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Bacamarte em Pernambuco?
René Ribeiro entre 60 xangozeiros de Recife
Bacamarte in Pernambuco?
René Ribeiro among 60 followers
of the Shango religion in Recife
Peter Fry
Professor Emérito do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ
Doutor em Antropologia Social – Universidade de Londres
[email protected]
1
Resumo
Este artigo discute o trabalho do antropólogo e psiquiatra René Ribeiro sobre a
homossexualidade masculina nos xangôs de Recife na década de 1960. Apesar de esta
pesquisa ter sido produzida inicialmente num seminário dedicado à
interdisciplinaridade no estudo da “diferenciação sexual”, argumenta-se que ela mostra
a incompatibilidade entre a antropologia e a psicologia empregadas na pesquisa.
Palavras-chave: Homossexualidade. Religião Afro-brasileira. Tese de Machover.
Abstract
This article discussed a paper by the anthropologist and psychiatrist, René Ribeiro, on
masculine homosexuality in the Shango religion of Recife in the 1960s. Although the
paper was first presented at a seminar on interdisciplinarity in the study of “sexual
differentiation”, it is argued that the paper demonstrates a certain an incompatibility
between the anthropology and psychiatry utilised in the research.
Keywords: Homosexuality. Afro-Brazilian Religion. Machover Test.
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Introdução
Convidado recentemente para escrever sobre a contribuição de René
Ribeiro para a antropologia brasileira, resolvi reler o seu “Personalidade e
ajustamento psicossexual dos fiéis dos cultos afro-brasileiros” (RIBEIRO, 1969b),
que havia lido na década de 1970, quando comecei a me interessar pelas
disputas na relação entre a homossexualidade e as religiões afro-brasileiras1.
Naquela ocasião, prestei pouca atenção ao seu uso da psicologia,
concentrando-me apenas nas suas observações mais sociológicas, que, pari
passu, coincidiram com as de Ruth Landes (LANDES, 1940). Citando os 60
homens do xangô de Recife que entrevistou, Ribeiro ratificou que havia, sim,
uma relação entre a homossexualidade masculina e o xangô. Nesse sentido,
alguns pensavam que a possessão dava uma oportunidade para os
homossexuais exibirem “seus maneirismos ou para se identificar com as
divindades femininas em reuniões lideradas por homossexuais”, ou que “eles
podem também ser traídos por outras necessidades motivacionais complexas
de compensação pelas frustrações impostas a eles por suas posições e
interseções dentro da sociedade mais ampla” (RIBEIRO, 1969b, p. 119).
Na releitura do artigo, porém, percebi que pode provocar uma
discussão interessante sobre a tentativa do autor de lançar mão tanto da
psicologia e da psicanálise quanto da antropologia, para a compreensão da
homossexualidade nos xangôs. Afinal, René Ribeiro se formou como médico
psiquiatra em Recife sob a orientação de Ulysses Pernambucano e, mais tarde,
cursou mestrado em antropologia na Universidade Northwestern, nos Estados
Unidos da América, sob a orientação do fundador dos estudos afro-americanos,
Melville Herskovits.
Nos seus estudos sobre possessão, Ribeiro acabou sendo muito mais
antropólogo do que psicólogo, declarando a possessão como “normal” e
apropriada ao ambiente cultural. Porém, na discussão sobre sexualidade,
enquanto as observações sociológicas/antropológicas do autor derivavam
diretamente das entrevistas com os xangozeiros, e não diferiram muito das de
Ruth Landes (LANDES, 1940), as ilações de ordem psicológica são impostas,
por assim dizer, sobre os seus informantes. À sua revelia, esses xangozeiros se
tornaram exemplares de uma série de desvios e patologias sociais e sexuais.
Há, então, nesse artigo, uma não muito feliz coexistência de perspectivas
1
Sobre essa disputa, ver: Herskovits (1948), Ramos (1942), Carneiro (1964) e Fry (2010, 1977).
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teóricas bastante distintas. Longe de ser um exemplo de interdisciplinaridade,
este artigo demonstra a incompatibilidade entre uma disciplina e a outra. Como
antropólogo, René Ribeiro mostra empatia para com os xangozeiros que
encontram na religião afro-brasileira um santuário. Contudo, como psicólogo,
revela-se portador de teorias da época francamente hostis à homossexualidade.
O artigo de René Ribeiro
O artigo começou a sua vida pública num simpósio que teve lugar no
Instituto Nacional de Saúde Infantil em Bethesda, Maryland, acerca de
“Influências do meio ambiente sobre a Expressão Genética”, em abril de 1969. A
comunicação apareceu num livro chamado Environmental Influences on Genetic
Expression: Biological and Behavioral Aspects of Sexual Differentation
(RIBEIRO, 1969a). O simpósio teve como objetivo juntar especialistas de diversas
tradições disciplinares, como biólogos moleculares, embriologistas, biólogos,
psicólogos, sociólogos, antropólogos e clínicos, para ponderar a respeito da
“diferenciação sexual”, sob a bandeira das virtudes da interdisciplinaridade,
sobretudo a colaboração entre as ciências biológicas e sociais.
Ribeiro apresentou o seu trabalho numa mesa denominada
“Comportamento – Normal e Anormal”. O título é instigante. Lembra-me do nome
da revista científica em que Ruth Landes publicou o seu artigo pioneiro sobre a
homossexualidade masculina nos cultos afro-brasileiros, em 1940, Journal of
Abnormal and Social Psychology (Jornal de Psicologia Anormal e Normal).
Mas vamos ao trabalho de René Ribeiro.
A pesquisa envolveu 60 homens do xangô, que foram entrevistados e
submetidos a um “teste projetivo”, chamado Desenhe uma Pessoa (Draw a
Person), de Machover, “considerado sensível a tendências homossexuais e a
dificuldades na identidade sexual” (RIBEIRO, 1982, p. 211). Para tanto, teve a
ajuda de duas assistentes de pesquisa, as psicólogas Carmen Maria Mota
Cardoso e Norma Lúcia do Amaral Cesar, “que também avaliaram e
interpretaram os desenhos” (RIBEIRO, 1982, p. 214).
Como eu nada sabia sobre esse teste, fui investigando a sua história,
as suas pretensões e a sua base “teórica”. Entrei num terreno que considerei
detentor de um dos mais estranhos costumes jamais revelados pela etnografia.
Desde o início do século 20, psicólogos se interessavam em interpretar
desenhos como uma via de acesso não verbal à personalidade, ao
140
desenvolvimento e à inteligência de crianças. Em 1949, porém, uma psicóloga
norte-americana, Karen Machover, formalizou o teste citado, que é usado até
hoje (MACHOVER, 1949).
Apresenta-se uma folha de papel à pessoa a ser testada, a qual é
instruída a desenhar uma pessoa. Quem aplica o teste observa o sexo da pessoa
desenhada e, em seguida, pede ao desenhista que faça uma outra pessoa do
sexo oposto. As pessoas desenhadas são vistas como projeções do
inconsciente do desenhador, por isso a denominação “teste projetivo”.
Machover e muitos pesquisadores que vieram a aprimorar esse método
acreditaram poder vislumbrar diversos aspectos da personalidade dos sujeitos.
Entretanto, o que interessa nesse contexto é como esse teste foi usado (pode ser
que continue sendo usado) para detectar aspectos da sexualidade dos sujeitos.
Como o corpo desenhado supostamente revela o inconsciente do
sujeito, aqueles homens que desenharam primeiramente mulheres eram
suspeitos de terem tendências homossexuais.
Segundo Machover, a “análise psicanalítica teorizou que já que
homossexuais masculinos fazem associações de vergonha e uma fixação nas
partes dos seus próprios corpos (nádegas e quadris), eles enfatizariam essas
partes no primeiro teste” (MACHOVER, 1949 apud ORNSTEINER, 1999, p.
30). “É bastante comum ver a figura de um homem retorcido na sua perspectiva
para poder focar numa nádega muito ampla. Isso pode ser visto em figuras com
e sem roupa, de frente ou de perfil. Muitas vezes, a área dos quadris mostrará
confusão, uma quebra de linha, ou uma amplificação particular, juntamente
com um tratamento conspícuo das nádegas” (MACHOVER, 1949, p. 33).
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Legenda: Desenhos extraídos de Ornsteiner, Joel Von. 1999. “The validity of selected draw-a-
person test classifying criteria among homosexual and non homosexual males”, PhD thesis, The
School of Graduate Studies Department of Education and School Psychology Indiana State
University, Terre Haute, Indiana.
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Após testar os 60 xangozeiros, Ribeiro concluiu que “34 (57%)
exibiram graus variados de desequilíbrio emocional e conduta desviada, desde
o homossexualismo aberto ou disfarçado a problemas de adequação sexual aí
incluído o alcoolismo” (RIBEIRO, 1982, p. 211).
Em seguida, dividiu seus entrevistados em três categorias:
homossexuais; pessoas com dificuldade de identificação sexual; e outras com
adequação sexual defeituosa.
Homossexuais: “Quatro eram francos homossexuais, membros de
grupos dirigidos também por homossexuais [...] Mostram dependência
maternal, introversão, imaturidade, egocentrismo; alguns são exibicionistas,
narcisistas, maneiristas, com sentimento de culpa, suspeita e timidez. Todos
têm grande dificuldade no relacionamento com a imagem feminina” (RIBEIRO,
1982, p. 211).
Os que têm dificuldade de identificação sexual: “Dezesseis
indivíduos que desenharam em primeiro lugar uma figura feminina, porém
negavam praticar o homossexualismo nem eram tidos como homossexuais por
seus companheiros, mostraram elementos reveladores em sua definição das
figuras paterna e materna e também no seu relacionamento com as mães. [...]
Somente dois jamais haviam experimentado possessão ou tinham resistido a
esta” (RIBEIRO, 1982, p. 211). Esses dois tiveram pais punitivos e mães
“calmas e protetoras, suaves (em alguns casos também punitivas, fortes,
autoritárias, porém possessivas). As personalidades desses indivíduos eram na
maior parte egocêntricas, narcisistas, introvertidas, com dificuldade no
relacionamento com a imagem feminina. Agressão e sensitividade no
relacionamento social, sexualidade desviada, conflitos quanto à virilidade,
insegurança e confusão na identidade sexual e tendências homossexuais eram
outras características dessas personalidades” (RIBEIRO, 1982, p. 211).
Outros sete fieis, a maioria sem possessão, “o que é considerado pelos
especialistas como sinal de desequilíbrio da personalidade. Diziam eles de suas
mães que estas eram as figuras dominantes, enquanto seus pais eram
submissos, neutros, ausentes [...] As personalidades desses indivíduos eram
introversivas, [sic] narcisistas, egocêntricas, imaturas, com insegurança,
reações dependentes de suas mães, eles também mostravam tendências
homossexuais mais ou pânico homossexual e inadequação sexual” (RIBEIRO,
1982, p. 212).
Adequação sexual defeituosa: identificou 14 nessa categoria, “cinco
dos quais alcoólatras”. A partir disso, falou sobre os males do alcoolismo, que
considerou não muito diferentes do homossexualismo: “Culpa, agressão,
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angústia, necessidade de autoafirmação e dominância, falta de controle dos
impulsos com consequente culpa ou suspeita, dependência materna ou
dificuldades no relacionamento com mulheres, insegurança quanto à
virilidade, falta de adequação sexual e tendências homossexuais eram os traços
principais dessas personalidades” (RIBEIRO, 1982, p. 213). Define os outros
9: “Quase todos esses indivíduos sentiam inadequação sexual por duvidarem
da sua virilidade ou terem compulsões homossexuais, ou hostilidade para com
a imagem feminina. Alguns recorriam a práticas autoeróticas ou praticavam
imoralidades” (RIBEIRO, 1982, p. 213). Eram, ele pontifica,
“psicossexualmente imaturos, narcisistas, alguns afeminados ou introvertidos,
egocêntricos ou infantis [...] Metade deles nunca experimentou a possessão,
uma indicação de séria perturbação emocional” (RIBEIRO, 1982, p. 213).
Tendo estabelecido a homossexualidade dos entrevistados, procurou
explicar as suas causas. Atribuiu a fatores familiares, e não biológicos, a gênese
da homossexualidade. “É reconhecido que a interação com pais e mães e a
influência deles é de suma importância na orientação psicossexual do
indivíduo, desde que as teorias biológicas e constitucionais foram demolidas
por John Money e outros” (RIBEIRO, 1982 p. 221).
Em seguida, citou Irving Bieber para emitir o que tem sido desde Freud
o principal clichê sobre a gênese familiar da homossexualidade:
A constelação parental mais capaz de produzir um
homossexual ou um heterossexual com graves problemas
homossexuais é, na sua opinião, um “pai desinteressado,
hostil e uma mãe envolvente, íntima em demasia e sedutora
que domina e rebaixa o seu marido”. Essas mães também
podem ser possessivas, dominantes, superprotetoras,
exigentes, que ajam para desmasculinizar seus filhos. Elas
podem ser puritanas e sexualmente frias e interferir com os
interesses heterossexuais de seus filhos na infância e na
adolescência, tratá-los como crianças e protegê-los nas
atividades normais ou das “grosserias dos jogos infantis”.
Além disso, podem ser desligadas, abertamente hostis ou
tendentes a rejeitá-los (RIBEIRO, 1982, p. 212).
Além disso,
a dependência da mãe e a hostilidade ao pai coexistem no
homossexual com a resolução mórbida do complexo de
Édipo. O indivíduo que teme e odeia o pai “sexualmente
destrutivo” ou “fraco e inadequado” e depois projeta
sentimentos de dependência, competição e hostilidade
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para com outros machos passa a ver a heterossexualidade
como ameaçadora, conflitante e inadequada (RIBEIRO,
1982, p. 213).
Como num passe de mágica, o autor relacionou as teorias sobre a
gênese familiar da homossexualidade às constelações familiares dos pobres e
negros de Recife. Os seus informantes eram oriundos “do segmento onde se
confina a maior parte dos descendentes mais pobres dos antigos escravos
negros” (RIBEIRO, 1982, p. 209). Ele comenta que, “antes de filiação, já
participaram de uma distinta cultura de pobreza permeada por elementos das
culturas africanas aqui introduzias como consequência do tráfico escravista.
Um dos traços particulares nestas é a posição especial da mulher” (RIBEIRO,
1982, p. 210)2: “parece-nos importante apontar aqui a relativa independência
econômica dessas mulheres e o costume do casamento consuetudinário, o que,
em conjunto, leva a famílias compostas, centradas em torno da mãe, pais de
arribação e maior liberdade sexual e social feminina”.
Ele continua:
Sejam eles homossexuais declarados ou machos com
dificuldade de identificação sexual, são o resultado de
situações conflitivas experimentadas no lar com o tipo
especial de família centralizada em torno de mãe
característico da subcultura afro-americana das classes
sociais mais baixas. Daí os tipos de personalidades
introversivas, [sic] imaturas, infantis, narcisistas,
egocêntricas, adorando as mães e odiando os pais, com
inadequação social, sensitivas e ambivalentes quanto ao seu
papel sexual, o homossexualismo declarado ou reprimido que
encontramos em grande número (RIBEIRO, 1982 p. 212).
A conjugação das teorias freudianas e neofreudianas sobre a relação
entre constelações familiares e homossexualidade e a família considerada
típica das camadas negras e pobres de Recife determinaria, pela lógica, que
nenhum filho pobre e negro de Recife não tivesse tendências homossexuais.
Porém, o nosso Bacamarte3 logo desmancha essa conclusão, alargando o solo
fértil para a produção da homossexualidade e seus males congêneres para as
camadas mais abastadas da cidade.
2
Aqui podemos lembrar que o orientador de mestrado de René Ribeiro, Melville Herskovits, disputou com
Franklin Frazier as razões de existir das famílias matrifocais que ambos observaram em Salvador. (HERSKOVITS,
1943; FRAZIER, 1943a; FRAZIER, 1943b). Enquanto o primeiro argumentava que tais famílias representariam
uma “sobrevivência africana”, Frazier sustentava que eram característica da pobreza, tout court.
3
Em O Alienista de Machado de Assis, o alienista Simão Bacamarte constrói um asilo de loucos. Aos poucos,
coloca todos os cidadãos de Itaguaí nele, até precisar soltá-los para se colocar, ele mesmo, lá dentro.
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Em nossa experiência clínica um número de pacientes da
classe média superior e da classe alta tinha dificuldade de
identificação sexual e homossexualismo passivo como
consequência da influência nefasta de constelações
familiares semelhantes àquelas da tipologia acima
apresentada. Pais autoritários e mães submissas, porém
permissivas e protetoras, ou então enérgicas e punitivas
mas ao mesmo tempo possessivas, ao lado de pais
ausentes, neutros, submissivos [sic] e seus rebentos
introvertidos, narcisistas, egocêntricos, sensitivos,
agressivos, culposos, pegados às mães, lutando por
reconhecimento social, afirmação viril ao mesmo tempo em
que lutam contra suas pulsões homossexuais e sua
confusão e ambivalência sexual, podem ser encontrados
além dos estamentos sociais saturados por elementos das
culturas africanas (RIBEIRO, 1982, p. 215).
Até esse ponto no argumento, os homossexuais são todos os filhos das
famílias matrifocais, e não apenas os xangozeiros. Como R. Landes (inimigo
mortal do seu orientador, aliás4), ele interpreta esse aspecto através de um
argumento funcionalista:
Os homossexuais ou as pessoas sexualmente desajustadas
podem aderir aos grupos de culto afro-brasileiros por
muitas razões, entre elas a companhia feminina, a
necessidade de exibirem seus maneirismos ou de se
identificarem com esses femininos em grupos dirigidos por
homossexuais, ou por homem e mulher austeros,
igualmente dedicados ao controle do sobrenatural. Eles
também podem ser impelidos por outras complexas
necessidades motivacionais de compensação das
frustrações que lhes são impostas por suas posições e
interações na sociedade ampla (RIBEIRO, 1982, p. 217).
Além disso, ele sugere, a mitologia oferece “modelos de
comportamento [...] alguns andróginos, como Oshala e Yansan, sexualmente
'livres', como Oshun e Shango, ou imprevisíveis como Eshu) ou recordam seus
feitos eveheméricos” (RIBEIRO, 1982, p. 210).
Resumindo: o artigo parte do pressuposto de que a ciência psicológica
é capaz de identificar os “desviantes”. Através das entrevistas e dos testes, o
cientista define os seus objetos de pesquisa de acordo com as suas próprias
4
Herskovits (1948) escreveu uma resenha arrasadora do livro Cidade das Mulheres, de Landes (2002 [1947]).
148
categorias analíticas. É uma espécie de negação da antropologia, que, com
sabemos, parte do ponto de vista dos nativos. Em seguida, vêm da psicanálise
as causas dos seus desvios (as famílias). Para explicar por que gravitam para os
cultos afro-brasileiros, invoca-se a antropologia funcionalista de R. Landes.
Nesse momento, de fato, aparece o ponto de vista dos nativos, inclusive o nojo
que muitos deles sentiram para com a homossexualidade. Todos, com exceção
dos “homossexuais confessos”, usaram estas expressões: “nauseabundos;
piores homens que existem na terra”; ou “vergonhoso”, ou “se dependesse de
mim não ficava um no culto etc.” (RIBEIRO, 1969b, p. 216).
A presença desses três paradigmas, um ao lado do outro, é certamente
devido à formação de René Ribeiro como médico psiquiatra e antropólogo e às
diretrizes interdisciplinares do simpósio “Influências do meio ambiente sobre a
Expressão Genética”, em que o artigo foi apresentado pela primeira vez. Como
psiquiatra, Ribeiro se sente à vontade com os testes psicológicos e as
interpretações neofreudianas, classificando e interpretando os seus
informantes à revelia deles mesmos. Contudo, como mestre em antropologia,
sob os auspícios de Melville Herskovits, ele apreende sobre os aspectos
sociológicos das famílias matrifocais de gente negra e pobre e faz com que
aprecie o texto de Ruth Landes para explicar por que os homossexuais
gravitavam para os xangôs. Finalmente, penso que se poderia argumentar que
o fascínio por e defesa dos xangôs de Recife, ao mesmo tempo que se afinava
com os demais estudiosos brasileiros da sua época, também devia algo ao seu
mentor Herskovits, que tanto fez para rechaçar os preconceitos contra as
culturas africanas e dos negros no Novo Mundo, ao demonstrar a coerência e a
beleza das culturas afro-americanas.
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