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Licurgo - Plutarco

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Foto de Licurgo

LICURGO
por Plutarco

Resumo

Licurgo foi um lendário legislador de Esparta. Nada se

sabe seguramente sobre a existência desta

personagem. Heródoto fala dele em meados do século

V a.C. , mas a vida do legislador deve ter decorrido no

século VIII a.C. . Mas a sua memória seria

correntemente mencionada na Esparta do século V,

pois os seus habitantes nessa época sentiam a

necessidade de atribuir a organização estatal que os

regia a um ser humano, e não ao acaso. Se era homem

ou deus, rei ou tutor de reis, é coisa que não se

apresenta clara, nem mesmo na biografia de Plutarco.

Por outro lado, também não é indispensável sabê-lo,

dado que a compilação das leis não foi obra pessoal - e

a própria lenda assinala que lhe foram entregues pelo

oráculo de Delfos para dirigir o seu povo. A maioria das

disposições que lhe têm sido atribuídas são reflexo de


costumes vigentes muito antes na região. O carácter

mágico e obscuro de algumas dessas leis leva a pensar

que o conjunto delas fosse uma compilação de usos

tradicionais levada a cabo por alguma personagem

ligada à religião tradicional ou pelo próprio sentimento

do povo, desejoso de retornar à severidade e

segurança civil dos tempos passados.

Conta a lenda, que ele, ao terminar o conjunto de leis

que regeriam Esparta, solicitou um pedido e uma

promessa do rei. Com a concordância e sabedor da

fraqueza humana frente às injuções políticas de

momento, pediu a promessa que as Leis só seriam

alteradas com o aval dele (Licurgo) e pediu sua

condenação ao ostracismo, para que as Leis

sobrevivessem aos homens.


LICURGO
por Plutarco

Capítulo de Vidas Paralelas

Tradução brasileira de Aristides da Silva Lobo conforme a edição francesa


de 1818.

Notas de Brotier, Vauvilliere e Clavier.

Fonte: Ed. Das Américas.

Nada absolutamente se poderia dizer de Licurgo, que estabeleceu as leis dos

Lacedemônios, em que não haja sempre alguma diversidade entre os


historiadores, pois

que, tanto de sua raça e do seu afastamento do país, como de sua morte e
mesmo das

leis e da forma de governo que instituiu, quase todos escreveram


diferentemente. Mas,

menos ainda do que em qualquer outra coisa se acordam eles sobre o tempo
no qual

viveu: porque uns, entre os quais o filósofo Aristóteles, querem que ele
tenha sido do

tempo de ífito e que este o tenha ajudado a ordenar a suspensão de armas


que se guarda

durante a festa dos jogos olímpicos: em testemunho do que alegam a placa


de cobre (1)
lançada nos ditos jogos, sobre a qual está ainda hoje gravado o nome de
Licurgo. Ao

contrário, os que contam os tempos pela sucessão dos reis da Lacedemônia,


como fazem

Eratóstenes e Apolodoro, o colocam muitos anos antes da primeira


olimpíada (2); e

Timeu suspeita que haja dois desse nome em diversos tempos, mas que,
tendo sido um

mais renomeado do que o outro, atribuíram-lhe os feitos de ambos, e que o


mais antigo

não tenha existido muito tempo depois de Homero; e ainda há os que


querem dizer que

ele o viu. Xenofonte mesmo nos dá bem que pensar seja ele muito antigo,
quando diz

que foi do tempo dos Heráclidas, isto é, dos próximos descendentes de


Hércules; pois

não é verossímil que tenha querido referir-se indiferentemente aos


descendentes de

Hércules, porque os últimos reis de Esparta foram tanto de sua raça quanto
os primeiros;

assim, deve ter~se referido àqueles que foram, sem interregno, do tempo
mesmo de

Hércules. Todavia, ainda que haja tanta diversidade entre os historiadores,


não

deixaremos por isso de recolher e pôr por escrito o que sobre ele se acha nas
antigas
histórias, elegendo as coisas em que houver menos contradição ou que
tiverem mais

graves e mais aprovados testemunhos.

(1) Disco usado nos jogos de arremesso.

(2) A primeira Olimpíada remonta o ano 776 antes de Jesus Cristo.

I. Pois logo de início o poeta Simônides diz que seu pai foi chamado
Prítanis, não

Êunomo; e a maior parte escreve de outro modo a genealogia tanto do


próprio Licurgo

como de Êunomo, dizendo que Pátrocles, filho de Aristodemo, gerou Sous,


de Sous

nasceu Euritião, do qual Prítanis foi filho, de Prítanis nasceu Êunomo, de


Êunomo

Polidectes, que ele teve de sua primeira mulher, e de sua segunda, cujo
nome era

Dianasse, nasceu Licurgo; "todavia," Eutíquides, que é outro historiador, o


põe sexto em

uma linha direta após Poíidectes e undécimo após Hércules. Mas, entre
todos os seus

antepassados, o mais famoso foi Sous, do tempo em que os da cidade de


Esparta

subjugaram os Hilotas, que fizeram escravos, e aumentaram e alargaram


várias terras

que conquistaram aos Árcades. E dizem que, estando ele próprio um dia
muito
estreitamente assediado pelos Clitórios, em lugar áspero onde não havia
água, mandou

oferecer-lhes a entrega de todas as terras que conquistassem, desde que ele


e toda a sua

companhia bebessem numa fonte assaz próxima dali. Os Clitórios


concordaram e o

acordo foi assim jurado entre eles. Fêz pois reunir seus homens e declarou-
lhes que, se

houvesse algum deles que quisesse abster-se de beber, ele lhe cederia e
daria a realeza:

não houve em toda a tropa quem pudesse deixar de fazê-lo de tal maneira
estavam

premidos pela sede; antes beberam todos cientemente, exceto ele, que foi o
último a

descer e não fêz outra coisa senão apenas refrescar-se e molhar-se um


pouco por fora,

em presença dos próprios inimigos, sem beber sequer uma gota: de modo
que não quis

depois entregar as terras, como prometera, alegando que nem todos tinham
bebido.

II. Mas, ainda que por seus feitos tenha sido muito estimado, o fato é que
sua casa não

foi chamada por seu nome, antes pelo de seu filho Euritião, pois era
denominada a casa

dos Euritiônides: o que se explica por haver sido seu filho Euritião o,
primeiro que
desejando agradar e contentar o povo, relaxou um pouco o duro e absoluto
poder dos

reis. Essa indulgência deu mais tarde origem a uma desordem e grande
dissolução, que

durou longamente na cidade de Esparta, porquanto o povo, sentindo a rédea


frouxa,

tornou-se audacioso; e, por isso, alguns dos reis sucessores foram odiados
de morte, por

haverem querido manter à força a antiga autoridade sobre o povo; os outros,


para

ganharem as boas graças da plebe, ou porque não se sentissem bastante


fortes, foram

constrangidos a dissimular. O que de tal modo aumentou a audácia e a


insolência do

povo que o próprio pai de Licurgo, que era rei, foi morto em consequência:
pois,

querendo um dia apartar alguns que se engalfinhavam, recebeu um golpe de


faca de

cozinha, do que morreu, deixando o reino ao filho primogénito, Polidectes,


o qual

morreu logo depois sem herdeiros; de maneira que todos estimavam que
Licurgo devia

ser rei, como também o foi, até que se conheceu que a mulher de seu irmão
tinha ficado

grávida: logo que ele o percebeu, declarou que o reino pertencia ao filho
que nascesse,
se fosse homem; e depois administrou o reino como tutor do rei somente.
Os

Lacedemônios chamam Pródicos aos tutores de seus réis que ficam órfãos
em tenra

idade. Mas a viúva de seu irmão mandou dizer-lhe que, se ele prometesse
desposá-la

quando fosse rei, ela trataria de abortar para perder o fruto que tinha no
ventre. Licurgo

ficou horrorizado com a perversidade e má índole dessa mulher, mas não


rejeitou em

palavras a oferta que lhe fazia, fingindo mesmo que ficara satisfeito e a
aceitava; mas

lhe mandou dizer que. não era necessário, por meio de beberagens ou
medicinas,

desimpedir-se antes do tempo, porque, assim procedendo, poderia


prejudicar e pôr em

perigo a si mesma, mas era preciso somente ter paciência até dar à luz: pois
então ele

encontraria meio de se desfazer da criança que nascesse.

III. Assim entreteve com tal linguagem aquela mulher, até ao tempo do
parto, e, logo

que percebeu que ela estava prestes a dar à luz, enviou guardas para
assistirem ao

transe, aos quais recomendou que, se nascesse uma filha, a deixassem entre
as mãos das
mulheres, e, se fosse filho, o levassem incontinenti a qualquer lugar onde
ele se

encontrasse e fosse qual fosse o negócio que tivesse. Assim aconteceu que
ela deu à luz

um filho, mais ou menos à hora do jantar, quando ele estava à mesa com os,
oficiais da

cidade, e entraram seus servidores na sala e lhe apresentaram o menino, que


ele tomou

nos braços, dizendo aos assistentes: «Eis um rei que nos acaba de nascer,
senhores

Espartanos.» Dizendo essas palavras, deitou-o no lugar do rei e deu-lhe o


nome de

Carilau, que equivale a dizer alegria do povo, porque viu todos os


assistentes muito

alegres, louvando e abençoando sua magnânima probidade e justiça. Dessa


forma,

embora não tendo sido rei senão durante somente oito meses ao todo, era
tão

reverenciado c estimado como homem de bem pelos cidadãos que havia


mais os que lhe

obedeciam voluntariamente por sua virtude do que porque ele fosse tutor
do. rei, e não

porque tivesse autoridade real nas mãos; todavia, alguns havia que o
invejavam e

tratavam de impedir-lhe o crescimento quando era jovem, mesmo os


parentes, amigos e
aliados da mãe do rei, a qual estimavam ter sido desprezada e desonrada por
ele; de

maneira que um irmão dela, chamado; Leônidas, entrando um dia


audaciosamente a

proferir grosseiras palavras contra ele, não hesitou em lhe dizer: «Bem sei
que por um

destes dias serás com certeza rei», querendo torná-lo suspeito e preveni-lo
por essa

caluniosa presunção, a fim de que, se acaso o pequeno rei viesse a falecer


em idade

pupilar, acreditassem que ele o tinha feito morrer secretamente. A própria


mãe ia

também espalhando semelhantes rumores, os quais por fim o desgostaram


tanto, com o

medo que o dominava pela incerteza do futuro, que resolveu abandonar o


país, para

evitar com sua ausência a suspeita que pudessem ter sobre ele; e assim foi
errando pelo

mundo, até que o sobrinho gerou um filho que o sucederia no reino.

IV. Tendo pois partido com tal intenção, dirigiu-se primeiramente a Cândia,
onde

observou e considerou diligentemente a forma de viver e governar a coisa


pública que

era ali seguida, visitando e conferenciando com os homens de bem e mais


conceituados
do lugar. Assim encontrou algumas leis que lhe pareceram boas e delas fez
um extrato,

com a deliberação de levá-las para seu país e delas servir-se no futuro;


também achou

outra de que não íèz conta. Ora havia entre outros um personagem
considerado prudente

e muito entendido em matéria de estado e de governo, e se chamava Tales


(3): ao qual

Licurgo fez tantas súplicas, também pela amizade contraída com ele, que o
persuadiu a

seguir para Esparta. Esse Tales tinha fama de ser poeta lírico e dessa arte
usava o título;

mas, de fato, ele fazia tudo o que poderiam fazer os melhores e mais
suficientes

governadores e reformadores do mundo, pois todos os seus trabalhos eram


belas

canções nas quais pregava e admoestava o povo a viver sob a obediência


das íeis, em

união e concórdia uns com os outros, sendo as palavras acompanhadas de


cantos, gestos

e acentos plenos de doçura e gravidade, que secretamente edulcoravam os


corações

endurecidos dos ouvintes e os induziam a amar as coisas honestas,


desviando-os das

sedições, inimizades e divisões então reinantes; de tal maneira que se pode


dizer ter sido
ele quem preparou para Licurgo a via pela qual este mais tarde conduziu e
encaminhou

os Lacedemõnios à razão.

(3) Tales, poeta lírico é bem diferente de Tales, um dos lete Sábios da
Grécia, nascido

duzentos anos depois de Licurgo.

V. Ao partir de Cândia, seguiu para a Ásia, querendo, como dizem, pela


comparação da

maneira de viver e da polícia dos Candíotas (então austera e estreita) com as

superfluidades e delícias Jônicas, considerar a diferença que havia entre os


respectivos

costumes e governos: nem mais nem menos que um médico que, para
melhor conhecer

os corpos sãos e nítidos, os comparasse aos gastos e tarados. É verossímil


que ali tenha

ele visto pela primeira vez a poesia de Homero entre as mãos dos herdeiros
e sucessores

de Cleófilo (4); e, achando nela o fruto da instrução política, não menor que
o prazer da

ficção poética, copiou-a diligentemente e reuniu-a num corpo para levá-la à


Grécia.

Verdade é que havia já alguma notícia da poesia de Homero entre os


Gregos, mas era

muito pouco: alguns particulares, aqui e acolá, possuíam dela peças


descosidas, sem
ordem nem sequência alguma e foi Licurgo quem mais a fez vir à luz nas
mãos dos

homens.

VI. Dizem os Egípcios que ele esteve também em seu país e que, tendo
achado entre

outras ordenanças aquela, singular, de que os homens de guerra são ali em


tudo e por

tudo separados do resto do povo, transportou-a para Esparta, onde, pondo à


parte os

mercadores, artesãos e gente de ofício, estabeleceu uma coisa pública


verdadeiramente

nobre, nítida e gentil. Os historiadores do Egito, e ainda alguns Gregos,


assim o dizem.

Mas, quanto ao mais, que ele tenha estado na África e na Espanha, e até nas
índias, para

ali ter comunicação com os sábios do país que se chamam ginosofistas, eu


não sei de

ninguém que o tenha escrito, senão Aristóteles, filho de Hiparco (5).

(4) É preciso ler Creófilo, segundo Estrabão, liv. XIVr página 946. C.

(5) Acrescente-se, conforme ao grego, de Esparta. C.

VII. Mas os Lacedemônios o lamentaram muito quando partiu e, por várias


vezes,

mandaram pedir que voltasse, estimando que seus reis não tinham senão a
honra e o
nome de reis tão-somente, sem outra qualidade que o fizesse aparecer acima
do popular

comum; e que ele, ao contrário, nascerá para comandar, tendo por natureza
a graça e a

eficácia de atrair os homens a voluntariamente lhe obedecerem; e os


próprios reis não se

desgostavam com sua volta, porque esperavam que sua presença refreasse e
contivesse

um pouco o povo, que não seria tão insolente para com eles. Eis porque,
reportando-se a

essa opinião e afeição de cada um para com ele, logo que chegou, pôs-se a
remodelar

todo o governo da coisa pública e mudar inteiramente toda a polícia,


estimando que

fazer somente algumas leis é ordenanças particulares não serviria de nada,


do mesmo

modo que a um corpo inteiramente gasto e cheio de toda sorte de moléstias,


nada

aproveitaria prescrever-se alguma ligeira medicina que não lhe desse ordem
de purgar,

resolver e consumir primeiramente lodos os maus humores, para depois lhe


dar nova

forma e regra de vida.

VIII. Tendo pois tomado essa resolução em seu entendimento, seguiu antes
de toda obra
para a cidade de Delfos, onde, após haver sacrificado a Apolo, perguntou-
lhe dos seus

negócios e obteve aquele tão renomeado oráculo pelo qual a profetisa Pítia
lhe chama

Amado dos deuses, e deus antes que homem; e, em suma, quanto ao pedido
da graça de

poder estabelecer boas leis no país, ela lhe respondeu que Apolo lha
outorgaria e que ele

ordenaria a melhor e mais perfeita forma de coisa pública que existiu em


todo o mundo.

Essa resposta encorajou-o ainda mais, de maneira que começou a descobrir-


se a alguns

dos principais da cidade e a pedir-lhes e exortá-los secretamente a ajudá-lo,


dirigindo-se

primeiramente aos que sabia serem seus amigos aos poucos e conquistando
sempre

alguns outros, que se juntavam à sua empresa. Depois, quando a


oportunidade chegou,

mandou buscar na praça, certa manhã, trinta dos primeiros homens da


cidade, armados,

para amedrontarem e conterem aqueles que tivessem vontade de opor-se ao


que se havia

proposto fazer. O historiador Hermipo cita vinte dos mais aparentes; mas
aquele dentre

todos os outros que mais o assistiu em todas as coisas, e mais o ajudou a


estabelecer
suas leis, foi o chamado Aritmíadas. Ora, ao começar o. movimento, o rei
Carilau,

pensando que fosse uma conjuração contra sua pessoa, ficou tão apavorado
que se

refugiou no templo de Juno sobrenomeado Calcieco, isto é, templo de


bronze; todavia,

depois, quando se lhe deu a conhecer a verdade, ele se assegurou, saiu do


templo e

favoreceu a empresa, sendo homem de boa e doce natureza, como


testemunha o que

Arquelau, que era na mesma época outro rei da Lacedemònia, respondeu a


alguns que

em sua presença o louvavam, dizendo que era boa pessoa: «E como (6) não
seria bom,

disse ele, quando não saberia ser mau nem para os próprios maus?»

IX. Houve, nessa modificação do estado promovida por Licurgo, muitas


novidades, mas

a primeira e maior foi a instituição do Senado, o qual, misturado com o


poder dos reis e

igualado a eles quanto à autoridade nas coisas de consequência, foi, como


diz Platão,

um contrapeso salutar no corpo universal da coisa pública: a qual antes


estava sempre

em abalo, pendendo ora para a tirania, quando os reis tinham demasiado


poder, ora para
a confusão popular, quando o povo comum vinha usurpar aí autoridade
demais. E

Licurgo pôs entre ambos esse conselho dos senadores, que foi como forte
barreira

mantendo as duas extremidades em igual balança e dando pé firme e seguro


ao estado

da coisa pública, porque os vinte e oito senadores que formavam o corpo do


Senado se

enfileiravam às vezes ao lado dos reis, tanto quanto necessário para resistir
à temeridade

popular e, também, ao contrário, fortificavam às vezes a parte do povo


contra a dos reis,

para impedir que estes usurpassem um poder tirânico. E diz Aristóteles que
ele

estabeleceu esse número de vinte e oito senadores porque, dos trinta que
inicialmente

haviam empreendido remodelar o governo com ele, houve dois que por
medo

abandonaram a empresa; todavia Esfero escreve que, desde o começo,


nunca houve

mais de vinte e oito que participassem da conspiração. E porventura teria


ele também

considerado que era um número completo, visto como se compõe de sete


multiplicado

por quatro, sendo alem disso o primeiro número perfeito, depois do seis,
que iguala
todas as suas partes reunidas e recolhidas em conjunto. Mas, quanto a mim,
minha

opinião é que escolheu aquele número, de preferência a outro, a fim de que


o corpo

inteiro do conselho fosse de trinta pessoas ao todo, ajuntando aí os dois reis.


E teve

Licurgo, assim, grande cautela no bem estabelecer e autorizar tal conselho,


que lhe fora

anunciado por um oráculo do templo de Apolo, na cidade de Delfos, Esse


oráculo se

chama ainda hoje Retra, como quem dissesse o decreto, e dele é a seguinte
sentença:

«Depois (7) que tiveres edificado um templo a Júpiter Silaniano e a


Minerva Silaniana,

e dividido o povo em linhagens, estabelecerás um Senado de trinta


conselheiros,

inclusive os dois reis; e reunirás o povo, segundo as ocorrências dos


tempos, na praça

que está entre a ponte e o rio de Gnácion, onde os senadores proporão as


matérias e

deixarão as assembléias, sem que ao povo seja permitido arengar.» Naquele


tempo, as

assembleias do povo se realizavam entre dois rios (8), pois não havia sala
para reunir o

grande conselho, nem praça que fosse de outro modo embelezada nem
ornada, porque
Licurgo estimava que isso de nada serviria para bem deliberar e escolher
bom conselho,

e sim para prejudicar, porque comumente faz que os homens, que em tais
lugares se

reúnem para deliberar acerca de negócios, sonhem com coisas vãs,


desviando seus

entendimentos no considerar estátuas ou quadros e pinturas que


ordinariamente se

colocam para embelezar tais lugares públicos; ou, se é um teatro, olhar para
a cena, isto

é, o lugar onde se representam as peças; ou, se é uma grande sala, a


contemplar os

lambris ou a abóbada que fôr engenhosamente trabalhada e suntuosamente


enriquecida

por alguma bela manufatura.

(6) Esse trecho se acha citado em duas outras passagens Ur Plutarco: no


livro cia

Diferença entre o Amigo e o Enganador e naquele Da Inveja e do ódio. Lê-


se aí como

seria bom, quando não saberia, etc; e é assim que é preciso ler, omitindo a
negação.

(7) Toda essa passagem está alterada e truncada. Vide as. Observações, cap.
IX

(8) Entre o Eurotas e o Gnácion, pequeno rio que se lança no Eurotas, perto
de Esparta.
X. Quando todo o povo estava reunido em conselho, não era permitido, a
quem o

quisesse, propor e apresentar matérias para deliberar, nem emitir opinião;


tinha antes o

povo autoridade somente para aprovar e confirmar, se bem lhe parecesse, o


que fora

proposto pelos senadores ou pelos reis; mas depois, como o povo fosse
frequentemente

forçando ou desviando as proposições do Senado, tirando-lhes ou


acrescentando alguma

coisa, os reis, Poiidoro e Teopo.mpo, ajuntaram ao teor do supracitado


oráculo que,

quando o povo quisesse de algum modo alterar às opiniões propostas ao


conselho pelo

Senado, seria permitido aos reis e aos senadores abandonar o conselho e


anular o

referido decreto, como tendo alterado, dissimulado e modificado para pior


as sentenças

e proposições apresentadas pelo Senado. Esses dois reis persuadiram


semelhantemente

o povo de que esse acessório, do mesmo modo que o principal, vinha do


oráculo de

Apolo, assim como disso faz menção o poeta Tirteu, na passagem em que
diz:

Pelo Deifico oráculo sagrado

Tinha-lhes Pítia ainda acrescentado:


Os reis, aos quais pertence por dever

O bem de Esparta amável promover,

Serão os chefes e moderadores

Do conselho, assim como os senadores;

Sempre de acorde, a massa popular

Deverá limitar-se a confirmar.

XI. Tendo pois Licurgo assim temperado a forma da coisa pública, pareceu
contudo, aos

que vieram depois dele, que esse pequeno número de trinta pessoas que
formavam o

Senado era ainda poderoso demais e possuía demasiada autoridade; de


modo que, para

mantê-los um pouco sob as rédeas, de-ram-lhes, como diz Platão, um freio


que foi o

poder e a autoridade dos éforos, que equivale a dizer controladores, os quais


foram

criados cerca de cento e trinta anos após a morte de Licurgo (9); e foi o
primeiro eleito o

chamado Elato, do tempo em que reinava o rei Teopompo, cuja mulher o


censurou um

dia, furiosa, por haver ele deixado aos sucessores o reino menor, que não
recebera dos

predecessores, ao que ele respondeu: «Mas será tanto maior quanto mais
duradouro e
mais seguro.» Pois também em verdade, perdendo o poder demasiado
absoluto que lhes

causava a inveja e o ódio dos cidadãos, escaparam ao perigo de sofrerem o


que os

vizinhos Argivos e Messenianos fizeram a seus reis, por não haverem


querido relaxar

nem ceder nada de sua autoridade soberana. Isso faz, como nenhuma outra
coisa,

conhecer evidentemente o grande senso e a longa previdência de Licurgo, a


quem quiser

de perto considerar as sedições e maus governos dos Agivos e Messenianos,


seus

próximos vizinhos e parentas, tanto dos povos como dos reis, os quais tendo
tido a

princípio todas as coisas semelhantes aos de Esparta, e ainda, na repartição


das terras,

tendo obtido melhores do que eles, todavia não prosperam longamente; ao


contrário,

pela arrogância dos reis e desobediência dos povos, entraram em guerras


civis uns

contra os outros e mostraram que efetivamente era uma graça especial


haverem os

deuses dado aos de, Esparta um reformador que temperasse e ordenasse tão
sabiamente

o estado e o governo da coisa pública, como aqui deduziremos depois.


(9) Heródoto. Xenofonte e outros historiadores dizem que os éforos foram
criados por

Licurgo. Eles eram então somente conselheiros dos reis. Mas, cento e trinta
anos depois,

quando os reis abusaram de seu poder, a autoridade dos éforos aumentou e


eles se

tornaram senhores dos reis.

XII. A segunda novidade de Licurgo, e a de mais ousada e mais difícil


empresa, foi

mandar de novo repartir as terras (10): pois, havendo no país da


Lacedemônia grande

dificuldade e desigualdade entre os habitantes, porque uns, e a maior parte,


eram tão

pobres que não tinham uma só polegada de terra, e outros, em bem pequeno
número, tão

opulentos que possuíam tudo, ele advertiu que, para banir e expulsar da
cidade a

insolência, a inveja, a avareza, as delícias e, mais a riqueza e a pobreza, que


são ainda as

maiores e mais antigas pestes das cidades e das coisas públicas, não havia
meio mais

expediente do que persuadir os cidadãos a reporem em comum todas as


terras,

possessões e heranças do país e de novo as repartirem igualmente entre si,


para daí por
diante viverem todos juntos como irmãos de maneira que um não tivesse
em bens nada

mais do que o outro, e a não procurarem preceder uns aos outros em


nenhuma outra

coisa senão na virtude: estimando não dever existir outra desigualdade nem
diferença,

entre os habitantes de uma mesma cidade, senão aquela que procede da


censura às

coisas desonestas e do louvor às coisas virtuosas e honestas. Seguindo


aquela

imaginação, executou de fato a repartição das terras, pois dividiu todo o


resto do país da

Lacônia inteiramente, em trinta mil partes iguais, as quais distribuiu aos


habitantes dos

arredores de Esparta; e das terras mais próximas da própria cidade de


Esparta, que era

capital de todo o país da Lacônia, fez outras nove mil partes, que repartiu
entre os

naturais burgueses de Esparta, que são os que propriamente se chamam os


Espartanos.

Todavia, querem alguns dizer que ele não fez senão seis mil partes e que
depois o rei

Polidoro acrescentou-lhes outras três mil; ~e há os que dizem ainda que


dessas nove mil

partes Licurgo não fez senão a metade somente e Polidoro a outra. Cada
uma dessas
partes era tal que podia dar a seu dono, anualmente setenta meias-minas de
cevada (11)

para o homem e doze para a mulher, além de uvas e outras frutas líquidas
em

semelhante proporção: estimando suficiente essas qualidades para manter o


corpo do

homem são, disposto e robusto, e que não há necessidade de nada mais.


Assim, dizem

que, voltando um dia dos campos e passando através das terras onde o trigo
fora não

muito antes ceifado, vendo os montes de grão todos iguais e tão grandes uns
como os

outros, pôs-se a rir e disse aos que o acompanhavam que todo o país da
Lacônia lhe

parecia uma herança de vários irmãos que tivessem novamente feito suas
partilhas.

(10) Para conhecer o caráter de Licurgo e o espírito de suas leis, é preciso


recordar as

reflexões de Montesquieu. Vide as Observações, cap. XII.

(11) No grego, setenta medimnos. A avaliação de Amyot é demasiado fraca.


A meia-mina de Paris vale apenas três alqueires; e o alqueire de trigo pesa
vinte e uma e vinte e

duas libras. O medimno continha mais de quatro alqueires, medida de Paris.

XIII. Tentou ele também, semelhantemente, mandar pôr em comum e


partilhar os
móveis, a fim de eliminar inteiramente toda desigualdade; mas, vendo que
os cidadãos

supunham muito impacientemente que se lhos tirariam a descoberto, ele


nisso procedeu

por via coberta, aguçando-lhes sutilmente a avareza e a cobiça: pois


primeiramente

depreciou toda espécie de moeda de ouro e de prata, ordenando que se


usasse somente

moeda de ferro, da qual ainda uma grande e pesada massa era de bem pouco
preço, de

tal maneira que, para se alojar dela o valor de cem escudos (12), seria
preciso impedir

todo um grande celeiro na casa e seria necessária uma parelha de bois para
transportá-la.

Ora, estando por esse meio o ouro e a prata banidos do país da Lacônia, era
forçoso que

vários crimes e malefícios desaparecessem também. Pois quem pretenderia


roubar,

tomar, sonegar, furtar ou reter uma coisa que não soubesse esconder e que
não houvesse

grande ocasião de desejar nem proveito em possuir, visto como não podia
servir-se dela

para empregá-la em outro uso? Porque, quando o ferro que se queria


amoedar estava

todo vermelho de fogo, deitava-se vinagre em cima, extinguindo-lhe a força


e rigidez,
de maneira que perdesse toda capacidade para servir na execução de outro
trabalho,

porque se tornava tão rude e tão brilhante que não mais podia ser batido
nem forjado.

(12) No grego, dez minas, que valiam setencentos e setenta e oito libras
francesas. Em

moeda de ferro, deviam perfazer um peso de mais de mil e seiscentas libras.

XIV. Depois disso, baniu também todos os misteres supérfluos e inúteis, e,


ainda que

por édito não os tivesse perseguido, teriam assim desaparecido todos, ou a


maior parte,

com o uso da moeda, quando não mais encontrassem quem ficasse com
seus trabalhos,

porque a moeda de ferro não tinha curso nas outras cidades âa Grécia,
antes zombavam

dela por toda parte, e dessa forma não podiam.os Lacedemônios comprar
mercadorias

estrangeiras, nem lhes visitava o porto nenhum navio para ali traficar, nem
entrava no

país nenhum afetado retórico para ensinar a pleitear com habilidade, nem
nenhum

adivinho para ali dizer a boa sorte, nem sarda para ali ficar no cais, nem
ourives, nem

joalheiro que ali fizesse ou vendesse broches de ouro ou de prata para


enfeitar as damas,
visto como são coisas que se fazem somente para ganhar e acumular
dinheiro, que não

havia; e assim as delícias, destituídas das coisas que as nutrem e que as


entretém,

começavam a fanar ao poucos 6 finalmente a cair por si mesmas, não


podendo os tnais

ricos ter nada a mais que os mais pobres e não lendo a riqueza meio
nenhum de se

mostrar em público e pôr-se em evidência, antes ficando reclusa em casa,


coisa, sem

poder de nada servir a seu dono. E, contudo, os utensílios indispensáveis e


com os quais

se tem todos os dias o que fazer, como estrados, mesas, cadeiras e outros
móveis que

tais, se faziam miíito bem, sendo muito louvada a forma e feitio do copo
Lacônico, que

se chamava Cothon, também para uso de guerreiros, como costumava dizer


Crítias,

porque era feito de sorte que a cor poupava aos olhos conhecer a água que
às vezes se é

constrangido a beber num acampamento, tão turva e tão suja que, só de ver-
se, provoca

náusea; e, se acaso havia alguma sujeira e algum limo no fundo, ele parava
nos limites

do ventre e pelo gargalo, não vinha à boca de quem bebia senão a parte
mais limpa. Do
que foi também causa o reformador, porque os artesãos, não estando mais
ocupados no

mister de obras supérfluas, empregaram sua capacidade em bem produzir o


necessário.

XV. Mas, querendo ainda mais perseguir a superfluidade e as delícias, a fim


de

exterminar inteiramente a cobiça de possuir e de enriquecer, fez uma


terceira ordenança,

nova e muito bela, que foi a dos convívios, pela qual quis e ordenou que
eles comessem

juntos das mesmas viandas e, notadamente, das que estavam especificadas


na

ordenança, que expressamente os proibia de comerem à parte e em


particular sobre ricas

mesas e leitos suntuosos, abusando do labor dos excelentes operários e


requintados

cozinheiros, para engordarem em segredo e nas trevas, como se engordam


os animais

glutões: o que arruma e corrompe não somente as condições da alma, mas


também as

compleições do corpo, quando se lhe deixa assim a rédea em abandono a


toda

sensualidade e glutonaria, acontecendo depois que ele tem necessidade de


muito dormir,

para cozer e digerir o que demais tomou de vianda, e quer ser ajudado com
banhos
quentes, longo repouso e tratamento ordinariamente necessário a um
doente.

XVI. Foi pois grande coisa ter ele podido fazer isso, mas ainda maior o
haver tornado a

riqueza não sujeita a ser roubada e menos ainda a ser cobiçada, como diz
Teofrasto, o

que conseguiu por meio daquele estatuto de mandá-los comer juntos com
tão grande

sobriedade no viver ordinário. Pois não mais havia meio de usar, gozar e
mostrar a

riqueza somente aos que a tivessem, visto como o pobre e o rico eram
constrangidos a

ficarem no mesmo lugar, para aí comerem as mesmas viandas: de tal


maneira que o que

se diz comumente, que Pluto, isto é, o deus das riquezas, é cego, era
verdadeiro somente

na cidade de Esparta, entre todas as que jamais existiram no mundo; pois ali
jazia por

terra, como uma pintura sem alma e sem movimento: visto como não era
permitido

comer antes de vir às salas públicas, à parte, em casa, e depois vir por
continência, todo

saturado, ao lugar do convívio: pois cada qual tinha os olhos voltados


expressamente

para os que não bebiam nem comiam com bom apetite, os quais eram
censurados e
repreendidos como glutões ou como desdenhosos da delicadeza de comer
em comum

com os outros; de sorte que foi essa, ao que se diz, a ordenança que mais
desgostou os

ricos, entre todas aquelas que então estabeleceu Licurgo; e por causa dela
gritaram e se

enfureceram mais contra ele, até que, vendo que se precipitavam todos
juntos sobre a

sua pessoa, foi constrangido a fugir da praça. Assim ganhou a dianteira e se


lançou em

segurança dentro de uma igreja, antes que os outros pudessem atingi-lo,


exceto um

jovem chamado Alcandro, que aliás não era de má natureza, senão que um
pouco pronto

de mão e de cólera; e, perseguindo Licurgo de mais perto que os outros,


quando o viu

voltar-se, deu-lhe uma bastonada no rosto, furando-lhe um olho. Mas nem


por isso

Licurgo se deixou abater, antes se apresentou de cabeça erguida aos que o


perseguiam,

mostrando-lhes a face toda em sangue e a vista vazada: o que de tal modo


os

envergonhou que não houve quem ousasse abrir a boca para falar contra ele:
ao

contrário, entregaram-lhe nas mãos Alcandro, que o ferira, para o castigar


como bem lhe
parecesse, e o convidaram todos para suas casas, mostrando que
deploravam o mal

causado. Licurgo agradeceu e mandou-os de volta, fazendo consigo entrar


Alcandro em

sua casa, onde não o puniu nem o acusou com uma só palavra: ordenou-lhe
somente que

o servisse, mandando que se retirassem os domésticos que o serviam


ordinariamente, O

rapaz, que não era desajeitado, o fez de bom grado, sem nada replicar; e,
após ficar

algum tempo junto com éle, sempre ao redor de sua pessoa, começou a
conhecer e

apreciar a bondade do seu natural, bem como a afeição e o intuito que o


levava a

proceder como fazia, a austeridade de sua vida ordinária e sua constância


em suportar

todos os trabalhos, sem jamais fatigar-se; e começou então a amá-lo e


honrá-lo

afetuosamente, e depois saiu pregando aos parentes e amigos que Licurgo


não era tão

rude nem revês-so como parecia à primeira vista mas antes o mais doce e o
mais amável

possível para com os outros. Eis como Alcandro foi castigado por Licurgo,
e a punição

que recebeu: é que de mal condicionado rapaz, ultrajoso e temerário que era
antes,
tornou-se prudente e moderado.

XVII. Mas, em memória daquele inconveniente, Licurgo edificou um


templo a

Minerva, que ele íiobrenomeou Optilétida, de modo que os Dórios que


habitam essas

regiões da Moréia dão aos olhos o nome de Optiles. Há outros, entre os


quais Dioscóri-lhedes, que dizem haver Licurgo recebido uma bastonada,
mas que não teve o olho

furado e que, ao contrário, fundou esse templo a Minerva para lhe render
graças pela

cura de sua vista; e o fato é que, desde essa época, os Espartanos cessaram
de usar

bastões nas assembleias do conselho.

XVIII. E, para voltar aos convívios públicos, os Candiotas chamavam-lhes


Andria e os

Lacedemô-lhenios Phiditia, ou porque eram lugares nos quais se aprendia a


viver sóbria

e estreitamente, tendo a poupança em língua grega o nome de Phido ou


porque ali se

travava amizade entre uns e outros, como se tivessem querido dizer Philitia,
pondo um d

em lugar de 1. Poderia também ser que tivessem acrescentado de supérfluo


a primeira

letra, como se quisessem dizer Editia, porque eram lugares aonde iam
comer e tomar
suas refeições; e ali se reuniam às quinzenas em cada sala, pouco mais ou
menos; e

levava cada um deles, no começo do mês, meia-mina de farinha (13), oito


jarras de

vinho (14), cinco libras de queijo e duas libras e meia de figos, e além disso
boa porção

de moeda para a compra da pitança. Mas, além disso, quando algum deles
sacrificava

em casa, enviava as primícias do sacrifício à sala do convívio;


semelhantemente, se

havia conseguido alguma veação na caça, enviava-lhe dela um pedaço; pois


eram os

dois casos nos quais era permitido comer à parte na própria casa, quando: se
imolava

algum animal aos deuses ou quando se voltava tarde demais da caça; de


outro modo,

eram constrangidos a reunir-se todos nas salas dos convívios, quando


queriam comer, se

quisessem comer. O que durante muito tempo conservavam com rigor, de


maneira que

um dia, tendo o rei Agis voltado da guerra em que derrotara os Atenienses,


e querendo

comer em separado com a mulher, mandou pedir sua porção mas os Pole-
lhemarcos,

que são certos oficiais que assistem os reis na guerra como seus colaterais,
lha
recusaram; e, no dia seguinte, tendo Agis, por despeito, deixado de fazer o
sacrifício

habitual à saída de uma guerra, foi por eles condenado à multa.

(13) No grego, um medimno de farinha. Vide a verdadeira avaliação no


capítulo

XII.

(14) No grego, oito chous de vinho, o que vale um pouco mais de vinte e
oito

pintas de vinho, medida de Paris.Équase uma pinta por dia.

XIX. As próprias crianças iam a esses conví vios, nem mais nem menos do
que a

escolas de honra ça, onde ouviam boas e graves palestras

referentes ao governo da coisa pública, por mestres que não eram


mercenários, e ali

aprendiam a jogar

zenteiramente, sem, todavia picarem acremente, nem gozarem de maneira


desonesta,

nem se aborrecerem

é uma qualidade, entre os Lacedemônios, tolerar com paciência uma


pilhéria; todavia se

algum houvesse ão gostasse disso, bastava pedir ao outro cjiue

se abstivesse, e este incontinenti cessava. Mas era costume que a todos os


que entravam

na sala do convívio o mais velho dissesse mostrando-lhes a porta:


«Nenhuma palavra sairá por esta porta.»

XX. Também era preciso que aquele que de sejasse ser recebido na
companhia do

convívio fosse primeiramente aprovado e aceito por todos os outros

da seguinte maneira: ao lavar as mãos, cada um deles tomava uma pequena


bola feita

com farelo ou miolo de pão e a lançava sem dizer palavra dentro de uma
bacia que

trazia à cabeça o criado do convívio, que os servia à mesa; aquele que se


contentasse de

que o outro fosse recebido lançava a bolinha, muito simplesmente; se não,


apertava-a

fortemente entre os dedos, até achatá-la. Essa bola de farelo assim achatada
equivalia à

fava atravessada, que era nos julgamentos o sinal de sentença condenatória;


e, se ali se

achasse uma só dessa espécie, o pretendente não. era recebido pois não
queriam que

entrasse na companhia ninguém que não fosse agradável a to-lhedos os


outros. Aquele

que era assim rejeitado, diziam eles que havia caducado, porque o vaso
dentro do qual

lançavam as bolinhas de farela se chamava Cados.

XXI. A vianda mais esquisita, servida nesses convívios, era a que


chamavam de bródio
negro (15), de modo que, quando havia este, os velhos não comiam carne,
deixando-a

toda para os moços, e comiam à parte o bródio. Houve outrora um rei do


Ponto que,

para provar esse bródio negro, comprou expressamente um cozinheiro


lacedemônio

mas, depois que este o experimentou, ele incontinenti ficou enojado, tendo-
lhe dito

então o cozinheiro: «Majestade, para gostar desse bródio seria preciso


primeiro tomar

banho no rio Eurotas (16).» Depois de sobriamente beberem e comerem


juntos,

voltavam todos sem luz para suas casas, pois não lhes era permitido ir a
parte alguma

com candeia, a fim de se acostumarem a marchar ousadamente à noite e nas


trevas. Tais

eram a ordem e a maneira de seus convívios.

(15) Espécie de sopa. À que se fazia com enguias dava-se o nome de caldo

branco.

(16) Rio que passava por Esparta.

XXII. Mas convém notar que jamais Licurgo consentiu se escrevesse


nenhuma de suas

leis;, ao contrário, por uma de suas ordenanças, a que dão eles o nome de
Retres, ficou
estabelecido que não haveria nenhuma escrita porquanto, no que é de
principal força e

eficácia para tornar uma cidade feliz e virtuosa, estimava que isso devia ser
impresso,

pela nutrição, nos corações e nos costumes dos homens, a fim de aí ficar
para sempre

imutável, sendo a boa vontade um laço mais forte do que qualquer outro

constrangimento que se pudesse impor aos homens, de modo que o hábito


tomado por

boa instituição, desde a primeira infância, faz cada qual servir-se dele como
deluma lei

para si mesmo. E, em suma, no que concerne aos contratos dos homens


entre si, que são

coisas ligeiras e que ora mudam, de uma forma, ora de outra, conforme a
necessidade,

pensou que era melhor não extingui-los sob constrangimentos redigidos por
escrito,

nem estabelecer costumes que não pudessem modificar-se, mas deixá-los


antes à

discrição e ao arbítrio dos homens bem educados e instituídos, para aí


tirar.ou ajuntar o

que requeressem a ocorrência e a disposição do tempo; pois estimou, em


suma, que o

fim principal de um bom estabelece-lhedor e reformador da coisa pública


devia consistir
em bem educar e instituir os homens. Uma de suas ordenanças prescrevia,
pois,

expressamente, que não haveria nenhuma lei escrita.

XXIII. Havia outra contra a superfluidade, a qual ordenava que as


coberturas das casa

fossem feitas à cunha e as guarnições das portas com serra somente, sem
outro utensílio

de marcenaria. No que teve a mesma imaginação que depois revelou


também

Epaminondas, quando disse, falando de sua mesa: «Semelhante trivial


nunca é traído.»

Também estimava Licurgo que tal casa não deveria ter superfluidade nem
delícias,

porque não havia homem tão impertinente nem de tão mau julgamento que
para uma

casa tão pobre e sóbria fosse levar estrados com pés de prata, nem dosséis e
forros de

cama tingidos de púrpura, nem baixela de ouro ou de prata, e todo o séquito


de

superfluidade e delícias que isso acarreta, porque é preciso que os leitos


sejam

proporcionados à casa, as cobertas convenientes aos leitos, e todo o resto


dos móveis e

da maneira de viver de acordo e em correspondência com o vestuário.


Desse costume
procedeu o que o rei Leotiquides, primeiro desse nome, disse uma vez:
jantando um dia

na cidade de Corinto e vendo o revestimento da sala onde comia,


suntuosamente

lambrisado e trabalhado, perguntou ao hóspede se as árvores cresciam


assim quadradas

no país.

XXIV. A terceira ordenança proibiu fazer frequentemente a guerra contra


os

mesmos inimigos, por medo de que estes, tantas vezes constrangidos a


tomar das armas

para se defenderem, se tornassem afinal homens valorosos e bons


combatentes. Tal

censua se fê ao rei Agesilau, que existiu muiot tempo depois: por ter
frequentemente

entrado em armas no país da Beócia, acabou tornando os Tebanos tão bons


guerreiros

como os Lacedemônios. Naquela ocasião, Antálcidas, vendo-o um dia


ferido, disse-lhe:

«Recebes dos Tebanos ó preço de seu aprendizado, tal como o mereceste;


pois lhes

ensinaste, malgrado seu, o mister da guerra, que eles antes não queriam
aprender nem

exercer.» São as ordenanças que o próprio Licurgo chamou de Retres, o que


equivale a

dizer graves sentenças ou oráculos que o deus Apolo lhe teria dado.
XXV. Mas, quanto à educação das crianças, que ele estimava ser a mais
bela e

maior cpisa que poderia estabelecer ou introduzir um reformador de leis,


começando de

longe, considerou primeiro os casamentos e a geração das crianças. Pois,


quanto ao que

diz Aristóteles, que ele ensaiou reformar as mulheres e disso desistiu


incontinenti, ao

ver que não podia consegui-lo, por causa da enorme licença que elas
haviam usurpado

na ausência dos maridos, porque estes eram constrangidos a partir


constantemente para

as guerras, durante as quais os homens se viam obrigados a deixá-las


senhoras de suas

casas, honrando-as e acariciando-as além da medida, chamando-lhes damas


e senhoras

— isso me parece falso: a verdade é que tratou de regulamentar-lhes e


ordenar-lhes a

maneira de viver, assim como a dos homens, de acordo com a razão.


Primeiramente,

pois, quis que as moças enrijecessem o corpo, exercitando-se em correr,


lutar, jogar a

barra e lançar o dardo, a fim de que o fruto que concebessem, vindo a tomar
forte raiz

num corpo disposto e robusto, germinasse melhor; e também para que,


reforçadas por
tais exercícios, suportassem com mais vigor e facilidade as dores do parto.
E, para tirar-lhes toda delicadeza e ternura efeminada, acostumou as
mocinhas, assim como os

rapazes, a (17) frequentarem as procissões, dançarem nuas em algumas


festas e

sacrifícios solenes e cantarem na presença e à chegada dos rapazinhos, aos


quais, muitas

vezes, ao passarem, dirigiam algum brocardo apropriado, tocando ao vivo


aqueles que

em alguma coisa tivessem esquecido seu dever; e, não raro, também


recitavam em suas

canções os louvores dos que destes eram dignos. Assim fazendo imprimiam
nos

corações dos jovens uma grande gelosia e contenção de honra, pois aquele
que por elas

tivesse sido louvado como valente e do qual houvessem cantado os atos de


proeza, ia

sendo educado com a coragem de fazer ainda melhor no futuror e os golpes


e picadas

que dirigiam aos outros não eram mais pungentes do que as mais severas
admoestações

e correçoes que se lhes tivesse sabido dar, mesmo porque isso era feito em
presença dos

reis, senadores e todo o resto dos cidadãos que ali se achavam para
assistirem aos

divertimentos.
(17) No grego, a andarem nuas pela cidade, Vide as Observações, cap.
XXV. C.

XXVI. Mas, quanto ao fato de se mostrarem inteiramente nuas em público,


não havia

nisso vilania alguma, pois a exibição era acompanhada de toda a


honestidade, sem

lubricidade nem dissolução; antes pelo. contrário, trazia consigo o costume


da

simplicidade e, entre elas, a vontade de possuir o corpo mais robusto e


melhor disposto;

e, além disso, isso lhes elevava de certo modo o coração, tornan-lhedo-as.


mais

magnânimas e dando-lhes a conhecer que não lhes assentavam menos bem


do que aos

homens o exercício, a proeza e a competição para a conquista do prêmio.


Daí resultava.

que as mulheres! Lacedemônias tinham também a coragem de afirmar


e.pensar por si

mesmas, como respondeu um dia Gorgônia, mulher do rei Leônidas, a qual,


conforme

se acha escrito, tendo-lhe uma dama estrangeira, em conversa com ela, que
«não há

mulheres no mundo como as Lacedemônias, que mandam nos seus


homens», replicou

incontinenti: «Também não há outras como nós, que temos homens.»


Ademais, era isso
um estímulo.que atraía os rapazes ao casamento: eu entendo esses jogos,
danças e

divertimentos, a que se entregavam as moças inteiramente nuas na presença


dos homens

jovens, não como constrangimento de razões geométricas, como diz Platão,


mas como

atrativos para o amor.

XXVII. E, todavia, além desses atrativos, ain da estabeleceu ele a nota de


infâmia

contra os que não quisessem casar-se; pois não lhes era permitido

frequentar os lugares onde se realizavam a nu esses jogos e passatempos


públicos; e

mais, os oficiais da cidade os constrangiam, em pleno inverno, a


circundarem a praça

inteiramente nus; e, caminhando, de viam cantar certa canção feita contra


eles, a qual

dizia, em suma, que estavam sendo justamente castigados por não terem
obedecido às

leis; de modo que, quando ficavam velhos, não lhes prestavam a honra nem
a reverência

de que eram alvo os outros anciãos.

Portanto, não houve ninguém que repreendesse ou achasse mal o que disse
a Dercílídas,

conquanto fosse ele bom e valente capitão, um jovem que, ao entrar numa
companhia,
não se dignara de levantar-se para saudá-lo e dar-lhe o lugar para sentar-se:
«Não

geraste um filho para comigo proceder da mesma forma no futuro.»

XXVIII. Mas os que desejavam casar-se precisavam raptar aquelas que


pretendiam

como esposas, não moçoilas ainda não casadouras, mas mulhe

res vigorosas e já maduras para terem filhos; e, quando havia uma raptada
em tais

condições, vinha a intermediária do casamento e lhe raspava inteiramente


os cabelos até

ao couro, depois a vestia com um traje de homem e do mesmo modo o


calçado, e

deitava-a sobre um colchão, inteiramente só e sem candeia. Feito isso, o


recém-casado,

não estando ébrio nem mais delicadamente vestido do que de costume, mas
tendo

jantado(18) sobriamente como de ordinário, voltava secretamente para casa,


onde

desatava a cintura da esposa e, tomando-a nos braços, deitava-a numa cama


e ali ficava

durante algum tempo com ela; mais tarde, voltava muito docemente para o
lugar onde

se acostumara a dormir com os outros rapazes; e daí por diante, continuava


a fazer

sempre o mesmo, ficando o dia inteiro e dormindo à noite com os


companheiros, exceto
quando às vezes ia ver a mulher raptada, com medo e vergonha de ser
percebido por

alguém da casa; então, a recém-casada o ajudava também de seu lado,


espiando as

ocasiões e meios de se encontrarem sem que fossem notados. Essa maneira


de agir

durava muito tempo, até que alguns deles tinham filhos antes de coabitarem
livremente

e de verem suas mulheres em pleno dia. Serve-lhes essa entrevista assim às


ocultas, não

só porque era um exercício de continência e pudicícia, mas também porque


ficavam

mais vigorosas para gerar; e, além disso, as duas partes se mantinham Com
ardor e

apetite para novos amores, não tépidas, nem languescentes, como


ordinariamente são os

que gozam de coração saturado os seus amores, tanto quanto queiram,, mas
se

entrelaçavam sempre repartindo entre si o aguilhão do desejo e as reservas


de calor

amoroso.

(18) No grego: como de ordinário, nos Phiditia. C.

XXIX. Mas, tendo estabelecido tão grande honestidade e tão reservada


temperança nos

casamentos, não pôs ele menos cuidado em eliminar toda yã e feminina


gelosia,
estimando ser bem razoável impedir que houvesse violência ou confusão,
ao mesmo

tempo que a razão também exigia que aos mais dignos se permitisse gerar
filhos em

comum, ridicularizando a tolice dos que se vingam de tais coisas com


guerras e efusão

de sangue humano, como-se os homens não devessem ter nisso participação


nem

comunicação alguma uns com os .outros. Portanto, não era merecedor de


censura o

homem muito idoso que, tendo mulher jovem e vendo algum belo rapaz que
lhe

agradasse e lhe parecesse de gentil natureza, o levasse para deitar com a


própria mulher

e enchê-la da boa semente, para depois reconhecer o fruto daí nascido como
tendo sido

gerado por ele próprio. Também era permitido a um homem honesto amar a
mulher de

outro, por vê-la prudente, pudica e capaz de ter belos filhos, e pedir ao
marido que o

deixasse deitar-se com ela, para então semear, como em terra gorda e fértil,
belas e boas

crianças, que dessa forma vinham a ter comunicação de sangue e parentesco


com gente

de bem e honrada.
XXX. Pois em primeiro lugar Licurgo não queria que as crianças
pertencessem a

particulares, mas fossem comuns à coisa pública, desejando assim, também,


que aqueles

que tivessem de ser cidadãos fossem gerados não por todos os homens, mas
somente

por gente de bem. Parecia-lhe, pois, que nas leis e ordenanças das outras
nações, no

tocante aos casamento, havia muitas tolices e vaidades, visto como faziam
suas cadelas

e éguas serem cobertas pelos mais belos cães e melhores garanhões que
podiam obter,

pedindo-os ou pagando-os aos respectivos senhores, e, não obstante,


guardavam as

mulheres encerradas debaixo de chave, com medo de que elas concebessem


de outros

que não eles, mesmo quando desmiolados, doentios ou velhuscos, como se


não fosse

primeira e principalmente por culpa dos pais e mães, e dos que os educam,
que as

crianças nascem viciosas e defeituosas, quando filhas de pessoas taradas; e,


ao

contrário, para proveito e contentamento daqueles, quando nascem bonitas e


boas, por

terem sido geradas de semelhante semente.


XXXI. Essas coisas assim se faziam então em virtude de razão natural e
civil, mas

eram tão necessárias que, embora as mulheres fossem tão fáceis, como se
diz que depois

o foram, não se sabia antigamente, na cidade de Esparta, o que era


adultério; e em

testemunho disso se pode alegar a resposta de um desses antigos


Espartanos, chamado

Geradas, a um estrangeiro que lhe perguntara que pena sofriam os que eram

surpreendidos em adultério: «Meu amigo, disse ele, tal pena não existe.» «E
se

existisse?» replicou-lhe o estrangeiro. «Seria preciso, respondeu, pagar um


touro tão

grande que poderia beber a água do rio Eurotas de cima da montanha de


Taígeto (19).

«Mas como seria possível encontrar touro tão grande?» perguntou o


estrangeiro. E

Geradas, rindo, lhe respondeu: «E como seria possível encontrar em Esparta


um

adultério?» É o que se acha escrito a respeito das ordenanças de Licurgo, no


tocante aos

casamentos.

XXXII. Entrementes, depois que a criança nascia, o pai não mais era dono
dela para

educá-la à vontade, mas a levava para certo lugar a ele deputado que se
chamava
Lesche, onde os mais antigos de sua linhagem residiam: visitavam eles a
criança e, se a

achavam bela, bem formada de membros e robusta, ordenavam fosse


educada,

destinando-lhe nove mil partes das heranças para sua educação; mas, se lhes
parecia

feia, disforme ou franzina, mandavam atirá-la num precipício a que


vulgarmente se dava

o nome de Apothetes, isto é, depositórios, pois tinham a opinião de que não


era

expediente, nem para a criança, nem para a coisa pública, que ela vivesse,
visto como

desde o nascimento não se mostrava bem constituída para ser forte, sã e rija
durante

toda a vida. E, por esse motivo, as próprias mulheres que as governa-vam


não as

levavam com água simples, como se faz por toda parte, mas (20) com uma
mistura de

água e vinho, e por esse meio experimentavam se a compleição e a têmpera


de seus

corpos era boa ou má; porque dizem eles que as crianças sujeitas à
epilepsia, ou então

catarrosas e doentias, não podem resistir nem tolerar esse banho de vinho,
mas

definham e caem em langor; e, ao contrário, as que têm saúde se tornam


(19) A montanha de Taígeto é agora a montanha dos Mainotas mais rijas e
mais

fortes.

XXXIII. As governantes também usavam de certa diligência artificiosa


para cuidarem

de seus meninos sem enfraldá-los ou embrulhá-los com faixas e flanelas, de


sorte que os

tornavam mais desembaraçados (21) de membros, melhor formados e de


mais bela e

gentil corpulência; e assim se tornavam indiferentes no seu viver, sem


serem difíceis de

criar, nem gulosos ou enjoados, nem assustadiços e receosos de ficarem sós


no escuro,

nem gritalhões oú de algum modo perversos, que são todos sinais cie
natureza frouxa e

vil. De tal maneira que havia estrangeiros que compravam amas no país da
Lacônia,

expressamente para criarem os filhos: assim, dizem que Amilca, que criou
Alcibíades,

era uma delas; mas Péricles, seu tutor, deu-íhe depois (22) por mestre e
governador um

servo chamado Zópiro, o qual não tinha nenhum quinhão melhor do que os
outros

escravos comuns. O que não fez Licurgo, pois não pôs a educação e o
governo dos
meninos de Esparta entre as mãos de mestres mercenários ou de servos
comprados a

preço de dinheiro; e, assim, não era permitido aos pais educar os filhos à
sua moda,

como bem lhes parecesse. Pois logo que estes chegavam à idade de sete
anos, ele os

tomava e os distribuía por grupos, para serem educados juntos e se


habituarem a brincar,

aprender e estudar uns com os outros; depois, escolhia em cada grupo


aquele com

aparência de ser o mais avisado e o mais corajoso no combate, ao qual dava


a

superintendência de todo o grupo. Os outros tinham sempre a vista voltada


para ele e

obedeciam às suas ordens, suportando pacientemente as punições que ele


lhes ordenava

e as corvéias que lhes determinava; de maneira que quase todo o estudo era
aprender a

obedecer; mas, além disso, os velhos assistiam frequentemente aos seus


brinquelos

coletivos c a maior parte do tempo lhes proporcionavam ocasiões para


debates e

querelas uns com os outros, para melhor conhecerem e descobrirem qual


era o natural

de cada um e se mostravam sinais de. um dia deverem ser ou cobardes ou


audazes.
(20) No grego: mas com vinho. C.

(21) Mais livres, mais ágeis.

(22.) Acrescentar, segundo o grego, pelo que diz Platão. C.

XXXIV. Quanto às letras, aprendiam somente o necessário e, em suma,


todo o

aprendizado consistia em bem obedecer, suportar o trabalho e obter a vitória


em

combate. Por essa razão, à medida que avançavam em idade, aumentavam-


lhes também

os exercícios corporais; raspavam-lhes os cabelos, faziam-nos andar


descalços e os

constrangiam a brincar juntos a maior parte do tempo, inteiramente nus;


depois, quando

chegavam à idade de doze anos, não mais usavam saios daí por diante, pois
todos os

anos lhes davam somente uma túnica simples, o que era causa de andarem
sempre sujos

e ensebados, como aqueles que não se lavavam nem se untavam senão em


certos dias do

ano, quando os faziam gozar um pouco, dessa doçura. Deitavam e dormiam


juntos sôbre

enxergas, que eles próprios fabricavam com pontas dos juncos e caniços
que cresciam

no rio Eurotas, 06 quais eles próprios deviam ir colher e quebrar, lòmente


com as mãos,
sem nenhuma ferramenta; mas, CIO inverno, ajuntavam a isso e
misturavam no meio o

que se chama (23) Lycophanos, porque parece que essa matéria tem em si
um pouco de

calor.

(23) É uma espécie de cardo, na língua dos Messenianos. Vide Hesíquio.


Amyot. É o

cardo algodoado, carduus tomentosus

XXXV. Mais ou menos nessa idade, seus amantes, que eram os rapazes
mais galhardos

e mais gentis, começavam a frequentá-los mais assiduamente , e também os


velhos

tinham as vistas semelhantemente voltadas para eles, aparecendo mais


ordinariamente

nos lugares onde faziam os exercícios e onde combatiam, e assistindo-os


quando se

divertiam em pllheriar uns com os outros: o que os velhos faziam não só


por

passatempo, mas com tal diligência e tal afeição como se fossem seus pais,
mestres e

preceptores desde que eles eram crianças; de maneira que nunca havia
tempo nem lugar

onde não tivessem sempre alguém para os admoestar, repreender e castigar,


se

cometessem alguma falta.


XXXVI. E, contudo além de tudo isso, ainda havia sempre um dos homens
de bem da

cidade que tinha expressamente o título e o encargo de governador das


crianças, o qual

as repartia por bandos e depois dava a superintendência àquele dentre os


meninos que

lhe parecesse mais prudente, ousado e corajoso: Chamavam aos rapazes


írenes, dois

anos após haverem saído da infância, e aos meninos maiores chamavam


Melírenes,

como se dissessem prestes a sair da infância. O moço a quem se dava esse


cargo tinha já

vinte anos e era seu capitão quando combatiam, e comandava-os quando


estavam em

casa, como a seus criados, injungindo aos que eram mais corpulentos e mais
fortes que

carregassem lenha para o jantar, e aos que eram menores e mais fracos,
ervas.

Precisavam furtá-las, para consegui-las. Uns iam furtar nos jardins, outros
nas salas dos

convívios, onde os homens comiam juntos, dentro das quais se esgueiravam


o mais fina

e cautamente que podiam, porque, se acaso fossem surpreendidos, seriam

conscientemente chicoteados, por terem sido preguiçosos demais e não


bastante finos e
astutos no furto. Também furtavam quaisquer outras viandas sobre as quais
pudessem

pôr a mão, espiando as ocasiões de poderem tomá-las habilmente, quando


os homens

dormiam ou não faziam boa guarda; mas aquele que fosse surpreendido era
chicoteado e

(24) tinha ainda de jejuar, pois muito pouco lhes davam de comer, a fim de
que a

necessidade os constrangesse a arriscar-se ousadamente e a inventar alguma


habilidade

para escaparem sutilmente. Era a causa primeira e principal por que lhes
davam tão

pouco alimento, mas o acessório era enfim que seus corpos crescessem
mais em altura,

porque os espíritos de vida, não estando muito ocupados em cozer e digerir


muita

vianda, nem rebatidos para baixo ou estendidos em largura pelo peso


demasiado grande

dela, sè estendiam em comprimento e se rebatiam para cima, por causa de


sua ligeireza

e, por essa forma, o corpo crescia em altura, nada havendo que o impedisse
de subir. E

parece que a mesma causa os tornava também mais belos, porque os corpos
miúdos e

delgados obedecem melhor e mais facilmente à virtude da natureza, que dá


o molde e a
forma a cada; um dos membros; e, ao contrário, parece que os corpos
grandes, gordos e

demasiado nutridos lhe resistem, não sendo tão maleáveis quanto os outros,
por’causa

de seu peso: nem mais nem menos do que se vê, por experiência, que as
crianças

nascidas de mulheres formosas, que purgaram durante a gravidez, são


também mais

delgadas e mais belas, porque a matéria que lhes forma o corpo, sendo mais
flexível, é

também mais facilmente regida pela força da natureza, que lhe dá a forma:
todavia,

quanto à causa natural desse efeito, deixemos disputá-la quem o queira, sem
nada

decidir.

(24) No grego: e era obrigado a jejuar. C.

XXXVII. Mas, para voltar ao assunto dos meninos Lacedemônios:


furtavam com tanto

cuidado e tanto medo de serem descobertos que se conta de um que, tendo


furtado um

raposinho, o escondeu debaixo da túnica, deixando-se dilacerar todo o


ventre com as

unhas do animal, sem jamais gritar, por medo de ser descoberto, até que
morreu onde se

achava. O que não é incrível, pois se vê o que os menores sofrem ainda


hoje: vimos
vários deles serem chicoteados até à morte, em cima do altar de Diana
sobrenomeada

Órtia. Ora, aquele submestre que tinha a superintendência de cada grupo de


crianças,

após o jantar, sentado ainda à mesa, mandava que um dos meninos cantasse
uma canção

e fazia uma pergunta depois da outra, as quais exigiam bastante reflexão


para que as

respostas fossem adequadas, com por exemplo: «Quem é o melhor homem


da cidade?»

Ou: «Que te parece o que fez fulano?» Com esse exercício, acostumavam-
se desde tenra

idade, a julgar as coisas bem ou malfeitas e a indagar da vida e do governo


dos

cidadãos. Pois, se algum não respondia pronta e pertinentemente a tais


perguntas —

quem é homem de bem, quem é bom cidadão e quem não o é — estimavam


eles que

isso era sinal de natureza frouxa, indolente, não incitada à virtude pelo
desejo de honra;

e, assim, era preciso que a resposta fosse sempre acompanhada de sua razão
e prova,

curta e estrita, em poucas palavras: do contrário, a punição daquele que


respondesse mal

consistia em que o mestre lhe mordia o polegar, fazendo-o mais


frequentemente em
presença dos velhos e magistrados da cidade, para verificar se o castigava
com razão e

como convinha. E, ainda que o fizesse mal, não o repreendiam em seguida,


mas quando

os meninos já se haviam retirado; e então era ele próprio repreendido e


punido,

conforme a punição tivesse sido dura demais ou, ao contrário, demasiado


branda.

XXXVIII. Além disso, imputava-se aos amantes a boa òu má opinião que


se concebia

dos meninos que haviam tomado para amar, de sorte que se diz que, tendo
certa vez um

menino, combatendo contra outro, deixado escapar da boca um grito que


lhe revelou a

coragem frouxa e falida, seu amante: foi por isso condenado à multa pelos
oficiais da

cidade. Mas, conquanto o amor fosse, coisa tão incorporada entre eles que
até as

mulheres honestas e virtuosas amavam as meninas, não havia contudo


ciúmes, mas, ao

contrário, era isso um começo de mútua amizade entre os que amavam no


mesmo lugar;

e procuravam juntos por todos os meios de que podiam dispor, fazer que o
menino que

amavam em comum fosse o mais gentil e o melhor condicionado de todos


os outros.
Ensinavam os meninos a falar de sorte que sua linguagem tivesse malícia
misturada de

graça e prazer, e que em poucas palavras compreendesse muita substância.

XXXIX. Pois Licurgo queria que a moeda de ferro, de grande peso e


grosseira massa,

tivesse muito pouco valor, como dissemos alhures; e, ao contrário que a


fala, em poucas

palavras, nem pesadas nem afetadas, compreendesse muito grave e boa


sentença,

acostumando as crianças, por longo silêncio, a serem breves e agudas nas


respostas.

Porque exatamente assim como a semente dos homens luxuriosos, que se


misturam

frequente e dissolutamente demais com as mulheres, não pode germinar


nem frutificar,

também a intemperança de falar demais torna a palavra vã, tola e vazia de


sentido. Daí

vem que as respostas Lacónicas eram tão agudas e tão sutis; conta-se (25)
que o rei Agis

respondeu um dia a um Ateniense que zombava das espadas usadas pelos

Lacedemônios, dizendo que eram tão curtas que os saltimbancos e


ilusionistas as

engoliam facilmente na praça, diante de toda a gente: «E todavia, disse


Agis, com elas

atingimos bem os nossos inimigos.»


XL. Quanto a mim, sou de opinião que os Lacõnios, em sua maneira de
falar, não usam

de muita linguagem, mas tocam muito bem no ponto e se fazem entender


muito bem

pelos ouvintes; e, assim, parece-me que o próprio Licurgo era igualmente


breve e agudo

no falar, o que se pode conjecturar por algumas de suas respostas que se


encontram por

escrito, como foi a que deu a alguém que o aconselhava a estabelecer na


Lacedemônia

um governo popular, onde o pequeno tivesse tanta autoridade quanto o


grande:

«Começa, disse-lhe ele, a fazê-lo tu mesmo em tua casa.»


Semelhantemente, também, o

que respondeu a outro que lhe perguntara porque havia ordenado se


oferecessem aos

deuses coisas tão pequenas e de tão pouco valor: «A fim, disse ele (26), de
jamais

cessarmos de honrá-los.» E o que de outra feita disse no tocante aos


combates (27):

proibia aos cidadão somente aqueles nos quais a mão é estendida, isto é,
onde há

rendição.

(25) Vide as Observações, cap. XXXIX. C.

XLI. Encontram-se também algumas belas res^ postas em certas cartas


missivas que
escrevia aos seus concidadãos, como quando lhe perguntaram: «Como
poderemos

defender-nos contra os nossos inimigos?» Respondeu-lhes: «Continuando


pobres e sem

nenhum cobiçar possuir mais do que’ o outro.» E em outra missiva, na qual


discute se

era expediente fechar a cidade com muralhas: «Como se poderia dizer que a
cidade está

sem muralhas, quando está cingida e cercada de homens em toda a volta, e


não de

tijolos?» Todavia, quanto a essas cartas e outras semelhantes que se


mostram dele, é

difícil decidir se devemos crer ou descrever sejam de sua autoria.

(26) O grego: de que tenhamos sempre com que honrá-los. C.

(27) Ginásticas. C.

XLII. Mas, quanto a que o muito falar fosse repreendido e censurado entre
os

Lacedemônios, pode-se evidentemente mostrar pelas agudas palavras que


alguns deles

responderam outrora. O rei Leônidas disse um dia a alguém com quem


conversava e

que alegava muitas coisas boas, mas fora de tempo e de estação: «Amigo,
tratas sem

propósito de muitos «bons propósitos». E Carilau, o sobrinho de Licurgo,


interrogado
porque seu tio fizera tão poucas leis: «Porque, disse ele, não há necessidade
de muitas

leis para os que não falam muito.» E Arquidâmidas disse a alguns que
repreendiam o

orador (28) Hecateu porque, tendo sido convidado para jantar em um dos
convívios, não

falou durante todo o tempo da refeição: «Aquele que sabe falar bem sabe
igualmente

quando é preciso falar.» E, quanto ao que eu disse antes, que em suas


agudas e sutis

respostas havia ordinariamente um pouco de malícia misturada com graça,


pode-se vêr e

conhecer por estas outras palavras: Demarato respondeu a um cacete que


lhe quebrava a

cabeça com perguntas impertinentes e importunas, perguntando-lhe quem


era o melhor

homem da Lacedemônia: «Aquele que «menos» se parece contigo.» E Agis


disse a

alguns que em altas vozes louvavam os Elianos porque julgavam segundo o


direito e a

justiça nos jogos Olímpicos: «Que grande maravilha existe em que, no


espaço de cinco

anos, os Elianos façam ao menos um dia boa justiça?»

(28) No grego: o sofista Hecateu.

E Teopompo a um estrangeiro que, desejando mostrar sua afeição pelos


Lacedemônios,
dissera: «Em nossa cidade todos me chamam Philolacon», isto é, amador
dos

Lacedemônios; «Seria mais honesto, respondeu, que te sobrenomeassem


Philopolites»,

isto é, amante dos seus concidadãos. E Plistônax, filho de Pausânias, como


um orador

Ateniense chamasse aos Lacedemônios grosseiros e ignorantes: «Dizes a


verdade,

respondeu, pois somos os únicos entre os Gregos que não soubemos nada
de mal a

respeito de vós oturos.» E Arquidâmidas a um que lhe perguntara quantos


eram os

Espartanos: «Bastantes, respondeu-lhe, para expulsar os maus.»

XLIII. . Pode-se também fazer conjectura de sua maneira de falar pelas


palavras

jocosas que às vezes diziam brincando, porque estavam acostumados a


jamais dizer

nada no ar e em vão, tendo sempre cada palavra alguma inteligência secreta


que á

tornava merecedora de ser considerada de perto. Como aquele que disse, ao


ser

convidado para ir ouvir alguém que ingênuamente imitava o rouxinol: «Eu


já ouvi o

próprio rouxinol.» E outro que, tendo lido esta inscrição de sepultura:

Após em seu país a tirania


Extinguiram com bélica energia,

Diante das altas torres combateram

Outrora e em Selinunte pereceram,

disse: «Eles bem mereciam a morte, por terem extinguido uma tirania,
quando deveriam

deixar que se queimasse toda.» E um rapazinho a outro que prometia dar-


lhe galos tão

corajosos que morriam rio terreiro combatendo: «Não me dês daqueles que
morrem mas

dos que fazem morrer os outros combatendo.» Outro, vendo homens que
passavam

sentados dentro de coches e liteiras, disse: «Não queria Deus que eu jamais
esteja em

cadeira de onde não possa levantar-me suas respostas e recontros; de


maneira que não é

sem razão que outrora disseram alguns que laconizar era antes filosofar, isto
é, exercitar

antes a alma que o corpo.

XLIV. Mas, além disso, não se empenhavam menos em contar bem e


compor belos

cânticos do que em falar com rapidez e propriedade; e, assim, em suas


canções, havia

sempre não sei que espécie de aguilhão a excitar a coragem dos ouvintes e a
inspirar-lhes o ardente desejo dè fazer alguma bela coisa. A linguagem era
simples, sem
nenhuma afetação, e o assunto grave e moral, contendo mais
frequentemente o elogio

dos que tinham morrido na guerra, pela defesa de Esparta, como sendo
muito felizes; e

censura aos que, por frouxidão de caráter, tinham evitado morrer, passando
a viver uma

vida miserável e infeliz: ou era ainda a promessa de serem homens


virtuosos no futuro,

ou a gabolice de o serem presentemente, segundo as diversas idades dos que


cantavam.

Assim, não será fora de propósito, para melhor entendimento, apresentar


aqui alguns

exemplos. Nas festas públicas, havia sempre três danças, segundo a


diferença das três

idades. A dos velhos era a primeira que começava a cantar, dizendo:

Nós fomos, em tempos idos,

Jovens, bravos e atrevidos.

Vinha depois a dos homens, que dizia:

Nós o somos no presente,

À prova de toda a gente.

A terceira, das crianças, vinha depois e dizia:

E nós um dia o seremos,

Pois vos ultrapassaremos.


XLV. Em suma, quem observar de perto as obras e composições dos poetas
Lacónicos,

das quais Se encontram ainda algumas, até ao tempo presente, C considerar


a nota que

faziam soar com flautas, ao Som e à cadência da qual marchavam em


batalha, quando

iam enfrentar o inimigo, achará que nâo é sem razão que Terpandro e
Píndaro

conjugavam a ousadia com a música. Pois Terpandro, ao falar dos I


,acedemônios, diz

em certo trecho:

Eis onde em guerra a música se alia

Aos atos de bravura e de ousadia,

Sob o fecundo reino da justiça,

E Píndaro, falando também deles, diz;

Os velhos são mais prudentes,

Os moços bravos, contentes,

Sabendo bailar, cantar

E o inimigo dominar.

Pelos quais testemunhos aparece que ambos os fizeram e descreveram


como amantes da

música e das armas ao mesmo tempo; pois, assim como diz outro poeta
Lacônico,
Saber (29) à lira cantar

Formosos carmes fagueiros

Bem corresponde a lutar

Como valentes guerreiros.

XLVI. Por essa causa, em todas as guerras, quando iam dar batalha, o rei
sacrificava

primeiramente às Musas (30), para recordar acs combatentes, como me


parece, a

disciplina na qual tinham sido educados e os julgamentos, a fim de que, no


mais forte e

perigoso da refrega, eles se representassem diante dos olhos dos soldados e


fossem

causa de os incitar a praticar atos dignos de memória. Mas, então,


relaxavam um pouco

aos jovens a rígida austeridadc e dureza de sua regra ordinária de viver,


permitindo-lhes

que enfeitassem os cabelos e embelezassem as armas e indumentos, e


tomando prazer

em vê-los assim regozijar-se, nem mais nem menos do que jovens cavalos
relinchões e

resfolegantes de ardor de combater. Portanto, ainda que desde o tempo da


primeira

juventude começassem a usar longos cabelos, não eram jamais tão


cuidadosos em os
pentear e compor como quando estavam prestes a dar batalha; pois então os
untavam

[(31) com óleos perfumados] e os repartiam, lembrando-se de uma


observação de

Licurgo, o qual costumava dizer que os cabelos tornam aqueles que são
belos ainda

mais belos e aqueles que são feios mais medonhos e hediondos. Os próprios
exercícios

individuais eram mais doces e menos penosos na guerra do que em outra


época, e

geralmente todo o seu viver menos estreitamente reformado e menos


controlado, de

maneira que no mundo só para eles a guerra era repouso de trabalhos que os
honiens em

geral suportam a fim de se tornarem militarmente idóneos.

(29) Tocar bem a lira e servir-se bem das armas vão a par. C.

(30) Essa passagem está corrompida. Vide as Observações, cap. XLVI. C.

(31) Isso não está no texto. C.

XLVII. Depois, quando todo o seu exército estava enfileirado em batalha, à


vista do

inimigo, p rei sacrificava aos deuses uma cabra e, de quando em quando,


mandava que

todos os combatentes colocassem à cabeça chapéus de flores e que os


tocadores de
flautas soassem a alvorada que eles chamam de canção de Castor, ao som e
à cadência

da qual ele próprio começava a marchar em primeiro lugar; de sorte que era
aprazível, e

não menos aterrador, vê-los assim marchar todos juntos em tão boa ordem
ao som das

flautas, sem jamais perturbar a ordem nem confundir as fileiras, e sem


perder-se nem

assustar de nenhum modo, mas antes indo pausada e alegremente, ao som


dos

instrumentos, arrostar o perigo da morte. Pois é verossímil que tais coragens


não são

apaixonadas nem pelo pânico nem pela fúria além da medida; e, ao


contrário, têm eles

constância e ousadia segura, com boa esperança, como se fossem


acompanhados pelo

favor dos deuses.

XLVIII. O rei, marchando nessa formação, tinha sempre ao pé de si alguém


que tivesse

outrora conquistado o prêmio nos jogos e torneios públicos; e dizem que


certa vez

houvesseum ao qual, na festa dos jogos Olímpicos, se ofereceu boa soma de


dinheiro, a

fim de que não se apresentasse para combater: o que ele não quis fazer,
antes preferiu
com grande dificuldade ganhar ali o prêmio da luta. E, então, disse-lhe
alguém: «Afinal,

Lacõnio, que te adiantou ter conquistado com tanto suor o prêmio da luta?»
O Lacônio

respondeu-lhe rindo: «Combaterei em batalha diante do rei.»

XLIX. Após desbaratarem os inimigos, eles os expulsaram e perseguiam


até que, pela

derrota e fuga completa, a vitória estivesse de todo assegurada; e, então,


voltavam sem

nada mais para o seu acampamento, estimando que não era ato de coroação
gentil nem

de nação nobre e generosa, como a Grega, matar e chacinar os que estavam


tão

debandados que não mais podiam reagrupar-se e abandonavam toda


esperança de

vitória. Isso lhes era não somente honroso, mas também grandemente
aproveitável,

porque os que os enfrentavam em batalha, sabendo que eles matavam os


que se

obstinassem em fazer-lhes face, achavam que fugir era mais útil do que
esperar e ficar. .

L. Diz o sofista Hípias que o próprio Licurgo foi bom capitão e grande
homem de

guerra, pois estivera em várias batalhas; e Filostéfano lhe atribui a


separação dos
homens a cavalo em companhias, chamadas Oulames. cada uma das quais
era de

cinquenta homens armados, que se enfileiravam em quadrado. Mas, ao


contrário,

Demétrio de Falero escreve que éle nunca esteve na guerra e que


estabeleceu suas leis e

seu governo em plena paz. Quanto a mim parece-me que a instituição da


trégua de

armas durante a festa dos jogos Olímpicos, a qual se diz ter sido inventada
por ele, é

bem sinal de uma natureza doce e que ama o repouso da paz; todavia, há
alguns, entre

os quais está Hermipo, que dizem que éle não estêve desde o começo com
ífito a

ordenar as cerimônias dos jogos Olímpicos, mas que ali se encontrou uma
vez por acaso

e de passagem somente, detendo-se para assistir à exibição; e então lhe


aconteceu que

ouviu atrás de si como a voz de um homem que o interpelara, dizendo


estranhar que ele

não persuadisse os cidadãos de participarem dessa bela assembleia; e, como


se voltasse

para ver quem lhe falava, não viu ninguém. Diante disso, estimou fosse uma

admoestação vinda da parte dos deuses, de modo que foi íncontinenti


procurar ífito,
com o qual ordenou todos os estatutos e cerimonias daquela festa, a qual
depois se

tornou muito mais famosa, melhor estabelecida e mais assegurada do que


antes.

LI. Mas, para voltar aos Lacedemônios, sua disciplina e regra de viver
durava ainda

depois de haverem chegado à idade de homens, pois não havia ninguém a


quem fosse

tolerado nem permitido viver como entendesse, antes ficavam dentro da


cidade nem

mais nem menos do que dentro de um acampamento, onde cada qual sabe o
que deve ter

para viver e o que deve fazer para o público. Em suma, estimavam todos
que não tinham

nascido para servirem a si mesmos, antes para servir o país; e, portanto, se


outra coisa

não lhes era recomendada, continuavam sempre a ir ver o que faziam os


meninos e a

ensinar-lhes alguma coisa que resultasse em utilidade pública, ou ainda a


aprender eles

próprios com os que eram mais idosos do que eles.

LII Pois uma das mais belas e mais felizes coisas que Licurgo introduziu
jamais em sua

cidade foi o grande lazer proporcionado aos cidadãos, não permitindo se


empregassem
em nenhum mister vil ou mecânico; e, assim, não havia necessidade de
trabalhar para

acumular grandes riquezas em lugar onde a opulência não era de modo


algum útil nem

apreciada; pois os Hilotas, que eram homens servilizados por direito de


guerra,

lavravam-Ihes as terras, proporcionando-lhes assim certa renda todos os


anos. A esse

propósito, conta-se de um Lacedemõnio que, achando-se em Atenas, num


dia em que ali

se realizavam julgamentos, ouviu dizer como um burguês da cidade


acabava de ser

convencido e condenado por ociosidade, tendo voltado para casa todo


desconfortado,

acompanhado pelos amigos, que o deploravam grandemente e estavam


muito

desgostosos com seu infortúnio; e o Lacedemõnio, então, pediu aos que


estavam perto

dele que lhe mostrassem aquele que fora condenado por viver nobremente e
como

gentil-homem. O que eu aleguei para mostrar quanto ele estimava ser coisa
plebeia e

servil exercer algum mister mecânico ou fazer alguma obra manual para
ganhar

dinheiro.
LIII. Quanto aos processos, pode-se bem imaginar que foram banidos da
Lacedemônia

com o dinheiro, mesmo porque não havia avareza, cobiça, pobreza, nem
indigência,

antes igualdade com abundância e grande comodidade no viver, por causa


da

sobriedade, sem nenhuma superfluidade. Eram só danças, festas, jogos,


banquetes,

caçadas, exercícios físicos e assembleias para se entreterem durante todo o


tempo em

que não estavam ocupados na guerra; pois os moços, até à idade de trinta
anos, jamais

se encontravam no mercado para comprarem ou fazerem alguma provisão


doméstica,

mas faziam seus negócios e provisões necessárias por intermédio dos


parentes e amigos,

sendo também coisa vergonhosa que mesmo os mais velhos ali se


encontrassem

frequentemente; e, ao contrário, era-lhes honroso frequentar, durante a


maior parte do

dia, as liças onde se faziam exercícios corporais, ou os redutos e reuniões


recreativas,

onde passavam o tempo a discorrer honestamente uns com os outros, sem


jamais terem

o propósito de ganhar, traficar ou acumular dinheiro: porque todas as suas


conversas, ou
a maior parte, eram para louvar alguma coisa honesta ou censurar as
desonestas com

pilhérias e risadas, que entretanto sempre continham, de passagem, uma


doce

advertência e uma correção.

LIV. Pois o próprio Licurgo não era tão austero que nunca o vissem rir,
antes escreve

Sosíbio haver ele quem doou a pequena imagem do Riso existente na


Lacedemônia,

tendo querido introduzir o riso nos convívios e outras assembleias, como


agradável

molho para adocicar o trabalho e adureza de sua regra de viver. Em suma,


acostumou os

cidadãos a não quererem e não poderem jamais viver sós, antes serem por
assim dizer

colados e incorporados uns com os outros, e a se acharem sempre juntos,


como as

abelhas, em torno dos superiores, saindo de si mesmos quase por um


arrebatamento de

amor para com o país e de desejo de honra para servir inteiramente ao bem
da coisa

pública; a qual afeição se pode fácil e claramente ver impressa em algumas


de suas

respostas, como a que deu um dia Pedareto, por ter deixado de ser eleito
para o número
dos trezentos: pois voltou alegre e satisfeito para casa, dizendo que se
regozijava de

haver encontrado na cidade trezentos homens melhores do que ele. E


Polistrátidas,

tendo sido enviado embaixador com alguns outros junto aos capitães e
lugares-tenentes

do rei da Pérsia, os senhores Persas lhe perguntaram se eles iam por motivo
privado ou

se haviam sido enviados pelo público: «Se nós obtemos, disse ele, é pelo
público; se não

obtemos, é por iniciativa privada que viemos.» E Argileônida, mãe de


Brásidas,

perguntou a alguns, que na volta da viagem de Anfípolis à Lacedemônia a


tinham ido

visitar, se seu filho morrera como homem de bem e digno de ter nascido em
Esparta; e,

como o louvassem em altas vozes, dizendo que não havia ainda homem tão
valente em

todo o país da Lacedemônia, replicou-lhes: «Não digais isso, meus amigos,


pois

Brásidas era por certo muito valente, mas o país da Lacedemônia tem
muitos outros que

o são ainda mais do que ele.»

LV. Ora, quanto ao Senato, Licurgo o estabeleceu primeiramente com


aderentes de sua
empresa, como dissemos antes; mas ordenou que, quando viesse mais tarde
a morrer

algum deles, o substituísse aquele que fosse considerado o melhor homem


da cidade,

desde que passasse dos sessenta anos. Era bem o mais honroso combate que
poderia

existir entre os homens, no qual conquistava ele o prêmio, não que fosse o
mais ágil

entre os ágeis, nem o mais forte entre os fortes, mas sim o mais virtuoso
entre os

virtuosos, tendo por preço de sua virtude pleno poder, por assim dizer, e
autoridade

soberana no governo da coisa pública, e detendo em seu poder a honra, a


vida e os bens

de todos os cidadãos. Mas a eleição se fazia desta maneira: o povo


primeiramente se

reunia acima da praça, onde havia alguns deputados encerrados dentro de


uma casa, de

maneira que não podiam ver nem ser vistos pelos que estavam reunidos na
praça, antes

ouvindo-lhe somente o rumor; então o povo declarava por aclamação


aquele que

aceitava ou que recusava, entre os pretendentes, como também declarava


sua vontade

por esse mesmo meio em qualquer outra coisa. Os pretendentes não eram
introduzidos
nem apresentados todos juntos, mas uns depois dos outros, pela ordem, para
se tirar a

sorte. Aquele em quem a sorte recaísse passava através da assembleia do


povo sem

dizer palavra, e os deputados encerrados tinham tabuletas nas quais


anotavam a

grandeza do rumor e do clamor do povo, de modo que cada um dos


candidatos passava

sem que eles soubessem quem era; e contavam somente o primeiro, o


segundo, o

terceiro ou o tantésimo, pela ordem de apresentação; e aquele a cuja


passagem o clamor

do povo fosse maior, era por eles declarado eleito senador. E ele, então,
trazendo um

chapéu de flores sobre a cabeça, ia por todos os templos dos deuses para
render-lhes

graças, seguindo de grande número de jovens que em altas vozes louvavam


e

magnificavam sua virtude; e também de um grande grupo de mulheres que


iam

entoando cânticos em seu louvor e abençoando-o por haver tão


virtuosamente vencido;

depois, cada um de seus parentes lhe preparava em casa uma colação e,


assim que ele

entrava, dizia-lhe: «A cidade te honra com este banquete.» Isso feito, ele
voltava para o
lugar ordinário do seu convívio, onde fazia em tudo o mesmo que de
costume, salvo

quando lhe serviam à mesa diante dele dupla porção, da qual conservava
apenas uma; e,

depois do jantar, todas as suas parentes ficavam à entrada da sala do


convívio onde ele

tinha jantado; e ele chamava aquela que mais estimava, dava-lhe a segunda
porção e

dizia-lhe: «Isto me foi dado em testemunho de que eu hoje conquistei o


prêmio da

virtude; e eu to dou da mesma forma.» Então, ela era reconduzida para casa
por todas as

outras damas, nem mais nem menos do que ele pelos homens.

LXI.Ademais, quanto às sepulturas, Licurgo também as ordenou com muita


sabedoria,

pois em primeiro lugar, para evitar toda superstição (32), quis que o mortos
se

enterrassem dentro da cidade e que as sepulturas fossem ao redor das


igrejas, para

acostumar os jovens a tê-los sempre diante dos olhos, sem medo de ver um
defunto,

como se fosse coisa que só de tocar-se, ou passar através das sepulturas,


tornasse o

homem poluído; depois, proibiu que logo pudesse ser enterrado com eles, e
quis
somente que se envolvesse o corpo com um pano vermelho, com folhas de
oliveira. Não

era permitido escrever sobre a sepultura o nome do defunto, salvo de


homem morto na

guerra ou de mulher religiosa e sagrada. Ademais, o tempo prefixado para


usar o luto

era muito curto, pois não durava mais de onze dias, e era preciso que no
duodécimo

sacrificassem a Prosérpina e abandonassem o luto.

(32) No grego: não impediu que. C.

LVII. Em suma, nada deixou ocioso, pois entre todas as coisas que os
homens não

podem dispensar introduziu sempre algum aguilhão incitando os homens à


virtude e

fazendo-os odiar o vício; e encheu a cidade de belos e bons ensinamentos e


exemplos,

de forma que o homem assim educado, encontrando-os sempre diante dos


olhos em

qualquer parte onde se achasse, vinha por força moldar-se e formar no


padrão da

virtude. E por essa causa não permitiu a quem quisesse, sem licença, sair
fora do país e

ir aqui e acolá, pelo mundo, de medo que aqueles que assim saíssem a seu
bel-prazer

trouxessem então consigo costumes estrangeiros e exemplos de vida


corrompida e
desordenada: o que pouco a pouco teria podido acarretar alteração e
mudança da polícia.

Além disso, expulsou de Esparta os estrangeiros, salvo os que ali tinham

necessariamente o que fazer e que ali haviam chegado para alguma coisa
boa e

aproveitável: não que tivesse receio de que ali aprendessem algo que lhes
servisse para

fazê-los amar a virtude, como o disse Tucídides, e que eles ficassem com
vontade de

seguir a forma de sua polícia, mas sim por temer que eles ensinassem aos
seus cidadãos

alguma coisa má e viciosa, pois é forçoso que com pessoas estrangeiras


entrem numa

cidade propósitos e desígnios novos: os novos avisos engendram novas


afeições e

vontades discordantes e muito frequentemente repugnantes às leis e à forma


de governo

já estabelecida, nem mais nem menos do que a uma harmonia de música


bem acordada;

portanto, estimou ser coisa necessária manter a cidade pura e nítida de


costumes e

modos de agir estrangeiros, nem mais nem menos que de pessoas infectas
de moléstia

contagiosa.

LVIII. Ora, em tudo o que dissemos inteiramente até aqui, não há marca
nem aparência
alguma de iniquidade nem de injustiça, de que censuram alguns as
ordenanças de

Licurgo, dizendo que são bem ordenadas para tornar os homens belicosos e
valentes,

não justos e direitos; mas, quanto àquela a que chamavam Criptia, como
quem dissesse

secreta, se é ordenança de Licurgo, segundo admite. Aristóteles, ela poderia


haver

induzido Platão a formar sobre ele a mesma opinião que de sua coisa
pública. Essa

ordenança era tal: os governadores que tivessem a superintendência dos


jovens, a certos

intervalos de tempo escolhiam os que lhes parecessem mais avisados e os


enviavam aos

campos, um aqui, outro acolá, levando então consigo adagas e somente o


necessário

para viverem. Esses jovens, esparsos no meio dos campos, escondiam-se


durante o dia

em alguns lugares cobertos onde repousavam, depois à noite iam espiar os


caminhos e

aí matavam o primeiro Hilcta que encontrassem; e, às vezes, nos campos,


em pleno dia,

iam matar os mais fortes e mais robustos, como conta Tucídides em sua
história da

guerra Peloponésica, onde diz que alguns Hilotas, em bom número, foram
por édito
público dos Espartanos coroados como libertos e levados por todos os
templos âos

deuses, em virtude dos bons serviços que valorosamente haviam prestado à


coisa

pública; e em pouco tempo não se soube o que se tornaram, ainda que


fossem mais de

dois mil, de sorte que jamais ninguém ouviu dizer, nem então nem depois,
como tinham

morrido. E Aristóteles, além de todos os outros, diz que os Éforos, logo que
se

instalavam em seus ofícios, declaravam guerra aos Hilotas, a fim de que


fossem

permitido matá-los. Também é certo que, em outras coisas ainda, os


tratavam muito

duramente, pois às vezes os faziam beber à força vinho sem água, além da
medida, até

os embriagarem; depois os levavam inteiramente ébrios às salas dos


convívios, para as

crianças verem a vilania de uma pessoa embriagada; e os faziam cantar


canções e

praticar danças indignas de pessoas honestas, e cheias de derrisão e


zombaria,

proibindo-os expressamente de cantarem as que fossem honestas. De sorte


que se diz

(33) que, na viagem que fizeram os Tebanos dentro da Lacônia, os Hilotas


feitos
prisioneiros, quando se lhes ordenava que cantassem versos de Terpandro,
ou de

Álcman, ou de Espèndon da Lacônia, não o faziam, dizendo que não


ousariam cantar as

canções de seus amos. De tal maneira, aquele que primeiro se lembrou de


dizer que no

país da Lacedemônia quem é livre é mais livre e quem é servo é mais servo
do que em

nenhuma outra parte do mundo, conheceu muito bem a diferença que há


entre a

liberdade e a servidão de lá e de alhures.

LIX. Mas, quanto a mim, penso que os Lacedemônios começaram a usar


dessas grandes

rudezas e crueldades muito tempo após a morte de Licurgo e mesmo depois


do .grande

tremor de tetra que sobreveio em Esparta (34), época na qual os Hilotas se


sublevaram

contra eles com os Messenianos e causaram muitos males a todos o país,


pondo a cidade

no maior perigo que jamais tivera; pois eu não poderia pensar que Licurgo
jamais

inventasse nem instituísse coisa tão infeliz nem tão perversa como aquela
ordenaça:

conjecturando que sua natureza era doce e bonacheirona, pela clemência e


equidade que
se percebia em todos os outros atos seus, tendo sido mesmo testemunhada
por expresso

oráculo dos deuses.

(33) Que na invasão.

(34) No ano 489 antes de Jesus Cristo. Aí pereceram mais de vinte mil
homens,

conforme relato de Diodoro da Sicília, XI, 63,

LX. Entrementes, quando viu que, por uso, os principais pontos de seu
governo já

tinham tomado pé, e que sua forma de polícia era bastante forte para
manter-se e

conservar-se por si mesma, assim como diz Platão, que Deus se regozijou
grandemente

quando terminou o mundo, vendo-o girar e fazer o seu primeiro


movimento: também

ele, com singular prazer e contentamento de espírito, ao ver ordenanças tão


belas e tão

grandes postas em uso, e tão bem encaminhadas por experiência real,


procurou ainda

torná-las imortais, tanto quanto fosse possível por previdência humana, de


sorte que no

futuro jamais pudessem ser mudadas nem alteradas. Para consegui-lo, fez
reunir o povo

e, em plena assembleia, demonstrou-lhe que a polícia e o estado da coisa


pública lhe
pareciam muito bem estabelecidos para uma vida feliz e virtuosa, mas que
havia, não

obstante, um ponto de maior consequência que tudo o mais, o qual não lhes
podia ainda

declarar, até que o tivesse comunicado e sobre ele pedido conselho ao


oráculo de Apolo;

e, portanto, era preciso que observassem suas leis e ordenanças


inviolàvelmente, sem

nada mudar, remover ou alterar, até que ele estivesse de volta da cidade de
Delfos; e,

quando regressasse, fariam então o que o deus lhe houvesse aconselhado.


Eles

prometeram todos fazê-lo assim e lhe pediram se apressasse em ir até lá;


mas, antes de

partir, fez primeiro os reis e senadores, depois consequentemente todo o


povo, jurarem

que respeitariam suas ordenanças e estatutos, sem nada mudarem nem


removerem de

nenhum modo, até que estivesse de volta; feito isso, seguiu para a cidade de
Delfos,

onde, logo que chegou, sacrificou ao templo de Apolo e perguntou se as leis


que

estabelecera eram boas para bem e felizmente viver: respondeu-lhe Apolo


que suas leis

eram verdadeiramente muito boas e que sua cidade, conservando a forma de


governo
que ele ordenara, se tornaria muito gloriosa e renomeada.

LXI. Licurgo mandou escrever esse oráculo, enviando-o a Esparta; e,


depois de haver

ainda de novo sacrificado a Apolo, despediu-se dos amigos e do filho e


resolveu morrer,

a fim de que seus concidadãos não pudessem jamais ser absolvidos do


juramento feito.

Quando tomou essa resolução, tinha ele chegado à idade em que o homem
está ainda

bastante vigoroso para viver e também maduro para morrer quando o


queria; porque,

sentindo-se feliz’ de ter chegado acima de sua empresa, deixou-se morrer


por falta de

alimento, abstendo-se voluntariamente de comer, porque estimava ser


conveniente que a

própria morte dos grandes personagens trouxesse algum fruto à coisa


pública e que o

fim de sua vida não fosse nem mais ocioso nem inútil do que tudo o mais,
antes fosse

um de seus atos mais meritórios e de suas mais virtuosas façanhas. Pensou,


assim, que

sua morte viria a ser o cúmulo e o coroamento de sua felicidade, após haver
feito e

ordenado tantas e tão belas, tão boas e tão grandes coisas para honra e bem
do país, e
seria como um selo de salvaguarda que conservasse em essência as boas
ordenanças

que encaminhara, visto como os cidadãos tinham todos jurado que as


manteriam

invioláveis até que ele estivesse de volta. Não se iludiu em tal esperança,
pois sua

cidade foi a primeira do mundo em glória e bondade de governo, durante o


espaço de

quinhentos anos, enquanto observou suas leis, sem que nenhum dos reis
sucessores

mudasse ou alterasse coisa nenhuma, até ao rei Agis, filho de Arquidamo;


pois a criação

dos éforos não afrouxou, mas enrijeceu, as leis de Licurgo, ainda que à
primeira vista

eles parecessem haver sido instituídos para manter e defender a liberdade


do povo: pois

(35) fortificaram também a autoridade dos reis e do Senado.

LXII. Mas, durante o reino de Agis, começaram primeiramente o ouro e a


prata a correr

dentro da cidade de Esparta, e com o dinheiro a avareza e a cobiça de


possuir, por

intermédio de Lisandro, o qual, embora inexpugnável e incorruptível por


dinheiro,

trouxe contudo ao país a riqueza e a avareza, enchendo-o de delícias,


levando-lhe a
guerra à força de curo e prata, e ccntravindo diretamente às leis e
ordenanças de

Licurgo, durante cuja vigência e duração o governo de Esparta não parecia


ser polícia

de coisa pública, mas antes regras de alguma devota e santa religião. E, do


mesmo modo

que os poetas fingem que Hércules, com sua maça e pele de leão, ia por
todo o mundo

punindo os ladrões inumanos e cruéis tiranos, também a cidade de Esparta,


com (36) um

pequeno bilhete de pergaminho e uma pobre capa, comandava e dava lei a


todo o resto

da Grécia, por grado, consentimento e vontade desta, afastando os tiranos


que

usurpavam dominação violenta sobre os cidadãos nas outras cidades,


decidindo querelas

e apaziguando sedições,muitas vezes sem fazer marchar um só homem de


guerra, antes

somente enviando um simples embaixador, a cujo comando os outros povos


obedeciam

incontinenti, nem mais nem menos do que as abelhas que se enfileiram e


reúnem em

torno de seu rei, logo que o percebem: tão grande era a reverência que se
prestava ao

bom governo e à Justiça daquela cidade.

(35) No grego: pois deu mais força à aristocracia. C.


LXIII. Portanto, não me posso admirar daqueles que vão dizendo que a
cidade de

Lacedemônia Dabia obedecer, e não comandar; e louvam uma observação


do rei

Teopompo, o qual respondeu a ninguém que dizia que Esparta se mantinha


porque ali os

reis sabiam comandar: «Mas antes, disse ele, porque os habitantes sabem
obedecer.»

Pois os homens ordinariamente desdenham de obedecer aos que não sabem


comandar:

de maneira que a fiel obediência dos súbditos depende da suficiência no


bem comandar

por parte do príncipe, pois quem bem conduz faz com que seja bem
seguido. E, do

mesmo modo que a perfeição da arte de um bom escudeiro é tornar o cavalo


obediente e

saber encaminhá-lo à razão, também o principal efeito da ciência de um rei


é bem

ensinar a obediência aos súbditos.

(36) No grego: com uma eítala- C.

LXIV. Mas os Lacedemônios não faziam somente que os outros povos lhes

obedecessem de bom grado, antes desejavam ser governados, regidos e


comandados por

eles, a fim de que não lhes pedissem navios nem dinheiro, e, assim, não lhes
enviavam
muitos homens de guerra para os constranger, mas somente um cidadão de
Esparta para

governá-los, ao qual os outros povos se submetiam, servindo-se dele em


caso de

necessidade, temendo-o e reverenciando-o: como os Sicilianos serviram-se


de Gilipo, os

Calcidianos de Brásidas e todos os Gregos habitantes na Ásia de Lisandro,


Calicrátidas

e Agesilau, nomeando-os reformadores e corretores dos príncipes, povos e


reis, aos

quais eram enviados, e tendo sempre os olhos sobre toda a cidade de


Esparta, como

sobre um perfeito exemplo de vida inteiramente reformada e de polícia bem


ordenada.

Ao qual propósito se relaciona muito bem a palavra jocosa proferida um dia


por

Estratônico, ao dizer, por pilhéria, «que ele mandava os Atenienses fazerem


mistérios,

procissões e outras cerimónias referentes ao serviço dos deuses; que os


Elianos fizessem

jogos de prendas, como coisas que sabiam fazer; e (37), se aí fizessem falta,
fossem os

Lacedemônios bem chicoteados». Isso foi dito por brincadeira, em tom


jocoso; mas

Antistenes, filósofo Socrático, vendo os Tebanos tornarem-se soberanos e


gloriosos,
após terem vencido uma vez os Lacedemônios na jornada de Luctras, disse:
«Parece-me

que esses Tebanos aqui não fazem nem mais nem menos do que as crianças
de escola,

que se glorificam quando às vezes corrigem o mestre».

LXV. Todavia, isso não era o fim nem o objetivo ao qual tendia Licurgo,
deixar sua

cidade comandando a várias; antes, estimando que a felicidade de toda uma


cidade,

como a de um homem particular, consiste principalmente no exercício da


virtude e na

união e concórdia dos habitantes, compôs e estabeleceu a forma de seu


governo para

que os cidadãos se tornassem francos de coração, contentes de si mesmos,


temperados

em todos os seus feitos para poderem manter-se e conservar-se no todo


muito

longamente. Essa mesma intenção tiveram também Platão, Diógenes e


Zenão, ao

escreverem os livros nos quais discorreram sobre o governo das coisas


públicas, e

semelhantemente todos os outros grandes e sábios personagens que se


puseram a

escrever acerca do mesmo assunto; mas após si não deixaram senão escritos
e palavras
somente; e, ao contrário Licurgo não deixou livros nem papéis, mas
produziu e realizou

de fato uma forma de governo que nenhum antes dele jamais inventara e
que depois

nenhum outro pôde imitar; e fez ver àqueles que cuidam que a definição do

perfeitamente sábio seja coisa imaginada no ar somente, e que não possa


realmente

existir no mundo, toda uma cidade vivendo e se governando filosofalmente,


isto é,

segundo os preceitos e as regras de perfeita sapiência; dessa maneira, ele


em bom

direito superou a glória de todos os que em todos os tempos se entregaram à


tarefa de

descrever ou de estabelecer o governo de algum estado político.

(37) E, se cometessem algumas faltas, fossem os Lacedemônios bem


chicoteados. C.

LXVI. E, por essa causa, diz Aristóteles que, depois de sua morte, fizeram-
lhe na

Lacedemônia menos honra do que ele merecera, ainda que lhe tenham feito
tanto quanto

possível, pois lhe edificaram um templo e lhe instituíram um sacrifício


solene todos os

anos, como a um deus. Além disso, diz-se que as cinzas de seu corpo, tendo
sido

transportadas para Esparta, um raio caiu sobre a sua sepultura: o que não se
viu
acontecer a outros personagens de nome, após o falecimento, senão ao
poeta Eurípides,

o qual, tendo morrido na Macedónia, foi enterrado depois na cidade de


Aretusa, o que é

um grande argumento para os amadores da memória desse poeta, para


responderem

àqueles que o caluniam que somente a ele aconteceu, depois da morte, o


que antes

sucedera somente com um homem tão santo e tão amado dos deuses.

LXVII. Querem alguns dizer que Licurgo morreu na cidade de Cirra, mas
Apolótemis

diz que foi em Élida, para onde foi levado; e Timeu e Aristóxeno escrevem
que ele

acabou seus dias em Cândia; e diz ainda mais Aristóxeno que os Candiotas
mostraram

sua sepultura na região que se chama Pérgamo, ao longo do grande


caminho. Deixou ele

um filho único chamado Antíoro, o qual morreu sem filhos, de sorte que sua
raça

terminou nele. Mas seus familiares, parentes e amigos fizeram uma


sociedade e

confraria em sua memória, a qual durou muito tempo, e aos dias em que se
reuniam

deram o nome de Lícúrgidas. Há outro, Aristócrates, filho de Hiparco, que


diz ter ele
morrido em Cândia, tendo-lhe os amigos queimado o corpo e depois
espalhado as

cinzas no mar, conforme ele lhes recomendara e pedira, porque temia que,
se porventura

as relíquias do seu corpo fossem um dia levadas para Esparta, os habitantes


não

quisessem dizer que ele voltara e, dessa forma, dizendo-se absolvidos do


juramento que

lhe tinham feito, empreendessem remover o governo por ele instituído. Eis
o que há

sobre a vida de Licurgo.

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