0% acharam este documento útil (0 voto)
37 visualizações14 páginas

Texto 2 Mary Jane Spink

Mary Jane Spink

Enviado por

Ludmila Menezes
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
37 visualizações14 páginas

Texto 2 Mary Jane Spink

Mary Jane Spink

Enviado por

Ludmila Menezes
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 14

Mary Jane Paris Spink

Jacqueline Isaac Machado Brigagão


Vanda Lúcia Vitoriano do Nascimento
Mariana Prioli Cordeiro
Organizadoras

A PRODUÇÃO DE INFORMAÇÃO
NA PESQUISA SOCIAL:
compartilhando ferramentas

Rio de Janeiro | 2014


124

pesquisar no cotidiano, como espaço(s) de convivência, mais ou menos


públicos (SPINK, M.J., 2007). Nessa parte, delineamos o debate sobre
a observação e a participação. Enfatizamos os tipos de observação, a
observação como meio e processo e abordamos a participação e a
observação como partes de um mesmo processo de produção de
conhecimento.

Na segunda parte, enfocamos o início da observação, os contatos


institucionais e interpessoais, as negociações e o processo de
aceitação do grupo, comunidade ou instituição. Enfatizamos os
CAPÍTULO 06 diferentes tipos de inserção destacando aquele que apresenta o
OBSERVAÇÃO NO COTIDIANO: UM MODO envolvimento prévio do/a pesquisador/a com as pessoas do lugar
DE FAZER PESQUISA EM PSICOLOGIA SOCIAL (como ativista ou amigo/a) ou aquele em que ele tem de se valer de
informantes-chave (lideranças) para conseguir ser aceito/a. Em
Milagros García Cardona; Rosineide Meira Cordeiro e seguida destacamos a necessidade do/a pesquisador/a apreender
Jullyane Brasilino os diferentes tipos de etiqueta do lugar.

Na terceira parte, apresentamos as diferentes formas de registro da


O objetivo deste capítulo é discutir a observação no cotidiano como
observação. Enfocamos os usos do caderno de notas, os diários de
uma prática social, dialógica e reflexiva. Para tanto, utilizamos pesquisa, os documentos produzidos e as possibilidades de
alguns conceitos de forma breve e damos exemplos de como fazer, a coconstrução de interpretações (SPINK, M.J., 2007).
partir da discussão metodológica das dissertações, teses e pesquisas
desenvolvidas no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Práticas
Discursivas e Produção de Sentidos que usam a observação.
A Observação no cotidiano: uma forma de fazer pesquisa em
A observação é compreendida como um empreendimento dialógico
psicologia social
não controlado, envolvendo, em alguma medida, tanto os conflitos e
tensionamentos quanto a colaboração entre pesquisador/a e pessoas,
Ser um pesquisador no cotidiano se caracteriza
grupos ou comunidades que fazem parte da pesquisa. Decorrentes
frequentemente por conversas espontâneas em
dessa perspectiva serão abordadas as possibilidades e os limites da
encontros situados. [...] são os pequenos momentos do
observação como produto de negociações complexas com determinados
fluxo diário, abertos as possibilidades da convivência
grupos ou pessoas situadas em locais e contextos diversos. Também
cotidiana (SPINK, P., 2008, p. 72-73).
problematizamos as opções epistemológicas, teóricas, metodológicas e
práticas assumidas para registrar, narrar e editar a observação.
A citação acima introduz este capítulo com o objetivo de abordarmos
o debate da pesquisa em psicologia social alinhada aos estudos no
O capitulo está estruturado em três partes. Na primeira, situamos a
cotidiano. Peter Spink (2008) oferece um ponto de vista que
observação no cotidiano como uma forma de fazer pesquisa em
contribui para uma compreensão do cotidiano entendido como os
psicologia social (partindo de uma postura construcionista) que se
microlugares.1 De acordo com o autor, a ideia de microlugar é
orienta para a compreensão dos fenômenos sociais complexos, não
uniformes e de grande riqueza em suas manifestações sociais e
locais. Trata-se de entender a observação fazendo parte importante do 1 Os termos destacados em negrito estão definidos no Glossário de conceitos.
125 126

metafórica: “[...] seu propósito é de chamar atenção para a com as pessoas do lugar, ou inclusive participado de outras
importância do acaso diário, dos encontros e desencontros, do maneiras na vida de grupos, comunidades ou de instituições,
falado e do ouvido [...]” (p. 70), do próprio espaço da convivência. É passar a ser e se assumir como um/a pesquisador/a, no decorrer
nos microlugares que o/a psicólogo/a social desenvolve suas da vida diária, implica incorporar questões outras. Dentre elas,
pesquisas, nos encontros diários com as pessoas e as como entrar e sair dos lugares, quanto tempo ficar, como e com
materialidades que sustentam as práticas sociais. quem se relacionar, para quê? E o que e como registrar o que
acontece? Essas questões envolvem aspectos epistemológicos,
[...] Com a expressão ‘microlugares’, buscamos metodológicos e éticos, além de pessoais e afetivos.
recuperar a noção da psicologia social como prática
social, de conversa e de debate, de uma inserção
horizontal do pesquisador nos encontros diários –
encontros estes que não acontecem no abstrato ou no A observação na pesquisa em psicologia social
ar, mas que acontecem sempre em lugares, com suas
socialidades e materialidades (SPINK, P., 2008, p. 70). Partimos de um artigo publicado por Mary Jane Spink (2007), no
qual a autora discute o uso da observação em psicologia social. Ela
A ênfase no cotidiano, como expressão de espaços e tempos, nem aborda as especificidades desse uso buscando antecedentes em
sempre valorizados como cenários de pesquisa, também tem sido estudos tradicionais da disciplina. O objetivo do artigo é entender de
destacada por pesquisadores/as de outras disciplinas das ciências que maneira a observação tem sido utilizada e as principais
sociais. Em um artigo escrito por Carlos Brandão (2007), um diferenças de seu uso em outras disciplinas, sobretudo na
antropólogo que discute a questão das mudanças ocorridas nos antropologia, disciplina identificada amplamente, e quase
cenários rurais no mundo, particularmente no Brasil, o autor exclusivamente, com a observação participante, que tem dado sua
incorpora uma leitura criativa dessas mudanças. Ele fala das identidade atual aos estudos antropológicos. Mas também inclui o
transformações macroestruturais em todo o mundo numa era de uso da observação na microssociologia norte-americana, em seus
globalização acelerada, nas quais: estudos de populações marginalizadas, que introduziram uma
ruptura importante nas formas de fazer pesquisa nessa disciplina.2
[...] mesmo nos espaços mais aparentemente dominados A principal diferença que Mary Jane Spink estabelece, e que
pelo gigantismo, as formas de vida comunitárias, de resgatamos aqui, refere-se à ênfase em pesquisar “[...] no cotidiano,
ocupação e produção em multiespaços partilhados de ao invés de pesquisar o cotidiano” (2007, p. 7). A pesquisa no
vida, labor e trabalho, não apenas resistem e cotidiano supõe a convivência do pesquisador em espaços de
sobrevivem, mas, em alguns cenários, eles proliferam, natureza pública, participando das ações e compartilhando da
adaptam-se e transformam-se (BRANDÃO, 2007, p. 42). cultura que as sustenta. Essa postura ancora-se em uma
abordagem construcionista da pesquisa social, que busca
Na nossa compreensão, isso pode ser considerado e traz de novo o compreender os sentidos produzidos pelas pessoas nas interações
interesse sempre presente das pesquisas locais, de modos de vida, cotidianas, que só podem ser pesquisados nos microlugares.
que passam por processos constantes de resistência e
ressignificação. A observação nos encontros cotidianos faz parte de nosso interesse
por compreender a produção de sentidos, os posicionamentos que
Um dos desafios da pesquisa social nessa perspectiva é a entrada
nos lugares como o caminho mais apropriado para nos 2O Núcleo tem realizado uma interlocução com os teóricos da teoria ator-rede (TAR),

aproximarmos das pessoas. Mesmo que tenha tido contatos prévios que também utilizam a observação como estratégia de pesquisa. Esse modo de
trabalhar é discutido no capítulo 7 sobre TAR.
127 128

são assumidos pelas pessoas nas suas práticas discursivas. A sentidos no processo de pesquisa, “[...] dessa forma, tanto fazer
pesquisa no cotidiano, portanto, envolve o fato de nos ciência como desempenhar atividades rotineiras [como o/a
considerarmos, de acordo com Spink, M.J., (2007), como membros pesquisador/a nos microlugares de pesquisa] (ou não) de nosso
competentes, de lugares particulares, empenhados em compartilhar cotidiano passam a ser ressignificados como formas de produzir
convenções e expectativas, na coconstrução de interpretações sobre sentidos sobre os eventos do mundo” (SPINK, M.J. ; MENEGON,
a vida das pessoas. De acordo com a autora, as possibilidades de 1999, p. 64).
desenvolver uma compreensão compartilhada se baseia na
indicialidade, a qual supõe estarmos atentos aos indícios de Daí que observar, de forma geral, é entendido como o registro do
sentidos, muitas vezes incompletos, que só podemos compreender que acontece em volta do/a pesquisador/a, o que requer
no contexto da ação/interação que acontece nos lugares e contextos instrumentos que deem conta desse registro e que sirvam para
particulares. validar o que o/a pesquisador/a vivencia no decorrer da pesquisa.
Tradicionalmente entende-se que se trata de observar sistemática e
controladamente; e para isso é preciso, então, participar de
atividades cotidianas relevantes aos objetivos da pesquisa.
Observação e participação
Esses pressupostos têm sido assumidos na psicologia com suas
Duas faces da mesma moeda se fazem presentes na tarefa de particularidades especificas. Em um manual de métodos
pesquisar no cotidiano: observar e participar. Diríamos que se trata qualitativos em psicologia, escrito por Peter Banister e
de conviver para observar, mas nas ciências sociais observar e colaboradores/as (2004), fica claramente estabelecido que para a
participar na e da vida das pessoas nem sempre tem os mesmos tradição da disciplina psicológica a observação do comportamento
pressupostos. Especialmente na antropologia, sociologia e também humano, chamado natural, não faz parte das correntes que
na psicologia, esses pressupostos têm sido marcados por um amplo reivindicam a participação ativa e comprometida do/a
debate que remonta à tradição mais positivista, que tem sustentado pesquisador/a no trabalho cientifico.3 Isso justifica, nesse manual,
a ideia de que para ter reconhecimento cientifico é necessário que estejam separadas em dois capítulos a observação e a
construir e utilizar instrumentos aceitos pelas disciplinas que participação, sendo a participação parte da tradição etnográfica, que
possam dar fé de que aquilo que pesquisamos é relevante, verificável é chamada de observação participante. Esse termo pressupõe já
e contribui para o campo de saber no qual atuamos. uma etiqueta, um sobrenome que tenta superar as concepções
positivistas antes mencionadas.
Tal como discutido por Mary Jane Spink e Vera Menegon (1999),
“[...] as ideias com as quais convivemos, as categorias que usamos De acordo com os/as autores/as a observação típica faz parte do
para expressá-las e os conceitos que buscamos formalizar são trabalho de campo, cuja característica mais importante é o registro,
constituintes de domínios diversos (da religião, da arte, da filosofia, a partir de uma perspectiva externa e de forma mais ou menos
da ciência) [...]” (p. 63). Da mesma forma, as autoras consideram sistemática, de algum aspecto do comportamento das pessoas, num
que tanto a ciência quanto o conhecimento cotidiano, considerado entorno ordinário. Dessa forma é entendida como uma operação de
tradicionalmente como subordinado ao conhecimento científico e
legítimo, são formas de dar sentido ao mundo, com suas regras e
princípios específicos. 3 Traduzido pela Universidade de Guadalajara, no México, utilizado em cursos de
graduação nesse e outros países da América Latina. O título do livro na sua versão
Conviver-para-observar situa a observação em uma perspectiva que original em inglês: Qualitative methods in psychology: a research guide. Open
busca dar visibilidade às contradições e possibilidades de produzir University Press. McGraw-Hill Education, McGraw-Hill House. Shoppenhangers Road
Maidenhead.Berkshire. SL6 2QL, 2006, última revisão.
129 130

certa maneira contemplativa, embora abranja uma variedade de períodos longos). Ao mesmo tempo, implica um processo de
enfoques e formas de uso diferenciadas.4 coprodução de sentidos, à medida que estamos sempre tentando
entender o que se passa e o que isso significa no contexto local.
Entendemos a observação no cotidiano, do ponto de vista da
linguagem em ação, como coconstrução do/a pesquisador/a e das A observação nunca é neutra, tampouco acreditamos que isso seja
pessoas que participam com ele/a de cenas cotidianas, requerendo possível nem desejável. A própria convivência, nas suas variadas
do uso de variadas formas de registro que deem conta da fluidez e formas (mais ou menos intensa), implica escolha (mais ou menos
complexidade de descrições situadas, mais ou menos participantes, planejada) de caminhos para ter “acesso” às pessoas, locais e
todas elas contribuindo para a compreensão dos sentidos informações, inclusive quando o/a pesquisador/a faz uma pesquisa
produzidos – pelas pessoas às suas vidas. na sua própria cotidianidade. Até o tipo de observação na qual o
pesquisador busca observar sem ser percebido, assumindo que não
No campo da psicologia social há outras posturas, das quais requer ser aceito nem se comprometer, implica influenciar de algum
participamos e que sustentamos aqui, que se alinham aos estudos modo os outros. Desse modo, interpretar os sentidos da relação
no cotidiano, tal como discutimos anteriormente. A observação é significa que o pesquisador deve refletir sobre a própria interação e
vista não apenas como uma técnica de pesquisa, e sim como uma os sentidos dados a ela pelas pessoas do lugar. Esse
estratégia metodológica que oferece a possibilidade de contribuir empreendimento dialógico nem sempre é evidente; faz parte dos
para a compreensão da vida das pessoas, por meio da convivência processos de convivência que, por sua vez, também influi nas
comprometida, para sermos úteis de alguma maneira. Possibilita formas e condições para o registro do que é observado.
também ao/a estudioso/a que ele/a assuma posturas críticas que
deem visibilidade às inequidades, desigualdades ou mesmo a Podemos dizer que há muitas possibilidades para desenvolver, definir e
construção de propostas conjuntas de ação (SPINK, P., 2008). organizar a observação numa pesquisa, dependendo dos objetivos,
recursos disponíveis e condições de interação, questão que discutimos
na segunda parte deste capítulo ilustrada com exemplos de pesquisas.

A observação como meio e processo Dentre as variações possíveis, constatamos que a observação vai
depender de: a) o nível de estruturação, que pode abranger desde uma
Existe uma tensão constante quando convivemos com pessoas que observação/descrição muito detalhada até uma observação/descrição
não fazem parte de nosso cotidiano habitual. A convivência no pouco ou difusamente detalhada; b) o foco da observação, que significa
contexto da pesquisa social implica lembrar que estamos numa prestar atenção apenas a alguns elementos (movimentos das pessoas,
comunidade, instituição ou grupo procurando observar, dialogar e entradas e saídas de um lugar etc.) ou considerar uma ampla gama de
nos envolver. Envolvimento e pesquisa fazem parte de um contínuo interações (na rua, no lar, no trabalho etc.); c) o/a pesquisador/a ser
que permite pôr em comum distintas reflexividades. Trata-se de reconhecido por todos/as como alguém que está lá para conviver e
entender a observação como meio de obtenção de informações, registrar; d) tempo de convívio, que pode ser mais ou menos intenso,
quando utilizada no registro mais ou menos sistemático da vida das incluindo poucas observações/descrições até observações/descrições
pessoas com as quais convivemos (não necessariamente por por longos períodos de tempo; e e) a utilização de recursos variados
para o registro das observações/descrições, que pode incluir desde
notas pessoais à utilização de roteiros de observação de situações de
4 O termo observação se deriva do latim e significa contemplar, prestar atenção a
algo. As definições dicionarizadas, de forma geral, enfatizam a contemplação e
interação especificas, gravações de áudio, vídeo gravações etc.
registro preciso de fenômenos que ocorrem na natureza, nas relações causa-efeito, ou
nas suas relações mutuas (natureza como oposto ao experimento, que se traduz na
manipulação das condições, com frequência artificial).
131 132

Como fazemos a observação jogador e o organizador da principal corrida brasileira de


aventura (Ecomotion), o Said Aiach Neto. Ao término da
Nesta parte vamos apresentar os exemplos práticos retirados de palestra conversei com Said, expondo o meu interesse e
dissertações e teses, a fim de explicitar os modos como a observação a ideia da minha pesquisa sobre as corridas de
tem sido entendida e realizada pelos/as pesquisadores/as do aventura; e ele propôs me ajudar e forneceu seu email
Núcleo. Organizamos a apresentação em três partes: como começa a para que eu entrasse em contato (p. 18).
observação; o que e como observar; e como lidar com as normas e
etiquetas do grupo. Uma das decisões importante que o pesquisador tomou foi trabalhar
como voluntário nas corridas, e também começou a participar de
Como começar a observação corridas de aventura e explicar seu propósito de pesquisa aos
organizadores. Por ocasião da realização do campeonato mundial de
Cada pesquisa tem sua história, que nem sempre começa na data corrida de aventura, realizado no Brasil em outubro de 2008,
registrada na nossa agenda de viagem. Acontecimentos prévios e Moretti tentou participar da organização ou ser voluntário do
posteriores se articulam de formas surpreendentes, produzindo evento. Como não foi possível, passou a entrar em contato
sentidos específicos e criando um quadro de possibilidades e diretamente com as equipes que iriam participar do campeonato
restrições a partir do qual podemos entender o porquê de nossas mundial.
escolhas metodológicas, nossas alianças estratégicas, compromissos
estabelecidos e objetivos alcançados. Então comecei a entrar em contato com as três
principais equipes de São Mauro[sic] para ver a
Dependendo do contexto, iniciar a observação num grupo, possibilidade de entrevistá-las, e, se possível,
instituição, comunidade etc. requer um amplo processo de acompanhá-las durante o campeonato mundial. A
negociação com atores diversos, e é no âmbito desse processo de primeira tentativa de contato foi com a equipe Selva
negociação que o projeto de pesquisa será apresentado e debatido. Aventura, via telefone, e, posteriormente, via email, mas
Muitas vezes o/a pesquisador/a já tem contatos estabelecidos, em não recebi resposta. A segunda equipe foi a SOS Mata
outras ele/a inicia relações que darão suporte ao seu trabalho de Atlântica; via email, à resposta foi que devido a alguns
observação, podendo, inclusive, até fazer parte do contexto ou problemas e à falta de tempo, não seria possível realizar
situação que está sendo estudada. Em nenhum momento o/a as entrevistas, e quanto a acompanhá-los durante a
pesquisador/a “cai de paraquedas” no local pesquisado. Nas prova, afirmaram ter tido uma experiência ruim no ano
pesquisas desenvolvidas pelo Núcleo há diferentes procedimentos anterior com pesquisa, e agradeceram o contato. A
que dão conta do início da observação. terceira equipe, a Quasar Lontra, aceitou o convite para
as entrevistas, dizendo que seria difícil reunir os quatro
Na dissertação de mestrado de Alexandre Moretti (2009), intitulada atletas antes da prova, mas permitiam que eu os
Corridas de aventura: processo de coesão grupal na superação de acompanhasse durante a corrida, com a condição de que
obstáculos, o autor relata como iniciou os contatos até conseguir eu fosse autossuficiente com transporte, comida e
realizar as entrevistas: demais despesas (MORETTI, 2009, p. 24).

No final de 2007, participei de uma palestra sobre Mesmo com o aceite da Quasar Lontra, o autor teve de realizar uma
corrida de aventura organizada pela Adventure Sport série de negociações junto à organização da competição, com o
Fair – a maior feira de esportes e turismo de aventura da capitão da Quasar e com os atletas, antes e durante a competição,
América Latina – na qual palestraram uma atleta, um para a realização da pesquisa.
133 134

No estudo desenvolvido por Milagros García, Linguagem dos riscos e no Acre. Durante o trabalho de tese, ela retomou os contatos com
sujeitos posicionados: o uso dos agrotóxicos no Vale do Quíbor, essa liderança, que apresentou a autora ao movimento e à sua rede
Venezuela (2004), o trabalho de observação e convivência foi de relações. Nas primeiras viagens que fez à região, Cordeiro decidiu
realizado em uma região agrícola do semiárido venezuelano, o Vale morar na Vila Jatiúca, local onde residia a liderança. A partir daí ela
de Quíbor, no qual a problemática do uso de agrotóxicos tem estabeleceu vínculos com os moradores locais, especialmente por
produzido intensos debates e confrontos ao longo de muitos anos, ser recomendada como uma pessoa de confiança da liderança.
sendo cenário de trabalhos anteriores da pesquisadora.
Inicialmente conheci as pessoas por meio de Vanete. Ela
O diálogo estabelecido com um agricultor que cultivava cebola, e me apresentava como uma pesquisadora que estava
que havia participado de uma pesquisa anterior, foi o ponto de realizando uma pesquisa sobre o MMTR – Sertão
partida privilegiado por García para a construção da rede explicativa Central. Além disso, enfatizava que me conhecia há
dos riscos envolvidos no uso de agrotóxicos. A rede foi construída na muito tempo e que o movimento ficara muito orgulhoso
observação do percurso realizado pelo agricultor para a compra e com a realização da pesquisa. Assim fui estabelecendo
uso dos agrotóxicos e também das pessoas com as quais o os primeiros contatos, principalmente nas reuniões do
agricultor foi se relacionando ao longo desse percurso. movimento em Serra Talhada e no grupo de mulheres
que se reúne em Santa Cruz da Baixa Verde. Depois de
Como ponto de partida da pesquisa, retomamos o um tempo as pessoas me apresentavam umas às outras
contato com um dos agricultores que conhecemos em (p. 65).
1999, o José, e buscamos entender, segundo sua
própria maneira de falar, a rede envolvida na questão Na dissertação de mestrado de Juliana Oliveira, Querer ficar, querer
mais ampla do uso de agrotóxicos no Vale. De início, sair: os paradoxos da internação psiquiátrica para usuários de
procuramos entender os percursos seguidos por ele na serviços de saúde mental (2007), a autora já tinha realizado trabalho
busca de informação (técnica, médica etc.) sobre de conclusão de curso de graduação em psicologia na instituição
agrotóxicos: nas lojas, nos centros de saúde, no centro pesquisada. Conforme Oliveira,
toxicológico do Estado, na universidade etc. (GARCIA, p.
122). Escolhido o hospital, retornei o contato com o psiquiatra
que havia auxiliado na pesquisa anterior e, em agosto de
Inicialmente, os limites e as possibilidades da pesquisa foram dados 2005, apresentei o projeto de pesquisa aos responsáveis
a partir da inserção anterior da pesquisadora, bem como das pela instituição: diretor administrativo, diretor clínico,
tensões que o tema dos riscos e agrotóxicos causava na vida dos/as psiquiatra responsável e irmãs de caridade, sendo que
produtores/as, dos/ assalariados/as rurais, comerciantes de todos se disponibilizaram a auxiliar no estudo. Cabe
agrotóxicos, agrônomos/as das fazendas, representante da indústria comentar que fui apresentada por uma psiquiatra
química no lugar e profissionais do sistema público da saúde. reconhecida pela instituição, o que sem dúvida abriu
portas e proporcionou o maior acolhimento da minha
Rosineide Cordeiro (2004), na tese Além das chuvas e das secas: os pesquisa por parte dos responsáveis (p. 61).
usos da nomeação mulheres trabalhadora rural no Sertão de
Pernambuco, não tinha trajetória de pesquisa anterior na região Os quatro exemplos relatados mostram que, independente do tema
estudada. Ela havia conhecido uma liderança do Movimento de e do lugar pesquisado (corrida de aventura, hospital, rede de
Mulheres Trabalhadoras Rurais do Sertão Central de Pernambuco interlocutores ou movimento social), a observação faz parte de um
por conta de seu trabalho profissional anteriormente desenvolvido processo mais amplo de negociação com atores/atrizes diversos/as.
135 136

Em grande parte, o aceite do grupo para a pesquisa pode ser O que e como observar
facilitado quando se conhece alguém terá partir de algum trabalho
desenvolvido anteriormente (casos de Oliveira e García). Leny Sato e Marilene Souza (2001) alertam para o fato de que nem
sempre o/a pesquisador/a percebe, mas ele/a termina por construir
O exemplo de Cordeiro ilustra como é possível de se valer de uma rotina no trabalho de pesquisa. Planejamos as atividades,
interlocutor/a-chave para conseguir ser aceito/a. No caso de distribuímos o tempo e construímos espaços de apoio que permitem
Moretti, ele teve de fazer várias tentativas e bater em várias portas criar e facilitar as interlocuções. Para as autoras, a organização da
até achar a maneira mais adequada de inserção, sempre atendendo rotina é construída paulatinamente a partir das trocas e das
às exigências postas pelo grupo. Já Garcia decidiu utilizar como relações estabelecidas. Ou seja,
ponto de partida o pequeno produtor, considerando a sua postura
crítica sobre as relações de poder num lugar controlado por grandes [...] é criada a partir das possibilidades dentro da rotina,
fazendeiros e funcionários da indústria química, que têm quase da divisão dos tempos e dos espaços do local, dando-se
eliminado os pequenos produtores. no seu interstício e, portanto, induzida pelo
relacionamento com as pessoas, pelo funcionamento,
Entretanto, ser acolhido/a por uma pessoa do lugar pode ter vários pelas regras e rotinas do local, pela nossa curiosidade e
desdobramentos. Um deles levará o/a pesquisador/a a ter acesso a objetivos. Nela também ficamos sabendo quando é
determinados contatos e não a outros. Muitas vezes, é possível possível conversar, em quais locais nos postarmos,
ampliar o eixo de relações e conhecimento para além da pessoa que quando devemos nos distanciar para não atrapalhar o
inicialmente acolhe o estudo. Em outras pesquisas, especialmente andamento das atividades e, também, não provocarmos
naquelas que envolvem conflitos, competições e alianças políticas, situações de risco (SATO; SOUZA, 2001, p. 38).
o/a pesquisador/a precisará desenvolver seu estudo nos limites do
grupo, e isso vai condicionar as diferentes maneiras de se mover no Os objetivos da pesquisa, a rede de contatos e o tempo disponível
espaço da observação. constituem os parâmetros para o desenho inicial da observação.
Entretanto, tudo isso pode ser modificado, a depender das
Nos quatro exemplos, é preciso não perder de vista o fato de que a possibilidades criadas com as pessoas com as quais estamos
observação numa perspectiva construcionista não está à procura pesquisando, do funcionamento e das regras do grupo e do apoio
de uma verdade a ser descoberta ou desvendada, tampouco tem a recebido para a pesquisa. Muitas vezes somos surpreendidos/as por
pretensão de esgotar todos os aspectos do tema estudado. A nossa acontecimentos que mudam o curso da pesquisa e é necessário
intenção é estabelecer diferentes formas de convívio entre o/a rever os objetivos e as metas estabelecidas. É importante ter essa
pesquisador/a e os/as interlocutores/as da pesquisa com o objetivo abertura para aceitarmos as mudanças necessárias durante a
de compreender e interpretar os sentidos produzidos pelas pessoas pesquisa.
do lugar. Desse modo, tanto no primeiro caso (ampliação da rede de
relações inicialmente estabelecidas) quanto no segundo (restrição Nos trabalhos desenvolvidos no Núcleo encontramos uma variedade
dos contatos) o/a pesquisador/a terá acesso a determinados de relatos que dão conta das diferentes formas de observação.
acontecimentos, conversas, locais, pessoas e rituais, e a outros não.
Nos dois casos, haverá produção de conhecimento científico, porém Na dissertação de mestrado de Camila Pereira (2010), Sobre novas
é importante situar e explicitar no texto as decisões tomadas, os tecnologias de gestão que se articulam a repertórios históricos: um
procedimentos de produção de informação e análise do material estudo sobre o trabalho voluntario na área da saúde, a autora
discursivo. realizou observação nos vários espaços de trabalho dos voluntários
do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo (SP).
137 138

Durante três dias, Pereira observou a rotina da sala dos voluntários; lentas, detendo-se em pequenas coisas, para conversas,
depois disso, escolheu um dia para acompanhar os/as por exemplo. Nessas ocasiões, elas usavam os espaços
voluntários/as nas enfermarias. A autora também realizou quatro de forma mais livre, subiam nos bancos, abraçavam os
entrevistas, participou de dois eventos e fez pesquisa documental. postes, corriam, paravam para conversar, chamavam
Conforme Pereira (2010), a pesquisa, uns aos outros. Quando estavam desacompanhadas de
adultos, predominava a interação. Em dois momentos
[...] consistiu em acompanhar os atores em seu nos detivemos com a finalidade explicita de observação:
cotidiano, tomando como foco os voluntários. Dessa numa praça no centro da cidade, e num parque, junto a
forma, os acompanhamos no seu dia a dia no hospital, um equipamento da Secretaria de Cultura, a
observando a rotina da sala da associação de brinquedoteca municipal (2008, p. 77).
voluntariado, onde ocorre a organização, planejamento e
controle da atividade voluntária, além de ser o ponto de Outro cenário de observação para Bertuol foram as reuniões
encontro dessas pessoas. Essa etapa envolveu conversas quinzenais de gestores/as, das quais ela participou por três meses.
tanto com os voluntários quanto com outras pessoas
que compuseram esse cenário, como coordenadores, Já Lisboa fez observação nas ruas de São Paulo, acompanhando a
médicos e funcionários do hospital (p. 73). equipe de saúde da família sem domicílio.

Carla Bertuol (2008) e Milena Lisboa (2013) realizaram observação Começamos a acompanhar cotidianamente a equipe, e
em espaços públicos, embora com algumas diferenças. O foco de adotamos uma estratégia para me aproximar das
Bertuol foi a observação aleatória das crianças em espaços públicos pessoas em situação de rua, a saber, seguir os
na cidade de Santo André, no ABC paulista. Segundo a autora, relacionamentos entre os agentes comunitários de saúde
e seus pacientes. Assim, de duas a três vezes por
Durante o período de pesquisa, nos dirigíamos para semana, durante um ano, chegava à UBS às 7 ou 8
Santo André semanalmente e lá percorríamos uma parte horas da manhã (a depender do combinado com os ACS
considerável da cidade de automóvel até chegar ao nosso e profissionais da equipe, realizado geralmente no dia
destino. Durante essas idas e vindas, pudemos fazer anterior), e saía às ruas acompanhando um ou dois
algumas paradas e observar as crianças em seu ACS. Nesse processo, conhecemos muitas pessoas em
cotidiano na cidade, de forma aleatória. Essas situação de rua vivendo suas vidas de modos muito
observações, bem como as participações, conversas e diferentes, com necessidades distintas com relação à
impressões sobre as entrevistas foram anotadas num sua saúde e a outros problemas também abordados
diário de campo. Ao mesmo tempo, fizemos uma coleta pelas políticas públicas (de assistência social, por
de panfletos e materiais que eram distribuídos pela exemplo) (2013, p. 40).
administração municipal para o público. Observamos
crianças caminhando em grupos pelas ruas, Nos três exemplos apresentados as autoras consideraram a
uniformizadas e esperando o ônibus para ir à escola ou observação de forma distinta. No trabalho de Pereira, numa
voltar para casa. Nas vias mais urbanizadas por onde instituição e por um curto período de tempo. No de Bertuol, aparece
andávamos as crianças circulavam do mesmo modo que em três formatos combinados: de forma aleatória, observando as
a maioria dos adultos, mostrando-se ocupadas, mas o crianças em espaços públicos; de maneira sistemática, durante três
faziam de forma mais pessoal e livre, com meses nas reuniões de gestores/as; duas observações pontuais,
movimentações corporais mais amplas, às vezes mais numa praça e num equipamento comunitário. O de Lisboa foi por
139 140

um período mais longo e aparece como principal ferramenta de repensar os objetivos e procedimentos metodológicos para garantir o
pesquisa. desenvolvimento do estudo proposto.

Dependendo da abordagem a observação pode combinar conversas Moretti (2009) descreveu as exigências da equipe para que pudesse
com interlocutores/as variados/as, entrevistas, a participação em acompanhar a corrida:
atividades e eventos (encontros, reuniões, rituais, festas, eventos
esportivos etc.). Nessa abordagem, há diálogos com os estudos A autorização do organizador da equipe já tinha; agora
etnográficos e a observação é vista como a estratégia principal de só faltava arrumar um jeito de me deslocar durante a
produção de informação e de análise. Em muitas pesquisas a corrida. Pensei, então, na possibilidade de ir como apoio
observação tem por objetivo o estudo de uma situação bem da equipe, de trabalhar para a equipe e assim ajudar e
especifica, podendo ser uma ferramenta complementar a outras ser ajudado. Propus isso ao capitão e ele disse que talvez
estratégias, não se constituindo como a principal. fosse possível, pois estava estudando a possibilidade de
arrumar mais um veículo para a equipe de apoio e se
isso acontecesse, eu poderia ir sem maiores problemas.
Fiquei no aguardo de notícias, pois esta era a minha
Como lidar com as normas e etiquetas do grupo única chance de acompanhar a corrida. Em menos de
uma semana liguei pra o capitão e ele me disse que eu
Em nossa opinião, tomando emprestadas as palavras de James conseguiria ir, porque conseguira mais um veículo para
Clifford (2002), a investigação envolve pelo menos dois, e muitas servir de apoio. Mas impôs duas condições: não
vezes mais, sujeitos conscientes e politicamente significativos, atrapalhar as atividades da equipe de apoio nem mesmo
autores/as de produções culturais. Isso significa considerar que ajuda-la, uma vez que todos já tinham as funções
tanto o/a pesquisador/a quanto os/as participantes da pesquisa determinadas e tudo fluía bem (p. 25).
são politicamente significativos. Desse modo, é preciso abrir mão da
ideia de que só o/a pesquisador/a é autor/a do que é produzido na Durante o acompanhamento da equipe, Moretti relata as
pesquisa. Além disso, os limites e as possibilidades da observação dificuldades que encontrou e a sua relação com o grupo, já que não
não são dados a priori, tampouco são controlados exclusivamente era atleta. Em um texto ilustrativo diz:
pelo/a pesquisador/a.
Logo no começo da corrida percebi que não fazia parte
De acordo com os exemplos que apresentamos, percebemos que é da equipe de apoio, tinha a sensação de ser um intruso,
preciso compreender que qualquer grupo, instituição ou um de fora que estava avaliando/analisando cada um e
comunidade tem normas e etiquetas complexas de funcionamento, cada situação, mesmo afirmando não estar ali para isso
de prescrição e normatização nem sempre verbalizadas.5 Entender e sim para entender as relações entre os atletas. Porém,
essas normas não é simples ou rápido, e exigirá do/a pesquisador/a acredito que vários fatores contribuíram para isso, além
uma posição ética que demandará sensibilidade, respeito e da minha presença desnecessária. São eles: baixa
acolhimento. Muitas vezes, por conta disso, é necessário e desejável comunicação entre os integrantes da equipe de apoio
“voltada para a tarefa”; ter mantido certo afastamento do
grupo para não influenciar a dinâmica da equipe de
5 O belíssimo trabalho de Silva (2005) sobre etnografia com as religiões afro- apoio; ter criado um vínculo um pouco maior com
brasileiras problematiza essas situações. SILVA, V. G. da. O antropólogo e sua Ricardo; não ter conseguido ganhar a simpatia de
magia: trabalho de campo e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre as Gustavo, que era o líder; e, ter cometido erros. Em
religiões afro-brasileiras. São Paulo: Edusp, 2005.
141 142

consequência, minha inserção na equipe de apoio foi não conhecia, pedia para me esperarem em um local de
turbulenta (2009, p. 104). fácil acesso. Ao fazer os primeiros contatos, solicitava
que alguém fosse comigo (2004, p. 80).
Cordeiro (2004) relata, na sua tese, as inúmeras perguntas,
comentários e admoestações que recebeu das pessoas do lugar por Lisboa (2013), ao pesquisar o universo da rua, teve de se mover nos
andar sozinha nos sítios próximos, uma questão não aceita. horários e lugares que a Equipe de Saúde da Família avaliasse como
seguros. Segundo a autora,
Com o passar do tempo as indagações aumentam. No
último dia em que caminhei fui abordada quatro vezes. [...] acompanhei no campo a equipe da Saúde da Família
Vou descendo a ladeira e encontro um grupo de rapazes somente onde acharam prudente a minha presença,
conversando numa calçada. Um deles pergunta: “Já vai cuidando para que todos se preservassem. À noite,
passear?” Respondo que sim e continuo andando. À portanto, a pesquisa não foi realizada, mesmo sabendo
frente, encontro um senhor que vai saindo de um que o universo das ruas adquire novas características e
roçado. Eu o cumprimento e ele me pergunta: “Vai pactos, exigindo estratégias de sobrevivência bem
rasgando até Bom Sucesso?” Respondo afirmativamente. diferentes das diurnas. Conversas sobre os
Mais adiante, encontro o Sr. Edvaldo, motorista de táxi. acontecimentos das noites foram realizadas para que
Conversamos um pouco, acerto uma viagem com ele, tais situações não fossem negligenciadas (p. 34).
que termina fazendo a seguinte pergunta: “Para onde a
senhora vai”? Digo que vou andar um pouco. Ele repete Como vimos pelos exemplos, o que e como observar depende
o que eu disse. Na volta, quando estou chegando à também das normas e etiquetas do grupo. É nesse feixe de relações
cidade, um rapaz de bicicleta faz o seguinte comentário: que o/a estudioso/a se move, busca aliados/as, reorienta os
“A viagem foi rápida, não?” (p. 78). objetivos do estudo e elabora novas estratégias de pesquisa.

Essa série de episódios fez Cordeiro perceber que estava realizando


uma atividade estranha e transgressora para as normas locais.
Havia ainda um agravante, ela andava sozinha e aparentemente Como registrar e os usos dos registros na observação6
sem “destino certo”. A autora passou a atentar, simultaneamente,
para sua posição como mulher e pesquisadora e para o lugar das Essa parte do texto é dedicada a apresentar algumas das diferentes
mulheres no sertão, particularmente no que se refere à liberdade de formas de registro das observações e os documentos produzidos ao
ir e vir além do sítio e da comunidade de origem. As restrições da longo da pesquisa. Ressaltamos que existem diferentes formas de
população local aos deslocamentos de Cordeiro fizeram com que ela nomear os registros, tais como diário de campo – termo mais
tomasse duas decisões: priorizou como um aspecto importante da associado à etnografia –, caderno de notas, diário de pesquisa,
pesquisa a liberdade das trabalhadoras rurais de ir e vir além da diário de bordo etc.
comunidade de origem; e criou estratégias que facilitassem as
viagens e visitas aos sítios. Nas palavras da autora, Primeiramente, é importante ressaltar a importância desses
registros na observação, uma vez que serão os principais insumos
Passei a me deslocar com objetivo determinado – visitas utilizados como material de análises e interpretações. É bom que
aos sítios e comunidades, entrevistas e encontros –, o/a pesquisador/a ande com um caderninho de anotações, tendo
informando sempre a quem me perguntava o “destino
certo”. Ao visitar sítios ou comunidades que eu ainda
6 Para ampliar essa discussão sobre registros, consultar o capítulo 13 sobre diários.
143 144

em vista que a qualquer momento podem surgir informações experiência. Desse modo, acreditamos que voltar a tudo o que foi
pertinentes para a compreensão do objeto de estudo e para as vivido e experienciado no decorrer da pesquisa seria impossível, e
análises futuras. Tudo, até as coisas ditas triviais (como reportagens uma estratégia encontrada é compartilhar partes do processo
de jornal, cenas de novela, conversas no transporte público, fila de percorrido até chegar ao seu texto final. Nesse sentido, Cordeiro
banco, comentários pós-cinema etc.), pode servir como ponto de (2004) enfatiza:
reflexão e insight futuro. Samanta Cunha (2013), por exemplo,
destacou em sua dissertação de mestrado, intitulada Percursos, Parte da pesquisa foi sendo construída durante o
enfrentamentos e apoios na convivência com o câncer de mama, que processo. Não tracei um esquema linear de investigação
todas as suas “[...] inquietações, angústias, dúvidas, conversas, e fui seguindo rigorosamente. Mudei de rota, busquei
observações, escutas, impressões – tanto no ambulatório quanto outros atalhos e fiz novos mapas para chegar tateante a
fora dele foram registradas em um caderno que chamei de ‘diário de alguns lugares, ora com tranquilidade e alegria, ora
campo’” (p. 35). perdida e angustiada, sem saber direito onde eu iria
parar (p. 52).
No início da observação, o/a pesquisador/a pode ficar confuso/a
sobre o que deve ser registrado. Só após um período de tempo é De acordo com a metodologia adotada na pesquisa as possibilidades
possível focalizar a observação e a produção dos registros. A prática de uso dos diários de campo vão sendo configuradas. Vale destacar
em pesquisa nos mostra que só após algum tempo de familiaridade que as anotações podem ser escritas tanto no momento de
com o lugar (seus costumes, suas rotinas, seus espaços, cheiros e interação, no lócus da pesquisa, como posteriormente. No trabalho
sabores) podemos focalizar o nosso olhar para os aspectos de Bruna Souza (2013), intitulado “A noção de cuidado na atenção a
relacionados ao nosso tema de estudo. Sobre isso, Jullyane usuários de substâncias psicoativas em um Centro de Atenção
Brasilino (2010) afirma: Psicossocial (CAPS AD)”, é possível identificar que os registros em
diário foram de suma importância para a pesquisa como um todo.
Nas primeiras observações das audiências estava muito Ele foi utilizado como o principal instrumento de registro e análise.
perdida. Não sabia bem o que e como observar tudo o O próprio diário foi analisado e coprodutor de sentidos, os quais
que acontecia na sala. À medida que me fui desenharam o objeto de investigação e auxiliaram no atingimento do
familiarizando com o ambiente, orientei-me melhor. Faço objetivo do estudo: “As observações foram registradas em diário de
uma ressalva para como, aos poucos, fui me campo, possibilitando a descrição de fatos e impressões, incluídas
apropriando dos termos jurídicos utilizados durante as possíveis inquietações e sentimentos surgidos nas experiências
audiências, os jargões jurídicos (p. 69). vivenciadas no dia a dia das equipes do CAPS AD.” (p. 19).

Uma questão que constantemente aparece no uso dos diários de Diferentemente de outras pesquisas que citam o uso dos diários
campo é: qual será o seu estatuto na pesquisa? Será utilizado como e/ou trazem seus trechos como material complementar às
material de apoio e memória7 de pesquisa ou como material da entrevistas, à análise de documentos etc., na de Souza é possível
análise propriamente dita? Além disso, o que deve constar na identificar que eles são o próprio objeto de análise. No texto da
redação final do texto? O exercício de compartilhar os caminhos e as dissertação, a autora apresenta um tópico específico que trata do
escolhas metodológicas tomados nas pesquisas é uma tarefa difícil, lugar do diário em suas análises:
desafiadora, inviável se não fosse ela considerada uma nova
Procuramos fazer uma descrição densa por meio de
7Aqui consideramos os casos em que outros materiais empíricos constituem o corpus registros nos diários de campo, nos quais foram
de análise da pesquisa, tais como entrevistas, narrativas de histórias de vida, anotados de forma mais minuciosa possível os
documentos de domínio público, questionários etc.
145 146

acontecimentos ocorridos no campo, assim como as o diário será o material central de análise na pesquisa. As anotações
impressões suscitadas por esses acontecimentos [...] podem ser transformadas em quadros, gráficos, textos etc.,
Além de exercer importante papel na análise, o registro, compondo assim diferentes narrativas.
potencialmente, aponta a necessidade de mais
observações (2013, p. 23).

Outra possibilidade de uso do diário foi apresentada por Lisboa Considerações finais
(2013). Tais trechos foram apresentados como interlúdios e sua tese
já iniciou dessa forma: Neste capítulo consideramos a observação no cotidiano como uma
prática social, dialógica e reflexiva. A ênfase da discussão foi
Começamos o texto com o relato de um dia atípico (para estabelecer a diferença entre pesquisar no cotidiano, ao invés de
mim e também para a equipe) – não é sempre que eles pesquisar o cotidiano Nesse sentido, ela foi compreendida
entram com contato com a morte de uma de suas teoricamente e abordada do ponto de vista do fazer, na pesquisa,
pacientes. Mas por que começar com um dia atípico? como um empreendimento dialógico nem sempre passível de ser
Escolhemos este relato de campo porque neste dia uma controlado, envolvendo, em alguma medida, tanto os conflitos e
articulação sui generis configurou-se entre os muitos tensionamentos quanto a colaboração entre pesquisador/a e
atores sociais que contracenavam nas ruas: neste relato, participantes da pesquisa. Também problematizamos as opções
salta aos olhos os diversos relacionamentos emergentes teóricas, metodológicas e práticas assumidas para registrar, narrar
que parecem “naturalmente” se estabelecer nas ruas, e editar a observação, o que significou, além da discussão dos
nos fazendo pensar sobre os modos distintos de lidar aspectos epistemológicos, também os metodológicos.
com os acontecimentos que a rua oferece (p. 17).
Decorrentes dessa perspectiva, discutimos, utilizando exemplos de
Para focar os últimos anos, destacamos que nas reuniões do núcleo pesquisas realizadas no Núcleo, as possibilidades e os limites do uso
ao longo dos anos letivos de 2012 e 2013 o tema dos diários de da observação como produto de negociações complexas que
campo foi debatido inúmeras vezes. As discussões em torno de sua estabelecemos com determinados grupos ou pessoas situadas em
importância, bem como dos modos de fazer, versaram sobre a sua locais e contextos particulares, de acordo com os objetivos das
possibilidade de responder aos objetivos das pesquisas. Um pesquisas. Finalmente, consideramos que a observação como
caminho apontado é o de sempre registrar tudo o que for possível, e processo de pesquisa nos encontros cotidianos faz parte de nosso
esse registro, conforme dito anteriormente, pode ser feito em papel, interesse por possibilitar a compreensão da coprodução de sentidos,
áudio, vídeo e o que mais viabilizar tal tarefa. Esse primeiro os posicionamentos que são assumidos por nós, pesquisadores/as,
momento muitas vezes ocorre de modo desorganizado e até mesmo e pelas demais pessoas nas nossas práticas discursivas cotidianas.
na base do improviso. Ao longo das reuniões, vários relatos foram
sobre as anotações feitas às pressas, num pedaço de papel qualquer
que estivesse à mão, áudios gravados em telefones celulares no
percurso de ida/volta no transporte público, fotografias para Referências
registrar frases/pensamentos, momentos, lugares etc.
BANISTER, Peter; BURMAN, Erika; PARKER, Ian.; TAYLOR, Maye.;
Após esses registros mais apressados, o recomendável é que sejam
TINDALL, Carol. Métodos cualitativos em psicología. Guadalajara,
sistematizados, agora de forma organizada e de modo a facilitar o
México: Universidad de Guadalajara, 2004.
acesso às informações posteriormente, sobretudo nos casos em que
147 148

BERTOUL, Carla. Crianças no espaço urbano: um estudo sobre 2007. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) - Pontifícia
políticas públicas no contexto das “Cidades amigas da criança”. Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
2008. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Pontifícia
PEREIRA, Camila, C. Q. Sobre novas tecnologias de gestão que se
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
articulam a repertórios históricos: um estudo sobre o trabalho
BRANDAO, Carlos, R. Tempos e espaços nos mundos rurais do voluntario na área da saúde. 2010. Dissertação (Mestrado em
Brasil. RURIS, v. 1, n. 1, março, 2007. Psicologia Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo.
BRASILINO, Jullyane, C. B. Masculinidades no juizado de violência
doméstica e familiar contra a mulher: performances em cena. 2010. SATO, Leny; SOUZA, Marilene P. R. Contribuindo para desvelar a
147f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em complexidade do cotidiano através da pesquisa etnográfica em
Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. psicologia. Revista Psicologia, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 29-47, 2001.
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e
literatura no século XX. 2. ed. Org. e rev. de José Reginaldo S. SOUZA, Bruna, B. C. A noção de cuidado na atenção a usuários de
Gonçalves. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. substâncias psicoativas em um centro de atenção psicossocial (CAPS
AD). 2013. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) - Pontifícia
CORDEIRO, Rosineide. Além das secas e das chuvas: os usos da Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
nomeação mulher trabalhadora rural no Sertão de Pernambuco. SPINK, Mary Jane. Pesquisando no cotidiano: recuperando
2004. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Pontifícia memórias de pesquisa em psicologia social. Psicologia & Sociedade,
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Belo Horizonte, v. 19, n. 1, p. 7-14, jan./abr. 2007.
CUNHA, Samanta, M. Percursos, enfrentamentos e apoios na SPINK, Mary Jane; MENEGON, Vera. A pesquisa como prática
convivência com o câncer de mama. 2013. Dissertação (Mestrado em discursiva: superando os horrores metodológicos. In: SPINK, Mary
Psicologia Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Jane (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano:
São Paulo. aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez Editora,
GARCÍA, Milagros. Linguagem dos riscos e sujeitos posicionados: o p.63-92. 1999.
uso de agrotóxicos no Vale de Quíbor, Venezuela. 2004. Tese SPINK, Peter, K. O pesquisador conversador no cotidiano. Psicologia
(Doutorado em Psicologia Social) - Pontifícia Universidade Católica & Sociedade, Belo Horizonte, v. 20, p. 70-77, 2008. Edição especial.
de São Paulo, São Paulo.
LISBOA, Milena, S. Os loucos de rua e as redes de saúde mental: os
desafios do cuidado no território e a armadilha da
institucionalização. 2013. Tese (Doutorado em Psicologia Social) -
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
MORETTI, Alexandre, R. Corridas de aventura: processo de coesão
grupal na superação de obstáculos. 2009. Dissertação (Mestrado em
Psicologia Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo.
OLIVEIRA, Juliana A. de. Querer ficar, querer sair: os paradoxos da
internação psiquiátrica para usuários de serviços de saúde mental.

Você também pode gostar