Aula 04 - Platão
Aula 04 - Platão
Sumário
Introdução ............................................................................................................................... 2
1. O Banquete ........................................................................................................................ 4
2. Ménon ................................................................................................................................. 5
3. A República ........................................................................................................................ 8
3.1 A linha dividida ............................................................................................................. 9
3.2 A alegoria da caverna ................................................................................................ 10
Conclusão ............................................................................................................................. 12
Bibliografia ............................................................................................................................ 12
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Isto não é Filosofia
Isto não é um Curso de História da Filosofia
Prof. Vitor Ferreira Lima
Licenciado em Filosofia (UFRRJ)
Introdução
Platão não partia das divisões que hoje utilizamos para estudar Filosofia. Todas
elas são posteriores aos gregos. Ainda assim, é possível encontrar em sua obra
problemas, teorias e argumentos relativos a, pelo menos, quatro campos do saber que
até hoje são tributários seus. Muitos historiadores o interpretam como quem se preocupa
fundamentalmente com a possibilidade alcançarmos o conhecimento (epistemologia),
a vida boa (ética), a adequada condução do estado (política) e, para isso, propõe
reflexões sobre a estrutura mais básica da realidade (metafísica).
Seus escritos indicam uma disputa contra os sofistas em uma luta ética e política
contra uma possível degradação da prática do discurso. Uma vez que esses professores
ensinariam o uso da persuasão, em detrimento da busca pela verdade, e que os
atenienses cada vez mais lhes concediam espaço, a prática de manipulação da
multidão, do uso de metáforas inexatas e de ambiguidades vinha se tornando cada vez
mais comum no âmbito público.
Diante dessa situação histórica, muitos interpretam a obra do filósofo como
reação às práticas decadentes da democracia ateniense. Sua busca seria por uma
reconciliação com valores opostos aos dos sofistas. Contra a prática democrática que
aceitava de modo passivo o estímulo às paixões, às opiniões, aos interesses dispersos
e ao discurso não verdadeiro, Platão defende uma renovação política em que o governo
seria formado por pessoas sábias, o que só seria possível caso houvesse uma
reestruturação de toda a sociedade e do modo como lidamos com o conhecimento e
concebemos a totalidade das coisas.
Platão escreveu em formato de diálogos – principalmente, ainda que algumas
cartas tenham chegado até nós. Em suas obras dialogadas procura mostrar que, ao
aceitar as regras da conversa, os interlocutores buscam se aproximar progressivamente
da verdade e não meramente disputar para vencer uma batalha intelectual. Ao contrário
do que hoje chamaríamos de debates, o intuito de cada um no diálogo – por mais que
um fale mais que o outro, conduzindo a conversação – é superar as divergências de
opinião e alcançar aquilo que vale para todos. O que Platão busca com o seu gênero
literário é nada menos que colocar a própria Filosofia em ação (se você for bom em
imaginação, pode inclusive visualizar uma peça de teatro se desenrolando em sua
mente à medida em que os personagens agem).
Diálogos de Platão
Diálogos socráticos Fase intermediária Fase madura Fase final
Apologia de Sócrates Protágoras Crátilo Timeu
Íon Górgias Teeteto Crítias
Hípias menor Menexeno Parmênides As leis
Laques Eutidemo O sofista Epinomis
Cármides O Banquete O político
Críton Fédon Filebo
República (Livro I) Ménon
Hípias maior A República
Eutífron Fedro
Lísis
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1. O Banquete
Para que o saber seja seguro, não pode ser mutável, nem relativo a nada a não
ser a si mesmo. Para argumentar a favor da possibilidade de captar um saber desse
gênero, um dos modelos favoritos de conhecimento de Platão era a geometria. Inclusive,
consta que na entrada da Academia, escola fundada pelo filósofo, estava escrito: “não
entre aqui aquele que não souber geometria”. Isso porque um triângulo é um triângulo
independente de opinião. Caso pareça um quadrado a alguém, é esse alguém quem
está enganado, não a realidade da figura geométrica. Isso só acontece porque a
realidade dessa figura não depende dos sentidos de quem a percebe. O triângulo – e
qualquer objeto matemático – é uma realidade em si.
Para Platão, ser uma realidade em si significa dizer que esse ser é uma realidade
independente de circunstâncias particulares. No caso do exemplo do triângulo, sua
representação sensível pode ser o que for – pequena, grande, verde, amarela, nítida,
não nítida. O que interessa é que a essência de ser triângulo (isto é, ter três ângulos)
não é modificada por seja qual for a contingência.
Nosso filósofo aborda a totalidade da realidade nesse passo e defende que
valores, qualidades, propriedades podem ser captados como modelos em si. O que
veríamos por intermédio dos sentidos seriam meras cópias, imagens, imitações dessas
realidades modelares. Por não nos darmos conta disso, pensamos que estamos diante
do último grau de realidade quando, na verdade, só estamos diante da possibilidade
mais distante do que seria o verdadeiro real. Para se referir a essas últimas, o filósofo
geralmente utiliza adjetivos substantivados, tais como “o bom”, “o justo” e “o belo”.
Sobre esse último modelo e o trajeto até ser alcançado, Platão escreve o Banquete.
Também conhecido como Symposium, trata-se de um diálogo platônico
composto por uma série de discursos sobre a natureza do amor (Eros). Aqui é
estabelecido o que é o amor platônico, que, aliás, pouco se relaciona ao que o senso
comum nos informa – algo idealizado, inalcançável, meramente imaterial. O amor é
pensado, ao menos em princípio, como algo relacional, sempre em busca de algo que
não possui, tal qual o filósofo (amigo da sabedoria) busca o saber, que não possui, mas
que preza. O que não possui e o que, consequentemente, busca é o belo. O que importa
aqui, no entanto, é saber como essa busca do belo por meio do amor se relaciona com
o alcance daquela realidade em si, defendida por Platão.
Devido ao caráter imaterial, incorpóreo das realidades em si, não é possível
captá-las apenas pelos sentidos. Elas são de natureza inteligível, o que significa que
só podem ser captadas pelo intelecto. Haveria uma parte da alma (psykhé) que teria
por função captá-las de forma intelectual por intermédio de uma faculdade denominada
por Platão de nóesis, traduzida comumente por “visão intelectual” – um dos tantos
exemplos gregos que compõe o imaginário cotidiano até hoje quando identificamos a
visão e a claridade ao conhecimento, e a cegueira e a escuridão à ignorância.
Quando a visão intelectual enxerga, no entanto, não capta imagens sensíveis,
mas apenas formas, aspectos – por falta de palavras melhores, uma vez que “forma” e
“aspecto” comumente também remetem a algo que pode ser visualizado e, portanto,
captado pelos sentidos. Platão se refere a essas realidade com duas palavras: idea e
eidos. Por vezes, os tradutores usam a palavra “ideia” para latinizar os vocábulos
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gregos. Isso faz com uma das teorias mais famosas de Platão seja denominada de
Teoria das Ideias. Esse nome, entretanto, pode levar a equívocos, uma vez que o léxico
“ideia” modernamente está mais associado a algo que está contido na mente humana
que algo que é dela independente. Como, para o filósofo grego, esse último caso é o
mais correto, é aconselhável, para não gerar confusão, trocar “ideia” por “forma”, de
modo que muitos historiadores preferem o termo “Teoria das Formas”. Trata-se de
perspectiva a partir da qual há realidades em si somente visíveis ao intelecto que, por
não estarem condicionadas pelas realidades sensíveis – mutáveis por natureza –, são
absolutas. Seu grau de realidade é supremo, o que permite que forneça a possibilidade
de existência a tudo o que é sensível, perecível e mutável.
Permanece o problema ainda de como identificar as Formas, dado que não são
sensíveis. Platão não é claro quanto a essa possibilidade em termos discursivos e
conceituais. Todas as vezes que tenta explicar como acontece essa trajetória, faz uso
de alegorias, com o intuito de ilustrar como aconteceria esse processo e não o descrever
em detalhes. Retornando ao Banquete, uma das alegorias mais conhecidas desse
processo é expressa nessa obra. Trata-se da “Escada de Diotima”.
Diotima de Mantineia é apresentada no discurso de Sócrates no Symposium,
como sendo sua professora na arte do amor. Ela lhe ensinou que o amor é uma tentativa
de buscar o belo na pessoa amada ou no objeto de desejo. Essa característica,
entretanto, faz com que o amante, aos poucos, entenda que precisa ir muito além do
simples amor a pessoas belas para alcançar a verdadeira Beleza. É aí que ela propõe
a imagem de uma escada. Nos primeiros degraus, o amor impele a buscar a beleza em
corpos belos. Nos degraus posteriores, o amor impele a empreender a mesma busca
na matemática e nas formas geométricas perfeitas. Ainda nesse rumo ascendente, o
amor se volta para os conceitos belos, os belos sentimentos. Só após subir muitos
patamares, os de cima cada vez menos dependentes da sensação em relação aos de
baixo, que a alma estaria preparada para captar o Belo em si. Mas o que seria o Belo
em si? Diotima não expressa, até porque expressá-lo significaria comunicá-lo em termos
sensíveis, imagéticos. Porém, ao assim fazê-lo a própria noção de visão intelectual
estaria contaminada. A natureza das Formas, então, é completamente inteligível e
captá-la implica abandonar qualquer tentativa de descrevê-la de modo sensorial.
2. Ménon
Como Platão explica a existência das formas e o acesso a elas pela mente
humana? Uma boa indicação para essa resposta é o diálogo Ménon. Nessa obra, o que
está em exame é a questão sobre a possibilidade de ensinar a virtude a alguém. Muitos
outros assuntos correlatos também são mencionados, como problemas relativos ao
próprio ensino e ao conhecimento.
Nesse sentido, é apresentada, de modo bastante evidente, a doutrina da
reminiscência de Platão.
Considerando-se que a alma é imortal, renasceu muitas vezes e contemplou todas as coisas tanto
neste mundo como no mundo subterrâneo dos mortos, nada há que não haja aprendido; disso se
conclui que não é de se surpreender que seja capaz de lembrar-se de tudo que aprendeu
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anteriormente a respeito da virtude bem como sobre outras coisas. Como o todo da natureza tem
afinidade, e a alma aprendeu todas as coisas, nada há que nos impeça, após lembrarmos de uma
única coisa – processo que os seres humanos denominam aprendizado – de descobrir tudo o mais
por nós mesmos, se formos corajosos e não fraquejarmos na investigação, isso porque
investigação e aprendizado, como um todo, consistem em reminiscência. (81c)
Eis o paradoxo: para conhecer algo, é preciso ser capaz de identificá-lo, mas
como identificá-lo se não o conhecemos? A solução de Platão é postular que o
conhecimento é inato, isto é, já vem conosco e não depende de aprendizado posterior,
somente de uma recordação do que já sabemos. A alma (psykhé) traz consigo o
conhecimento das formas, porque habitou essa realidade antes do nascimento num
corpo sensível. A partir dessa vinda ao mundo material, tal vivência passada é
obscurecida, sendo o aprendizado um longo caminho de lembrança do que já se sabe.
Cabe ao filósofo ajudar a despertar o que está nublado e trazer à luz as ideias que já se
encontram no intelecto de cada um.
A esse procedimento deu-se o nome de maiêutica, abordagem geralmente
associada a Sócrates, cuja tradução em português costuma ser parto de ideias.
Sócrates disse ser sua mãe uma parteira e ser ele próprio um profissional do parto
metafórico dos conceitos em seus interlocutores. Afirmamos na aula anterior que essa
prática se coaduna com o procedimento socrático de conversar e propiciar aos
interlocutores novas ideias que antes não percebiam. Porém, fica claro agora que se
trata da concepção platônica da reminiscência. O caso que serve de ilustração para
esse procedimento é o seguinte.
Sócrates mostra como o escravo de Ménon, que ali se encontrava também, é
capaz de demonstrar conhecimentos de geometria que julga não saber. Eis, em linhas
gerais, a condução da conversa.
Sócrates inicia desenhando um quadrado de duas unidades de medida cada
lado, como este:
A seguir, indica uma série de estratégias para que o escravo calcule a área, o
que ao fim do procedimento acontece. O escravo chega ao resultado correto de número
quatro. Sócrates, então, pergunta:
Qual seria a área do quadrado, caso ele tivesse o dobro do tamanho?
O escravo responde corretamente que, nesse caso, o quadrado mediria oito
unidades. Eis, então, que Sócrates coloca sua questão principal:
Quanto mede o lado desse segundo quadrado hipotético?
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Nesse caso, o que o filósofo que saber, em outras palavras, é isto: qual a raiz
quadrada de oito (√8)? Isso porque a área de um quadrado é medida por duas vezes o
seu lado (a = l²), o que é mesmo que dizer que a raiz quadrada da área do quadrado é
igual a um de seus lados (√a = l).
O escravo pensa ser fácil a resposta. Raciocina erroneamente que se o
quadrado de lado dois implicou uma área de medida quatro (l = 2 → a = 4), então um
quadrado de lado quatro implicará uma área de medida oito (l = 4 → a = 8), mais ou
menos assim:
Sócrates mostra que o raciocínio não é bem esse. Ao propor uma simples dobra
do lado do quadrado, fazendo com que passe a valer quatro e não mais dois, a medida
da área não seria o dobro, mas o quádruplo. O desenho a seguir, também riscado pelo
filósofo, ao explicitar os quatro quadrados torna evidente o erro:
O filósofo pergunta ao escravo qual seria a área, já que o lado da figura agora é
três. Com a questão, o escravo se dá conta que errara novamente, posto que três vezes
três é nove e não oito, conforme pretendera. O escravo, com isso, encontra-se em
aporia e não sabe para onde ir.
Sócrates retorna à questão errada anterior – o quadrado de lado quatro:
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A partir desse desenho, o filósofo corta cada um dos quadrados internos pela
metade, desta maneira:
Seu intuito é mostrar que a figura que eles precisam mede a metade desse
quadrado – é preciso lembrar que a área aqui é dezesseis, quando a área que procuram
é de oito medidas. Ao fazer esses riscos, porém, Sócrates chega ao quadrado a que
tanto queriam chegar. Basta que contemos os triângulos dentro do quadrado de duas
medidas (são dois triângulos no total) e que contemos os triângulos no quadrado
desenhado por Sócrates por último (são quatro triângulos – o dobro exato do que
contém a primeira figura):
O escravo, assim, consegue chegar à resposta, ainda que julgasse antes nada
saber de geometria. Eis a doutrina da reminiscência na prática.
3. A República
Platão é conhecido por seu dualismo, que é a tese de que, em um certo domínio
da realidade, existem dois gêneros de coisas diferentes e irredutíveis entre si. O
dualismo pode ser aplicado tanto à realidade como um todo, como a um aspecto
apenas. Quanto ao primeiro caso, pode-se defender a tese de que há dois tipos de
coisas na realidade: as materiais e as não materiais, por exemplo. Quanto ao segundo
caso, pode-se argumentar a favor da diferença entre mente, de um lado, e corpo, de
outro, um não sendo redutível ao outro. Platão defendia as duas formas – para ele, tanto
a realidade podia ser dividida em duas, quanto a alma humana podia ser separada do
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corpo. Duas grandes ilustrações do que propunha Platão podem ser encontradas em
seu diálogo A República: o exemplo da linha dividida e a alegoria da caverna.
REALIDADE
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A alegoria da caverna não é uma teoria de Platão, mas sim uma tentativa didática
de expressar sua Teoria das Formas. Nesse sentido, explicá-la com outras palavras já
seria estranho, dado que se configuraria algo como a explicação da explicação. Penso,
por isso, ser mais útil que você mesmo leia, com toda a calma e cuidado o trecho de A
República (514a – 517c) na íntegra.
Sócrates: Agora imagine a nossa natureza, segundo o grau de educação que ela recebeu ou não, de
acordo com o quadro que vou fazer. Imagine, pois, homens que vivem em uma morada subterrânea em
forma de caverna. A entrada se abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior
desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem
voltar a cabeça para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás
deles, ao longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe. Imagine que esse caminho
é cortado por um pequeno muro, semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem entre
eles e o público, acima do qual manobram as marionetes e apresentam o espetáculo.
Glauco: Entendo.
Sócrates: Então, ao longo desse pequeno muro, imagine homens que carregam todo o tipo de objetos
fabricados, ultrapassando a altura do muro; estátuas de homens, figuras de animais, de pedra, madeira ou
qualquer outro material. Provavelmente, entre os carregadores que desfilam ao longo do muro, alguns
falam, outros se calam. Glauco: Estranha descrição e estranhos prisioneiros! Sócrates: Eles são
semelhantes a nós. Primeiro, você pensa que, na situação deles, eles tenham visto algo mais do que as
sombras de si mesmos e dos vizinhos que o fogo projeta na parede da caverna à sua frente? Glauco: Como
isso seria possível, se durante toda a vida eles estão condenados a ficar com a cabeça imóvel? Sócrates:
Não acontece o mesmo com os objetos que desfilam?
Glauco: É claro.
Sócrates: Então, se eles pudessem conversar, não acha que, nomeando as sombras que veem, pensariam
nomear seres reais?
Glauco: Evidentemente.
Sócrates: E se, além disso, houvesse um eco vindo da parede diante deles, quando um dos que passam
ao longo do pequeno muro falasse, não acha que eles tomariam essa voz pela da sombra que desfila à sua
frente? Glauco: Sim, por Zeus. Sócrates: Assim sendo, os homens que estão nessas condições não
poderiam considerar nada como verdadeiro, a não ser as sombras dos objetos fabricados. Glauco: Não
poderia ser de outra forma. Sócrates: Veja agora o que aconteceria se eles fossem libertados de suas
correntes e curados de sua desrazão. Tudo não aconteceria naturalmente como vou dizer? Se um desses
homens fosse solto, forçado subitamente a levantar-se, a virar a cabeça, a andar, a olhar para o lado da
luz, todos esses movimentos o fariam sofrer; ele ficaria ofuscado e não poderia distinguir os objetos, dos
quais via apenas as sombras anteriormente. Na sua opinião, o que ele poderia responder se lhe dissessem
que, antes, ele só via coisas sem consistência, que agora ele está mais perto da realidade, voltado para
objetos mais reais, e que está vendo melhor? O que ele responderia se lhe designassem cada um dos
objetos que desfilam, obrigando-o com perguntas, a dizer o que são? Não acha que ele ficaria embaraçado
e que as sombras que ele via antes lhe pareceriam mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram
agora?
Sócrates: E se o forçassem a olhar para a própria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria
as costas e voltaria para as coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do
que as coisas que lhe mostram?
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Glauco: Ele não poderá vê-los, pelo menos nos primeiros momentos.
Sócrates: É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá mais
facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidas na água, depois os
próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio
céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e para a luz
do sol.
Glauco: Sem dúvida. Sócrates: Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou
em outra superfície lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é. Glauco: Certamente.
Sócrates: Depois disso, poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é ele que produz as estações e os
anos, que governa tudo no mundo visível, e que é, de algum modo a causa de tudo o que ele e seus
companheiros viam na caverna. Glauco: É indubitável que ele chegará a essa conclusão. Sócrates: Nesse
momento, se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos
companheiros, não acha que ficaria feliz com a mudança e teria pena deles?
Sócrates: Quanto às honras e louvores que eles se atribuíam mutuamente outrora, quanto às recompensas
concedidas àquele que fosse dotado de uma visão mais aguda para discernir a passagem das sombras na
parede e de uma memória mais fiel para se lembrar com exatidão daquelas que precedem certas outras ou
que lhes sucedem, as que vêm juntas, e que, por isso mesmo, era o mais hábil para conjeturar a que viria
depois, acha que nosso homem teria inveja dele, que as honras e a confiança assim adquiridas entre os
companheiros lhe dariam inveja? Ele não pensaria antes, como o herói de Homero, que mais vale “viver
como escravo de um lavrador” e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória da caverna e
viver como se vive lá?
Glauco: Concordo com você. Ele aceitaria qualquer provação para não viver como se vive lá.
Sócrates: Reflita ainda nisto: suponha que esse homem volte à caverna e retome o seu antigo lugar. Desta
vez, não seria pelas trevas que ele teria os olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol?
Glauco: Naturalmente.
Sócrates: E se ele tivesse que emitir de novo um juízo sobre as sombras e entrar em competição com os
prisioneiros que continuaram acorrentados, enquanto sua vista ainda está confusa, seus olhos ainda não
se recompuseram, enquanto lhe deram um tempo curto demais para acostumar-se com a escuridão, ele
não ficaria ridículo? Os prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista perdida,
que não vale mesmo a pena subir até lá? E se alguém tentasse retirar os seus laços, fazê-los subir, você
acredita que, se pudessem agarrá-lo e executá-lo, não o matariam? Glauco: Sem dúvida alguma, eles o
matariam.
Sócrates: E agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar exatamente essa alegoria ao que dissemos
anteriormente. Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à estada na prisão, a luz do fogo
que ilumina a caverna à ação do sol. Quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que
se trata da ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre minha esperança, já que
desejas conhecê-la. Deus sabe se há alguma possibilidade de que ela seja fundada sobre a verdade. Em
todo o caso eis o que me aparece tal como me aparece; nos últimos limites do mundo inteligível aparece-
me a ideia do Bem, que se percebe com dificuldade, mas que não se pode ver sem concluir que ela é a
causa de tudo o que há de reto e de belo. No mundo visível, ela gera a luz e o senhor da luz, no mundo
inteligível ela própria é a soberana que dispensa a verdade e a inteligência. Acrescento que é preciso vê-la
se quer comportar-se com sabedoria, seja na vida privada, seja na vida pública.
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Conclusão
Platão elaborou a Teoria das Formas para justificar o objeto do conhecimento,
que deve ser algo para além das meras opiniões e deve fundamentar a existência de
tudo o que é sensível, em todos os âmbitos: dos costumes ao mundo intelectual. Não é
que o âmbito sensível não exista, é que não se trata de toda a realidade, tal qual
defendiam os sofistas. Trata-se de uma realidade derivada das Formas que somente
participa desse grau último de existência. Há problemas quanto à possibilidade de tais
categorias da realidade existirem de fato. Uma das críticas mais conhecidas vem
justamente do discípulo mais conhecido de Platão. Examinaremos com mais vagar esse
assunto na próxima aula.
Bibliografia
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