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Jonathan Crary - Géricault, o Panorama e Os Espaços de Realidade No Início Do Século XIX

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Géricault, o Panorama e os

REVISTA ECOPÓS | ISSN 2175-8689 | TRANSFORMAÇÕES DO VISUAL E DO VISÍVEL | V. 17 | N. 2 | 2014 | DOSSIÊ


Espaços de Realidade no
início do Século XIX1

Géricault, the Panorama, and


Sites of Reality in the early
Nineteenth Century
1 Nota do autor – “Este artigo é o texto de uma palestra realizada recentemente em vários locais, e
eu sou grato a meus anfitriões e audiências em Brown, Cornell, Princeton, Emory, Yale, University of
Washingtone Whitney ISP. Os meus agradecimentos vão também para os editores da Grey Room pela
ajuda e pelos conselhos”.
CRARY, Jonathan. Géricault, the Panorama, and Sites of Reality in the Early Nineteenth Cen-
tury, Grey Room, n. 9 (Autumn, 2002), p. 5-25, The MIT Press. Disponível em: <http://www.jstor.org/
stable/1262599>. Acesso em 31 de agosto de 2014.

Jonathan Crary
Tradução:
Joana Negri
Doutoranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
E-mail: [email protected]

SUBMETIDO: 14/08/2014
ACEITO: 30/08/2014

DOSSIÊ
RESUMO
Lançando mão de diferentes obras artísticas, Jonathan Crary discute a formação do espectador
moderno no final do século XVIII. O participante multifacetado das feiras da Europa pré-moderna é
substituído por um observador privatizado e individualizado, destinado ao consumo de mercador-
ias em massa e produto de um processo de disciplinarização. A primazia da visão sobre os demais
sentidos emerge acompanhada de imperativos de autocontrole visíveis em novos espaços como os
dispositivos panorâmicos que o autor explora no artigo. Dialogando com Roland Barthes, Crary dis-
corre sobre os “efeitos de realidade” em jogo nos panoramas e seus impactos na audiência moderna.
PALAVRAS-CHAVE: Espectador; Visão; Panorama; Realidade.

ABSTRACT
Through different artistic works, Jonathan Crary discusses the formation of the modern viewer in
the late eighteenth century. The multifaceted fairground participant of the pre-modern Europe
is replaced by a privatized and individualized observer made for the mass consumption of com-
modities and that was product of a disciplinary process. The primacy of vision over the other senses
emerges accompanied by imperatives of self-control visible in new spaces such as the panoramic
devices explored by the author in the article. In dialog with Roland Barthes, Crary discusses the “real-
ity effects” at stake in panoramas and its impact on modern audience.
KEYWORDS: Spectator; Vision; Panorama; Reality.

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M
esmo que nosso presente dê uma guinada sem direção ao século XXI, ainda
há um sentimento generalizado de que uma arqueologia de nosso mundo
perceptivo, em rápida mudança, começa no século XIX, em meio ao que Jean-

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Louis Comolli já memoravelmente descreveu como o “frenesi do visível”1. Os motivos
para afirmar isso certamente teriam menos a ver como fato de o cinema e a fotogra-
fia foram invenções do século XIX (a transitoriedade relativa dessas formas é agora
evidente). Antes, se é valioso insistir em continuidades entre o presente e 150 anos
atrás, essas ligações envolveriam a posição do espectador e a persistência de cer-
tos imperativos de consumo, atenção e competência perceptiva. Ao invés de focar
no desenvolvimento de aparelhos ou tecnologias específicas, como o cinema ou a
fotografia, acredito que é mais importante observar como um grupo relacionado de
estratégias,por meio do qual um sujeito é modernizado como espectador, percorre
uma série de objetos e posições aparentemente diferentes.

IIIII

Para avançarmos rapidamente do geral para o concreto, consideremos Southwark


Fair, de William Hogarth, da década de 1730, um trabalho distante, em vários aspec-
tos, dos problemas modernos que acabo de esboçar. É, no entanto, uma imagem na
qual podemos ver formas da cultura pré-moderna e moderna coexistindo lado a lado.
Claramente, estamos olhando para os restos de um fenômeno social tradicional es-
gotado, no fim de sua presença na experiência coletiva europeia. Ao invés de uma
representação literal de uma feira específica, vemos aqui a sobrevivência marginal do
que haviam sido as energias do carnaval dos festivais da Europa pré-moderna. Mesmo
através dos próprios preconceitos de classe de Hogarth – que privilegiou a parcimônia,
a conjugalidade, a compostura e a laboriosidade – ainda temos uma tênue noção de
como a desordem do carnaval perturba a distinção entre espectador e performer, de-
sestabiliza qualquer posição fixa ou identidade, parodia e profana formas oficiais por
meio de inversões do alto pelo baixo e sugere uma mistura repleta de modalidades
sensoriais: a tatialidade dos corpos se misturando, sons e cheiros, tudo, ao menos,
coigual à visão. Mas, ao mesmo tempo, é evidente que os fragmentos que restaram
do carnaval, a vertigem do mundo às avessas, haviam sido, a esta altura, relegados ao
terreno das feiras, separados da vida econômica mais racionalizada da cidade.

FIGURA 1 – William Hogarth. “Southwark Fair”, 1730s. Gravura.

1 Jean-Louis Comolli, “Machines of the Visible”, in “The Cinematic Apparatus”, ed. Teresa de Laueretis e Stephen Heath (London:
Macmillan, 1980), 122.

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FIGURA 1 – William Hogarth. “Southwark Fair”, 1730s. Gravura.

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Isto me leva a um determinado componente da cena turbulenta de Hogarth: os dois
indivíduos sentados no canto, olhando para um peep-show2 de duas faces. Aqui,
temos dois espectadores constituídos e posicionados de forma muito distinta de
qualquer outra pessoa retratada na gravura. Estas figuras imóveis e absorvidas, in-
teragindo com a janela do peep-show, antecipam um dos principais caminhos que
a cultura popular irá traçar do século XVIII para o XIX e, eventualmente, até mesmo
para o nosso próprio tempo. E é um processo que elimina ou ao menos sublima a pos-
sibilidade do carnaval. As continuidades que estou pensando podem ser sugeridas,
por exemplo, considerando-se a configuração de peep-show do Kaiser panorama, no
início dos anos 1880, ou o arranjo em miniatura semelhante do estereoscópio, que
foi difundido ao longo da segunda metade do século XIX (ou muitas outras formas
equivalentes). Eu não estou apontando para qualquer tipo de linhagem tecnológica
ou alguma sucessão dependente da melhoria ou do desenvolvimento de dispositivos,
como se as questões importantes dissessem respeito ao aparelho visual em seu senti-
do literal. Ainda que o modelo do peep-show possa ser perseguido no sentido inverso
da década de 1730 – de volta às “caixas de perspectiva” do século XVII e, provavel-
mente, mais longe no século XVI – o que me interessa é o movimento que começa
no final do século XVIII, quando o espectador do peep-show coincide, de um modo
geral, com as considerações de Walter Benjamin sobre o leitor do romance como um
novo consumidor isolado de uma mercadoria produzida em massa. O modelo do apa-
relho óptico, que aparece no canto da feira de Hogarth, desloca-se de um elemento
relativamente menor dos primeiros anos da cultura popular moderna para tornar-se
um modelo poderoso do que viria a caracterizar as formas dominantes de cultura
visual na Europa e na América do Norte – ou seja, a relativa separação do espectador
de um meio de distração e o destacamento da imagem de um pano de fundo maior.
O dispositivo físico é simplesmente uma figura da insularidade psíquica, perceptiva e
social mais ampla do espectador, bem como do privilégio disseminado da visão sobre
os sentidos do tato e do olfato. Mikhail Bakhtin indica que, após o desaparecimento
do carnaval, a experiência, no século XIX, adquire um caráter de “câmara privada” para
um sujeito fechado e privatizado3.
2 Sobre a história do peep-show, ver “Der Guckkasten: Einblick, Durchblick, Ausblick”, ed. David Robinson, Wolfgang Seitz et al.
(Stuttgart: FiisslinVerlag, 1995); e Richard Balzer, “Peep shows: A Visual History” (New York: Abrams, 1998).
3 Ver, como exemplo, Mikhail Bakhtin, “Rabelais and His World”, trad. Helene Iswolsky (Cambridge: MIT Press, 1968), 276-277; e
Bakhtin, “Problems of Dostoevsky’s Poetics”, trad. Caryl Emerson (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984), 130-132.

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FIGURAS 3, 4 e 5 – Acima, à esquerda: Quinetoscópio, 1890s;
acima, à direita: Estereoscópios em uso, 1860s; abaixo: Kaiserpanorama, 1880s.

IIIII REVISTA ECOPÓS | ISSN 2175-8689 | TRANSFORMAÇÕES DO VISUAL E DO VISÍVEL | V. 17 | N. 2 | 2014 | DOSSIÊ

Como trabalhos recentes têm demonstrado, um dos principais componentes da for-


mação da cultura visual do século XIX foi a educação e a formação de indivíduos e
coletividades para os quais novas formas de consumo visual estavam em produção.
Dentre as muitas maneiras em que isso se deu, incluiu-se a autodisciplina do espe-
ctador como um ocupante ou um visitante de espaços interiores e instituições: em
certo sentido, a formação de plateias modernas. A primazia da visualidade foi acom-
panhada de imperativos para vários tipos de autocontrole e repressão social, em
particular para modos de atenção que exigiam relativo silêncio e imobilidade. Como
Tony Bennet e outros apontaram, o museu público (seja de arte ou de história natural)
emergiu como um dos locais no século XIX onde novos tipos de relações sociais rep-
resentavam possíveis problemas4. Em meio às tendências democratizantes da Europa
pós-revolucionária havia a preocupação de que uma mistura irregular de classes so-
ciais implicasse desordens de feira a espaços públicos interiores, prejudicando assim
as agendas pedagógicas e ideológicas dessas instituições. Quando o Crystal Palace

4 Tony Bennett, “The Birth of the Museum: Theory, History, Politics” (London: Routledge, 1995).

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estava em construção, por exemplo, havia considerável ansiedade oficial de que um
espaço interior de grande porte fosse ameaçado por comportamentos indisciplinado
se embriaguez pública. Uma grande força de segurança foi recrutada e fixada no lo-

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cal no dia de sua inauguração e nos dias de redução tarifária, mas a ação se mostrou
desnecessária5. Neste momento decisivo da exposição de bens de consumo manu-
faturados, praticamente não houve incidentes. O brilho da mercadoria irradiava suas
próprias exortações para o autocontrole.

IIIII

Um local em particular na Europa tem sido especialmente fascinante para aqueles que
estudam a cultura visual do século XIX: o Salão Egípcio que funcionou em Londres,
na área do Piccadilly, de forma mais ou menos contínua de 1812 até 1904, quando
o edifício – então um salão para exposições cinematográficas iniciais – foi demolido.
Originalmente chamado de Museu de Londres por seu fundador William Bullock, rapi-
damente o espaço foi nomeado de Salão Egípcio por conta de sua escultura egípcia
em relevo e hieróglifos simulados em seu exterior6. Embora atualmente inexistente,
o Salão é importante como um local estratificado através do qual a forma historica-
mente mutante de um meio de exposição/entretenimento pode ser examinada ao
longo deste período de tempo. Em quase 100 anos de sua existência, o público teve
acesso a exposições de história natural e de arte, freak shows, uma vasta gama de cu-
riosidades, versões de panoramas e shows de lanterna mágica, fantasmagorias, ven-
tríloquos, shows de mágica, filmes, vaudeville e outros tipos de teatro de revista.

Em sua abertura, em 1812, a propaganda prometia “curiosidades naturais e estrangei-


ras, antiguidade de produções das belas artes”, uma vez que a exibição semiperman-
ente do Salão incluía vários espólios tomados do Egito (ao lado, sem dúvida, de um
número maior de falsificações): múmias, textos de papiros, estátuas, joias. Havia tam-
bém exposições de centenas de aves e animais empalhados, organizados em uma
categorização aproximada de tipos e grupos. Neste ponto, no final da década, o Salão
Egípcio era um híbrido das várias possibilidades de exibição organizada no século XIX,
uma mistura das tradições obsoletas do gabinete de curiosidades com uma crescente,
mas incipiente inclinação para a organização quasecientífica. Mas o Salão nunca se
mesclou ao crescimento do museu burguês moderno; em vez disso, continuou a fazer
parte da substituição moderna do modelo mais antigo de curiosidades pela preo-
cupação do século XIX com as “atrações”, para usar o termo de Tom Gunning7. Gun-
ning vê os primeiros anos do cinema como uma forma de atração que, como muitos
outros fenômenos do século XIX, dependia de uma estimulação direta e do choque
da exibição, da incitação à curiosidade visual e ao prazer e da solicitação da atenção,
através da surpresa e do espanto, como em atos mágicos ou shows de gigantes ou
gêmeos siameses, em que a mera exposição de algo era autojustificada. A palavra “at-
rações”, como explica Gunning, operou nos escritos de Sergei Eisenstein para evocar
as suas origens nas feiras. Neste sentido mais amplo, a questão que se impõe é como
a desordem do carnaval da feira pré-moderna – a sua profusa estranheza e seu caráter
grotesco – é deposta no modelo peep-show de atração visual e comoo participante
multifacetado do festival é transformado em um espectador individualizado e autor-
regulado.
5 Ver as considerações acerca disso em Jeffrey Auerbach, “The Great Exhibition of 1851: A Nation on Display” (New Haven: Yale
University Press, 1999), 136-148.
6 Ver o extenso relato factual do Salão Egípcio no indispensável “The Shows of London” (Cambridge: Harvard University Press, 1978),
235-252. Ver também Celina Fox, ed., “London: World City 1800-1840” (New Haven: Yale University Press, 1992), 418-421.
7 Tom Gunning, “The Cinema of Attractions: Early Film, Its Spectator, and the Avant-Garde”, em “Early Cinema: Space, Frame, Narra-
tive, ed. Thomas Elsaesser” (London: BFI, 1990), 56-62.

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FIGURAS 6 e 7 – Acima: Salão Egípcio, 1900. Abaixo: Salão Egípcio, 1820s. Vista interior.

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IIIII

Talvez a categoria mais importante da atração exibicionista do século XIX abranja


essas várias técnicas de apresentação cujo fascínio era simplesmente a sua eficácia
relativa em proporcionar uma reprodução ilusória ou uma simulação do real, inde-
pendentemente do que estava sendo mostrado. Nunca haverá uma clara separação,
neste período histórico, entre o apelo de uma técnica de verossimilhança unica-
mente como demonstração de seu próprio funcionamento e uma atenção ao refer-
ente tramado pelo aparelho. Portanto, um local como o Salão Egípcio é importante
no que diz respeito à diversidade dos “efeitos de realidade” que lá ocorreram. Esta
expressão, já familiar, é naturalmente do trabalho do crítico francês Roland Barthes,
no final de 1960, que insistia que um novo modelo discursivo de realidade toma
forma no século XIX e que “o real”, como a modernidade veio a concebê-lo, foi in-
ventado. Deve-se lembrar que ele utilizou este termo de várias maneiras diferentes.
Por um lado, o efeito de realidade para Barthes foi um dispositivo específico da lit-
eratura do século XIX que se relacionava com a função do chamado detalhe con-
creto em um texto fictício – o que ele denominou de “cumplicidade direta entre um
referente e um significante, através da qual o significado é expulso do signo”8. Mas
Barthes também mostrou que o efeito de realidade não era apenas textual, e rela-
cionou-o à emergência, no século XIX, de pressupostos modernos acerca da história
que se manifestaram no “desenvolvimento do romance realista, do diário privado,
da literatura documental, da notícia, do museu histórico, da exposição de objetos
antigos e do desenvolvimento maciço da fotografia cujo único traço pertinente é
precisamente significar que o evento representado realmente se deu”. Importante
aqui é que, embora a fotografia seja enfatizada como um efeito de realidade, ela
não é, em qualquer sentido, um modelo fundamental ou um pré-requisito para isso.

8 Roland Barthes, “The Rustle of Language”, trad. Richard Howard (New York: Hill and Wang, 1986), 147.

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FIGURA 8 – Cartaz das atrações do Salão Egípcio, 1844.

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IIIII

Nos primeiros anos do Salão Egípcio, por exemplo, uma das mais bem sucedidas ex-
posições foi a exibição da carruagem de batalha de Napoleão, capturada após a Batal-
ha de Waterloo e enviada de volta à Inglaterra. O que se viu não foi simplesmente uma
carruagem, mas um modelo do “real” em sua forma recém-destilada. Obviamente, o
item despertou interesse, pois era luxuoso, à prova de balas, pintado de azul escuro
com detalhes de ouro e rodas cor de escarlate, e o motorista holandês ferido e de um
braço só de Napoleão foi trazido de volta para fazer parte da exposição. Entretanto,
aparentemente, o que atraiu esmagadoramente o interesse dos milhares de especta-
dores foi a oportunidade de olhar o interior das gavetas de pelúcia e dos armários
embutidos que continham o guarda-roupa pessoal de Napoleão,barras de sabão, um
relógio de bolso, frascos de licores e outros artigos menores. Em consonância com o
argumento de Barthes sobre o detalhe concreto, esses itens mundanos tornaram-se
uma confirmação suplementar e vital da autenticidade do objeto em si. É particular-
mente digno de nota que, após anos de exposição em turnê por toda Grã-Bretanha e
outras partes da Europa, a carruagem foi vendida para o então nascente estabeleci-
mento de Madame Tussauds, em Londres, para se tornar parte de sua permanente ex-
posição de figuras de cera de Napoleão (para quem ela já havia trabalhado)9. Esta foi
9 Ben Weinreb e Christopher Hibbert, eds., “The London Encyclopedia” (London: Macmillan, 1983), 255.

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uma estratégia familiar em museus de cera, onde a simulação era intensificada pela
adjacência de objetos que tinham uma presença literal - uma figura de cera sentada à

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mesa ou à escrivaninha, retiradas de sua cela de prisão, ou, simplesmente, a proximi-
dade da pele de cera ilusória com a roupa real, que muitas vezes tinha pertencido de
fato ao sujeito. Mas apesar da popularidade inquestionável dos museus de cera, foi
tal mistura de efeitos de realidade o aspecto definitivamente mais problemático do
século XIX, geralmente ocupando o limite máximo do gosto popular ou do fascínio.

Neste momento, quero examinar outra peça da heterogênea cultura visual do


Salão Egípcio. Trata-se de um objeto posto em exposição em junho de 1820:
“A Balsa da Medusa”10, de Théodore Géricault. Há muitas razões que explicam a im-
portância histórica da exposição deste trabalho neste salão em particular e só haverá
espaço aqui para indicarmos alguns deles. Primeiramente, deve-se notar que o Salão
Egípcio foi, por algum tempo, um dos locais mais importantes de Londres para a ex-
posição temporária de pinturas, geralmente aquelas que pelo tema ou pela sua mera
dimensão tinham viabilidade como atração comercial popular11. No entanto, minha
questão maior é óbvia, embora certamente mereça ser sublinhada: o observador de
pinturas do século XIX sempre foi também um observador que encontrou, simulta-
neamente, uma diversidade proliferante de experiências ópticas e sensoriais. Em out-
ras palavras, pinturas foram produzidas e assumiram significados não em termos de
alguma estética de clausura ou domínio institucional, mas como um dos muitos el-
ementos consumíveis e fugazes dentro de um campo em expansão de imagens, mer-
cadorias e atrações.

IIIII

Portanto, em “A Balsa da Medusa” temos dois problemas distintos, porém relaciona-


dos: as circunstâncias de sua produção e de sua recepção. A escolha de uma notícia
contemporânea por Géricault como tema de sua pintura já tornou a obra compatível
com uma arena social mais ampla em que a informação era transformada em mer-
cadoria e atração12. Mas isso é quase eventual à abordagem particular que Géricault
demarcou em sua representação deste assunto, e é por isso que a pintura ocupa uma
posição instável entre dois mundos históricos distintos – entre a ordem de referência
fechada e organizada em torno da retórica do corpo humano na arte da antiguidade
e no Renascimento e o campo informativo, heterogêneo e ilimitado das fontes jor-
nalísticas, médicas, legais e políticas da evidência, do testemunho, do fato e de outras
garantias do real.

10 Sobre a exposição do trabalho de Géricault na Inglaterra e na Irlanda, ver Lee Johnson, “The Raft of the Medusa in Great Britain”,
Burlington Magazine 46 (August 1954), 249-253; Suzanne Lodge, “Géricault in England”, Burlington Magazine 62 (December 1965),
616-627; Lorenz E. Eitner, “Géricault: His Life and Work” (Ithaca: Cornell University Press, 1983), 209-212; e Rupert Christiansen, “The
Victorian Visitors: Culture Shock in Nineteenth-Century Britain” (New York: Atlantic Monthly Press, 2000), 6-41.
11 Ver, como exemplo, o relato da exposição no Salão Egípcio de Benjamin Robert Haydon em “Christ’s Entry into Jerusalem”, que
coincidiu com a exibição da pintura de Géricault em 1820, em David Blayney Brown et al., “Benjamin Robert Haydon 1786-1846”
(Kendal: The Wordsworth Trust, 1996), 12-13.
12 A Medusa era parte de um comboio de navios franceses a caminho do Senegal, em julho de 1816. Devido à inexperiência do
capitão, o navio encalhou nos cardumes do oceano a muitas milhas da Costa Africana. Depois de dois dias, foi tomada a decisão
de abandonar o navio; no entanto, devido à negligência, havia apenas alguns botes salva-vidas preparados. Para acomodar todos,
uma balsa foi montada às pressas a partir de partes do mastro do navio e 150 passageiros montaram sobre ela, rebocada por um
dos botes salva-vidas. Quando a tripulação do barco salva-vidas percebeu que a balsa estava impedindo seu próprio progresso com
segurança, esta cinicamente cortou o cabo, deixando o barco e sua comitiva à deriva no mar aberto. Após tempestades, lutas entre
bêbados e assassinos, canibalismo, fome e delírio, quinze sobreviventes foram resgatados por outro navio treze dias depois. Destes,
cinco morreram logo após chegarem à costa. O evento, desprovido de qualquer caráter heroico ou enobrecedor, tornou-se um es-
cândalo político, concentrando a atenção do público sobre a corrupção do regime de Restauração, que tinha atribuído o comando
de um navio a um oficial monarquista incompetente, causando 140 mortes desnecessárias.

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Géricault empreendeu esforços extraordinários para dominar e assimilar os fatos, a ver-
dade, a evidência e a própria urgência do horrível acontecimento que já havia assumi-
do uma existência informacional multifacetada, na época em que começou a pintá-lo.
Géricault se envolveu com o projeto como se todos esses novos dados pudessem ser
destilados e forjados em uma experiência visual que sintetizaria e transcenderia seu
caráter fragmentado. De acordo com Charles Clément, um de seus primeiros biógrafos,
Géricault montou um imenso dossiê “repleto de provas autênticas e documentos de
todos os tipos”, indicando que o pintor tentou recolher todas as notícias e documentos
públicos sobre a expedição e o naufrágio e cada testemunha ocular, incluindo o relato
em primeira mão contido no best seller de JB Savigny e Alexandre Corréard, dois so-
breviventes da catástrofe. Não apenas Géricault reuniu todas as imagens jornalísticas
que pôde encontrar, como também pediu ao carpinteiro sobrevivente da Medusa para
construir-lhe um modelo da balsa em escala reduzida – que ele testou fora da água
para ver como flutuava e manobrava. Ele conheceu Savigny e Corréard (o primeiro foi
o cirurgião do navio) e entrevistou-os longamente, embora seus relatos publicados já
fossem extensos o suficiente. De fato, Géricault usou Savigny e Corréard como mod-
elos de duas das figuras que estão perto do mastro, os fixando na pintura por suas
posições como testemunhas oculares, mas também como um modo de tornar a repre-
sentação real. Devemos observar a descontinuidade absoluta entre o status semânti-
co de suas imagens na pintura e as diversas referências à arte dos velhos mestres, seja
Michelangelo ou Rubens. Isso é parte da fissura discursiva que, eu sugiro, atravessa a
pintura. No entanto, a medida mais extrema e notória empreendida por Géricault para
garantir a autenticidade de seu trabalho foi a sua insistência em se familiarizar com o
imediatismo da morte - não a morte em um sentido narrativo, psicológico, religioso
ou simbólico, mas a morte como a degradação literal do corpo físico, o corpo drenado
de qualquer coerência de vida. O que Clément se referiu como o imenso dossiê docu-
mental de Géricault finalmente teria de incluir também os cadáveres e pedaços do
corpo que ele tinha trazido até seu ateliê (ou estudado em hospitais) a fim de viver
com as imagens e os cheiros dos corpos humanos em decomposição, assim como os
sobreviventes da balsa que mantiveram partes dos mortos a bordo para o seu próprio
sustento. Até onde sabemos, a única coisa que Géricault não praticou enquanto mer-
gulhava na experiência do evento foi o canibalismo. É todo este dossiê de fatos, provas
e experiência direta que produz, para usar a expressão de Barthes, “a plenitude refer-
encial” do trabalho. É claro que não é um trabalho que parece real em virtude de sua
literal correspondência a um ponto de vista específico de um momento específico.
Como críticos notaram por um século e meio, não vemos fome nem corpos magros;
não vemos a balsa como ela realmente era, submersa alguns metros abaixo do nível da
água. A sua verossimilhança é baseada em sua mais profunda imersão em novas redes
do real, em que modelos mais antigos de visibilidade são ultrapassados.

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FIGURA 9 – Théodore Géricault. “A Balsa da Medusa”, 1819.

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FIGURA 10 – Théodore Géricault. “Estudo de membros decepados”, 1819.

IIIII

Trabalhando em meio a este campo de efeitos, as primeiras inclinações de Géricault


são altamente reveladoras. Inicialmente, ele estava convencido de que seu projeto só
seria alcançado através de uma sequência de diversas pinturas e de que o evento só
poderia ser narrado em termos de sua dispersão temporal e seus deslocamentos iner-
entes. Mas grande parte do significado histórico da Balsa consiste em como Géricault
impôs este conteúdo e sua infraestrutura discursiva de volta aos termos retóricos de
um modelo clássico de representação. O fato do pintor não ter atingido sua meta sem
obstáculos e que tais projetos incompatíveis colidiram e fraturaram é parte do que
tornou esse objeto tão intenso neste limiar da modernidade. Ainda assim, como Mi-
chael Fried e outros têm notado, não é por acaso que, em seus esforços para reduzir
o desastre a uma única imagem, Géricault escolheu este momento – um momento
em que a visão assume uma prioridade tão exclusiva e no qual o foco de atenção é
canalizado e limitado a um único ponto de vista quase imperceptível13. Para redire-
13 Michael Fried, “Courbet’s Realism” (Chicago: University of Chicago Press, 1990), 29-31.

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cionar os termos do argumento de Fried, a pintura encarna uma visão separada da
possibilidade de uma troca recíproca de olhares. O alívio e a libertação nesta imagem
consistiriam em uma troca mútua de olhares, em ser reconhecido pela embarcação,

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o que é aqui tragicamente negado ou pelo menos deferido14. Mas isso é parte do que
Bakhtin entendeu como o caráter “câmara privada” da experiência no século XIX, onde
o modelo de olhar do peep-show descreve tanto uma intensificação da visualidade
como também um isolamento do sujeito a partir de uma imersão vivida em um de-
terminado meio social.

Temos ainda uma percepção mais aguda desta nova compreensão do processo de
privatização da visão ao contemplarmos os retratos de insanidade feitos por Géricault.
Estamos aqui muito longe das representações quase contemporâneas dos hospícios
de Goya. A linha entre o normal e o patológico é perturbadoramente indistinta. Vistas
do outro lado da sala, estas imagens parecem mais ou menos congruentes com as
convenções dos retratos da classe média e é apenas por meio de uma análise mais
aprofundada que se percebe algo de distinto acerca delas. Uma característica crucial
destas imagens é a quebra de um olhar recíproco, não só a impossibilidade de uma
mutualidade, mas uma percepção de não-identidade completa dos mundos, a perda
de uma realidade objetiva compartilhada. O historiador de música Lawrence Kramer,
em um ensaio sobre Chopin, tematiza a primeira metade do século XIX como um
tempo em que “a subjetividade humana deixa de ser um campo comum e torna-se
um retiro secreto. Não sendo mais uma semelhança compartilhada, o eu se torna uma
diferença essencial, constantemente ameaçado de separação do mundo exterior”15.
Aqui Géricault revela essa separação e diferença de forma extrema. E é ao lado dessa
mudança que surge a necessidade de, ao menos, simular um mundo real vivido em
comum e a preocupação com o real emerge levando, eventualmente, à formação de
indústrias inteiras de produção de realidade em um Ocidente que se modernizava
rapidamente. Contudo, não é apenas a possibilidade de nossos olhos cruzarem os
olhos do insano que é impensável aqui – porque qualquer reciprocidade incluiria um
momento insuportável de autorreconhecimento e autodiferenciação. Antes, é que
Géricault gravou, com aparente objetividade clínica e distanciamento, indivíduos que
estavam percebendo um mundo hiperdelirante. É como se eles fossem instrumen-
tos ópticos cujas lentes nós não temos acesso masque se tivéssemos revelariam uma
visão radicalmente diferente do real. De forma relacionada, Géricault foi impulsio-
nado várias vezes, durante a sua estada na Inglaterra, para temas arquitetônicos que
funcionavam como “buracos negros” perceptivos. Ele expôs figuras à beira de espaços
escuros insondáveis que nada comunicavam de volta para o observador, exceto o ar-
repio de uma perda aniquilante das possibilidades de redenção.

14 Ao criar esse efeito de “telescópio invertido” de grande separação entre balsa e navio distante, Géricault obviamente estava
ciente, a partir do livro de Corréard e Savigny, que o eventual resgate ocorreu porque a balsa foi vista através de um telescópio, ou
seja, através do uso de uma tecnologia visual que ultrapassou a mera visão humana implantada na balsa, superando o obstáculo da
distância e do espaço. J. B. Henry Savigny e Alexander Corréard, “Narrative of a Voyage to Senegal in 1816” (1818; reprint, London:
Dawsons, 1968), 142-143.
15 Lawrence Kramer, “Music as Cultural Practice 1800-1900” (Berkeley: University of California Press, 1990), 88.

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FIGURAS 11 e 12 – À esquerda: “A Balsa da Medusa”. Detalhe.
À direita: Theodore Géricault. “A louca”, 1821.

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IIIII

Mas voltemos à primavera de 1820, quando Géricault, um pouco melancólico, provi-


denciou que a enorme pintura fosse enrolada, encaixotada e enviada para Londres,
onde seria exposta em junho, no Salão Egípcio. Anúncios de jornal enfatizaram o tema
sombrio, porém sensacional da pintura e salientaram, igualmente, o seu tamanho
como uma atração em si. O público da Inglaterra já estava bem familiarizado com os
detalhes horríveis da história, e isso pôde ser atestado, em parte, quando a pintura
chegou e uma peça de teatro sobre o naufrágio da Medusa, intitulada “The Fatal Raft”,
já lotava casas nas redondezas do Salão. Deste modo, o trabalho, agora extraído do
universo do Louvre, adquiriu uma continuidade com outra cadeia de “realidades”, um
campo de eventos atuais reificados que apoiou o seu valor como atração. Durante os
seis meses em que esteve em cartaz no Salão Egípcio, “A Balsa da Medusa” atraiu mais
de 50.000 visitantes. A entrada incluía uma edição abreviada e traduzida em inglês
do livro de Savigny e Corréard. A disponibilidade deste texto na exposição e de sua
autoridade como discurso histórico objetivo funcionava, ao lado da pintura, como um
efeito de realidade, cúmplice em estabelecer o que Barthes chama de autenticidade e
“onipotência do referente”.

IIIII

Após a sua exposição em Londres – o que aliviou, ao menos temporariamente, prob-


lemas financeiros e a depressão de Géricault – um acordo foi firmado para que a pin-
tura fizesse uma turnê em Dublin. Aqui, aprendemos, a partir de considerações pa-
drão, que a pintura não se saiu tão bem e após dois meses, na primavera de 1821, o
trabalho foi enviado de volta para a França. Por que a pintura não foi tão bem-sucedi-
da em Dublin como foi em Londres? Em um cruzamento histórico notável, a pintura
de Géricault dividiu a atenção na capital irlandesa com outro artefato da cultura visual
do século XIX: um panorama móvel intitulado “The Wreck of the Medusa”, que repre-

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sentava precisamente a mesma notícia recente16. Às vezes chamado de Peristrephic
panorama, este envolvia uma longa faixa de telas na qual uma sequência contínua
de cenas pintadas eram desenroladas diante de uma plateia sentada. Uma ilumina-

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ção colorida intensificava o efeito de cenas individuais e, muitas vezes, uma pequena
orquestra adicionava drama à cena. Assim, por aproximadamente o mesmo preço, o
consumidor tinha a opção de ver mais de 10.000 metros quadrados de superfícies pin-
tadas móveis ou cerca de 450 metros quadrados de tela imóvel. Além disso, uma das
cenas no panorama móvel era efetivamente uma cópia da pintura de Géricault. Deste
modo, realmente não era necessário pagar para ver o original também. Se a pintura de
Géricault e o panorama de Dublin eram rivais para obtenção de patrocínio no cenário
econômico de 1820, tais obras certamente não representavam uma oposição entre
cultura de elite e uma forma popular bruta. O que estava em concorrência eram dois
tipos de efeito de realidade que encenavam o mesmo evento, e o mercado tratou de
decidir qual era a atração mais interessante.

A palavra panorama foi utilizada de várias maneiras no início do século XIX, e o Salão
Egípcio foi um lugar onde as grandes pinturas murais, anunciadas como panoramas,
foram criadas como componentes de exposições. Uma destas exposições exibiu uma
grande quantidade de objetos e amostras trazidas por Bullock de uma expedição de
seis meses no México. A apresentação incluía uma mistura de artefatos reais e simu-
lados: moldes de escultura asteca – como a pedra do calendário de Montezuma –
centenas de aves e peixes, plantas artificiais e frutas, todos colocados no contexto de
uma grande pintura de três lados de uma paisagem mexicana (como um diorama de
museu do século XX) com uma habitação tridimensional contígua à superfície bidi-
mensional do mural pintado. A palavra panorama seria, obviamente, em breve uti-
lizada para designar uma pintura circular de 360 graus​​ exibida no interior de uma
estrutura cilíndrica. A patente para tal forma de exposição foi emitida em 1787, mas
a palavra panorama não foi usada até 1791. Em 1800, vários panoramas já estavam
funcionando em grandes cidades europeias. O panorama é um objeto atraente para
os historiadores uma vez que se desenvolveu de modo relativamente consistente
por um período de tempo coincidindo, aproximadamente, com o próprio século XIX.
Uma questão-chave é explicara sua durabilidade histórica em um momento em que
a inovação constante e rápida obsolescência já eram partes integrantes da produção
e do consumo cultural. Ao mesmo tempo, dentro de qualquer discussão acerca dos
efeitos de realidade, deve-se notar que o panorama e uma forma distintamente não-
fotográfica.
FIGURAS 13 e 14 – Ao lado: Panorama francês.
Abaixo: Exibição do México antigo e moderno no Salão Egípcio, 1820s

16 Estudos valiosos sobre o panorama incluem Stephan Oettermann, “The Panorama: History of a Mass Medium” (New York: Zone
Books, 1997); Bernard Comment, “The Painted Panorama” (New York: Abrams, 1999); “Sehsucht: Das Panorama als Massenunter-
haltung des 19”, catálogo de exibição, Jahrhunderts, (Basel: Stroemfeld/Roter Stern, 1993); Ralph Hyde, “Panoramania” (London:
Barbican Art Gallery, 1988); e Albrecht Koschorke, “Das Panorama: Die Anfänge des modernen Sensomotorik um 1800”, em “Die
Mobilisierung des Sehens”, ed. Harro Segeberg (Munich: Wilhelm Fink, 1996), 147-168.
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IIIII

Isso não equivale sugerir que o significado ou os efeitos do panorama permaneceram


estáticos há mais de um século. De fato, a sua condição se modificou continuamente
em relação a desenvolvimentos sociais, tecnológicos e culturais. E, sobre o início de
1820, um ponto deve ser salientado: o panorama tinha uma proximidade desconfor-
tável, mas relativamente incontestável aos modos tradicionais de pintura. A situação
era muito diferente de algumas décadas mais tarde, quando o panorama foi clara-
mente situado no terreno do entretenimento popular, e o termo “pintor de panora-
ma” era uma expressão de desdém. Pelo menos em meados da década de 1820 ainda
havia uma percepção generalizada, embora muitas vezes incerta, de que os panora-
mas faziam parte dos mesmos códigos de representação de formas de pintura mais
antigas. Era um formato surpreendentemente desconhecido, mas havia a suposição
tácita entre muitos escritores de que, ao longo do tempo, a pintura panorâmica se
tornaria uma forma convencional de representar certos tipos de temas e que, gradu-
almente, grandes artistas gravitariam em sua direção. Inicialmente, muitos artistas e
críticos imersos em práticas tradicionais mostraram-se favoráveis ao panorama. Em
um dos últimos principais tratados acadêmicos sobre perspectiva, Pierre-Henri de
Valenciennes, em 1800, concebeu o panorama dentro dos termos da representação
clássica, configurando apenas uma torção nova em problemas familiares17. Na imp-
rensa popular de Londres e Paris, os mesmos críticos que escreviam sobre exposições
de arte convencionais, frequentemente também avaliavam pinturas panorâmicas,
geralmente aplicando os mesmos critérios estéticos para analisar o seu sucesso ou
fracasso. Sabemos que muitos artistas (incluindo David, Ingres, Friedrich, Constable,
Turner, e outros) estavam familiarizados e respondendo positivamente ao panorama.
Embora essa familiaridade não signifique nada mais do que dizer que artistas que
viviam em 1920 iam ao cinema, ela também sugere em que grau os panoramas foram
fenômenos urbanos difundidos.

IIIII

Acredito que é razoável conceber o panorama como um dos lugares do século XIX
onde a modernização da experiência perceptiva ocorreu. O panorama pertence à ca-
tegoria geral do fantasmagórico, como definida por Theodor Adorno. Tomando como
17 Pierre Henri de Valenciennes, “Élements de perspective pratique, a l’usage des artistes...” (1800; reimpressão, Geneva: Minkoff,
1973), 339-343.

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empréstimo o termo utilizado por Marx, Adorno utilizou este adjetivo para descrever
qualquer forma ou processo no capitalismo que escondia ou mistificava sua produção
ou funcionamento real18. Como, especificamente, o panorama era fantasmagórico?

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Após adquirir sua entrada, o espectador geralmente entrava na rotunda por meio de
uma escada que o levava para a plataforma central de observação. O interior escurecia
de tal maneira que apenas a luz suave, que entrava indiretamente a partir do topo do
edifício, iluminava a pintura nas paredes da estrutura, deixando o resto em relativa
escuridão. A pintura parecia irradiar sua própria luz a partir de tais condições de ilumi-
nação. Por vezes, em dias claros de verão a luz seria forte demais, tornando visíveis as
costuras das telas separadas, revelando o seu caráter construído e interrompendo, as-
sim, a ilusão. Parte da razão para a elevação era puramente funcional – nenhuma via de
acesso poderia interromper a superfície contínua da pintura. Isso também significava
que os espectadores nunca poderiam projetar sombras na imagem, caso contrário o
efeito seria, obviamente, antifantasmagórico, revelando a superfície bidimensional.

Quase todos os panoramas procuraram criar um deslocamento espacial da imagem,


com uma espécie de área de fosso rodeando a plataforma de observação. Por con-
seguinte, o espectador não tinha algo como o chão de um museu ou de uma galeria
para auxiliar a racionalização subjetiva da distância entre o olho e a imagem. Relatos
indicam que membros da audiência ocasionalmente jogavam moedas na imagem
como uma maneira de mensurar a distância. Formas aparentemente tão distintas
como o Diorama de Daguerre, o teatro de Wagner em Bayreuth, o Kaiserpanorama,
o Cinetoscópio e, claro, o cinema – uma vez consolidado no final da década de 1890
- são outros exemplos cruciais da imagem como uma tela luminosa autônoma de at-
ração do século XIX, cujo apelo aparente era o efeito tanto de sua localização espa-
cial incerta quanto de seu destacamento de um campo visual mais amplo. É desse
modo que o panorama pode ser, ao menos parcialmente, associado ao modelo do
peep-show discutido anteriormente: ele envolve um distanciamento da imagem de
um vasto campo de possíveis estimulações sensórias e cria uma confusão calculada
acerca da localização literal da superfície da pintura como uma forma de intensificar
as suas ilusões de presença e distância. Ao mesmo tempo, o panorama é outro ex-
emplo de como a espectatorialidade, acompanhada por um foco de atenção estrito,
produz docilidade social, mesmo em circunstâncias de grupo, mesmo para um espe-
ctador ambulante.

FIGURAS 15 e 16 – Acima: Panorama de Leicester Square, Londres, 1802.


Abaixo: Plataforma de observação do Panorama, Copenhagen, 1880.

18 Ver Theodor Adorno, “In Search of Wagner”, trad. Rodney Livingstone (London: NLB, 1981), 85.

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IIIII

Mas o panorama é único: ao contrário dessas outras formas, ele apresenta uma ima-
gem ilimitada, destinada indefinidamente ao espectador. Não tem nenhuma moldura
(e isto certamente o afasta do modelo do peep-show)19. Estritamente falando, ele pos-
sui limites superiores e inferiores. Mas, à medida que o espectador move os olhos, a
cabeça ou o seu corpo lateralmente, a imagem aparece como um campo contínuo
e ilimitado. Esta é a sua característica definidora. Em certo sentido, esta orientação
horizontal é o culminar decisivo da secularização da visão, em curso por um longo
tempo, não só pela sua recusa das ressonâncias simbólicas evidentes do teto e da ver-
tical, mas principalmente pela evaporação do seu ponto de fuga e suas implicações
teológicas residuais. E foi dentro deste formato que um gosto popular pela realidade
concreta se afirmou. Desenvolvendo-se à parte do entusiasmo do final do século XVIII
pela pintura de vista e pelas paisagens pitorescas (em oposição a imagens com temas
históricos mitológicos, alegóricos ou eruditos), o público do panorama foi atraído por
paisagens urbanas ou eventos recentes que havia lido – batalhas, cercos ou visões de
regiões remotas do mundo.

O que o panorama possuía que parecia garantir uma acentua da verossimilhança?


Claramente, isso tinha a ver com a inovação de seu formato circundante. Mas de que
modo podemos entender isso? Voltando ao ensaio de Barthes, descobrimos que seu
mais extenso exemplo do efeito de realidade é aquele que ele mesmo descreve com a
palavra “panorama”20. Barthes derivou esta caracterização de um objeto textual: “Ma-
dame Bovary”, de Flaubert, a partir do ponto no romance em que Emma faz viagens
regulares a Rouen para ver seu amante. A personagem tinha feito passeios a Rouen
com frequência suficiente para que conhecesse cada curva da estrada, cada marco
ao longo do caminho, incluindo a crista de uma colina de onde se tinha a vista de
toda a cidade21. Eis as palavras de Flaubert: “então, de repente, a cidade se fez visível.
Inclinada para baixo, como um anfiteatro, afogada em névoa, esparramando suas

19 Ver a minha comparação dos modelos ópticos do século XIX implantados pelo panorama e pelo estereoscópio em “Suspensions
of Perception” (Cambridge: MIT Press, 1999), 295-296.
20 Barthes, “The Reality Effect”, 145.
21 Talvez o tratamento visual mais impressionante dessa vista particular da colina de Rouen seja a aquarela de J. M. W. Turner e pos-
terior gravura de William Miller para o volume “Wanderings by the Seine”, de 1834. No verão de 1829, a fim de promover as vendas
de gravuras de Turner, uma exposição de suas aquarelas foi realizada no Salão Egípcio.

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formas para além de suas pontes... Assim, vista de cima, a paisagem tinha a qualidade
estática de uma pintura”. O resto 22do parágrafo é um acúmulo de detalhes sobre os
barcos ancorados no rio Sena, as colinas cinzentas distantes, as chaminés das fábricas,

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as ruas repletas de árvores nuas, os telhados molhados de chuva, e assim por diante.
Deste modo, o próprio Flaubert apresenta em seu texto, se não especificamente o
panorama, a ideia de uma imagem visual que é circular ou redonda (o anfiteatro) e
que é como uma pintura. Importante aqui são as afinidades entre as estratégias do
real no trabalho da pintura de panorama e no realismo literário; é uma simulação
que parece transcrever o mundo de forma meticulosa, evitando a armadilha do que
Barthes chama de “a vertigem da notação”, em que um realismo autêntico exigiria a in-
clusão delirantemente impossível na representação de tudo que se apresenta à visão.
Este é o lugar onde o “detalhe insignificante” no texto intervém para proclamar que,
se este nível de minúcia e de irrelevância narrativa é dado, então o mundo está sendo
visto de forma integral e real.

FIGURA 17 – Panorama de Praga, 1840s. Fragmento.

IIIII

Se podemos falar do panorama como um efeito de realidade, trata-se de um efei-


to produzido através de uma confluência de vários elementos que eu não poderia
começar a discutir aqui.Mas talvez a maneira imperiosa por meio da qual a impressão
de completude e de uma inesgotável inclusão do real é atingida se dá através do for-
mato singular de 360 graus da imagem. Como o próprio nome sugere, a configuração
do panorama pressupõe apresentar uma visão total, caracterizada por uma plenitude
aparentemente autoevidente. E uma definição importante do adjetivo panorâmico,
usado no século XIX, é a noção de uma visão completa de 360 graus
​​ que desconhece
obstáculos, onde nada bloqueia a apropriação óptica. Neste sentido, o panorama for-
neceu uma unidade imaginária e coerência para um mundo externo que, no contexto
da urbanização, era cada vez mais incoerente. A plataforma de observação no cen-
tro da rotunda parecia fornecer um ponto a partir do qual um espectador individual
poderia superar a parcialidade e a fragmentação que constituía a experiência percep-
tiva cotidiana. Mas enquanto fornecia tal simulação de domínio perceptivo e identi-
ficação do real com uma sensação de coerência, o panorama representava, em outro
sentido, uma desrealização e desvalorização do ponto de vista do indivíduo.

22 Gustave Flaubert, “Madame Bovary”, trad. Francis Steegmuller (New York: Modern Library, 1957), 299.

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A autoridade do panorama foi fundada a partir das limitações da visão subjetiva e da
inadequação do observador humano. Ele representava a visão de um tema, seja uma
paisagem ou cidade, que parecia imediatamente acessível, mas que sempre excedeu
a capacidade de compreensão do espectador. Ao contrário da pintura topográfica do
século XVIII, a imagem panorâmica é consumível apenas em fragmentos, como partes
que devem ser cognitivamente remontadas em um todo imaginado. Uma estrutura
que parece magicamente superar a fragmentação da experiência, de fato, introduza
parcialidade e a incompletude como elementos constitutivos da experiência visual.
De modo bem geral, a perspectiva tinha estabelecido, por vários séculos, a ficção di-
fundida de uma adequação, uma congruência entre o ponto de vista subjetivo do
observador e do mundo. A noção de que a representação em perspectiva permitia
apenas uma abertura parcial e delimitada para o mundo foi compensada pela univer-
salidade e racionalidade das leis pelas quais ela foi composta. O panorama, ao con-
trário, com seu cancelamento do ponto de fuga na obra e a perda recíproca de um
ponto de vista localizável, aumentou a disparidade entre um campo visual subjetivo
e a possibilidade de uma compreensão conceitual e perceptiva de uma realidade ex-
terna. Ele simulou uma totalidade que estava necessariamente além do alcance de
um sujeito humano. Em certo modo, tornou-se uma simulação degradada do sublime,
disponível para qualquer pessoa pelo preço de um bilhete. No entanto, ao mesmo
tempo, a percepção foi transformada na acumulação de informações, detalhes e fatos
visuais que finalmente resistiram à síntese em um conhecimento perceptivo. A pro-
liferação de efeitos de realidade no século XIX coincidiu com o colapso dos sistemas
científicos, filosóficos e estéticos que apresentaram, de modos variados, uma recon-
ciliação imaginária das limitações do observador humano com a possessão da totali-
dade do mundo que pode ser percebido.

Duas imagens quase contemporâneas revelam intuições muito distintas sobre a


perspectiva panorâmica. “Viajante sobre o mar de névoa” (1818), de Caspar David
Friedrich, tem sido associada, talvez de forma excessiva, aos impactos do panorama, e
tem se sugerido que Friedrich não só era extremamente familiar com o início da pintu-
ra panorâmica na Alemanha, masque ele momentaneamente planejou empreender-
se na arte por volta de 181023. Na pintura, a posição deste observador descrito e sua
relação com a paisagem circundante certamente correspondem à plataforma de ob-
servação central de um panorama e à sensação ilusória de uma imagem distante. A
imagem parece encarnar a ascendência de aspirações burguesas recém-libertas e fan-
tasias de autonomia. Isso implica o domínio de uma posição que transcendia perspec-
tivas locais provincianas e permitia, ao menos, uma apropriação óptica de um mundo
natural cada vez mais parcelado e captado em unidades menores de propriedade. É
claro que, na obra de Friedrich, qualquer sentimento de alegria é inseparável de uma
melancolia metafísica que se impõe diante da insuficiência trágica da relação entre
sujeito e mundo. E em um contexto europeu mais amplo, esta imagem transmite uma
sensação aguda de como o panorama coincidiu com novas formas de isolamento sub-
jetivo, de um empobrecimento sensorial e uma privatização emocional.

23 Ver Stephan Oettermann, “The Panorama: History of a Mass Medium”, trad. Deborah Schneider (New York: Zone Books, 1997),
47.

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FIGURA 18 – Sem legenda.

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FIGURA 19 – Caspar David Friedrich. “Viajante sobre o mar de névoa”, 1818.

IIIII

A outra imagem, mais uma vez quase historicamente simultânea à de Friedrich, até
onde eu sei, nunca foi associada a um ponto de vista panorâmico e, certamente, não
tem o mesmo ponto de vista elevado que define o “Viajante”. Mas se considerarmos
as condições de percepção que são diagramadas na Balsa de Géricault, temos um
grupo de observadores não menos situados sobre o que poderíamos chamar de uma
plataforma de observação, cercados por uma visão de 360 ​​graus desobstruída24. A
própria vela, um pedaço curvo de tela, paira sobre a linha do horizonte como uma

24 O fato de Argus, o navio de resgate, ser na verdade o nome de uma criatura mitológica com uma centena de olhos pareceu uma
extraordinária coincidência para muitos. Menos frequentemente lembrado é que o nome mitológico completo era Argus Panoptes,
o que acidentalmente evoca uma série de formas através das quais as capacidades de um observador humano individual (mera-
mente mortal) foram superadas, incluindo o panorama e panóptico. Savigny e Corréard relatam que “um dos passageiros, dentre
outros, disse, brincando: ‘se um brigue for enviado a nossa procura, vamos orar a Deus para que ele tenha os olhos de Argus’, fazendo
alusão ao nome do navio que presumíamos seria enviado atrás de nós. Nós não desistimos desta ideia consoladora e falamos disso
com frequência”. Savigny e Corréard, “Narrative of a Voyage”, 132-133.

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parte da tela da pintura composta que reveste os interiores das rotundas do pan-
orama. E o grupo de espectadores nesta plataforma tem uma motivação muito mais
urgente para esquadrinhar o perímetro do campo circular que o alpinista de Friedrich.

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Ao contrário de “Viajante”, que sugere a segurança de um ponto de vista estável, o
trabalho de Géricault revela uma concepção muito diferente das condições da ex-
periência panorâmica – esta deve ser desvinculada de qualquer ponto de ancoragem
e estar à deriva em uma superfície amorfa como o mar, sem marcadores e sem centro,
e na qual a homogeneidade e a repetição oprimem a singularidade. Em causa neste
trabalho está uma apreensão da desproporção entorpecente entre os limites da per-
cepção humana e da alteridade implacável do mundo exterior. Este é o campo no qual
o dossiê de documentos, fatos, provas e imagens de efeitos de realidade de Géricault
se ata precariamente como a própria balsa, nunca se solidificando em uma couraça
reconfortante de significados. E também, ao contrário de Friedrich, Géricault é inca-
paz de imaginar uma crise da percepção em termos de um indivíduo solitário. Os
deslocamentos sensoriais e cognitivos da modernidade apenas podem ser mapeados
através do destino intricado e arriscado de um sujeito coletivo.

FIGURA 20 – Planta da balsa da Medusa. Publicada em “Narrative of a Voyage to Senegal”, 1818.

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