerar” (REIS, 2011, p. 156).
A absorção da história em excesso, como foi dito anteriormente, é um sinal de
carência de força plástica, prefigura aquilo que faz o homem ficar impossibilitado de
37
Cf. discurso Da visão e do enigma da obra Assim Falou Zaratustra.
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aproveitar a história como uma fonte de inspiração para a vida. É preciso, portanto, impor-se
a-historicamente para que a força do esquecimento faça fluir a vida. O esquecer aqui adquire
o caráter de expansão, busca pela vida. Para Nietzsche, a ciência ignora o esquecimento
justamente por considerar como verdade apenas aquilo que vê, aquilo que seja passível de
análise empírica, aquilo que é histórico. Portanto, a ciência moderna é incapaz de perceber o
poder transformador da força plástica, que faz o indivíduo esquecer e através do
esquecimento criar, fluir, fazer aparecer a vida.
A mensagem que Nietzsche deixa é que a história não seja entendida como uma
disciplina científica que sirva apenas para investigar o passado e apresentar sua versão para os
fatos. Não é apenas a memória o ponto de partida da história, mas também, o esquecimento. É
o esquecimento quem deve transformar o homem em um indivíduo a-histórico e supra-
histórico. O passado não deve ser acolhido como uma fonte de inspiração apenas para copiar
os grandes feitos da humanidade. É preciso criar e para criar é preciso ativar a força plástica
adormecida dentro de nós. A partir dela podemos lembrar e esquecer na medida certa
passando a gerar vida. A história deve ser utilizada com o intuito de gerar vida e não de
degenerá-la.
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CONCLUSÃO
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tempo e sua cultura não visa de forma alguma suprimir o conhecimento do passado, mas tão
somente denunciar o niilismo encoberto por aquilo que é próprio do historicismo, do excesso,
do exacerbamento de conhecimento histórico para a vida. Sua crítica se dirige a busca do
passado pelo passado sem disposição para o criar.
Por fim, podemos concluir apresentando os resultados obtidos nesta pesquisa. Isto é,
aquilo que chegou ao nosso entendimento a partir da análise e da leitura hermenêutica da
Segunda Consideração Intempestiva, das demais obras de Nietzsche, bem como de toda
bibliografia auxiliar. Em primeiro lugar confirmamos nossa hipótese de que o filósofo alemão
concebia um modelo diferente daquele que era comumente aceito no século XIX. Para ele, a
história deveria configurar um momento de atividade criativa. Seu estudo deveria tornar o
homem apto ao processo de desenvolvimento do seu próprio acontecer histórico e não uma
forma de se acumular conhecimento sobre o passado. Esta maneira de se pensar a história –
considerando o ideal de grandeza, a arte como criação, a crítica ao historicismo e ao
progresso, entre outros – Nietzsche parece ter adquirido a partir de sua aproximação com
Jacob Burckhardt, mestre e colega em Basiléia.
Outro resultado foi a constatação da crítica nietzschiana ao hegelianismo e ao
cientificismo de sua época – motivação principal de sua Segunda Extemporânea. A história
enquanto um devir progressivo determinada por uma força absoluta que caminhava rumo a
um determinado fim era para Nietzsche um absurdo, pois segundo ele próprio, se este mundo
tivesse um fim a ser alcançado, este já teria ocorrido. Isso porque o progresso como um fim a
ser alcançado é somente uma ideia para se compreender as vicissitudes do tempo e justificar
aquilo que os povos e indivíduos quiseram, mas que nunca foi alcançado como eles
desejaram. Por outro lado, a concepção moderna de que a história deveria ser vista como uma
ciência aos moldes das ciências exatas era também um absurdo. Para Nietzsche, uma história
utilizada apenas para descrever os fatos de forma imparcial e objetiva remetia o homem para
fora do processo histórico como se este fosse um mero expectador que observa de longe, mas
não participa dos eventos da história. A história vista tanto pelo modelo hegeliano quanto pelo
modelo cientificista seria apenas uma forma de se acumular erudição e vaidade. Um
conhecimento que em nada era útil à vida, por isso sua posição de que o século XIX sofria de
uma doença histórica.
O último resultado diz respeito à constatação de que para Nietzsche, a história deve ser
vista como um modelo de inspiração para o processo de criação. Ao se deparar com os
grandes feitos do passado, o homem deve se sentir estimulado para o criar. Conhecer o
passado não deve ser entendido como um processo de acúmulo de conhecimento nem, muito
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menos, como aquilo que fornece um modelo a ser copiado. Assim, a história pertence ao
homem nobre, aquele dotado de força plástica, que vê a história numa relação direta com a
vida. É no irromper e brotar-se da vida, no instante em que o homem é tomado e tocado por
força plástica que ele passa a lembrar e esquecer na medida certa, constituindo
continuamente, por meio da criação, sua história.
Portanto, o pensamento de Nietzsche em relação à história marca uma ruptura com os
modelos em vigor do século XIX, originando uma nova ordem de investigação tanto do
campo da Filosofia quanto no campo da História (Historie). Ao longo desta pesquisa, apesar
da análise criteriosa, da leitura minuciosa dos textos e da observação do contexto em que se
inseriu a crítica nietzschiana ao pensamento moderno, não nos foi possível esgotar o assunto,
dada à complexidade e aprofundamento que o mesmo exige. Apesar de termos nos centrado
na análise da Segunda Consideração Intempestiva, percebemos que a temática da história no
pensamento de Nietzsche vai bem mais além, chegando às suas obras posteriores como em A
Gaia Ciência, Assim Falou Zaratustra, Além do Bem e do Mal, Crepúsculo dos Ídolos e Ecce
Homo.
Desse modo, ficou de fora nesta pesquisa, a análise da problemática em torno do
Niilismo e do Eterno Retorno do Mesmo como elementos cruciais no estudo da temporalidade
em Nietzsche. Acreditamos que o Eterno Retorno do Mesmo constitui uma continuação do
pensamento nietzschiano acerca da crítica ao historicismo. Por isso, ficamos com a opinião de
Gianni Vattimo que afirma ser o eterno retorno um conceito pelo qual Nietzsche se propunha
a resolver, desde suas obras iniciais, o problema da posição do homem diante do tempo
(VATTIMO, 2010, p.11).
A doença histórica tratada pelo jovem Nietzsche na Segunda Intempestiva desemboca
também, já em suas obras posteriores, no problema do niilismo. Ou seja, na fase de
maturidade nietzschiana, “a doença histórica continua a ser um dos aspectos fundamentais
pelos quais o niilismo se define em sua origem e desenvolvimento” (VATTIMO, 2010, p.26).
Entretanto, pelo fato de nossa pesquisa ter se concentrado na análise da Segunda
Consideração Intempestiva e os problemas do Eterno Retorno e do Niilismo pertencerem a
uma faze do Nietzsche mais maduro; deixamos de fora – pelo menos por enquanto – o estudo
e a análise destes conceitos, reservando-os para uma pesquisa posterior.
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