A Casa Da Bruxa
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A floresta tinha sido fechada por uma grande florada de primavera, que a fez mais
escura que o normal, com flores e arbustos com diferentes espécimes.
Os fantasmas que vagavam de forma alucinada, por uma escuridão intrépida,
estavam monótonos de serem somente, classificados como alguns vagalumes gigantes,
tendo as borboletas como suas companhias principais.
Às vezes algum pirilampo ou sapinho, dava o ar da graça.
Seus truques de medo, já não assustavam mais assim, e cultivavam sua nostalgia
de sustos, contemplando a velha casa caindo aos poucos.
A Bruxa Cartuxa, na Idade Média tinha a ideia de vim a se tornar freira, mas seu
envolvimento lascivo com um jovem noviço a fez, cair nas chamas sagradas da Inquisição,
mas que antes do seu desfecho chamuscador, havia jurado ao seu confessor que
abandonaria toda a sua consagração cristã, para assim servir ao mal, mesmo que para
isso passasse por toda eternidade sem mais nenhuma companhia.
E assim foi feito, foi executada, mas sua alma passou a rondar os recantos e as
brumas das florestas de Yorkshire.
Com o seu aprendizado de feitiçaria, sendo outorgado por outras meretrizes cristãs
que tiveram seus mesmos desfechos iguais ao seu, por conta de seus pecados, jurou
atormentar os vivos, através da companhia de criaturas, que não foram abençoadas
completamente por Deus, e que também, demonstrariam toda a sua ferocidade para suas
perfeições divinas, perante a disseminação de um medo sem limites.
Cartuxa fez sua promessa de maleficidade com maestria, atormentou e amedrontou
tanto homens, mulheres, crianças, levando alguns a serem trancados em leprosários como
insanos, vindo a sofrerem todo tipo de tortura, para que supostamente assim viessem a
recuperar um pouco do “seu juízo”, diante a intransigência e fanatismo de monges e
médicos, pouco ainda familiarizados com o “racionalismo aristotélico, ou com a
liberdade de compreensão da natureza outorgada pelas ideias confucionistas”.
Mesmo sem poder tocar naquelas pessoas que sofreram perante as torturas dos
inquisidores, continha um ar pavoroso de saber a boa sensação em ver todo suplicio ser
jogado para fora, por aqueles seres humanos, que não se importavam em cometerem todo
tipo de barbaridade em nome de uma confissão, que era tirada das suas entranhas,
sendo vitimadas pelos piores tipos de dores e tormentos, que algum mortal poderia
suportar.
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— Assim como sua solidão, e seu esquecimento minha cara feiticeira. Sei bem, que
uma das situações que mais assusta toda e qualquer criatura, sendo de inspiração divina,
é o medo do esquecimento, e sinto que está abandonada assim como eu, ao seu próprio
reles, seu destino não está sendo muito diferente do meu.
Cartuxa fica com frenesi entre a frieza e a loucura.
— És tão pecador, como eu Aurelius. Quando sua espada era retirada da sua
bainha, muito sangue inocente foi lambuzado por sua lamina. Sabes que se eu não o
punisse, pela sua ousadia em tentar me destruir, através de sua fé malévola, quando
chegasse a hora derradeira de sua partida desse mundo, “o todo – poderoso”
dificilmente o perdoaria. “Em Verdade, Em Verdade eu vos digo”, eu salvei você das
chamas eternas, e dei essa lavoura cheia de pragas para você contemplar, por toda a sua
eternidade malfadada.
— Não adianta querer chamar sua atenção, e implorar por clemência, já que dentro
de uma ânsia de medo de arrependimento, você Cartuxa prolifera os mais variados tipos
de pecados, contra nós, que buscamos perdão, enquanto você, criatura vil, pensa em estar
fazendo algum tipo de eloquência criadora, defronte a construir caminhos de misericórdia
entre os infelizes que cruzam o caminho de sua vassoura.
— Não! Mas não mesmo Aurelius! Eu apenas sou mais uma peça nesse imenso
quebra-cabeça, que seu Deus criou, para que por meio de todas as criaturas visíveis e
invisíveis, possamos buscar alguma possibilidade, de que diante, a sua luz celeste, possa
angariar um perdão para todos nós pecadores. Sobrando as migalhas de um amor que
somente existe para aqueles que se submetem a todas suas vontades, sem nenhum tipo
questionamento ou arrependimento.
Aurelius suspira, sabe que sua missão mais uma vez falhou, vai continuar um
Espantalho sendo exposto, durante as quatro estações do ano, enquanto Cartuxa
desaparece por entre nuvens negras, almejando não deixar seu caldeirão esfriar. Afinal
Espantalhos, é só mais um produto, de suas receitas amaldiçoadoras.
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Wilto e Maduk eram amigos desde a infância no vilarejo de Djauru, que ficava à
oeste da Floresta dos Sussurros. Gostavam de ouvir as lendas populares sobre
assombrações, criaturas míticas e monstros que eram vistos além dos limites das
redondezas. Ouviam especialmente histórias assustadoras envolvendo a bruxa Meghadra,
com seus olhos negros e dentes afiados como agulhas. Passaram boa parte de sua
infância e adolescência cultivando um misto de medo e admiração por ela.
Caminharam por entre pés de milho que pareciam nunca terminar. Por fim
chegaram em um jardim repleto de lápides e estátuas.
— Acho que no final das contas era tudo história. Vamos voltar e tomar um vinho
para celebrar o fim dessa história.
— Peraí, cara, deixa eu dar só mais uma olhada ali nos fundos, só para desencargo
de consciência.
— Está tarde, esse lugar é muito sinistro e eu estou cansado. Você sabe que eu só
vim para te fazer companhia.
— No fundo você sabe que quer chegar ao fim desse mistério. Qualé! A gente
conversou sobre isso a vida inteira e agora que a gente chegou aqui você quer ir embora?
Espera só mais um pouco, o que vai te custar?
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Mais uma vez ele seguiu o amigo, mesmo sabendo que aquilo era uma péssima
ideia. Por fim avistaram uma pequena cerca de pedras que cercava o que parecia ser um
pequeno alojamento subterrâneo, com uma escadaria que se perdia na escuridão.
Enquanto um deles obviamente celebrava, o outro ponderava:
— Como assim?
Maduk nem estava mais com medo. Estava com raiva da teimosia do seu
amigo. Wilto criou uma tocha usando a própria camisa e acendeu numa vela solitária que
estava ao pé de uma estátua. Ouviram um guincho assustador assim que desceram os
degraus. O local era mais vasto do que parecia e um deles parecia estranhamente
hipnotizado por tudo aquilo, enquanto o outro só queria ir embora. Um corredor enorme
com várias portas se apresentava diante dos dois.
— Tanto a descobrir.
Abriram a primeira porta à direita. Era uma espécie de Biblioteca, com duas estantes
repletas de livros e jarros cheios de líquidos de cores diversas. Também havia uma mesa
de madeira com algumas cadeiras e um livro aberto. Foi então que Maduk olhou para a
porta e avistou o que parecia ser um vulto preto caminhando no corredor.
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caiu num poço bastante profundo. Sentiu descargas elétricas percorrendo todo o seu corpo
e tudo o que desejou naquele momento foi que aquele pesadelo terminasse. Foi o seu
último pensamento antes de ficar inconsciente.
Acordou deitado na manhã seguinte, no alto de uma montanha, sem entender como
tinha parado ali, com uma forte dor de cabeça e sentindo todo o seu corpo latejar. A pasta
tinha misteriosamente saído de seu rosto, será que entrou pelos poros? Sentia muita sede.
Correu em direção a um riacho que avistou perto de onde estava e enfiou a cara dentro,
bebendo a água com o desespero de alguém que acabou de sair de um deserto. Era a
ressaca mais estranha que ele já tivera, sem sombra de dúvidas. Depois percebeu que
estava descalço, talvez tivesse perdido suas botas naquele poço imundo, do qual ele nem
sabia como saiu. Será que tinha sonhado tudo aquilo? Não, tinha sido real até demais. De
repente começou a ouvir uma estranha voz em sua cabeça:
— Procure o Mestre Degarth. Ele vai te dar as respostas que você precisa.
—Mas quem é você? Não posso obedecer a alguém que nem conheço.
— Confie em Degarth.
— Você está no topo do Monte Nieval. Siga a leste do riacho. Procure pela
vila Fayki. Lá te darão informações sobre Degarth.
— Não é mais fácil você me dizer onde ele está e eu ir atrás dele?
A dor de cabeça ficou mais forte, a ponto de Maduk nem conseguir raciocinar. Como
estava sem muitas opções, resolveu seguir as instruções da voz estranha. Levou a manhã
inteira para descer a montanha e por fim avistou o vilarejo. Estava exausto, com fome e
sede, além dos pés machucados de tanto andar. Foi acolhido pela elfa Cerien, que o
avistou de longe e teve compaixão. Lhe deu comida e água, mas não tinha calçados do
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seu tamanho. Perguntou pelo Mestre Degarth e ela disse que ninguém sabia dele há muito
tempo, pois ele vivia isolado dentro da floresta Delzai, ao norte de Fayki.
Ele agradeceu e seguiu seu caminho, confuso com aquela quantidade de nomes
que teve que aprender em tão pouco espaço de tempo. Sua vida era tão simples até
ontem, quando ela tinha se tornado tão confusa? Tudo por causa de Wilto e suas
obsessões idiotas. O pior é que ele nem sabia onde o seu amigo estava para poder xingá-
lo.
Andou por uma trilha dentro da floresta até avistar um pequeno chalé ao lado de
uma lagoa. Estava cansado e com os pés todos esfolados quando se apoiou numa árvore
e ouviu:
— Já disse que não precisa implorar, rapaz! Eu vou te ensinar tudo o que eu sei!
Antes eu gostaria de te perguntar uma coisa: porque você entrou no poço de Byesi?
Eu tenho um cristal que fica imerso numa poção que eu criei especialmente para me
avisar quando isso acontecesse e a natureza do espírito. Ontem ele brilhou duas vezes:
uma luz clara e outra escura, ou seja, duas pessoas entraram nesse poço ontem. Eu tive
fácil acesso à sua mente, o que significa que você foi a luz clara. Eu preciso te treinar para
você me ajudar a combater o que quer que tenha entrado naquele poço ontem. Eu estou
bem velho, não dou mais conta sozinho.
— Você entrou no poço de Byesi durante a Lua Cheia. Querendo ou não você tem
poderes agora.
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— De certa forma sim. Você está sentindo seu corpo pulsando, não é?
— Exato. Queimando por dentro, para ser mais exato. E uma forte dor de cabeça.
— Vai demorar um pouco, mas vai passar. Sua vida anterior acabou. Agora você é
uma outra pessoa. Precisa ter consciência do que irá se tornar para proteger aqueles que
não são como nós. Amanhã treinamos. Agora deite que sua metamorfose leva tempo.
Deitou-se numa cama improvisada por Degarth e dormiu até o dia seguinte.
Levantou se sentindo estranho e com muita fome. O mestre mago lhe saudou com um bom
dia e disse que uma de suas habilidades adquiridas foi o teletransporte. Foi assim que ele
caiu no poço e foi parar na montanha.
— Não, isso leva anos de prática e meditação. Talvez num futuro bem distante.
— Se eu posso fazer teletransporte, porque não vim direto da montanha para cá?
— Você precisa treinar bastante até poder fazer isso. E tem que visualizar o lugar
para onde quer ir.
A partir daquele momento os dois se tornaram grandes amigos. Maduk leu toda a
biblioteca de seu mestre e testou o que podia fazer. Conseguiu melhorar seu teletransporte
e alguma telecinese, mas nada muito avançado. Degarth também lhe ensinou que um
ritual de passagem seria ele construir o seu próprio cajado, com um cristal na ponta onde
ele concentraria grande parte da sua energia. Para isso ele teria que meditar por uma noite
inteira na floresta até encontrar a madeira ideal para criá-lo. Assim ele procedeu e nas
primeiras horas da manhã ele se sentiu guiado para uma determinada árvore, cortou e
esculpiu com facilidade, pois era filho de marceneiro. O cristal ganhou de presente de seu
mestre. Transferindo energia ele aprendeu a criar um campo de força ao seu redor, o que
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era bem bacana. Com essa energia concentrada ele também aprendeu a disparar rajadas
de luz usando o seu cajado. O cristal também mudava de cor caso alguém ou algo
perigoso se aproximasse dele. Através dos livros de seu mestre Maduk aprendeu sobre
poções e feitiços, mas não memorizou nenhum, por isso teve que anotar alguns mais
importantes em diversos pergaminhos e os guardou numa bolsa tiracolo de couro, que
comprou na cidade com algumas moedas emprestadas por Degarth.
As constantes viagens a vila Fayki permitiram que ele ficasse cada vez mais íntimo
de Cerien, chegando a ter um relacionamento amoroso com ela apesar dos avisos de seu
mestre que esse envolvimento poderia colocar pessoas inocentes em risco. Maduk nunca
parou de estudar e treinar, sempre apurando suas habilidades, apesar de nada
extraordinário acontecer ao seu redor. O clima começou a ficar tão pacato que ele
finalmente relaxou. E obviamente foi nesse momento que o problema surgiu. Um homem
surgiu correndo assustado, oriundo da cidade vizinha de Pangoth. Disse que pessoas e
animais estavam sendo atacados e devorados por um lobisomem.
O aprendiz de feiticeiro nem sabia que tal criatura realmente existia. Tinha lido a
respeito delas na biblioteca do seu mestre, mas nunca pensou que encontraria uma de
perto. Seguiu viagem a pé e levou cerca de meio dia para chegar ao local. As cercas
estavam derrubadas e havia sangue espalhado pelas paredes nas casas da periferia, além
de entranhas espalhadas pela rua que exalavam um fedor inacreditável. Maduk sentiu
fortes náuseas e por pouco não vomitou ali mesmo. Inalou uma essência de eucalipto que
tinha em sua bolsa, sentou-se numa pedra e esperou anoitecer. Tinha apenas uma lâmina
de prata, mas acreditava que pelo menos conseguiria assustar a criatura o suficiente para
ela não retornar.
Já estava bem escuro quando ela chegou. O feiticeiro pensou que ouviria uivos ou
rugidos anunciando sua chegada, mas ela veio silenciosa. A única coisa que ele percebeu
foram seus dois olhos vermelhos enormes se aproximando cada vez mais. Mais
inesperado foi quando ele ouviu uma voz gutural no meio daquele breu:
— Eu esperei muito tempo para te reencontrar! Agora você vai pagar por sua
covardia!
A criatura saltou sobre ele, maior do que ele tinha imaginado. Maduk foi
surpreendido por aquela voz e a princípio ficou sem reação.
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— Você me largou naquela cripta para morrer! Ela estava certa a seu respeito! Você
é fraco e medroso! Seres inferiores como você não merecem respirar o mesmo ar que eu!
— Dizendo isso pegou ele pelo colarinho e o atirou em direção à uma parede ali perto.
Maduk sentiu uma forte pancada nas costas e caiu sentado, mas não desmaiou. Só
então percebeu que seu amigo havia se transformado naquele ser grotesco que tinha
quase três metros de altura e falava babando sangue. Seu único impulso no momento foi
chamar o seu cajado com a telecinese e criar um escudo de proteção. Afinal de contas,
apesar de tudo seu amigo de certa forma ainda estava dentro daquela criatura. Ele tinha
que pelo menos tentar...
— Escudo de força? Onde você aprendeu isso? Não importa. Hoje é a sua última
noite. Você não vai segurar isso por muito tempo...
— Wilto, por favor me escute. Somos amigos de infância. Você me conhece. Sabe
que eu nunca faria isso com você...
— Sabia que ela sempre esteve nos observando o tempo todo? Ela te conhece
melhor do que eu. Conhece todas as suas mentiras e covardias...Ela viu tudo em seu
cristal...
Não terminou a frase porque um dos moradores da cidade se aproveitou que ele
estava distraído para atirar a lâmina de prata no seu olho, provavelmente um dos
fazendeiros que tinha perdido muitos animais e fazia questão de assistir ele morrer. Deu
um urro de dor, arrancou a lâmina do olho e disse para Maduk:
— Está vendo? Até esse verme tem mais coragem que você! — E dizendo isso
saltou em direção ao morador.
O aprendiz de feiticeiro lançou uma rajada de luz no peito da criatura antes que ela
chegasse ao chão. Aproximou-se do corpo inconsciente do lobisomem e derramou uma
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forte dose de sedativo em sua boca. Depois disso o arrastou para Fayki, onde Degarth o
despachou para um ponto isolado no mapa.
— Você ainda tem muito mais coisas a aprender antes disso. Agora vamos tomar
um chá. Você precisa retomar suas forças, porque pelo que você me contou, seus
problemas estão apenas começando...
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Levantou a gola do paletó, que costumava usar nessas ocasiões, para se proteger do
vento frio e começou a sua caminhada pela rua deserta do cemitério, enfrentando a garoa
que começava a cair.
Andar por aquelas ruas desertas não era um passeio agradável, ainda mais naquela
condição de preparar um enterro de um parente próximo, ainda mais sendo ela uma
Condessa.
Mesmo assim, à medida que caminhava e avançava solitário pela longa alameda,
podia ouvir o eco dos seus próprios passos, entre os vários túmulos. Aquela cena, digna
de um filme de Hitchcock seria amedrontadora para qualquer pessoa, mas ele já estava
acostumado com tudo aquilo...
Ao longo do caminho, quando já estava mais ou menos no meio da alameda, ouviu
um barulho estridente, como um ranger de ferro, parecendo uma dobradiça de porta se
abrindo e um calafrio lhe percorreu a espinha, da cabeça aos pés. Ao parar e começar a
olhar no entorno, tentando identificar o barulho, sentiu como se alguém se aproximasse de
suas costas... Olhou rapidamente para trás e não viu ninguém...
Decidiu continuar o seu caminho e sentiu um alívio ao perceber que o barulho
estava vindo da porta de um dos jazigos, tipo mausoléu, bem a sua frente, que tinha sido
aberto provavelmente pelo vento e que continuava batendo, abrindo e fechando. Seria
algum espírito querendo se comunicar? Talvez.... aquela sensação como se alguém
estivesse bem atrás das suas costas direcionava os seus pensamentos e era inevitável
que pensasse em tudo isso naquele momento...
Passado o susto, continuou a sua caminhada, talvez, tendo por companhia, quem
sabe, uma daquelas almas penadas que sempre habitam os cemitérios e querem
conversar...
O vento frio e a garoa continuavam lhe castigando e a única coisa que lhe passava
pela mente, naquele momento, era o questionamento que fazia a si mesmo do porquê
aquelas coisas sempre aconteciam com ele. Seria a sua mediunidade?
A procura do túmulo fez com que rapidamente esquecesse daquelas ideias
fantasmagóricas. Depois de andar por várias daquelas ruelas e alamedas, entrar por
vielas, girando em círculos por vários túmulos, ele percebeu que tinha se perdido e que
não iria conseguir encontrar o túmulo da Condessa, embora tivesse observado alguns dos
túmulos que sempre tomava como referências.
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
O fato era que ele já estava cansado e estressado demais e não conseguia se
lembrar do lugar exato do mausoléu. Então deu meia volta e se dirigiu rapidamente até o
escritório da Administração.
O escritório da Administração ficava atrás da antiga capela e era, como quase todos
os demais cemitérios da cidade, um lugar lúgubre, mal-ajambrado e escuro. Os seus
móveis velhos e sujos pareciam que queriam combinar com o ambiente do cemitério que
abrigava no seu interior aqueles antigos túmulos da velha São Paulo onde muitos
hóspedes do outro lado da vida residiam há séculos.
Atrás de uma mesa, dessas bem antigas, ele viu um senhor, que devia ser parente
do mordomo daquela série da TV, ‘A Família Adams’, com seu cabelo grisalho engomado
e penteado com uma divisão bem ao meio, cheio de brilhantina, um terno preto surrado e
uma gravata também preta toda suja e com o seu nó quase desfeito e bem folgado no
pescoço. Em cima da mesa uma foto de determinada entrada de algum outro cemitério
onde uma placa em arco estampava uma frase de mau gosto que parecia estar ali só para
intimidar os visitantes: “Nós que aqui estamos, por vós esperamos”. No fundo, atrás da
mesa vários castiçais desses que se colocam ao lado do caixão, completavam a cena
lúgubre e tenebrosa do local.
Ávido por resolver logo os trâmites e sair daquele lugar ele se sentou na frente do
velho administrador e tirando uns papeis velhos de uma pasta surrada que carregava
embaixo do braço, foi logo dizendo:
— A minha prima era Condessa, a família dela tem um túmulo perpétuo neste
cemitério, e preciso enterrá-la. Veja aqui os papéis.
O velho, sem se importar muito com toda aquela sua pressa, pegou vagarosamente
os papeis amarelados, os colocou sobre a mesa e com suas mãos trêmulas, começou a
olhar cada um deles, até que se levantou em câmara lenta, e sem dizer nada, caminhou
até uma velha estante de onde tirou um enorme livro, sujo e empoeirado. Abriu o livro e
começou a folheá-lo página por página, até parar numa determinada página de número 66.
Então olhou por debaixo dos seus sujos óculos de leitura e apontando com o dedo
para um nome escrito no livro, perguntou a ele:
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
O velho Popó começou a vasculhar outros livros antigos e depois de uns quinze
minutos voltou e exclamou:
— E como lhe disse não podia ser aquele túmulo do seu tal primo tataravô!
— É outro!
— Primeiro você o leva o Sr. Zico ao túmulo do tal primo tataravô e depois ao outro
onde o pai da Condessa está enterrado. Aqui estão os endereços das campas. Comentou
o velho com o coveiro...
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— Vá lá Sr. Zico a ver os dois túmulos e veja se consegue reconhecê-los. Acho que
estou certo de que o correto é o segundo, mas vamos tirar a prova. Disse sorrindo o velho
gerente do cemitério, mostrando aqueles seus dentes amarelados pela nicotina.
Tendo o coveiro como guia, lá foi ele novamente a caminhar por aquelas alamedas,
embaixo do mesmo vento e da mesma garoa, que teimava em continuar caindo, a procura
dos dois mausoléus.
O primeiro túmulo, o do tataravô, era realmente quase que um monumento, com um
grande obelisco ao centro, tendo no seu alto um enorme anjo esculpido em mármore
branco. Nas suas lápides se podia ver toda a linhagem da família, esculpida no mármore,
desde o casal precursor, o Conde e Condessa que tinham vindo com D. Pedro, até chegar
aos mais recentes, que haviam sido enterrados em torno dos anos 50. O túmulo era
extenso e envolvia três terrenos perpétuos e um gramado que o circundava por completo.
Tirando o lado sombrio era uma obra de arte...
Quando ele viu aquilo tudo e as datas de todos os que estavam ali enterrados, é que
se deu conta da gafe que tinha cometido quando tentou convencer o administrador que o
Conde tataravô era seu primo....
Respeitosamente, ele fez o nome do pai em frente ao túmulo, logo imitado pelo
coveiro, rezou uma Ave Maria e partiu em busca do segundo túmulo.
O segundo túmulo ficava do outro lado do cemitério o que exigiu mais uma vez uma
longa caminhada pelas alamedas frias e desertas. Era um túmulo mais simples que o
primeiro, mas não deixava de ser um mausoléu cheio de adornos, estátuas e com aquela
mesma ostentação mórbida.
Enquanto caminhavam até a segunda campa ele foi obrigado a ouvir, mesmo sem
ter interesse, o coveiro ir falando e indicando, como um guia turístico, os túmulos de gente
famosa. Num deles o coveiro se empolgou e até parou para orgulhosamente narrar a
história do costureiro celebridade que havia sido preso ao tentar roubar dois vasos de um
jazigo. O coveiro entusiasmado ainda fez questão de apontar para o túmulo e dizer:
— Veja senhor, são estes aqui, está vendo estes dois vasos que agora estão
chumbados no túmulo, pois é, foram eles que o costureiro tentou roubar!
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Surpreso, não teve dúvidas, rompeu rapidamente o lacre, abriu o envelope e dentro
encontrou apenas uma pequena chave, dessas de cofre, com uma etiqueta pendurada por
uma fina fita vermelha, com alguns números escritos a mão e uma sequência de
interjeições de gargalhadas:
13-21-34-55 KKKKKKK!!!!
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Como engenheiro que era e acostumado com números, logo percebeu que a
sequência de seis números se tratava da famosa série de Fibonacci, gênio matemático que
havia descoberto a proporção áurea, o número de Deus.
Ao contrário do tinha pensado, o enterro da Condessa não tinha terminado com o
fechar da sua campa. Os mistérios e surpresas, pelo jeito, só estavam começando....
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Dizem que um dia lançaram uma praga sobre a cidade para que ela não se
desenvolvesse mais e ficasse cada vez menor.
Esta história me foi contada pelo próprio fantasma que habitava a torre do Paço
Municipal.
Ele existia há mais de trezentos anos e muito antes de morar naquela torre da
cidade já havia habitado um velho castelo na Europa.
Era um dos remanescentes do grupo de leprosos que um dia, passando pela cidade
pediram guarida para serem tratados no leprosário local e acabaram sendo expulsos.
A praga contra aquela cidade foi lançada por ele e todos os outros leprosos que o
acompanhavam. Praga esta que teria sido reforçada algum tempo depois por um grupo de
irmãs religiosas, que cuidavam do Leprosário e que assim que este foi transformado em
um asilo de velhos, também foram expulsas da cidade.
Não se sabe quem comandou as expulsões, mas eles desconfiavam do prefeito
municipal à época e daí a praga ter se concentrado não só contra a cidade, mas também
em relação a todos os seus futuros administradores.
Alto, forte com uma enorme corcunda que começava bem abaixo do pescoço e
percorria até o meio das costas este fantasma tinha o rosto e mãos deformados pela lepra
e os dentes amarelados, tendo ainda os caninos proeminentes, o que lhe dava uma
aparência ainda mais terrível e sombria.
Não podia dizer que sua figura fosse das mais agradáveis. Completava a sua
carranca um cabelo crespo, comprido e desgrenhado que caia pela testa e cobria as
orelhas e parte das suas cicatrizes espalhadas pelo rosto. Ele era uma figura muito feia, e
terrivelmente assustadora.
— Sorte que eles não conseguem me ver, senão sairiam correndo no primeiro
minuto’ me disse ele sobre os munícipes enquanto gargalhava.
Era ali pelas salas do Paço e pela biblioteca que ele costumava dar os seus
passeios diários para assustar as pessoas, principalmente aqueles que ali trabalhavam,
entre eles o próprio prefeito e seus vereadores.
Era um tal de derrubar um livro aqui, outro ali, abrir a porta de um dos armários,
fazer cair uma caneta, voar um papel, esconder uma bolsa, carteira ou chapéu....
Vivia vagando naquela torre do Paço Municipal há mais de cem anos, pois havia se
instalado ali em 1910, dois anos após a sua inauguração.
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
Uma das suas poucas distrações era ficar sentado no alto da torre, e olhar pelas
frestas de suas janelas para acompanhar diariamente cada um dos cidadãos que
passeavam pelas ruas do centro ou então pelo jardim, que se situava bem defronte aquele
prédio.
As vezes ele costumava enviar uma energia ruim para fazer com que um deles
tropeçasse e caísse ou então que dois carros batessem um contra o outro.
Não é à toa que existem inúmeros relatos de habitantes da cidade que, ao
passarem perto daquela torre, relataram ouvir uma estranha gargalhada ecoar pela noite....
Seu único dia de sossego acontecia aos domingos, quando, sentado ao lado do
relógio de quatro lados ficava ouvindo e se embevecendo com as lindas músicas
executadas pela filarmônica, enquanto as crianças corriam e pulavam em volta do coreto,
sob o olhar atentos de seus pais.
No mais costumava percorrer diariamente as diversas salas daquele prédio, onde
ficavam as autoridades máximas da municipalidade e cometer as suas inúmeras
travessuras para aterrorizar, colocar medo em alguém e fazer valer as pragas contra a
cidade, para que seguissem seu curso.
Pode se dizer que ele estava ali só para garantir que todas as pragas se
mantivessem pelo menos por mais de cem anos...
Além desse deleite em ouvir a filarmônica aos domingos ele gostava também de
entrar na sala do prefeito, para, toda vez, derrubar o tinteiro sobre as folhas de papel,
exatamente, quando o chefe do executivo estava assinando algum decreto importante.
Ele adorava fazer isso como uma espécie de vingança, não só para manter a
continuidade das pragas jogadas por ele, seus amigos leprosos e as madres do leprosário,
como também porque detestava todos aqueles mandatários, metidos a besta, que segundo
sua visão, não tinham a menor qualidade para gerir aquela mal-assombrada cidade,
grande produtora de café.
Até que um dia assumiu um novo prefeito, fervoroso adepto de uma dessas religiões
afros que trabalham todos os lados do mundo espiritual. Como grande conhecedor de
‘maus feitos e macumbas’ assim que tomou posse ele percebeu onde tinha amarrado o
seu burro. Assim imediatamente convocou alguns amigos médiuns para fazer uma limpeza
geral e enxotar o velho fantasma dali.
Vários dias e noites se passaram até que os rituais terminaram e eles conseguiram
finalmente acorrentá-lo e levá-lo para um tratamento nas hostes espirituais.
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
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Era apenas uma noite de cinema, o filme obviamente era de terror, “JORNADA AO
INFERNO 3”. Finada a cena pós-créditos e depois de eu ter terminado de gastar todas as
minhas economias do mês na livraria do shopping, não pude resistir em passar na recém-
inaugurada loja esotérica do enorme palácio consumista.
A estátua me hipnotizou de tal forma que não resisti em pegá-la com minhas mãos
suadas. O material era forte, parecia mineral, mas também oco, áspero e poroso, os
detalhes em sua extensão pareciam ter sido feitos por unhas humanas, devido a sua
aparente falta de homogeneidade. Além disso, o vermelho da estátua canídea lembrava
sangue seco.
— Leia a placa! Quebrou, pagou! São duzentos reais por esse caos que você fez,
rapaz!
— Ninguém quebra os artefatos de uma bruxa e sai sem pagar o que deve!
— Meia...
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— noi-te...
— vo...
— cê...
Minha alma congelou antes mesmo de eu sair correndo daquela loja. Sem fôlego,
me dirigi ao ponto de ônibus em frente ao shopping para ir embora daquela penumbra o
mais rápido possível.
O último ônibus ainda não havia chegado, já eram 23:15 e eu não conseguia
esquecer as palavras daquela bruxa, com seus olhos vidrados e mãos trêmulas enquanto
proferia:
No âmago do breu, uma figura maléfica me encarava do fim da rua, ela sorria para
mim, como se esperasse que eu saísse correndo dali. Rapidamente, agarro meu celular na
esperança de ligar para o meu namorado vir me buscar, mas o meu telefone está
completamente morto.
Uma luz cortou a noite assim que o ônibus chegou, me fazendo perder a criatura de
vista. Desci no mesmo ponto de sempre, a alguns quarteirões da minha modesta casa,
quando abro o portão, estranho o comportamento de meus cachorros. Normalmente
sempre calmos e alegres, hoje estavam agitados e temerosos, como ficam quando troveja
no céu carregado, desta vez o firmamento estava límpido como a água nascente, porém,
os canídeos não paravam de latir para o aparente nada, como se esperassem um bote
vindo das próprias sombras.
Já era quase meia-noite quando avistei a criatura novamente da janela do meu
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
quarto, corri para trancar toda a casa, mas a porta de entrada já estava destruída, e o
sangue dos meus cães se misturava ao odor fétido que a besta exalava.
Os seus três pares de olhos avermelhados se aproximavam lentamente do meu
corpo, eu sentia minha energia sendo drenada a cada passo que a criatura dava, quando
ela chegou perto o suficiente para eu sentir a sua respiração ofegante, a fera desapareceu.
Olhei pela minha casa e a criatura parecia ter ido embora, porém, me deparo com
uma visão aterradora: o meu corpo estava estendido no chão, ensanguentado e
deformado, enquanto o meu espírito lentamente se esvaía para dentro das entranhas do
monstro tricéfalo.
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Assim que puseram os pés na calçada uma cidade inteira já estava esperando por
eles, todos falando ao mesmo tempo.
Sem compreender as perguntas e irritados com todo aquele furdunço, os dois
chefes do poder público gritaram ao mesmo tempo:
— Saiam já daqui e vão viver a vida de vocês! Essa senhora é apenas uma parenta
de Mabel que veio morar com ela! Bando de curiosos e fofoqueiros que não têm o que
fazer!
O motim se espalhou. Todos se sentiram um pouco frustrados, pois imaginavam
algo mais fantasioso que pudesse tirar a cidade daquele marasmo total e, voltaram aos
afazeres enfadonhos da rotina instalada por tempos naquele lugar.
O que não sabiam era que a mudança maior ainda estava por vir...
Uma casa até então normal, com cores normais e com um jardim belíssimo, também
dentro da normalidade, passou a ganhar novas formas, novas cores, novas flores...
A cada amanhecer, quem passava diante da residência de Mabel, via algo diferente.
Na primeira manhã, quando seu Onofre abriu a padaria viu a casa, que era branca
de janelas azuis, toda pintada de roxo e com as janelas pretas.
Num outro dia foi a vez do padre, que ao fazer sua caminhada matinal viu o espaço
do jardim sem flores e todo cheio de pedras.
Lalita, a linguaruda da cidade, ficou de espreita uma noite inteira para ver o que
estava acontecendo e, numa dessas noites, viu florescerem rosas imensas e negras e
abóboras gigantes brotando por toda parte.
Gatos pretos começaram a surgir entre as janelas e longas trepadeiras agarraram-
se ao muro formando uma teia quase parecida as de aranhas.
Quem passava fazia o nome do pai e gritava bem alto e em coro:
-- Cruz credo! Ave- Maria!
Por muito tempo esconjuraram a casa e as duas moradoras.
Mabel que era tão querida, estava muito triste, pois agora todos a ignoravam e nem
na igreja podia entrar mais.
Catuxa não ligava e fazia de conta que as zombarias não eram com ela.
Mas depois de um certo tempo passou a ficar preocupada com a tristeza de Mabel e
Mabel preocupada com as maluquices e maldade da prima.
Como para tudo nessa vida há uma solução, as duas primas, como se gostavam
muito e se respeitavam mesmo sendo diferentes, chegaram a um acordo.
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Durante uma noite bem clara, de lua cheia, elas colocaram um caldeirão bem
grande no jardim, bem pertinho do portão. Encheram o caldeirão de guloseimas deliciosas
e colocaram uma placa onde escreveram: AS APARÊNCIAS ENGANAM! AQUI NESSA
CASA AS BRUXAS FAZEM O BEM E AMAM!
Daquele dia em diante e, bem aos poucos, a rotina da cidade foi voltando ao normal.
Talvez mais normal do que já era.
As pessoas que passavam em frente ao portão de Mabel e Catuxa até se atreviam a
pegar uns docinhos.
As crianças ficaram muito amigas dos gatos que ronronavam cada vez que uma
delas lhes faziam carinhos.
Aprenderam que o inesperado acontece e que cada pessoa tem sua maneira de ser
e que, acima de tudo, o que é estranho para mim, pode não ser estranho para você.
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lâmina que Dalila segurava em sua mão trêmula. “Preciso fazer isso” pensava ela e até em
seu pensamento sua voz estava trêmula. E então ela fez: com um movimento rápido e
preciso, degolou sua mãe, que abriu os olhos, horrorizada, o sangue jorrando pelo
ferimento mortal. Não emitiu nenhum som além do característico ruído de desespero de
uma pessoa que não consegue respirar. Em minutos, então, suas pupilas dilataram-se.
Estava morta. E Dalila observou tudo encarando-a friamente nos olhos, sentindo uma
inesperada satisfação. Quase podia sorrir!
Olhou então para seu pai que, como sempre, alcoolizado, dormia tranquilamente.
Caminhou calmamente até o outro lado da cama de casal e apunhalou-o várias vezes. 15
vezes para ser exato e o homem na faixa dos 50 anos até tentou reagir, mas quando se
deu conta do que estava acontecendo seus ferimentos já haviam se tornado mortais,
inevitavelmente enfraquecendo-o. Afogou-se no próprio sangue, pois Dalila fez questão de
perfurar seus pulmões diversas vezes. E aqui a adolescente agora esboçava um sorriso
enquanto via o olhar de desespero de seu pai, um olhar inútil de súplica por sua vida.
Então Dalila degolou-o também. Tudo estava acabado e ela estava, finalmente, livre! Fugiu
do lugar, limpando a lâmina assassina e enterrando-a bem longe de sua casa.
Os anos passaram-se e Dalila nunca fora encontrada. Assumiram, finalmente que
ela também havia sido brutalmente assassinada naquele que a imprensa classificou como
“crime brutalmente desumano”. Dalila sorria ao lembrar-se disso.
Aos 17 anos, Dalila iniciou a graduação em Biologia, formando-se e em seguida
concluindo doutorado em Genética. Não demorou muito para ser levada aos Estados
Unidos pela USGenomics, uma grande empresa farmacêutica de fachada, que na verdade
desenvolvia projetos bélicos. “Abelha-Rainha” era o nome traduzido para o português do
projeto para o qual fora designada. O projeto consistia em extrair da abelha-rainha o
ferormônio que a permitia dar ordens às operárias e fazer uma mutação de forma que este
mesmo ferormônio permitisse que fossem controlados os Zangões, humanos
geneticamente modificados criados em laboratórios para serem usados como super-
soldados em guerras. Tal ferormônio modificado seria dado a um seleto grupo de
comandantes do exército americano para que estes coordenassem as tropas de Zangões
nas incontáveis guerras travadas pelos Estados Unidos, em solo americano ou estrangeiro.
Mas Dalila tinha outros planos.
Colaborou com a USGenomics até que milhares de Zangões estivessem funcionais
e injetou o chamado Vírus Abelha-Rainha em si mesma, destruindo todas as outras
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
amostras, assim como toda a sua pesquisa, de forma que ninguém conseguisse reproduzir
o vírus futuramente. Estava feito. Em segredo havia colocado na composição do vírus duas
formas deste ser transmitido: qualquer um que entrasse em contato com o sangue de um
Zangão, ou que fosse mordido por um Zangão, sofreria mutação, tornando-se um novo
Zangão.
Menos de 3 anos foram suficientes para que os milhares de Zangões originais
fossem multiplicados para tornarem-se milhões espalhados por todo o mundo. Todos
obedeciam cegamente às ordens da Abelha-Rainha, às ordens da Bruxa! Mas Dalila não
queria destruir o mundo. Ela queria controlá-lo! Queria tornar toda a população mundial
submissa a ela pelo simples prazer de impor a todos a mesma aflição e sensação de
impotência que fora obrigada a vivenciar durante boa parte de sua vida. Afinal não só seus
pais eram os culpados, mas sim todos os que consumiram os vídeos obscenos dos quais
era a inocente protagonista! Todos deveriam pagar! E, em sua lógica insana, se não tinha
como determinar exatamente quais pessoas compraram e assistiram aos vídeos, iria
atingir a todos do mundo, para garantir que os culpados fossem punidos! E faria isso
enquanto estivesse viva. Incansável, implacável, imutável.
Os Zangões originais haviam recebido implantes auriculares para que pudessem
ouvir as ordens da Abelha-Rainha em qualquer parte do mundo. E obedeciam sem
questionar, qualquer que fosse a ordem, pois uma vez que haviam entrado em contato
com o ferormônio secretado por Dalila e ouvido o som de sua voz, automaticamente e
eternamente a reconheciam como sua soberana. E nada poderia ser feito para mudar isso,
a Bruxa sabia. Já os Zangões gerados por infecção do Vírus Abelha-Rainha estavam
sempre na hierarquia inferior da “colméia”, obedecendo aos Zangões que surgiram antes e
estes, direta ou indiretamente, sempre obedeceriam à Abelha-Rainha. Sim, Dalila garantiu
que o cérebro dos Zangões funcionasse desta forma.
Eram criaturas horrendas, os Zangões. Humanos deformados, com diversas chagas
espalhadas pelo corpo, consequência da infecção do vírus invasor. Possuíam dentes
pontiagudos e, dependendo do nível de infecção, alguns desenvolviam garras carregadas
de veneno, assim como ferrões de abelhas, com a diferença que não morriam ao injetar
seu veneno paralisante em suas vítimas, ao contrário das abelhas verdadeiras, que
morriam após utilizarem seu ferrão. Eram velozes e dotados de força sobre-humana. Os
que não conheciam seu nome verdadeiro os chamavam de Demônios. E poderiam
facilmente ser classificados desta forma.
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
A Bruxa ria ao perceber que nenhum exército era capaz de destruir a totalidade de
seus Zangões e ela sempre garantia que novos Demônios fossem enviados pelo mundo,
pois seu próprio corpo era uma fonte inesgotável do Vírus Abelha-Rainha. E estes, os
chamados Zangões Alfa, eram sempre dotados de implantes auriculares para que
recebessem ordens diretas da Abelha-Rainha, mantendo a cadeia de comando dos
Zangões sempre intacta.
Não demorou muito para que todos os governos do planeta simplesmente parassem
de resistir aos domínios da Bruxa. Menos de 10 anos, na verdade. As perdas de soldados
e civis eram constantes e em larga escala, seja por serem mortos ou por serem
convertidos em novos Zangões, fazendo com que a Legião de Demônios da Bruxa
crescesse de forma pavorosa. Diplomatas de todo o mundo então foram enviados ao
antigo laboratório da USGenomics, local que Dalila tomara como seu novo lar, sua
fortaleza. Sua “Casa de Doces”, como divertia-se em chamar. Ali oficializaram o Protocolo
de Menor Prejuízo Possível, que referia-se aos termos de submissão de todos os países à
Bruxa. Não ousavam matá-la, pois receavam que todos os bilhões de Zangões, sem uma
cadeia de comando sólida, causassem a extinção da espécie humana. Dalila pelo menos
os controlava, ainda que seguindo apenas a sua vontade sádica e insana. Ali, naquele
momento, ficara firmado acordo que a Bruxa poderia agir de acordo com sua vontade,
poderia sacrificar as vidas que julgasse necessário, independente da razão, desde que isto
não fosse feito de maneira desenfreada e não colocasse em risco a existência da espécie
humana. Desta forma, não mais ofereceriam resistência aos desígnios da Abelha-Rainha.
Dalila ponderou e, com um sorriso demente, concordou, deixando claro que os diplomatas
só sairiam dali vivos porque ela precisava que transmitissem a informação do acordo
firmado para todo o mundo. Era um acordo que visava não mais proteger a todos, mas sim
garantir a perpetuação da espécie humana. Era o melhor que poderia ser feito àquela
altura, os diplomatas sabiam.
Décadas se passaram e o envelhecimento de Dalila fora retardado pelo vírus. Agora
com 87 anos de idade, não aparentava ter mais que 40 ou 50 anos. Grupos de pessoas
eram oferecidos como sacrifício à fúria assassina de seus Zangões, e a Bruxa divertia-se
com isso. Lembrava-se, satisfeita, dos filmes de fantasia medieval onde sacrifícios
humanos eram oferecidos para acalmar a fúria de uma bruxa ou dragão. Era algo
equivalente a isso que estava acontecendo, ela concluiu, satisfeita. Havia se tornado, de
fato, uma bruxa, uma criatura maligna que estendia suas garras de trevas e causava terror
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
aos mais bravos seres. Sorriu satisfeita, mas sabia que sua cartada final ainda seria dada.
O movimento derradeiro naquela longa partida de xadrez ainda estava por vir, pois ela
sabia que, embora tivesse a vida prolongada significativamente, em algum momento o
sopro vital a abandonaria e ela ganharia uma passagem direto para o inferno. E quando
isso acontecesse, ela sabia, os seus bilhões de Zangões espalhados pelo mundo
entrariam em um frenesi violento, destruindo a tudo e a todos que tivessem o azar de
cruzar o seu caminho. No fim das contas, aquele ridículo Protocolo de Menor Prejuízo
Possível só serviu para prolongar sua divertida vingança e adiar a inevitável e planejada
conclusão daquele plano sangrento: a extinção de todos os humanos do planeta, afinal,
seres nojentos, arrogantes, cruéis e sem escrúpulos não mereciam nada menos que
encarar desespero e destruição. Dalila sorriu mais uma vez. Desfrutaria da conquista de
seu domínio até a sua partida deste mundo, sabendo que quando este momento
chegasse, seria a conclusão épica de um plano sangrento arquitetado por ela durante
anos. Afinal, se não estivesse mais viva para desfrutá-la, não havia sentido em manter a
todos do mundo vivos para prolongar sua vingança! Mal podia conter sua empolgação. E
aqui, mais uma vez, gargalhou como qualquer bruxa que se preze faria. Tudo estava
caminhando para sua cartada final e exatamente de acordo com seus planos. Tudo estava
dando certo para ela. Tudo estava bem!
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
[ 48 ]
A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
És um Demônio
Vives no Quase-Além
Foste morto pelo Lobo
E sei o que buscas em alguém
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
E se a mim destruíres
Desespero incomum
Dor lancinante
Tarde demais
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E a humanidade perecerá
Em um bem-vindo apocalipse
E a ele alimentará
Ajudaste-me, de fato!
Encontrar-te-ei no Vazio
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
Eternidade de sofrimento
FIM?
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Ingredientes:
- 2 ½ xícaras de pó de lua
- 1 varinha de fada
Modo de fazer:
• Misture bem com a varinha de fada até ter um líquido denso e dourado
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
bruxa, bruxinha
seja boazinha
bruxa, bruxinha
seja boazinha
bruxa, bruxinha
seja boazinha
bruxa, bruxinha
seja boazinha
por favor,
bruxa, bruxinha
seja boazinha
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
O olho azul da Velha Cinzenta rodopiou sobre sua órbita astuta, diabolicamente
aceso com um brilho demoníaco, olhando para três pequenos vidros de cristal colorido
sobre a toalha florida da mesa de sua sala de jantar.
Dentro de cada vidro uma mosca revoava desesperada tentando fugir de sua prisão
translúcida e mortal.
Ao lado dos pequenos frascos uma chávena de chá de hortelã fumegante e quatro
pratos de porcelana muito antigos, cada um com um pedaço de torta de maçã e canela.
A Velha Cinzenta sorriu para suas duas convidadas.
— Você tem a primeira! — falou ela olhando divertida para a bruxa à sua direita, que
nesse momento observava atentamente o caminho ladeado de peônias que levava até a
casinha e de onde se podia ver as montanhas mais ao fundo, arroxeadas pela distância e
mais próxima a soturna Charneca de Guay, pela pequena janela aberta, e depois dirigiu-se
à outra bruxa à sua esquerda, que olhava cobiçosa para sua estante de madeira negra,
envernizada, à um canto, que continha livros tão antigos cujos títulos estavam escritos em
línguas já esquecidas pela humanidade e cujos assuntos blasfemos e horrendos demais
para serem mencionados aqui, há muito haviam sido banidos de todas as bibliotecas
conhecidas — E você tem a terceira e a quarta. Quem nós não temos?
As duas voltaram seus olhares culpados para ela e a primeira, à sua direita,
chamada Deusidéria Dente de Leão, que se poderia chamar de “bruxa moderna” pois
havia se mudado de além das terras que conhecemos para a amaldiçoada cidade de
Recife Velho, onde geria um site de cursos online sobre Tarô, Magia Ritual e ervas e
plantas mágicas, piscou e disse:
— Falta a Língua de Obá! Está atrasada.
A Velha Cinzenta olhou com seu olho verde para a outra bruxa, chamada Gheluna,
cujos cabelos cor de fogo ardente contrastavam com os olhos azuis como diamantes
congelados, e que possuía dois corações, sua pele branca como a neve corou e ela se
mexeu desconfortavelmente na cadeira de madeira macia.
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
— É verdade que a Senhora morava em uma torre cúbica de tijolos vermelhos e teto
verde cheio de malvas-rosas, nas praias da imorredoura Atlântida, antes que esta fosse
engolida pelo oceano ciumento? — perguntou Deusidéria com uma voz tímida.
A Velha Cinzenta ia dizer alguma coisa, mas ouviram uma batida na porta.
A Língua de Obá abriu uma pequena bolsa de couro cor de pele à tiracolo e de lá
tirou um frasco de cristal rosado, em cujo interior voejava uma mosca, um pouco maior do
que as outras três e de asas esverdeadas.
As outras três riram, risadas cacarejantes e horrendas que ecoaram lúgubres e que
arrepiariam o mais empedernido dos heróis antigos!
A Velha Cinzenta retrucou ainda rindo:
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
— Pobre criaturinha indefesa, não adianta tentar fugir, seu destino já está selado! —
e riu desbragadamente.
Cada bruxa enterrou e traspassou com seu alfinete uma das moscas.
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
Era alto, a tez morena, os cabelos lisos estavam presos em um rabo de cavalo
comprido, suas pernas eram como mastros, sua boca eram como uma vasta caverna.
Vestia seda de diversas cores, azul, vermelho, laranja, amarelo, verde, eram tantas,
cores que nunca vira antes, nem sabia o nome.
O Gênio, pois aquela na frente de Josivaldo não era nada mais nada menos que um
gênio aprisionado em uma garrafa mágica, curvou-se em uma mesura e falou, com uma
voz maravilhosa que fez Josivaldo tremer.
— Meu mestre, sou seu escravo. Diga-me o que fazer e eu farei! Diga-me o que
quer e eu trarei! Diga-me o que destruir e eu destruirei!
Josivaldo estava afônico, as palavras morreram-lhe na garganta.
O Gênio falava sua língua, como se fosse nativo daquela cidade, daquele país!
Uma pergunta saltou de sua língua:
— Como você coube nessa garrafinha? — perguntou Josivaldo sem se conter mais.
O Gênio o olhou como se estivesse perdido em pensamentos muito distantes.
— Oh, eu me lembro! — cantou a voz maviosa do Gênio quase com um soluço —
Estava passeando pelas ruínas da velha Uruk, caminhando lentamente por suas alamedas
cheias de estátuas de deuses antigos que já não eram adorados, olhando para suas
vastas cúpulas alquebradas e rotas e vendo as incríveis matizes da sul do sol poente
rebrilhando nos cacos de vidros de seus minaretes quebrados quando uma velha surgiu
diante de mim e cacarejou alguma coisa em uma língua que não entendi. Eu ri e ela
enfureceu-se comigo, não sei porque. Logo depois mostrou-me o grande selo de Salomão
e forçou-me a entrar nesta garrafinha minúscula. Aprisionado eu me lembrei de quem era
aquela senhora malvada, chamavam-na de Velha Cinzenta, uma bruxa antiga e perversa,
já mesmo entre os adormecidos deuses antigos, e diziam certas lendas esquecidas,
escritas em um papiro da velha Biblioteca de Alexandria, que ela vivera em sua juventude
em uma torre cúbica de tijolos vermelhos e teto verde cheio de malvas-rosas, nas praias
da imorredoura Atlântida, antes que esta fosse engolida pelo oceano ciumento. A Velha
Cinzenta era uma bruxa de verdade! Uma bruxa sinistra e má! Assim eu fiquei aprisionado
desde aquele dia até hoje, quando meu mestre me libertou!
Josivaldo nem sabia o que dizer, estava pasmo.
Afinal articulou gaguejando:
— Como você veio parar dentro da cômoda? Quem colocou sua garrafa lá? —
perguntou Josivaldo mudando as palavras.
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
— Quantos o senhor quiser, mestre. Nós, gênios, não somos limitados pelos
padrões dos homens nem dos deuses.
Porém quando se abaixou e pegou uma delas viu que eram moedas de cobre, não
eram verdadeiras, nenhuma delas.
Nos dias que se seguiram, após centenas de tentativas frustradas, com todos os
tipos de combinações de palavras em desejos simples ou complexos Josivaldo aprendeu a
dura realidade da sua sorte!
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A CASA DA BRUXA – ADEMIR PASCALE (ORG)
Encontrara uma garrafa com um gênio, um feito por si só incomparável, porém este
estava quebrado depois de eras trancado dentro daquele frasco pela bruxa malvada, sua
mente se rompera e sua sanidade se estilhaçara.
Numa tarde de verão, Josivaldo abriu novamente a garrafinha e desejou que o
Gênio voltasse para dentro dela.
Uma fumaça amarelada envolveu a triste criatura e a carregou para dentro daquele
frasco amaldiçoado.
Josivaldo pegou a garrafinha e a guardou lá no fundo da última gaveta da cômoda
antiga, que ficou esquecida em um canto do sótão.
Ele mesmo nunca mais voltou ali como homem vivo!
Dizem as velhas senhoras ociosas que perambulavam pela praça do velho mercado
de peixe de Recife Velho, fumando seus cigarros de cheiro forte, e bebendo suas
cachaças brancas, que a garrafinha ficou guardada por quase setenta anos dentro daquela
gaveta até que foi encontrada por um garoto que libertou o Gênio e o deixou livre para ir-se
embora no fim de uma tarde chuvosa de primavera.
Mas como já se disse em outras partes, as coisas que dizem as velhas senhoras
mexeriqueiras da praça do mercado de peixe, perto da grande fonte nos dias de feira, não
podem ser levadas à sério!
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A casa de seus pais era um sobrado alto e de tijolos cozidos no meio da Rua do
Escobal, perto da Estação de Afogados, em Recife Velho.
Não havia muitas crianças na rua, apenas Eleusina e duas outras crianças na
primeira casa, mas estas já tinham mais de treze anos e portanto já não figuravam como
quitutes no cardápio de nenhuma bruxa.
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Seu nome era Joana de Orleans, mas todos a chamavam apenas de Língua de
Obá, era uma velha portuguesa descendente de escravos Angolanos que morava no
finalzinho da rua em uma casa de tábuas pretas e telhado esverdeado, com duas
janelonas na frente, como dois olhos sempre abertos e uma grande porta de carvalho que
diziam ter sido trazida de além mar há várias décadas.
O povo da região contava que era uma bruxa, mas ninguém se lembrava de onde
havia saído aquela idéia.
A velha Joana era rabugenta e dada a ataques de raiva, irascível e má, todos os
vizinhos se afastavam dela e ninguém tinha-lhe amizade, nem mesmo conversavam com
ela.
A bruxa não ligava, gostava de solidão para praticar suas artes negras e vez por
outra recebia um cliente para consultar sobre assuntos miraculosos e sobrenaturais, nunca
dispensava nenhum deles!
Houve por bem, no entanto, que a pequena Eleusina cismasse com a velha Joana!
Aconteceu certa vez que fora a venda com sua mãe para comprar mantimentos.
Eleusina olhara para o pote de caramelos e pedira a mãe que lhe comprasse um, a
senhora já ia pedir para o atendente, quando a velha Joana abriu o pote e pegou o último,
olhando para o rosto da menina e sorrindo sarcasticamente, mostrando os dentes como
soíam fazer os cavalos quando relincham.
A menina fechou a cara e ficou morrendo de raiva da bruxa.
A velha Joana voltou para casa mastigando o caramelo com gosto, por tê-lo tirado
da pequena e logo esqueceu o fato.
Por essa ocasião surgiu uma goteira no telhado e a velha Joana trouxe uma escada
quase tão velha quanto ela e apoiou-a no lado da casa para subir e consertar as telhas
quebradas.
Vigiou a casa da bruxa e quando esta saiu para ir à telharia, a menina má entrou no
terreno e com uma serrinha de metal que furtara das ferramentas do pai, que era
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serralheiro, serrou dois dos degraus do meio da escada, de forma que quando a velha
fosse subir acabasse caindo.
Correu para casa e esperou ansiosa, mal se continha.
No dia seguinte, lá pelo meio da tarde ouviu-se um “crack” bem alto seguido por
uma série de gritos lancinantes acompanhados por uma comissão de impropérios e
xingamentos bem colocados.
Os vizinhos acudiram ressabiados, posto que ninguém gostava da velha.
Encontraram-na caída ao pé da escada, os degraus quebrados, as telhas novas
partidas.
Uma das pernas, a esquerda, estava em uma posição estranha, toda torcida por
debaixo do corpo encarquilhado e esbranquiçado da velha, as saias arreganhadas até a
cintura deixavam à mostra as partes pudendas desvestidas.
Quebrara a perna na queda!
Tentaram levá-la para o hospital, mas como a velha Joana se negasse
veementemente acabaram deixando-a na soleira da casa e foram embora.
A velha Joana curou-se sozinha, foi se curando como pode até conseguir andar
novamente, mas daquele dia em diante passou a mancar da perna esquerda.
Havia, porém uma chama de ódio em seu olhar todas as vezes que via a pequena
Eleusina, sabia que fora ela quem lhe pregara aquela peça terrível e que por pouco não
lhe causara um mal maior.
Estava chegando uma data importante em seu calendário, e tinha planos especiais
para sua vingança contra a pequena perversa.
Ouvira falar do mau gênio da criança, quase tão ruim quanto ela mesma e quase
sentiu orgulho de ter uma inimiga tão malévola quanto ela mesma fora um dia, quando
também fora criança.
Mas isso não a fez odiar menos Eleusina, muito pelo contrário, aquela vizinhança
era pequena demais para duas criaturas como elas.
Resolveu pôr um fim naquilo.
Dois dias depois, Eleusina estava na frente de sua casa jogando bola sozinha
quando sentiu um cheiro maravilhoso de caramelos recém cozinhados.
O cheiro era forte e pungente e vinha do quintal da casa da bruxa.
Devagar, pé ante pé, a menina veio se aproximando, como animalzinho arisco que
pressente a armadilha.
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Mas a velha Joana era uma bruxa esperta e voraz, sabia como ninguém usar suas
artes negras para encantar e mesmerizar quem quisesse, fora pensando naquela criança
má que cozinhara aqueles caramelos.
A cama era como um grande campo branco, foi levantar-se e num pulo estava
voando pelo quarto, assustou-se, já não era mais criança, mas sim uma grande, verde e
gorducha mosca de asas pequenas.
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Bem mais assustada, tentou fugir e voou pela janela, mas eis que uma rede a
esperava, e tão logo viu-se presa um rosto assustador surgiu, era a velha Joana.
A bruxa tirou a pequena mosca da rede e colocou-a em um frasco de cristal
transparente, rindo à socapa uma risada cacarejante e assustadora.
— Ah, minha mosquinha, agora te peguei! Você comeu meus caramelos mágicos
não é mesmo? Todos eles não foi? Pois bem, você agora será meu caramelo!
E assim dizendo a velha Joana colocou o frasco em uma bolsa cor de pele que
levava à tiracolo e montando em uma vassoura piaçava, de um pulo só, levantou-se no ar
e sumiu nas horas mortas da madrugada.
Da pequena e má Eleusina nunca mais ninguém ouviu falar!
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Mas era ou não uma bruxa? Tinha que tirar isso a limpo.
Então tentou acionar poderes possivelmente não ainda manifestos.
Primeiro, o mais importante para uma bruxa (assim obviamente achava, pois toda
bruxa, pelo menos nos filmes que assistira, tinha), uma vassoura que com ela, voasse.
Tentou com as poucas vassouras de casa, mas não conseguiu voar — talvez aquelas não
fossem as ideais ou indicadas para o grande feito ou precisassem mesmo ser enfeitiçadas
na origem. A pesquisar.
Depois, procurou por ditos e sons sabidos de bruxas e concentrada, os repetiu até
se cansar — nada era produtivo ou definitivo.
Tentou mistura de ervas, ditas do(a) "curandeirismo e/ou magia". Mas não teve
estômago para usá-las em si ou noutros — nem nos animais, coitadinhos!
E como não soltavam rolos de fumaça ou gerassem alguma imagem, deixou-as, por
hora, de lado.
Queimou escritos referenciados como chamativos para poderes e espíritos (os ditos
talismãs) — não funcionou (pelo menos não conseguiu ver ou sentir nada). Precisava
descobrir se eram falsos ou verdadeiros. Mais pesquisa no caderninho.
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Proferiu frases e rezas para invocar tudo e qualquer coisa "anormal" ou do foro
espiritual — sem sucessos.
Ou... estaria a bruxa escondida num secreto e sombrio recôndito, à espera da hora
e dia certos para se manifestar?
No aguardo...
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No Sul, surgiu...
Índio rabudo
dizem que era...
No tupi-guarani,
"çaa cy perereg".
Trazia na boca
um cachimbo.
Com tanta fumaça
devia tossir como
um riso... debochando.
Com as crianças
quando não engodava,
assustava deveras...
Com o gorro vermelho
e mágico... só travessuras.
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Tantos desacertos
Tantas incertezas
E em tendas e templos
tanta superstição
compensada.
Talismãs e rezas
de todos os feitios
vendidos e bem pagos.
Em fantasmas e bruxos
humanidade que se segue
transfigurada.
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