Emoção na Educação e Ciência
Emoção na Educação e Ciência
EMOÇÃO E EDUCAÇÃO
RESUMO
A Modernidade se estruturou em torno da busca por certezas fundantes da realidade observada. Tais
certezas eram consideradas tanto mais verdadeiras quanto mais distantes se situassem da interferência das
emoções dos pesquisadores que as enunciassem. O século XX, porém, trouxe consigo abalos nesse edifício
das certezas, e vários pensadores passaram a tecer reflexões em torno do quanto o fazer científico está
igualmente impregnado do universo político, histórico, social e emocional do investigador. Nesse sentido, o
presente trabalho pretende problematizar a interferência das emoções na vida cotidiana e, em especial, no
espaço profissional do professor. Utilizamo-nos, então, da concepção do biólogo Humberto Maturana a
respeito da dinâmica do emocionar enquanto produtora de realidade e, a partir da apresentação da história de
vida de uma professora, procuramos mostrar como vivências emocionais fazem emergir diferentes posturas
racionais que, por sua vez, orientam a ação do sujeito. Propomos, assim, que as práticas emancipatórias na
educação levem em conta, além dos aspectos técnicos, a experiência do emocionar dos professores,
experiência esta que orienta modos de enxergar e exercer a profissão.
PALAVRAS-CHAVE
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Contudo, principalmente no século XX, as perspectiva no estudo do objeto das ciências: não
noções de controle absoluto da natureza e a se prender ao fato pronto, mas sim aos
concepção de contínuo progresso da Humanidade, movimentos e ações nos quais ele é construído.
tão caras aos modernos, ruíram quando Dessa maneira, damos um salto qualitativo de
confrontadas com duas guerras mundiais, a quebra objetos e fatos para processos e práticas, os quais
da hegemonia newtoniana na Física (e, colocam em movimento diferentes maneiras de
conseqüentemente, em todas as outras ciências), produção de realidade. Não estaríamos mais
os inquietantes argumentos da Psicanálise diante de uma busca por verdades absolutas, mas
(postulando as dimensões inconscientes do fazer por modos de existência nunca totalizáveis, que se
humano), o fim dos impérios europeus, as materializariam tanto no fazer cotidiano mais
incertezas sobre o futuro da Humanidade (Guerra inócuo, quanto na prática científica
Fria, bomba atômica), dentre outros. Todo um tecnologicamente mais avançada.
sonho de estabilidade, crescimento contínuo e
extermínio crescente dos sofrimentos foi colocado No momento em que o sujeito passa a ser
em xeque. problematizado dentro das ciências, elaboram-se
outros olhares a respeito da dinâmica das emoções
O Princípio da Incerteza, proposto no na construção das mais diversas práticas sociais.
século XX pelo físico alemão Heisenberg para Não mais teríamos um ser humano centrado em
explicar a impossibilidade de se controlar uma essência indivisível e natural (como queriam
totalmente o movimento das partículas atômicas, as pesquisas modernas, principalmente as de
pode ser tomado como metáfora da condição de orientação positivista), mas um ser humano
imprecisão em que se encontraram os atores marcado pela pluralidade e pelo nomadismo
sociais de todas as ciências, quando perceberam (subjetivo e social). Tal perspectiva nos é
que o fazer científico e o fazer humano nada apresentada por Maffesoli (2001, p. 113) quando
tinham de absolutamente exatos e objetivos. ele nos diz que: “Há uma alma desconhecida no
Havia uma série de ruídos e flutuações, de afetos e seio de cada indivíduo, mas também no seio do
sensações, que produziam movimentos inusitados, conjunto social. Quer dizer que o ‘eu’ tem uma
imprevisíveis. E era necessário prestar atenção e infinidade de facetas, assim como a sociedade não
dar ouvidos a tais movimentos. é mais do que uma sucessão de potencialidades”.
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zona rural intensificava, ao que parece, a sensação frente à minha casa, um ia para casa do outro.
de se sentir isolada. É nesse momento, então, que Eu ficava em casa, não podia sair, e quando eu
o espaço escolar surge em sua vida de infância saia ele brigava, sabe. O meu pai era bem
como sendo uma dimensão de encontros e maior chato mesmo. E acho que nisso eu estava com
uns treze anos, mais ou menos, e eu não saí.
liberdade. Ela nos diz que:
Eu fiquei meu final de ano todo em casa, para
ele não brigar. Ele falava as coisas na hora
Quando eu era criança eu morava na roça, e eu
errada. Eu não tinha muita liberdade.
nunca gostei de morar nesse lugar. Mesmo
sem ter morado em outro antes, lá eu não
gostava. Aí é eu acho que foi isso que me fez E acrescenta:
estudar mais. Pra sair de lá e assim, e então
comecei a estudar fiz magistério. [...] Na roça Meu pai sempre foi muito rígido, conservador,
não tinha muitas pessoas perto, sabe. Então ninguém nunca foi assim de questionar as
tinha mais casas bem pra cima do lugar em ordens dele. Minha mãe também não... E
que eu morava. Eu não podia sair de casa, meu então todo mundo assim sempre obedeceu.
pai não deixava eu sair. Aí, eu gostava de ficar
onde tinha mais gente, eu adorava ir para a Assim, temos que a entrevistada cresceu
escola, porque lá eu podia brincar mais, tinha em um mundo de sentido onde não apenas o
com quem brincar. E se eu ficasse ali, eu ia movimento geográfico se tornava restrito, mas
ficar sozinha por mais tempo. também o movimento de pensamentos, de idéias,
de opiniões. Ela ansiava por novos horizontes;
Sair da roça era, portanto, mais do que ansiava por querer falar dos sentimentos que
apenas se deslocar geograficamente, mas também nutria em torno de suas expectativas, porém, ao
sair do jugo de uma dinâmica familiar que a mesmo tempo que ambicionava por uma abertura,
reprimia mas que, por sua vez, trazia a sensação concebeu toda uma postura de fechamento e
de uma segurança encarnada na intransigente restrição a si própria.
autoridade paterna. Os espaços restritos de ação
(tanto geográficos quanto afetivos) parecem ter A infância e adolescência marcada pela
produzido interferências no seu relacionamento ausência de diálogo, pela evitação aos conflitos,
com outras pessoas fora da família e na maneira pela submissão irrestrita a autoridades, pela
de se comportar e perceber as situações. Assim, o proibição ao movimento emancipatório..., são
universo novo da escola (que abriu espaço para fatores que compõem o emocionar dessa
amizades, namoros, novos conhecimentos), professora, produzindo modos de conceber a si
mesmo sendo uma novidade desejada, foi mesma e um mundo que surge concomitante ao
confrontado com uma produção de mundo seu viver. Porém, essa produção de realidade não
(fechado, restrito, imobilizado) que fazia com que se dá exclusivamente a nível da particularidade da
ela adotasse uma postura que consistia em ficar: entrevistada, mas envolve toda uma rede dinâmica
de relações familiares e sociais, onde se arquiteta
Sempre reservada. Tive dificuldade com um mundo de sentido no silenciamento e no não
relacionamento amoroso, amizades porque eu conflito. Assim, mesmo saindo da zona rural,
não sabia como lidar com esses sentimentos
mesmo se formando, mesmo tendo uma
de ...(pausa) tudo...eu acho que mais era
timidez. Eu não conseguia me expressar. Em autonomia financeira garantida pelo seu trabalho,
minha casa também era assim. Meu pai... não ela igualmente vai produzindo ações e práticas de
tinha muita conversa com ele. Hoje eu acho vida que fazem consonância com as significações
que converso mais com ele. Quando eu era existenciais erigidas nas teias relacionais em que
pequena não, e eu acho que era um pouco por se meclam, de maneira indissociável, o seu
isso. Sempre assim... nunca podia conversar ambiente rural, o ambiente familiar e o universo
muito, às vezes conversava e ele não dava social mais amplo.
atenção para aquilo que a gente falava. E
quando a gente reclamava, ele dizia que não E tal posicionamento emocional de
tinha falado. E era porque não escutava a
“encapsulamento” da professora se estendeu para
gente. Eu me lembro de um final de ano. Eu
acho que eu não gosto de final de ano até hoje, sua prática profissional, como podemos perceber
por isso. Porque sempre quando chegava final quando ela nos relata que:
de ano, eu morava entre as casas de meus
avós. E sempre vinha primos para casa deles, e Só não achava que eu ia dar muito certo para
todo mundo brincava, corria, passava em trabalhar como professora... ah! Eu acho assim
que eu sou muito calada, e quando eu
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chegasse na sala eu não ia conseguir falar mais com quarta série. Eu acho que eu consigo
nada; ninguém ia entender nada que eu ser melhor um pouquinho com a primeira
explicasse. série... segunda.
manter universos harmônicos com suas propostas Independente de outros olhares do que
de vida. Tais harmonias pressupunham venha a ser educação, o sentido que ela propõe
ordenações estáveis dentro das quais não havia parece-nos dizer muito a respeito de como ela
estranhamentos ou movimentos imprevistos que própria se pensa e se orienta em um mundo
forçassem o parto de outros sentidos não construído em seu emocionar. O “lá fora”, no
previamente mapeados. relato acima apresentado, é para ela uma
experiência perigosa, sendo que concebe a
E é compreendendo o mundo que esta educação como sendo uma orientação para se
professora engendra a partir de seu emocionar, enfrentar os perigos de “uma vida lá fora”. A
que podemos entender igualmente os sentidos que dimensão do que é exterior surge novamente
ela produz em torno de sua prática cotidana e da como uma instância a temer, da mesma forma
própria educação enquanto projeto social. A partir como o que era exterior a sua casa (mundo
da intepretação do relato que nos foi oferecido, estático, conhecido e mapeado) tinha auras
entendemos que entrevistada objetiva a uma proibitivas. A escola, enquanto instância de
educação que traga ordenações, explicações confronto com o mundo perigoso que é o “lá
verdadeiras e não conflitivas. Uma educação que fora”, substancializa-se como sendo uma
priorize a harmonia (muitas vezes harmonia dimensão da verdade. A escola passa a ser o “aqui
paralisante, uma vez que os conflitos são dentro” que transmite o certo; já o “lá fora”
impedimentos) a dissensos criativos. Sua própria transmite idéias erradas. E a entrevistada, como
visão a respeito da escola em que trabalha traz membro da escola, e pressupondo-se uma
consigo a marca de que a ausência de conflitos é autoridade da verdade, acaba nos parecendo
sinônimo de bem estar profissional. Ela nos diz assumir, paradoxalmente, a autoridade absoluta
que: que criticava na postura de seu próprio pai. E,
protegida na crença de que está ao lado da
Estou trabalhando desde que me formei no verdade, do certo, dentro de uma escola onde
magistério em 1998, tem oito anos. E eu gosto trabalha com crianças que não a questionam, ela
muito do que eu faço, não tenho nenhum se vê novamente escudada dos conflitos, da
problema aqui na escola com ninguém. mesma maneira que toda sua família (inclusive
seu próprio pai) se protegeu quando se fechou “no
Gostar do que se faz, portanto, está dentro” da casa, na tentativa de se preservar de um
relacionado a não ter problemas. Assim, temos mundo mutante, incerto – e por isso mesmo
que a sua busca por fazer as coisas “de modo perigoso – que se desdobrava bem ali nas
correto”, de não ir contra expectativas, está muito imediações do próprio quintal.
enraizada na sua maneira de produzir um sentido
de educação. Isso se torna perceptível quando a
professora é indagada a falar a respeito de como CONSIDERAÇÕES FINAIS
enxerga o seu papel no processo educacional. Diz
ela que a educação: Então, se segundo Maturana a experiência
do emocionar ocorre na dimensão da
É Orientar... preparar esses meninos para
corporeidade, temos que o corpo, por sua vez, não
enfrentar uma vida lá fora. Às vezes eles
chegam com uma opinião equivocada. Eles é unicamente uma instância biológica. O corpo é
acham...eles chegam pensando de uma forma composto em diferentes interferências sociais e
errada. Às vezes a gente vai orientando... vai não sociais, sendo um emergente de uma rede de
trabalhando um assunto na sala. E isso às fatores em interação. O corpo se inscreve em uma
vezes faz com que eles pensem na opinião que dinâmica complexa, habitando uma zona de
eles têm. Eu vejo acontecer muito isso, a gente fronteira entre diferentes saberes. Por isso, quando
falar alguma coisa com eles na sala e quando discutimos a respeito do emocionar como
eles comentam em casa, aí a mãe fala alguma produtor de universos de sentido, temos que tal
coisa lá, e quando eles chegam aqui eles emocionar não é uma esfera exclusivamente intra-
comentam às vezes completamente diferente
subjetiva e ou biológica que nada diz a respeito da
do que a escola quer para eles. Às vezes lá
fora eles não aprendem de uma forma certa. história social do corpo e do sujeito encarnado.
Enquanto que a escola quer passar para eles o Muito pelo contrário, o corpo e seu emocionar são
certo. eminentemente sociais. Guattari (1990) irá
sustentar que, em vez de nos referirmos a um
sujeito autônomo, deveríamos entender que tal
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Quando, então, nos encontramos com os HESSE, Hermann. O lobo da estepe. Rio de
professores nas mais diferentes instâncias de Janeiro: Record, 1993.
intervenção educacional, encontramos também
com mundos tão legítimos quanto diversos, que LATOUR, Bruno. Ciência em ação. São Paulo:
fazem rede com outras tantas – e invisíveis – UNESP, 2000.
produções sociais. Essa proliferação de mundos,
colocando em cena tamanha cacofonia de valores MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo. Rio
e concepções, se por um lado tende a produzir de Janeiro: Record, 2001.
incômodos e vertigens, por outro se sustenta como
uma esperança de multiplicação de propostas MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem
possíveis, uma vez que as práticas emancipatórias na educação e na política. Belo Horizonte:
estão mais ligadas à polifonia dos sentidos do que UFMG, 1998.
propriamente a uma univocidade do discurso. É
no cotidiano silencioso e tantas vezes não MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco.
intelectualizado dos professores e alunos, que as A árvore do conhecimento. São Paulo: Editorial
práticas educacionais tomam as mais diversas Psy II, 1995.
faces, misturando-se com o emocionar de
indivíduos que as gestam junto com o mundo que
eles próprios compõem no existir.
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