EMERJ- Módulo III- Curso de Capacitação de Magistrados do TJ RJ Aula 1-
07/02/2024
Profa. Dra. Gisela França
Ressocialização e Prisão: Dois tempos de uma história
1) Introdução e Histórico
A realidade carcerária, na atualidade, tem demonstrado que a pena privativa de
liberdade não vem cumprindo as suas funções precípuas de ressocializar o criminalizado
e a de evitar a reincidência criminosa. Ao contrário, a prisão, em si mesma, tem-se
demonstrado criminógena, além de haver se convertido em fábrica de reincidência.
Em vez de ressocializar o criminalizado, o cárcere degenera-o, dessocializa-o e o
embrutece, o reconduzindo a uma carreira de desvio.
O discurso oficial ressocializador, encontra-se desacreditado e, como consectário
deslegitimado.
A realidade é que, hoje, se reconhece que o cárcere é incapaz de ressocializar o
apenado, conseguinte na enormidade dos casos (que são a maioria esmagadora)
impingindo-lhes um sofrimento a título de castigo.
Façamos então, um breve histórico acerca do surgimento da pena privativa de liberdade
com escopo de tentarmos perquirir as razões efetivas de seu surgimento e consolidação.
A origem da pena, todos sabemos, é muito remota, perdendo-se na noite dos tempos,
sendo tão antiga quanto a própria humanidade. Por isso mesmo é extremamente difícil
remontarmos à sua origem.
Antiguidade
A antiguidade desconheceu totalmente a privação de liberdade estritamente considerada
como sanção penal. Embora seja inegável que o encarceramento de delinquentes existiu
desde tempos imemoráveis, entretanto não possuía caráter de pena e repousava em
outras razões.
Até fins do século XVIII a prisão serviu somente aos objetivos de contenção e guarda
de réus, para preservá-los fisicamente até o momento em que estes seriam julgados ou
executados. Recorria-se, durante esse longo período histórico, fundamentalmente, às
penas corporais, infamantes e de morte. Dentre as penas corporais se destacavam as
mutilações e açoites. Por isso, a prisão era uma espécie de ante-sala dos suplícios.
Utilizava-se a tortura, frequentemente, para obter a suposta verdade.
A prisão que ocorria em masmorras e câmaras de tortura era um lugar de grande perigo
e na maioria das vezes significava uma antecipação da extinção física.
Assim, a prisão da Antiguidade servia de depósito-era contenção-custódia-da pessoa
física do réu, que aguardava em condições subumanas a celebração de sua execução.
Os vestígios que nos chegaram dos povos e civilizações mais antigos (Egito, Pérsia,
Babilônia, Grécia, Roma) coincidem com a finalidade que atribuíam primitivamente à
prisão. Locus de tortura e custódia.
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Então, os próprios romanos, que no dizer de Carrara foram gigantes no Direito Civil e
pigmeus no Direito Penal somente conheceram o encarceramento com esse viés
custodial.
Os lugares em que se mantinham os acusados até a celebração do julgamento eram bem
diversos, já que naquela época inexistia uma arquitetura penitenciária própria. Os piores
lugares eram empregados como prisões: utilizavam-se horrendos calabouços, aposentos
frequentemente insalubres e em ruínas de castelos, torres, conventos abandonados,
poços d´àgua, buracos.
Idade Média
A lei penal dos tempos medievais possuía como verdadeiro objetivo promover o medo
coletivo.
Loucos, delinquentes de toda ordem, mulheres, idosos e crianças esperavam espremidos
entre si em horrendos encarceramentos subterrâneos, ou em calabouços de palácios e
fortalezas, o suplício e a morte.
Durante toda a Idade Média, a ideia de pena privativa de liberdade inexiste. Há nesse
período, um claro predomínio do direito germânico. A privação de liberdade continua a
possuir uma finalidade custodial aplicável àqueles que seriam submetidos aos mais
terríveis tormentos por um povo ávido por distrações atrozes e sangrentas. A amputação
de braços e pernas, olhos, língua, mutilações, queima de carne a fogo e a morte nas suas
mais variadas formas, constituíam o espetáculo predileto das multidões nesse período
histórico.
As sanções criminais da Idade Média estavam submetidas ao arbítrio dos governantes
que as impunham em função do status social a que pertencia o réu. Referidas sanções
poderiam ser substituídas por prestação em metal. Nesse período surgem a prisão de
Estado e a prisão eclesiástica. Na prisão de Estado, na Idade Média, somente poderiam
ser recolhidos os inimigos do poder real ou senhorial que houvessem cometido delitos
de traição ou que fossem adversários políticos dos governantes.
A prisão de Estado apresentava duas modalidades: a prisão custódia, onde o réu
aguardava a execução efetiva da pena que viria a ser aplicada (morte, açoite, mutilação),
ou como detenção temporal perpetua, havendo a possibilidade de recebimento do
perdão real. Ex: Bastilha em Paris e Torre de Londres.
A prisão eclesiástica destinava-se aos clérigos rebeldes e respondia melhor às ideias de
caridade, redenção e fraternidade da igreja, dando ao internamento um sentido de
penitência e meditação.
A prisão canônica era mais humana, menos atroz, que a do regime secular, baseada em
suplícios e mutilações, porém impossível comparar a mesma com o ideário das prisões
modernas.
Idade Moderna
Durante os séculos XVI e XVII a pobreza se abate e se estende por toda a Europa.
Contra os deserdados da fortuna que delinquem cotidianamente para subsistirem
experimenta-se tido o tipo de reação penal, mas todas falham. Com altos índices de
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criminalidade, a pena de morte não era mais a solução adequada, já que não poderia ser
aplicada para tantos indivíduos.
Os açoites, o desterro e a execução foram os principais instrumentos da política social
na Inglaterra até a metade do século XVI, até que com a alteração nas condições sócio
econômicas para fazer frente ao fenômeno sociocriminal foram criadas as primeiras
casas de correção. A suposta finalidade da instituição era a reforma do delinquente por
meio do trabalho e da disciplina.
Surgiram assim na Inglaterra as chamadas workhouses, casas de correção, que eram
casas de trabalho, mostra-se assim a íntima relação existente, nas suas origens, entre a
prisão e a utilização da mão de obra do apenado.
Causas da Transformação da Prisão Custódia em Prisão Pena
Foi na Holanda, na primeira metade do século XVII, onde a nova instituição da casa de
correção chegou no período das origens do capitalismo à sua formação mais
desenvolvida. É que a criação desta nova e original forma de segregação punitiva
correspondia e respondia mais a uma exigência relacionada ao geral da sociedade
capitalista que à genialidade de algum reformador.
Os modelos punitivos não se diversificaram por um proposito idealista ou pelo afã de
melhorar as condições na prisão, mas com o fim de evitar que se desperdice a mão de
obra e ao mesmo tempo controla-la, regulando a sua utilização.
Logo, a prisão surgiu quando se estabelecem as casas de correção holandesas e inglesas,
cuja origem não se explica pela existência de um propósito mais ou menos humanitário
e idealista, mas pela necessidade que existia de possuir um instrumento que permitisse
não tanto reformar ou reabilitar o delinquente, mas a sua submissão ao regime
dominante- O capitalismo.
Não interessa a reabilitação emenda; o que importa é o delinquente se submeta, que o
sistema seja eficaz por meio de uma obediência irrefletida. E também serviria para
intimidar o trabalhador livre.
A prisão nunca será- vista desde sua origem, nas casas de correção holandesas e
inglesas-mais do que uma instituição subalterna à fábrica, assim como a família, a
escola, o hospital, o quartel, o manicômio, que servirão para garantir a produção e a
reprodução da força de trabalho que o capitalismo necessite.
A difusão da pena consistente na prisão do criminoso e o modo de produção capitalista
contribuem de maneira determinante para a compreensão do fenômeno e destroem
definitivamente os mitos e lugares comuns da imutabilidade da prisão através dos
séculos. Nesse sentido, é particularmente convincente a relação de interdependência
entre as mutáveis condições do mercado de trabalho, o brusco descenso de incremento
demográfico, a introdução das máquinas e a passagem ao sistema fábril propriamente
dito, por um lado, e a súbita e sensível piora das condições de vida nas prisões.
Causas que explicam o Surgimento da Prisão
1) A partir do século XVI começava-se a valorizar mais a liberdade e se impõe o
racionalismo;
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2) Substituição da Publicidade dos Castigos;
3) A Crise da Pena de Morte
4) Razões Econômicas.
O encarceramento é uma das respostas dadas pelo século XVIII a uma crise econômica
que afeta o mundo ocidental sem em conjunto: queda de salários, desemprego, escassez
de moeda.
É interessante apontar que a vinculação da prisão à necessidade de ordem econômica,
que inclui a dominação da burguesia sobre o proletariado, faz surgir a tese de que é um
mito pretender ressocializar o delinquente por meio da pena privativa de liberdade.
Crise da Pena Privativa de Liberdade
Quando a prisão converteu-se na principal resposta penalógica, especialmente a partir
do século XIX, acreditou-se que poderia ser um meio adequado para conseguir a
reforma do delinquente. Esse otimismo inicial desapareceu e atualmente predomina
certa atitude pessimista ou cética.
A fundamentação conceitual sobre qual baseiam-se os argumentos que indicam a
ineficácia da pena privativa de liberdade podem ser sinteticamente, resumidos em duas
premissas fundamentais:
a) Considera-se que o ambiente carcerário, em razão de sua antítese com a comunidade
livre, converte-se em meio artificial, antinatural, que não permite realizar nenhum
trabalho ressocializador com o recluso;
b) A maior parte das prisões no mundo não possuem sequer condições materiais e
humanas para alcançarem o objetivo reabilitador. Ex: maus-tratos, superpopulação,
abusos sexuais, falta de higiene, ócio ou exploração excessiva.
A Prisão como fator criminógeno
A prisão em vez de frear a delinquência, parece estimulá-la, convertendo-se em
instrumento que oportuniza toda espécie de desumanidades. Não traz nenhum benefício
ao apenado, ao contrário, possibilita toda sorte de vícios e degradações.
Cumpre destacar-se ainda o funcionamento seletivo e parcial do sistema penal- O
sistema penal está inserido numa sociedade classista, profundamente hierarquizada e na
qual a possibilidade de mobilidade social real quase inexiste e é reflexo das vicissitudes
sociais, políticas e econômicas de nosso país. Função real do direito penal- manutenção
do status quo. Criminalização da miséria. Vulnerabilidade social e vulnerabilidade
penal.
Alessandro Baratta
Uma parte do discurso oficial e algumas reformas recentes (por exemplo, a nova lei
penitenciária italiana de 1987), demonstram que a teoria do tratamento e da
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ressocialização não foi abandonada por completo. A realidade prisional apresenta-se
muito distante daquilo que é necessário para fazer cumprir as funções de ressocialização
e os estudos dos efeitos da cadeia na vida criminal (atestam o alto índice de
reincidência) têm invalidados amplamente a hipótese da ressocialização do delinquente
através da prisão. A discussão atual parece centrada em dois pólos: um realista e o outro
idealista.
No primeiro caso, o reconhecimento científico de que a prisão não pode ressocializar,
mas unicamente neutralizar; que a pena carcerária para o delinquente não significa em
absoluto uma oportunidade de reintegração à sociedade, mas um sofrimento imposto
como castigo, se materializa em um argumento para a teoria de que a pena deve
neutralizar o delinquente e/ou representar o castigo justo para o delito cometido.
Renascem, dessa forma, concepções "absolutas", compensatórias à pena ou, entre as
teorias "relativas", se confirma a da prevenção especial negativa.
O reconhecimento do fracasso da prisão como instituição de prevenção especial positiva
conduz, no segundo caso, à afirmação voluntária de uma norma contrafactora, a qual,
não obstante, deve ser considerada como lugar e caminho de ressocialização. Na
realidade, o reconhecimento do aspecto contrafactor da idéia de ressocialização surge,
às vezes, na mesma argumentação daqueles que sustentam a nova ideologia de
tratamento. Num encontro de criminalistas alemães, ocorrido há alguns anos em
Frankfurt, um dos mais renomados pesquisadores desse país reconhecia francamente o
fracasso, constatado até então, das ações de ressocialização por meio da prisão e
sustentava, ao mesmo tempo, que, apesar disso, era preciso manter a idéia da
ressocialização para não dar cabimento âqueles que advogavam as teorias neoclássicas e
neoliberais da retribuição e da neutralização.
Nesses dois extremos, nos quais se polariza hoje a teoria penal, perpetram-se dois
equívocos iguais e contraditórios entre si. No primeiro caso, na teoria do castigo e/ou
naturalização, comete-se o que a filosofia prática chama de falácia naturalista": elevam-
se os fatos a normas ou deduz-se uma norma dos fatos. No segundo caso, com a nova
teoria da ressocialização, incorre-se na "falácia idealista": apresenta-se uma norma
contrafactora que não pode ser concretizada, uma norma impossível.
Na opinião de Baratta opinião toda essa discussão não passa de uma falsa questão.
Pode-se, e se deve escapar tanto da falácia naturalista quanto da idealista. O ponto de
vista de como encaro o problema da ressocialização, no contexto da criminologia
crítica, é aquele que constata de forma realista - o fato de que a prisão não pode produzir
resultados úteis para a ressocialização do sentenciado e que, ao contrário, impõe
condições negativas a esse objetivo. Apesar disso, a busca da reintegração do
sentenciado à sociedade não deve ser abandonada, aliás precisa ser reinterpretada e
reconstruída sobre uma base diferente. Isso pressupõe, pelo menos, duas ordens de
considerações.
A primeira está relacionada com o conceito sociológico de reintegração social. Não se
pode conseguir a reintegração social do sentenciado através do cumprimento da pena.
Entretanto se deve buscá-la apesar dela; ou seja, tornando menos precárias as condições
de vida no cárcere, condições essas que dificultam o alcance dessa reintegração.
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Sob o prisma da integração social e ponto de vista do criminoso, a melhor prisão é, sem
dúvida, a que não existe. Pesquisas sobre o convívio social na prisão e testes de
avaliação elaborados para avaliá-las evidenciam uma ampla sucessão ordenada de
coisas diferentes, mas da mesma espécie. Analisando-se os institutos prisionais
existentes hoje na Europa e Estados Unidos, eles podem ser dispostos a estimar sua
eficácia negativa sobre a oportunidade de reintegração social do sentenciado.
Nenhuma prisão é boa e útil o suficiente para essa finalidade, mas existem algumas
piores do que outras. Estou me referindo a um trabalho de diferenciação valorativa que
parece importante para individualizar políticas de reformas que tornem menos
prejudiciais essas instituições à vida futura do sentenciado. Qualquer iniciativa que
torne menos dolorosas e danosas à vida na prisão, ainda que ela seja para guardar o
preso, deve ser encarada com seriedade quando for realmente inspirada no interesse
pelos direitos e destino das pessoas detidas e provenha de uma mudança radical e
humanista e não de um reformismo. tecnocrático cuja finalidade e funções são as de
legitimar através de quaisquer melhoras o conjunto do sistema prisional.
Apesar disso, todo reformismo possui seus limites se não incorpora - à instituição
carcerária - uma estratégia para minorar o sofrimento a curto e médio prazos e é
libertadora a longo prazo. Para uma política de reintegração social dos autores de
delitos, o objetivo imediato não é apenas uma prisão "melhor” mas também e sobretudo
menos cárcere. Precisamos considerar seriamente, como política de curto e médio
prazos, uma drástica redução da pena, bem como atingir, ao mesmo tempo, o máximo
de progresso.
A sociedade não deve ser abandonada, aliás precisa ser reinterpretada e reconstruída
sobre uma base diferente. Isso pressupõe, pelo menos, duas ordens de considerações das
possibilidades já existentes do regime carcerário aberto e de real prática e realização dos
direitos dos apenados à educação, ao trabalho e à assistência social, e desenvolver cada
vez mais essas possibilidades na esfera do legislativo e da administração penitenciária.
Ressaltamos a necessidade da opção pela abertura da prisão à sociedade e
reciprocamente, da sociedade à prisão. Um dos elementos mais negativos das
instituições carcerárias, de fato, é o isolamento do microcosmo prisional do
macrocosmo social, simbolizado pelos muros e grades. Até que não sejam derrubados,
pelo menos simbolicamente, as chances de "ressocialização do sentenciado continuarão
diminutas.
Não se pode segregar pessoas e, ao mesmo tempo, pretender a sua reintegração.
Todavia, a questão é mais ampla e se relaciona com a concepção de reintegração
social”, conceito que decididamente preferimos aos de 'ressocialização e "tratamento.
"Tratamento" e "ressocialização pressupõem uma postura passiva do detento e ativa das
instituições: são heranças anacrônicas da velha criminologia positivista que tinha o
condenado como um indivíduo anormal e inferior que precisava ser (readaptado à
sociedade, considerando acriticamente esta como "boa e aquele como 'mau, Já o
entendimento da reintegração social requer a abertura de um processo de comunicação e
interação entre a prisão e a sociedade, no qual os cidadãos reclusos se reconheçam na
sociedade e esta, por sua vez, se reconheça na prisão.
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Os muros da prisão representam uma barreira violenta que separa a sociedade de uma
parte de seus próprios problemas e conflitos. Reintegração social (do condenado)
significa, antes da modificação do seu mundo de isolamento, a transformação da
sociedade que necessita reassumir sua parte de responsabilidade dos problemas e
conflitos em que se encontra "segregada" na prisão. Se verificarmos a população
carcerária, sua composição demográfica, veremos que a marginalização, para a maior
parte dos presos, oriunda de um processo secundário de marginalização que intervêm
em um processo primário. É fato comprovado que a maior parte dos presos procedem de
grupos sociais já marginalizados, excluídos da sociedade ativa por causa dos
mecanismos de mercado que regulam o mundo do trabalho. A reintegração na sociedade
do sentenciado significa, portanto, antes de tudo, corrigir as condições de exclusão
social.
Redefinir os conceitos tradicionais de tratamento e ressocialização, em termos do
exercício dos direitos das pessoas presas, e em termos de benefícios e oportunidades de
trabalho - inclusive na sociedade --que são proporcionadas a elas, depois do
cumprimento da pena, por parte das instituições e comunidade, ao nosso ver, constitui
um núcleo importante da construção de uma teoria e uma prática novas da reintegração
dos apenados, de acordo com uma interpretação dos princípios e das normas
constitucionais e internacionais sobre a pena. O outro núcleo é, sem dúvida alguma, a
implementação de estratégias e práticas eficazes de efetiva descarcererização
objetivando que se concretizem as condições culturais e políticas que permitam à
sociedade "livrar-se da necessidade da prisão". de acordo com a formulação com a qual
se afinam profissionais, técnicos e pensadores da Itália. Indicamos somente alguns dos
critérios gerais que podem nortear, segundo nosso ponto de vista, uma criminologia
crítica sobre a questão da reintegração do preso ao convívio social.
Parece-nos óbvio que o trabalho da criminologia crítica, nesse campo, não se reduz a
discursos gerais e ocupa-se com os mais diferentes níveis de preocupações e assuntos
concretos, tanto no referente a política de desaprisionamento como a dos direitos e
benefícios possíveis de realização no contexto da instituição prisional, enquanto esta
permanecer como castigo. Tal concepção afina-se com um sem número de grupos
organizações comunitárias e entidades religiosas e laicas que atuam hoje nas prisões e
assistem o detendo depois de cumprida sua pena.
Se a definirmos nos termos que lhe são próprios e em função dos homens dentro e fora
da prisão, ficará claro que não se pode resolver a questão carcerária aprisionando
pessoas, conservando o cárcere como instituição fechada. Porque o lugar da solução do
problema carcerário é --e diz respeito a - toda a sociedade.
OBS: Estigmatização- Site do CNJ-Quinze novos participantes do projeto “Começar de
Novo” iniciaram na tarde da última quinta-feira (9/11) suas jornadas no Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). Eles são egressos do sistema penitenciário
que ganharam, por meio do tribunal, a chance de uma nova vida. Os novos
participantes, que já cumpriram pena privativa de liberdade, integralmente, ou foram
beneficiados por qualquer causa extintiva da punibilidade, entraram pela porta da frente
do tribunal.
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O projeto “Começar de Novo” tem como objetivo ressocializar cidadãos que vieram do
sistema penitenciário ao oferecer dignidade através de oportunidades de emprego. Essas
posições podem vir a ser efetivadas, depois de dois anos de experiência nas
dependências do tribunal.
OBS: Recorte de Gênero- Com o aumento do número de mulheres privadas de liberdade
em todo o mundo, a importância da implantação de estratégias específicas que devem
ser aplicadas ao suporte oferecido a essas mulheres são importantes medidas sociais. O
objetivo deste estudo é analisar a oferta dos recursos para a reinserção social de egressos
do sistema prisional brasileiro, com o recorte de gênero. A proposta é realizar uma
análise documental sobre estratégias governamentais e não governamentais direcionadas
para este público, com recorte de gênero, por meio de uma matriz analítica pelo período
compreendido entre 2020 e 2021.
CNJ
A seletividade do sistema de justiça penal, já explicitada neste trabalho e alvo de
diversos estudos teóricos e empíricos, está relacionada com uma compreensão da
presença de determinações históricas e sociais, que constantemente se atualizam e se
explicitam a partir de novos arranjos da realidade. Assim: " [...] cuida-se da fundação da
pena pública em estrutura social patrimonialista, que confunde o público com o privado,
em que os instrumentos de coação pertenciam (e ainda pertencem), de fato, às classes
dominantes" (CASARA e PRADO, 2010, p. 353).
Entende-se que, se o processo de criminalização está contextualizado por tal
seletividade, as possibilidades de a pessoa egressa organizar sua vida a partir de
parâmetros legalmente estabelecidos e socialmente aceitos serão ainda mais seletivas.
Ademais, dentre o conjunto existente de pessoas egressas, as que buscam ou que
necessitam dos serviços sociais são aquelas em que os indicadores de vulnerabilidades
se fazem presentes de forma mais contundente.
Os problemas de mobilidade, a dificuldade de obter documentação, a fragilização de
vínculos familiares e comunitários, os problemas para acessar postos de trabalho e
moradia, a presença de antecedentes criminais e do preconceito, a defasagem cognitiva
e informacional, os problemas de saúde e de acesso à Justiça, é a vinculação e
dependência ao 'mundo do crime, são determinantes que se somam e se articulam para
constituir, no dizer dos próprios egressos, um beco sem saída.
Neste sentido, uma política de atendimento da pessoa egressa só terá 'saída' se
reconhecer esta seletividade e se trabalhar no sentido de minimizar seus efeitos.
Assim, conhecendo-se a ação estigmatizante da pena privativa de liberdade (..) a falta de
atenção ao liberado importa no reconhecimento e fomento desta ação do sistema, ou
seja, a intencional facilitação do processo de criminalização secundária".
(ZAFFARONI, 1996, p. 236. Tradução nossa). No entanto, não é possível projetar uma
política de atendimento ao egresso do sistema penitenciário sem a compreensão dos
processos mais amplos que se colocam na estruturação da seletividade que produz estes
sujeitos:
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As consequências da incorporação do ideário neoliberal nas sociedades, que. como a
brasileira, vivem os impasses da consolidação democrática, do frágil enraizamento da
cidadania e das dificuldades históricas de sua universalização, expressam-se pelo
acirramento das desigualdades sociais, encolhimento dos direitos sociais e trabalhistas,
aprofundamento dos níveis de pobreza e exclusão social, aumento da violência urbana e
da criminalidade, agravamento sem precedentes da crise social que iniciada nos anos 80,
aprofunda-se continuadamente na primeira década do século XXI. (RAICHELIS. 2006,
p. 4).
A questão social como elemento constitutivo do processo de seletividade penal
Compreender o processo de seletividade penal é aceitar que sua produção não é
aleatória e acidental, pois se constitui no contexto da desigualdade socialmente
produzida. Adorno aponta que as] desigualdades dos réus em relação a cor,
naturalidade, ocupação e possibilidade de ter advogado constituído, tornam-se também
desigualdades em relação à solução do processo: razões desta ordem concorrem para
que o privilégio da sanção punitiva sobre determinados grupos- negros, migrantes e
pobres em geral, se transforme de drama pessoal em drama social.
Por outro lado, importa sinalizar que a questão social não se constitui apenas como
produção de desigualdades, já que comporta, igualmente, a produção de resistências, na
forma de lutas e conquistas por direitos e ampliação da cidadania. Olhar para as
desigualdades é olhar também para a riqueza que foi socialmente produzida - dos
avanços tecnológicos às legislações - à qual, porém, nem todos têm acesso.
A Presença das determinações sociais, econômicas e culturais no processo pós-
carcerário
Assim como a questão social irá compor e direcionar o processo penal e o cumprimento
da pena daí decorrente, suas expressões também estarão presentes no processo pós-
carcerário, definindo as possibilidades, ou impossibilidades, de enfrentamento das
sequelas da prisão e das limitações delineadas por sua história e sua realidade. Trata-se
de uma condição da pessoa egressa, produzida na mediação das determinações
históricas, suas condições pessoais de resiliência e aquelas dadas pela realidade social
atual
Respeito à pessoa egressa como sujeito de direitos e com participação crítica e
construtiva na vida social
As desigualdades já referidas e presentes em todo o processo penal e de cumprimento da
pena representam sem dúvida uma desigualdade na condição de cidadania. A
condenação à pena privativa de liberdade não representa apenas limites aos direitos de ir
e vir, pois, é mais um componente a marcar a desigualdade e a dificuldade de acessar
outros direitos: saúde, educação, trabalho, entre outros aspectos considerados
equivocadamente como benefícios sociais e não como direitos sociais
constitucionalmente garantidos e, portanto, não para todos. A condenação da pessoa e
não do ato praticado é também a focalização em uma 'classe perigosa' e uma questão
que que surge como obstáculo para a concepção de "direito a ter direitos.
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Novamente, há aqui uma contradição. Por um lado, em tempos de Constituição Cidadã e
de Estado Democrático de Direito, tivemos a crença das possibilidades de ampliação e
de pleno exercício de direitos, aspectos que se colocam no contexto da ampliação dos
sistemas internacional (ONU) e regional (OEA) e a positivação de um amplo elenco de
direitos constituídos, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Mas, de outro
lado, está também o "surgimento ou o aprofundamento de posições ultranacionalistas,
racistas que mostram uma profunda rejeição e criminalização do outro, a naturalização
da pobreza, junto com a persistência e aprofundamento das desigualdades". (WOLFF,
2015, p. 89).
Os processos de redução dos investimentos em políticas sociais e os avanços do
conservadorismo fazem com que nos deparemos com retrocessos e novos limites a
serem enfrentados, o que só poderá ocorrer a partir do reconhecimento do caráter
universal dos direitos e do compromisso ético com os movimentos e lutas por sua
efetivação. Desta forma, 'ser incluído, mais do que ter direitos em um plano ideal, é
poder participar dos processos de luta por sua efetivação e ampliação. Ou seja, incluir-
se é poder incidir na sociedade, superando as barreiras que definem os que são mais ou
menos cidadãos; é ter a efetivação dos direitos legalmente garantidos, mas também a
possibilidade de exercer a participação social e política" (WOLFF, 2011, p. 28).
Esta prática implica em reconhecer-se e reconhecer o outro, como um
[..] indivíduo social com sua capacidade de resistência e conformismo frente a situações
de opressão e exploração vivenciadas; com suas buscas e iniciativas (individuais e/ou
coletivas) para enfrentar diversidades; com seus sonhos e frustrações diante das
expectativas de empreender dias melhores (BEHRING e SANTOS, 2010, p. 276)
Portanto, faz-se necessário adotar pautas de intervenção que contemplem as
especificidades de gênero, geracionais e outras condições presentes na vida dos sujeitos
atendidos, bem como o respeito às demandas específicas decorrentes da diversidade de
cor, etnia, credo, gênero e orientação sexual.
Liberdade como valor ético presente em todo o processo de atendimento da pessoa
egressa.
A liberdade civil não diz respeito apenas ao direito de ir e vir e de terem respeitados os
mais diferentes aspectos do devido processo legal. Sua projeção como valor ético é
pensada para além de seu significado ligado ao processo penal ou à perspectiva liberal e
individualista. Mesmo que vivenciemos muitas determinações, ainda restam muitos
espaços de liberdade e, com isto, a possibilidade de exercício e construção coletiva de
processos emancipatórios.
Interdependência e transversalidade dos direitos
A concepção contemporânea de direitos humanos introduzida pela Declaração
Universal de Direitos Humanos, de 1948, é marcada pela universalidade e
indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque defende a extensão dos direitos,
acreditando que o único requisito para a titularidade de direitos é a condição de pessoa,
entendendo a dignidade como valor intrínseco à condição humana.
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Indivisibilidade dos direitos, pois a garantia dos direitos civis e políticos é condição para
a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Ou seja, quando
um destes direitos é violado, os demais também o são.
Autonomia dos/as usuários/as e de seu protagonismo na definição e condução de seu
projeto de vida
Compreender o egresso do sistema penal como sujeito de direitos significa admitir a
prerrogativa da autonomia dos sujeitos, uma vez que "o respeito à autonomia e à
dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não
conceder uns aos outros" (FREIRE, 1996, P. 59). Desta forma, as ações devem dialogar
com a realidade dos usuários, construindo consensos a partir das diferenças, e não como
um outro a ser subjugado ou submetido à pautas pré-de-finidas. Autonomia "se obtém
quando se adquire a capacidade de ser um sujeito histórico, que sabe ler e reinterpretar o
mundo, quando se adquire uma linguagem que possibilita ao sujeito participar de fato,
compreender e se expressar por conta própria" (GHON, 2008, p.34).
Política Nacional de Atenção às Pessoas Egressas do Sistema Prisional
Questionamentos
No meio de todo esse caos nasce um dilema que atormenta Magistrados das Varas
Criminais e da Execução Penal: na tensão entre o direito da sociedade à segurança
pública e o direito do preso ao cumprimento digno da pena, o que deve prevalecer? Até
que sobrevenham políticas públicas que diminuam a violência e permitam a efetiva
implementação daquilo que é garantido na LEP, há como conciliar esses direitos
conflitantes? Deve o Magistrado fechar os olhos para esse total descumprimento dos
direitos fundamentais da pessoa presa, mantendo o encarceramento e garantindo a paz
social, ou deve ele reconhecer esse estado de completa inconstitucionalidade, pondo em
liberdade aqueles que se encontram recolhidos em condições subumanas? É aqui que
reside o objeto desse estudo: analisar os direitos fundamentais da sociedade à segurança
pública e do preso ao cumprimento digno da pena, buscando uma solução, a curto
prazo, para esse conflito.
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