Catolicismo e Economia (1924) : Tradução: Eduardo Da Silva Weber
Catolicismo e Economia (1924) : Tradução: Eduardo Da Silva Weber
Christopher Dawson
Parte I
Princípios católicos e economia
I.
A atitude cristã em relação à riqueza e ao uso dos bens materiais se
expressa nos dois grandes ideais evangélicos da Pobreza e da Caridade. Estes
estão intimamente ligados um ao outro, pois são respectivamente os aspectos
negativo e positivo do ensino de Jesus sobre o Reino de Deus. O mundo atual e
a ordem natural são apenas a preparação para o mundo vindouro – a ordem
espiritual e sobrenatural. Isso por si só é digno dos esforços do homem, e os
bens do mundo atual só têm valor se forem usados para fins espirituais. Se forem
tratados como fins em si mesmos, tornam-se maus.
“Não vos aflijais, nem digais: Que comeremos? Que beberemos? Com
que nos vestiremos? São os pagãos que se preocupam com tudo isso. Ora,
vosso Pai celeste sabe que necessitais de tudo isso. Buscai em primeiro lugar o
Reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em
acréscimo”2. “A vida de um homem, ainda que ele esteja na abundância, não
depende de suas riquezas”3, mas do quanto “é rico para Deus”4. Uma
abundância de riqueza material é realmente um obstáculo para atingir o
verdadeiro fim da vida. Portanto, nosso Senhor aconselha seus seguidores a se
despojarem do desnecessário como um atleta antes da corrida, ou melhor, como
um homem em um navio naufragando, que tem mais chance de salvação quanto
menos tem consigo. “Como é difícil aos ricos entrar no Reino de Deus”5. Deixe
as preocupações mundanas para os homens mundanos – os mortos para os
mortos. “Vendei o que possuís e dai esmolas; fazei para vós bolsas que não se
gastam, um tesouro inesgotável nos céus”6.
Toda essa insistência nos perigos da riqueza e na bem-aventurança da
pobreza não se baseia, como tantos escritores modernos pensam, no desejo de
justiça social. A justiça, como veremos, tem um lugar muito importante na
2 Mateus 6, 31-33.
3 Lucas 12, 15.
4 Lucas 12, 21.
5 Lucas 18, 24.
6 Lucas 12, 33.
doutrina católica, mas não é o fundamento do ensino evangélico sobre a
pobreza. Isso é simplesmente um desenvolvimento consistente da nova
valorização espiritual e sobrenatural da vida, que foi obra de Jesus e, como tal,
inspirou a atitude da Igreja Católica desde então, e tem sido o princípio da vida
ascética e da instituição monástica. Tanto para Santo Antão no século III, como
para São Francisco no século XIII, as palavras de nosso Senhor: “Se queres ser
perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres e [...] vem e segue-me”7, vieram
como um comando pessoal, e a vida de São Francisco, tão vital e ainda assim
tão totalmente independente de tudo que os bens externos podem fazer para
tornar a vida vivível, é um exemplo permanente de como o espírito cristão
transcende todas as categorias econômicas e leis. Tampouco a realização desse
ideal está limitada à sociedade oriental ou medieval, na qual dificilmente existiu
uma economia monetária. Durante os anos em que Adam Smith estava
trabalhando em seu sistema econômico, Benedito José Labre, 25 anos mais
novo, como andarilho e mendigo nas estradas da Europa, desmentia com a vida
os postulados fundamentais da nova ciência.
Este ideal de Santa Pobreza e da bem-aventurança da vida não
econômica é o lado negativo do ensino do Evangelho. A mesma visão da vida
encontra sua expressão positiva no preceito da Caridade, que é a verdadeira
inspiração da vida cristã na economia, bem como em outros assuntos. Tudo o
que um homem possui, seja de bens externos ou de poderes e oportunidades
pessoais, é dado a ele não para seu próprio desfrute, mas para o serviço de
Deus e do homem. O homem que usa seus poderes e sua riqueza para sua
própria gratificação é como o escravo infiel da parábola que bebe o vinho de seu
mestre e maltrata os companheiros de serviço cujo bem-estar foi confiado a ele.
Por outro lado, embora a riqueza buscada como um fim em si mesma seja um
obstáculo ao Reino de Deus, ela tem seu valor, se for usada como veículo de
amor espiritual. Alimentar o faminto, vestir o nu, cuidar do doente e do prisioneiro
é como se fosse um serviço pessoal ao próprio Filho do Homem.
Isso é para “fazer-vos amigos com a riqueza injusta”8 – para converter
coisas materiais e indiferentes em bens espirituais – “riqueza para Deus”9. Não
é que o Evangelho trate o alívio das dificuldades econômicas como um fim em
si mesmo, é novamente, como no ensino sobre a pobreza voluntária, uma
questão de reavaliação espiritual da vida.
A Caridade deveria ser a força controladora na irmandade do Reino de
Deus, e se essa força espiritual fosse real, ela se mostraria em todas as coisas,
do mais alto ao mais baixo.
“Portanto, quer comais, quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei
tudo para a glória de Deus”10. Para o homem comum, a vida econômica é o único
aspecto da vida que realmente importa, e uma religião que o deixa inalterado,
como fez o pietismo evangélico inglês há um século, mostra-se, assim, ser irreal.
Consequentemente, o dever de esmola, a realização na esfera econômica da
fraternidade cristã, era a principal atividade externa da Igreja primitiva, e foi
7 Mateus 19, 21
8 Lucas 16, 9.
9 Lucas 12, 21.
10 I Coríntios 10, 31.
realizada em uma escala que é difícil de perceber na época atual, chegando,
como frequentemente acontecia, a uma redistribuição real da propriedade.
Ainda assim, na caridade da Igreja primitiva, desde o “comunismo” dos
primeiros crentes a partir de Jerusalém, não houve tentativa de assegurar uma
melhoria das condições econômicas como tais. Havia simplesmente uma
indiferença à riqueza e às condições externas em geral, e uma determinação de
conformar a vida diária dos fiéis às novas leis do mundo espiritual que haviam
sido reveladas.
Se o cristão passou da morte para a vida, das trevas para a luz, foi por
que recebeu a Vida de Deus, e essa vida era Amor. Era impossível possuir
aquela Vida e não amar os irmãos, era igualmente impossível amar os irmãos
sem mostrá-lo nas coisas externas. Assim como Cristo deu Sua vida por nós,
devemos dar nossa vida pelos irmãos, diz São João, e ele continua: “Quem
possuir bens deste mundo e vir o seu irmão sofrer necessidade, mas lhe fechar
o seu coração, como pode estar nele o amor de Deus? Meus filhinhos, não
amemos com palavras nem com a língua, mas por atos e em verdade”11. Este é
o espírito da caridade católica igualmente oposto à esmola externa e à reforma
social moderna, que é uma questão de resultados. É a manifestação externa de
uma vida, força pessoa de amor – o espírito de São Pedro Claver ou São Vicente
de Paulo, ao invés do da Charity Organisation Society ou da Fabian Society.
II.
Mas se esses dois grandes princípios – indiferença aos bens externos e
amor fraternal, são os fundamentos da atitude católica em relação à economia,
eles são, no entanto, insuficientes. Tomados por si mesmos, eles sugeririam a
segregação completa dos cristãos da vida comum da sociedade, e eles
encontram sua realização mais completa na vida religiosa – o estado de
perfeição. Se este estado for sustentado, não como um conselho ideal, mas
como uma lei obrigatória para todos os cristãos, somos levados a um ensino
social que não é o da Igreja, mas os das seitas anárquicas e “espirituais” que
sempre existiram desde o segundo século até os dias atuais. Todas estas, quer
anseiem por um Reino milenar dos Santos como os Montanistas, os Anabatistas
e os Homens da Quinta Monarquia, quer preguem a vida perfeita como os
Apostólicos, os Fraticelli, os Cátaros ou, em nossa própria época, os seguidores
de Tolstói, concordam em condenar o estado, os negócios seculares e a
civilização secular como radical e irremediavelmente maus, e é natural para eles
condenar a instituição da propriedade, como o casamento e a autoridade civil,
como uma violação do espírito de seu evangelho.
Mas o catolicismo não pode concordar com tal divisão da vida, pois ensina
uma integração de toda a vida, na medida em que a vida é dominada por instintos
perversos de vontade. O Deus que redime o homem é o mesmo Deus que o
criou e com ele toda a natureza exterior. É função do homem ser o chefe da
ordem material e espiritualizar as coisas inferiores usando-as para Deus. Embora
o natural e o sobrenatural sejam duas ordens distintas, às quais, em certo
sentido, a vida secular e a religiosa correspondem, ainda assim ambas são
11 I João 3, 16-18.
direcionadas para o mesmo fim último. Assim, a vida econômica, embora seja
essencialmente uma cooperação para a provisão de bens materiais, é para o
cristão uma cooperação governada e inspirada pelo amor.
Seus direitos e deveres especiais estão subordinados a esta lei final e
fundamental – a Nova Lei de Cristo. Esta vida secular, seja política ou
econômica, não pode ser retirada de sua subordinação à vida espiritual, nem
podem suas leis ser leis absolutas como Ricardo e Bentham as conceberam. A
única distinção que a Igreja pode reconhecer é aquela entre conselho ou
perfeição e preceito ou obrigação; ela nunca pode admitir uma final absoluta
distinção entre a vida religiosa e a vida secular, pois ambas servem ao mesmo
fim e a inferior é instrumento para a superior.
Esta concepção da unidade da vida é a verdadeira característica da
civilização cristã, que espiritualiza e santifica toda a vida. Inspira todas as
conquistas da Idade Média, a filosofia de Santo Tomás, a poesia de Dante, a
vida política e econômica das cidades livres. Vemo-la retratada de forma
ingênua, mas impressionante, nos afrescos medievais da Capela Espanhola de
Santa Maria Novella em Florença, na qual todas as posições do povo cristão
estão organizadas em ordem, à direita a hierarquia espiritual do Papa, dos
cardeais e bispos, abades, monges e frades; à esquerda, imperador, príncipes e
nobres, mercadores, artesãos e camponeses. Assim, todo o povo cristão é
concebido como uma grande unidade orgânica. Cada ordem tem sua função na
vida do todo; cada uma tem uma obra necessária e dada por Deus a realizar;
cada uma igualmente está sujeita à lei do dever, do trabalho, do serviço mútuo
e do amor: uma ordem não existe por causa da outra, mas todas cooperam
igualmente em seu serviço comum a Deus e Sua Igreja.
Ora, isso nada mais é do que a extensão para toda a vida dos princípios
que São Paulo estabeleceu a respeito das coisas sobrenaturais. “Porque, como
o corpo é um todo com muitos membros, e todos os membros do corpo, embora
muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo”12 “O olho não pode dizer
à mão: ‘Eu não preciso de ti’; nem a cabeça aos pés: ‘Não necessito de vós’.
Antes, pelo contrário, os membros do corpo que parecem os mais fracos são os
mais necessários”13 “Para que não haja dissensões no corpo e que os membros
tenham o mesmo cuidado uns para com os outros”14.
Essa passagem se aplica, é verdade, apenas à distribuição de graças e
ofícios sobrenaturais dentro da Igreja: para São Paulo o estado ficava fora do
Corpo de Cristo nas trevas deste mundo; mas quando a sociedade como um
todo se tornou cristã, era natural que essa imagem do corpo e de seus membros
fosse transferida para a sociedade cristã como um todo, como foi feito por Santo
Tomás de Aquino e outros grandes teólogos medievais.
De acordo com seus princípios, as funções econômicas existem como
partes necessárias do organismo social com seus próprios direitos e deveres.
Como os cargos mais honrosos de governantes ou juízes, eles devem ser
dispensados de maneira consciente e desinteressada. Sejam produtivos ou
distributivos, eles existem não para o benefício privado, mas para a utilidade
III.
Mas, admitindo essas limitações, o problema da obtenção da melhor
distribuição possível da riqueza permanece. Como esse problema pode ser
resolvido?
O sociólogo moderno sem dúvida responderia que este é o negócio do
Estado: uma vez que as funções econômicas existem para o serviço da
Parte II
A aplicação dos princípios cristãos à economia no passado
A jovem Igreja nasceu em uma época em que o maior estado que o mundo
já viu estava atingindo seu pleno desenvolvimento. Todo o mundo civilizado a
oeste do Eufrates estava unido sob um único chefe. A era da guerra civil, da
agitação social, da exploração dos povos conquistados estava finalmente
acabada. Em toda parte, novas cidades surgiam, o comércio florescia e a
independente sob o comando de seu próprio ancião, enquanto a única organização política é
uma associação voluntária livre de propriedades rurais vizinhas sob um conselho de anciãos ou
a presidência de um curandeiro reconhecido. Esta é realmente a mais rudimentar de todas as
formas de vida social. É a sociedade reduzida a sua associação-constituinte básica para a vida
sexual e para a obtenção de alimentos. Mesmo a tribo caçadora, embora economicamente mais
atrasada, é socialmente um organismo mais avançado. E, no entanto, nesta sociedade
rudimentar, pode-se dizer que realmente existe propriedade privada, ou melhor, familiar.
população aumentava. Era “a hora do príncipe deste mundo”, a apoteose do
poder e da riqueza material triunfantes.
E, no entanto, todo o esplêndido edifício se apoiava em fundações não
morais – muitas vezes em mera violência e crueldade. O divino César pode ser
um Calígula ou um Nero, a riqueza era uma desculpa para a devassidão e a
prosperidade das classes ricas era baseada na instituição da escravidão – não
a escravidão doméstica natural da civilização primitiva, mas uma escravidão de
plantation organizada que não deixava espaço para qualquer relação humana
entre escravo e senhor.
A Igreja primitiva não podia deixar de estar consciente de que estava
separada por um abismo infinito dessa grande ordem material, de que não podia
ter parte em sua prosperidade ou injustiça. Ela estava neste mundo como a
semente de uma nova ordem, totalmente subversiva de tudo que fizera do
mundo antigo o que ele era. No entanto, embora ela tenha herdado o espírito do
protesto judaico contra o poder mundial gentio, ela não procurou qualquer
mudança temporal, muito menos tentou ela própria realizar qualquer reforma
social. O cristão aceitou o estado romano como uma ordem dada por Deus,
apropriada à condição de um mundo em escravidão às trevas espirituais, e
concentrou todas as suas esperanças no retorno de Cristo e na vitória final da
ordem sobrenatural. Enquanto isso, ele vivia como um estranho no meio de um
mundo estranho.
Enquanto viviam em cidades gregas e bárbaras, de acordo com a sorte de cada homem, e
seguindo os costumes locais em roupas e alimentos e no resto da vida, eles mostraram o caráter
maravilhoso e confessadamente estranho de sua própria cidadania. Eles habitam em seus
próprios países como se fossem estrangeiros; eles compartilham todas as coisas como cidadãos
e sofrem todas as coisas como estranhos. Eles se casam e têm filhos, como os demais, mas não
expõem seus filhos. Eles têm uma mesa comum, mas não uma cama comum. Eles estão na
carne, mas não vivem segundo a carne. Eles passam o tempo na terra, mas vivem como
cidadãos no céu18.
18 Carta a Diogneto, 5.
O cristianismo substituiu a participação na cidade pela participação na
Igreja como a relação fundamental e mais importante do homem para com seus
companheiros. Na nova sociedade religiosa, ricos e pobres, escravos e livres,
cidadãos romanos e estrangeiros, todos se encontravam em pé de igualdade
absoluta. Essas distinções terrenas não apenas foram negligenciadas, como
foram quase invertidas, ficando os pobres privilegiados e os ricos humilhados.
Este mundo era para os ricos, mas o novo mundo – o único mundo que importava
– era acima de tudo a herança dos pobres. “Porventura não escolheu Deus os
pobres deste mundo para que fossem ricos na fé e herdeiros do Reino prometido
por Deus aos que o amam?” diz São Tiago. “Mas vós desprezastes o pobre! Não
são porventura os ricos os que vos oprimem e vos arrastam aos tribunais? Não
blasfemam eles o belo nome que trazeis?”19.
Nenhuma mudança externa foi feita no status e na posse, além daquelas
envolvidas na caridade. Na verdade, os pobres são expressamente
aconselhados a não buscar riquezas, a não participar daquela competição social
pela promoção individual que estava acontecendo ao redor deles. Mas o fator
pessoal é totalmente alterado. Para Catão20, o escravo é um bem móvel, a ser
vendido quando envelhece ou adoece, é um instrumento puramente econômico,
qual até as práticas religiosas são proibidas – tudo isso deve ser deixado para o
senhor. São Paulo envia o escravo fugitivo Onésimo de volta ao seu senhor para
ser “recebido agora não como escravo, mas em vez de escravo, um irmão muito
querido, especialmente para mim. Mas quanto mais para ti, tanto na carne como
no Senhor?”21
Esse contraste não é econômico. Os antigos direitos legais são os
mesmos em um caso e no outro, mas uma revolução interna foi efetuada, e qual
deve necessariamente produzir com o tempo uma mudança correspondente em
todas as relações sociais e econômicas externas.
Mas essa mudança externa demorou a acontecer. O cristianismo durante
os primeiros dois séculos espalhou-se principalmente entre as classes que
tinham menos influência econômica – artesãos independentes, lojistas, escravos
libertos, escravos domésticos e assim por diante. Afetou nem as classes
dominantes tampouco os níveis mais baixos de trabalho escravo, os quais eram
encontrados, não tanto nas grandes cidades do Levante, o berço do
Cristianismo, como nas minas e nas grandes propriedades agrárias das
províncias ocidentais. Quando o cristianismo finalmente estabeleceu uma
posição para si mesmo entre os instruídos e os ricos, a grande transformação
econômica do mundo antigo já começara, e a civilização estava dali em diante
engajada em uma batalha contínua e desesperada com invasores bárbaros de
fora e declínio econômico de dentro. O único grande problema agora era como
salvar o máximo possível da herança do passado, e não havia espaço para
qualquer desenvolvimento econômico diferente daquele que foi imposto pela
dura lei da necessidade. Apesar disso, as mudanças sociais no Império Cristão
não foram de forma alguma para pior. No lugar de uma sociedade de capitalistas
e financistas, onde a riqueza derivava, em última análise, da usura e da
exploração do trabalho escravo, cresceu uma sociedade hierárquica de
19 Tiago 2, 5-7.
20 Catão, De Re Rustica 2, 142, etc.
21 Filêmon 1, 16-17.
funcionários e nobres, na qual cada classe e ocupação tornou-se uma casta fixa,
cada uma com seus próprios privilégios e obrigações. Em vez dos escravos
acorrentados e encarcerados no ergástulo, a terra era cultivada por camponeses
servis ou semi-servis, que haviam adquirido o direito à vida familiar e até a uma
certa independência econômica.
A maior parte dessas mudanças deveu-se, sem dúvida, a causas
econômicas e políticas – à tendência inerente à organização imperial, à
orientalização da civilização greco-romana e, sobretudo, ao declínio das cidades
menores e ao regresso à autossuficiência agrícola nas propriedades rurais. No
entanto, a influência da Igreja imprimiu um caráter distintivamente cristão em
todo o processo. Seus ideais eram opostos a todas as principais características
da sociedade imperial anterior – ao luxo dos ricos, à ociosidade e dissipação dos
pobres e à opressão dos escravos. No lugar do clássico desprezo pelo trabalho
manual e pelas “vis artes mecânicas”, herança da cultura helenística, ela fez tudo
que estava ao seu alcance para substituí-la pelo dever e a honra do trabalho.
“Envergonhe-se apenas pelo pecado”, diz São João Crisóstomo, “mas glorie-se
no trabalho e nas habilidades manuais. Somo os discípulos d’Aquele que foi
alimentado na casa de um carpinteiro, de Pedro, o pescador, e de Paulo, o
fabricante de tendas. Pelo trabalho afastamos de nossos corações os maus
pensamentos, somos capazes de ir em socorro dos pobres, deixamos de bater
importunamente à porta dos outros e cumprimos aquela palavra do Senhor: ‘É
melhor dar do que receber’22”.
Ao mesmo tempo, a Igreja considerava o comércio pouco honrado e
condenava sem hesitação a usura que era a base de grande parte da
prosperidade das classes superiores da sociedade romana. Os nobres que ela
homenageava não eram os grandes financistas e aristocratas do velho tipo, mas
os burocratas e soldados conscientes que serviam ao novo ideal de autoridade
divina, investidos em uma casa imperial hereditária, homens como Lausus, o
Camareiro, Pamáquio, o Cônsul, e Marcelino Comes, o Conde.
Mas, acima de tudo, a influência do cristianismo se manifestou na
proteção dos fracos em um tempo de sofrimento e miséria universais. Desde os
primeiros tempos a Igreja exerceu a caridade na escala mais pródiga e, quando
finalmente teve o poder de influenciar os ricos, a extensão da esmola cristã
tornou-se tão grande que causou uma mudança econômica real na distribuição
de propriedades. Encontramos os grandes Padres, São Basílio, Santo Ambrósio,
São Jerônimo, Santo Agostinho, acima de tudo São João Crisóstomo, insistindo
no dever de dar esmolas em uma linguagem que é tão desconcertante para os
ouvidos modernos quanto sem dúvida era para os homens ricos que ouviram
primeiro. “O que você dá ao pobre”, diz Santo Ambrósio, “não é seu, mas dele.
Pois o que foi dado para o uso comum, você apenas usurpa. A terra é de todos
os homens e não dos ricos [...]. Portanto, você está pagando uma dívida, e não
dando um presente”23. E São Basílio declara com ainda mais força: “Aquele que
despoja um homem de suas vestes será chamado de ladrão. Não é aquele que
II.
Assim sucedeu que a nova atividade social, que se desenvolveu no século
XI, deu frutos em uma ordem social cristã. A unidade da Cristandade, que fora
uma realidade religiosa na idade das trevas, agora se tornou também uma
grande realidade social e cultural. A Igreja era o fato social máximo ao qual todas
as sociedades locais eram obrigadas a se acomodar. O Papa era o árbitro da
Europa em todas os assuntos que envolviam uma questão moral – questões de
paz e guerra, de mau governo ou de violação dos direitos individuais e
comunitários. Sua lei – o Direito Canônico – era considerada por todos como
tendo precedência em questões sociais e econômicas, bem como nas
puramente religiosas.
Assim, quando homens de todas as classes inspirados pelo novo espírito
comunitário, começaram a formar associações, confrarias e guildas, comunas e
ligas de paz juramentadas, todas estas tinham sua base e sanção na religião.
Geralmente é difícil traçar a linha entre as funções religiosas e econômicas. Por
exemplo, no caso da “Caridade de São Cristóvão” em Tournai, encontramos uma
guilda de mercadores, que sem dúvida se originou como uma contraria religiosa,
mas que chegou com o tempo a ficar encarregada de toda a administração das
finanças da cidade.
Este caráter religioso foi igualmente revelado no caso dessas comunas e
ligas de paz, que se opunham à ordem estabelecida da sociedade feudal, como
a grande confraria dos Capuchonnés que guerreou contra os bandidos e nobres
da França Central em 1182-1183, e que foi fundada por um carpinteiro de Le Puy
em obediência, como ele declarou, às ordens de Nossa Senhora em uma visão.
A mesma energia que produziu as Cruzadas estava em ação também nesses
movimentos sociais pouco conhecidos que tanto fizeram para transformar a vida
da Europa nos séculos XII e XIII.
Quando o desenvolvimento econômico medieval estava completo, cada
função econômica e social possuía sua organização corporativa, e a cidade
medieval tornou-se uma federação de sociedades autônomas, cada uma das
quais tinha seus próprios estatutos, seu próprio local de reunião, capela e seu
santo padroeiro especial. É verdade que havia rivalidade suficiente entre as
diferentes classes e facções na cidade, entre a aristocracia dos mercadores e a
democracia dos artesãos, mas mesmo assim as teorias econômicas dos
teólogos e dos canonistas foram implicitamente aceitas por todas as partes como
os fundamentos da vida industrial e comercial. Eles ensinaram que a ordem
econômica deve ser dominada não pelas forças mutáveis da competição e do
interesse próprio, mas por uma lei fixa de justiça. Todo indivíduo e toda
corporação tinham suas funções especiais a cumprir na Comunidade e cada um
tinha direito a uma recompensa justa. As funções econômicas, seja políticas ou
religiosas, tinham seus feudos ou benefícios para permiti-las cumprir seu ofício.
As ocupações econômicas, embora também pudessem possuir suas doações
corporativas, eram sustentadas principalmente pela venda dos produtos de seu
trabalho. O “preço justo” era aquele que constituía uma verdadeira recompensa
pelo trabalho despendido, ao passo que um preço que fosse aumentado devido
à escassez e necessidade do comprador, ou reduzido devido à fraqueza
econômica do vendedor, era injusto e ilegítimo.
As funções econômicas mais honrosas eram as mais produtivas; daí a
preferência medieval pelo lavrador e o artesão em vez do comerciante. A
verdadeira finalidade do trabalho não era o lucro pecuniário, mas sim o serviço
dos outros. Trabalhar somente para o lucro era transformar o trabalho honesto
em usura25, e todas as ocupações que buscassem lucro excessivo, ou nas quais
o lucro não estivesse relacionado com as despesas de trabalho, eram vistas com
desaprovação. A vida e a literatura medievais estão repletas desse ideal de
trabalho desinteressado. Vemos isso em Piers Plowman, e no Plowman de
Chaucer, que
debulhava e escavava, e nunca pensara em riquezas,
Pelo próprio Cristo, por cada um dos pobres,
Sem paga, se suas forças permitissem,
27 O professor Ashley resume assim a tendência geral da legislação econômica medieval. “Sem
dúvida, os vilões, camponeses e artesãos às vezes sofriam de fome; sem dúvida, seus arredores
costumavam ser insalubres. Ainda assim, havia um padrão de conforto que a opinião geral
reconhecia como adequado para eles e cujos preços eram regulados para manter. Mas agora
estamos satisfeitos que os salários devam ser determinados pelo padrão de conforto que uma
classe consegue manter, deixada por conta própria, ou melhor, exposta à competição de
máquinas e mão de obra estrangeira migrante” (English Economic History, Vol. I, p. 139).
classe28, os direitos de livre associação desapareceram e, nas terras
protestantes, uma nova classe rica cresceu muito com a pilhagem das abadias
e o confisco parcial das terras comuns. É verdade que o antigo princípio de
regulação econômica para fins morais e sociais sobreviveu, mas era controlado
pelo Conselho do Rei com interesse do estado, e não estava mais relacionado
ao bem social comum da comunidade cristã.
Em alguns casos, esse controle foi exercido com um espírito realmente
cristão. Na verdade, a legislação colonial espanhola com respeito aos índios e o
início do governo francês do Canadá são talvez os exemplos mais notáveis na
história do controle dos interesses econômicos por ideais cristãos de justiça. A
política colonial da Holanda e da Inglaterra, no entanto, foi inspirada por um
espírito muito diferente, e até mesmo os colonos puritanos da Nova Inglaterra
demonstraram um desrespeito quase total pelos direitos dos aborígenes. O
histórico dos ingleses nas Índias Ocidentais foi, é claro, infinitamente pior29.
Enquanto isso, duas forças espirituais preparavam o caminho para
mudanças drásticas na teoria econômica e na vida social: o Individualismo
Protestante e o Racionalismo Filosófico. Desde a Reforma, o Protestantismo
mostrara uma forte tendência para desenvolver uma mentalidade econômica
própria. O próprio Calvino foi o primeiro a romper completamente com a tradição
católica em relação à usura, e seus seguidores, que combinavam o rigorismo
moral com o individualismo, consideravam o sucesso econômico um sinal do
favor de Deus para com a indústria dos santos e insistia muito mais na
pecaminosidade da ociosidade do que no dever da caridade30. Nas terras onde
esses ideais tinham livre atuação – Holanda, Grã Bretanha, acima de tudo Nova
Inglaterra, um novo tipo de personagem foi produzido, astuto, metódico e
28 No sul da Europa, as guildas mais ou menos decadentes foram destruídas principalmente pelo
“despotismo esclarecido” do século XVIII, por exemplo, por Leopoldo na Toscana e por Carlos
IV na Espanha. Em ambos os casos, sua supressão foi de mãos dadas com a das confrarias
religiosas populares.
29 Cf. On Spain Cambridge Modern History, Vol. X, ch. Viii, esp. p. 263, etc. On France and the
contrast of French and English systems, dito Vol. VII, pp. 97-102.
30 “Embora houvesse um forte senso (entre os puritanos) do dever religioso de insistir no trabalho
árduo e regular para o bem-estar, temporal e eterno, do próprio povo, havia completa indiferença
quanto à necessidade de estabelecer ou impor quaisquer restrições quanto ao emprego do
dinheiro. O capital era muito necessário na Inglaterra, e ainda mais na Escócia, para desenvolver
os recursos do país e para iniciar novos empreendimentos; a liberdade para a formação e o
investimento de capital parecia aos pensativos homens da cidade do século XVII, que em sua
maioria simpatizavam com o puritanismo, o melhor remédio para os males sociais existentes.
Eles estavam ansiosos para se livrar das restrições impostas pelas leis do Papa, que ainda era
possível trazer à tona nos tribunais eclesiásticos, bem como se livrar dos esforços do Conselho
dos Rei de levar às classes empregadas e mercantis seu dever para com a comunidade [...] Na
medida em que uma disciplina eclesiástica mais estrita foi objetivada, ou introduzida, ela teve em
consideração a recreação e a imoralidade de outros tipos, mas não tomou o cuidado de interferir
para conter a ação do capitalista ou para proteger o trabalhador”. Citado por Tröltsch Soziallehre
and W. Cunningham, The Moral Witness of the Church on the Investment of Money and the use
of Wealth, p. 711-712. Ele também dá exemplos da legislação escocesa contra o desemprego
(1633). “Os capitalistas que montavam manufaturas tinham o poder de impressionar quaisquer
vagabundos e ‘empregá-los a seu serviço, como bem entenderem’, por onze anos sem salário,
exceto refeição e roupas. Bons súditos foram recomendados a receber em seu serviço crianças
pobres e indigentes, que deveriam fazer qualquer tarefa designada a eles até atingir a idade de
trinta, e estar ‘sujeito à correção e castigo de seu mestre em todos os tipos de punição (morte e
tortura exceto)’”. Compare o sistema de aprendizes de paróquia obrigatórios ao dos
manufatureiros na Inglaterra de 1760-1816.
laborioso; homens que viviam não para o prazer, mas para o trabalho, que
gastavam pouco e ganhavam muito, e que se viam como mordomos infiéis diante
de Deus, se negligenciassem qualquer oportunidade de ganho honesto.
Por outro lado, os filósofos do século XVIII defendiam a abolição das
restrições econômicas por motivos abstratos. Eles ensinaram que existe uma lei
da natureza que o homem só precisava seguir para alcançar a felicidade. O
interesse próprio e o desejo de prazer eram instintos divinamente implantados
que contribuíam para o bem comum, uma vez que as vantagens do indivíduo e
da sociedade eram natural e providencialmente coordenadas.
Essas teorias eram dominantes por toda parte entre as classes
dominantes no século XVIII e, quando foram fundidas com o Individualismo
Protestante das classes mercantis da Grã-Bretanha, produziram a nova filosofia
de Adam Smith, o pai da economia política clássica.
As novas condições do comércio internacional e, sobretudo, as
descobertas técnicas que revolucionaram a indústria do século XVIII,
proporcionaram uma oportunidade de colocar em prática os novos princípios.
Em vez de reconstruir gradualmente um sistema nacional de comércio e indústria
adequado às novas condições, os estadistas e publicitários, que haviam
abraçado as novas ideias, abandonaram todas as ideias de regular as forças
econômicas. Eles acreditavam que os verdadeiros interesses da sociedade
estavam mais seguros nas mãos daqueles que tinham mais a perder que ganhar.
Consequentemente, tanto na nova indústria no que diz respeito aos salários e
condições de trabalho, quanto na nova agricultura no que diz respeito aos
cercamentos, os interesses da massa do povo estavam absolutamente
subordinados aos das classes possuidoras e empregadoras.
Sem dúvida, o industrialismo prosperou sob este regime, e a Inglaterra
tornou-se a oficina do mundo, ultrapassando em muito os países continentais
mais conservadores, mas, longe de produzir a liberdade e a prosperidade de
todas as classes, como os teóricos haviam prometido, um efeito desastroso foi
produzido no nível de vida dos trabalhadores. A sociedade foi levada a um
estado de dependência de fatores materiais e não morais que não existiam
desde os dias dos traficantes de escravos e publicanos do final da República
Romana. No final do século, tornou-se impossível para os economistas fechar
os olhos aos males do novo sistema. Porém, em vez de modificar seu princípio,
eles adotaram um fatalismo pessimista, uma crença na existência de leis
econômicas inalteráveis que regem a taxa de salário e o padrão de vida das
classes trabalhadoras, o que tornou todas as tentativas de melhoria das
condições, seja por iniciativa por caridade privada, intervenção estatal ou
organização sindical, piores do que inúteis. O único remédio que os economistas
poderiam sugerir para a miséria produzida pelo novo industrialismo era a
limitação da população assalariada, e embora isso fosse defendido por alguns
escritos, como Malthus, Bentham e Place, a maioria se rendeu completamente
ao fatalismo econômica, e recusou qualquer esperança aos pobres, exceto a
puramente individual de empurrar e abrir caminho para fora das fileiras dos
trabalhadores rumo a classe média – o evangelho da autoajuda.
Assim, surgiu a teoria econômica anticristã completa, segundo a qual o
único dever dos ricos era aumentar sua riqueza, enquanto o trabalho dos pobres
era uma ferramenta, a ser comprada no mercado o mais barato possível. A vida
econômica do homem não era regulada por leis morais, nem poderia ser
transformada pela caridade; era um território à parte, dominado exclusivamente
pelas leis da oferta e da demanda, pelo aumento da população e do capital.
Essas leis foram aceitas como axiomas inquestionáveis pela maioria dos
filósofos e políticos. Eles encontraram resistência apenas na consciência
desinstruída do povo. Nada é mais notável do que a maneira como os pobres se
apegaram quase instintivamente aos velhos princípios cristãos, do preço justo e
do salário justo, do direito do artesão de viver de seu ofício e do dever da
sociedade de regular as condições econômicas de acordo com fins morais. Mas,
fora o caso de Cobbett, em quem esse medievalismo reprimido encontrou
expressão veemente, os trabalhadores permaneceram quase sem liderança.
Seu conservadorismo inato se chocou tanto com a natureza do proto-Socialismo
de Spence, Hodgskin e Gray, quanto pelo radicalismo científico benthamita de
Francis Place, enquanto os reformadores da classe média que eles apoiavam
usavam seu novo poder para aprovar a nova Lei dos Pobres e votar contra os
Factory Bills de Sadler e Shaftesbury.
Durante esse primeiro período de industrialismo, a opinião católica
praticamente não foi tocada. O novo sistema estava quase totalmente confinado
aos países protestantes. Apenas na Irlanda, e principalmente depois da fome, a
nova doutrina dos direitos de propriedade entrou em colisão aberta com a mente
de uma sociedade católica. No continente, a Igreja ainda estava empenhada em
sua grande luta contra os princípios da Revolução, e só depois que a velha
ordem política finalmente morreu, que o industrialismo realmente começou na
Europa Católica31. Foi só em 1848 que o Barão von Ketteler, depois bispo de
Mainz (1850), começou a atacar os novos problemas do ponto de vista católico.
Na época em que o continente se industrializou em uma escala
comparável à Grã-Bretanha, as velhas falácias do individualismo irrestrito e das
leis econômicas imutáveis haviam se tornado amplamente desacreditadas. A
partir de 1870, vemos o Grande Estado se organizando como um conjunto
econômico para conquistar sua participação no mercado mundial.
Mas apesar do Estado agora intervir para proteger o trabalho das piores
formas de exploração, nenhuma mudança foi feita nos princípios básicos do
materialismo econômico. A luta imoral do materialismo por ganhos foi
meramente estendida da competição de indivíduos para a rivalidade de grandes
nações nos mercados internacionais – uma rivalidade que se tornava cada vez
mais desesperadora à medida que o desenvolvimento da indústria se
intensificava. Durante os últimos cinquenta anos, houve um progresso na riqueza
e na população como o mundo nunca tinha visto antes. O mundo inteiro foi
atraído para uma rede econômica. Preços e lucros se internacionalizaram. A mão
de obra barata e a produção em massa dos países industrializados baseiam-se,
por um lado, na agricultura das pradarias e na alimentação baratas das novas
31No entanto, o principal defensor da tradição social católica no início do século XIX, De Bonald
(1754-1840), insistia fortemente na falsidade das premissas morais em que se baseavam as
novas teorias econômicas. Além disso, ele defendeu a restauração das Guildas; a destruição
que ele considerou um dos grandes males resultantes da propaganda anticristã do século XVIII
(Cf. Legislation Primitive, Pt. 3, ch. 4).
terras; por outro, no controle dos mercados da Índia e de outras terras que ainda
não foram industrializadas.
Parte III
O problema econômico da época atual
I.
O estabelecimento de tal ordem econômica é exigido não apenas por
circunstâncias externas, mas também por uma necessidade humana.
Em quase todos os países industrializados, o trabalhador assalariado está
totalmente insatisfeito. Por quase um século, ele foi alimentado pelas doutrinas
do liberalismo político. Foi ensinado a acreditar na democracia, na cidadania
igual para todos, e não é surpreendente que ele tenha vindo finalmente a exigir
a aplicação dessas teorias em sua vida diária – isto é, em questões econômicas.
Daí a determinação do trabalho organizado em adquirir um padrão de vida fixo,
protegido das flutuações do mercado internacional. Daí também sua tendência
de procurar a satisfação desses ideais no Socialismo, que nasceu na época em
que as perspectivas das classes trabalhadoras pareciam mais desesperadoras,
e que se mostrou pronto para ocupar o lugar dos antigos governos na
desintegração política da Europa que se seguiu a guerra mundial.
As doutrinas socialistas, especialmente em sua forma marxista
“científica”, apesar de serem uma revolta consciente contra as teorias
econômicas vigentes, ainda assim assumiram dos economistas antigos sua
visão materialista e sua fé na operação de leis econômicas inalteráveis. Eles
simplesmente acrescentaram a essas concepções fundamentais uma teoria da
evolução histórica, pela qual ensinavam que o sistema capitalista era um estágio
necessário no desenvolvimento dos artesanatos individuais do passado para o
industrialismo científico socializado do futuro. Assim como o fabricante capitalista
absorve as múltiplas atividades do artesão libre e as subordina a uma tarefa
comum, ele por sua vez também será absorvido pela socialização definitiva da
indústria, que é o fim para o qual ele tende inconscientemente. Assim, o
Socialismo é para o Capitalismo, o que a fábrica moderna é para a oficina
doméstica. A indústria torna-se cada vez mais organizada, o capital continua a
acumular-se, até que finalmente o Estado entra no lugar do milionário e assume
o controle do mecanismo que se tornou vasto e complicado demais para a gestão
privada.
Essa teoria, sem dúvida, contém um elemento de verdade. Marx foi o
primeiro economista a perceber o caráter essencialmente transitório do
industrialismo do século XIX. Seu erro está em sua conclusão – a necessidade
do comunismo de Estado. Isso significa que toda a vida será controlada por um
único organismo, que deve ser centralizado, pois, segundo sua teoria, essa é a
tendência inevitável do processo econômico, e que deve ser secularista em
caráter e objetivos, a fim de se enquadrar em sua interpretação materialista da
história. Isso deve produzir infalivelmente um despotismo burocrático
insuportável; pois se o comunismo é em qualquer caso (mesmo na tribo ou na
cidade) difícil de reconciliar com a liberdade pessoal, o que será quando a
sociedade comunista for um grande estado centralizado, com todas as tradições
de soberania nacional por trás dele?
Dir-se-á, sem dúvida, que nisso o Socialismo apenas reconheceu fatos
reais. Já temos o Grande Estado com seu controle burocrático sobre a vida do
indivíduo. Tudo o que o Socialismo faz é tornar esse controle mais justo e
racional, destruindo a anomalia da distinção de classes e do privilégio
econômico.
Mas a teoria social católica está longe de aprovar o Grande Estado em
qualquer uma de suas formas. O ideal que garantisse ao mesmo tempo um alto
lucro para o trabalhador britânico pela exploração científica de um vasto império
tropical e que usasse a força econômica assim obtida para destruir a competição
de seus rivais mais fracos, é essencialmente anticristão e compartilha de muitas
das objeções que um católico pode fazer contra o Estado socialista. Como o
cardeal Dubois, de Paris, disse recentemente, “o Estatismo é uma heresia”.
O Estado moderno, como o conhecemos, é apenas uma unidade parcial:
ele não abrange nem todo o gênero humano, nem toda a vida do homem
individual que a ele pertence. Precisa ser complementado, por um lado, por uma
sociedade espiritual, por outro, por comunidades nacionais como ela. Pois assim
como o antigo Estado era uma cidade em uma civilização comum de cidades, o
Estado moderno é uma Nação em uma sociedade de Nações. Há uma tendência
constante do Estado em fazer de si mesmo uma unidade absoluta e um fim
último. Somente a civilização medieval teve sucesso em manter o equilíbrio entre
as reivindicações do todo e das partes, entre as quais o Estado Nacional deve
ser contado. Nenhuma unidade parcial tem o direito de se arrogar a posição de
fim último, nenhuma sociedade tem o direito de excluir todas as outras
sociedades.
E como há sociedades acima e fora do Estado, também há sociedades
dentro e abaixo dele. O Estado não pode negar o direito inerente de seus
membros de formar outras associações para objetivos econômicos e sociais
especiais. Fazê-lo seria, nas palavras de Leão XIII, contradizer o princípio de sua
própria existência, uma vez que é direito natural do homem formar essas
sociedades menores, assim como as maiores. Somente pela associação livre os
homens podem alcançar uma vida social e econômica plenamente desenvolvida.
Consequentemente, o verdadeiro ideal social não será encontrado no Estado
unitário centralizado, que absorve todo o controle da vida social e econômica de
seus membros, mas sim no Estado federado cooperativo que dá liberdade de
ação às atividades dos indivíduos e as associações dentro dele.
II.
É nessa linha que se deve resolver o problema econômico de nossa
época, se a solução estiver em harmonia com as necessidades da natureza
humana e com os princípios católicos. A vida econômica, como uma das muitas
atividades do homem, deve encontrar sua própria expressão social e formar seus
próprios órgãos. Deve ser ordenada pela livre associação de indivíduos, não por
uma organização obrigatória proveniente do centro da autoridade política. O
apologista da presente ordem talvez afirmasse que ela preenche essas
condições – que o sistema capitalista é simplesmente o resultado da associação
econômica livre. É claro que o elemento cooperativo não está totalmente
ausente, pois toda a vida econômica implica algum tipo de cooperação. “Divisão
de Trabalho” é realmente cooperação de trabalho, e o comércio internacional
envolve cooperação, bem como competição. Mas essa cooperação pode ser
servil ou forçada. As grandes obras do mundo antigo, como a construção das
pirâmides ou da Grande Muralha da China, foram executadas pelo trabalho de
arrecadação forçada sob o controle da autoridade política ou militar; e o mesmo
com os grandes empreendimentos da era capitalista, os canais de Suez e do
Panamá, por exemplo. Existe livre cooperação entre os elementos dirigentes,
mas os trabalhadores reais são meros instrumentos.
Em uma sociedade industrial estabelecida, é verdade, os trabalhadores
assalariados possuem suas próprias organizações, mas estas não são
organizações de produção, existem para defender os interesses do trabalhador
contra o empregador. Assim encontramos duas associações livre, o Sindicato e
a Sociedade Anônima, organizadas uma contra a outra, e a produção
necessariamente sofre com os interesses opostos e a diferentes políticas das
duas. O grande problema da época atual é como substituir uma cooperação livre
pelas relações dissonantes que atualmente subsistem entre as duas. A solução
capitalista, que ainda prevalece em grande parte nos Estados Unidos, é eliminar
o Sindicato e confiar a fortuna do trabalhador ao despotismo benevolente de seu
patrão, mas isso é obviamente uma reação contra a relação econômica servil
não cooperativa. Por outro lado, a solução socialista é eliminar o capitalista
substituindo o Estado ou seus agentes pela Sociedade Anônima, solução que
acabamos de criticar, com o fundamento de que também é irreconciliável com a
liberdade.
Resta uma terceira solução, que é puramente cooperativa. É amalgamar
as duas associações – a dos proprietários e a dos trabalhadores, de modo a
produzir uma única associação autônoma, controlada e detida em partes iguais
pelos seus membros ativos32. Esta é a solução que talvez tenha atraído mais
pensadores do que qualquer outra. Era o ideal de Owen, de Fourier, de Lassalle,
do bispo Ketteler e de John Stuart Mill. Este último escreveu nas edições
posteriores de sua Economia Política33:
A forma de associação que, se a humanidade continuar a melhorar, deve-se esperar que
predomine no final, não é aquela que pode existir entre um capitalista como chefe e trabalhadores
sem voz na gestão, mas a associação dos próprios trabalhadores em termos da igualdade,
possuindo coletivamente o capital com o qual desenvolvem suas operações, e trabalhando de
acordo com administradores eleitos e destituíveis por eles próprios.
32 Há ainda uma quarta solução, o Socialismo de Guildas, segundo a qual os meios de produção
são propriedade do Estado, mas administrados pelos sindicatos ou corporações organizadas. Eu
não discuti isso separadamente, uma vez que é essencialmente um compromisso que representa
a reação dos socialistas aos ideais cooperativos. Alguns socialistas de guilda permanecem
verdadeiros socialistas, outros, como o Sr. A. Penty, parecem ser puros cooperativistas.
33 Mill Principles of Political Economy, 772-773.
34 Mill Principles of Political Economy, 789-790 (ed. Ashley, 1909).
Mas essas esperanças, que foram alimentadas por tantos líderes do
pensamento em meados do século passado, não estavam destinadas a uma
realização rápida. Durante a geração seguinte, o ideal de produção cooperativa
ficou desacreditado tanto entre os socialistas quanto entre os individualistas. Foi
uma época de progresso material triunfante, e os homens perceberam a
dificuldade de fazer mudanças graduais no vasto organismo mundial da indústria
capitalista. Era difícil acredita que uma indústria de grande escala bem-sucedida
pudesse ser construída com as economias dos trabalhadores, como J. S. Mill e
os cooperativistas ingleses esperavam, e o plano sindicalista alternativo de uma
revolução pela violência e a apropriação forçada do capital deve, excetuando
todas as questões de moralidade, deslocar o tecido da sociedade35, a ponto de
colocar em perigo qualquer tipo de produção.
O bispo Ketteler ao menos percebeu plenamente as dificuldades que se
colocavam no caminho desta mudança fundamental, mas ele tinha uma visão
ampla e não podia se dar ao luxo de se desesperar, já que sua esperança fial
repousava em uma força externa à sociedade.
“Cada vez que considerei a situação”, disse em 1864, “senti nascer em mim a esperança e a
certeza de que as poderosas aspirações desta ideia (de associações produtivas), e a
concretizarão em larga escala. Que influência não seria exercida pela criação de sociedades de
produção baseadas em princípios cristãos, em meio aos territórios dos escravos brancos do
industrialismo? Quais não seriam os resultados se homens de boa vontade, depois de reunir o
capital necessário, oferecessem aos trabalhadores a chance de participarem de uma empresa
cooperativa, na qual todos os lucros que não fossem necessários para o bom funcionamento do
negócio se tornassem propriedade dos próprios trabalhadores?”
“Longe de mim pensar que as classes trabalhadoras serão repentina e universalmente socorridas
por esses meios. Atualmente, a única classe da sociedade que pode agir com eficácia – a classe
dos capitalistas e magnatas industriais – está muito, muito longe do Cristianismo. Mas nenhuma
tarefa é grande mais para aquele fogo da caridade divina, que foi trazido ao mundo por Jesus
Cristo. Aí está minha esperança para o futuro. Cada novo naufrágio de esforços humanos para
ajudar as classes trabalhadoras apenas nos aproxima do tempo em que o próprio Deus virá em
seu auxílio, através do Cristianismo”36.
35 “Tecido social” é uma metáfora para a ordem social e, em particular, sugere a ideia de que a
ordem social é feita de muitos “fios” (ambientes ou meios sociais) que são tecidos juntos
(interligados) e coesos.
36 Goyau Georges, “Ketteler”, pp. 203-210. Esta importante passagem de Die arbeiter-Frage un
das Christenthum infelizmente é muito longa para ser citada por completo.
Este é o espírito que “tudo crê e tudo espera”37, mas de qualquer outro
ponto de vista, deve-se admitir que uma organização cooperativa da indústria
dificilmente seria possível nas condições do século dezenove. Nestes períodos
de transição, quando as condições mudam constantemente e os mercados se
expandem rapidamente, a concentração do poder econômico nas mãos de
poucos é inevitável. Nas novas condições que discutimos, entretanto, o caso se
altera. Quanto mais o mundo é preenchido e as principais fontes de produção
são alocadas às necessidades de determinados países, mais os métodos de
produção e as demandas dos consumidores tendem a se tornar padronizados,
e mais fácil será para a indústria contar com uma produção fixa de qualidade
definida. Durante o século passado, a conquista de novos mercados, a
introdução de novos processos e as alterações contínuas na demanda e na
oferta, introduziram um enorme elemento de risco e favoreceram a competição
e a especulação. Mas a situação industrial do Estado Estacionário será bastante
semelhante à da cidade medieval, onde havia pouca flutuação na quantidade e
qualidade da produção e do consumo.
Acima de tudo, se deve lembrar que, nas novas condições, o isolamento
entre indústria e agricultura terá de terminar. Até agora, os reformadores sociais
pouco fizeram para coordenar os dois. O socialista geralmente deseja conformar
toda a produção ao modelo da indústria em grande escala. O individualismo do
camponês o choca tanto quanto o capitalismo do latifundiário, e ele está pronto
para resolver os problemas agrários por meio de medidas tão drásticas e
impraticáveis, como o cultivo indiscriminado da terra por exércitos de trabalho38.
Por outro lado, o reformador agrário, que está ansioso para melhorar as
condições em seu próprio departamento pela introdução de métodos
cooperativos, é frequentemente hostil às reivindicações da população industrial,
e tende a deixar as grandes cidades e seus problemas por conta própria. Daí a
atual oposição violenta entre a cidade e o campo no sul da Alemanha, Hungria
e, em certa medida, na França, uma oposição que só não é aparente na
Inglaterra devido à relativa falta de importância da agricultura e ao fato de que,
no sistema inglês, a posição do Trabalho tem sido pior na agricultura do que na
indústria.
Até agora, o sucesso do industrialismo foi parcialmente produzido pela
exploração do lado agrário da vida nacional. Por gerações, os elementos mais
fortes e empreendedores da população agrícola foram atraídos para as cidades
e o país foi deixado estagnado. Mas, nas novas condições, nenhum país pode
se dar ao luxo de negligenciar sua vida rural. A prosperidade de uma sociedade
basear-se-á cada vez mais em sua população e produção agrícolas; e a
indústria, em vez de depender principalmente de fatores internacionais, será a
superestrutura construída sobre esse desenvolvimento agrário. Assim, mais uma
vez, seria possível que houvesse um verdadeiro vínculo social entre a cidade e