Livro - Violência e Resistência
Livro - Violência e Resistência
Chimica Francisco
http://lattes.cnpq.br/7943686245103765
Vitor Cei
http://lattes.cnpq.br/3944677310190316
Violência e Resistência
problematizações estéticas
1ª Edição
Rosani Umbach
Carla Lavorati
Adriana Yokoyama
(Organizadoras)
Rio de Janeiro
Mares Editores
2016
Copyright © da editora, 2016.
Capa
Anderson Antikievicz Costa
Editoração
Mares Editores
CDD 801.95
CDU 82
2016
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
Contato: [email protected]
Sumário
Apresentação .................................................................................................. 9
Sob (re) o Tropical Sol (o) brasileiro: a escrita da perda em Ana Maria
Machado .....................................................................................................258
-9-
como resistência, ao possibilitar, não apenas dar voz aos oprimidos,
mas principalmente (re) significar suas histórias. Nessa perspectiva,
Violência e Resistência: problematizações estéticas reúne pesquisas
que discutem temas relacionados ao universo da arte e aos
movimentos de violência, autoritarismo e resistência social. O
objetivo foi incentivar debates acadêmicos que incorporam essas
questões em suas pesquisas, observando como as expressões
artísticas podem reforçar ou romper com valores de preconceito e
agressão ao outro, ampliando, assim, as discussões sobre o universo
da arte e seu potencial de questionamento ético.
Na esteira dessa proposta, Juan Recchia Paez, em seu artigo
“Violencia y resistencia en Os sertões” de Euclides da Cunha, propõe
uma releitura da obra Os Sertões com o objetivo de trazer à tona
duas formas de violência inseridas nesse contexto: a tentativa de
uma imposição legal na constituição da alteridade do cidadão,
caracterizada como um dispositivo de controle, e o advento da
violência decorrente do interior da classe dos jagunços, rompendo
espaços e trincando seus discursos. Porém, mesmo em face de “áreas
de desentendimento”, gerando assim uma nova visibilidade, “o
jagunço persiste como uma manifestação de resistência enquanto
imagem de difícil apreensão”.
- 10 -
Investigando as produções ensaísticas e ficcionais de Cuti (Luiz
Silva), José Luis Bubniak, aponta em seu artigo, “Literatura negro-
brasileira e resistência na produção ensaística e ficcional de Cuti”, o
envolvimento do autor com uma literatura essencialmente negro-
brasileira que denuncia os mecanismos estruturados ao redor do
preconceito racial, e contesta a eliminação dos “elementos sociais e
raciais da literatura e da crítica literária”. É mediante essas
constatações que Buniak reconhece a literatura de Cuti não apenas
como espaços de resistência, mas também como “uma das vozes
mais importantes de resistência e combate quando o assunto é a
literatura produzida por negros”.
Carla Lavorati e Rosani Úrsula Ketzer Umbach, no artigo
“Resistência e ética em W. G. Sebald analisam a prosa sebaldiana
refletindo sobre três romances do autor alemão: “Os emigrantes, Os
anéis de Saturno e Austerlitz, com foco para “como essas
representações ficcionais empreendem uma relação ética com as
vítimas de catástrofes históricas (como as duas Grandes Guerras e o
nazismo) e, ainda, elaboram estética e filosoficamente problemáticas
que ainda são um impasse na contemporaneidade, como a alienação
e o preconceito”.
“Persépolis, de Marjane Satrapi: Identidade e Alteridade;
Violência e Resistência”, título do artigo de Xênia Amaral Matos e
- 11 -
Ivens Matozo, cerca-se do debate da novela de cunho autobiográfico
que representa as influências que a Revolução Iraniana causou na
vida de Marjane. Sob as bases da construção identitária da
protagonista, a partir de sua relação com o outro e com o meio, os
autores discutem a influência de um estado autoritário nas
experiências de uma jovem expatriada, observando como um
governo “violento e repressivo atua na construção da identidade da
personagem”, e, portanto, como essas experiências são subjetivadas
por Marjane para reafirmar sua identidade.
Percorrendo as instâncias da música, o artigo “Hip hop e
educação: sobre resistência e ruptura na arte das periferias urbanas”,
de Raphael de Morais Trajano, analisa duas sequências discursivas de
letras musicais, a partir dos pressupostos da Análise do Discurso de
vertente Francesa, captadas pelo recorte do rap Causa e efeito. O
foco é para “a reprodução dos discursos produzidos na escola entre
professor e aluno, considerado uma espécie de ‘Aparelho Ideológico
do Estado’ (ALTHUSSER, 1980)”. Trajano privilegia, portanto, “uma
abordagem sobre desigualdade, segregação, ensino, resistência e
ruptura com sentidos dominantes, em uma linha de pensamento que
aceita a falha, de modo que permaneçam brechas, aberturas pelas
quais outras reflexões possam penetrar”.
- 12 -
Na mesma trajetória artística, José Antônio Gerzson Linck, em
seu artigo “Resistência ao genocídio nas composições do Racionais
MC´S: criminologia e violência urbana” analisa os álbuns de estreia do
grupo sob a perspectiva da segregação e da violência urbana,
inseridas em seus discursos e relacionando-os a algumas referências
contemporâneas e transdisciplinares. De acordo com Linck, tal
processo encontra em seus resultados algumas dissonâncias, “mas,
sobretudo, compatibilidades com os estudos críticos sobre
segregação urbana”.
Mergulhado na leitura crítica de algumas obras de Joaquim
Manuel de Macedo e Machado de Assis, relacionadas com a guerra
contra o Paraguai, Luciano Melo de Paula, em seu artigo intitulado:
“Representações literárias da Guerra do Paraguai em Joaquim
Manuel de Macedo e Machado de Assis”, faz emergir em sua análise
questionamentos sobre o esforço de guerra brasileiro desses dois
autores, suscitando que “foi contraditório, demarcado por posições
que vão desde o alinhamento total com as posições do Estado às
críticas diretas sobre a guerra, sua direção e suas consequências”.
Portanto, na tentativa de compreender o “significado do campo de
batalha para os dois autores”, o artigo propõe esclarecer como esse
espaço será compreendido: se como um “campo de honra, um dever
- 13 -
patriótico ou a possibilidade de fuga das coerções da vida em
sociedade”.
Enveredando pelos espaços da memória, Daiane Raquel
Steiernagel e Samantha Borges, em seu artigo “A ditadura militar e a
importância de expressões culturais como arma “anti-
esquecimento”, lançam seus olhares para o período da ditadura
militar no Brasil e a importância do processo de rememoração pelas
novas gerações. Importa para as autoras a necessidade de ações que
apresentem os relatos com a mesma veracidade das experiências
vividas neste período. Portanto, elas defendem que a “construção
política e os princípios morais, éticos e de identidades de nosso país,
sendo o terreno que compreende a literatura, as artes em geral e a
psicologia, são partes ativas desse processo”. Nesse sentido, o corpus
utilizado por Steiernagel e Borges para representar esses espaços
ditatoriais são algumas músicas que se eternizaram como
hinos/símbolos da resistência.
Ana Cláudia de Oliveira da Silva, em seu artigo “Sob (re) o
- 14 -
juntamente com a protagonista da obra, a importância das
reminiscências desse passado sombrio e doloroso para o
restabelecimento interior da personagem. Nesse sentido, Silva, parte
“do conceito de rastro ou vestígio como um termo de mediação
entre a destruição e a construção, a negatividade e a afirmação, e
também como ‘chave de conhecimento’ sobre o passado, o presente
e a imagem ambígua do futuro”.
Transitando pelos meandros da violência inserida em algumas
produções literárias e jornalísticas, o artigo intitulado “Os discursos
do poder em Mineirinho de Clarice Lispector”, produzido por Adriana
Yokoyama e Rosani Úrsula Ketzer Umbach, traz à tona as relações de
poder mediadas pela linguagem discursiva. Tendo como corpus
principal a crônica Mineirinho, de Clarice Lispector, que narra a
história verídica de um bandido assassinado com treze tiros pela
polícia carioca, em 1962, o artigo traz o embate do discurso literário
aliado ao discurso da instituição policial, reproduzido pela imprensa
da época, demonstrando as diferentes formas da representar o
poder, além de discutir sobre “os questionamentos da escritora em
relação às formas punitivas legitimadas pelo Estado e a reprodução
dessa violência” em sua escrita política e resistente.
“O devir horribilis e a violência na modernidade kafkiana: ecos
de uma literatura de terror” é a proposta de Cassio Larotonda Maia
- 15 -
que, imerso em uma literatura de terror/horror, compara os
“preceitos universais do medo e do outro” as “construções presentes
em A metamorfose, de Franz Kafka. Seu intuito é discutir e
compreender a construção dos loci e da violência presentes na
narrativa kafkiana”, utilizando-se de teóricos cujas especialidades
estejam voltadas para pesquisas sobre gótico/alteridade/medo. Esse
mergulho é um convite, não ao resumo da obra, mas a “compreender
como ela está sujeita a universalidade do medo que propulsiona a
Literatura Gótica”.
Sob o título “Hip-Hop e Direitos Civis: o reflexo da cultura de
resistência estadunidense na representatividade do negro brasileiro”,
o estudo de Leonardo José de Araújo Ribeiro e Thaís Budoia de
Almeida Prado, tece toda sua discussão calcada no gênero musical
hip hop, de origem estadunidense. Por sua influência com a música
negra, “atrelada à sua cultura inicial”, o seu envolvimento com os
direitos civis, e os movimentos de luta negra, o gênero musical
ganhou proporções consideráveis, possibilitando à população negra a
lutar, contestar e reivindicar seus direitos na sociedade. Nesse
sentido, importa para estes autores “destacar a importância da
origem africana dos produtores e consumidores dessa cultura, bem
como a importância das mulheres para esse movimento e para a
representatividade da mulher negra brasileira”.
- 16 -
Atrelando-se aos movimentos de luta e resistência, “A escrita
tomou as ruas!: a tática Black bloc como crítica da linguagem” é o
resultado das reflexões, de José Antonio Rego Magalhães, sobre uma
“violência insurgente” que surgiu com as manifestações de 2013: a
tática black bloc. Traçando um paralelo entre a atuação de sua
“forma simbólica mais polêmica” no recurso dessa tática,
compreendida por uma “intervenção material”, que tem por
finalidade desestabilizar um sistema também material, o autor nos
faz pensar, defendendo sua ideologia, sobre uma intervenção não
como um processo de desestabilização, mas de reforço. Nessa
direção, sua discussão volta-se para a “questão das estratégias de
ruptura, isto é, de como os aspectos complexos e contingentes, a
cada caso singular, podem determinar a efetividade ou a frustração
de uma ação de ruptura, de modo que esta não pode ser julgada fora
de contexto”.
Os espaços percorridos por Elielson Figueiredo, em “Êxodos:
O corpo, a memória e a tarefa persistente”, pontuam alguns dos
contornos mais evidentes e inquietantes na literatura brasileira
contemporânea. Envolvido nessa problemática, o autor evidencia
temas recorrentes na literatura brasileira como: o conceito de pós-
utópico, afastando a possibilidade de que “a motivação, sobretudo
da narrativa brasileira, a partir dos anos 2000, seja, simplesmente, a
- 17 -
afirmação da fatalidade; a “crise de representação” na literatura e
questões diretamente relacionadas “à precariedade dos meios de
dizer-se, decorrente de sua direta ligação entre o Eu e o Outro que o
olha, entre a memória e o presente, entre os corpos e suas políticas
de espaço e identificação”, desfazendo, dessa forma, a ideia corrente
de que a produção literária “tenha se desinteressado pela
possibilidade de interferir na (des)ordem sociopolítica”.
Vinícius Lima Figueiredo, no artigo “A figuração da Ditadura
Militar em três obras literárias posteriores à época: uma reflexão”,
analisa três romances de escritores brasileiros: K. Relato de uma
busca, Não falei; e Romance sem palavras. O objetivo é observar
como é representada a Ditadura Militar brasileira em suas páginas, já
que “as três obras lidam e tematizam personagens que foram
ativamente influenciados pelo período ditatorial, pois todos (direta
ou indiretamente) se relacionaram com movimentos de resistência
ao regime”. A análise ainda explora como esse momento brasileiro é
representado de maneira diferente em cada um dos romances e,
consequentemente, reflete "sobre os possíveis porquês para essas
diferenças.
E, concluindo os estudos publicados nessa coletânea, a
pesquisa “Marcas de violência na literatura clariceana”, de Adriane
Cherpisnki, aborda a representação da violência em dois contos de
- 18 -
Clarice Lispector: “A solução” e “A língua do p”, em análise que
contempla o “contexto histórico e social de emancipação da mulher,
quando esta ainda luta pela conquista dos seus direitos perante à
sociedade brasileira. A análise permite entender marcas distintas de
violência relacionadas ao corpo, a partir do intimismo das
personagens protagonistas, as quais demonstram resistência, mesmo
diante do cerceamento convencionalizado”.
Assim, finalizado mais um círculo de estudos sobre o tema
violência, esperamos ter contribuído com o debate acadêmico e com
a divulgação das pesquisas científicas. Agradecemos, em especial, a
cada um dos pesquisadores que disponibilizaram seus textos para a
organização dessa coletânea. E esperamos que vocês, leitores,
encontrem, nos artigos aqui reunidos, fontes para novas perspectivas
analíticas sobre as relações entre arte, violência e resistência. Boa
leitura!
- 19 -
- 20 -
Violencia y resistencia en Os Sertões de Euclides Da Cunha
Breve introducción
La inclusión histórica del Brasil dentro de la modernidad hacia
finales del siglo XIX no fue un proceso tranquilo y consensuado como
describen los manuales de historia, sino que se trató de una lucha en
la que estaban en juego objetivos diferentes para el futuro de una
Nación (Levine, 1995) El episodio de la guerra de Canudos ocurrido
en el Sertón bahiano entre 1896 y 1897 es un ejemplo clave para leer
la complejidad de estos procesos de conformación nacional, no sólo
como evento histórico, sino también como momento fundacional del
relato de un “nosotros” nacional. Este particular enfrentamiento en
Canudos se llevó a cabo en dos planos determinantes para la
conformación de los estados modernos latinoamericanos: por un
lado fue un enfrentamiento bélico que tuvo como campo de batalla
un pequeño asentamiento en el nordeste brasileño; por otro lado, se
trató también de una “guerra” discursiva o choque cultural entre
modos de pensamiento y de comprensión de la realidad. Se trata de
1
(UNLP-FONCyT) [email protected]
- 21 -
dos conflictos latentes e interrelacionados en la fundación de la
modernidad: una feroz represión armada por parte del Estado al
levantamiento popular (llevada a cabo en cuatro campañas
militares2); y asimismo un enfrentamiento en el plano discursivo
entre escrituras entendidas como formas de la tecnología (Foucault,
1994, V4, p.785) o “tecnologías de poder” (LACLAU, 2005, p37).
En este contexto, el presente artículo tiene como propósito
volver la mirada sobre un texto fundacional de la discursividad
brasileña como lo es Os Sertões de Euclides Da Cunha con el objetivo
de poner en escena dos modos de la violencia presentes en la
textualidad de la obra: por un lado, el intento de imposición letrada y
la búsqueda de constitución de un orden ciudadano en tanto
dispositivo de control de la alteridad3 y, por otro lado, la irrupción de
2
La primera reacción oficial del gobierno de Bahía se dio en Octubre de 1896 hasta
el 21 de Noviembre cuando se ven obligados a retirarse frente a la avanzada de los
sertanejos. En enero de 1897 se lanza la segunda campaña comandada por
Febrônio de Brito que fue atacada y repelida el 18 de Enero con grandes bajas para
el ejército republicano. El 2 de Marzo de 1897 se lanza la tercera campaña en la
que muere el Coronel Moreira César. Finalmente en Abril de 1897, la última
campaña militar comandada por Artur Oscar de Andrade Guimarães consigue
arrasar con Canudos el 5 de Octubre de 1897.
3
Entendemos el problema de la alteridad dentro del marco discursivo que señala
Michel Foucault cuando lee los procesos y límites de la conformación social
producto de una “guerra de razas”: “No se dirá más: “debemos defendernos contra
la sociedad”, sino que se enunciará el hecho de que “debemos defender la
sociedad contra todos los peligros biológicos de aquella outra raza, de aquella sub-
raza, de aquella contra-raza que, a pesar nuestro, estamos constituyendo”. (2001,
p. 57)
Para pensar el problema de la alteridad son importantes los aportes de Alejandra
Mailhe (2010) quien analiza los diferentes registros-construcción de la otredad
- 22 -
una violencia propia de la agencia de los jagunços que abre
intersticios y grietas en dicha discursividad. En el texto de Euclides Da
Cunha se pueden leer dos procesos simultáneos que involucran a los
sujetos del conflicto bélico por medio de la configuración de una
escritura. En primer lugar, la misión premeditada de Euclides da
Cunha, en tanto sujeto “letrado”, de presentar la situación de la
campaña con la mayor exactitud y fidelidad posible cuya textualidad
lee Sevcenko (1999) en términos realistas4. En este espacio
escriturario se trazan, por ejemplo, las definiciones de “ciudadanía” y
las concepciones de una alteridad que necesita ser integrada como
“pueblo” de la república. En segundo lugar, la riqueza del texto nos
permite leer por fuera o más allá de estos límites trazados en cuanto
se registran apariciones disruptivas propias de agencias de resistencia
- 23 -
que no se prestan a ser contados por la misma escritura. Los intentos
de la textualidad euclidiana por representar, estratificar y disciplinar
la realidad sertaneja se encuentran, una y otra vez, atacados por la
violencia (reprobada y alarmante en la mirada euclidiana) de los
jagunços.
5
Liliana Weinberg rastrea los alcances del género “ensayo de interpretación” en la
tradición latinoamericana: estos ensayos lograron dar nombre y hacer inteligibles
ciertos procesos y dinámicas del acontecer social y cultural. La autora cita a
Castoriadis: “el ensayo es sin duda un esfuerzo por nombrar y delinear lo pensable,
lo imaginable y lo nombrable en una sociedad a la vez que reinterpretarlo”. (2008,
p. 250)
- 24 -
Canudos, esto es, aparece una condena a las multitudes que sigue la
tradición del ensayo científico positivista de fines del siglo XIX y
define los comportamientos de la alteridad en términos de
patologías. Sin embargo se observa, también, una perplejidad
descriptiva del Sertón y de sus habitantes, que retoma postulados del
romanticismo literario en términos de fascinación y exotismo. Como
si fuera un movimiento pendular, la mirada de Da Cunha se va
modulando entre estos dos extremos. Os Sertões da cuenta de los
movimientos entre lo dominante, lo emergente y lo residual6 que
constituye una forma clara y efectiva para la época (recordemos el
éxito de ventas de la obra)7 para dar una explicación, una
interpretación del conflicto bélico transcurridos apenas cuatro años
del acontecimiento.
Ahora bien, si según Liliana Weinberg (2008) el ensayo de
interpretación, como búsqueda por explicar la realidad, se acerca
6
Tomamos estas concepciones de Raymond Williams (2009, p.171) para quien:
“ningún modo de producción y por lo tanto ningún orden social dominante ni
ninguna cultura dominante jamás en realidad incluye o agota toda la práctica
humana, toda la energía humana y toda la intención humana”.
7
La obra Os Sertões de Euclides Da Cunha, publicada en 1902 se coinvirtió
rápidamente en un gran éxito de ventas en la capital de la modernidad del Brasil,
Rio de Janeiro. (Ventura, 2002) Da Cunha elaboró esta obra, entre los años 1896 y
1902, usando como pretextos sus primeras publicaciones como corresponsal de
guerra en los periódicos O Estado de Sao Paulo y en O Jornal de Rio con el título de
Diário de uma expedição (reportajes, cartas y artículos originalmente publicados en
artículos no jornal O Estado de Sao Paulo durante la cobertura periodística del
autor en la guerra de Canudos; posteriormente compilados por Nogueira Galvão,
2000).
- 25 -
siempre a los límites entre lo pensable, lo imaginable y lo nombrable
por una sociedad, entonces nuestra pregunta de lectura sería:
¿dónde se materializan esos límites en la escritura de Da Cunha? O
pensándolo desde otro lado ¿son relevantes las escenas que no se
pueden ubicar clasificatoriamente en las tradiciones discursivas antes
mencionadas? ¿No habría acaso algo más en la irrupción de la
escritura que hace, en este caso, al texto Os Sertões? ¿Estas
irrupciones pueden pensarse como agencias y resistencias a la
escritura por parte de determinados sujetos?
Para salir un poco de ese movimiento pendular, nos parece y
este es, justamente, el abordaje que queremos trabajar aquí, que en
simultáneo a estos regímenes de tensiones discursivas que operan
estableciendo un “orden territorial” en la obra, hay también escenas
e imágenes que podemos leer como resistencias y que se manifiestan
más allá de ese límite discursivo propio de la escritura de Euclides.
Siguiendo a Jaques Rancière (1996, p. 61), se trata, entonces, de
“zonas del malentendido” donde “[...] el malentendido no estriba en
algún equívoco u oscuridad del lenguaje, en algún enigma que ha de
ser interpretado. [...] El malentendido no es hermenéutico en el
sentido habitual. Se da en torno a un asunto trivial”.
- 26 -
Aclaramos que de ninguna manera nos proponemos discutir
en este breve trabajo cuál es la clasificación genérica del texto8 si no
que, por el contrario, intentaremos visualizar de qué maneras las
herramientas de la crítica literaria nos permiten calar un poco en
metodologías que nos ayudan a visibilizar zonas conflictivas del texto.
En palabras de Nogueira Galvão en su artículo “Uma ausencia” (1983,
p. 51): “Por isso, para apanhar esta reflexão ausente, é preciso forçar
um pouco a incoêrencia do texto, tendo em mente ao mesmo tempo
as grandes linhas-mestras do livro e as parcas menções menos ou
mais diretas”.
8
“Literatura científica sobre tema regional brasileño” la llama Afranio Peixoto
(1945, p. 24); género intermedio “entre periodismo científico y poesía
antropológica”, sugiere Glauber Rocha (1973, p. 9); “típico ejemplo de fusión, muy
brasileña, de ciencia maldigerida, énfasis oratorio e instituciones fulgurantes”
opina Antonio Cándido (1991, p. 230).
9
Por mencionar apenas algunos ejemplos, la obra es considerada como un
“documento socio-histórico” (Freyre, 1995) en el cual se puede definir una
fidelidad histórica con determinados aspectos de la realidad (tradición de la
historiografía militar por ejemplo). A su vez, también, el texto es definido como
“um grande épico nacional” (Zweig, en Levine 1995). La obra de Euclides Da Cunha
ocupa un lugar paradigmático sobre el que se desarrollaron caminos analíticos
caracterizados como “Experiencia épica” (Adoue, 2011), “Representaciones
distorsionadas” (Laclau, 2005), “registros-construcción de la otredad” (Mailhe,
- 27 -
sobre todo para nuestra lectura, en su capacidad para enunciar la
noción de incomprensión; y, con esto, visualizar los límites del
conocimiento sobre el enemigo, sobre la identidad cultural de la
comunidad que se está exterminando físicamente.
Nogueira Galvão (1972) expone el proceso de “reviravolta de
opinião” que sufre la escritura de Da Cunha desde sus primeros
artículos periodísticos titulados “A nossa Vendeia”10 hasta la
publicación, en 1902, de la primera edición del libro. En este, postula,
en su visión del “buen autóctono”, que el hombre del Sertón es
incapaz de actuar políticamente (conscientemente) en contra de los
ideales republicanos y mucho menos a favor de la Monarquía. En la
obra publicada, son la incapacidad y el atavismo los que imposibilitan
al sertanejo una toma conciencia de la “evolución natural de las
razas”, del “progreso que implica la civilización”. Evidentemente, no
se trata aquí de una reivindicación del enemigo, sino más bien de la
puesta en escena, en términos de inferioridad de un otro plausible de
- 28 -
ser, en primera instancia, convertido al republicanismo, de ser
alineado en el camino del progreso. El sertanejo, en la textualidad
euclidiana, se construye como un prototipo posible de ser
incorporado para formar parte de la sociedad, es un otro asimilable.
La justificación del gobierno republicano es, para Da Cunha
(2012, p. 262), totalmente errónea: “atribuir a una conjuración
política cualquier crisis sertaneja expresaba un desconocimiento
palmario de las condiciones naturales de nuestra raza”. Es un acto de
injusticia sobre la propia identidad brasileña y la negación del
sertanejo como parte de la nacionalidad. Euclides, frente al habitante
autóctono, propone un juego identitario complejo con el que cruza la
línea entre sertanejos y soldados republicanos. Miriam Gárate (2002)
realiza un interesante planteo al decir que es a partir de esta
concepción donde se igualan los actores del conflicto. El problema de
la alteridad está entonces íntimamente ligado a un procedimiento de
inversión de papeles figurado en el texto en momentos que
desarticulan las construcciones dominantes de la República.11
En esta línea, es en la descripción del primer choque de la
tercera expedición donde Da Cunha rompe con los pares
dicotómicos. En consecuencia, Gárate lee una ruptura y
11
“Había allí una inversión de papeles. Los hombres armados con los recursos
bélicos de la industria moderna eran los materialmente fuerte y brutales, arrojando
por la boca de los cañones toneladas de acero sobre los rebeldes que les
anteponían la esgrima magistral de inextricables ardides”. (Da Cunha, 2012, p. 307)
- 29 -
desarticulación del esquema positivista binario de “civilización y
barbarie. Da Cunha define al ejército republicano como un:
12
“Porque en un ejército que persigue hay el mismo automatismo impulsivo de los
ejércitos que huyen. El pánico y la bravura enajenadas, el extremo pavor y la
audacia extrema se confunden en el mismo aspecto. [...]” (Da Cunha, 2012, p 312)
13
Luego del fracaso de la tercera expedición y de describir las reacciones de las
capitales del país en la construcción de la amenaza que Canudos ya representaba
para los ideales y las instituciones republicanas, Da Cunha reflexiona:
“Interrumpamos, sin embargo, esta tarea de hurgar entre ruinas. Más de una vez
en el transcurso de los acontecimientos que nos propusimos narrar, nos hemos
hurtado a un análisis detenido de acontecimientos que escapan a la escala superior
de la historia. Las líneas anteriores tienen un único objetivo: fijar, en rápida mirada,
- 30 -
En palabras de Nogueira Galvão lo que aparece aquí son trazos que
“vão dando o procênio a essa sombria personagem coletiva, os
pobres, no processo de entrar na Histõria e se transformar numa
nova classe” (1983, p. 53) Evidentemente, la asimilación de estas
multitudes formó parte de la configuración del Estado brasileño
cuando pensamos que el término “favela” -con el que se designan los
precarios asentamientos habitacionales periféricos de las metrópolis-
, proviene del morro cercano a Canudos desde el cual combatían los
soldados republicanos. Florencia Garramuño (2012, p. 20) concluye al
respecto: “Misérrimos ellos mismos, esos soldados – los mismos que
combatieron contra los “fanáticos religiosos”- son los ancestros de
los miserables de hoy”.
En simultáneo con esta inversión de la antítesis que no se
limita a la mera reproducción de la matriz dicotómica de
pensamientos (civilización-barbarie) podemos leer, en el mismo
texto, una superación del pensamiento binario en términos de límite
borroso, apenas esbozado:
similitudes que corren parejas con el mismo salvajismo. La calle Ouvidor valía por
un desvío de las catingas. La correría del Sertón entraba arrebatadoramente
civilización adentro”. (262)
- 31 -
triunfal de los días deslumbrantes y calmos, y el
suelo cuajado de vegetación fantástica; saciado,
irrigado de ríos que corren por los cuatro puntos
cardinales. Pero esta placidez opulenta, oculta,
paradójicamente, gérmenes de cataclismos que, al
irrumpir, siempre con un ritmo inquebrantable en
el estío, rodeados de los mismos prenuncios
infalibles, caen allí con la fatalidad inexorable de
una ley.
Apenas si podríamos trazarlos. Esbocémoslos (Da
Cunha, 2012, p75)
- 32 -
La distancia que se abre con la aparición de los jagunços en
escena, es tan grande al pensamiento de Euclides que se plantea,
entonces, una limitación en la capacidad de conocer al enemigo
ajeno. Si para los jagunços es imposible comprender el mundo
republicano, éste tampoco es capaz de entenderlos a ellos:
14
Utilizamos aquí el concepto de Michel Foucault (2008, p. 13): “Los códigos
fundamentales de una cultura – los que rigen su lenguaje, sus esquemas
perceptivos, sus cambios, sus técnicas, sus valores, la jerarquía de sus prácticas –
fijan de antemano para cada hombre los órdenes empíricos con los cuales tendrá
algo que ver y dentro de los que se reconocerá”.
- 33 -
periféricos o populares. Se trata de un concepto de “ciudadanía”
imposible de aplicar a ellos.
- 34 -
agrupamiento. Pero no hay cómo distinguirles en
este instante, en la actitud y el gesto, el desplante
provocador de los valentones contumaces (Da
Cunha, 2012, p. 157)
- 35 -
invadido de temores, todas las veces que éste, sin
aparecer, se revela, impalpable, dentro de las
emboscadas (Da Cunha, 2012, p. 199)
15
Rescatamos particularmente el papel central que otorga Rama a las camadas
letradas encargadas de la administración colonial cuyos funciones culturales y
simbólicas en las estructuras de poder son determinantes para la configuración del
espacio urbano y la localización de los sujetos.
- 36 -
contable, determinado y, geopolíticamente definible. La resistencia
de los jagunços impone en la escritura de Euclides la configuración de
un espacio disforme que tuerce las líneas rectas de la cartografía con
la cual el ingeniero Euclides busca trazar los contornos urbanos.
Estos intentos por aprehender las figuras del sertón definirán
también un rasgo excepcional en los jagunços: la invisibilidad. El
enemigo se vuelve invisible y esta invisibilidad causa desorden,
rompe el orden del progreso, desarma las filas de batalla, genera
caos y confusión en la razón occidental.
- 37 -
El enemigo se vuelve incontable en los términos en que
Rancière (2011, p. 61) lo formula: “Es así que el malentendido, en el
estricto sentido del término, es un mal cálculo, una disputa en torno
de un cálculo. [...] El cálculo de los cuerpos que presenta el texto
literario compromete el estatuto del texto mismo”. El estatuto del
texto se agrieta y ya no es tan interpretativo como leíamos en un
comienzo, contar (en las dos acepciones del término) la realidad de
Canudos es algo que el propio Da Cunha no consigue terminar de
aprehender:
Conclusiones
- 38 -
Canudos, como dice el periodista miope
en La Guerra del Fin del Mundo de Mario Vargas Llosa:
“Más que de locos es una historia de malentendidos”.
- 39 -
Si bien esta potencialidad atribuida a esa entidad
escondida es difícil de demostrar, tal vez valga
tomar en cuenta este tercer nombre de América
latina como límite de lo racionalmente
cognoscible y codificable. No como una alternativa
cuando lo racional fracasa, sino como referencia
utópica de los movimientos sociales que producen
efectos no previstos por las estructuras. Más que
en el orden de la religión o de lo anticientífico, se
halla en el registro de lo poético y lo político. Nada
nos garantiza que lo maravilloso dé claves que no
hallamos en lo real, ni que de su transfondo
imaginado surjan eficacias, resistencias o mundos
alternativos. Lo silenciado o lo diferente, que se
manifiesta por vías oblicuas, desconcertantes, no
importa tanto como recurso mágico para
modificar el orden imperante sino como voz
excluida que puede revelar algo sobre el orden
excluyente (Canclini, 2004, p.143)
- 40 -
Bibliografía
- 41 -
GALVÃO, Walnice Nogueira. “Uma ausencia” en Os pobres na
literatura brasileira, Roberto Schwarz (Org.), Ed. Brasilense, Sao
Paulo, 1983.
- 42 -
NOGUEIRA GALVÃO, Walnice. “Uma ausencia” en Os pobres na
literatura brasileira, Roberto Schwarz (Org.), Ed. Brasilense, Sao
Paulo, 1983.
VARGAS LLOSA, Mario. La guerra del fin del mundo, Buenos Aires,
Círculo de Lectores S.A., 1983.
- 43 -
Literatura negro-brasileira e resistência na produção
ensaística e ficcional de Cuti
Introdução
Como os negros foram tradicionalmente vistos como social e
intelectualmente inferiores, por muito tempo foi difícil o
reconhecimento de escritores afrodescendentes, e ainda mais, da
existência de uma literatura particular para esse grupo, e esta
situação se estende e gera consequências até hoje. Há discursos que
em sua defesa da universalidade e da estética acabam sendo
excludentes ao procurarem negar a importância de elementos raciais
e sociais na literatura e na crítica literária. A restrição das
caracterizações aos territórios geográficos e/ou nacionais não parece
ser suficiente, já que conforme Stuart Hall, “as identidades nacionais
não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão
livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de
lealdades e de diferenças sobrepostas” (2005, p. 65).
16
Mestrando em Letras - Estudos Literários, UFPR.
- 44 -
Diante das tentativas de exclusão, a afirmação de uma
literatura particularmente negra se põe como uma forma de
resistência ao discurso dominante. Dentro do corpus de escritores
negros que falam das vivências dos afro-brasileiros está Cuti –
pseudônimo de Luiz Silva –, um dos nomes mais reconhecidos a
respeito da questão, tanto no campo da reflexão teórica quanto na
criação literária. O autor sempre coloca a vida do negro como
cercada de luta, opressão, racismo e discriminação, e para isso a
literatura é um forte instrumento de combate, pois rompe com as
tentativas tradicionalmente instituídas de silenciar o segmento
afrodescendente da população brasileira. Em seus ensaios o autor
atenta para as tentativas de controle e afirma que não existe
legitimação que esteja livre de ideologia, mesmo que alguns assim
queiram fazer crer. Cuti tenta estabelecer o conceito de “literatura
negro-brasileira”, diferenciando-o de outros termos bastante
utilizados, como “literatura negra” ou “literatura afro-brasileira”.
Neste trabalho, não é aprofundado o debate sobre toda a questão
terminológica, pois a ênfase recai sobre o conceito de Cuti, buscando
analisar de que forma o intelectual estabelece a literatura negro-
brasileira como um instrumento de combate e resistência, que se
opõe à tradição e valoriza uma vertente da literatura brasileira que
por muito tempo foi abafada.
- 45 -
Em sua ficção, o racismo é o tema principal, sem que isso
signifique uma espécie de camisa de força temática, e é constante a
presença da violência, que se manifesta de diversas formas. Se em
alguns casos ela surge como uma forma de denúncia na qual o negro
está sob opressão e é vítima do racismo, quase sem conseguir reagir,
em outros a violência é trazida como uma forma de reação ou
resistência à violência do branco, ou seja, uma força está se opondo e
resistindo a outra. Foram selecionados para análise os contos
“Conluio das perdas”, “Sob a alvura das pálpebras” e “Ponto riscado
no espelho”, que não esgotam a questão da violência e resistência na
ficção de Cuti, mas conseguem demonstrar as situações evocadas: o
negro oprimido e o negro que reage ou resiste. Buscamos, enfim,
demonstrar como nessa produção combativa sobre a vida do negro
brasileiro está constituído um forte espaço de resistência.
- 46 -
negros tenham alcançado reconhecimento, como Luiz Gama,
Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto, são autores que
embora tenham abordado de alguma forma a questão racial, esta
não foi a tônica de suas obras. Além disso, a maioria da produção de
escritores negros é financiada pelos próprios autores ou publicada
através de pequenas editoras, o que mostra um grande bloqueio
editorial. Essa dificuldade na circulação das obras e reconhecimento
pode ser explicada pelo fato de o Brasil ser um país em que alguns
historiadores e críticos expressaram perspectivas ideológicas de
acordo com elites dominantes, e onde a tradição patriarcal e
escravista foi responsável “pelo estabelecimento de dificuldades para
mulheres, negros e pobres receberem condições concretas para a
produção literária, incluindo acesso à escolarização, respeitabilidade
e reconhecimento dentro de políticas editoriais” (GINZBURG, 2012, p.
217).
Dessa forma, quando começam a surgir estudos, análises e
obras literárias que abordam de forma compromissada a questão
racial, estamos diante de uma forma de reação ao silenciamento ou à
falta de reconhecimento que se estabeleceu na literatura brasileira, e
por extensão, em todo o Brasil. O país que é constituído pela maior
população negra fora da África, último a ter abolido a escravidão e
que mesmo depois de tê-lo feito não criou nenhum mecanismo para
- 47 -
a real inserção dos ex-escravizados na sociedade produziu uma série
de artefatos para a sua inferiorização em praticamente todas as
esferas. Isso vai desde o imaginário popular, tendo reflexos na arte e
na literatura e alcançando ares científicos com as teorias raciais, que
segundo Lilia Schwarcz (2001) passaram a ser amplamente adotadas
no Brasil desde os anos 1870, corroborando com uma visão
estereotipada sobre o negro, que de acordo com Zilá Bernd (1988),
vem de uma tradição consolidada por Montesquieu e Hegel. Um
exemplo da tentativa de comprovação científica da inferioridade do
negro é a obra de Nina Rodrigues (1976), médico-legal que apesar de
citar os incontáveis serviços que o negro prestou à civilização
brasileira e de tratar a escravidão como um revoltante abuso, diz que
esta sempre constituirá um dos fatores da inferioridade brasileira
como povo. No mesmo trabalho, que Rodrigues afirma ter escrito
como uma forma de atender ao clamor de Sílvio Romero – que
considerava que o negro era mais do que uma máquina econômica,
pois apesar de sua ignorância, ele era um objeto de ciência –, o autor
busca traçar uma história dos africanos nos territórios brasileiros, e
há passagens como “De fato, não é a realidade da inferioridade social
do negro que está em discussão. Ninguém se lembrou ainda de
contestá-la. E tanto importaria contestar a própria evidência”
(RODRIGUES, 1976, p. 262). O médico-legal ainda cita exemplos de
- 48 -
outros autores com ideias semelhantes às suas, demonstrando que
afirmações desse gênero não constituíam um ato isolado, mas eram
convicções de diversos intelectuais do período.
No campo da crítica literária, alguns estudiosos defendem que
ela deve se prender ao estético e não deve tratar de questões sociais.
Um exemplo deste caso é o norte-americano Harold Bloom (1994),
que afirma que toda estética e padrões intelectuais vêm sendo
abandonados em nome da redenção da injustiça histórica. O crítico
chega a afirmar que existe uma Escola do Ressentimento ao referir-se
àqueles que trazem preocupações sociais e culturais para a crítica
literária. Ele defende que a crítica é um fenômeno elitista e que foi
um erro acreditar que ela pudesse servir para melhorias sociais, e
que o ambiente politizado prejudica a defesa da estética.
No Brasil, um exemplo de crítico que rejeita
comprometimento social em nome da universalidade e da estética é
Afrânio Coutinho. Em A literatura no Brasil, mais especificamente no
prefácio e na introdução, o crítico elucida quais serão os critérios que
definirão sua historiografia. O princípio diretor da obra é o estético, e
em suma, é uma crítica que pretende focar nos elementos internos
do texto literário e deixar o máximo possível os aspectos históricos e
sociais de fora (COUTINHO, 1968)
- 49 -
Coutinho afirma reagir contra o que chama de visão
sociológica da literatura e seus determinismos geográfico, racial e
sociológico, pregando a “primazia do conceito estético-literário,
graças ao estudo da própria obra literária, e não das circunstâncias
ambientais” (1968, p. XIII). Embora em certo momento o crítico diga
que é um erro também considerar que a literatura exista isolada no
espaço e sem contato com o ambiente social e histórico, há o reforço
de que o que é peculiar à natureza do fato literário é “sua origem na
imaginação criadora, sua finalidade em despertar o estético, sua
natureza específica formada por elementos que só nêle e para êle
existem, sua autonomia em face dos outros fatos da vida”
(COUTINHO, 1968, p. XXVIII)
Quando trata da periodização os termos demonstram bem
como considera as opiniões divergentes à sua: o crítico brasileiro
afirma aplicar em sua obra a periodização estilística, que além de
libertar a história da literatura da “tirania cronológica”, liberta-a da
“tirania sociológica” e da “tirania política”. Sua obra é tratada como
uma reação aos livros de historiografia e crítica que relacionam
história, realidade e sociedade com literatura, e sua posição é de que
embora não deva existir o desconhecimento das relações do
fenômeno literário, que afinal não existe no vácuo, deve se explicar e
compreender a literatura por dentro, a partir de suas leis e
- 50 -
elementos intrínsecos, levando em conta sua evolução interna e não
os fatores extraliterários, e assim, “não pertencem à literatura
problemas como êste das influências condicionantes do meio, raça e
momento” (COUTINHO, 1968, p. 44)
Outro estudioso que prega a primazia da estética e da
universalidade da literatura é Hênio Tavares. O seguinte trecho
elucida sua forma de pensamento:
- 52 -
independente do nome que lhes sejam atribuídos, além, é claro, dos
próprios textos literários que trazem a temática do racismo, da
ancestralidade, os elementos africanos e a vivência do negro no
Brasil como um todo.
Em relação à trajetória dos estudos sobre o negro na
literatura brasileira, chama atenção o fato de os primeiros trabalhos
neste sentido terem sido realizados por pesquisadores estrangeiros.
Roger Bastide (1973), em Estudos afro-brasileiros reúne textos
anteriormente publicados sobre “A poesia afro-brasileira”,
“Estereótipos de negros através da Literatura Brasileira” e “A
imprensa negra do estado de São Paulo”. Raymond Sayers (1958)
procura observar a presença do negro da literatura brasileira desde o
período colonial até Machado de Assis. Como complemento à obra
de Sayers, há a de Gregory Rabassa, na qual “o negro como
personagem de ficção após 1888 será o objeto principal” (1965, p.
99), com enfoque à literatura regionalista. E também existe o
trabalho de David Brookshaw (1983), dividido entre uma parte que
aborda a representação do negro através de estereótipos na obra de
escritores brancos, e outra sobre escritores negros, na qual ele
atribui a ausência de uma tradição literária negra no Brasil ao fato de
aqui não ter havido leis de segregação, que, segundo o autor, é o que
- 53 -
permitiu o desenvolvimento econômico e a união racial dos negros
dos Estados Unidos.
Um período marcante para a maior consistência da produção
literária afro-brasileira se dá em fins dos anos 1970, época próxima
do início do interesse mais sistematizado dos pesquisadores
brasileiros sobre o tema, e é quando as manifestações deixaram de
ser isoladas para ganhar um caráter coletivo, com o surgimento da
série Cadernos Negros, fundada em 1978 e que a partir de então
todo ano vem publicando alternadamente contos e poemas afro-
brasileiros, e do Grupo Quilombhoje, criado em 1980 e formado
inicialmente por Cuti (Luiz Silva), Oswaldo de Camargo, Abelardo
Rodrigues, Paulo Colina e Mário Jorge Lescano. É a partir desse
momento que mais escritores negros lançarão suas obras e se
ampliarão as discussões sobre o fazer literário negro.
E um autor que traz a afirmação do elemento racial e social na
arte é Cuti, um dos mais importantes nomes da produção literária e
da reflexão teórica sobre o negro na literatura brasileira. Cuti é o
pseudônimo de Luiz Silva, que nasceu em Ourinhos-SP em 1951 e
mora na capital do estado. Formado em Letras pela Universidade de
São Paulo, é mestre em Teoria da Literatura e doutor em Literatura
Brasileira pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Além
de seus livros individuais publicados, que variam entre a prosa, a
- 54 -
poesia, o teatro, o ensaio, a crítica literária, o autor é reconhecido
pela sua militância, sendo um dos criadores da série Cadernos Negros
e do grupo Quilombhoje, além de seu nome ser bastante frequente
em antologias de literatura negra e estudos sobre essa literatura e
sobre a vida do negro. Segundo Oliveira (2014, p. 178) “o autor se
enquadra no perfil do intelectual moderno, atuando na criação, na
crítica e no trabalho de reflexão política e cultural junto à
comunidade e este empenho marca sensivelmente a sua escrita”.
Em seus ensaios há diversos momentos em que a literatura
negro-brasileira (termo estabelecido pelo autor) é colocada como um
lugar de resistência e ferramenta para combater o racismo e as
tentativas de exclusão secularmente ocorridas. Desde seus ensaios
publicados em antologias coletivas na década de 1980, o intelectual
se preocupa com a tentativa de barrar a sentimentalidade expressa
em forma literária pelo negro. Cuti cita textos, autores e
comportamentos que considera racistas na literatura brasileira, e diz
que a produção literária de afrodescendentes tem sido mantida num
estado de subliteratura, mas afirma a força dos até então contáveis
autores que se preocupavam com o assunto: “Enfrentando
problemas básicos, este pequeno veio, por onde corre um pouco da
interioridade negro-brasileira, tem se constituído numa resistência ao
discurso dominante” (CUTI, 1985, p. 19). O autor explicitamente
- 55 -
coloca a produção negra como um espaço de resistência ao discurso
dominante, que nega a existência do racismo e acusa o negro de
praticar um discurso de rancor. Cuti acredita que todo julgamento de
valor está repleto de ideologia e atribui ao escritor negro o privilégio
de “poder mergulhar com a sua arte na medula do seu povo, redimi-
lo, consolá-lo e sobretudo lutar com ele” (1985, p. 23).
É frequente nos textos de Cuti a preocupação com as
barreiras e “camisas-de-força” que se impõem aos escritores
afrodescendentes, sempre com atenção à ideologia implícita nas
legitimações e deslegitimações. São interessantes as palavras sobre a
produção literária negra:
- 56 -
Cuti advoga pelo direito de o negro colocar no papel as
situações pelas quais passa em vida, sem ficar preso a um tema ou
um único viés de abordagem, mas sempre com atenção para a
necessidade de fugir da alienação. A universalidade não deve
significar não se assumir como negro, e para ele a literatura é dotada
de uma função social, ultrapassando o status de objeto estético que
teria como único objetivo despertar o prazer no leitor.
Vemos a constante presença da crítica às tentativas de
controle sobre a produção negra, e o próprio Cuti é um exemplo de
escritor que precisou ceder para ter um texto aceito. É o caso do livro
A consciência do impacto nas obras de Cruz e Sousa e de Lima
Barreto, surgido da tese de doutoramento do autor. Há o registro nas
páginas pré-textuais de que na tese a condição foi utilizar o termo
“afro-brasileira” para se referir a indivíduos negros e sua literatura, e
apenas no livro o autor realizou a alteração para “negro-brasileira”,
neologismo criado por ele e que é considerado mais poderoso do
ponto de vista semântico e ideológico. Ou seja, mesmo um dos mais
ferinos críticos à necessidade de se adaptar aos padrões dominantes
precisou deixar seu conceito de lado para que o trabalho acadêmico
pudesse ser concluído.
Cuti publica o livro Literatura negro-brasileira, o qual contesta
as produções que negam a presença do elemento social na arte e
- 57 -
supre um espaço que é deixado em branco nas historiografias de
literatura brasileira mais conhecidas e estudadas, buscando abranger
resumidamente vários séculos de produção literária, com uma
aparente preocupação com todos os tipos de leitores, inclusive os
iniciantes, pois o autor explica em notas ou mesmo durante o texto
diversos termos, para que a compreensão ocorra da melhor forma
possível.
Cuti (2010) pretende iluminar um dos aspectos da literatura
brasileira, um dos que foram abafados por muito tempo. Segundo
ele, para mostrar que o Brasil é de todos os brasileiros é preciso que
ocorra uma mudança de paradigmas, e há o confronto com as
posições que negam o elemento social e racial na arte:
- 58 -
uma espécie de combate, pois se coloca como uma reação aos
discursos que por algum motivo tentam gerar um silêncio.
Um dos projetos do livro é estabelecer o conceito de
literatura negro-brasileira. Para isso, define-se em que ele consiste,
quais são suas implicações ideológicas e em que ele difere de outros
conceitos bastante utilizados, como “literatura negra” e “literatura
afro-brasileira”. Esta discussão tem grande importância, pois o
próprio Cuti diz que “a denominação de um recorte da literatura traz
em si propósitos diversos” (2010, p. 33), pois quem seleciona
estabelece critérios para essa tarefa, e deve explicar porque fez
determinado destaque.
Cuti busca explicar sua opção pelo termo “literatura negro-
brasileira”. Para ele, chamar de afro essa produção dá um vínculo
com a origem continental dos autores, deixando-a à margem da
literatura brasileira, como se fosse apenas um apêndice da literatura
africana. Ainda, a literatura africana não combate ao racismo
brasileiro e nem se assume como negra, além de a própria
diversidade de um continente com 54 países ser negada. Segundo
Cuti, “um autor afro-brasileiro ou afrodescendente não é
necessariamente um negro-brasileiro” (2010, p. 38). Como vemos, o
fator da cor da pele é fundamental para o que Cuti define como
literatura negro-brasileira, diferente, por exemplo, do conceito de
- 59 -
literatura negra proposto por Zilá Bernd (1987), que sugere que se
prenda apenas à evidência textual. Mas, obviamente, a cor da pele
não é o suficiente, pois além disso, deve haver o dado da escrita. Na
escrita negro-brasileira:
- 60 -
sobre o idioma faz lembrar as palavras de Frantz Fanon (2008, p. 34):
“Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual nasceu um
complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua
originalidade cultural – toma posição diante da linguagem da nação
civilizadora, isto é, da cultura metropolitana”. É importante entender
que Fanon escreve a partir da reflexão sobre o povo antilhano,
colonizado pela França, e estende sua reflexão aos demais povos
colonizados, mas a partir de suas ideias é possível pensar o
posicionamento do negro brasileiro em relação à linguagem.
Como Cuti explicita que quer falar da literatura produzida por
indivíduos negros que têm suas experiências no Brasil, o título do
livro tem a intenção de agregar a singularidade negra e brasileira ao
mesmo tempo. O texto não trata de um corpus que descende da
literatura africana porque os africanos que vieram escravizados para
o Brasil não trouxeram uma produção literária escrita, não havia uma
tradição que pudesse ser continuada. Então, o enfoque está na
experiência de luta dos indivíduos negros que vivem no Brasil, que
precisam marcar sua posição de resistência em face de situações
discriminatórias diárias, e vemos um autor que coloca a literatura
negro-brasileira sempre como uma forma de combate.
Aparece muito em Literatura negro-brasileira a reflexão sobre
as diversas barreiras que são impostas aos escritores negros, que
- 61 -
passam por diversos tipos de censura (inclusive a autocensura), pois
há instâncias de poder que decidem o que será publicado e o que
será lido, e também há a preocupação com a recepção. Seu texto
também reflete sobre a afirmação ou negação da identidade negra,
afirmando a existência de autores que não se identificam à questão,
aqueles que “sussurram” a identidade em meio aos padrões
estabelecidos pela ideologia dominante, e por outro lado, há
“autores que afirmam sua identidade negro-brasileira, enfrentando
as zonas de conflito em franca desobediência à ideologia do silêncio”
(CUTI, 2010, p. 61), colocando suas obras como verdadeiros
instrumentos de combate e resistência a todo tipo de tentativa de
calar o segmento negro-brasileiro.
A resistência está presente também na obra literária de Cuti,
e aqui damos destaque aos seus contos. Nestes, a violência se
manifesta com grande frequência, sempre relacionada ao indivíduo
negro de alguma forma. Como Cuti se propõe a retratar a realidade
do povo brasileiro e a realidade do negro no país, seria inevitável
abordar a questão da violência, que segundo Schwarcz e Starling
(2015) está ligada ao passado escravocrata brasileiro:
- 63 -
Pai – Malcolm relatou-me – eu vi tudo. Eles me
pularam três vezes. Uma, quando entraram.
Outra, quando tentaram sair e, depois, quando
retornaram. Eu estava com a cabeça debaixo de
uma cadeira, o rosto voltado para a porta e o
resto do corpo para fora. Um deles, quando
estavam tentando fugir, pisou nas minhas costas.
Quando tiveram de voltar, um outro caiu em cima
das minhas pernas e a arma dele – uma
metralhadora pequena – veio parar próximo do
meu cotovelo, depois de bater no meu ombro
esquerdo. O cara agonizava. Foram muitos tiros,
vidros estilhaçados e uma gritaria geral. Os
policiais nem consideraram que havia reféns
dentro do banco. Tentei me encolher, mas o peso
do homem em cima das minhas pernas travou
meus movimentos. De repente a artilharia parou.
O que se ouviu naquele instante foi o som de
muitas sirenes, choros e gritos histéricos. Eu
tremia e suava frio. Aí, houve dois tiros. Acho que
devem ter sido esses que mataram o segurança,
aquele que tinha me barrado. Ele tentou reagir
mesmo tendo sido algemado pelos ladrões. Então,
eu consegui, num impulso, me encolher e fiquei na
posição fetal. Só que, quando eu fiz isso, a arma
caída ficou mais perto de mim. Fechei os olhos.
Foi, então, que me deu uma crise de choro e a
minha tremedeira aumentou. Houve, a partir daí,
muitos outros tiros. Depois parou tudo, só ficando
gemidos. Demorou um tempo assim. Aí, os
policiais entraram falando alto, até que senti
passos e escutei: “Esse daí não mata não! Esse a
gente leva”. Recebi um forte chute na coxa e
agarraram minhas mãos que cobriam a cabeça e
me algemaram (CUTI, 2012, p. 200-1)
- 64 -
situação evoca até a postura adotada pelos policiais, que agridem
fisicamente e injustamente consideram o rapaz como culpado por
causa da cor de sua pele. O rapaz foi considerado um dos bandidos e
foi preso, só sendo liberado após um funcionário da agência
reconhece-lo como cliente, o que ilustra um fato enraizado na vida
brasileira há muito tempo, pois “o aparato oficial – exemplificado
principalmente pelas forças policiais – manifestou desde o período
colonial, a predisposição de mirar os negros segundo a ótica da
suspeita” (PEREIRA e GOMES, 2001, p. 199), o que fez com que a
tradição da culpa antecipada do negro tenha se instaurado e esteja
em vigência até hoje. Após o episódio, o rapaz desistiu de estudar
para o vestibular, não saía e em certo momento resolveu ir para
Salvador, talvez em busca de um ambiente novo que lhe permitisse
um recomeço e uma restituição de sua autoestima. Dessa forma, o
conto mostra que o racismo policial e associação sem provas entre
negro e criminalidade na maior parte dos casos geram efeitos
desastrosos, tanto para o indivíduo e seus próximos quanto para toda
a sociedade.
Em “Conluio das perdas”, a violência aparece com o indivíduo
negro como oprimido, vítima de um sistema racista que o criminaliza
sem razão, e o personagem retratado não consegue reunir forças
para resistir, apenas acaba sendo levado pela situação que lhe
- 65 -
aparece. Essa posição do negro como oprimido se repete nos textos
de Cuti, que procura denunciar a estrutura racista brasileira, mas não
é a única forma pela qual a violência se manifesta.
Em muitos de seus escritos a violência é representada como
uma forma de reação ou resistência que o negro utiliza em face à
violência do branco, pensando a resistência como algo cujo “sentido
mais profundo apela para a força de vontade que resiste a outra
força, exterior ao sujeito. Resistir é opor força própria à força alheia”
(BOSI, 2002, p. 118). O conto “Sob a alvura das pálpebras” começa
com o narrador dizendo “Meu avô me disse que matasse a princesa.
Peguei de suas mãos as tripas do bisavô e com elas trucidei a
Madame da Liberdada” (CUTI, 1987, p. 7). No texto, o assassinato da
princesa Isabel revolta Rebouças, Patrocínio e os escravos, mas no
fim o narrador ouve Zumbi lhe dizer: “Pod’ scansá. Já é dia 14. Eles
vão pensar!” (CUTI, 1987, p. 8), como uma crítica à elevação de
princesa Isabel ao posto de salvadora dos escravos, pois “passada a
euforia dos primeiros momentos da Lei Áurea, de 1888, foram
ficando claras as falácias e incompletudes da medida” (SCHWARCZ e
STARLING, 2015, p. 342). No texto diversos personagens históricos
são evocados com a intenção de mostrar a história por um ponto de
vista diferente do que foi tradicionalmente feito. Nessa revisão, o
narrador pretende que se desfaça a falácia dos “heróis dos escravos”
- 66 -
e chama a atenção para a situação pós-abolição, na qual os ex-
escravos foram sendo empurrados para as margens da sociedade,
numa ação que deixou fortes marcas na vida dos afrodescendentes
até hoje. Ainda, a resistência perpassa em toda a narrativa, desde a
atitude do narrador que trucidou a princesa, com o incentivo e as
próprias vísceras de seus ancestrais até a presença de Zumbi, símbolo
da resistência negra.
“Ponto riscado no espelho” exemplifica muito bem a reação
do negro através da violência. O conto tem como protagonista o
policial de folga Júlio, que sai de uma barbearia indignado com o que
ouviu enquanto o barbeiro continua seu serviço normalmente.
Mentalmente o protagonista ensaia vinganças, cogitando que tipo de
ação deve tomar, até decidir voltar ao estabelecimento e aguardar o
outro cliente sair. Após isso, Júlio obrigou o barbeiro a sentar-se,
tomou-lhe a navalha e fez-lhe um corte na palma da mão e um
pequeno sangramento em seu próprio polegar, fazendo um desenho
com o sangue de ambos no espelho. Somente no fim do conto,
quando Júlio encontra a esposa e esta pergunta se ele não havia ido
cortar o cabelo é que o leitor descobre o motivo de sua indignação e
vingança: “Aqui não cortam cabelo de negro – respondeu com secura
e se negou a contar a história de seu primeiro dia de férias na cidade
de” (CUTI, 1987, p. 37). No conto, a violência não é colocada como
- 67 -
gratuita e nem se faz apologia à violência como útil em determinadas
situações. Ela é colocada sim como forma de reação e resistência,
mas a opção pelo corte na mão do barbeiro e em seu próprio polegar
serve para mostrar o sangue de ambos misturados, escorrendo no
espelho que reflete a imagem de ambos enquanto passa a
mensagem de que no sangue não há diferença de cor.
Considerações finais
Em seus ensaios, Cuti coloca o que chama de literatura negro-
brasileira como um conjunto de produções e discussões que se
opõem ao discurso dominante, através de iniciativas que buscam dar
vida a uma vertente literária que por muito tempo foi abafada. O
posicionamento exposto em seus ensaios é totalmente oposto
àqueles que sugerem que se prenda exclusivamente aos elementos
textuais e à questão estética deixando todos os aspectos sociais,
históricos e políticos de fora, e o autor valoriza textos que retratam a
realidade árdua dos negros do Brasil, e a literatura negro-brasileiros é
colocada como um espaço de resistência e instrumento de combate.
Em seus contos, Cuti traz a preocupação em representar a
situação vivida pelo negro brasileiro, num país em que “formas de
discriminação são sustentadas por uma cultura que estabelece
padrões sobre o valor das pessoas pela raça” (TELLES, 2012, p. 140).
- 68 -
O autor enxerga o negro como um ser oprimido numa sociedade
racista, e demonstra isso em seus textos. A violência aparece nas
mais variadas formas, desde a violência que o negro sofre até a
violência que o negro pratica como reação, desde as discussões
domésticas e familiares, até a opressão, a violência policial, as lesões
corporais e os assassinatos. Numa sociedade violenta, a literatura
traz a marca e a denúncia da violência. Mas traz também a
resistência e a revolta do negro, revolta que, segundo Abdias do
Nascimento, invoca “seu valor de Homem, seu valor de Negro, seu
valor de cidadão brasileiro” (1968, p. 45), e faz com que sua
humanidade, que deveria ser evidente, seja exposta.
Cuti, então, é uma das mais potentes vozes de resistência no
contexto da literatura produzida por negros. Seja no campo teórico
ou no artístico, o escritor mantém seu posicionamento e faz questão
de denunciar o racismo vigente na sociedade brasileira, através da
demonstração de comportamentos discriminatórios e dos diversos
mecanismos que buscam inferiorizar ou desvalorizar o afro-brasileiro
e seus produtos culturais. Cuti mostra a opressão, mas também
mostra a reação e a resistência, enfatizando que o negro tem sua voz,
sua força e exige ser reconhecido e respeitado, e seus textos
constituem um dos maiores exemplos desse espaço negro de
resistência.
- 69 -
Referências Bibliográficas
BLOOM, Harold. The western canon: The books and school of the
ages. Nova Iorque: Harcourt Brace and Company, 1994
- 70 -
______. Quizila. São Paulo: Edição do autor, 1987.
OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. Cuti. In.: DUARTE, Eduardo de Assis
(coord). Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI.
Rio de Janeiro: Pallas, 2014. p.178-181.
- 71 -
SAYERS, Raymond S. O negro na literatura brasileira. Tradução
Antonio Houaiss. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1958.
- 72 -
Resistência e ética em W. G Sebald
Carla Lavorati17
Rosani Úrsula Ketzer Umbach18
17
Doutoranda em Estudos Literários no Programa de Pós-Graduação em Letras na
UFSM. Bolsista Capes. E-mail: [email protected]
18
Doutora em Neuere Deutsche Literatur pela Freie Universität Berlin, Alemanha,
como bolsista do DAAD; Pós-doutorado na Universidade de Tübingen, Alemanha,
com bolsa da CAPES. Atualmente é bolsista de produtividade em pesquisa 1D do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e
professora titular, UFSM. E-mail: [email protected]
19
Entrevista completa com Harold Bloom realizada por Valerie Miles e publicada
em nove de dezembro de 2014, com o título “Todos los días recibo correos con el
mismo lamento: ‘Leemos basura’”, no jornal El País. Acesso em 10/10/2015 em:
http://cultura.elpais.com/cultura/2014/12/08/actualidad/1418055903_266402.ht
ml
- 73 -
Me interesan esas novelas o novelistas que,
apoyándose en la tradición, logran llevar su
instrumento a lugares donde nunca había estado.
Uno de ellos es W. G. Sebald, por ejemplo: según
mis parámetros, Sebald es absolutamente
novedoso 20 (VÁSQUEZ apud SABOGAL; GELI,
2014, [s/p])21.
20
“Eu me interesso nesses romances ou romancistas que, apoiando-se na tradição,
conseguem levar o seu instrumento para lugares onde nunca tinham estados. Um
deles é W. G. Sebald, por exemplo: segundo os meus parâmetros, Sebald é
absolutamente inovador. (VÁSQUEZ apud SABOGAL,GELI, 2014, p. s/n, tradução
nossa).
21
Matéria completa, de Winston Manrique Sabogal e Carles Geli, publicada no
jornal El País com o título “El abismo entre novedad literária e calidad”. Acesso em
10/10/2015 em:
http://cultura.elpais.com/cultura/2014/12/09/actualidad/1418156781_961396.ht
ml
22
“É possível ainda a grandeza literária? Perante a decadência da ambição literária,
a convergente ascensão do desforço (ou falta de vontade), a verborréia e a
crueldade insensível como questões normativas da ficção, o quê é que seria, na
atualidade, um projeto literário centrado na nobreza? A obra de Sebald e uma das
poucas respostas disponíveis para os leitores do idioma inglês” (SONTAG, 2015, p.
1, tradução nossa).
- 74 -
Coetzee, no livro Mecanismos Internos: ensaios sobre a
literatura relata que Sebald não se considerava romancista e achava
que o termo “prosador” era mais adequado, mesmo assim, o crítico
ressalta o caráter ficcional das narrativas do escritor alemão e afirma
a importância da invenção na construção das narrativas, que
ultrapassam os limites do real e da comprovação, pois:
- 75 -
poder das imagens em eclipsar em certos aspectos a compreensão
dos eventos traumáticos. Segundo Sontag (2003),
23
“Lembrar é, cada vez mais, não recordar de uma história, mas ser capaz de
instigar uma imagem. Mesmo um escritor do século XIX e literários modernos como
WG Sebald moveram-se para semear suas lamentações-narrativas de vidas
perdidas, natureza perdida, paisagens urbanas perdidas com fotografias. Sebald
não era apenas um escritor, ele era um escritor militante. Lembrando, ele queria
que o leitor recordasse também. Fotografias angustiantes não perdem o poder de
chocar. Mas eles não ajudam se a tarefa é compreender. Narrativas podem nos
fazer entender. Fotografias fazem outras coisas: elas nos assombram. Considere
uma das imagens inesquecíveis da guerra na Bósnia, uma fotografia de que o
estrangeiro correspondente John Kifner escreveu .Yeic York Times: "A imagem é
gritante, um dos mais duradouros conflitos dos Bálcãs: um miliciano sérvio
chutando a cabeça de uma mulher muçulmana morta. Diz-lhe tudo você precisa
- 76 -
Os anéis de Saturno, terceiro romance do escritor, inicia com
o narrador internado em um quarto de hospital, abatido pela
imobilidade após o excesso dos traços de destruição que observou
durante a viagem (realizada principalmente a pé) pelo leste da
Inglaterra. Essa paralisia advém do olhar crítico direcionado para as
ruínas do passado e está ligada a postura melancólica do narrador
diante da realidade e da problematização da (in) comunicabilidade da
experiência diante de encontros recorrentes com a destruição.
Assim, o narrador assume a tarefa de comunicar o que a tempestade
do progresso apaga ao impelir os indivíduos para o futuro, e o faz,
principalmente, juntando os cacos da história da Europa pós-guerra:
saber”. Mas é claro que não nos diz tudo o que precisamos saber” (SONTAG, 2003,
p. 69-70-71, tradução nossa)
- 77 -
animais, “lá, até que me sentisse um pouco melhor, sentei-me em
um banco à meia sombra, junto a um viveiro de pássaros no qual
esvoaçavam inúmeros tentilhões e pintassilgos de plumagem
colorida” (SEBALD, 2008, p. 8). Do zoológico o narrador segue para a
Centraal Station de trem e essa passagem de um ambiente ao outro
possibilita que o narrador estabeleça relações entre os dois espaços.
A Salle des pas perdus na Centraal Station de Antuérpia é comparada
ao zoológico Nocturama, e o espaço de monumentalidade da
Centraal Station transforma-se, pelas reflexões do narrador, num
recinto que denuncia a violência da cultura e da dominação, pois:
- 78 -
garoto negro coberto de azinhavre, que, faz agora
um século, está lá no alto como o seu dromedário
sobre uma torre de sacada à esquerda da fachada
da estação, um monumento à fauna e aos nativos
africanos, sozinho contra o céu flamengo. Quando
entrei no átrio da Centraal Station, com sua
cúpula abobadada de sessenta metros de altura, o
meu primeiro pensamento, suscitado talvez pela
visita ao jardim zoológico e pela imagem do
dromedário, foi que ali, naquele vestíbulo
magnífico, embora então bastante decadente,
devia ter havido jaulas para leões e leopardos
embutidas nos nichos de mármore e aquários para
tubarões, polvos e crocodilos, assim como,
inversamente, em alguns jardins zoológicos é
possível viajar com um trenzinho aos recantos
mais afastados da Terra. Foi talvez por causa de
ideias como essas, surgidas como que
espontaneamente lá em Antuérpia, que a sala de
espera que, até onde sei, hoje serve de refeitório
para os funcionários me pareceu como um
segundo Nocturama, uma confusão, é claro, que
também pode ter resultado de o sol se pondo
atrás dos telhados da cidade bem no instante em
que eu entrava na sala de espera. À meia-luz, o
brilho de ouro e prata nos gigantescos espelhos de
parede diante das janelas ainda não havia se
extinguido por inteiro quando um crepúsculo
subterrâneo encheu a sala, onde alguns viajantes
estavam sentados bem afastados uns dos outros,
imóveis e calados. Tal como os animais do
Nocturama, entre os quais espécies anãs eram
surpreendentemente numerosas – minúsculos
fenecos, lebres-saltadoras, cricetos –, também
aqueles viajantes me parecem de algum modo
reduzidos a miniatura, fosse por causa da altura
insólita do teto, fosse por causa da penumbra que
se adensava, e foi por isso, suponho, que me
ocorreu o pensamento, em si mesmo absurdo, de
- 79 -
que se tratava dos últimos exemplares de um
diminuto povo em vias de extinção, expulso de
sua pátria ou exterminado, desses que, porque
somente eles haviam sobrevivido, tinham a
mesma expressão agônica dos animais no
zoológico (SEBALD, 2008, p. 10-11)
- 82 -
Para Freud, a aculturação do homem, seu distanciamento da
animalidade, provoca um mal-estar que faz parte da natureza
humana. Nesse sentido, Freud observa na cultura um processo de
defesa, uma maneira de mascaramento de faltas inerentes à
condição humana. Apesar dessas analogias, como o próprio Freud
alerta, antes de serem apenas analogias, elas apresentam
intercâmbios interessantes sobre as relações entre a dinâmica do
indivíduo e da sociedade. O psicanalista conclui que os homens
primitivos não eram necessariamente mais felizes. O mal-estar,
segundo ele é parte constituinte do homem independente da época
e da cultura que está inserido, pois:
- 83 -
comparações, mas não deixa de insistir nas aproximações pertinentes
entre ambas, a psique individual e uma espécie de psique coletiva.
- 84 -
freudiano não carrega coroa alguma; ele na
verdade carrega essa natureza dentro de si e
nunca poderá dominá-la (FREUD, 2010, p. 18).
- 85 -
outro”, da nossa incompletude e fragilidade, das contradições que
são internas, que acontecem ali, bem na nossa morada, que é nosso
corpo e nossa consciência. Cisão do eu. Paradoxos de um ser sem
essência original.
- 86 -
O estranhamento diante da razão e suas convenções são
observados, nos objetos de análise, como manifestações de rebeldia
contra o poder instituído. Pode, portanto, ser vista como uma
manifestação ética na estética, ao passo que busca não sucumbir aos
mandos e poderes do mesmo (eu). Portanto, a rebeldia seria uma
ação ética, que busca fugir da redução do outro aos poderes do eu, e
assim, conclui-se que não respeitar a alteridade seria uma ação
fomentadora da catástrofe, pois conforme reflete Adorno (1995),
- 87 -
pouca ou nenhuma credibilidade (ADORNO, 1995,
p. 121)
- 88 -
na passagem do romance Os emigrantes, onde o narrador caminha
pelo antigo bairro judeu de Manchester,
- 89 -
guerra e também se dão nas reflexões sobre as relações entre
homens e animais, pois como relata o narrador de Os anéis de
Saturno, sobre o encontro que tem com porcos e sua reflexão sobre a
história bíblica de São Marcos e o país dos gadarenos. Vejamos como
o narrador descreve o encontro com os animais de modo afetuoso e
distante da lógica da utilidade e inferioridade geralmente
direcionadas a eles.
- 90 -
que, em Os anéis de Saturno, o narrador faz sobre o arenque,
atrelando reflexões sobre ciência, natureza, sofrimento,
desconhecimento e impossibilidade de apreensão total do outro, pois
temos apenas:
- 91 -
ser e dos limites do nosso olhar sobre nós mesmos, o saber e o
mundo. É como chegar ao precipício, ou mesmo transpô-lo, ao talvez
cair nele, sombra que se forma na presença da luz. E nessa viagem de
descobrimento dos narradores de Sebald vale mais ver com novos
olhos do que conhecer novas paisagens. O olhar que direcionamos
para dentro e para fora de nós é o responsável pelo deslocamento
que promoves no que é lugar comum e convenção. Assim, a
possibilidade de estranhamentos diante da falsa harmonia e
naturalidade da cultura estaria nos processos no olhar e consciência
lançados sobre a realidade. E, para exemplificar o olhar crítico dos
narradores, citamos, a passagem de Os anéis de Saturno, quando o
narrador, ao olhar para a terra a bordo de um avião que o levava de
Amsterdam à Norwich, e ver apenas casas, fábricas, veículos e os
caminhos que os ligam, mas não avistar os seres humanos - mesmo
eles estando por toda a parte - conclui; “[...] é assustador perceber
como sabemos pouco sobre nós mesmos, sobre nosso propósito e
nosso fim, pensei enquanto deixávamos para trás o litoral e
voávamos para longe sobre o mar verde-gelatina” (SEBALD, 2010, p.
99).
- 92 -
Referências Bibliográficas
- 93 -
SONTAG, Susan. El viajero y su lamento. Disponível em:
<http://cultura.elpais.com/cultura/2014/12/08/actualidad/14180559
03_266402.html>. Acesso em: 10 agost. 2015.
- 94 -
Persépolis, de Marjane Satrapi: Identidade e Alteridade;
Violência e Resistência
24
Mestranda em Letras do PPG-Letras, UFSM. Bolsista Capes/DS.
25
Mestrando em Letras do PPG-Letras da UFPel. Bolsista Capes/DS.
- 95 -
que a autora está radicada - em francês ao longo de quatro volumes,
publicados consecutivamente em 2000, 2001, 2002, 2003. Nessa
obra26, o leitor acompanha a história de Marji – apelido de Marjane –
dos 10 anos até o início de sua vida adulta. A personagem vive a
Revolução Iraniana, iniciada em 1979, o que a obriga a sair do país e
ir para a Europa ainda na adolescência. Nesse sentido, a história de
Persépolis abarca um pedaço da História iraniana; a história de Marji
e da família da personagem; bem como o processo da construção da
identidade da protagonista, e o modo pelo qual as relações
interpessoais que ela teve auxiliaram nesse processo, ou seja, as
relações de alteridade.
A noção de alteridade é utilizada principalmente nos estudos
das Ciências Sociais, Filosofia, Antropologia e também nos estudos
sobre Literatura. Essa significa a relação do Eu para com o Outro; a
outridade que auxilia o Eu em se reconhecer como indivíduo; como
especificado nas palavras de Eric Landowski:
26
Para compor esse trabalho, foi utilizado o volume único de Persépolis. Publicado
no Brasil pela Cia das Letras sob o título Persépolis: completo em 2007.
- 96 -
[...] consciência coletiva, a emergência do
sentimento de “identidade” parece passar
necessariamente pela intermediação de uma
“alteridade” a ser construída (LANDOWSKI, 2002,
p. 4 [grifos do autor]).
- 97 -
amor e a ira de Deus” (SATRAPI, 2015, n.p). À medida que a
personagem vai se engajando nas questões contra a repressão, ela
vai descobrindo que sua família há algumas gerações vem se
engajando em questões políticas. Seus pais e familiares se
declaravam comunistas e se mostravam politicamente ativos em
protestos contra o governo, principalmente o Tio Anuch. Ainda, eles
descendiam da linhagem de imperadores do Irã, os quais foram
afastados do poder no início da Revolução. Assim, o comportamento
e o modo de pensar de Marji se mostram sobre influências de sua
família.
É convivendo com o Tio Anuch que Marji toma consciência da
proporção das violências praticadas pelo Estado. Ele, sempre que
conversava com ela, rememorava os acontecimentos do período pré-
revolução: a perseguição sofrida por causa de sua orientação política
(comunismo) e a sua fuga do Irã para a União Soviética. Tio Anuch
também foi a pessoa que informou à Marjane o que ocorria com os
presos políticos, pois ele ficou nove anos preso quando retornou da
URSS. Ele narra os episódios de tortura, mutilação e violência
psicológica que viveu na prisão. A partir dessa convivência e das
histórias que o tio conta, Marjane, ao invés de ficar com medo e se
retrair, toma consciência de que é preciso lutar contra a repressão, a
- 98 -
violência e o autoritarismo praticado pelo Estado para que se possa
viver em liberdade.
Já na pré-adolescência, a personagem continua a confrontar o
sistema, questionando o que lhe é imposto em sala de aula. À
medida que a Revolução avançava, cada vez mais as escolas
impunham atitudes patrióticas e religiosas. As alunas eram obrigadas
a todo dia celebrar os mártires – soldados do governo que morreram
em batalha – batendo no peito enquanto ouviam músicas que
louvavam a Deus e ao governo iraniano. Ainda, elas tinham de
costurar os capuzes dos soldados. Marji encontrou na ironia uma
forma de protestar contra tantas imposições: nas sessões de suplício
ela ironizava os mártires e brincava com os capuzes que costurava.
Isso ocasionou diversas advertências e idas de seus pais até a escola;
eles, por sua vez, sempre protegeram a filha das punições mais
severas.
Por volta dos 12 anos, Marji encontra nos ícones da cultura
ocidental seus ídolos da adolescência: o movimento punk e o heavy
metal tornam-se para ela referências de comportamento e, de um
modo adaptado, de vestimenta. Mesmo fitas, vinis e pôsteres dessas
bandas sendo proibidos no país, o mercado da pirataria conseguia
suprir a demanda da população. Os dois movimentos lhe parecem ser
uma forma de resistência ao contexto autoritário.
- 99 -
Entretanto, ao incorporar elementos provindos desses
movimentos ocidentais em sua vestimenta, como a jaqueta jeans
com bottons de músicos ocidentais e o tênis de marcas famosas no
ocidente, Marji é confrontada pelas Guardiãs da Revolução – civis
que observavam à paisana o comportamento da população:
- 101 -
Mesmo não concordando com tamanha repressão e
imposição ideológica, Marjane sentia que pertencia à cultura local e
àquele território. Entretanto, Marjane, aos 14 anos, tem de deixar o
país e ir para à Europa, já que o Iraque tinha iniciado um conflito
armado com o Irã, tornando o local onde ela vivia inseguro. Como a
escola em que ela estudava era um liceu francês, ela é enviada para a
Áustria para estudar em uma instituição de mesma orientação.
Nas primeiras semanas, ela morou na casa de uma família
iraniana. Todavia, os membros da casa viam com desaprovação a
presença da menina e acabaram enviando-a para um pensionato
católico cuidado por freiras. Marjane se vê, assim, em um contexto
totalmente às avessas: ela estava fora do mundo oriental, em um
espaço em que ela não dominava a língua e não partilhava da
religião. Nem ao menos com sua colega de quarto ela podia
conversar, já que ela só falava alemão e Marji não compreendia a
língua.
Nesse sentido, Marji passa a ser segregada (cf. LANDOWSKI,
2002) dentro desse contexto, uma vez que ela representa o
estrangeiro e o oriental, o qual poderia contaminar a cultura local
como argumenta Landowski:
- 102 -
pois, explicar-se-á, não pode em grau algum o
corpo social se deixar desnaturar ou contaminar –
o que motiva naturalmente o sonho de exclusão
[...] (LANDOWSKI, 2002, p. 22).
- 103 -
freira para com Marji é um tipo de violência, pois a religiosa, baseada
em um preconceito étnico, tenta reprimir a jovem.
Marjane acaba deixando esse pensionato e procura outro
lugar: uma espécie de república estudantil. Nessa casa, a dona do
pensionato alugava quartos para os estudantes. Entretanto, a mulher
via com maus olhos a moça iraniana. Novamente, Marji vivencia a
hostilidade do europeu contra o oriental: a dona da pensão acusa a
personagem de ter pego um broche:
- 104 -
as observações de Julia Kristeva (1982). Para a teoria o conceito pode
ser compreendido como:
- 105 -
Europa: a mulher sempre relacionava Marjane ao impuro e ao
estrangeiro, tentando afastar o rapaz da garota. Entretanto, a sogra
sempre xingava ou se referia a Marji falando em alemão para que só
ela e o filho compreendessem. A escolha linguística da mulher
também é uma forma de exclusão da personagem (e possivelmente
do leitor), pois ela não possuía domínio da língua. Por conseguinte,
ao utilizar uma língua do local e desconhecida de Marjane, a sogra
tenta afirmar parte da cultura europeia sobre a personagem,
expondo que ela não pertence a esse espaço, nem mesmo no âmbito
linguístico.
Assim, esse contexto que segrega Marjane pelo fato dela ser
estigmatizada como o “impuro”, o estrangeiro e o abjeto são fatores
mencionados na obra que acabam por repelir de todas as formas a
sua presença até alcançar proporções aquém da xenofobia e
adentrando à negligência. Após sair da pensão por ser acusada de
roubo, Marjane começa a circular pela cidade sem ter um rumo,
dorme em ônibus, praças, alimenta-se do lixo e sente fome durante
dias. As pessoas passam por ela, veem seu estado, mas recusam-se a
ajudar. Com o frio severo, ela desenvolve uma doença respiratória e
desmaia na rua. Ela acorda no hospital sem saber quem a salvou.
Tendo a dívida quitada pelos iranianos que a acolheram quando
chegou na Áustria, Marjane decide que é hora de voltar para o Irã.
- 106 -
Essa negligência por parte dos europeus não deixa de ser um tipo de
violência contra a personagem, pois ela foi privada de elementos
básicos para sobrevivência enquanto estava na rua.
Mesmo assim, a personagem, ao longo de sua estadia na
Europa, aos poucos, desenvolveu uma resistência à cultura ocidental,
para que, ao final dessa temporada, ela pudesse se reafirmar como
mulher iraniana. No início, ela tentou incorporar os elementos da
cultura ocidental em uma espécie de “ocidentalização”. Mas,
gradativamente, Marjane vivencia uma falência dos valores
ocidentais. Isso ocorre, principalmente, por dois pontos: a) as
vivências xenofóbicas mostram à personagem o lado preconceituoso
do europeu e b) ela presencia problemas nas ideologias ocidentais
que lhe foram suporte na adolescência ainda no Irã. Essa falência
ideológica se dá pelo confronto da idealização que ela tinha dessa
ideologia quando estava no Irã juntamente com a vivência dessa
ideologia na Áustria.
Na mesma esteira, no liceu austríaco, Marjane conviveu com
punks que se diziam de orientação esquerdista. Em um primeiro
olhar, ela pensou que eles corresponderiam a um modelo
questionador socialmente. Mas, ao longo de sua convivência, eles se
mostraram, erem jovens de classe média alta que não abriam mão de
seus privilégios econômicos em nome da luta por igualdade. Ou seja,
- 107 -
ela presenciou que o ideal punk talvez fosse muito mais uma imagem
que a mídia construía. Assim, a admiração ideológica que ela tinha
pelo ocidente foi arruinada.
Aos poucos Marjane conclui que deve voltar para o Irã.
Contudo, esse retorno revela uma Marjane imersa em um conflito
psicológico que já não se enquadra mais nem em um modelo
iraniano ou tampouco em um modelo europeu:
- 109 -
regiões e às pessoas que sofrem com esse processo e argumenta
que:
- 110 -
que ela apreciasse certos aspectos da cultura local. Já no seu retorno
ao Irã, Marji vivencia o paradoxo de estar de volta ao lar, porém
sente que não pertence a ele. Frente a essa situação, a personagem
passa a se alocar em um entre lugar; uma identidade entre o
ocidental e o oriental. Bauman (2005) nomeia esse espaço
indentitário como “nem-um-nem-outro”:
- 111 -
Visuais. Na prova de admissão, a personagem continua expondo sua
identidade “nem-um-nem-outro” desenhando uma imagem dos
mártires da guerra a partir de uma releitura da Pietà:
- 112 -
-Hoje com a distância, acho que eu sempre soube
que a gente não ia dar certo. Mas de minha
lastimável história em Viena, eu precisava
acreditar de novo em alguém
.... precisava tanto que mentia pra ele sem parar.
-Adoro mulher de taier.
-É meu estilo!
-Não gosto de mulher boca-suja.
-Ah, eu também detesto!
-Gosto de olhos claros.
...e eu comprava lentes azuis (SATRAPI, 2015, n.p)
- 113 -
- Por que está correndo?
-Estou muito atrasada! Estava correndo para
tomar o ônibus.
-Sim... mas... quando a senhora corre seu traseiro
faz movimentos... como dizer... impudicos!
- Então é só vocês não ficarem olhando para a
minha bunda!
Gritei tão alto que eles nem me prenderam
(SATRAPI, 2007, n.p.).
- 114 -
projeto de Marjane enfatiza a luta feminina, da qual ela faz parte, na
resistência.
Após divorciar-se ela viaja para a região do Mar Cáspio junto
com sua avó. Na viagem, ela reforça a ideia de retornar à Europa.
Nessa região, ela visita os arredores da prisão onde seu tio foi morto
e pela última vez respira a brisa do mar daquele lugar.
Os episódios vividos no local tomam a proporção de uma
despedida, não só de sua terra, mas de sua família, e, principalmente,
de sua avó, que morre meses depois, pois Marjane retorna à Europa.
Esse retorno mostra que a personagem, após conviver tanto com a
cultura ocidental teve seus costumes regionais “apagados” de si.
Uma vez que eles foram amenizados, os traços da cultura ocidental
se tornaram dominantes impedindo que Marjane se reestabelecesse
no Irã. Como mencionado por Bauman, a personagem acabou por
assumir a posição do nem-um-nem-outro através do processo de
desterritorialização. Não que o retorno à Europa signifique que Marji
passa a se sentir pertencente ao lugar. Essa escolha se dá muito mais
pela busca de uma melhor condição de vida e longe da repressão do
Estado iraniano.
Considerações finais
- 115 -
Nesse sentido, ao longo de Persépolis pode-se concluir que a
personagem protagonista enfrenta diferentes situações em que a
alteridade está envolvida, sendo que tais relações se dão em
contextos de violência, de repressão e de desterritorialização. Na
infância, a constituição do Eu de Marjane dá-se pelo convívio familiar,
o qual a instrui através dos pensamentos do comunismo. Tais
pensamentos entram em choque com as ideologias passadas na
Escola, pois essas obedecem às regras do Estado autoritário. Tanto na
infância quanto na pré-adolescência, Marjane estabelece uma
relação de confronto com diversas pessoas que pregam a ideologia
do governo. Sendo assim, é possível dizer que ela confronta um
sistema através de personagens que personificam o autoritarismo do
Estado, o que é enfatizado pelo fato das personagens não serem
nomeadas e serem chamadas de Guardas ou Guardiãs da Tradição.
Mesmo assim, a protagonista e sua família resistem a repressão
encontrando refúgio seja nas ideias do Comunismo ou nas ideias do
movimento punk e heavy metal.
Ainda, é na pré-adolescência que o processo de
desterritorialização começa a ocorrer no momento em que ela entra
em contato com a cultura ocidental por intermédio da música, o que
cria na personagem uma expectativa de libertação e expressão do
seu Eu através do ativismo punk.
- 116 -
Já na adolescência na Europa, Marjane convive com o
movimento punk e conclui que ele era formado majoritariamente por
jovens de classe média que não abririam mão de seus privilégios para
atuarem em causas políticas, o que lhe ocasionou um desconforto
com a ideologia. Ao se relacionar com os austríacos, como as freiras e
a dona da pensão, ela percebe que não é bem vista por ser
estrangeira e toma consciência que por maior que fosse a sintonia
que ela tinha com a cultura ocidental, ela jamais pertenceria àquele
espaço.
Ao retornar para o Irã e se casar, a protagonista tem uma
relação de alteridade com Reza, que, por sua vez, tenta tornar o seu
corpo uma existência subalterna. Frente à situação, a separação foi
um modo de libertar-se, por mais que isso significasse o fim de sua
imagem perante à sociedade local. Impossibilitada de continuar a
viver no Irã – tanto pela guerra quanto pelo fato de ser divorciada –
retornar à Europa foi a única solução cabível. Mesmo assim,
enquanto ela permaneceu no Irã, Marjane tentou de diversas
maneiras resistir às repressões que sofreu. O divórcio foi uma
maneira de resistir ao marido enquanto à arte foi um modo de
resistir ao Estado.
Através das múltiplas relações que a protagonista estabelece
ao longo da novela gráfica, observa-se que Marjane constrói uma
- 117 -
identidade híbrida que carrega traços da cultura ocidental e da
oriental muçulmana, traço que a coloca como um indivíduo em
suspenso que está entre os dois mundos, mesmo adotando ocidente
como um espaço para viver. Mesmo carregando essa hibridez, a
personagem também é caracterizada pela resistência e pela
reivindicação de seus direitos, uma vez que Marjane tenta lutar
contra a violência e ao autoritarismo nos diferentes espaços pelo
qual circula.
Nesse sentido, Persépolis é uma obra de arte que, assim como
sua protagonista, pratica a resistência, pois denuncia a violência
vivida por aquela população seja em seu território ou no território
alheio.
- 118 -
Referências Bibliográficas
- 119 -
Hip hop e educação: sobre resistência e ruptura na arte das
periferias urbanas
Introdução
A sociedade brasileira se constitui de contradições que
penalizam a maior parte da população com um modo de
sobrevivência à margem de desfrutes imprescindíveis e de direitos
constitucionais, tendo a voz jugulada por entraves de determinações
que acarretam circunstâncias de descaso e intolerância, suscitando
indigência e exclusão.
Intermediado por seus aparelhos ideológicos e repressivos
(ALTHUSSER, 1980) – estes entrando em cena quando aqueles falham
–, o Estado administra desigualdades e segregações. E o faz
disseminando ideologias práticas (HENRY, 1997) que têm como uma
de suas finalidades a contenção de atitudes de aversão, desagrado,
ou mesmo medidas de ocupação do espaço que ameacem
constranger o bom funcionamento dessa ordem em que poucos
27
Doutor em Estudos de Linguagem, UFF, e professor Assistente I da Faculdade de
Letras da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques -FTESM;
[email protected].
- 120 -
enriquecem exorbitantemente através da exploração e consequente
separação da maioria.
Trata-se de uma ordem, para citar Galeano (2010[1971], p.
14), que é a diuturna humilhação das maiorias, mas que é sempre
uma ordem: “a tranquilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a
fome faminta”, seja sob o modelo de um distanciamento absurdo
entre classes ou de uma amenização que não desmorona o
funcionamento do sistema em sua estruturação complexa.
Não obstante, uma das principais ocupações do capitalismo é
o cuidado com o velamento de suas operações, de modo que o
sujeito permaneça submetido às estratégias de controle e
dominação/domação, imerso em evidências historicamente
construídas (ORLANDI, 2012a).
Desse modo, evita-se ao máximo qualquer tipo de conflito, o
que nem sempre é possível. Esta impossibilidade de um comando
pleno e sem falhas, ao passo que abre brechas para resistências,
obriga o sistema a readaptar-se, reformar-se, diante de mudanças
sócio-históricas.
Este artigo visa a refletir, tomando como aporte teórico a
Análise do Discurso francesa (PÊCHEUX, 2009[1975]), acerca da
maneira como o rapper, na letra de Causa e efeito (BILL, 2011),
significa sujeito, escola e educação, ocupando um lugar de fala e
- 121 -
assumindo uma posição discursiva entre outras possíveis. A partir
desse pressuposto, ampliaremos a discussão a mais questões
envolvidas na relação entre sujeito, Estado e educação.
- 122 -
uma rede de formações ideológicas que se materializam na
linguagem (ORLANDI, 2008).
A filiação ao alicerce teórico-metodológico da Análise do
Discurso francesa permite-nos falar de um lugar teórico que situa a
linguagem na história que a determina e nos sujeitos, postulando que
tal referência à história para tratar da linguagem só é possível a partir
da perspectiva de uma análise materialista acerca do efeito das
relações de classe sobre as práticas de linguagem inscritas no
funcionamento dos aparelhos ideológicos de dada formação
econômica e social (PÊCHEUX, 2009[1975], p. 22).
Certas proposições como tomadas de posição teóricas são
fundamentais para dizer deste lugar: a) a língua é base material em
que processos discursivos ideológicos antagonistas se sustentam; b)
os sentidos não estão na língua, nem nos sujeitos, mas na história; c)
a entrada da política está em, por meio da base material (língua e
demais materialidades), identificar os processos ideológicos em jogo
no discurso.
Busca-se preservar, sobretudo, o compromisso científico de,
mais do que oferecer respostas, produzir questões sobre os lugares
ocupados por sujeitos professor e aluno, além de refletirmos sobre a
escola enquanto espaço político de reprodução, o qual, entretanto,
sempre pode vir a abrigar movimentos de resistência às
- 123 -
determinações ideológicas. Em tais determinações, estão incluídas as
que atravessam discursos disseminados sob a etiqueta da defesa de
uma neutralidade política que nada mais faz do que perpetuar a
lógica segregatória, preconceituosa e excludente de democracia
burguês que rege as relações entre os homens no Estado de Direito.
- 124 -
escolha? Mas que escola? Que escolha? Ter/não ter escola é o que
confere maior ou menor “liberdade” ao sujeito, ou mesmo abre um
leque maior de opções, um aumento de expectativas, para que o
sujeito não siga pelo caminho da criminalidade? Consecutivamente à
sequência 20, tem-se: “Vários do lado do bem, são empurrados pro
mal/Vítimas da convulsão social”.
Qual é a relação entre escola e escolha, em e para além do
jogo paronímico entre as palavras? Como estes enunciados estariam
relacionados às posições discursivas assumidas em Causa e efeito? A
educação é, por excelência, aquilo que evita que o sujeito seja
“empurrado pro mal”? Mas que educação? Educação para o quê e
para quem? O que é educação? Em relação a que/quem está o que se
define como mal, crime, criminalidade? Quem e como são os sujeitos
que estão do lado do bem?
Se os sentidos postos em relação a outros sentidos, em Causa
e efeito, remetem ao imaginário de que o sujeito necessita de
educação para ter maiores/melhores expectativas, ou expectativas
diferentes de não “virar bandido”, que possibilitem ter “escolhas”,
pode-se concluir que não há nesta produção de imaginários uma
negação veemente da lógica em vigor (?).
No capitalismo, a educação é tratada dissimuladamente como
instrumento de separação, de apartação, de definição dos lugares
- 125 -
sociais que serão ocupados pelos sujeitos no mundo do trabalho. Os
sentidos reproduzidos no discurso analisado, desta forma, não
deixam de retroalimentar uma "dança das cadeiras" que não
representa modificações na estruturação do social, isto é, não
sustenta um projeto de desintegração da desigualdade.
Para ilustrar a discussão, trazemos uma referência à
entrevista do secretário de educação do Rio de Janeiro, ao jornal
Folha Dirigida, concedida em junho de 2012 (o então secretário era o
economista Wilson Risolia), na qual justifica as políticas de educação
do Estado dizendo que “a vida é assim, ela premia os melhores. E
esse é o recado: os melhores alunos, se fizerem os simulados, se
fizerem o SAERJ, se passarem de ano, serão beneficiados” (RISOLIA,
2012). Este enunciado é representativo da maneira como o Estado,
“na articulação do simbólico com o político, administra as relações de
poder na sociedade, e, consequentemente, a gestão das relações de
forças e de sentidos” (ORLANDI, 2015, p. 3).
Uma análise deste recorte torna explícito o apagamento dos
processos materiais e das construções históricas que fazem com que
“a vida seja assim”. Ou seja, um apagamento da ideologia, posta aí
como evidência, ponto imutável contra o qual não há o que fazer. As
recompensas que o Governo oferece estão em coerência com a
“natureza” humana ou o âmago de cada indivíduo. As intervenções
- 126 -
devem ocorrer levando-se em conta essa condição de base das
relações entre sujeitos.
É possível depreender, a partir de discursos postos em
circulação por representantes de um governo, sentidos que levam à
conclusão de que a desigualdade é constitutiva desta ideia de uma
essência inerente ao sujeito e às relações sociais. Os sujeitos são
incentivados a serem melhores que outros para terem mais do que
outros, pois o mundo sempre foi assim (?). Vê-se que, como indivíduo
(indivisível), o cidadão é tratado matematicamente pelo Estado, e a
vida é dada como uma equação a ser formulada, cujos números finais
dependerão de seu esforço na identificação e resolução das
dificuldades.
Em sendo a escola um Aparelho Ideológico de Estado
(ALTHUSSER, 1980), é esperado que esteja sempre empenhando-se
em tentar cumprir seu papel de tornar o indivíduo dócil, manipulável
e reprodutor de práticas ideológicas benéficas à harmonia
supostamente democrática do sistema, isto porque “as ideologias
não são feitas de ideias, mas de práticas” (PÊCHEUX, 2009[1975], p.
135), e a instalação dos Aparelhos Ideológicos de Estado vêm a
reproduzir o que perpetua tais práticas como dominantes. E ainda
com Pêcheux, é importante frisar que “só há prática através e sob
- 127 -
uma ideologia”, e que “só há ideologia por e para sujeitos”
(PÊCHEUX, 2009[1975], p. 135).
Guiados por manuais de conduta, bases curriculares e
preceitos supostamente bem-intencionados, com projetos que se
dizem voltados para a construção de um mundo melhor, grande
parte dos profissionais de educação, desde sempre interpelados e
preparados para tal, imagina estar realmente contribuindo para que
haja melhorias. São eles os grandes difusores de métodos que irão
nortear o pensamento e dar forma ao cidadão. Uma forma
ideologicamente ditada, através de práticas mobilizas e postas em
circulação, veladamente, à força.
Em que medida não acaba (não coincidentemente, mas por
meio de processos históricos) sendo a educação o grande obstáculo à
transformação, tendo em vista a evidência ideológica de sentidos que
associam educação e escola aos "crescimentos" que agenciam,
maquiando-se sua função coerciva e modeladora? Isto pensando,
principalmente, em escolas públicas de favelas e subúrbios, em que
se pratica uma educação desleixada, desordenada (ou melhor,
ordenada para propósitos diferentes das escolas dos grandes
centros), escassa em recursos, mas profusa em burocracias.
Cuidadosa ao extremo com índices e relatórios, com medidas
punitivas a professores e alunos, dentre as práticas discursivas que
- 128 -
circulam neste ambiente, apresentadas como procedimentos de
praxe que objetivam inibir a reprovação e, sob este argumento,
encobrem a distância entre o que afirmam os números e os reais
efeitos sobre os envolvidos no processo educacional.
Retornando ao imaginário do hip hop, não se observa em sua
reprodução um questionamento das práticas que se desenvolvem na
escola, ou uma problematização mais ampla da relação da educação
com escolhas, expectativas, criminalidade etc. O que se ratifica é que
a falta de escola ou de educação leva a consequências drásticas.
Talvez seja preciso um atravessamento da obviedade que há em se
pensar que, se há escola ou educação, há expectativa, há escolha,
para o questionamento radical sobre o quanto a própria escola, do
modo como se a oferece, contribui para a fomentação do fato de que
“[é] bem verdade que vivemos numa sociedade de escolhas
arriscadas, mas apenas alguns têm a escolha, enquanto os outros
ficam com o risco” (ŽIŽEK, 2011, p. 24).
A escola e a educação são introduzidas, no fio do discurso de
Causa e efeito, pela demanda do maior/melhor acesso de dados
sujeitos, a fim de que possam desfrutar de condições iguais na
corrida por um lugar ao sol. Todavia, quando o papel da escola em si,
quando sua relação com o Estado não é questionada,
- 129 -
problematizada, constrangida, o funcionamento desigual, domador e
coactivo que integra sua estrutura não é explicitado.
Este tipo de educação – embora desconfie de todo o sistema
educacional brasileiro, da educação básica ao nível superior – em
nada torna o sujeito autônomo (como o Estado o faz entender que
é), ou possibilita a construção de conhecimentos que lhe
disponibilizem meios para pensar por si próprio, compreendendo os
discursos que o atravessam, as engrenagens que o tentam mecanizar
e as práticas que o direcionam e o induzem a não resistir (mesmo, em
certa medida, sempre resistam).
Exemplificamos trazendo um outro fragmento da mesma
entrevista anteriormente citada, em que o secretário Wilson Risolia
afirma o seguinte acerca da conduta de docentes que criticam ações
da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC):
- 130 -
Reforça-se o discurso da superação a qualquer preço e da
recompensa pelo esforço além do esperado. Mesmo em escolas que
não tinham quadra, não tinham estrutura, os professores obtiveram
sucesso. Sucesso? Pode-se interpretar “sucesso” como sinônimo de
aplicação do currículo proposto, cumprimento das metas
estabelecidas e aumento da média em avaliações externas.
Beatriz Pelosi, diretora de Pesquisa e Orientação da SEEDUC,
em reportagem publicada no Portal do Jornal do Brasil, em fevereiro
de 2011, defendeu que “com o cumprimento do Currículo Mínimo, o
aluno também tem a garantia de estar sendo preparado para
avaliações como a Prova Brasil e o Enem” (PELOSI, 2011, p. 3). Este
“conteúdo” foi preparado com o intuito de “contemplar objetivos da
educação básica: preparo para o mundo do trabalho, para o estudo
universitário e para a vida, estimulando a cidadania” (PELOSI, 2011,
p. 3, grifos nossos).
Sentidos sobre cidadania, enquanto princípio que integra o
aparelhamento legal da Constituição Federal, circulam em diversas
formulações, na mídia, em publicidades de governos reiterando o
“dever de resgatar a cidadania”, esse “direito de todos”. Diz-se,
repetidamente, que habitar a cidade não garante o exercício da
cidadania. Se bem observarmos, na conclusão possível de que o
- 131 -
direito de todos não é de todos reside uma contradição intrínseca às
relações políticas (GUIMARÃES, 2013).
Assim como grande parte dos governantes, a diretora discursa
como se houvesse uma relação transparente entre o
estabelecimento de grades curriculares para um aprendizado
unificado, o aumento de notas e aprovações e maiores possibilidades
de promoção no mundo do trabalho. No âmbito do capitalismo,
talvez, esses objetivos da educação básica tenham grandes chances
de produzir o efeito esperado. O problema de sempre é que faz parte
do efeito esperado que a desigualdade se conserve, em condições
mais ou menos degradantes, que as exclusões e segregações
persistam. Modificam-se apenas as posições nas estatísticas
socioeconômicas.
Mesmo que haja um currículo comum a alunos da Zona Sul e
da Baixada Fluminense, as condições em que é aplicado, assim como
os fins da educação em cada espaço, são diferentes. Isto também
significa que um mínimo para todos os sujeitos não os presenteia
com as mesmas oportunidades. Caso falássemos de uma competição
de atletismo, em que na linha de chegada estivesse o que a
sociedade aprendeu a chamar de “sucesso na vida”, diríamos que
alguns já largam muitos metros à frente. Poder-se-ia argumentar
- 132 -
contra esta conclusão citando exceções. Importa, no entanto, o fato
de haver, por trás de todas elas, uma regra/regularidade histórica.
Esta relação entre escola, sociedade e trabalho está na base
do Art. 1º da Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que diz que
“A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à
prática social”. É da ordem da evidência esta vinculação, tão óbvia e
transparente que inibe questionamentos, mesmo em muitos
discursos que afirmam enfrentar e contestar o sistema, como o do
hip hop, com respeito às condições previstas na preparação a que a
lei se refere e sobre os pressupostos do objetivo de conquistar um
espaço no mundo do trabalho.
Na história das relações entre o homem e a escola, Orlandi
(2004) nos explica muito bem que “a racionalidade, a ciência, é o
móvel considerado fundamental: a relação da escola é
precipuamente a relação com o conhecimento, este sendo
considerado como modo de integração social” (ORLANDI, 2004, p.
152). Segundo a autora, isto sempre esteve na ordem do dia, seja nos
projetos em que ler, escrever e contar subordina-se à tarefa de
instruir, educar e civilizar, seja em outros tantos planejamentos
fundamentados na inserção dos cidadãos na sociedade, sempre
submetidos à religião e/ou Estado.
- 133 -
A tarefa reservada à escola de promover a formação e
contribuir com a integração social do “cidadão civilizado” faz circular
um imaginário de cidadania que apaga a historicidade que perpassa
os sentidos e, sendo assim, os sujeitos, já que os sujeitos se
identificam no/com os sentidos produzidos.
Quando o projeto de formação fracassa, o sujeito é significado
como “não-cidadão”, irresponsável com o bem-estar social. O
resumo da ópera é que a educação formal promove o apagamento
da necessária relação entre a produção de conhecimentos e a
possibilidade de abertura para considerações que vão na contramão
da repetição, promovendo-se o (não) reconhecimento do sujeito
naquilo que lê – e posteriores questionamentos/inconformidades –
naquilo que (se) diz sobre si e seu lugar na sociedade, e também no
que nega em termos de efetiva participação política.
De acordo com Orlandi (2004), a escola se textualiza sob o
modo do pedagógico, da transmissão de conhecimento, da formação
de cidadãos, e assim conduz o discente através de modelos de
conduta, de projetos. E, nessa esteira, inibe-se a compreensão da
historicidade que constitui certos preceitos. O que importa,
sobremaneira, é amarrar a interpretação a sentidos irreflexivos de
contribuição para um mundo melhor, sonegando as mazelas
- 134 -
produzidas na/pela administração pública em relação às políticas
educacionais.
Imerso em evidências de sentido, em meio ao envolvimento
por discursos que circulam na escola para/pela construção dessa
imagem de cidadão de que fala Orlandi (2008), o sujeito,
habitualmente, não se depara com as contradições de se pensar a
construção de um mundo melhor para se viver pela ótica de um
Estado que o condiciona à desumanidade. Pelo apagamento dos
rastros que apontam para o modo de construção histórico dos
sentidos, a ideologia também torna evidente para o sujeito a
interligação entre o domínio da chamada "língua padrão" e o melhor
entendimento entre cidadãos em sociedade, o acesso a direitos
fundamentais e a maior probabilidade de ter a voz ouvida e as
opiniões respeitadas, livrando-se de preconceitos. É o que defende o
fragmento a seguir, presente no livro didático Português: Linguagens
(CEREJA; MAGALHÃES, 2006, p. 44):
- 135 -
Cereja e Magalhães (2006) reproduzem a evidência de que as
normas prescritivas para se falar e escrever bem, normas acessíveis a
todos, cujo aprendizado é um direito do cidadão, auxiliam na
promoção da igualdade linguística e, por meio dela, de certa
equiparação social, além de consentirem ao sujeito superar o
desprezo e conquistar visibilidade e respeito no requerimento de
seus direitos.
Na base dos dispositivos de que a escola se vale para
“ensinar” gramática, leitura e interpretação (decodificação de
significados, decifração das intenções do autor), está a construção de
um perfil de aluno, leitor e modelo de ensino do lugar de uma
tradição cultural que coloca o sujeito na origem do dizer, supondo
que a linguagem nasce no próprio sujeito, por força de sua vontade
(MARIANI, 2002). Encobre, portanto, que a ideologia, "através do
‘hábito’ e do ‘uso’, está designando, ao mesmo tempo, o que é e o
que deve ser, e isso, às vezes, por meio de desvios linguisticamente
marcados entre a constatação e a norma e que funcionam como um
dispositivo de retomada do jogo (PÊCHEUX, 2009[1975], p. 146, grifos
do autor).
Considerando o papel determinante da história na formulação
e circulação de sentidos e o espaço como constituído historicamente,
destaco um equívoco primordial no projeto de determinação para a
- 136 -
unificação dos saberes, através da adoção de um currículo mínimo
comum a todas as escolas do Estado do Rio de Janeiro. Em relação à
língua, a saber, à língua "impalpável", língua-longe, língua ideal
ensinada na escola, a constituição histórica de sua obrigatoriedade
de ensino não é sem fortes interesses políticos. A língua corrente,
esteja na boca do favelado, do playboy, do rico ou do pobre, é
indissociável, inapartável da história particular de cada espaço com
seus usos concretos identificados aos territórios em que circula,
construindo uma relação aguda entre língua e espaço.
O discurso da educação para a cidadania, da busca de
conhecimento para o reconhecimento na sociedade e para ocupar
posições privilegiadas no mercado de trabalho legitima, no processo
ensino-aprendizagem, a reprodução de “obstáculos epistemológicos”
(BACHELARD, 1996) que, no funcionamento do conhecimento,
impedem seu desenvolvimento. E livros didáticos como os de Cereja
e Magalhães (2006) atuam como instrumentos dos mais favoráveis à
reprodução do que Bachelard (1996) nomeia “obstáculo verbal”: "a
falsa explicação obtida com a ajuda de uma palavra explicativa nessa
estranha inversão que pretende desenvolver o pensamento ao
analisar um conceito, em vez de inserir um conceito particular numa
síntese racional" (BACHELARD, 1996, p. 27).
- 137 -
Em Pêcheux e Gadet (2012[1977]), p. 306), encontro o
esclarecimento de que o atraso do Terceiro Mundo e o fracasso
escolar das classes desfavorecidas
- 138 -
investimento político não se faz simplesmente no nível da
consciência, das representações e no que julgamos saber, mas no
nível daquilo que torna possível algum saber" (FOUCAULT,
1987[1975], p. 154).
As novas relações impostas na escola miram o mesmo alvo de
manutenção da ordem vigente. No fundo, o sistema educacional não
pretende melhorar o mundo por inteiro, mas a vida de quem estiver
interessado. Para os outros, há variados cursinhos
profissionalizantes, cadastros em filas de emprego, garantindo-se a
mão-de-obra necessária ao bom desenvolvimento da produção. Mas
há os que não se encaixam em nenhum espaço reservado de
antemão, os que resistem e não vestem de forma amigável os
cabrestos da dominação. Para esses, há polícia, casas de detenção,
mendicância (quando esta não se torna um empecilho), abrigos e
reticências.
Sentidos ideologicamente determinados para igualdade se
reproduzem respaldados pelo que, na lei, é significado como garantia
(um entrelaçamento entre político e jurídico). Tais sentidos se
consolidam como lugar-comum nas práticas familiares e escolares. As
evidências ideológicas de sentido culminam na interdição de
aberturas à interpretação, o que tende a impedir a compreensão em
relação à constituição histórica dos processos de significação, por
- 139 -
exemplo, em práticas escolares de leitura, escrita e disciplinamento
dos sujeitos. No caso da escola, é primordial que o professor ofereça
as condições necessárias para que o aluno seja capaz de
problematizar sua posição. Para isso, é necessário que o professor
também o faça.
Naquilo que é trazido como inequívoco nas falas de docentes,
educadores e familiares, está a consonância com/ressonância da
lógica meritocrática que atribui ao sujeito a responsabilidade por seu
sucesso e por seu fracasso. O que se apaga? Em resumo, o real das
desigualdades existentes nas condições que regem o exercício do que
se nomeia como cidadania.
Deixa-se em segundo plano, joga-se para debaixo do tapete,
sutilmente, os próprios princípios formulados no Art. 3º da lei
anteriormente mencionada: “igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola”. Consideramos que não esteja aí a base da
transformação. Contudo, nesse ponto limite até onde vai a
contestação do hip hop acerca da educação, algo de resistência de
produz. Há algo, portanto, que se abala, ao pelo menos jogarem-se
flashes nas condições de acesso à educação. Em não havendo abalo
ou visibilidade, é possível que também não se impusesse a
necessidade de apropriação política e mercadológica desses
discursos, como há muito tem ocorrido.
- 140 -
Sobre (não) reformismos em prol da igualdade
Segundo Marx e Engels (2009[1948]), as classes dominantes
sempre impuseram as ideias dominantes numa época. Dizendo
discursivamente, as classes dominantes sempre impuseram os
discursos que dominaram em diversas conjunturas históricas. Será
que esses movimentos sociais, como o hip hop, realmente seguem na
contramão das imposições, domínios e coerções do Estado? Eles,
factualmente, rejeitam ou acabam assimilando e reproduzindo
sentidos filiados a uma a rede em que se protegem as finalidades de
uma ideologia que quase tudo prevê para não ser surpreendida?
O objetivo do hip hop e demais tentativas de amplificação de
vozes abafadas é resistir para inverter essa dominação? Além de ser
incômoda a admissão da permanência de qualquer tipo de
dominação, perguntamo-nos se, em sendo esse o objetivo, trata-se
de um projeto possível de ser consolidado?
Apesar de promover resistências, não há, no hip hop, uma
ruptura com o funcionamento dominante. O anseio por igualdade de
direitos não problematiza a cartilha que define o que seja direito e
dever do cidadão. A requisição do rapper transita entre sua inscrição
dentre os que podem e devem usufruir daquilo que outros usufruem
no âmbito do capitalismo em sua vertente neoliberal. Se há o desejo
- 141 -
de promover a inversão da dominação, isto torna propícia a
afirmação de Paulo Freire de que “Quando a educação não é
libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor” (FREIRE, 1983).
A educação do mundo capitalista já é construída para não ser
libertadora, pois esta libertação deve ser em relação ao próprio
sistema. Não pode haver libertação de fato no interior de um
aparelho educacional totalmente moldado por um sistema em que,
parafraseando o poeta simbolista Augusto dos Anjos, por viver entre
feras, o homem sente necessidade de também o ser (ANJOS,
2001[1906]).
Mesmo na produção de imaginários que circulam no discurso
hip hop, a libertação de muitos está condicionada a aprisionamentos,
pois, mais que se invista em condições favoráveis à ascensão de um
cidadão, a mesma sempre dependerá do decesso de outro (s). O
ensino como um todo, a educação, a escola, enquanto regiões
institucionalizadas para a reprodução de sentidos dominantes, serve
à administração dos inúmeros tipos de exclusões e segregações.
De acordo com Mészáros (2008), a lógica do capital é
incorrigível, o que anula a eficiência real de qualquer reformismo em
políticas feitas para regular o político, debaixo do discurso de
amenização das diferenças sociais, de sua erradicação por completo.
- 142 -
Ao contrário, elas são acirradas, semeando-se entre os sujeitos que o
estudo é necessário para crescer na vida.
Qualquer reformismo em uma educação arraigada no
capitalismo não há de promover ruptura, ainda que atenda a
prementes demandas sociais, uma vez que a manutenção das
desigualdades, principalmente em países do Terceiro Mundo, é um
fator estrutural do sistema, para que esteja assegurada a
perpetuação de sua exploração a nível mundial (PÊCHEUX; GADET,
2012[1977]).
Sabendo que tudo é historicamente construído, cito outra vez
Mészáros (2008) – com o todo otimismo escasso em ingenuidade –,
para dizer que “é completamente inconcebível sustentar a validade
atemporal e a permanência de qualquer condição criada
historicamente” (MÉSZÁROS, 2008, p. 63). E ratifico a indagação:
“Para que serve o sistema educacional – mais ainda, quando público
–, se não for para lutar contra a alienação? Para ajudar a decifrar os
enigmas do mundo, sobretudo o do estranhamento de um mundo
produzido pelos próprios homens?” (MÉSZÁROS, 2008, p. 63).
Contrariamente ao que nós cogitáramos há alguns anos, o
mapeamento dos modos como se constituem as segregações não é
óbvio, cristalino, a ponto de tornar simples qualquer tarefa que se
- 143 -
incline a metodizar sua estrutura, revelando-se causas e alternativas
de manipulação dos efeitos.
Ocupar o lugar de professor não significa acolher a realidade
(im) posta, naturalizá-la, ou fazer o que é possível no interior de dado
contexto. Tal postura é passível de ocasionar pelo menos dois tipos
de atitudes repudiáveis diante da incumbência de educar: a) jogar a
toalha, desacreditando-se de vez do outro (o que não pode ser
descartado como modo de resistência); b) estar profundamente
capturado, sem que se saiba, pelas teias das evidências do que deve
e do que não deve ser ensinado/aprendido para a formação de um
cidadão “de bem”. Esta última atitude caracteriza uma forma de
educar aliada à conformidade que conscientiza sobre
responsabilidades, alerta sobre penalidades e presenteia com
recompensas. Tal funcionamento é de tal modo absorvido que, não
raro, associa-se à existência de uma lei natural invisível inerente à
vida. No entanto, esta invisibilidade e/ou suposta natureza das
coisas, como já foi afirmado, possui materialidades, historicidades.
É preciso, com base nas interpretações (e estas consistem em
um exercício imprescindível), empenhar-se na formulação de
métodos, para que a prática teórica indispensável não fique tão
distante de outras práticas igualmente urgentes, o que é
minimamente problematizado no artigo A escolarização da língua
- 144 -
nacional (SILVA, 2007), que integra o livro Política Linguística no Brasil
(ORLANDI, 2007). Não se trata, então, de uma relação entre teoria e
práticas, mas de relações recíprocas, de retro-determinações entre
práticas que se vinculam. Conforme Marx (2013[1867]), mais do que
apenas interpretar o mundo, é necessário mudá-lo. Isto passa, sem
dúvida, por uma contínua revisão pelo sujeito de seu próprio
trabalho.
Sobre o que cabe ao professor, convém reforçar
determinados movimentos de repúdio da classe (não generalizados)
em relação ao estigma de herói que lhe foi historicamente atribuído.
Ele não é, definitivamente, um defensor dos fracos e oprimidos que,
por amor à profissão, tudo suporta, como um missionário da
educação. Contra eminentes revoltas, ergue-se o estratégico discurso
de devoção como combustível para a superação de empecilhos, o
que aquieta muitos entusiasmos, silencia a necessidade de
transformação, ao passo que encobre deficiências graves, como
defasagens salariais e precariedade estrutural.
A interferência sobre o contexto deve ocorrer por meio de
uma intercessão sobre o bloqueio à interpretação, engendrado
através de práticas discursivas que circulam em instituições sociais,
uma intervenção basilar para o desenvolvimento das modificações
que se pode promover através da prática docente.
- 145 -
Não se trata, portanto, de fazer o que é possível, dar um
“jeitinho”, ignorar as circunstâncias, ou mesmo reformar as práticas
institucionais aqui e acolá, enquanto práticas sociais que determinam
práticas discursivas, dentro do que é estabelecido de cima. Trata-se
de brigar pela emancipação do pensamento, para que, de certa
forma (por que não?), se possa, finalmente, por meio da educação,
da leitura e da produção de conhecimento, afrontar o sistema,
estremecer suas bases, através da abertura à possibilidade de
deslocamento dos sentidos e dos sujeitos de suas posições.
Tudo isto exige sublinhar fortemente que posição não é
partido político e que ideologia não é ideologia política explícita. E tal
afirmação também demarca um desencontro com os imaginários que
insistem em cristalizar a existência de um lugar completamente em
suspenso para o cientista e para o professor, dotado de pura razão,
absolutamente imparcial, o que supõe um fora do ideológico. Este
talvez seja também um lugar de conforto que inviabiliza (ao isentar o
sujeito de) práticas organizadas de intervenção. Cito Bourdieu (2001,
p 13), para reforçar que apenas a reunião “daqueles que,
pesquisadores ou militantes, têm algo com que contribuir para o
empreendimento comum poderá construir o formidável edifício
coletivo digno, de uma vez por todas, do aviltado conceito de projeto
de sociedade".
- 146 -
A convivência do luxo com a miséria, a hiância
socioeconômica que reparte os seres humanos em classes, é
sustentada por um esforço contínuo em favor da reprodução de
práticas que renovem o fôlego e lubrifiquem as engrenagens do
capitalismo. Portanto, todo esforço coletivo disposto em sua
contramão há de surtir efeitos. Se linguagem é disputa de sentidos,
se são os processos ideológicos que determinam sentidos
estabilizados – ainda que provisoriamente –, outros sentidos são
sempre possíveis.
Mudanças realmente relevantes nos alicerces da sociedade só
terão início quando houver uma educação comprometida com a
formação de sujeitos aptos a promover modificações urgentes. Mas
esta educação apenas será possível de ser planejada se estiver
totalmente desvinculada da lógica do capital, calcada em um modelo
contra-hegemônico. Como pensar um modelo contra-hegemônico
sem que haja as condições necessárias para que seja consolidado?
Como pensar em uma drástica ruptura tendo de lidar, enquanto
professor, com todos os cerceamentos que atravessam a prática
docente, que vão do cumprimento sistemático de cartilhas a
advertências e punições de toda ordem? Como construir novos
caminhos sem ceder à aparente necessidade de ocupar um lugar na
base do modelo de democracia burguês?
- 147 -
É fundamental que a relação entre aluno e professor se
constitua como uma via de mão dupla na construção da leitura como
objeto de conhecimento (ORLANDI, 2008), e que ambos
compreendam que o conhecimento não se resume a conteúdos
armazenados em ambientes como a escola, mas que ele está na
relação estabelecida entre o sujeito e seu entorno. Trata-se de um
conhecimento que a própria escola precisa (re) conhecer, não como
contexto em que ela se insere, mas “como o que dá forma à vida
social. As atividades devem levar à compreensão da construção social
desse espaço” (ORLANDI, 2004, p. 155-156).
A reflexão sobre o funcionamento da linguagem, sobre a
possibilidade de deslizamento dos sentidos e deslocamento dos
sujeitos é negligenciada naquilo que rege as práticas de leitura na
escola (ROMÃO; PACÍFICO, 2006, p. 16). O professor não deve
preocupar-se em estar sempre no lugar de quem sabe, impondo ao
aluno o lugar de quem não tem nada a ensinar. As histórias do aluno
dotam-se de diferenças que devem ser considerados enquanto
elemento das convivências que se constroem na escola, de modo que
a interpretação que ele faz de um texto possa ser reconhecida
enquanto relacionada a sua vida como sujeito (ORLANDI, 2008). Tais
questões demandam uma reflexão constante sobre possibilidades de
- 148 -
intervenção que objetivem produzir importantes movimentos na
história.
Um professor analista do discurso possui como alternativa a
entrada pelo viés da historicização, que pressupõe superar métodos
de ensino que prezem pela mera repetição formal ou técnica, a fim
de investir em uma abordagem histórica voltada para um trabalho de
memória que torne possível a polissemia, um trabalho a partir do
qual o sentido “faz (outros) sentidos” (ORLANDI, 2004, p. 156). Isto
entendendo a filiação à Análise do Discurso como tomada de posição
a partir de um corte que produziu em sua fundação e permanece
produzindo desligamentos da teoria em relação à ideologia que
estabelece determinados sentidos como dominantes (PÊCHEUX,
2012[1966]).
Considerações finais
A historicidade que atravessa as vivências do aluno, ao
contrário de ser ignorada, precisa estar no ponto de partida em
processos de leitura, de modo que se abra para o discente a
oportunidade de ultrapassar a interpretação e chegar à
compreensão. Considerando-se que os sentidos sempre podem ser
outros e que os sujeitos sempre podem assumir outras posições nos
processos de significação, faz-se necessário garantir esta
- 149 -
possibilidade de deslocamento dos sujeitos, a fim de que estes se
tornem aptos a interromper movimentos de repetição do mesmo
(paráfrase), deixando-se revelar o diferente, o novo (polissemia)
(ORLANDI, 2012).
As falhas constitutivas dos rituais ideológicos podem abrir
para movimentos de resistência, como o hip hop - ainda que estes
não representem uma ruptura com o sistema vigente. Em seu papel
de ousar dizer o que costuma ser silenciado, o rapper não deixa de
promover uma abertura a imperiosas ressignificações.
Ocorre de certos movimentos de resistência serem
significados de maneira hostil, dando origem a discursos de
desespero/desestímulo, reproduzidos por/no que professores,
diretores, dirigentes de turno, inspetores designam como
"desinteresse por parte do aluno", “incapacidade cognitiva”, “falta de
educação”, “desrespeito” “preguiça” etc. E digo isto a partir do que é
atestado por Pêcheux e Fuchs (1990, p. 17), que tais resistências
estariam em
- 150 -
da letra; deslocar as regras na sintaxe e
desestruturar o léxico jogando com as palavras...
- 151 -
tempo, a resistência desses sujeitos constitui outras posições que vão
materializar novos (ou outros) lugares” (ORLANDI, 2012b, p. 103).
Desse modo, pode-se acionar de algum (outro) modo o projeto
pecheuxtiano de uma teoria das determinações histórias dos
processos de significação, fazendo operar práticas de produção de
conhecimento que reflitam sobre as inúmeras “formas pelas quais a
‘necessidade cega’ se torna necessidade pensada e modelada como
necessidade” (ORLANDI, 2012b, p. 105).
Em resumo, deve-se construir, em meio à própria
incumbência do ensino de língua, caminhos que levem o aluno a
inscrever-se onde é sempre apagado, a ser protagonista onde
costuma ser coadjuvante, quiçá questionando a própria escola,
intervindo sobre suas práticas, seu funcionamento, problematizando
a educação e o que se convencionou chamar de produção de
conhecimento. Assim se pode caminhar, passo a passo, rumo à
formação de sujeitos que sabem “discernir e reconhecer o conteúdo
e o efeito de sua ação interventiva nas formas sociais” (ORLANDI,
2015, p. 10), reconhecendo-se a relevância e importância, mas quiçá
indo além do que determinados movimentos sociopolíticos e
culturais como o hip hop têm produzido.
- 152 -
Referências Bibliográficas
- 153 -
Unicamp, 2013. Disponível em:
http://www.labeurb.unicamp.br/endici/index.php?r=verbete/view&i
d=43. Consulta em 16 de janeiro de 2016.
- 154 -
______. Linguagem e educação social: a relação sujeito, indivíduo e
pessoa. In.: RUA [online]. 2015, no. 21. Volume II - ISSN 1413-2109.
Consultada no Portal Labeurb – Revista do Laboratório de Estudos
Urbanos do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade.
http://www.labeurb.unicamp.br/rua/
- 155 -
ROMÃO, Lucília Maria Souza Romão; PACÍFICO, Soraia Maria
Romano. Era uma vez uma outra história: leitura e interpretação na
sala de aula. São Paulo: Difusão Cultural do Livro, 2006.
ŽIŽEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2011.
- 156 -
Resistência ao genocídio nas composições do Racionais
MC´S: criminologia e violência urbana
28
Professor (CNEC/FCG), Pós-Doutorando em Ciências Criminais. O artigo decorre
de pesquisas realizadas com bolsa CAPES no Programa de Pós-Graduação em
Ciências Criminais (PPGCCRIM/PUCRS).
- 157 -
testemunho vai aparecer/ E pode crer a verdade se omite/ Pois quem
garante o meu dia seguinte?”. Em um espaço de exceção, “a polícia
não demonstra sequer vontade de resolver ou apurar a verdade”:
vidas matáveis (AGAMBEM, 2002, p. 90), desprovidas sequer da
necessidade de ritualizar, processar ou legitimar burocraticamente o
extermínio.
O tratamento de inimigo dispensa qualquer mediação legal
(“eu não sei se eles estão ou não autorizados/ a decidir o que é certo
ou errado/ inocente ou culpado/ retrato falado/ não existe mais
justiça ou estou enganado?29”), sendo impossível sequer lembrar-se
de todos os que foram exterminados no genocídio em ato nas
periferias brasileiras e latino-americanas (“se eu fosse lembrar de
todos que se foram/ o meu tempo não daria pra falar”). Por isso o
papel do grupo no projeto ético é contar a “realidade das ruas”,
iniciando um processo não colaboracionista, realista, psicanalítico,
radical e extremista: terão que ser “perseguidos e esclarecidos/ tudo
e todos/ até o último indivíduo”.
O projeto é separatista, investe toda potência discursiva na
heterogeneidade forçada e violenta que caracteriza o processo de
exclusão do negro30 na sociedade brasileira e que não admite
29
“Pânico na zona sul” (1990).
30
Efetivamente do homem negro, considerando-se o pacto homossexual que
caracteriza essa fase da obra musical do grupo.
- 158 -
tergiversações e adiamentos típicos da lógica discursiva da integração
homogênea (“não fique parado/ será que você é capaz de lutar/ é
difícil, mas não custa tentar31”). “O sentido disto tudo está em você
mesmo” e no respeito aos irmãos de sofrimento, aqueles que
sobrevivem nas periferias brasileiras e radicalizam o projeto de
manutenção da heterogeneidade que não admite a denegação ou
diluição da diferença: “Hey boy/ o que você está fazendo aqui/ meu
bairro não é seu lugar/ e você vai se ferir32”. O grupo — formado no
final da década de 1980 e início da década de 1990 — deixa
transparecer em Holocausto urbano a precocidade do discurso, no
qual a questão geracional ainda era acentuada: E muitas vezes não
tem jeito/ a solução é roubar/ e os seus pais acham que a cadeia é
nosso lugar/ seus pais dão as costas/ para o mundo que os cercam/
ficam com o maior e melhor /e para nós nada resta.
O patriotismo deve ser substituído por outra lógica de
pertencimento, consciente da história violenta do lugar e da
indiferença com o sofrimento negro (“com nossa vida ninguém se
importa/ e ainda querem que sejamos patriotas”). Tal consciência
não implica na rejeição ao lugar (“por que esse é o meu lugar/ e eu o
quero mesmo assim”), mas na demarcação de uma divisão ética,
31
“Beco sem saída” (1990).
32
“Hey boy” (1990).
- 159 -
espacial e estética precisa: da ponte pra cá e da ponte pra lá33. Tal
demarcação decorre da situação diversa na qual estão implicados,
em que “continuar vivo é uma batalha” e é preciso estar “sempre
quente”. Ainda assim, não cabe vitimização; o projeto é ativo e não
admite ressentimento, pois exige luta, batalha e revolta ativa cujo
cerne é “não tenha dó de mim”.
O projeto de relacionar o cotidiano periférico com o sistema
prisional — denunciando a lógica segregacionista como um arranjo
político imbricado com o sistema jurídico — aparece desde esse
primeiro álbum (“então eu digo meu rapaz/ esteja constante ou
abrirão o seu bolso/ e jogarão um flagrante/ num presídio qualquer/
será um irmão a mais/ racistas otários nos deixem em paz34”),
conjuntamente com a expressão da consciência sobre o genocídio da
raça negra (“e nossos ancestrais/ por igualdade lutaram/ se
rebelaram e morreram/ e hoje o que fazemos?”) e a percepção dos
estereótipos político/etiológicos da contemporaneidade (“enquanto
você sossegado foge da questão/ eles circulam na rua com uma
descrição que é parecida com a sua/ cabelo, cor e feição/ será que
eles veem em nós um marginal padrão?”). “Racistas otários” termina
com a negação sarcástica do hibridismo cordial: “O Brasil é um país
33
Da ponte pra cá (2002).
34
“Racistas otários” (1990).
- 160 -
de clima tropical, onde as raças se misturam naturalmente e não há
preconceito racial”.
Neste contexto, uma das saídas é a “vida bandida”, que
carrega consigo a garantia de que não serão “engraçados dessa vez”
e irão manter “afro dinamicamente” a voz ativa e a honra viva de
figuras como Nelson Mandela e Malcolm X: “negros até os ossos, um
dos nossos; de sangue e coração”, diz “Voz ativa”, no segundo álbum
Escolha seu caminho, de 1992. No primeiro álbum, a ideia de um líder
ainda estava candente, um líder de “crédito popular”, consciente da
história de exploração da raça negra (“400 anos depois... tudo igual/
bem vindos ao Brasil colonial e tal35”) e disposto a ter disposição para
a revolução simbólica que estavam iniciando (“planejam nossa
restrição/esse é o título/ da nossa revolução36”). Revolução pela
“cultura, educação, livros e escolas”, mas sabedores da limitação do
modelo progressista: “contra os racistas otários é química perfeita/
inteligência e um cruzado de direita/ será temido e também
respeitado/ um preto digno/ e não um negro limitado”.
O projeto “malicioso”, mas “realista”, possui alicerces em
todos os aspectos do cotidiano, no viver um dia após o outro dia das
periferias brasileiras, das negociações tensas do comércio de drogas
35
“Voz ativa” (1992).
36
“Negro limitado” (1992).
- 161 -
aos fins de semana de lazer, como aparece no terceiro álbum do
grupo, de 1993, Raio X do Brasil:
37
“Fim de semana no parque” (1993).
38
“Fim de semana no parque” (1993).
39
“Homem na estrada” (1993).
- 162 -
paz/ dizer ao crime nunca mais/ pois sua infância não foi um mar de
rosas não/ na FEBEM, lembranças dolorosas então”), principal
característica do projeto civilizatório do grupo: mostrar a
continuidade e as interações entre as periferias e o cárcere — o que
até o momento inexistia na música brasileira, pelo menos como
projeto artístico-ético. As tentativas de rompimento com a
marginalidade estrutural que subjetiva as vidas matáveis (“o que eles
querem é mais um pretinho na FEBEM”) são sinuosas, tensas, difíceis
de serem contrapostas (“A justiça criminal é implacável/ tiram sua
liberdade, justiça e moral/ e mesmo longe do sistema carcerário/ te
chamarão para sempre/ de ex-presidiário”). A rotulação que
obstaculiza o rompimento com os aliados do crime, a polícia que age
como inimiga e a ausência de qualquer amparo estatal conduzem à
estratégia individual de segurança (“a minha segurança eu mesmo
faço”) que invariavelmente encontra um fim trágico:
- 163 -
consequência o julgamento realizado pela fratria: “De que valem
roupas caras/ se não tem atitude? /de que vale a negritude/ se não
pô-la em prática? /a principal tática/herança da nossa mãe África/ a
única coisa que não puderam roubar. No álbum posterior,
Sobrevivendo no inferno, de 1997, o primeiro a ganhar notoriedade
nacional e alguma dimensão internacional, o discurso tornou-se mais
complexo, o que inclui os paradoxos relacionados à utilização da
violência como resistência social e racial, tanto simbólica (“Meu estilo
é pesado e faz tremer o chão/ minha palavra vale um tiro/ tenho
muita munição40”) como realista (“Se eu fosse aquele cara que se
humilha no sinal, por menos de um real/ minha chance era pouca/
mas e se eu fosse aquele moleque de touca/ que engatilha e enfia o
cano dentro da sua boca?41”). O relato dos espaços de exceção
periféricos permanece, assim como a crítica aos inimigos comuns da
fratria (“O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as armas, as
bebidas, as putas... Eu? Eu tenho uma bíblia velha, uma pistola
automática e um sentimento de revolta. Eu tô tentando sobreviver
no inferno42”).
A entonação e o timbre que antes lembravam um pedido de
ajuda próximo da vitimização agora aparecem com potência,
40
“Capítulo 4, Versículo 3” (1997).
41
“Capítulo 4, Versículo 3” (1997).
42
“Genesis (intro)” (1997).
- 164 -
disposição e expectativa de vitória pela palavra ou pela arma: “Minha
intenção é ruim/ esvazia o lugar/ eu tô em cima/ eu tô afim/ um, dois
pra atirar43”. O preto “100% veneno”, com arma, missão e
esclarecimento. O “preto” integralmente disposto a levar a guerra
até o fim (“Um sádico, um anjo, um mágico/ juiz ou réu/ um bandido
do céu/ malandro ou otário/ padre sanguinário/ franco atirador se
for necessário/ Revolucionário, insano ou marginal/ antigo e
moderno/ imortal”).
Violentamente pacífico, com estratégias de sabotagem à
leitura do Brasil cordial, “terroristas da periferia”, tendo como armas
tanto o “rap venenoso” como “uma rajada de PT”. Em 1997 a
situação de vida matável da fratria continuava igual: “Ó os caras... só
pele e osso/ no fundo do poço/ cheio de flagrante no bolso”). O vício
continuava sendo um dos inimigos comuns da fraternidade, como os
policiais (“Um dia um PM negro veio embaçar/ e disse pra eu me pôr
no meu lugar/ eu vejo um mano nessas condições/ não dá/ será
assim que eu deveria estar? “), os traficantes (“Contamina seu
caráter/ rouba sua alma/ depois te joga na merda sozinho/
transforma um Preto Tipo A/ num neguinho”) e as “mulheres
vulgares” (“Só mina de elite, balada, vários drink/ puta de boutique,
toda aquela porra/ sexo sem limite, Sodoma e Gomorra”). A fratria
43
“Capítulo 4, Versículo 3” (1997).
- 165 -
continuava sem pátria e sem mátria: órfã. Precisando de limite,
interdição, pertencimento, laço ético, amparo e identificação para
continuar “sobrevivendo”:
- 166 -
aparentemente contraditórias entre sujeitos de camadas díspares,
frequentemente promovidas pelo rap nacional na década posterior.
A violência é cada vez mais tolerada, mas com a cisão racial e
social que já estava presente no álbum anterior, afirmação não
denegatória do ódio de classe: “Playboy forgado, de brinco, cú,
trouxa/ roubado dentro do carro na Avenida Rebouças/ Correntinha
das moça/ madame de bolsa, dinheiro/ não tive pai, não sou
herdeiro44”. A droga começa a ganhar ambivalência (“veja bem, veja
bem/ ninguém é mais que ninguém/ eles são nossos irmãos
também”), mas continua como um objeto relacionado ao
enfraquecimento do projeto construído pelo grupo (“Mas de cocaína
e crack/ whisky e conhaque/ os manos morrem rapidinho sem lugar
de destaque”). A relativização continua: a flexibilidade de preceitos
éticos não pode tornar-se indiferença, mas também não pode
aproximar-se do moralismo (“quem sou eu pra falar/ de quem cheira
ou quem fuma/ nem dá/ nunca te dei porra nenhuma”). O roubo
também já não é mais visto como uma estratégia errada, mas como
uma conduta de vida que deve ser tensionada com hipóteses
concretas (“Puta, aquele mano era foda/ só moto nervosa/ só mina
da hora/ só roupa da moda/ Deu uma pá de blusa pra mim/ naquela
44
“Capítulo 4, Versículo 3” (1997).
- 167 -
fita, na boutique do Itaim/ Mas sem essa de sermão, mano/ eu
também quero ser assim/ vida de ladrão não é tão ruim45”).
A decisão de ter “vida de ladrão” não retira o irmão da fratria,
não é uma decisão que coloque em risco a irmandade (“Pensei,
entrei/ no outro assalto eu colei e pronto”). No ethos remodelado
pelo grupo, está em pior situação o trabalhador negro e pobre que
defende o patrimônio do playboy (“não vai dar mais pra ser super
herói/ se o seguro vai cobrir/ foda-se daí”) do que o bom ladrão com
“moral na quebrada” (“ladrão dos bons/ especialista em invadir
mansão/ comprava brinquedo à revelia/ chamava molecada e
distribuía”). Mas a própria música desfaz a ilusão e retorna ao
problema ético inicial (“o cara é gente fina/ mas eu sou melhor/ eu
aqui na pior/ e ele tem o que eu quero/ joia escondida e uma 380”): a
dissolução da fratria.
Neste momento agônico, a vida inteira é apresentada como
forma de reconstituir o laço ético ameaçado (“Lembro que um dia o
Guina me falou/ que não sabia bem o que era amor”), descrevendo o
início na vida do crime, os primeiros relacionamentos e discussões
existenciais (“Longe dos cadernos/ bem depois/ a primeira mulher e
o 22/ prestou vestibular no assalto do busão/ numa agência bancária
se formou ladrão/ não se sente mais inferior, neguinho/ agora eu
45
“Eu tô ouvindo alguém me chamar” (1997).
- 168 -
tenho meu valor”). Tudo isto para retomar as estratégias de
resistência periféricas e questionar a viabilidade do projeto:
46
“Eu tô ouvindo alguém me chamar” (1997).
47
“Rapaz comum” (1997).
- 169 -
baleado em “Eu tô ouvindo alguém me chamar”. “Rapaz comum”
começa dando a impressão de que o protagonista está sendo
carregado; espécie de hibridismo entre sonho, ilusão, agonia e
desespero. O novo momento agônico traz à tona a principal figura
para os irmãos, a lembrança da mãe (“No rosto de uma mãe que
chora baixinho/ que nunca deixou faltar, ficar sozinho/ me ensinou o
caminho, desde criança/ minha infância eu guardo na lembrança/ na
esperança da periferia eu sou mais um: rapaz comum”).
E, novamente, o discurso retoma o projeto ético e realiza
balizamento das formas de socialidade da ponte pra cá (“Uma bala
vale por uma vida do meu povo/No pente tem quinze/ sempre há
menos no morro/ e então?”), perguntando quantos manos comuns já
se foram, quantos pretos pobres com menos de quinze anos foram
mortos e como é possível aceitar um contexto em que é “normal ver
um mano coberto de jornal”. E recomeça o apelo: “Quem entra tem
passagem só de ida/ me diga: que vantagem isso traz?/ me diga: que
adianto isso faz?/ a vida na selva é assim, predatória/ preserve a sua
glória”. A tentativa é demarcar mais uma vez a opção política pela
definição das “vidas matáveis” e, sobretudo, ressaltar o contexto no
qual as vidas matáveis (“perder um filho dessa forma é foda”) são os
rapazes comuns das periferias, os manos:
- 170 -
[...] um corpo a mais no necrotério/ é sério/ um
preto a mais no cemitério/ é sério; mais uma mãe
que não se conforma/perder um filho dessa forma
é foda/quem se conforma; não sou o último/nem
muito menos o primeiro/ a lei da selva é uma
merda/ e você é o herdeiro.
48
“Diário de um detento” (1997).
- 171 -
cadeia, os problemas da cadeia são os problemas da favela: “esses
papo me incomoda, se eu tô na rua é foda/ O mundo roda, ele pode
vir pra cá/ Não, já, já o meu processo tá aí/ eu quero mudar/ eu
quero sair”.
Em música sobre uma instituição de sequestro, Brown começa
a citar inúmeros bairros periféricos, colocando o elemento da
complementaridade entre prisão e periferia. Um “ladrão sangue
bom” para o Estado é “um número” ou “uma sentença”. Como na
periferia, a segurança é no máximo uma perfectibilização trágica:
“lealdade é o que todo preso tenta/ conseguir a paz de forma
violenta”. O processo não é cordial, não elimina a necessidade de
violência, não converge na síntese, mas na divergência. Não se trata
de produzir violência, mas de não ser ingênuo (“se tomar um soco,
devolve49”) e responder ao cotidiano genocida: “Ratátátá/ caviar e
champagne/ Fleury foi almoçar/ que se foda minha mãe/ cachorros
assassinos, gás lacrimogêneo/ quem mata mais ladrão ganha
medalha de prêmio50”. A música termina com a frase que poderia ser
dita em uma abordagem na favela, uma operação no baile, um
julgamento no tribunal ou no testemunho de um massacre: “Mas
quem vai acreditar no meu depoimento?/ Dia 3 de outubro, diário de
um detento”.
49
Mano Brown, citado por Maria Rita Kehl (1999).
50
“Diário de um detento” (1997).
- 172 -
A música que sucede “Diário de um detento” começa com
uma descrição: “Este lugar é um pesadelo periférico/ fica no pico
numérico de população51”. Não creio ser coincidência “Periferia é
periferia” estar logo após “Diário de um detento”; a proximidade das
músicas acompanha a proximidade dos territórios e a lógica da
construção discursiva do grupo: demonstrar a similaridade entre as
instituições de sequestro e os espaços de depósito dos refugos
humanos no espaço urbano, ambos a-bandonados (AGAMBEM, 2002,
p. 91). Começa, novamente, com a lembrança da herança mítica e da
função materna: “herdeiro de mais uma Dona Maria/ cuidado,
senhora, tome as rédeas da sua cria52”. A mátria não é o oposto da
fratria, mas há uma relação que depende do precário equilíbrio de
ambas. Tudo isto em um contexto ancestral que repete,
sintomaticamente, as mesmas questões: “se a escravidão acabar pra
você/ vai viver de quem/ vai viver de quê?”. É guerra, é selva, é
pesadelo: “nas ruas áridas da selva/ já vi lágrimas demais/o bastante
para um filme de guerra”. O escravo urbano com “sangue no olho e
impiedoso” sabe que sua raça está morrendo, não pode ser ingênuo,
mas também não pode ser pacífico demais, não pode esquecer-se do
projeto e não pode ser inofensivo.
51
“Periferia é periferia” (1997).
52
“Periferia é periferia” (1997).
- 173 -
Aumentando a complexidade, a ambivalência continua em
um processo de intensidade que só exclui a violência contra os
irmãos: “pedir dinheiro é mais fácil que roubar, mano/ roubar é mais
fácil que trampar, mano/ é complicado, o vício tem dois lados/
depende disso ou daquilo, ou não/ tá tudo errado”. O compromisso
ético decorrente do extermínio é o único que sempre prevalece: “fico
triste por saber e ver/ que quem morre no dia a dia é igual a eu e a
você/ e a maioria por aqui se parece comigo/ mães chorando, irmãos
se matando, até quando?/ em qualquer lugar, é gente pobre”. A
música termina, mais uma vez, com um apelo: deixe o crack de lado,
“escute o meu recado”.
Quase todos os grupos de rap nacional possuem músicas com
o relato amplo de uma noite de lazer, narrando desde a saída até o
retorno para casa; a convivência com a rua é um pressuposto. Como
o rolê para os pichadores. A música do grupo Racionais que mais se
enquadra nesta definição chama-se “Em qual mentira eu vou
acreditar” (“Zona Norte a bandidagem curte a noite toda53”) e passa
pela apreciação do funk (“Tô devagar/ tô a cinquenta por
hora/ouvindo funk do bom/minha trilha sonora”), a seletividade do
sistema penal (“eu me formei suspeito profissional/ bacharel pós-
graduado em tomar geral”), o preconceito cordial (“escuta aqui, o
53
“Em qual mentira vou acreditar?” (1997).
- 174 -
primo do cunhado do meu genro é mestiço/ racismo não existe/
comigo não têm disso”) e as “mulheres vulgares”:
54
“Mágico de Oz” (1997).
- 175 -
Reminiscência do malandro recorrente nas letras de samba,
mas com outra intensidade de sofrimento (“A noite chega e o frio
também/sem demora, a pedra e o consumo aumentam a cada
hora/pra aquecer ou pra esquecer, viciar/deve ser pra se
adormecer/pra sonhar, viajar na paranoia, na solidão/um poço fundo
de lama, mais um irmão”). Com menos de doze anos, o menino
protagonista da música “Mágico de Oz” já “viveu mais que muito
homem”. O grupo elabora novamente a relação do traficante com os
inimigos da fratria, aquele que “por dinheiro e fama” traz o crack
para a periferia. Borda novamente a relação entre o tráfico (forma de
produzir a estetização consumista), as “mulheres vulgares” (“Só
bagaceira, só/ o dia inteiro, só / como ganha o dinheiro?/ vendendo
pedra e pó/ rolex, ouro no pescoço à custa de alguém/ uma gostosa
do lado/ pagando o pau pra quem?”) e os policiais (“a polícia passou
e fez o seu papel/dinheiro na mão/corrupção à luz do céu55”). Não
cansam de repetir, insistem no convencimento horizontal e na
necessidade de manter o pacto (“história chata, mas cê tá ligado, é
bom lembrar/ quem entra... é um em cem pra voltar”).
A música que fecha o álbum Sobrevivendo no inferno chama-
se “Fórmula mágica da paz”, um sample da música “Attitudes” do
grupo americano The Bar Keys e mantém uma melodia lenta, com
55
“Mágico de Oz” (1997).
- 176 -
tom nostálgico. É a música do grupo que mais lembra o mistério do
samba (Vianna, 2002), com a favela vista como local de retorno e
tranquilidade (“na roda da função, mó zoeira/tomando vinho seco,
em volta da fogueira/a noite inteira, só contando história/sobre o
crime, sobre as treta na escola”). Repassa todos os temas: as
mulheres (“nada de roupa, nada de carro, não tem ibope, não tem
rolê, sem dinheiro... sendo assim, sem chance, sem mulher... você
sabe bem o que ela quer”), a morte precoce (“muito velório rolou de
lá pra cá... qual a próxima mãe que vai chorar?”), a autoproteção
(“morrer é um fator, mas conforme for... tem no bolso, na agulha e
mais cinco no tambor”), a nostalgia de criança (“época de pipa, o céu
tá cheio/quinze anos atrás eu tava ali no meio”), a ligação entre
prisão e periferia (“uma pá de mano preso chora solidão/uma pá de
mano solto sem disposição”), a droga (“rádio tênis calça... acende
num cachimbo, virou fumaça”), a potência da fratria (“e aí Mano
Brown, cuzão, cadê você?/seu mano tá morrendo/ o que você vai
fazer?”), a ambivalência que sempre retorna confundindo os códigos
do laço comunitário (“preto, branco, polícia, ladrão ou eu?/quem é
mais filha da puta eu não sei”) e o racismo genocida (“dois de
novembro era finados/eu parei em frente ao São Luís do outro lado/e
por mais de meia hora olhei um por um/ e o que todas as senhoras
- 177 -
tinham em comum?/ o rosto humilde, a pele escura, o rosto abatido
pela vida dura”).
Ao final, provocam uma reflexão triste, como se o projeto
ético não tivesse mais esperança alguma (“assustador é quando se
descobre/que tudo deu em nada/e que só morre pobre/a gente vive
se matando irmão/ por quê?/não me olhe assim/eu sou igual a
você”), mas o rap não pode abrir mão dele (“descanse o seu
gatilho/descanse o seu gatilho/que no trem da malandragem/meu
rap é o trilho”). Trilho que o manteve vivo (“cheguei aos 27, sou um
vencedor”): “mais um sobrevivente”. O álbum encerra bordando
novamente o elo entre periferia e prisão (“eu vou mandar um salve
pra comunidade do outro lado do muro/as grades nunca vão prender
o pensamento mano”) e conclamando aos “aliados espalhados por
todas as favelas do Brasil” que continuem fazendo do rap... “a trilha
sonora do gueto”.
O cenário estético da performance do grupo nos álbuns
posteriores é bastante nítido para aqueles que estão interessados em
expressões culturais produtoras de discursos criminológicos
periféricos, em que a ausência de compromissos institucionais
proporciona fala vivaz dos dilemas criminológicos. As roupas são
alegóricas: camiseta e calça extra G, boné aba reta, tênis All Star e
lenço de seda — representando a memória do malandro, em quem a
- 178 -
seda fazia deslizar a navalha fatal nas disputas dos capoeiras. A
presença maciça de homens-meninos lembra a fratria homossexual
problematizada por Maria Rita Kehl56, em constante elaboração e
superação.
Os motivos da construção estética, os sentidos da construção
do ethos, que se revelam possíveis de uma interpretação racional, e a
possibilidade de associar cada fragmento visual com uma explicação
razoável (o microfone seguro com força de cabeça pra baixo, a
postura firme, o olhar agudo etc.) é algo esperado para leitores e
pesquisadores do tema. Porém, não estamos trabalhando com a
lógica linear comum aos trabalhos científicos nos quais uma
referência acadêmica vai precedendo outra até chegar ao conceito
final ou houver colisão com outras referências acumuladas no
sentido contrário. Como refere Barthes, acerca da fotografia, os
técnicos aproximam demais, e os teóricos vão excessivamente
longe57.
No cenário das apresentações há um gigantesco palhaço (o
termo mais aproximado seria Trump ou Bufão) de olhos vermelhos
sorrindo satiricamente no cenário supostamente realista de um palco
de rap. Essa cisão, este desencaixe lógico, esta dissonância é o que
56
KEHL, Maria Rita. A fratria órfã: conversas sobre a juventude. São Paulo: Olho
d’Água 2008.
57
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: 2012,
p. 31.
- 179 -
Barthes denomina punctum da fotografia. Referência de alguma
forma excessiva, destacada, agressiva. O que punge, o que fere, o
que mortifica, o que para o olhar é o deslocamento da racionalidade
que a presença de um palhaço provoca em um cenário realista que
serve de palco à uma fachada com poucas — muito poucas —
alusões simbólicas. Lucia Nagib faz bonita leitura do filme O invasor58,
demonstrando que a pretensa aproximação do filme com a realidade
(o seu realismo, tornando-o quase documental) esconde uma lógica
de produção criativa fantástica59. A estética sugere uma forma
documental (câmera na mão, acompanhando o movimento dos
personagens), mas a narrativa aproxima-se de uma fábula,
elaborando metáforas simbólicas e salientando traços que excedem a
expectativa de quem observa uma descrição realista.
No caso do cenário do Racionais, o que faz um palhaço
sorrindo no fundo do cenário? O palhaço representaria a sedução
mortífera do mundo do crime a que estão sempre sendo tentados?
Parece leitura excessivamente literal, compreensão linear,
preguiçosa. O bufão desconcerta a fotografia. Não agride, mas
transgride. A transgressão exerce papel semelhante ao punctum
referido por Roland Barthes em A câmara clara. Transgressão
58
O invasor. Direção: Beto Brant. Brasil: Europa Filmes, 2001. 1 DVD (97 min).
59
NAGIB, Lúcia. A utopia no cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.
166.
- 180 -
designa infração, violação — mas também o movimento das águas do
mar ao invadir um trecho de continente60; subversão, mistura,
invasão. Como integrar a leitura de Maria Rita Kehl sobre a eficácia
do discurso do grupo em evitar que os jovens se choquem de
maneira suicida contra o genocídio estatal com músicas nas quais a
narração é o planejamento de um assalto a banco mal sucedido e nas
quais a morte é trágica e não dramática (o que inclui seu aspecto
sedutor e prazeroso)? Lembro-me do palhaço, da sinuosidade, das
afirmações dúbias, do jogo existencial. O discurso não é pacífico, não
propõe a manutenção de uma conformidade ingênua com a ética do
trabalho e da superação. O discurso é sincero e realista neste ponto,
o fantástico é a própria realidade. A extrema probabilidade da morte
no jogo trágico em que os sujeitos periféricos estão envolvidos não é
nunca velada: está sempre sendo exposta, demarcada.
Lembro-me do palhaço, inversão clássica na qual a
inconsistência racional da mensagem é o que mantém a força do
espetáculo. De alguma forma, os grupos de rap saíram do relato para
a narração etnográfica dentro da ótica da criação: mais próximos dos
últimos documentários de provocação da verdade (colocando em
crise a representação) de Eduardo Coutinho do que do cinema
60
HOUAISS, A. VILLAR, M. de S.; FRANCO, F. M. M. Dicionário Houaiss da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
- 181 -
verdade (desejo de apresentação integral do objeto) da narrativa
documental clássica.
No último show em Porto Alegre os membros do grupo
entraram em cena com máscaras da morte, caveiras montadas em
motos potentes (uma novecentas/ azul novinha61). Há uma década,
com o sol já nascendo, champanhes foram estouradas no palco,
abrindo o espetáculo. No palco deviam estar presentes mais de trinta
manos. Todos os shows contemporâneos possuem esta fachada: a
fratria em comunhão, a fratria em rito. A aceitação do trágico62
suporta a festa. O bufão não oferece respostas, o bufão sabe que não
existe o mundo imaginário e o mundo real. O que não leva para a
indiferença ética porque a dúvida não é colocada na importância da
palavra do outro, mas volta-se para a própria construção subjetiva —
permitindo os escapes, as inversões de trajetória. É muito mais uma
responsabilidade ética pela decisão de vida do que uma indefinição
61
RACIONAIS MC’s. Estilo Cachorro. Mano Brown [Compositor]. In.: Nada como um
dia após o outro dia; Cosa Nostra, p 2002. 2 CD (ca. 110 min). Faixa 6 (6min 29s).
62
Sobre o tema ver: LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. Petrópolis: Vozes,
2007, p. 77; MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas
sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003; NIETZSCHE, F. W. Ecce Homo: de
como a gente se torna o que a gente é. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM,
2003; NIETZSCHE, F. W. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
- 182 -
moral: “cada lugar um lugar/ cada lugar uma lei/ cada lei uma razão/
eu sempre respeitei63”.
Fazendo metáfora entre a ascensão dos “batalhadores”64 e do
grupo Racionais, possível afirmar que o orgulho da periferia não
implica na permanência separatista (“mas aê, se tiver que voltar pra
favela... eu vou voltar de cabeça erguida65”), mas na disposição em
transitar por espaços de mediação, mantendo a estética e a
identificação características do gueto (“Vários Opalas, mó carreata/ e
eu logo atrás da primeira barca Diplomata/ Tô dirigindo ali no
volante/ Opala cinza escuro/ 2PAC no alto falante66”).
No documentário inserido no DVD “Mil trutas, mil tretas67”,
Mano Brown caminha com alguns “manos” por um bairro de classe
média de São Paulo, identificando a “frieza” do espaço, sem criança
correndo, gente na rua, risadas... Menciona que pode chegar um
policial a qualquer momento perguntando o que fazem ali, cuja
63
RACIONAIS MCs. Fórmula Mágica da Paz. KL Jay e Mano Brown [Compositores].
In.: Sobrevivendo no inferno; Cosa Nostra, p 1997. 1 CD (ca. 70 min). Faixa 11
(10min 46s).
64
SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe
trabalhadora? Belo Horizonte: UFMG, 2012.
65
RACIONAIS MCs. Negro Drama. Mano Brown [Compositor]. In.: Nada como um
dia após o outro dia; Cosa Nostra, p 2002. 2 CD (ca. 110 min). Faixa 5 (5min 19s)
66
RACIONAIS MC’s. A vítima. Edi Rock [Compositor]. In.: Nada como um dia após o
outro dia; Cosa Nostra, p 2002. 2 CD (ca. 110 min). Faixa 6 (4min 59s)
67
MIL trutas, mil tretas. Direção: Ice Blue, Mano Brown, Roberto T. Oliveira. São
Paulo: Imovision, 2006. 1 DVD (226 min), NTSC, cor.
- 183 -
resposta já está preparada: “tô na cidade de São Paulo68”. A
possibilidade de transitar fora da “quebrada” não implica na negação
da comunidade, mas na assunção de espaços onde a
heterogeneidade pode encontrar-se: convivência de antagonismos.
Questão semelhante pode ser observada na ausência de relatos onde
tempo e espaço permitam que sentimentos possam sobreviver,
como era bastante regular em outras produções artísticas periféricas:
Eu te esperei minha querida/mas só te beijei depois da vida69.
Esta letra de Nelson Cavaquinho possui apenas dois
parágrafos. É uma fotografia do amor, e não é possível que seja outra
coisa. E são apenas dois parágrafos. Sem introdução, porque não
precisa. Um homem ama uma mulher por toda a mocidade, mas, por
algum motivo, só satisfaz o desejo de beijá-la quando ela morre, no
funeral. São apenas dois parágrafos, todos eles sobre um amor
pousado com beleza no narrador. Não sabemos se era um amor
correspondido, sequer sabemos se foi um amor declarado. Só
sabemos que o protagonista ama, e que o objeto do seu amor
morreu antes de receber o primeiro beijo. Apenas o lábio do
protagonista ainda mantinha calor quando houve o beijo. De alguma
forma, o único beijo não aconteceu. Mas o amor aconteceu.
68
Ibid.
69
VIOLA, Paulinho da. Depois da Vida. CAVAQUINHO, Nelson [Compositor]. In.:
Paulinho da Viola; São Paulo: EMI, p 1971. 1 CD (ca. 40 min). Faixa 6 (2min 54s).
- 184 -
Na canção “Eu te Amo”70, de Chico Buarque, todo calor é
trocado em uma confusão de veias que confunde até a direção do
sangue: “Se nós nas travessuras das noites eternas/ Já confundimos
tanto as nossas pernas/ Diz com que pernas eu devo seguir/ Se
entornaste a nossa sorte pelo chão/ Se na bagunça do teu coração/
Meu sangue errou de veia e se perdeu”. Há muito calor na canção de
Chico Buarque, uma canção de amor tão consagrada como a letra de
Nelson Cavaquinho. Metáforas afetivas que ressaltam a importância
do sentimento para o sujeito. Há o amor, a necessidade de amor.
Somos facilmente tocados por palavras que, colocadas em certa
ordem lógica, representem o amor: como uma fotografia consegue
captar o espanto em si, onde um cachimbo é sempre um cachimbo,
na brincadeira de Barthes com Foucault71.
A questão não é a existência de fidelidade, reciprocidade,
lealdade, generosidade ou correspondência do amor. Na verdade,
não há uma questão, há uma imagem afetiva. Um amor não precisa
ser recíproco, leal, generoso ou, de alguma forma, correspondido.
Amar já é uma resposta positiva da demanda de amor, mesmo que
não exista — sequer — troca de calor entre os corpos. As duas
canções trabalham com a imaginação para seduzir o ouvinte,
70
BUARQUE, Chico. Eu te amo. BUARQUE, Chico; JOBIM, Antônio Carlos
[Compositores]. In.: Vida; São Paulo: Universal Music, p 1980. 1 CD (ca. 45 min).
Faixa 3 (5min 05s).
71
FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. São Paulo: Paz e Terra, 1988.
- 185 -
dependem da percepção daquilo que toca no amor, fazendo com que
o ouvinte sinta o amor que está ali. Na primeira letra não acontece
uma das imagens mais significativas do amor: o beijo como troca de
afetos. Na segunda letra há intensa troca de afetos, convivência,
fluidos, sangue. A rejeição não mata o amor na letra de Chico
Buarque, como a morte também não mata o amor na canção de
Nelson Cavaquinho. De alguma forma, a desilusão amorosa é, em si,
amor que existiu — pelo menos na forma da ilusão. Há, nos dois
casos, espaço para o amor.
As letras do grupo Racionais expressam sentimentos
contraditórios sobre a mulher como objeto de amor, seguidamente
retratada como espelho legitimador do baixo prestígio social com
que são etiquetados (representado na rejeição das mulheres aos
signos de pobreza ostentados pelos sujeitos periféricos), aparecendo
como reprodução de um desprestígio social que não permite
sublimações comuns no samba, como fez Noel Rosa em “Filosofia”,
por exemplo: “Mas a filosofia hoje me auxilia /A viver indiferente
assim/Nesta prontidão sem fim/Vou fingindo que sou rico/ Pra
ninguém zombar de mim72”. Nas primeiras letras do Racionais nada
parece deixar espaço para a criação imaginária, não há como falsear
72
BUARQUE, Chico. Filosofia. ROSA, Noel [Compositor]. In.: Sinal Fechado; São
Paulo: Universal Music, p 1974. 1 CD (ca. 35 min). Faixa 3 (2min 20s).
- 186 -
o contexto no qual o amor pode se manifestar no tempo necessário
do acontecimento do amor.
Talvez por isto o tom rude em que o tema é resolvido ainda
antes da ilusão amorosa que poderia se desvanecer, desiludir. Tudo é
relação de forças, poder, dominação: “Fale o que quiser, o que é,
é/Verme ou sangue-bom tanto faz pra mulher/Não importa de onde
vem, nem pra quê/ Se o que ela quer mesmo é sensação de poder73”.
A ideia do amor está presente, mas na forma abortada daquilo que já
não poderia ser quando chega seu tempo. O amor é sempre expresso
no formato do amor pela mãe, enlace de afeto e gratidão. Pousada
em memória, presente ou distante. Amor que precisa ser sempre
relembrado, posto que raro amor.
Impossível não fazer a associação da mãe iludida de “Meu
guri74” — canção de Chico Buarque — com o guri que responde à
demanda de amor em Negro Drama75, mas não pode aceitar a
73
RACIONAIS MCs. Vida Loka – Parte I. Mano Brown [Compositor]. In.: Nada como
um dia após o outro dia; Cosa Nostra, p 2002. 2 CD (ca. 110 min). Faixa 4 (5min
03s).
74
“Chega suado e veloz do batente/ E traz sempre um presente pra me encabular/
Tanta corrente de ouro, seu moço/ Que haja pescoço pra enfiar/ Me trouxe uma
bolsa já com tudo dentro/ Chave, caderneta, terço e patuá/ Um lenço e uma penca
de documentos/ Pra finalmente eu me identificar”. BUARQUE, Chico. O meu guri.
BUARQUE, Chico. [Compositor]. In.: Almanaque; São Paulo: Universal Music, p
1981. 1 CD (ca. 35 min). Faixa 3 (3min 58s).
75
RACIONAIS MC’s. Negro Drama. Mano Brown [Compositor]. In.: Nada como um
dia após o outro dia; Cosa Nostra, p 2002. 2 CD (ca. 110 min). Faixa 5 (5min 19s)
- 187 -
opressão do Brasil cordial perceptível em cada passo cotidiano, laço
de afeto e política expresso em poesia:
76
RACIONAIS MC’s. Eu sou 157. Mano Brown [Compositor]. In.: Nada como um dia
após o outro dia; Cosa Nostra, p 2002. 2 CD (ca. 110 min). Faixa 9 (8min 49s).
77
Ainda que inexista conceito consensual sobre o termo, estou utilizando a leitura
de Maria Rita Kehl em: KEHL, Maria Rita. Ressentimento. 4 ed. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2011.
- 188 -
penca\De documentos\Para finalmente\Eu me
identificar (Meu Guri, Chico Buarque)
- 189 -
centralizadas, dispersas e desorganizadas, mas que falam muito
sobre o período contemporâneo.
Se o malandro de tempos passados possuía certa docilidade,
expressar-se musicalmente sem glorificar a reação sadomasoquista
da inversão de papéis e,concomitantemente, compreender a beleza
das transgressões criminais de grande porte é uma tarefa
problemática. Como construir uma expressão musical em que a
crítica social ultrapasse o tédio das explicações economicistas e, ao
mesmo tempo, exalte a transgressão de normas criminais que não
prescindam de ética e estejam acima da humilhação e violência
corporal, cotidianamente aplicadas às classes perigosas e, por isso
mesmo, vingadas? Em tese não seria uma tarefa impossível, visto
que a construção de normas não é algo necessariamente ético e,
portanto, sua transgressão reativa pode inclusive possuir maior
respeito ao outro que a própria normalização criminalizante.
Acredito que seja um dos objetivos do rap, embora a
percepção de que a postura sisuda produzia uma etiqueta vitimária
que enquadrava o grupo, desqualificando seu discurso, seja bem
mais recente. A transformação do malandro em marginal é estratégia
discursiva que legitima o extermínio das classes perigosas, agora
excedentes, já que o marginal está imbuído de uma estética
descontrolada, ao contrário do malandro sedutor e carismático, o
- 190 -
que favorece a aniquilação daquele. Trazer de volta a malandragem
para as trangressões marginais significa produzir um contra-discurso
para as políticas criminais genocidas, ao mesmo tempo que fortalece
uma identidade alternativa tanto ao modelo existencial do vencedor
(Olha lá, quem acha que perder\É ser menor na vida\Olha lá, quem
sempre quer vitória\E perde a glória de chorar\Eu que já não quero
mais ser um vencedor\Levo a vida devagar pra não faltar amor78)
como do ethos guerreiro pleno de ressentimento (A revolta deixa o
homem de paz imprevisível\ Com sangue no olho, impiedoso e muito
mais\ Com sede de vingança e prevenido79):
78
O vencedor, Los Hermanos.
79
Periferia é Periferia, Racionais.
- 191 -
vitimário e nem todo desalento lança o sujeito na violência reativa,
mas é bastante plausível que estejamos produzindo um terreno fértil
para ressentimentos impiedosos80 de alta complexidade, em que
todas as esferas sociais estão envolvidas. O bom malandro,
renascendo em músicas rap, parece ser a representação de um
sujeito que, dentro da criminalidade, supera a mera inversão
estrutural da violência e nega a etiqueta de maldade do
criminalizado: 157, um bom ladrão.
Entre virar folclore da indústria cultural e permanecer na
margem, existe um oceano de possibilidades. O ser humano não é
redutível a nada, portando a falsa dualidade entre inimigo social e
Robin Hood já poderia estar superada. Trazer complexidade para as
relações entre crime e maldade é umas das contribuições mais
significativas das letras de rap, apresentando o criminoso como
alguém não apenas ético, malandro e sedutoramente indócil, mas
qualificado pela cultura.
80
BIRMAN, Joel. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006, p. 75.
- 192 -
Referências Bibliográficas
- 193 -
KEHL, Maria Rita. Radicais, Raciais, Racionais: a grande fratria do rap
na periferia de São Paulo. São Paulo em perspectiva, São Paulo, v. 13,
n. 3, set. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
88391999000300013>. Acesso em 26 de junho de 2014. .
- 194 -
<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000879
867> Acesso em: 2014-06-24.
- 195 -
Representações literárias da Guerra do Paraguai em
Joaquim Manuel de Macedo e Machado de Assis
Introdução
Desde o início dos desentendimentos diplomáticos entre
Brasil, Argentina e Paraguai, que culminariam com a deflagração
formal da guerra, no final de 1864, a imprensa brasileira publicava
textos relacionados com o conflito e já produzia um conjunto de
imagens sobre a guerra que se anunciava. Assim demonstram, por
exemplo, os textos do cronista Machado de Assis, no Ao acaso:
(Crônicas da semana) (ASSIS, 2016), publicados no Diário de Rio de
Janeiro, entre junho de 1864 e maio de 1865. Ali, noticiando os
acontecimentos semanais, Assis comenta e atualiza o seu público
sobre os andamentos guerra e emite sua perspectiva sobre os
eventos que noticia, forma juízo e, como era natural naquele
momento, assume a posição de defesa das posições brasileiras na
disputa. Como a imensa maioria da população, Machado de Assis
apoia as tarefas de mobilização determinadas pelo governo e
contribui para ampliar os homens e os recursos disponíveis. Seus
textos, no período mencionado, dão conta dos movimentos da
81
Mestrando em Letras e Linguística, UFG.
- 196 -
negociação, da marcha das tropas paraguaias e do início dos
combates. Estas notícias são apresentadas e comentadas sob a
perspectiva nacionalista e patriótica, justificado pelo próprio Assis
quando, na crônica de 3 de janeiro de 1865, imediatamente após o
avanço dos paraguaios de dezembro de 1864, pergunta e responde:
“Haverá acaso duas opiniões e dois sentimentos nesta questão
nacional? ” (ASSIS, 2016, p. 76). Assis nem ao menos aceita a
possibilidade de debate sobre outros posicionamentos possíveis.
Assim como o Diário do Rio de Janeiro e Machado de Assis,
todos os demais jornais e escritores envolveram-se no processo de
mobilização patriótica que a guerra impunha ao Império, à Corte e
aos súditos. As sessões de “poesia” e os “a pedidos” dos jornais
estavam repletos de publicações relacionados com os combates já
travados e com os anunciados (SILVA, 2014). As notícias da invasão
ao Mato Grosso e da tomada da cidade de Uruguaiana dão lugar ao
movimento das campanhas de mobilização e recrutamento para a
formação dos batalhões de Voluntários da Pátria que seriam
imediatamente enviados ao front.
O tema estava tão presente que um periódico específico
sobre a guerra circulou semanalmente, entre julho e outubro de
1865, totalizando doze edições, uma marca considerável para a
época. O título era Paraguay Illustrado (PARAGUAY ILLUSTRADO,
1865) um jornal satírico com anedotas xenófobas e caricaturas
ofensivas do inimigo. O cadete Alfredo d’Escragnolle Taunay
- 197 -
relembra daqueles meses em Memórias (TAUNAY, 2004) e nos
informa da situação de expectativa e mobilização causada pelas
notícias dos primeiros embates no Sul:
- 198 -
Macedo e Machado de Assis. São autores representativos e servem
ao intuito de demonstrar as posições adotadas por parte da
intelectualidade brasileira em relação ao conflito do Prata. Macedo e
Assis são elementos centrais do sistema cultural brasileiro naquele
período, engajados na dupla militância destacada por Ricupero
(RICUPERO, 2004), produzem poesia, conto, romance em que
oferecem imagens e representação de acontecimentos que
impactaram sobremaneira a nacionalidade e, com esta produção,
lançaram as bases para as futuras interpretações e representações
dos acontecimentos daquela guerra pela literatura brasileira nos
anos e décadas seguintes.
- 199 -
justificam e mobilizam sob a bandeira da reação necessária para os
combates do Sul. O artefato literário é utilizado diretamente como
arma na organização da frente de guerra.
Produtivo e atuante na literatura, educação e política entre
1850 e 1880, Joaquim Manuel de Macedo não poderia silenciar-se
diante das questões impostas pela guerra, necessitava dar sua
contribuição. Era homem próximo ao poder central, íntimo de
Manuel de Araújo Porto Alegre e da Casa Imperial. Era uma
celebridade do mundo literário, produtor reconhecido dos primeiros
materiais didáticos nacionais de história, geografia e cultura. Obteve
inúmeras eleições e reeleições durante sua carreira de deputado
provincial e na Corte, esteve sempre ligado ao centro do poder
político e implicado nas questões de seu tempo. Sua produção
literária destaca-se pela publicação de folhetins breves e
sentimentais e pela crônica de costumes do segundo império.
Entretanto, em A carteira de meu tio, de 1855, e Memórias do
sobrinho de meu tio, de 1867-1868, emerge um Macedo distinto do
binômio crônica x folhetim. Os dois textos do sobrinho-narrador
apresentam uma terceira dimensão. A experimentação literária e a
construção de um narrador complexo mostram um escritor forçando
os limites da convenção romântica.
O culto do dever (1865) é a história da jovem órfã Angelina e
sua decisão entre a segurança do casamento ou o cumprimento das
obrigações exigidas pela pátria em tempos de guerra. Depois de
- 200 -
adiamentos e da morte do pai da jovem, Angelina e Teófilo estão
prontos para se casarem quando, 1865, estoura a guerra. Este é o
dilema colocado para Angelina e Teófilo: casar ou partir para a
guerra? Os dois jovens não vacilam, a pátria não pode esperar,
mesmo que a segurança e a subsistência de uma jovem órfã estejam
em questão. Angelina, ainda que desamparada, opta juntamente
com Teófilo para o engajamento do noivo na tropa que seguiria para
o Paraguai. Afinal, na fábula construída por Macedo, o dever para
com a pátria é o maior de todos.
O contraponto à decisão de Angelina e Teófilo nos é oferecido
pela mesma questão, casamento ou front, colocada para um outro
casal de noivos, Adeodata e Leopoldo. A noiva, prima de Angelina,
desprovida dos mesmos pendores patrióticos, decide pelo casamento
imediato com Leopoldo por razões exatamente contrárias as que
levaram Angelina e Teófilo adiamento da união. Os casados eram
preservados do envio imediato às frentes. Em um diálogo entre
Adeodata, Plácida e Angelina a questão surge, a prima é acusada de
ter sofrido de ciúmes da pátria e por isso realizar logo o casamento.
Adeodata tenta se explicar, justificando assim a decisão pelo
casamento imediato:
- 201 -
muitos mil os voluntários que têm marchado
contra o Paraguai; há valentes soldados demais:
um de menos não pode fazer falta (MACEDO,
1865, p. 262).
- 202 -
construção das personagens e lapsos de emprego da verossimilhança
em alguns episódios narrados. Insiste que a discussão sobre a
realização ou não de um “dever”, nos termos colocados por Macedo,
não advém simplesmente pela repetição de um mote a cada página
do texto. Ademais, o comportamento de Angelina e do noivo, Teófilo,
é considerado por Machado de Assis inverossímil em dois pontos: a
firmeza excessiva e repetitiva de Angelina e a desconversão
nacionalista de Teófilo, que de ardoroso defensor do engajamento na
guerra gasta tempo tentando persuadir Angelina do contrário. Em
resumo, na opinião de Machado de Assis, a obra de Macedo não
cumpria com as características estéticas exigidas pelo gênero
romance naquele momento, nem tinha a firmeza de defesa de um
ponto de vista irrefutável.
O culto do dever tem suas limitações estéticas diretamente
relacionadas com o momento de sua publicação e suas pretensões
imediatas de construção de um imaginário comprometido com a
guerra que se iniciava. O título está vinculado à demanda imediata de
discutir a guerra e inseri-la no cotidiano dos brasileiros. A
representação dos amantes/noivos que se separam em razão de
valores patrióticos enobrece e serve de exemplo a muitos casais que
viviam e viveriam situação muito similar à de Angelina e Teófilo. É
folheto de guerra, com objetivo imediatos, logo, limitado.
Macedo também tratará diretamente da guerra em Memórias
do sobrinho de meu tio (1867-1868), uma sátira política sobre o
- 203 -
Segundo Império, continuação de A carteira de meu tio, de 1855, em
que somos apresentados ao empreendimento quixotesco do
sobrinho-do-tio, a uma viagem pelo interior Brasil para conferir o
tratamento que recebia a “defunta”, assim apodada, a própria
Constituição do Império. Nas Memórias, este sobrinho-do-tio retoma
a empreitada, mas agora concentra toda sua energia em garantir
uma rápida ascensão social, econômica e política, não importando
nem com os meios e nem com os princípios que determinarão o
sucesso desta. Este sobrinho-do-tio é o nosso primeiro personagem
literário, declaradamente, sem nenhum caráter. Protótipo de
inúmeros personagens reais e literários que ocuparão a cena política
brasileira nas décadas seguintes. O contraponto ao sobrinho arrivista
e sem nenhum caráter é oferecido pelo compadre Paciência, um tipo
sóbrio, altruísta, embora sem posses, que por muito acreditar na
“defunta” e seus penduricalhos - a Constituição Império e o
ordenamento jurídico - passa um longo período encarcerado,
esquecido nas tramas burocráticas do sistema penal.
Macedo retoma os acontecimentos políticos brasileiros entre
1855 e 1868 para situar a aproximação do narrador, o sobrinho-do-
tio, ao centro do poder, neste movimento aborda os diversos eventos
do período, o clima político, as questões do funcionamento ordinário
da Corte e os fatos relacionados com a Guerra do Paraguai. Sempre
em busca do melhor para o seu projeto pessoal, o narrador-
personagem debocha do funcionamento do sistema político e sem
- 204 -
nenhuma reserva utiliza-se das contradições deste para conseguir
seus objetivos e justificar seu comportamento corrupto e
patrimonialista. Este narrador, o mesmo de A carteira de meu tio,
assim se apresentava:
- 205 -
uma consequência é uma necessidade justificada pelas
circunstâncias.
A guerra do Paraguai surge em alguns trechos da narrativa
como assunto de primeiro plano. Em três episódios a guerra e suas
consequências são tratadas diretamente: a) nos períodos da quarta e
da quinta presidências de província que o narrador assume e é
encarregado do recrutamento militar; b) nas discussões do Clube do
desgostosos a guerra é debatida e é justificada; c) nos arranjos de
Chiquinha com os seus bajuladores, um ministro e um deputado
membros do gabinete, para a compra de camelos e elefantes de uma
empresa chinesa para uso pelas tropas brasileiras durante a guerra.
Logo após se instalar no Rio de Janeiro, o Sobrinho inicia seus
contatos com o círculo poder e reivindica uma posição em troca de
pequenos favores. Como recompensa aos serviços prestados e um
reconhecimento intimatório pela publicação de um pasquim político
ele é indicado para a presidência de cinco províncias, enviado pela
corte para resolver conflitos locais e recuperar a autoridade central.
Todos estes mandatos tiveram como características principais o curto
período de duração, os muitos desmandos praticados e os
intrincados conchavos políticos necessários para alcançar os
objetivos da indicação. O sistema de ocupação destes cargos é
ridicularizado pela descrição sumária de seu funcionamento e de seus
objetivos imediatos.
- 206 -
É durante a quarta presidência provincial que o narrador se
envolverá diretamente com a guerra e suas possibilidades, proveito
financeiro em alguns momentos, político em outros. Assim, a tarefa
de recrutamento outorgada pela corte se transforma em uma
conveniente manobra eleitoral e também oportunidade para
conchavos e acordos entre os mais próximos ao poder:
- 207 -
aliás em todo caso condenável, a tal qual nobre afouteza agudeza do
inimigo forte e franco” (MACEDO, 2011, p. 273).
O recrutamento seletivo como arma para enfraquecer a
oposição também será um dos principais temas de governo na quinta
presidência de província que o sobrinho-narrador ocupa. Aos poderes
de convocação discricionária para compor o corpo de guerra somava-
se o comando dos órgãos policiais, garantindo ao grupo que
comandava o governo central força suficiente para vencer as eleições
provinciais.
- 208 -
A guerra no Prata e as suas consequências são temas
constantes dos encontros do clube dos desgostosos. As considerações
de todos estão direcionadas a alguns aspectos específicos: a
corrupção na intendência militar, a sua longa duração e as próprias
justificativas para o confronto com a nação guarani. Novamente aqui,
será o compadre Paciência quem oferecerá o contraponto às
opiniões dos que contestam as medidas de direção de guerra
implementadas pelo Imperador e pelo círculo mais comprometido
com estas decisões.
Em um dos debates do clube a questão da guerra surge
relacionada aos grandes problemas do país daquele momento,
meados de 1867, e suas possíveis soluções. Uma constatação é certa,
as finanças do Império estavam por demais comprometidas com os
gastos de guerra. “Enquanto durar a guerra é impossível regenerar as
finanças” (MACEDO, 2011, p. 307). A questão mais grave na opinião
do compadre Paciência nem era o preço pago pela guerra, mas a
apropriação indevida que grande parte dos agentes públicos, civis e
militares, faziam destas riquezas:
- 209 -
governo ainda não mostrou nem mesmo a rude
habilidade do negro velho que arma ratoeiras!... E
a consequência... (MACEDO, 2011, p. 307).
— Mas a guerra...
— É verdade: que julga vossa excelência da
guerra?
— Não se pode dizer tudo...
[…]
— A guerra é calamitosa: se não vencermos até o
fim de 1867, é preciso acabar de qualquer modo
com ela.
— Mesmo celebrando um tratado de paz com o
ditador Lopez?
(MACEDO, 2011, p. 308).
- 210 -
O clube dos desgostosos representa esta segunda parcela dos críticos
à guerra. O debate e assunto são encerrados, uma vez mais, pela
interferência do compadre Paciência que evoca os princípios
patrióticos e de honra em defesa da continuação da guerra até a
vitória total:
- 211 -
propor soluções estapafúrdias, mirabolantes e caras. Logo, muito
lucrativas para os envolvidos. A esposa do egoísta sobrinho propõe
ao governo, por intermédio de dois admiradores, um deputado e um
outro ministro, a compra de camelos e elefantes para apoio às forças
brasileiras no front: “E apenas por consolação me declara que será
possível... talvez... obter o contrato da compra de camelos, e
elefantes com a casa King-Toung-Fou-Ting da China, para servirem na
guerra do Paraguai” (MACEDO, 2011, p. 340).
A proposta chega a ser considerada pelo gabinete ministerial.
Há controvérsias sobre a efetiva necessidade de camelos e elefantes
na frente de batalha, buscam-se alternativas que garantissem as
negociações com a casa chinesa e a devida satisfação de Chiquinha.
Um fiel amanuense propõe como solução conciliatória:
- 212 -
do Alcázar. Revoltada e como vingança à infidelidade do marido,
Chiquinha desiste do negócio com os chineses e sabota as
expectativas de baronato que o próprio ansiava.
Tanto em O culto do dever como em Memórias do sobrinho do
meu tio Joaquim Manuel de Macedo oferece tratamento literário aos
temas relacionados com a guerra do Paraguai. No primeiro, o tema é
plano, há um apelo às questões de honra e dever para justificar e
estimular o engajamento popular no esforço de guerra que se
iniciava, já no segundo, o tema é mais problematizado, apesar de
prevalecer o mesmo aspecto ideológico como justificativa e razão
para a guerra, há o surgimento de outras opiniões e contradições
próprias de uma situação política como aquela.
Outra distinção necessária está relacionada ao estilo,
estrutura da narrativa e posicionamento do narrador de cada um dos
dois textos: Culto ao dever está vinculado ao paradigma dos folhetins
sentimentais de Macedo enquanto em Memórias do sobrinho de meu
tio temos alguns aspectos de inovação e exploração de novas
possibilidades formais, especialmente, de um narrador mais
complexo e que não segue fielmente àquele receituário romântico
iniciado no Brasil pelo próprio Macedo. Este narrador que domina e
centraliza o texto para sua afirmação em detrimento dos
acontecimentos e da ação, subverte convenções formais e será muito
explorado pelos autores que sucederam o professor de Itaboraí.
- 213 -
Machado de Assis
A guerra do Paraguai também estará presente na obra de
Machado de Assis, ora como cenário para a atuação das
personagens, ora como processo que muda e transforma em
definitivo as suas personagens. No início e durante o conflito há nos
textos de Machado uma adesão à causa da guerra como uma tarefa
patriótica, foi inclusive condecorado pelo Imperador por seus
serviços, mas já na virada do século, Machado registra as
transformações que a guerra provocou na sociedade brasileira com
olhar mais crítico, percebe as profundas transformações que a
campanha 1865-1870 provocou diretamente.
Se considerarmos a dispersão temporal das referências à
guerra nos poemas, crônicas, contos e romance – começam em 1865
e vão até 1908 – poderíamos afirmar que este é um dos temas
recorrentes na obra de nosso mais reconhecido ficcionista. Machado
nos apresenta diversos aspectos e cenas da guerra: a vida ordinária
da corte no período, os processos de recrutamento, as partidas para
as frentes de batalha e, sobretudo, as consequências pós-guerra para
muitos dos envolvidos no conflito.
Os primeiros textos de Machado de Assis sobre a guerra do
Paraguai são crônicas em que combina comentários sobre o
desenrolar da situação política e militar no Sul com os eventos
culturais realizados e previstos para a cidade do Rio de Janeiro. Uma
destas crônicas, publicada na Semana Ilustrada, em fevereiro de
- 214 -
1865, logo nas primeiras semanas da reação brasileira às ofensivas
paraguaias, trata da importância da atuação das mulheres nas
campanhas de guerra.
- 215 -
que a nova dama é extremamente linda (ASSIS,
1865, p. 87).
- 216 -
Armam os filhos, beijam-nos; outrora
Não faziam melhor as mães de Esparta
(ASSIS Apud PEREGRINO, 1869, p. 24-25).
82
“Rosa Maria Paulina Regada da Fonseca (Alagoas, 18.10.1802 – Rio de Janeiro,
11.6.1873). Casou em 1822 com o capitão de infantaria Manoel Mendes da
Fonseca, falecido em 1859, deixando-a com sete filhos homens, entre eles: Hermes
- 217 -
“Cala-te, amor de mãe!”. A autoria deste belo soneto foi controversa,
em um primeiro momento for atribuída a própria homenageada. A
questão da autoria foi resolvida por Magalhães Júnior, em 1958, que
demonstrou que a Sra. Fonseca foi somente o mote para a
composição (PEREGRINO, 1969, p.23), eis o soneto:
- 218 -
da abnegação e da entrega necessárias para o enfrentamento das
agruras daquele momento. Além de uma representação metafórica
da pátria no feminino há uma adequação do discurso do cronista e do
poeta ao público leitor, majoritariamente feminino. Por outro lado,
esta atenção ao feminino que marca presença nas crônicas e nos
poemas não reverbera na ficção machadiana também relacionada à
guerra do Paraguai. Nesta parte da obra de Machado prevalecem as
histórias de homens que por alguma decepção amorosa se alistam
como voluntários ou aceitam as convocações. Não há na ficção de
Machado de Assis o engajamento masculino por motivos patrióticos,
a guerra é antes uma oportunidade para a fuga do que uma opção
heroica.
O primeiro texto de ficção de Machado de Assis em que a
guerra do Paraguai será representada é o romance Iaiá Garcia, de
1878, oito anos após a morte de Solano López e do encerramento
definitivo dos combates:
- 219 -
contemporâneas ao confronto, como nas poesias e crônicas do
próprio Machado e nas obras de Macedo. O distanciamento temporal
fazia com que as preocupações fossem, mais estéticas e menos
práticas. Aquela defesa ardorosa e pedidos de mobilização patriótica
são substituídas pela percepção e representação do impacto da
guerra na vida da coletividade. Neste romance, e nos demais textos
ficcionais de Machado de Assis relacionados com a guerra do
Paraguai, há uma marcada mudança na construção da narrativa da
guerra. Já não temos constante apelo ao combate renhido, dos
poemas e das crônicas, que foi substituído pela preocupação em
explorar como os destinos foram alterados e como tantos se
resolveram antes e depois da paz definitiva.
Desta renúncia à representação ficcional épica da guerra
emerge a figura do herói fugitivo. Jorge Gomes, o protagonista
masculino de Iaiá Garcia, é o protótipo destes. Não vai à guerra por
questões de honra e patriotismo, mas para alivio de uma pressão da
vida cotidiana, geralmente, como neste caso, uma paixão não
correspondida e a mágoa do primeiro amor malogrado. Todos os
argumentos em defesa do alistamento como uma necessidade moral
são trocados por razões práticas que alguns homens têm para sair do
convívio social, a fuga para a batalha. Os combatentes que Machado
de Assis apresenta são fugitivos antes de tudo, só depois serão
soldados e, até, por casualidade, quando sobrevivem, heróis. Este
herói fugitivo tem sua ação limitada por suas próprias condicionantes
- 220 -
de adesão, seus motivos são outros no campo de batalha. Em Iaiá
Garcia temos o destaque deste aspecto no comportamento de Jorge
Gomes quando em combate: “a temeridade do mancebo parecia ir
além dos limites do costume, e que, em vez de um homem que
combatia, era ele um homem que queria morrer” (ASSIS, 2011, p.
92).
Outro aspecto importante na representação da guerra
empreendida por Machado de Assis, para o qual Jorge também nos
serve de exemplo, é a mudança que esta causa nos que voltam da
campanha e dos campos do Sul:
- 221 -
nenhum projeto e mesmo assim se propunha a todos os que lhe
apareciam, as mudanças nem sempre são positivas:
- 222 -
Eusébio abandonou a mulher, foi para a guerra do
Paraguai, veio ao Rio de Janeiro, nos fins de 1866,
doente, com licença. Volta para a campanha. Não
odeia a mulher, tanto que lhe manda lembranças
e presentes. O que se não pode deduzir tão
claramente é que Eusébio é capitão de
voluntários; é capitão, tendo ido tenente;
portanto, subiu de posto, e, na conversa com o
tio, prometeu voltar coronel (ASSIS, 2016, p. 2)
- 223 -
oficialatos: um bravo. A gente que nas ruas e das janelas via passar os
galhardos vencedores era muita, luzida e diversa” (ASSIS, 2016, p. 3).
Já em “Pobre Finoca!”, conto de 1891, surge a concentração
das tropas e a preparação para a partida, a guerra já está no
cotidiano população, altera destinos e comportamentos.
- 224 -
motivos que os levaram à guerra. O tenente Isidoro desabafa, no
início da narrativa:
- 225 -
com um depositário que decide não a publicar, com a morte do autor
e do guardador reticente, o texto termina por ser publicado, ali
Simão de Castro conta a história de seu amigo Emílio, também
nomeado de “X” e, por consequência, também é o “Capitão” do
título. A questão é como alguém alheio aos movimentos da guerra e,
inclusive, contrário às alianças celebradas, repentinamente se engaja
como voluntário. Simão relembra e conta o diálogo em que Emílio se
posiciona sobre a guerra:
- 226 -
traição de seu amigo e confidente, o próprio narrador, Simão de
Castro se aproveitou da confiança conquistada e acesso livre à casa
do amigo e iniciou um romance com a companheira de Emílio.
Emílio, Isidoro, Miranda, Eusébio, Jorge são os soldados que
Machado de Assis apresenta em sua obra ficcional. Um traço os une,
a fuga. Vão à guerra por motivos particulares, próprios, e assim,
distanciam-se do ideal épico guerreiro. São em si, todas as histórias
de Machado de Assis, antiépicas, na medida em que não permitem a
realização plena do herói e suas motivações. O engajamento épico
patriótico não existe na ficção machadiana, era, em contraste,
justamente o elemento presente e imposto como fundamento para
ação nas crônicas e nas poesias de Machado de Assis relacionadas
com a guerra do Paraguai e publicadas nos primeiros momentos do
conflito.
Considerações finais
A guerra contra o Paraguai foi um tema presente, tanto na
geração que a presenciou como nas subsequentes, na literatura
brasileira. As representações literárias diferiram substancialmente
das suas contrapartidas historiográficas. Entretanto, esta
discrepância não invalida nenhuma das tentativas de compreender a
tragédia que se abateu sobre o Cone Sul. Conhecer os impactos
daquele conflito tanto no sistema cultural brasileiro quanto nas
demais nações envolvidas é uma contribuição importante para a
- 227 -
superação das implicações ainda presentes. O conhecimento é o
melhor caminho para arrefecer os preconceitos e aproximar povos
que não são responsáveis pelos atos desmedidos de suas elites, no
passado ou na atualidade. A construção da memória dos eventos
relacionados a esta guerra – bem como, dos demais confrontos
violentos da América do Sul, sejam eles entre estados, entre parcelas
da população de um mesmo estado ou dos próprios estados contra a
sua cidadania – é um processo que precisa ser estimulado para
repensarmos nossas posições no mundo e, principalmente, em
relação aos nossos vizinhos e, desde muito e doravante, não mais
inimigos.
- 228 -
Referências Bibliográficas
- 229 -
Guita e José Midlin. Disponível em:
www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01064900. Acesso em: 27
jul 2015
- 230 -
A ditadura militar e a importância de expressões culturais
como arma “anti-esquecimento”
- 231 -
que lhes é contado e que, portanto, não faz parte de sua memória
individual? Porque não esquecer uma história incômoda, que no
fundo se quer esquecer? As respostas para essas questões
certamente perpassam a reflexão sobre quadros de percepção
produzidos socialmente, como a literatura (em suas duas maneiras
de ser: escritor - incluindo os testemunhos de vítimas - e leitor), a
música, o cinema, a arte em geral e a história, que se apresentam
como alternativas para impedir um desmemoriamento social de fatos
que devem ser inolvidáveis.
Em relação à literatura, o escritor toma para si a
responsabilidade de elaborar o passado, especialmente quando ele é
desconfortável. Kafka via a literatura como um machado que deve
ferir mortalmente o leitor, já que ela não tem que ser somente
agradável e, sim, surtir efeitos pensantes no leitor. Helenice da Silva
(2002) ao citar, Paul Ricoeur, destaca que o autor se refere à
importância da história enquanto narrativa que organiza
possibilidades de memória diz que “o trabalho da história se entende
como uma projeção, do nível da economia das pulsões ao nível do
trabalho intelectual dessa dupla tarefa que consiste na lembrança e
no esquecimento”. Diversos campos do conhecimento podem ser
acionados para compreender a memória de indivíduos, de um povo
ou de uma época. Além da história, da literatura e das artes ou de
teorias psicológicas conseguimos entender melhor o processo de
- 232 -
memória e reconhecê-lo não como um fenômeno apenas individual,
mas como uma construção social.
A palavra memória é de origem latina, sua derivação vem de
memor que quer dizer “aquele que se lembra”, remetendo-nos ao
passado, ao já vivido. Não entraremos, aqui, na questão da memória
das pessoas que vivenciaram estes episódios, pois esta memória
individual trará por si só muitos entendimentos e questionamentos.
A ideia é pensar a memória coletiva e social e a lembrança pelas
pessoas que não presenciaram tais fatos históricos, no sentido da
importância do não esquecimento pelas novas gerações, de eventos
e acontecimentos que devem ser tidos como memoráveis. Entretanto
a memória dos sobreviventes de eventos históricos como do nazismo
e ou de regimes ditatoriais, é de suma importância para a
conscientização das gerações posteriores a respeito da intolerância,
das perseguições e dos extermínios que ocorreram na centúria
passada. Como Rosani Umbach traz, é “imbuídos dessa certeza, que
pesquisadores de vários países vem discutindo conceitos e funções
da memória e suas implicações na história, na literatura e nas
ciências sociais” (2008, p.37).
Como já dito, não entraremos na questão da memória das
pessoas que vivenciaram estes episódios, mas pensaremos a
permanência da memória daqueles que não vivenciariam os fatos,
uma memória que permaneça no coletivo, como conhecimento e
lembrança. Percebemos que em nível mundial estamos em uma
- 233 -
época limiar, na qual a memória viva de testemunhos das grandes
catástrofes está desaparecendo, cedendo lugar a historiografia e suas
diferentes formas de memória. Diante disto podemos pensar que as
experiências só entram para o repertório individual e coletivo da
memória através de quadros de percepção produzidos socialmente e
que este momento é fundamental para se deixar registrado
depoimentos e testemunhos por parte dos sobreviventes da ditadura
militar em nosso país.
Rosani Umbach, ao citar Walter Benjamim (1985) ressalta
que:
- 234 -
esquecimento -, perpassa a atividade de historiadores, psicólogos,
sociólogos, filósofos, pesquisadores, escritores e artistas.
Mas como e porque fazê-lo? Como: Resgatando um evento
histórico e rememorando as inúmeras perdas, o luto e a tortura
ocorrida no país, através do que cada um dos campos de
conhecimento é capaz de produzir, tanto de maneira pontual, quanto
de forma imbricada às outras áreas do saber. Por quê? Para não
esquecer e, para que através do não esquecimento, se impeça a
repetição da ocorrência de eventos semelhantes, já que a “memória
é a aquisição, a formação, a conservação e a evocação de
informações” (IZQUIERDO , 2002, p.12). Segundo Helenice Rodrigues
da Silva (2002), a memória (individual e coletiva) é um instrumento
fundamental do laço social. Dessa forma, escreve-se, canta-se,
representa-se nas mais variadas formas de expressão, não apenas
para rememorar, mas principalmente para guardar os rastros da
dívida, dívida essa que diz respeito às vítimas de nossa história, de
nosso povo, de nosso país e de nossa cultura.
A História
Resgataremos um pouco a história, de forma compendiada, já
que 21 anos exigiriam o acesso a muitos escritos para contemplar
todo o ocorrido. A necessidade desse resgate encontra-se no fato de
que muitas vezes os jovens ouvem a história de forma muito
simplista, ou seja, apenas considerando que foi algo negativo, mas
- 235 -
sem explicar-lhes como se originou a ditadura militar brasileira e o
que se passou neste período, já que diversos artigos falam da
ditadura sem contar os fatos, supondo que o leitor já conheça os
detalhes. Para as novas gerações que não presenciaram esses anos
de horror e violência, torna-se mais difícil construir uma
compreensão mais profunda e questionadora da realidade que nosso
país enfrentou.
Então resgatemos a história que não pode ser esquecida, pois
é verídica. Ano: 1964; País: Brasil; Fato: Golpe Militar/ Ditadura
Militar; Término Oficial: 1985. 21 anos caracterizados pela falta de
democracia, supressão de direitos constitucionais, censura,
perseguição política e repressão, vigorando um regime autoritário,
tendo apoio, pelo menos inicialmente, de alguns segmentos
minoritários da sociedade, a elite que dominava o Brasil, uma grande
parte da classe média e o setor conservador e anticomunista da
Igreja Católica.
É necessário ressaltar, nesse momento, que a ditadura não
começou em 1964, este ano apenas marca uma série de eventos que
estavam ocorrendo no Brasil e que culminaram em um golpe de
Estado no dia 1 de abril desse corrente ano. O golpe pôs fim ao
governo do presidente João Goulart, também conhecido como Jango,
que havia sido de forma democrática, eleito vice-presidente pelo
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Quando os militares assumiram o
comando do Brasil, criaram de forma rápida o Ato institucional AI-1,
- 236 -
com 11 artigos, que davam ao governo militar o poder de modificar a
constituição, anular mandatos legislativos, interromper direitos
políticos por 10 anos e demitir, colocar em disponibilidade ou
aposentar compulsoriamente, qualquer pessoa que fosse contra a
segurança do país, o regime democrático e a probidade da
administração pública, além de determinar eleições indiretas para a
presidência da República.
Este ato ocasionou um fortalecimento do poder central,
sobretudo do poder Executivo, caracterizando um regime de
exceção, pois o Executivo se atribuiu a função de legislar, em
detrimento dos outros poderes estabelecidos pela Constituição de
1946. O Alto Comando das Forças Armadas passou a controlar a
sucessão presidencial, indicando um candidato militar que era
referendado pelo Congresso Nacional.
A liberdade de expressão e de organização era quase
inexistente. Partidos políticos, sindicatos, agremiações estudantis e
outras organizações representativas da sociedade foram suprimidas
ou sofreram interferência do governo. Os meios de comunicação e as
manifestações artísticas foram reprimidos pela censura. A década de
1960 iniciou também um período de grandes transformações na
economia do Brasil, de modernização da indústria e dos serviços, de
concentração de renda, de abertura ao capital estrangeiro e do
endividamento externo.
- 237 -
É importante lembrarmos que os EUA tiveram papel
preponderante nesses acontecimentos, pois com o fim da Segunda
Guerra Mundial havia uma tensão em função do cenário político, ou
seja, acontecia a Guerra Fria, que consistia na disputa pela
hegemonia mundial entre Estados Unidos da América e União
Soviética (URSS), ou “mundo livre/capitalismo” versus comunismo.
Os Estados Unidos, na intenção de conter o comunismo na América
Latina, afirmava que a democracia era incapaz de evitar a eclosão
deste tipo de regime. E esse foi o álibi usado para justificar os golpes
militares, já que tinham claras intenções de garantir a sua hegemonia
sobre o continente americano.
Tal preocupação só aumentava na medida em que a
Revolução Cubana de 1959 mostrou-se como forte influência
socialista nas Américas. A preocupação norte-americana passou a ser
a de fazer o possível para que outros países socialistas, sob a
influência de Cuba, não surgissem ao longo do continente. Para
tanto, apoiaram a instalação de governos ditatoriais em diferentes
locais da América Latina, como no Brasil, pois receavam que o Brasil
adotasse uma postura socialista e temiam um golpe comunista.
Para os EUA, as crises eram desfavoráveis para a sua atuação
econômica dentro do nosso país, por isso decidiram intervir em nossa
política, durante o período de preparação para o golpe e na sua
manutenção. Assim, em 31 de março de 1964 foi aprovada uma
operação sigilosa intitulada de Brother Sam, a qual foi desencadeada
- 238 -
pelos EUA, com o objetivo de apoiar o golpe militar em 1964, com
toda a força militar da “Frota do Caribe”, para dar apoio logístico,
material e militar aos precursores do golpe. Foram enviados para o
Brasil porta-aviões de ataque pesado, transportando armas,
munições e outros recursos, caso houvesse algum imprevisto ou
reação. Porém, a retirada de João Goulart da presidência brasileira
não exigiu o uso de tais recursos, cancelando a operação, que
permaneceu apenas no papel.
De 1964 a 1967, o Brasil passa a ser comandado pelo general
militar Castello Branco, o qual foi eleito presidente pelo Congresso
Nacional. Mesmo não tendo sido escolhido de forma democrática,
em seu pronunciamento, declarou defender a democracia. Porém,
durante seu governo não foi essa postura assumida: sua posição foi
marcada pelo autoritarismo. Entre suas ações, esteve o
estabelecimento de eleições indiretas para presidente e a dilapidação
de partidos políticos com a instituição do bipartidarismo; por meio
deste último só autorizou o funcionamento de dois partidos:
Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição, e a
Aliança Renovadora Nacional (ARENA), o qual representava os
militares. Vários parlamentares federais e estaduais tiveram seus
mandatos cassados, cidadãos tiveram seus direitos políticos e
constitucionais cancelados e os sindicatos receberam intervenção do
governo militar. Para concluir, institui uma nova Constituição
- 239 -
Brasileira, a qual sancionou e institucionalizou o regime militar e suas
formas de atuação em 1967.
Nos dois anos seguintes quem assume a presidência do Brasil
é o general Arthur da Costa e Silva (1967-1969). Dentre as marcas
deste governo, está o Ato Institucional Número 5 (AI-5), de 1968, que
determinou a aposentaria de juízes, cassou mandatos, acabou com as
garantias do habeas-corpus e aumentou a repressão militar e policial.
Em 1969, de agosto a outubro, devido à doença de Costa e Silva, uma
junta militar, formada pelos ministros Aurélio de Lira Tavares
(Exército), Augusto Rademaker (Marinha) e Márcio de Sousa e Melo
(Aeronáutica), assume o governo.
Com o agravamento das atitudes coercitivas e violentas por
parte do governo, a população começa a demonstrar o seu
descontentamento através de protestos (passeatas chegaram a ter
cem mil participantes no Rio de Janeiro) e manifestações sociais. O
momento passa a ser marcado por greves de operários e até mesmo
por assaltos a banco pela oposição, que começa a se organizar e agir
de forma mais intensa, comandada principalmente por jovens.
Ocorre, neste período, o sequestro do embaixador dos EUA (1969),
com o intuito de arrecadar fundos e solicitando a liberação e
libertação de presos políticos. Entre os atos do governo, está o
decreto que determina o exílio e a pena de morte em casos de
"guerra psicológica adversa, ou revolucionária, ou subversiva". No
final de 1969 Carlos Mariguella, líder da associação Libertadora
- 240 -
nacional (ALN), é assassinado pelas forças de repressão em São
Paulo.
É também no final de 1969, perdurando até 1974, que se dá
início a presidência do general Emílio Garrastazu Medici, também
escolhido por uma junta militar. Este período ficou conhecido como
anos de chumbo, sendo considerado como os anos mais duros do
governo militar. Há um crescimento da repressão à luta armada e é
praticada uma severa política de censura, com o objetivo de impedir
a circulação de informações. Nesta época, inúmeras matérias de
jornais e revistas, peças de teatro, filmes, músicas, e todas as demais
formas de manifestação artística consideradas em desacordo ao que
o governo pregava, eram censuradas. Por isso, entre os presos da
ditadura militar, encontravam-se muitos professores, políticos,
músicos, artistas e escritores que acabaram sendo torturados ou
exilados do país.
Em 1974 novamente um general assume a presidência, dessa
vez Ernesto Geisel, ficando no poder até 1979. Mesmo ainda em um
governo ditatorial, durante esses anos, inicia-se um processo de
pensamento democrático, o que não é visto de maneira positiva
pelos aliados militares, que começam a promover ataques
clandestinos aos membros da esquerda. Mesmo assim, em 1978
Geisel consegue derrubar o AI-5 e restaurar o habeas-corpus.
Dando continuidade a este processo, o general João Baptista
Figueiredo (presidente do Brasil de 1979 a 1985) decreta a Lei da
- 241 -
Anistia em seu mandato. Tal lei permitiu que brasileiros exilados e
condenados por crimes políticos pudessem retornar ao país. Todavia,
a linha repressiva dos militares continuava com atos clandestinos,
por exemplo, com cartas bombas dirigidas aos seus “inimigos”.
Ainda em 1979, o governo aprova uma lei que consente o
retorno dos partidos políticos, permitindo o pluripartidarismo. Em
1984, ano marco da luta contra a ditadura, diversos setores e a
população em geral participam do movimento pelas “Diretas Já”, que
movimenta intensamente o país. Porém, somente um ano depois, no
dia 15 de janeiro 1985, consegue-se restabelecer o direito ao voto,
sendo Tancredo Neves escolhido presidente. O governante, porém,
falece antes de assumir, e quem acaba adquirindo seu lugar é o então
vice-presidente José Sarney. Esses últimos acontecimentos decretam
o fim oficial da ditadura militar no Brasil.
Após esse resgate histórico, faz-se necessário ressaltar que
em nome da “segurança nacional” e do combate à “subversão
comunista”, milhares de pessoas foram torturadas e mortas. Muitas
delas desapareceram sem deixar rastros e notícias. Os militares
utilizaram muitos meios para que esta repressão militar atingisse o
seu objetivo. Testemunhos desta época demonstram o horror, quase
inimaginável, ocorrido no período. Entre os torturados encontravam-
se muitas mulheres militantes. Vejamos um depoimento que
demonstra, além do preconceito em suas mais diversas faces,
também o mau uso da psicologia. O relato é de Izabel Fávero,
- 242 -
professora que foi presa em 5 de maio de 1970, em Nova Aurora/PR
e representa apenas um, dentre muitos relatos, que podem
exemplificar a atmosfera de terror físico e/ou psicológico da época:
- 243 -
horrorosa, com esse barrigão. Isso aí não serve
nem para cozinhar. Isso aí não precisava nem
comer com essa banhona, negra horrorosa’. E eu
tendo de marchar. Imagine só, rebaixar o ser
humano a esse ponto...85
85
Disponível em: http://www.comunistas.spruz.com/menutortura.htm. Acesso 6 de
julho de 2016.
- 244 -
punitivas, que iam contra os direitos humanos e as diversidades.
Hoje, com a evolução das pesquisas na área, o axioma da psicologia
deixou de ter um caráter excludente e passou a se direcionar para a
contribuição no entendimento de processos de tortura, seus efeitos e
consequências humanas e sociais. Além da psicologia, diversas áreas
do conhecimento muitas vezes colaboraram para que o poderio
militar fosse mantido, acreditando que o capitalismo deveria reinar,
pelo menos no início do período.
Assim, passaram-se 21 anos de um ostracismo da democracia,
da liberdade, da expressão, da tentativa de formar brasileiros
alienados. Entretanto, nos escombros a criatividade permanecia, de
forma triste, machucada, mascarada, mas acima de tudo
perseverante. De forma subliminar em suas composições ou outras
formas de expressão, nossos artistas se manifestavam contra o que
estava acontecendo. Entre as músicas mais conhecidas deste período
estão: Alegria, Alegria, lançada em 1967 por Caetano Veloso, sendo
um dos marcos do movimento Tropicalista, esta composição traz
revelações do dia-a-dia da luta contra a opressão e a demonstração
desta em todas as esferas sociais, como se pode observar na
transcrição da letra abaixo:
- 245 -
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas,
Eu vou.
Em caras de presidente,
Em grandes beijos de amor,
Em dentes, pernas, bandeiras,
Bomba e Brigitte Bardot.
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos.
Eu vou
Por que não? E por que não?
- 246 -
Sem fome, sem telefone,
No coração do Brasil.
Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo amor.
Eu vou
Por que não? E por que não?
- 247 -
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais nobre refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão
Há soldados armados amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão
Nas escolas nas ruas campos construções
Somos todos soldados armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
- 248 -
de rebeldia, as músicas trazem em sua letra algumas expressões
bastante próximas. Ambas, por exemplo, iniciam com a palavra
“caminhando”, o que imediatamente remete à ideia de movimento,
de liberdade, iniciativa e principalmente de resistência, pois é preciso
caminhar, seguir em frente, mesmo diante da situação mais adversa
e violenta. Além disso, termos como “guerrilhas”, “crimes”, “fuzis”
em Alegria, Alegria, e “canhão”, “armas”, “soldados”, em Pra não
dizer que não falei de flores, remetem diretamente ao contexto
militar vivido à época, contrapondo-se a uma atmosfera de
esperança através de frases que conclamam a igualdade e a busca
pela paz sem distinções, como em “Somos todos iguais braços dados
ou não” ou a simples, porém desafiadora, “Eu quero seguir vivendo
amor. Eu vou. Por que não? Por que não?”
Nascidas, portanto, de seu contexto e capazes de contrapor o
modelo hegemônico vigente, é importante ressaltar a
atemporalidade da arte. A música, por exemplo, é capaz de
ultrapassar o momento que a origina e tornar-se simbólica em
momentos e acontecimentos subsequentes, como comenta Calazans,
sobre a música Pra não dizer que não falei de flores:
- 249 -
como as manifestações das Diretas Já!, as greves
da década de 1980 e o impeachement do então
presidente Fernando Collor de Mello foi utilizada
como hino de protesto. Isso mostra a capacidade
do ouvinte de guardar na memória um discurso
marcante, de modo a poder revivê-lo em outra
ocasião, apropriando-se do seu sentido base
(CALAZANS, p.19).
- 250 -
passou, no objetivo de conservar fatos importantes e que não podem
ser esquecidos, pelo bem da humanidade, como disse Galeno:
- 251 -
grupo concentrado no vão-livre do Museu de Arte
de São Paulo (Masp), na avenida Paulista, por
volta das 17h40, levou faixas pedindo a saída da
presidente Dilma Rousseff da presidência, e
desejando o retorno dos militares ao poder.
“Queremos os militares novamente no poder”,
dizia uma das faixas carregadas por um grupo de
mascarados.86
Com esse ato percebemos que não existe uma memória única
sobre a ditadura militar em nosso país, mas sim, um conjunto de
memórias, com opiniões e posições diversas sobre o mesmo fato
histórico. Sem dúvida, essa construção da memória, se deve em
parte, na forma que estas pessoas edificaram os conceitos e juízo
crítico sobre tal fato, como dito anteriormente, muitas vezes
equivocado e distorcido da verdade.
Por outro lado, um aspecto positivo é que desde o ano de
2012 formou-se uma comissão intitulada Comissão da Verdade, para
retirar dos escombros fatos que apenas a minoria da população sabia
por completo. Demoraram 28 anos, mas esta comissão e todas as
ações que objetivam lutar contra o escamoteamento e intenções de
ignorar, distorcer ou até mesmo negar os fatos, merecem um grande
mérito. Estas ações são uma necessária e eterna construção política
que resgata os princípios morais, éticos e de identidade de nosso país
86
Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/sp-em-meio-a-
protestos-grupo-pede-volta-de-militares-ao-
poder,59e34972bc28f310VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html. Acesso em 29 de
junho de 2016.
- 252 -
e as diversas esferas do conhecimento podem, e devem, fazer parte
deste processo:
- 253 -
Considerações finais
Como vimos, felizmente conseguimos com muitas lutas,
protestos, vítimas e marcas, sair de um período ditatorial, mas
resquícios deste período podem ser vistos em uma polícia autoritária,
na população que se encontra dentro de nossos presídios, na maioria
das vezes formada por pessoas que fazem parte de uma minoria
desfavorecida da população – um reflexo de nossa sociedade
desigual – quem tem o poder continua sendo quem tem dinheiro, e o
capitalismo continua reinante. E, por incrível que pareça, algumas
pessoas acreditam que o período ditatorial deve retornar.
Contata-se que nem tudo que parece obvio, de fato é, e nem
tudo o que parece terminado, de fato seja. Se deixarmos cair no
esquecimento um momento histórico como foi a ditadura militar
corre-se o risco de se crer que ela foi positiva, boa, e importante para
nosso país, e que deve retornar. Por isso precisamos fazer com que a
memória da realidade dure, continue e seja estável. E que isto não
seja imposto, pois cairíamos numa coação, mas que seja aderido pelo
interesse da população, pois só assim terá o efeito simbólico
necessário para perdurar e ser constante a (auto) crítica do passado.
Mas o que fazer para não deixar que as novas gerações não
conheçam a realidade do período militar no Brasil? Infelizmente não
há uma solução pronta, mas os mais diversos quadros de percepção
produzidos socialmente ajudam a efetivar esse não esquecimento,
impedindo o silêncio, como forma de resistência e de diminuir a
- 254 -
fronteira entre o dizível e o indizível. Entre eles, a arte em geral:
como vimos, a música é um instrumento importante de
rememorização do passado; acrescente-se a isso filmes lançados nos
últimos anos que criticam o período e demonstram um pouco dos
males que esse causou; a literatura, os monumentos, as datas
históricas, enfim, diferentes pontos que referenciem e estruturem a
memória coletiva e a mantenham, sobretudo, viva.
- 255 -
Referências Bibliográficas
CALAZANS, Janaína. A formação de um gênero engajado: Espaço,
sujeito e ideologia na música de protesto. 2012. 318 f. Tese
(Doutorado em Comunicação) -Curso de Pós-Graduação em
Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.
- 256 -
SITE Portal Terra. http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/sp-em-
meio-a-protestos-grupo-pede-volta-de-militares-ao-
poder,59e34972bc28f310VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html.
Acesso em 07 de julho de 2016.
- 257 -
Sob (re) o Tropical Sol (o) brasileiro: a escrita da perda em
Ana Maria Machado
Introdução
Refletir sobre a Ditadura Civil-Militar brasileira, decorridos 50
anos de sua instauração, torna-se, a cada dia, um assunto mais atual
e imperioso. Isso porque, ao mesmo tempo em que tomamos
conhecimento de partes nebulosas do passado nacional, também
“ouvimos” ressurgir com força um discurso bastante retrógrado, que
solicita o retorno da ditadura por vias constitucionais, como se isso
resolvesse de forma categórica os problemas do País.
Tal visão, bastante simplista, atesta a falta de conhecimento
sobre a nossa história mais recente, demonstrando que as lições do
passado não foram bem compreendidas. Por esta razão, a instalação,
mesmo tardia – quase três décadas depois do final do Regime Militar
–, da Comissão Nacional da Verdade representa um marco
importante no processo de conscientização nacional. Comissão esta
que deveria investigar os crimes cometidos durante o período
87
Doutoranda em Estudos Literários em Letras Espanhol, UFSM.
- 258 -
compreendido entre 18 de setembro de 1946 e 05 de outubro de
1988, principalmente fatos relacionados à Ditadura no País, e que,
após ouvir mais de 1.100 depoimentos, analisar arquivos e investigar
centros de tortura e eventos relacionados a desaparecidos políticos,
revelou, em seu relatório final, contornos inéditos sobre um dos
capítulos mais sombrios da nossa história (BRASIL, 2011) (DUARTE,
2014)
A dificuldade em abrir os arquivos da Ditadura, após o fim do
Regime desvela uma face importante da história brasileira: o
“encobrimento” do passado pelas vias da negação e do
esquecimento. Face que já havia sido exposta quando da
promulgação da Lei da Anistia, em 1979, cujo discurso salientava a
necessidade de deixar que o tempo “cicatrizasse” as feridas, para
que, assim, pudéssemos “seguir em frente” (BRASIL, 1979).
Política do esquecimento que, segundo Jaime Ginzburg
(2012), destaca a importância, em uma “terra sem memórias” como
o Brasil, de estudar os rastros como elementos fundamentais na
constituição de uma memória histórica. Tal como afirma Pierre Nora
(1989), é preciso remexer no passado até fazer sangrar, remando “na
contracorrente da imagem que uma sociedade tem necessidade de
construir acerca de si mesma para sobreviver” (p.53).
- 259 -
Nessa perspectiva, o presente trabalho objetiva analisar, no
romance Tropical sol da liberdade (1988), da escritora Ana Maria
Machado, os vestígios da Ditadura Civil-Militar brasileira recuperados
pela personagem principal, Lena, no seu processo de
restabelecimento íntimo à luz das perdas sofridas. Perdas estas –
como a separação dos pais, o exílio voluntário na França, o aborto
sofrido no exterior e o fim do próprio casamento – que abalaram e
desestabilizaram a protagonista, tanto física como emocionalmente,
conferindo à narrativa certo tom melancólico, pautado pela ausência.
Escrita da perda em que não há lugar para reparação dos
danos sofridos ou punição dos culpados, pois não segue uma lógica
maniqueísta de bem versus mal. Assim, ao eleger o rastro como
matéria central, a narrativa apresenta um mundo fragmentado que
leva a incertezas desafiadoras, colocando em suspeita o significado
mesmo do passado do País.
Dessa forma, parte-se do conceito de rastro ou vestígio,
proposto por Walter Benjamin, como um termo de mediação entre a
destruição e a construção, a negatividade e a afirmação, visto que
- 260 -
como processo, em que o resto é também
imagem ambígua do que será o futuro
(GINZBURG, 2012, p.109)
- 261 -
Essa vontade de deixar marcas de nossa presença na terra é
apresentada por Benjamin (1994), em “Experiência e pobreza”, como
uma aspiração individualista e burguesa. Trata-se, ao mesmo tempo,
de um desejo de afirmação e perpetuação do sujeito moderno e
também de uma forma de resistir a sua aniquilação em meio à
multidão das grandes cidades e à homogeneização das massas.
O autor inicia a sua reflexão destacando a sobriedade e a
frieza do vidro, o qual, em sua opinião, não guarda nenhum mistério
e, por esse motivo, não possuiria aura. Tal constatação leva-o a
realizar a seguinte comparação com o interior de um quarto burguês:
88
O lumpensammler ou o chiffonier– catador de trapos ou sucata – é uma alusão
realizada por Walter Benjamin ao poema “Flores do Mal”, de Charles Baudelaire,
relacionando a figura do poeta ao personagem das grandes cidades modernas que
recolhe os cacos, os restos e detritos, movido, certamente, pela pobreza, mas
também pelo desejo de não deixar nada se perder ou ser esquecido.
- 263 -
característica do passado e para a qual é necessário regressar no
intuito de restabelecer-se plenamente das perdas sofridas.
Perda de uma relação mais próxima com o pai, após a
separação dos progenitores, do País com o exílio na França, do
casamento e também da maternidade, após um aborto espontâneo.
Mas, principalmente, perda do próprio equilíbrio físico e emocional e
de uma forma de expressar tudo isso, visto que Lena desenvolve uma
espécie de afasia, a qual lhe faz ter dificuldades em expor, por meio
da escrita, o que pensa ou deseja.
Para Umbach, a personagem, “atingida pela esmagadora
repressão militar”, encontra-se “enferma da palavra” (2013, p.477).
Figura de linguagem significativa que nos faz refletir sobre o trauma
enquanto uma experiência que debilita a mente e o corpo do sujeito,
os quais se transformam em repositórios para as memórias da dor.
Apesar dessa dificuldade da personagem, cresce o desejo de
contar a história sobre os “anos de chumbo” no Brasil e dos percalços
e das dificuldades vividos pelos exilados políticos em terras
estrangeiras. No início, a ideia de contar a sua história, de dar o seu
testemunho dos fatos, conselho dado pelo amigo Horário, parece-lhe
meio sem sentido, pois, mesmo que a sua profissão seja escrever, ela
não consegue visualizar este ato fora do ofício de jornalista. Além
disso, não acredita na veracidade dos depoimentos, os quais não
- 264 -
passam de mera ficção, “uma maneira inventada de contar as coisas,
fazendo de conta que elas aconteceram assim, mas não
aconteceram” (MACHADO, 1988, p.32).
De qualquer forma, para Lena, o que importa em relação ao
relato não é saber ou verificar tratar-se de fato ou ficção, mas
apresentar essa história de outra perspectiva, isto é, contá-la da
periferia dos acontecimentos, de quem “gravitou” em torno deles
solidariamente, mas não os vivenciou intensamente como aqueles
que estavam no “centro do furacão”.
Assim, ela decide começar a escrever, não apenas com o
intuito de dar o seu depoimento, mas de construir/reconstruir, por
meio da linguagem, uma morada sólida, onde pudesse proteger-se
das intempéries do tempo, conforme se verifica no fragmento:
- 265 -
passam na noite, sem ver por onde vão nem o que
derrubam na passagem. Sobretudo para si
mesma, morada que fosse um território seu, sem
invasões, sem promiscuidade, sem editor
cortando frase ou acrescentando entretítulos
gaiatos como no jornal. Um lugar onde o simples
pisar na terra renovasse suas forças, feito o Anteu
do mito grego (MACHADO, 1988, p.43)
- 266 -
restaurante universitário. O enterro do rapaz foi acompanhado por
milhares de pessoas em procissão, cantando palavras de ordem e
hinos em meio à escuridão, pois
89
O fato refere-se à ocupação da Reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro
– UFRJ, em 20 de junho de 1968.
90
USAID – United States Agency for International Development (Agência dos
Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional).
- 267 -
de tensão. Como relata Teresa: “- Mamãe, foi um horror, você nem
imagina! Parecia um campo de concentração, eu achei que ia morrer!
E os tiros, mãe! Eles estavam atirando, iam matar a gente”..
(MACHADO, 1988, p.74).
Este fato ocasionou diversos outros protestos, agendados
para o mesmo dia, local e horário, como forma de união e proteção
dos manifestantes. A reunião de diferentes setores da sociedade
carioca, naquele dia 26 de junho de 1968, entrou para a história do
Brasil como a Passeata dos Cem Mil e é retratada, na narrativa, na
forma de um diálogo entre mãe e filha, as quais relembram como se
encontraram em meio à multidão que tomou as ruas do centro do
Rio de Janeiro.
A participação das mães de família na Passeata dos Cem Mil,
bem como nos “bastidores” da resistência estudantil, ganha
destaque no romance e apresenta uma visão diferenciada sobre o
papel das mulheres durante e após a Ditadura Civil-Militar brasileira.
Conforme se depreende a partir da reflexão da personagem principal
sobre a escolha, em assembleia geral, após a passeata, de uma mãe
para compor a comissão responsável para levar o protesto da cidade
do Rio de Janeiro à Presidência da República:
- 268 -
tinha que passar pelo movimento estudantil de
1968. E, nele, pela Passeata dos Cem Mil, onde a
multidão elegeu uma mãe que a representasse,
numa antevisão das inúmeras mães que iam fazer
sua via-crúcis pelos porões do regime nos anos
seguintes à cata de notícias dos filhos e, que, se
no Brasil não chegaram à organização que as mães
argentinas iam atingir depois, ao se assumirem
como As Loucas da Plaza de Mayo, nem por isso
sofreram pesadelo menor. Como se houvesse
termômetro de pesadelo ou uma escala Ritcher de
medir perda de filho (MACHADO, 1988, p.92)
- 269 -
fechou o Congresso, censurou a imprensa,
prendeu opositores e instalou de vez a mais negra
ditadura que o país conheceu (MACHADO, 1988,
p.141)
- 270 -
reviver momentos dolorosos de todo esse período de exceção. Ao
pensar sobre isso, a mãe reflete:
- 271 -
sobre o passado, começam a desvelar do esquecimento fatos e
situações relacionadas à repressão imposta pela Ditadura Civil-Militar
no Brasil. Processo necessário no tortuoso caminho de recomposição
da história pessoal e social, mesmo que esteja pautado
permanentemente pela melancolia da perda e da falta. Nessa
perspectiva, o rastro constitui-se em “chave de conhecimento”, pois,
mesmo não sendo mais o que foi vivido, a sua “presença é indicação
de uma convergência entre o que está ausente e o que está diante
dos olhos” (GINZBURG, 2012, p.112). Essa cifra possibilita
compreender o que houve e também supor o que poderá acontecer.
Todavia, para reconstruir-se, a partir das ruínas do passado, é
preciso ter “coragem de arriscar a vertigem”, de “trocar o equilíbrio
pela palavra” e “o prumo pelo abismo” (p.326). Assim, a personagem
recorre às lembranças da infância e a recomendação do avô: “é só
não pensar no perigo, ver onde pisa e olhar para a frente, onde você
quer chegar” (p.342). E a recordação daquele dia em que atravessou
o rio de uma margem a outra, caminhando em cima de um tronco
improvisado como ponte, faz-lhe perceber que era necessário
arriscar-se e tentar escrever, “como se a lembrança corresse algum
risco”, “como se a memória não fosse durar muito mais que o avô,
[...] a fazenda de cacau, a mata e a pinguela” (MACHADO, 1988,
p.347).
- 272 -
Nesse sentido, ganha importância, na narrativa de Ana Maria
Machado, a relação entre rastro e memória, não apenas em sua
riqueza constitutiva, mas, principalmente, em sua fragilidade. Isso
porque “o rastro inscreve a lembrança de uma presença que não
existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente”
(GAGNEBIN, 1998, p.218).
Assim, ao apresentar sob a perspectiva feminina parte da
história sobre a Ditadura Civil-Militar no Brasil – parte pretensamente
suprimida dos manuais escolares, da mídia e do debate público –, o
romance empreende uma luta contra o esquecimento e a denegação.
Tal ação, sem carregar o peso do patrulhamento ideológico tão
comum em outros textos sobre o período, constitui-se também em
forma de lutar contra a repetição do horror, sem cair em uma falsa
definição dogmática da verdade histórica.
Considerações Finais
Portanto, ao escavar as ruínas do passado, entre detritos e
restos, em um processo lento de rememoração e de
reconstrução/destruição da própria história pessoal e coletiva,
encontramos meios de compreender a nós mesmos, ao presente, e
de pensar sobre o futuro. Atividade esta, de cavar e escavar, que
remete não apenas ao escuro abismo do lembrar e do esquecer, mas,
- 273 -
principalmente, à lembrança como forma de sepultamento.
Conforme destaca Gagnebin: “[...] verdadeiro lembrar, a
rememoração, salva o passado, porque procede não só a sua
conservação, mas lhe assinala um lugar preciso de sepultura no chão
do presente, possibilitando o luto e a continuação da vida” (2012,
p.35).
Lena, a protagonista de Tropical sol da liberdade, fará
exatamente isso ao remexer no passado e, por consequência, nas
próprias feridas, realizando, ao final do livro, uma espécie de rito
fúnebre, que lhe possibilitará retornar para casa, para o trabalho e o
namorado e, assim, projetar um novo futuro. Da mesma forma que a
amendoeira do jardim:
- 274 -
pele velha, deixa para trás a casca vazia, e brota dentro de si
mesma”, mas diferente da “borboleta que sai do casulo sem
conservar nada da lagarta que tinha sido antes” (MACHADO, 1988,
p.234). Era assim que Lena gostaria de renascer, sem metamorfoses e
fiel a si mesma, ao seu passado e as suas marcas, criando uma
espécie de túmulo para os “mortos” do seu passado.
- 275 -
Referências Bibliográficas
- 276 -
MACHADO, Ana Maria. Tropical sol da liberdade: a história dos anos
de repressão e da juventude brasileira pós-64 na visão de uma
mulher. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
- 277 -
Os discursos do poder em Mineirinho de Clarice Lispector
Adriana Yokoyama91
Rosani Úrsula Ketzer Umbach92
Introdução
O relato do assassinato de um homem chamado José Miranda
Rosa, mais conhecido como “Mineirinho”, transformado em título da
crônica escrita em 1962, por Clarice Lispector, narra a história real de
um dos bandidos mais procurados pela polícia carioca nesse período.
Considerado uma espécie de Robin Hood da favela, “Mineirinho” foi
assassinado pela polícia no dia 1º de maio de 1962, veiculando, com
sua morte, uma grande extensão de notícias jornalísticas. Embora
contraventor, Mineirinho, era admirado e respeitado por seus amigos
e vizinhos na comunidade em que morava: na favela da Mangueira,
no Rio de Janeiro. Pois, à maneira do anti-herói inglês, “Mineirinho”
roubava dos ricos para dar aos pobres. A repercussão de suas ações
deu-se devido as suas inúmeras investidas, à luz do dia (embora
também praticasse seus delitos à noite), a lojas e comércio da cidade,
91
Mestranda (Bolsista Capes) em Estudos Literários na Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM), orientada pela Prof.ª Dr.ª Rosani Ketzer Umbach e
participante do grupo de pesquisa “Literatura e Autoritarismo”.
92
Rosani Úrsula Ketzer Umbach é professora titular do Departamento de Letras
Estrangeiras Modernas, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e
coordenadora do grupo de pesquisa “Literatura e Autoritarismo”.
- 278 -
inclusive, promovendo atentados contra a Polícia Militar do Rio de
Janeiro, causando verdadeiros transtornos a sociedade. Foi preso por
três vezes, fugindo de todas elas e prometendo se vingar. Por suas
atitudes subversivas e fora- da- lei, sua prisão passou a ser uma
questão de honra para restituir a paz e a tranquilidade da cidade.
Capturado, “Mineirinho” foi brutalmente assassinado, pela polícia,
com treze tiros à queima roupa, noticiando todos os veículos de
comunicação da época93.
Nessa narrativa, Clarice entrega-se ao total aprofundamento
do ser ao receber a notícia da execução desse bandido com treze
tiros e faz uma autoavaliação na tentativa de tentar entender essa
atrocidade e o seu lugar no mundo. Publicada pela primeira vez na
revista Senhor, com o título Um grama de radium- Mineirinho94, a
crônica descreve minuciosamente o sentimento de impotência
mediante a crueldade e a supremacia do Estado no estabelecimento
do poder. Nesse contexto, inundada por sensações contraditórias, a
escritora sente a dor da morte de Mineirinho, em plena consciência
da legitimidade dessa instituição ao executar tal punição. É sobre
93
Informações colhidas do site do Instituto Moreira Sales. Disponível
em:<http://claricelispectorims.com.br/Posts/index/19>. Acesso em 15 de março de
2016.
94
Pela capacidade radioativa do elemento químico –rádio- em “produzir
fluorescência”.
- 279 -
essa punição, esse “direito de punir”, baseado em atitudes primitivas,
que a escritora questiona.
- 280 -
observarmos que essas sensações contraditórias que mesclam
sentimentos de defesa, responsabilidade e humanidade atuam no
interior da própria narradora, pois é Clarice que, em sua
subjetividade, escreve para tentar organizar suas próprias ideias.
O fato de a escritora referir-se a um contraventor reside na
brutalidade das ações, que são reflexos da não compreensão de uma
política penal que possa agir nesse direito de punir. Se levarmos em
conta os conceitos primários de organização social perceberemos
que desde o início, no princípio de todas as coisas, somos colocados à
disposição de regras que nos fornecem as diretrizes para uma boa
convivência. E é por acreditar nessas determinações, que a escritora
remonta em sua obra esses conceitos primários na tentativa de
compreender o que parece escapar aos olhos dos poderes
dominantes. Para ela, a lei que determina: “não matarás”, a lei que
protege corpo e vida, é a sua garantia de vida (LISPECTOR, 1999, p.
124), bem como de resguardo pelo reconhecimento de uma lei de
proteção para ambas as partes. Essa defesa que se estende às
camadas jurídicas, por dupla obrigação, deveria ser cumprida, porém,
no caso de “Mineirinho”, é visível o rompimento dessa regra.
Munida de um sentimento paradoxal, a escritora, ancorada no
suporte e na legitimidade do Estado em defender seus cidadãos,
reage em “legítima defesa” ante a caracterização de uma ação brutal
- 281 -
por parte daqueles que nos deveriam prestar socorro. São os treze
tiros que mataram Mineirinho que desencadeiam uma infinidade de
reflexões contraditórias, de dores e desilusões pela instituição de um
poder autoritário que, no exercício de seu “direito de punir” são
acometidos por atitudes desumanas conferidas pelo poder excessivo.
É a sensação de pequenez e de impotência, e mais ainda, a
dificuldade de alcance e completude mediante os fatos, que faz
Clarice Lispector descrever tão intensamente os treze tiros que
mataram Mineirinho:
- 282 -
“Mineirinho” (LISPECTOR, 1999, p. 124). A composição de sua
narrativa cerca-se da percepção e da decepção de uma conformidade
mediante o regime instituído. De acordo com Clarice, “os sonsos
essenciais” somos todos nós que, diante da necessidade de
segurança, abandonamos a nossa força, revolta e amor, cedendo
lugar ao “esquecimento” e ao conformismo.
No que se refere aos discursos produzidos pela imprensa, a
trajetória de “Mineirinho” irrompeu, sob diferentes olhares, os mais
variados relatos sobre a atuação desse transgressor. Como “um
grama de radium”, “Mineirinho” despertou a atenção da polícia
devido às inúmeras infrações cometidas contra a sociedade.
Contravenções, assaltos, assassinatos, uma série de delitos que
fizeram deste “facínora” um dos homens mais procurados pela
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Segundo informações do
jornal O semanário, de 10 de maio de 1962, “Mineirinho” iniciou-se
no mundo do crime a partir de seu envolvimento com o “jogo do
bicho”, sendo acusado, mesmo sem provas, de inúmeros assassinatos
relacionados a esta prática, e, por este motivo, perseguido pela
polícia. Sua primeira captura realizada pelo delegado Rogério Monte
Viana, decorreu de uma sequência de assaltos, um deles considerado
uma de suas maiores façanhas, incluindo o ataque a um posto da
Polícia Militar, ferindo um policial e levando dois deles a morte. Preso
- 283 -
no carnaval de 1955, na Penitenciária de Niterói, “Mineirinho”
consegue fugir, porém dois dias depois é capturado. Doente e com
suas faculdades mentais abaladas, José Miranda Rosa, transitava
entre a prisão – atribuída ao manicômio penitenciário e ao cárcere, e
a liberdade, por sua presença, em fuga, nas ruas do Rio de Janeiro (O
SEMANÁRIO, 1962, p. 7).
A penúltima caçada a “Mineirinho”, considerado o “pistoleiro
louco”, por suas passagens pelo manicômio penitenciário, foi ainda
mais intensificada, após desafiar a polícia por praticar, durante um
mês, incontáveis assaltos no antigo Estado da Guanabara (RJ). Este
fato foi noticiado pelo jornal Última Hora, no dia 25 de outubro de
1961, após a prisão de “Mineirinho”, possibilitada por uma armadilha
de um dos integrantes do grupo, “Cabo Luiz”, coordenada pelo
detetive Perpétuo de Freitas (“El terror de los pistoleros brasileños”).
Enviado novamente ao manicômio, foge pela segunda vez, em abril
de 1962, desencadeando, assim “a mais aparatosa de todas as
caçadas policiais já registradas no Rio, detetives, soldados da Polícia
Militar e guardas da Vigilância tinham ordens para capturá-lo morto”
(SEMANÁRIO, 1962, p. 10). O fatídico 30 de abril de 1962concedeu a
Mineirinho o seu último dia de vida, pois habituado a obrigar
motoristas de táxi a conduzi-lo aos locais de seus assaltos, Mineirinho
- 284 -
foi delatado a polícia, mais uma vez, por um motorista, porém esta o
levaria a morte (SEMANÁRIO, 1962, p. 10).
Com 13 tiros, Mineirinho foi massacrado pela polícia de
maneira brutal e desumana. O primeiro tiro impossibilita a
locomoção do infrator, fazendo-o, em vão, abrigar-se debaixo de um
ônibus para fugir desse acerto de contas, mas acaba por ser
executado no local, e seu corpo conduzido para a Estrada Grajaú-
Jacarepaguá e abandonado (SEMANÁRIO, 1962, p. 10). Muitos foram
os veículos que noticiaram a morte brutal de Mineirinho. Cada um, à
sua maneira, observou e descreveu os detalhes mais chocantes que
repercutiram na caçada e na execução de José Miranda Rosa.
A reprodução das impressões veiculadas pelos principais
jornais da época, até o assassinato de “Mineirinho”, nos permite
compreender a intensidade dessa brutalidade e o embate das
relações de poder que trafegam no interior dos discursos noticiados
pela imprensa, seja do cidadão comum bem como do Estado que,
valendo-se de sua legitimidade, justifica os atos mais agressivos. O
registro do jornal Correio da manhã, de 22 de dezembro de 1962,
descreve a morte de “Mineirinho” como um dos principais fatos do
mês de maio, do ano de 1962, intitulado “Em 1962 foi assim: Bomba
na Exposição russa e morte de “Mineirinho”, fatos principais de
maio” (CORREIO DA MANHÃ, 1962, p. 5), despertando, dessa forma,
- 285 -
os reflexos e o sentimento de compaixão e humanidade que dividiu
opiniões e causou uma multiplicidade de “sensações contraditórias”.
Portanto, consideramos essencial a explicitação de alguns desses
relatos para apreendermos os diferentes olhares e discursos
produzidos por alguns jornais da época sobre este assassinato,
disponibilizados para consulta no site da Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro (BN).
Sob o seguinte título: “Mineirinho morreu com oração e
recorte no bôlso”, o Diário Carioca de 1º de maio de 1962, faz seu
relato da seguinte forma:
- 286 -
O Diário de Notícias, de 1º de maio de 1962, indo diretamente
ao foco, ou seja, na brutalidade da ação, intitula a primeira página e a
primeira linha de notícias do seu jornal desta forma: “Mineirinho foi
metralhado treze vêzes e atirado no mato”, e sob esta descrição:
Sem sangue
[...]
Multidão
- 287 -
Logo que se espalhou a notícia da localização do
corpo de “Mineirinho”, verdadeira multidão
deslocou-se na direção do quilômetro 4 da
estrada Grajaú-Jacarepaguá. Foi necessário
estender um cordão de isolamento sob a
orientação do delegado Cecil Borer e do
comissário Amado.
Fim
EM OUTRO LUGAR
- 288 -
pano) haviam sido retirados e colocados, em
ordem, a uma distância de dois metros [...].
[...]
MORREU
[...]
PERÍCIA
- 289 -
[...] “Mineirinho” foi varado 13 vezes por balas de
revólver calibre 38, metralhadora portátil e pistola
45 e 7, 65. Morreu de mãos para cima, depois de
ter percorrido, já ferido, pequena distância na
frente de seus matadores.
Rigidez
Posição
- 290 -
Dessa forma, no detalhamento dos fatos e das imagens
captadas pelo olhar sensibilizado e atravessado pelas objetivas, a
imprensa carioca manifestou, em seus mais diferentes discursos, a
crueldade das ações humanas, uma multiplicidade de sentimentos
ante as formas de punição, e a vida paradoxal de um homem cuja
“sensibilidade”95 e religiosidade pontuavam a contradição do ser
humano (contraventor) que protagonizava. É, portanto, na ausência
desse entendimento que nos sentimos, assim como a imprensa e a
sociedade da época, divididos “na própria perplexidade diante de não
poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e
no entanto nós o queríamos vivo” (LISPECTOR, 1999, p. 123).
Se a reprodução deste fato causou na imprensa e na
população um desconforto em relação à maneira como esta caçada
foi conduzida, e levada a cabo, sensibilizando-os e produzindo os
mais variados conflitos em relação à espécie humana, em Clarice a
repercussão não poderia ser diferente. “Em carne viva”, a escritora,
receptiva aos fatos e repleta da sensação de impotência perante a
crueldade humana, “literaliza” a dura realidade de “Mineirinho” nas
páginas de sua crônica, pontuando e tentando compreender as
95
A sensibilidade atribuída a “Mineirinho”, neste trabalho deve-se, não apenas a
suas atitudes em relação aos moradores da favela em que morava, pois tirava dos
ricos para suprir as necessidades dos pobres, mas ao sentido de humanidade; na
questão que se volta para o ser humano em seu direito de ser respeitado como
cidadão.
- 291 -
relações de poder entre Estado e Sociedade, e, mais do que isso, a
violenta reação exercida pela força de sua legitimidade. Nesse
contexto, nossas análises direcionam-se às reflexões de Michel
Foucault para uma compreensão mais ampla acerca do vínculo
estabelecido entre a dicotomia da violência e do poder no âmbito
dos discursos.
- 292 -
desumana do assassinato de “Mineirinho” com treze tiros,
concretizam algumas dessas ações e nos permitem a incompreensão,
suscitando uma reflexão teórica acerca dos motivos que os levaram a
exercer sua força com essa intensidade.
Podemos relacionar essa forma de defesa das instituições
com uma das concepções mais pertinentes em relação a esse tipo de
poder, advindas das reflexões do sociólogo Max Weber (1956) que
nos apresenta os “Os três tipos puros de dominação legítima”
(dominação carismática, tradicional e legal), esclarecendo e
auxiliando nossa pesquisa no entendimento da força desse poder
como uma forma de
- 293 -
monopólio da força. Porém, essa punição, muitas vezes, tem como
resultado a violência.
Desde os tempos mais remotos, a violência vem cercando a
sociedade de maneira intensa e desordenada. São sábias as palavras
de Aguinaldo de Bastos (2011): “Onde existem seres humanos, de
algum modo existe violência” (BASTOS, 2010, p. 41), por encontrar-se
entrelaçada à história da sociedade. Inúmeras guerras em defesa de
territórios e instituições serviram-se da força bruta como resposta a
sua soberania e em defesa de seus interesses. Essa força extrema
“não é algo que possuímos, mas uma possibilidade de ser que nos
estrutura” (BASTOS, 2010, p. 41). É partindo desse princípio, dessa
possibilidade de “ser”, que mergulhamos na história em uma
tentativa de compreender e definir a “manifestação desse caráter”
na constituição do ser humano. Para tanto, é necessário retomarmos
algumas considerações de Michel Foucault (2012), quase um século
após Max Weber, para apreendermos as consequências desta
dominação.
Conforme mencionado anteriormente, a punição traz em sua
constituição os resquícios de um passado de vingança. Esse processo
foi observado e analisado por Foucault (2012), sob as bases de uma
formação ideológica, calcada indubitavelmente na condição do ser
humano e nos reflexos dessa manifestação para as gerações
- 294 -
posteriores. Na segunda metade do século XVIII, inúmeros protestos
em relação às irregularidades na condução das formas de punição
encontraram eco entre filósofos, juristas, magistrados e teóricos do
direito; todos imbuídos a uma reforma na condução dessa prática
que tornou o suplício96 intolerável (FOUCAULT, 2012, p. 71). Segundo
a descrição de Foucault (2012):
96
De acordo com a definição retirada da Enciclopédie e apresentada por Foucault
(2012), a expressão possui a seguinte definição: Pena corporal, dolorosa, mais ou
menos atroz (dizia Jacourt); e acrescentava: “é um fenômeno inexplicável a
extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade” (FOUCAULT,
2012, p. 35).
- 295 -
quando punimos: a sua “humanidade” (FOUCAULT, 2012, p. 72). Era
o aspecto da punição que deveria ser ressaltado, e não a vingança.
Foram os grandes “reformadores” que colocavam em prática a razão
advinda de suas ideologias, pregando os valores da liberdade,
igualdade e da fraternidade na condução de uma nova sociedade que
se formava. Nesse período, observou-se um “afrouxamento” em
relação às penas, pois o crime passa a perder violência, e as penas a
sua intensidade. Os crimes que vigoram com mais intensidade são os
roubos, a delinquência ocasional e, principalmente, os desvios de
bens e a “criminalidade das bordas e margens”, reservada aos
profissionais, ou seja, crimes direcionados a outros alvos. Muito se
discutiu, e ainda se discute, sobre a diminuição ou o aumento da
delinquência nesse período, porém, é indiscutível a percepção de
uma nova constituição de crimes e de regulamentos na condução da
sociedade (FOUCAULT, 2012, p. 72-74).
Foucault (2012) observa que esta passagem de uma
criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude insere-se
em um contexto de mecanismos complexos,
- 296 -
descoberta, de captura, de informação: o
deslocamento das práticas ilegais é correlato de
uma extensão e de um afinamento das práticas
punitivas (FOUCAULT, 2012, p. 75).
- 298 -
“economia”, formava “a engrenagem entre o príncipe e o povo”
(FOUCAULT, 2012, p. 72). Com o advento das organizações
institucionais, desenvolvidas à luz dos ensinamentos contidos na
proposta da criação de uma escola, em 1667 (escola dos Gobelins),
que objetivava ao aproveitamento e ao acúmulo do tempo, como um
recurso de controle dos corpos, dos lucros e da utilidade advinda
dessa nova técnica de dominação, e que se estende para outras
instituições como hospitalares e militares, apresentou, neste último,
a imagem auxiliadora desse poder na figura “domesticada” e
“disciplinada” do soldado. Com os espaços meticulosamente
organizados, e com o tempo e as atividades controladas e
observadas, a disciplina de preparação configurava-se em um projeto
disciplinar coordenado por técnicas de poder e um processo de saber
(FOUCAULT, 2012, p. 150-151). Embora os sistemas de organização
estejam calcados na amplitude das instituições sociais, é focado na
instituição militar que nossos estudos estão voltados.
Segundo a descrição histórico-filosófica de Foucault (2012),
nesses espaços, a metodologia disciplinarem relação às técnicas de
comportamento, às habilidades no manuseio de armas e à postura
corporal necessárias para sua utilização, o nivelamento de
conhecimento em relação aos outros e sua capacidade de
transferência para outros estágios do aprendizado, além dos
- 299 -
postulados hierárquicos que prescreviam a realização das atividades,
confirmavam o exercício do poder sobre os indivíduos e a
transmissão do saber. Porém, por razões econômicas houve a
necessidade de especializar ainda mais esses indivíduos que viviam a
serviço do Estado. E com o advento do fuzil e de suas práticas de
ação, sua força foi consolidada, em maior grau, pela potência do
armamento e a compreensão de sua utilização, compondo a
formação de um aparelho eficiente. Sendo assim, por intermédio
dessa forma de “adestramento”, que objetiva a “fabricação” de
indivíduos,
- 300 -
recompensas que buscam compreender-se no próprio circuito de
suas atividades. Ou seja, as “obrigações” reconhecidamente
necessárias para a ordenação disciplinar que se apresentam em seu
maior grau de qualidade e perfeição, são reconhecidas e
recompensadas, mas, as que denotam graus inferiores, são
claramente expostas entre todos os indivíduos e punidas com
severidade e humilhações. É certo que o estímulo à perfeição, por
intermédio de recompensas, conduz a esforços mais intensificados
para alcançar este objetivo e eliminar a “classe vergonhosa”
existentes no interior dessa instituição, porém, os mecanismos
utilizados para criar esses estímulos são, em altíssimo grau,
internalizados e, definitivamente, repetidos e insistentemente
redobrados ao primeiro sinal de poder. É a prática da “sanção
normalizadora” de que fala Foucault (2012) em sua atuação
determinante, através de técnicas de poder.
Impulsionada pelos ensinamentos adquiridos, a instituição
militar atual reflete toda a compreensão dessa multiplicidade de
saberes visivelmente observada na condução de suas atividades,
principalmente, no que concerne à formação, organização e ao
“adestramento” de seus militares. Além disso, este processo
fundamentado nas raízes mais sólidas desta instituição traz consigo a
- 301 -
representação mais eficiente deste sistema: a coerção individual e
coletiva.
Diante das declarações, muitas vezes em forma de “recado” a
“Mineirinho”, podemos observar como os discursos do Estado, mais
especificamente da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro,
imprimem a representação de uma coerção individual e coletiva
como demonstração de força e legitimidade. Esse processo, que se
apresenta como um reflexo das análises foucaultianas sobre as
relações de poder é reforçado pela intenção de instaurar uma política
ideológica que visa não só à disciplina, mas também ao “controle dos
corpos”. Tal procedimento estabelecido pela força e pelo discurso
dessa instituição, que se “dedica” à defesa de uma sociedade sobre a
qual pretende exercer absoluto poder, revela-se, em sua
representação, munida de uma força física e moral que se inscreve
sob as bases de uma política repressora. Pois, os discursos
reproduzidos pela imprensa denotam, além da afirmação dessa
instituição, a força de uma autoridade que se coloca acima do bem e
do mal capaz de decidir sobre a vida e a morte.
É de suma importância clarificar que a discussão não
desconsidera a necessidade de uma instituição que possa abarcar
uma política de contenção às atitudes subversivas e fora-da-lei.
Porém, nos interstícios dos mecanismos de controle é essencial que
- 302 -
as instituições se proponham à transferência de uma atuação
solidária em que sociedade e Estado estejam em comum acordo, no
que diz respeito às normas de conduta, e sem a reprodução de um
medo que rompa com as linhas de comunicação entre as instituições,
fazendo-as sentirem-se menores e subjugadas a um poder unilateral
concretizado por intermédio de seus discursos de ódio, violência e
afirmação de sua soberania. Embora, na atualidade, os discursos de
ódio não se apresentem da mesma forma e com a mesma
intensidade na imprensa, suas ações presentificam e afirmam que os
discursos não foram extintos.
- 303 -
dimensão estética da escrita não se limita a ser ornamento, mas é,
justamente pelo caráter de inconclusão dos processos de significação
que ela desencadeia ou está por desencadear, um saber sobre a vida
que se apresenta sob a forma narrativa” (ETTE, 2015, p. 14).
De acordo com Ette (2015), esse saber sobre a vida,
desencadeado pelo processo de leitura, atinge dois níveis de
compreensão: o saber sobre a vida, no sentido do saber como
elemento de sobrevivência; um modo de condução, de prática e
apreensão da vida, cerceada por movimentos multi, inter e
transculturais que produz nos indivíduos repetidos processos de
autorreferencialidade e autorreflexividade, e o saber da vida sobre si
mesmo, sintetizado por um saber em meio à vida, viabilizando o
saber-sobre-viver em suas mais variadas formas de opressão até as
reflexões que abarcam o campo das múltiplas ciências. Nesse
sentido, a literatura em sua diversidade de gêneros, funciona como
uma mídia interativa de armazenamento dos saberes sobre a vida
(ETTE, 2015, p. 14-15). Tal análise caracteriza-se pela forma de
atuação da literatura em sua estrutura mais profunda, relacionando a
esses saberes os campos mais complexos, no intuito de “torná-los
acessíveis e frutíferos para o pensamento e o agir de hoje” (ETTE,
2015, p. 16) pois,
- 304 -
[...] o saber sobre a vida abre horizontes,
questiona limites disciplinares e demanda
abordagens transdisciplinares que relacionem o
saber acumulado proveniente dos Estudos
Literários, das Ciências Sociais, Naturais e da
Cultura com a memória sempre dinâmica das
literaturas do mundo (ETTE, 2015, p. 22).
- 306 -
própria condição humana. Sendo assim, outra forma de poder
circunda as esferas da sociedade, pois, ao contrário do poder que
vigia e controla a individualidade humana, essa maneira proporciona
a reflexão ante as formas dominadoras do poder.
É o poder de um discurso que se propõe a perspectivas que
vão além da existência humana por sua capacidade, ou pelo menos
uma tentativa, de compreender e abrigar as relações sob outro olhar;
mais justo e mais humanizado. Dessa forma, desde os tempos mais
remotos, o veículo informativo, “a crônica de um homem, o relato de
sua vida, sua historiografia redigida no desenrolar de sua existência
faziam parte dos rituais do poderio” (FOUCAULT, 2012, p. 183), e até
hoje continuam exercendo essa função. A visão que se tem da
crônica, ainda de acordo com Foucault (2012) é a “de uma certa
função política da escrita, mas numa técnica de poder totalmente
diversa” (FOUCAULT, 2012, p. 183).
Esse discurso propiciado pela crônica, em Clarice, subverte os
conceitos de uma prática vista apenas como um exercício de
soberania, resultando na submissão dos corpos em detrimento das
práticas positivas incorporada nas relações de poder exercida pelos
discursos. A observação de Foucault (2012) torna clara a existência
de uma vertente do poder, pois,
- 307 -
Temos que deixar de descrever sempre os efeitos
de poder em termos negativos: “ele exclui”,
“reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”,
“mascara”, “esconde”. Na verdade o poder
produz; ele produz realidade; produz campos de
objetos e rituais de verdade. O indivíduo e o
conhecimento que dele se pode ter se originam
nessa produção (FOUCAULT, 2012, p. 185).
Conclusão
Abarcando conceitos sobre violência e poder, a crônica
Mineirinho reflete a preocupação de Clarice Lispector ante a
supremacia do poder exercida pelo Estado e seus inúmeros excessos
em relação ao grau de punição de seus indivíduos. Esta análise cerca-
se de um imenso sentimento de humanização, por parte da escritora,
na formação social e intelectual de indivíduos como “Mineirinho”,
que vivem às margens da sociedade. Sua forma silenciosa e
contundente ao narrar o assassinato de um homem, cuja vida
- 308 -
excedeu seus próprios limites, marca a escrita política de uma
escritora que viveu os problemas sociais de maneira intensa,
propagando um discurso que visa à análise em profundidade do ser
humano e de sua compreensão no mundo.
Esse discurso, norteado por essa necessidade de apreender as
relações humanas é intensificado a partir de sua sensibilidade ao
lidar com os sentimentos contraditórios que, na narrativa, atravessa
a figura do contraventor e depara-se com a figura humana em sua
mais pura essência. É por intermédio desse olhar, dessa narrativa
cujo gênero faz parte de um “ritual de poderio”, que a escritora fez
da palavra a sua arma de defesa e de contestação. Pois, recontar o
relato da vida deste “facínora” é enveredar pelos inúmeros
problemas sociais e políticos de uma nossa sociedade constituída sob
as bases de um poder que imprime em seus discursos a exclusão e a
censura de seus subordinados.
Dessa forma, o estudo propôs uma visão que vai além do
simples relato, pois mais do que uma matéria jornalística, a crônica
clariciana apresenta o relato sensibilizado de uma escritora que sente
as agruras de se viver sob a ameaça e a desordem humana. E é na
extensão de sua percepção que fomos levados a analisar cada linha
de seu discurso, não apenas sob uma visão humana, mas também
política, pois seu discurso nos direciona inevitavelmente a pesquisa
- 309 -
das relações existentes entre Estado e sociedade. O embate entre os
discursos produzidos pela instituição policial, veiculados pela
imprensa, atrelados ao discurso literário de Clarice Lispector,
permitiu-nos compreender as relações e as diferentes formas de
poder, calcadas nas descrições de Foucault (2012), que são
instauradas pela comunicação.
Nesse sentido, verificamos que as relações de poder nem
sempre se apresentam de forma negativa, de acordo com as
considerações de Foucault (2012), pois no que concerne aos nossos
estudos, se por um lado os discursos das instituições policiais
apresentam-se revestidos de um poder dominador que “repreende”
e “exclui’, mascarando os efeitos sobre os cidadãos que os apoiam,
apresentando-se em forma de uma segurança abstrata, por outro, o
discurso literário “produz” a sua verdade. Ele revela o que o outro
esconde e aliena: a consciência de ser o outro, a autonomia do ser
humano e, principalmente, o instinto de humanidade. São esses
alguns dos elementos omitidos pela instituição policial, órgão
pertencente ao poder estatal como um todo, que a escritora traz à
tona de maneira bastante contundente. São as linhas e as entrelinhas
de um relato que se pretende a expurgação e a compreensão das
atitudes humanas, pela escritora, que faz da nossa leitura uma busca
por essa compreensão, tornando-nos mais capazes de perceber e
- 310 -
reconhecer, não apenas as atribuições do Estado, mas também
nossos direitos como indivíduos iguais, pertencentes à mesma
sociedade e, mais ainda, como seres humanos.
- 311 -
Referências Bibliográficas
- 312 -
MINEIRINHO: produto típico da pobreza e da injustiça! O Semanário:
jornal eletrônico da Biblioteca Nacional Digital, Rio de Janeiro, ed.
00280, p.7;10, mai.,1962. Disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=14
9322&pagfis=3974&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#.
Acesso em: 14 mai. 2016.
- 313 -
O devir horribilis e a violência na modernidade kafkiana:
ecos de uma literatura de terror
97
Mestrando em Literaturas de Língua Inglesa, UERJ.
- 314 -
versa que o Capitalismo, por exemplo, fruto inseparável da
modernidade, mostrou-se poderosíssimo em criar problemas e não
apenas em solucioná-los. Tais problemas evidenciam um conjunto de
alicerces frágeis, cuja estabilidade depende sobremaneira de uma
harmonia tênue que, se posta à prova, mostra-se, por vezes,
inconsistente.
Com o crescimento dos centros urbanos, os temores que
anteriormente tinham o seu locus mais possivelmente situado nos
perímetros que transcendiam àqueles do lar e da segurança passam a
povoá-los. A capital não mais representa as balizas cartográficas do
racional e do seguro. Agora, despontam desconfianças crescentes
acerca das cidades, principalmente as oriundas das injustiças
emergentes da maquinização dos centros urbanos, de uma adoecida
classe trabalhadora e do campo das ciências, frutuoso tanto para os
estudos das espécies quanto para os medos e preconceitos que dele
floresciam – desconfianças indissociáveis aos pormenores da
modernidade.
Se em Dracula (STOKER, 1993[1897], p. 11) nos deparamos
com o comentário do protagonista acerca dos trens, ainda no início
da obra, que evidencia o Reino Unido como um perímetro de razão,
harmonia e civilidade em contraste à primitividade do Leste Europeu,
Botting (2013, p. 160) enfatiza, entretanto, que, em Secret Agent
- 315 -
(CONRAD, 1995[1907]), Londres já representava um labirinto obscuro
de produção industrial, moradia da Classe Trabalhadora. Botting
(2013) nos mostra também, por exemplo, que os horrores que antes
pairavam sobre o outro e sua barbárie se mostravam íntimos da
sociedade vitoriana. Por questões que Blake (2006, p. 90) já
denunciara em The Chimney Sweeper e Mary Shelley (2014[1818]),
em Frankenstein - e que no rebento do século XX inflamavam com
mais intensidade - as fronteiras que tão demarcadamente
assinalavam o bem e o mal, o eu e o outro tornam-se nebulosas e
borradas. A pobreza enseja a criminalidade; a massificação do
homem, a injustiça; a ciência, o desconhecido e esse nem sempre é
benigno.
Uma sociedade moderna requeria, outrossim, uma classe
trabalhadora funcional. Fruto das (r)evoluções industriais, nas classes
mais baixas, o homem indivíduo passou a ser categoricamente
compreendido como um número no maquinário da produção.
Preteriam-se, portanto, as necessidades do ser em sua infinita
potencialidade e preferiam-se a mão-de-obra cada vez mais funcional
e gastos igualmente menores. Sobre isso, Éric Hobsbawn acrescenta
que “a mecanização aumentou muito a produtividade (isto é, reduziu
o custo por unidade produzida) da mão-de-obra, que de qualquer
forma recebia salários abomináveis” (HOBSBAWN, 2015, p. 29).
- 316 -
Ignorando as amplas necessidades inerentes ao ser humano,
pretendia-se chegar ao mínimo possível de gasto com o máximo
possível de produtividade, segue o teórico que “[...] de fato os
salários caíram brutalmente no período pós napoleônico. Entretanto,
havia um limite fisiológico nessas reduções, caso contrário os
trabalhadores morreriam de fome” (HOBSBAWN, 2015, p. 29). Karl
Marx nos acrescenta, em seus estudos anteriormente
compreendidos, que “[a] acumulação de riqueza num polo é ao
mesmo tempo acumulação de miséria, de trabalho atormentante, de
escravatura e ignorância, brutalização e degradação moral” (apud
BARROS, 2012, p. 16). Somavam-se a isso o trabalho infantil, que por
vezes resultava na morte ou no adoecimento precoce e crônico das
crianças – e aqui faz-se necessária mais uma vez a menção ao poema
The Chimney Sweeper, onde o foco é exatamente a denúncia a essas
questões - e a luz elétrica que tornava o dia mais longo e as noites de
descanso mais curtas.
Paulatinamente, a “putrefação” encontrada no “outro” - o
bárbaro! - pelos iluministas que compuseram o alto pensamento
setecentista se radicava nos grandes centros civilizatórios e
defensores da razão ocidental. A introjeção da barbárie no seio
urbano torna a cidade (antes o abrigo da razão contra os absurdos do
passado fantasmagórico) um âmbito de inseguranças. Ao contrapor o
- 317 -
pensamento de Norbert Elias, Michael Löwy (2005) mostra que o
processo civilizatório da modernidade não é um conjunto de medidas
que visa cercear a violência exercida de maneira espontânea,
irracional e emocional, sulcando e monopolizando-as pelo estado e
as forças políticas em prol de um controle das emoções que
assegurem a pacificação e que garantam, consequentemente, um
afastamento da sociedade civilizada da violência de combate dos
povos tribais; mas que essas civilizações, quando expostas a
intempéries extremas, têm poder agressivo e bélico ocultados sob a
indumentária da civilidade que não se podem comparar ao dos ditos
povos tribais, dada a violência massiva de seu poderio. O teórico nos
diz também que a supramencionada civilidade tem bases que não
são incólumes, mas podem ruim ao menor estranhamento. Em
determinado nível, moralidade civilizada é o verniz de hipocrisia que
impede que aflorem os nossos desejos inconfessáveis, mas eles não
cessam de existir.
Sob égide do amadurecimento dos pressupostos acima,
surgiram, do seio da modernidade, a burocracia moderna e, mais
além, a burocratização da sociedade, bem como um conjunto de leis
imprescindíveis para as engrenagens sociais. Essas medidas têm
como objetivo a ordenação sociopolítica, dada a nova face urbana,
- 318 -
mais complexa e de acelerado crescimento. Segundo Max Weber98
(2012, p. 9), a burocracia se desenvolve plenamente nos meios
eclesiásticos e políticos. Quanto ao setor privado, ela só atinge
plenitude nas sociedades cujo capitalismo esteja em nível
amplamente avançado. O autor prossegue nos dizendo que “[a]lém
disso, a posição do funcionário tem natureza de dever” (WEBER,
2012, p. 13) e que “[o] acesso a um cargo, incluídos os da economia
privada, considera-se como a aceitação de um dever particular de
fidelidade à administração, em troca de uma existência segura. “
(WEBER, 2012, p. 13). Para o teórico, para que as caldeiras da
burocracia funcionem a pleno vapor, é necessária a desumanização
dos dois expoentes na relação de fidelidade – ela não pode, portanto,
se assemelhar a de um vassalo e um suserano, tampouco a de um
mestre e discípulo -, “a lealdade moderna adere-se a finalidades
impessoais e funcionais” (WEBER, 2012, p. 13)
Destarte, para a classe trabalhadora, a industrialização trouxe
o labor massivo e massacrante, tornou o homem uma extensão da
máquina prática, produtora em massa. O indivíduo tem suas
necessidades ignoradas e torna-se fluido a um todo funcional,
organismo produtivo, onde a eficiência e o menor custo são pivotais.
- 319 -
A burocracia rege o concerto em relações pragmáticas de dever que
impessoalizam os expoentes a fim de que a eficiência plena
mantenha a máquina produtiva pulsante. Ela é a nova ordem. O
mosaico de papéis e cargos funcionais é a nova ordem. Os
significantes assumem papel basilar no mapeamento e manutenção
dessa ordem: o pai, o provedor; o filho, a continuidade; a esposa, a
dona de casa... Exemplos inúmeros do supracitado. A ordenação,
entretanto, e o progresso vêm atrelados a uma espécie de
degradação dos membros menos favorecidos, as instabilidades e
injustiças urbanas também assombram o imaginário.
A família, frequentemente tomada como uma primeira
metonímia do Estado (AZEVEDO, 2011, p. 56), tem a instabilidade e o
medo invadindo a morada urbana. A casa, as ruas, as vielas, a cidade
como um todo tornavam-se o novo locus do medo. As
transformações em nível global, pavimentadas pelo progresso
industrial e tecnológico, reconfiguram o mundo como o homem
anteriormente conhecia. O período que compreende a segunda
metade do século XIX e a primeira metade do século XX sofre
também uma extensa e acelerada modificação no campo dos
saberes. O desenvolvimento prometia – e, a certo nível, cumpriu,
superando velhos temores – melhorias de vida; sob a máscara de sua
vindoura harmonia, entretanto, escondia-se um verdadeiro paiol de
- 320 -
novos horrores. Jean Delumeau (2007) esclarece que, em um
passado remoto, os temores que assombravam a consciência
humana remontavam às vicissitudes da natureza, como epidemias,
desastres naturais, etc., ao passo que ontem, com os massacres
empreendidos pelas revoluções, massificação urbana e guerras, o
medo migrou para a mão dos homens e para dentro de um locus que
anteriormente pretendia abrigar o próprio homens contra o mal. O
historiador prossegue e diz que um outro medo recorrente e
“atemporal”99 é o do Outro. Aquele que “[t]em costumes,
comportamentos, práticas culturais[...], religião, cerimônias e ritos
cujo significado nos escapa” (DELUMEAU, 2007, p. 46).
- 321 -
contemporâneo em novas penínsulas intelectuais cuja pretensão era
expugnar os mares da ignorância vigente. Desses movimentos,
destacam-se o Iluminismo e o Neoclassicismo - movimento de
“tentativa de retorno[...] aos padrões greco-latinos” e de “uma
revolução baseada no progresso do conhecimento humano[...]
voltada para a precisão e para a máquina” (CADEMARTORI, 1987, p.
31). Era o saber a serviço de uma existência melhorada – já
compreendidas todas as contradições existentes no termo 'vida',
posto que a melhoria não tangeria a todos, mas uma determinada
classe. É nesse ínterim que surge o Enciclopedismo de Diderot,
Rousseau, Voltaire e Montesquieu, cujo intento era um compêndio
intelectual “acessível” e difundidor dos saberes. Embora esse mesmo
período fosse diverso, como voga José Guilherme Merquior
(PORTELA, 1976, p. 59) ao chamá-lo de Neoclassicismos (grifo nosso),
uma característica os cosia: “Natureza, razão e verdade estão em
relação de correspondência, embasando as manifestações artísticas.
A literatura dessa época deveria ser a expressão racional da natureza
para ser a manifestação[...] de uma verdade possível”
(CADEMARTORI, 1987, p. 32). Entendia-se a natureza como o Cosmo,
uma relação harmoniosa e equilibrada que propiciava a existência,
portanto, a criação e a beleza pendiam a um conceito de harmonia
apolínea e o equilíbrio racional.
- 322 -
Outra característica partilhada pelos períodos de busca
clássica é a da Idade Média como fonte de alteridade. O
Renascimento tem em seu nome o pressuposto de uma nova vida
aos ideais interpelados pelo período medieval. Assim “Voltar aos
clássicos significava renascer pelo reencontro com o padrão legítimo
[...] O patrimônio clássico não havia sido esquecido pela Idade Média;
havia sido cristianizado, o que significa uma deformação”
(CADEMARTORI, 1987, p. 18). Mesmo o nome “Idade Média”, que
pressupõe um ínterim de pouca importância separando dois outros
momentos é de uma conotação até pejorativa. O Século das Luzes
(XVIII) se opunha então a uma rotulada Idade das Trevas (Idade
Média) e, com isso, cunhava pejorativamente as manifestações
artísticas diversas que se parecessem ou suscitassem a estética
medieval como “gótico”. A escolha do termo dá-se pela ampla
presença dos godos no embasamento das sociedades medievais e,
mais tarde, ascende de seu caráter pejorativo, tornando-se um
fecundo rótulo que perpassa diversas esferas. David Punter (1980, p.
24), porém, enfatiza que, tencionando compreender o mundo no
campo da razão, o Iluminismo não resolveu os problemas pendentes,
frutos dos campos que os saberes humanos não têm acesso, em vez
disso, criou um imenso âmbito interdito que era circunscrito pela
inacessibilidade do logos. Ele diz: “Reliance on reason may appear to
- 323 -
remove mystery, but only at the expense of outlawing large expanses
of actual experience, the experience of the emotions, the
passions[...] its ultimate product is no more than a [...] universal
taboo100” (PUNTER, 1980, p. 24, grifo nosso).
Se, de um lado, a razão limitava o pensamento humano à sua
subordinação e luz; a noite, por sua vez, tornava-se o espaço da livre
imaginação, onde a lente racional do Iluminismo não cerceava a livre
vontade com a mesma maestria. Esse espaço “libertário” vai então
começar a abarcar todo o contraste enegrecido causado pelos
interditos neoclassicistas. A busca por sentimentos mais intensos,
incapazes de serem proporcionados pela estética neoclássica, enseja
a apreciação de expoentes outrora desprezados, como tempestades,
rochas, cavernas e ambientes hostis que não coadunavam com o belo
apolíneo, tão louvado no século das luzes. Menciona Fred Botting
(2013, p 44-45) que o gótico é uma escrita em que a mistura de
“medieval and historical romance with the novel of life and manners”
(that) “was framed in supernatural, sentimental or sensational
- 324 -
terms”101 com forte apelo ao medo, o mais primitivo de todos os
sentimentos.
Ao longo dos séculos que se seguiram, a ficção de
horror/terror esteve à sombra, paralela, como um gêmeo sinistro -
ou gêmeos sinistros. Embora, por buscar influência nos romances
medievais (ou “primitivos” como cunharam pejorativamente ao
longo de sua existência) e, por conseguinte, se afastar do padrão
estético racional e também por se mostrar profundamente
desconfiada em relação ao discurso da razão (FRANÇA, 2013)102, a
Ficção Gótica pareça transgredir os cânones que lhe são
contemporâneos, ela não está livre do contexto em que se insere e,
em grande parte de sua trajetória, ela reafirma tais conceitos – tal
qual sintoma de seu momento. A literatura de terror/horror, como
menciona Fred Botting (2013, p. 1) é uma escrita de excessos,
transgressões e tabus, que lida com aquilo que o racional não pode
abarcar.
101 “Do romance histórico e medieval com o romance da vida e das maneiras que
foi emoldurado em termos supernaturais, sentimentais ou sensacionais”. Tradução
nossa.
102 FRANÇA. Júlio. Espaços tropicais da literatura do medo: traços góticos e
decadentistas em narrativas ficcionais brasileiras do início do século XX. [s.n.] [20--
?] Disponível em:
<https://sobreomedo.files.wordpress.com/2013/08/24082013b.pdf> Acesso em:
20 Nov. 2015.
- 325 -
A Metamorfose, o Horror, os Loci e a Modernidade.
103 LÖWY, Michel. Barbárie e modernidade no séc XX. [s.n.] [199-?] Disponível em:
<antroposmoderno.com/antro-version-imprimir.php?id_articulo=462> Acesso em:
25 Nov. 2015
- 326 -
Em A Metamorfose, o autor versa as desventuras e dissabores
de Gregor Samsa, um caixeiro viajante que “Numa manhã, ao
despertar de sonhos inquietantes, [...] deu por si na cama
transformado num gigantesco inseto” (KAFKA, 2011b, p. 1).
Poupando-nos o clímax vindouro, o narrador desvela a narrativa já
com o problema instaurado, e, mais à frente, nos adverte: “Que me
aconteceu? - pensou. Não era um sonho. O quarto, um vulgar quarto
humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume,
entre as quatro paredes que lhe eram familiares” (KAFKA, 2011b, p.
1).
A primeira manifestação curiosa acerca da injeção do absurdo
é a forma como ela é encarada. O protagonista parece ponderar de
forma pouquíssimo usual a respeito do que lhe acometera: “Gregor
desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado -
ouviam-se os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o
fez sentir-se bastante melancólico. Não seria melhor dormir um
pouco e esquecer todo este delírio?” (KAFKA, 2011b, p. 1) O
desarranjo na ordem natural da lógica, ou seja, a reação que se
espera de Gregor ante às atitudes que ele toma suscita o que
podemos entender por Grotesco: “[o] mundo do grotesco é o nosso
mundo - e não o é. O horror, mesclado ao sorriso[...] e nosso mundo
confiável e aparentemente arrimado numa ordem bem firme[...] se
- 327 -
desarticula nas juntas e nas formas e se dissolve em suas
ordenações” (KAYSER, 2009, p. 27)
Para Kayser (2009), entre as inúmeras possíveis definições, o
Grotesco é a “A mistura do animalesco e do humano, o monstruoso
como a característica” (KAYSER, 2009, p. 24) e “não permite ao
observador nenhuma interpretação racional ou emocional. A
perplexidade do observador é correlata àquele traço essencial que se
alçou como determinante em todas as configurações do grotesco”
(KAYSER, 2009, p. 34) O Grotesco suscita um mal-estar a partir da
suspensão das ordens do mundo, uma angústia que mescla o onírico
e o real a partir de desproporções, deformações, fusões e fissões que
poderiam causar medo, não fosse a natureza ridícula e caricata que
dele emergem e resistem a conceituações e tampouco satisfazem o
plano da compreensão. O efeito do grotesco choca e cria um impasse
entre e atração e a repulsa em que há um quê de desprezível. O
efeito é causado por uma denúncia tão óbvia (a ponto de se tornar
suspeita) na obra, a de que o trabalho torna-se, no adestramento do
indivíduo, maior e mais importante do que a condição humana, ainda
que seja essa elevada aos limites do absurdo. Além do Grotesco,
outros elementos chamam a atenção pelas características comuns à
narrativa gótica...
- 328 -
Outra forma de entender essa agressão à lógica é observar
que Dylan Trigg (2014, p. 42) propõe o corpo como expressão do
mundo para o ser, e do ser para o mundo. Talvez aí resida a chave do
que Gunther Anders (2007, p. 15) chama de “trivialidade do
grotesco”. Se Gregor não compreende o novo corpo como sendo o
imediato do mundo – por conseguinte age normalmente - , sua
família, entretanto, percebe o exoesqueleto como sendo a
manifestação do novo ser – não há mais Gregor, mas um
inseto/monstro. Isso, pois, nos explica a ausência dos “indícios de
agonia ou hesitação”104 por parte do protagonista.
Sendo o monstro o consubstanciamento da alteridade e dos
medos de uma determinada sociedade (GELDER, 2002; COHEN,
2000), Gregor, ao fugir do campo do significante funcional – filho,
caixeiro viajante, provedor -, ameaça a tênue ordem da família
“classe média/média baixa” moderna e sua igualmente valiosa
produtividade. É valido lembrar que, de acordo com Alison Blunt e
Gillian Rose (1994, p. 3), é característica identitária imposta pela
Classe Média em sua ascensão entender que o mundo doméstico e
privado é o paraíso feminino, enquanto ao homem delega-se o
exterior, o mundo a ser ganho e desbravado. Modesto Carone
- 329 -
(2011a), o tradutor (não o único) das obras do autor tcheco no Brasil,
expõe que Kafka tinha um determinado apreço pelo uso quase que
literal das metáforas fossilizadas, sendo, mais propriamente na obra
em questão, a “Luftmensch (literalmente: "homem aéreo"), com a
qual G. Anders, por exemplo, designa o cidadão sem ocupação
definida ou desligado do processo material da produção, e que por
isso mesmo "esvoaça" no contexto social” (CARONE, 2011a, p. 23-
24). Gregor não ameaça unicamente o processo de eficiência da casa
em que habita, mas se torna um monstro, embora não letal,
exponencialmente ameaçador por desarrimar todas as engrenagens
que mantêm a tênue harmonia produtiva.
Deleuze e Guattari (1977) entendem o devir animal como
mais do que mera e simples metáfora, mas a inserção do elemento
estranho nas vísceras da máquina moderna para que se pudessem
expor e desafiar seus agentes e índices maquínicos; não-significação
que revela a fragilidade da ordem; também a fuga estática que
tenciona fazer a cabeça curvada superar o teto-interdito, não em sua
totalidade, não em sua plenitude, mas como possível for,
arrebentando suas telhas, nem que para que apenas um vislumbre
de céu seja possível. Esse encastelamento foge à natureza ordenada
do mundo que lhe é contemporâneo – e ameaça -, tanto quanto,
- 330 -
como versa David Punter105, Drácula em seu castelo ameaça à ordem
civilizada com os assombros de um passado animalesco e
antiquadamente monárquico, razão pela qual, na literatura de terror
as vilas estão sempre ali, às portas, de tochas empunhadas, erigidas
contra a ameaça a sua ordem; Punter salienta também que o próprio
castelo é (ou pode ser, entre outras definições) um escapismo,
encastelar-se, preso dentro de si. Assim como o vampiro que não
produz, mas assombra e consome o mundo racional com seu
arcaísmo animalesco, incursionando no mundo civilizado, liberto dos
interditos que regem a ordem, “Gregor é inútil porque já não produz,
só consome; ao mesmo tempo que Gregor, o inseto, é a forma
sensível de uma libertação” (CARONE, 2011a, p. 23)
Dentre as barbáries que estão latentes na modernidade, que
a ordem dessa tenta sumariamente mascarar e que Kafka, por sua
vez, expõe na introjeção do disparate, estão: 1 – Sob o invólucro da
harmonia funcional familiar, jaz uma grandiosa injustiça no fato de
que, em outras perspectivas permitidas pelo narrador ao longo da
obra, Gregor tem de abdicar-se de seus sonhos para prover a família
que, por sua vez, depende quase que completamente de seu
trabalho. O jogo de inversões de Kafka mostra que o protagonista
era, em verdade, um “escravo assumido” (idem), que, de parasitado,
- 331 -
torna-se parasita. A própria compreensão de família como um abrigo
de cumplicidade de deteriora ao que Gregor descobre que seu pai,
ao contrário de falido, detinha uma quantia em dinheiro que jamais
mencionara e que lhe podia poupar tanta exaustão no intento de
sustentá-los (KAFKA, 2011b, p. 15). 2 - À medida em que o
protagonista é aceito como 'monstro', o comportamento, antes
complacente e pesaroso da família, se torna um misto de pejo com
agressividade. É fácil percebê-lo nas atitudes do pai, antes tão solícito
- “Gregor, Gregor - chamou -, o que você tem?” (KAFKA, 2011b, p. 3)
-, tornando-se ameaçador ao ponto de ferir o filho com uma maçã
(KAFKA, 2011b, p. 21).
Não se pode considerar a obra necessariamente erotética,
característica comum da literatura de terror/horror, porém. Esse tipo
de narração se dá por uma suspensão na totalidade do entendimento
que vai, por meio de respostas, saciando a curiosidade do leitor ao
longo da obra. Em A Metamorforse, todavia, a suspensão permanece
até o fim e as respostas são poucas e precárias, o narrador, embora
heterodiegético, não é onipresente e onisciente (CARONE, 2011a, p.
15) e enxerga tudo parcialmente como se o fizesse a partir de uma
câmera presa no topo do protagonista – exceto ao fim da obra. Tal
efeito introduz no leitor a sensação vertiginosa do indivíduo
- 332 -
moderno que pouco na verdade sabe ante a miríade de informações
que o cerca.
Se tomarmos a casa como uma metonímia, um microcosmo,
podemos conceber, assim, em uma comparativo com as narrativas
góticas oitocentistas, a ideia de que o quarto passa a significar o
locus do monstro, o âmbito do irracional, o desfuncional, estando
para o resto da casa tanto quanto a Transilvânia e a Estíria estão para
a Inglaterra – e que mesmo Karnstein está para a Estíria. É mister
notar, principalmente no tangente à viagem rumo Romênia, que
Jonathan Harker (Dracula) menciona justamente a questão da
funcionalidade atrelada a da civilidade no trecho: “It seems to me
that the further east you go, the more unpunctual are the trains.
What ought they to be in China?” (STOKER, 1993, p. 11). E mais à
frente: “The strangest figures we saw were the Slovaks, who were
more barbarian than the rest” (idem). Exatamente como Karnstein,
abandonada e “inútil”, se posta: à sombra de um mundo arrimado
cuja maior função é, do imo de suas ruínas, assombrar e parasitar das
estruturas da ordem (LE FANU, 2014[1872])
Essa metamorfose que sofre o quarto passa a ser análoga a do
protagonista: se antes era um cômodo funcional, agora é abrigo do
monstro, perde a funcionalidade de outrora e, assim como Gregor
passa a parasitar a família, causa um desequilíbrio descompensatório
- 333 -
que obriga o resto da casa a recompensá-lo. O orçamento e o lar
tornam-se menores, a família decide alugar outros cômodos a fim de
restabelecer os prejuízos e a ordem (KAFKA, 2011b. p. 24). A
introdução dos hóspedes serve, outrossim, não apenas como uma
tentativa de contrabalancear a questão financeira, mas também a
ordem social e funcional da casa – eles representam a falta que
Gregor causa: os negócios, os trâmites, a funcionalidade, a razão. O
dialogo intenso e perturbador com o tabu é, nas palavras de Maria
Conceição Monteiro (2013, p. 17), combustível essencial do “Gótico”.
Dada a bipartição “quarto e casa” como a ameaça irracional e
o mundo ordenado, as tentativas do inseto degenerado de
transgredir os limites espaciais que lhe foram impostos são como, a
um determinado nível, em Bram Stoker (1993) e LeFanu (2014), os
assédios constantemente perpetrados pelo Conde Dracula e a
Condessa Mircalla Karnstein, das profundezas degradantes de seus
habitats, no mundo civilizado. Uma ameaça à realidade ordenada.
Percebamos como os títulos nobiliárquicos que antecedem os nomes
são ênfases de um mundo antiquado e que não mais pertence à
ordem moderna. O grande diferencial é que, na narrativa kafkiana,
esses terrores assolam a ordem moderna do lar. A própria irmã
parece desconsiderar sua condição desejante de ser para tomá-lo
como inconveniente ameaça que, se tivesse consideração, não sairia
- 334 -
do quarto, legitimando, nesse discurso, a transformação do irmão em
monstro (KAFKA, 2011b, p. 25)
Quanto às investidas da família, cada vez mais agressivas, a
fim de limitar Gregor a seu quarto, Jean Delumeau pode conter, em
seu discurso, parte da explicação: “[u]m grupo ou um poder
ameaçado, ou que se crê ameaçado e, portanto, que sente medo,
tem a tendência a ver inimigos por todos os lados: fora e, cada vez
mais, dentro do espaço que ele quer controlar” (In.: NOVAES, 2007,
p. 46-47). Tal paranoia é mencionada por Bram Dijkstra (1986) como
a que assolou e moveu a literatura gótica da segunda metade do
século XIX. A grande disparidade aqui é que Kafka as denuncia
propositadamente.
À medida que Gregor deixa de se tornar “ele” para derivar ao
“isto” (KAFKA, 2011b, p. 29), a família o compreende como um ser
que foge ao significante e passa a ser referenciado como 'coisa', por
isso a necessidade da dêixis apontando além, para o monstro.
Segundo Caronte (2011a, p. 24), a própria narração dá dicas do
porvir: ungeheueres Ungeziejer (inseto monstruoso) [...] quer dizer,
etimologicamente, "aquilo que não é mais familiar, aquilo que está
fora da família, infamiliaris"[...]Ungeziejer, animal inadequado ou que
não se presta ao sacrifício. Igualmente, o quarto, cômodo com o qual
o protagonista tem uma ligação metonímica, passa a ser entendido
- 335 -
de locus amoenus a locus horribilis (entenderemos, para o
funcionamento deste trabalho, particularmente, o locus amoenus
como o lar funcional e familiar da modernidade) e “ressignificado”
como tal. É indispensável, porém, compreender que essa
restruturação é paulatinamente perpetrada pela família, não por
Gregor, que tentava se convencer de que nada de tão anormal
ocorrera, já que ainda, na consciência, se via como indivíduo
desejante. No começo da obra o quarto é narrado como 'familiar '
(KAFKA, 2011b, p. 1), ao longo da narrativa, contudo, “Tiravam-lhe
tudo do quarto, privavam-no de tudo o que lhe agradava (KAFKA,
2011b, p. 18). Logo restava pouco de humano no seu 'habitat' e já se
arrastava entre restos de comida. Isso porque o quarto tornara-se
um locus de interditos e pouco funcional, sua transformação é
orgânica em representar o que nele habita, principalmente dado o
fato de que Gregor não mais era visto como humano pela família,
não carecendo, portanto, das necessidades humanas no seu entorno.
É abjeto no mais amplo sentido, quer ele representar aquilo que é
desprezível, ou – outra característica marcante da Ficção de Terror –
aquilo que se opõe ao sujeito e o campo da significação que, por
conseguinte, retorna para assombrar a razão (ROUDIEZ, 1982)
Quando se agarra ao retrato da senhora e recusa deixar que o tirem
(KAFKA, 2011b, p. 19), Gregor visualiza nele os significantes que
- 336 -
remetem a um mundo 'humano' e civilizado (a senhora, a estola de
pele, o chapéu todos signos construídos pela sociedade) e resiste a
transformação completa em animal, em significante vazio,
compreendendo aquele como o último suspiro que mantém o quarto
ainda humanizado, reminiscência derradeira do que a família parece
não compreender: Gregor não era um monstro. Deleuze e Guattari
(1977, p.13) ainda acrescentam que o retrato de cabeça erguida
representa, na obra kafkiana, o que se opõe ao rosto inclinado pelo
interdito, é transgressão improvisada da máquina desejante tanto
quanto o devir animal ante às ordens do Édipo (aqui compreendido
não à luz da psicanálise freudiana, mas como agente de recalque da
produção desejante. O termo é usado metonimicamente).
É possível notar essa compreensão da família em relação ao
monstro nas atitudes da irmã, de também solícita e amável nas
primeiras passagens da obra e nas lembranças do protagonista, se
torna agressiva ante ao irmão no decorrer da estória, ao ponto de
ojerizar e enxotá-lo (KAFKA, 2011b, p. 19). Grete, no entanto, era
delicada no toque e no trato daqueles que, ao contrário do “irmão”,
não ameaçavam a ordem e harmonia do lar, basta notar como tão
solicitamente toca violino e se comporta de acordo com o ideal
feminino de delicadeza nos outros cômodos (KAFKA, 2011b, p. 25).
Não nos parece demais afirmar comparativamente que, na dicotomia
- 337 -
racional x irracional que mapeia a narrativa gótica oitocentista, das
mulheres que habitam o âmbito da razão, espera-se um
comportamento condizente com a construção feminina de uma
sociedade patriarcal; das mulheres pertencentes aos terrenos do
irracional e do atávico, todo tipo de comportamento animalesco. É
na morte do irmão, porém, que a frialdade se torna mais
contundente, Grete torna-se uma “anti-Antígona”106 e delega à
empregada não o sepultamento de um irmão que lhe tinha muito
apreço, mas que o varresse. Nas palavras de Karel Kosik: “Não se
tratava de um cadáver humano, mas da carcaça de um bicho”.107
Paolo Virno (2008) menciona que alguns estudos diferem o
medo da angústia por uma questão cartográfica: o medo é algo que
remete a um signo conhecido, é mapeado e tem origem delineada,
protegido pela casa e pela práxis; a angústia é o medo do mundo em
sua potencialidade destrutiva e imprevisível, produto final da
aleatoriedade catastrófica. A casa é pobre de mundo justamente por
entender-se como local em que os medos são mapeados e contidos
por uma ordem. Gregor, entretanto, fere essa ordem, abre espaço
para um novo medo, pouco mapeado e que é janela “rica de
mundo”, destruindo os alicerces que escudam o lar da angústia.
- 338 -
Virno segue: “a cisão entre as duas formas [...] desaparece quando
desmoronam as remanescentes comunidades substanciais, [...]
cicatriza-se com o fim de todo e qualquer posicionamento [...] que
ostente a estabilidade quase imutável de um 'ambiente'” (VIRNO,
2008, p. 79).
Considerações Finais.
Dentre as inúmeras definições que tentam assegurar o lugar
diferenciado do ser humano em relação ao animal, a de que somos
dotados da linguagem parece perdurar como um monstro abstrato
na obra kafkiana. No caso d' A Metamorfose, não é apenas o inseto
gigantesco o “outro” que desordena, mas também sua incapacidade
de comunicar. A cisão insuperável que se cria entre Gregor e a família
tem significante explícito, o quarto, onde circunscrevem-se os
dilemas entre a forma como o protagonista se compreende e a
família, por sua vez, o compreende. Em um mundo onde a
comunicação e a informação florescem primaveris, a
incomunicabilidade é como crime e justificam a represália. Outro
ponto onde convergem aspectos é que, no cliché da Ficção de Terror,
as ordens do mundo são abaladas para, então, serem restituídas ao
fim, seja por fins de deleite (e aqui o entendemos como o retorno de
- 339 -
um estado negativo)108 ou pedagógicos, essa restituição se dá n'A
Metamorfose com a morte de Gregor e uma inquietante (para o
leitor) harmonia que remete ao deleite por parte da família, saem do
locus do horror – a casa – para finalmente regozijarem da vida. É
como se, diante da morte do monstro que expõe a fragilidade da
ordem, tudo retornasse a uma harmonia irônica, o narrador se
liberta; o clima, antes chuvoso, se torna ensolarado. Botting (2013, p.
112) nos assevera que as mais aterradoras imagens góticas do séc. XX
aparecem em Kafka. Rimos, certamente, pelo uso abusivo do
grotesco, do absurdo pendendo ao caricato – que encobre a
denúncia e o horror com um manto setiforme de humor. Rimos
talvez porque a risada é a fronteira final no intento de superar o
grande desconhecido (DUARTE, 2006). Nossa intenção não foi,
contudo, resumir a obra, mas compreender como ela está sujeita a
universalidade do medo que propulsiona a Literatura Gótica.
Talvez a verdadeira metamorfose seja não a de Gregor, mas a
que se perpetra sobre a sua família e como anulam-no. Kosil109, ao
tratar da obra, já advertia que os homens estão metamorfoseados a
pensar que a banalidade é a normalidade. Adorno já também nos
advertia: "[a] origem social do indivíduo (a família) revela-se no final
108 Ver: BURKE, Edmund; DOBRANSZKY, Enid Abreu. Uma investigação filosófica
sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo. Papirus, 1993.
109 KOSKIK, Karel. O século de Grete Samsa. 1996.
- 340 -
como a força que o aniquila"110 e Roberto Schwarz arremata que A
Metamorfose “é uma história que começa mal e termina pior ainda”
(apud CARONE, 2011a, p. 24) E assim, propriamente, nos parece.
- 341 -
Referências Bibliográficas
- 342 -
CONRAD, Joseph. The secret agent. Macmillan Education UK, 1995.
- 343 -
KOSKIK, Karel. O século de Grete Samsa. 1996. p. 1. Disponível em:
<http://www.pgletras.uerj.br/matraga/nrsantigos/matraga8kosik.pdf
> Acesso em: 25 nov. 2015.
- 345 -
Hip-Hop e Direitos Civis: o reflexo da cultura de resistência
estadunidense na representatividade do negro brasileiro.
Introdução
O presente trabalho se propõe a compor obra que mostra
relação entre a sociedade, política e arte, tendo esta última como
lugar de resistência da primeira. As artes representadas como
resistência neste texto são as provenientes da cultura hip-hop.
Esse movimento cultural nasce nos Estados Unidos da
América em uma época marcada por sucessivas lutas do povo negro,
pelos movimentos dos direitos civis, mortes de líderes e promoção de
políticas meramente aparentes. Influenciada pela música negra e
levantando contestações à manutenção de poder e diferenças
econômicas e sociais, o hip-hop destaca-se como movimento cultural
da população negra.
111
Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Advogado, com atuação cível e empresarial.
112
Pós-graduanda em Liderança e Desenvolvimento Humano pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
- 346 -
A origem dessa cultura é representada, atualmente, pela série
The Get Down, que narra o que seria a biografia de um dos
fundadores do hip-hop, o DJ Grandmaster Flash. Esse expoente,
juntamente com outros, possui grande influência na cultura jovem e
urbana atual por todo o mundo.
O Brasil, portanto, não estaria alheio à essa influência. Mesmo
com uma cultura rica e diversificada, o país é influenciado cultural e
economicamente em toda a sua história. Assim, como maior
representante do poder econômico mundial, os Estados Unidos da
América também influenciam a cultura brasileira.
A influência do hip-hop no país foi, contudo, benéfica, pois
pôde ajudar criar, intensificar, consolidar e ampliar um
reconhecimento e autoafirmação (empoderamento) histórico, social
e cultural do negro no Brasil. O país incorporou referida cultura e
apresentou diversas fases dos gêneros musicais do hip-hop (funk
brasileiro e rap).
Contemporaneamente, os artistas representantes de tais
gêneros musicais são amparados pelo poder econômico, o que faz
surgir novos modos de expressar a cultura. Não esquecendo,
contudo, da origem do hip-hop brasileiro – e com ela dialogando –, o
cenário atual do rap nacional permite que um de seus expoentes
presencie a pré-estreia da série supramencionada; oportunidade na
- 347 -
qual é ressaltada a semelhança entre as origens étnicas e sociais
entre os povos que criaram a cultura hip-hop em ambos os países.
Contextualizar a identidade histórica e social de um povo,
como faz o hip-hop é garantir a resistência a um povo que sofre
demasiadamente com diversas violências. O rap pode, então, ajudar
a emergir uma conscientização que conteste tanto a manutenção do
status quo, quanto a maneira que o povo negro e sua história são
apresentados.
De igual ou maior importância, apresenta-se a participação
das mulheres no hip-hop. Ao se autorrepresentarem, além de
garantir maior visibilidade – o que é raro na mídia tradicional –, elas
demonstram que sua história é baseada em resistência, superação e
força, ao contrário da mistificação e da objetificação a elas
outorgada.
- 348 -
território, proibindo a existência de leis ou atos que retirassem (de
fato ou de direito) essa conquista. A mesma emenda proibiu,
também, qualquer forma de indenização pelo auxílio a grupos e atos
contra o governo estadunidense ou pela perda de escravizados
(CORNELL).
O uso de tal emenda foi, contudo, pouco proveitoso à luta de
emancipação dos negros anteriormente escravizados e seus
descendentes. Embora utilizada para os fins que deveriam tê-la
criado (quota para negros, entre outros), entre os anos de 1890 e
1910, sua utilização em cortes judiciais foi massivamente para a
equiparação de pessoas jurídicas aos cidadãos estadunidenses, tendo
conseguido reconhecimento do direito à vida, liberdade e
propriedade para as empresas (BAGNOLLI 2009, p. 40).
Assim, deu-se maior importância ao individualismo e à
economia de mercado até a crise ocorrida em 1929. Ainda com as
mudanças perpetradas pela política econômica do Welfare State,
pela economia de guerra e, posteriormente, pela Guerra Fria, as
atenções do governo estadunidense voltaram-se à proteção do
Estado e à sensação de bem-estar das pessoas que poderiam, de
fato, atingir o poder econômico (brancos).
Portanto, não há estranhamento em relação à manutenção e
incentivo do segregacionismo em locais públicos.
- 349 -
A partir do ganho econômico, da ascensão social e do
aumento da educação de alguns cidadãos ou grupos – que eram
socialmente excluídos pelo segregacionismo ou pela condição
econômica –, as ações segregacionistas (públicas e privadas,
combatidas desde o século XIX) passaram a ser questionadas com
maior veemência113. Ganham forte evidência, portanto, os líderes
Malcolm X e Martin Luther King, com discursos radicais e
integrativos, respectivamente, dentre outros.
A propagação das lutas sociais contra violência, guiadas pelas
personalidades acima, gerou holofotes a muitos grupos que
impunham resistência às políticas segregacionistas com ações
coordenadas e planejadas, como em diversos protestos em cafeterias
e restaurantes – bem encenado em The Butler (O Mordomo da Casa
Branca).
Todos esses feitos geraram imensa pressão política à época,
num país em que a preocupação era a Guerra Fria – e, portanto, o
fortalecimento de pesquisa e indústria bélica e espacial não mais
para uso iminente, tampouco havia necessidade constante de ajuda
113
Lembra-se, aqui, que a luta dos negros (ex-escravizados ou não) e pelos negros,
por representatividade e por direitos, ocorreu dentro e fora do Congresso dos
Estados Unidos – ao qual os primeiros negros sulistas foram eleitos na década
de 1870. Certamente, tal luta gera forte repressão de quem era abertamente
contra ela, tal qual a Klu Klux Klan, cujos membros possuíam poder político e
influência, além de alguns serem juízes, entre outras autoridades. Assim, diversos
Estados da federação iniciam a legislar leis segregacionistas, conhecidas como Leis
"Jim Crow". in COLEMAN, 2015.
- 350 -
aos países europeus, como nas décadas anteriores. Destarte, na
ausência de outras preocupações mais próximas que o Estado
estadunidense pudesse pôr em destaque, houve uma cobrança às
lideranças governamentais para o fim do segregacionismo local e um
posicionamento em relação ao Apartheid sul-africano (política que
atingia a façanha de ser mais rígida e cruel que o próprio
segregacionismo estadunidense).
Após ampla resistência, e em momento que não seria
politicamente viável postergar, os Estados Unidos publica o Civil
Rights Act (Lei de Direitos Civis) em 1964, que precisou ser seguido
pelo Voting Rights Act (Lei do Direito ao Voto), em 1965, e pelo Civil
Rights Act (Lei dos Direitos Civis), em 1968.
- 351 -
A lei de 1964 possuía o intuito de efetivar ou garantir o
sufrágio. Assim, tal lei foi elaborada com o seguinte preâmbulo:
114
Tradução de: "To enforce the constitutional right to vote, to confer jurisdiction
upon the district courts of the United States to provide injunctive relief against
discrimination in public accommodations, to authorize the Attorney General to
institute suits to protect constitutional rights in public facilities and education, to
extend the Commission on Civil Rights, to prevent discrimination in federally
assisted programs, to establish a Commission on Equal Employment Opportunity,
and for other purposes".
115
Pode-se discutir se haveria a mesma proibição para cargos e funções, que
seriam uma organização do emprego dentro do ente privado. Como o Act tinha o
escopo de eliminar o segregacionismo no âmbito público, é possível sustentar que
em nada poderia tal lei interferir na esfera privada da companhia que fornecia o
emprego.
- 352 -
um ato estatal que regulava de maneira genérica as relações sociais.
Assim, foi necessário o Voting Rights Act de 1965 para regulamentar
o voto nos distritos americanos – e efetivamente permitir o
sufrágio116.
Ainda demonstrando a ausência de efetividade [ou falta de
eficácia plena] do Act de 1964, a história mostrou necessária a
prolação de um novo Civil Rights Act, em 1968 – pouco menos de um
mês antes da morte do líder popular Martin Luther King Jr.117 O Act
de 1968 (além de tratar dos direitos indígenas) previa penas
administrativas mais rígidas para atos discriminatórios. Porém, tal ato
também punia (criminalmente) a desobediência civil, o que pode ser
externado como uma repressão política aos atos do Partido dos
Panteras Negras (parte de toda a repressão legal e política feita aos
partidos e pessoas assumidamente comunistas).
Pode-se verificar, então, um ambiente que se pretendia
democraticamente amplo e aceitável, ouvindo as reivindicações das
lideranças representativas e dos populares pertencentes às camadas
116
A sensibilidade do sufrágio (direito ao voto), bem como a importância dele na
vida política de cada cidadão, diante do impedimento prático do que seria um
direito universal, é perfeitamente retratada no filme Selma (2014), que retrata a
luta dos líderes populares em Alabama no ano de 1965, quando o voto já seria
plenamente possível pelo Act de 1964.
117
Os discursos dessa tão aclamada figura histórica não cessaram nem diminuíram
de tom após a elaboração dos Acts, justamente porque ele tinha ciência de que a
mudança necessária não seria trazida meramente por leis. Tal contexto é trazido,
com perfeição artística, pelo espetáculo, internacionalizado e representado no
Brasil por Lázaro Ramos e Taís Araujo, "O Topo da Montanha".
- 353 -
excluídas, elaborando diversas normas que os proteger
teoricamente. Na realidade, as desigualdades [não formais]
permaneceriam, bem como a repressão a determinados movimentos
estaria legalmente permitida e, portanto, institucionalizada.
Omi e Winant (2015, pp 14-15) afirmam que houve vitórias
(ainda que parciais) com as lutas dos movimentos sociais na década
de 1960, mas também mostram que
O Surgimento do Hip-Hop
Nesse contexto conflituoso, de proteção aparente e repressão
legal, além da exclusão social, surge um movimento cultural dos
excluídos, trazido das ruas e dos ghettos119 estadunidenses, na forma
118
Tradução de: "To outlaw de jure segregation did not prevent the preservation of
segregation de facto by other means. To overturn the highly restrictive immigration
policies that had lasted from the 1920s to the 1960s did not prevent the continuity,
and indeed the increase, of a draconian system of immigrant deportation and
imprisonment that continues to this days".
119
Guetos, como a palavra foi importada para o português brasileiro, ou áreas
periféricas, com uma população de renda mais baixa, chamadas de minoria, por
vezes ocupantes de favelas.
- 354 -
de música (rap e disc jockeying, DJ), dança (break), arte visual
(grafite), entre outros entretenimentos (como disputa de rimas entre
os mestres de cerimônias, MCs).
O Hip-Hop, nascido nos anos 70, tem grande influência da
década de 1960, seja pela música (funk) ou pela luta pelos direitos
civis. Por sua origem e suas mensagens, a cultura do Hip-Hop tem um
vínculo indissociável com a resistência – majoritariamente com a
resistência da população negra estadunidense. Ainda que muitas
músicas pareçam puramente agressivas, nota-se tons de uma revolta,
gerada por uma violência perpetrada por séculos e por uma aberta
exclusão social.
Demonstrar a origem de toda essa cultura pareceria uma
tarefa demasiadamente pretenciosa e difícil. Porém, houve certa
facilitação desta tarefa em razão de outra criação artística, o seriado
The Get Down, distribuído pela Netflix em 2016.
- 355 -
O enredo, focado no grupo de protagonistas, gira em torno de
Gandmaster Flash – um dos DJs expoentes do ritmo dessa cultura –,
mas a série faz menção a outros grandes nomes do gênero, tal qual
Afrika Bambaataa.
Sobre a importância desses expoentes para o hip-hop e vice-
versa, expõe Nelson George:
120
Tradução de: "Kool DJ Herc. Afrika Bambaataa. Grandmaster Flash. Old School,
you say? Hell, these three are the founding fathers of hip-hop music – the
progenitors of the world's dominant youth culture. For them, hip-hop is not a
record, a concert, a style of dress or a slang phrase. It is the constancy of their lives.
It defines their past and affects their view of the future. As DJs in the '70s, these
three brothers were the nucleus of hip-hop – finding the records, defining the
trends, and rocking massive crowds at outdoor and indoor jams in parts of the
Bronx and Harlem".
- 356 -
minoritários do país. É um conto histórico que remonta uma
população e as origens de uma parte de sua cultura, sendo um
diferencial para a produção da indústria cinematográfica
estadunidense, pois – como destacou a produtora da série Catherine
Martin, alertada por um comentador – é uma "série histórica sobre a
cultura negra que não tem escravos" (CARVALHO, 2016).
Nas palavras da jornalista portuguesa Cláudia Lima Carvalho, a
série mostra o hip-hop antes de ser hip-hop. O que se mostra é a
origem plural e multicultural desse conjunto de artes. Em uma
periferia esquecida, na maior cidade estadunidense, havia na época
uma mistura entre negros e latinos (em sua maioria), além de outras
etnias. Embora o hip-hop traga em sua essência a cultura negra
estadunidense – funk, soul, jazz, blues, entre outros – não se pode
negar que há uma influência, ainda que pessoal a cada indivíduo, das
demais culturas presentes no local.
A realidade de muitas famílias é representada em alguns dos
personagens – que perderam os pais e são criados por familiares, que
encontram em sua família-modelo uma para seguir com o talento
musical, ou que são forçados a entrar e se manter em grupos
criminosos por ausência de qualquer outra possibilidade real de
modo de vida –, o que faz com que o hip-hop seja um refúgio para
uma realidade devastada social e economicamente, bem como para
- 357 -
uma população historicamente oprimida e financeiramente
explorada.
Cláudia Carvalho, tal qual Nelson George, destaca, também, a
importância do hip-hop para outras culturas e modas, musicais ou
não. As afirmações desses autores são tão reais que não podemos
mais dissociar essa influência na cultura brasileira.
- 358 -
Assim, atualmente submetidos economicamente aos mandos
estadunidenses, importamos muito dessa cultura – cinema, televisão,
arquitetura, política, ideologia, economia, entre outros –, mas
principalmente a música.
Entretanto, nem tudo nessa influência pode ou deve ser
encarado como um óbice à identidade histórica e cultural brasileira.
As histórias das duas nações tiveram marcas muito
semelhantes. Certamente, a mais profunda marca em comum – e
que gerou cicatriz até os dias presentes – foi a escravização da
população trazida, desumanamente, do continente africano e de seus
descendentes.
Ambas as nações deixaram de incluir, no centro da política
econômica e da vida social, a população negra – fosse legalmente,
pela permissão do segregacionismo nos Estados Unidos, fosse
sistematicamente excluindo com uma aparente inclusão através da
mestiçagem que imobilizava anseios transformadores no Brasil121.
Tais exclusões geraram, através da tomada de consciência,
movimentos que se assemelhavam (pelo menos em reivindicações e
propostas).
Como mencionado anteriormente, o hip-hop representa a ala
cultural da reclamação e das reivindicações da população negra
121
O que Florestan Fernandes chama de "O Mito da Democracia Racial".
- 359 -
estadunidense. A música brasileira é marcada pela cultura negra, em
qualquer década do século XX que se eleja para demonstração; o
cume dessa influência foi a criação da Bossa Nova, com raiz no samba
(não muito bem visto pelas elites da época), ritmo que exportamos.
Assim, não é novidade ver o negro ou a cultura negra
representada nos ritmos musicais brasileiros. Mesmo existindo um
sentido de protesto em diversas letras representados pelos ritmos
variados, certamente não haveria um grande interesse propagandear
letras que retomam um passado e cobram, historicamente,
reparação.
Os raps, tanto nos Estados Unidos da América quanto no
Brasil, trazem – através de um ritmo pesado – revoltas e
reivindicações. São um nicho de resistência e representatividade,
mas, também, um memorial histórico que, ao mesmo tempo,
reivindica melhorias reais para a população nele representada.
A seleção por músicas mais adequadas às elites (ausentes de
revolta, protesto e reivindicação) seria, portanto, algo impossível no
início do rap no Brasil.
- 360 -
rap em ser contestatório faz parte do perfil de
resistência da música negra norte-americana, que,
desde as work songs e os spirituals, tentam
preservar e manifestar sua cultura.
No entanto, esse caráter de resistência
cultural da música produzida pela população
negra não foi exclusividade dos EUA. Podemos
encontrar essas mesmas características na música
dos países caribenhos, como também no Brasil,
onde os batuques, os tambores, os choros, o
samba são exemplos. No entanto, em decorrência
da indústria cultural, a música negra produzida
nos EUA, principalmente a partir do final da
década de 1960, não demorou a causar reações
no Brasil. Esse fato foi importante para que,
naquele momento, camadas da juventude negra
de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo se
identificassem com elementos internacionais da
cultura negra norte-americana, tendo como
motivador central os ritmos musicais sou e funk
(TELLA, p. 55)
- 361 -
habitava a periferia da cidade, "a partir da produção de
representações, símbolos e modelos gerados pela música funk e o
rap" (TELLA, pp. 57-58). Assim, o rap – segmento de letra e música da
cultura hip-hop – cria uma identificação em meio ao povo negro, com
conscientização histórica e social, colocando em evidência as
distinções reais da sociedade, possibilitando a contestação do status
quo, estigmas, valores e preconceitos. O imaginário idealizado
(ausência de desigualdades) é questionado e se cria um novo
imaginário (permeado de conflitos).
A integração social de grupos semelhantes, seja como espaço
de lazer ou como mobilizador social, nas rodas de danças de break na
Estação São Bento (metrô da Cidade de São Paulo) e shows de rap,
trouxe uma oportunidade única de formação de representantes
brasileiros dessa nova cultura.
- 362 -
realizados em espaços públicos, como escolas ou
praças, em pequenos salões dos bairros
periféricos de São Paulo. Creio que o rap
possibilita, para quem reside na periferia da
cidade de São Paulo, tornar o simples momento
de escutar o rap em um disco ou show um gesto
de concordância social.
Dentre as artes do movimento hip hop, o
rap ganha destaque em virtude do fato de ser um
veículo no qual o discurso possui o papel central, e
por intermédio dele o rapper transmite suas
lamentações, inquietações, angústias, medos,
revoltas, ou seja, as experiências vividas pelos
jovens negros nos bairros periféricos de São Paulo.
A periferia torna-se o principal cenário para toda a
produção do discurso do rap. Todas as
dificuldades enfrentadas por esses jovens são
colocadas no rap. Encaradas de forma crítica,
denunciando a violência – policial ou não -, o
tráfico de drogas, a deficiência dos serviços
públicos, a falta de espaços para a prática de
esportes ou de lazer e o desemprego (TELLA, pp.
58-59)
- 363 -
movimentos dos direitos civis, luta contra o apartheid) e um pouco
das figuras históricas (recentes e distantes) brasileiras.
Assim, forçando uma maior pesquisa para escrita da própria
história em versos, o rap ajudou a definir identidades, além da
criação de consciência para questões socioculturais mantidas há
décadas. Não por outro motivo, um dos atuais expoentes do rap
nacional brasileiro, Leandro Roque de Oliveira – o rapper Emicida –
afirma, na letra de sua música Ubuntu Fristaili (do álbum O glorioso
retorno de quem nunca esteve aqui, 2013), que "Eles não vão
entender o que são riscos, e nem que os nossos livros de história
foram discos".
Da sua nascença e afirmação de temas na década de 1980, o
hip-hop expande na década de 1990, passando de um
reconhecimento regional para um reconhecimento nacional. Os
nomes existentes desse cenário (regional) se consolidam e outras
personalidades surgem, ganhando a mesma abrangência. Contudo,
havia uma aversão social por parte das pessoas que consumiam a
cultura padronizada, sem contestação social, racial ou de classe.
Nos anos 2000, a música do hip-hop passa por uma dualidade
– que de certa maneira permanece contemporaneamente. O rap e o
disc jockeying continuam ganhando força em âmbito nacional, mas
passam a ter melhor aceitação; ao mesmo tempo, surge um ritmo
- 364 -
novo, derivado do Miami bass (subgênero do hip-hop ligado ao eletro
funk estadunidense), um gênero musical genuinamente brasileiro é
criado no Rio de Janeiro: o funk (que não guarda relação direta ou
semelhança com o funk estadunidense).
O funk carioca (também conhecido como Brazilian funk) não é
amplamente aceito popularmente e gera desentendimento até
mesmo dentro dos representantes do hip-hop brasileiro. Por ter uma
batida festiva e descontraída – e, portanto, muito distinta do rap –,
muitos afirmam que em nada há relação entre o funk e o rap ou o
hip-hop. De outro lado, há quem afirma que o funk é gênero musical
do hip-hop, sendo o único hip-hop puramente brasileiro (sendo que
rap, grafite, break e DJ foram importados).
Na década atual – 2010 –, ambos os gêneros musicais do
hip-hop (o rap, em conjunto com o DJ, e o funk) dialogam bastante,
em composições ou apresentações conjuntas. A maior semelhança
entre eles é a aceitação pelo poder econômico, ainda que haja certa
rejeição de parte da população (com maior e mais manifesta a
rejeição ao funk).
A importância da aceitação pelo poder econômico reflete
diretamente nas produções artísticas dos gêneros. Enquanto o funk,
na década de 2010, entra na sua fase "funk ostentação" (semelhante
ao que ocorre com o rap nos Estados Unidos na década anterior), o
- 365 -
rap continua se aprofundando nas temáticas de afirmação social e
pessoal, reconhecimento histórico e empoderamento dos negros,
mas conta com superproduções, investimentos mais rentáveis e o
aparecimento (dentro do cenário brasileiro) de subgêneros como o
love rap.
Certamente, os artistas que contam com essas recentes
vantagens econômicas (mesmo com origem humilde ou paupérrima),
bem como os que se destacam nos subgêneros menos ligados à
tradição do discurso de luta, são alvos de duras críticas de parte dos
integrantes ou consumidores de vertentes mais ligadas à origem
"fora da lei".
Entretanto, até os dias presentes, o hip-hop brasileiro não se
desvincula de sua origem.
Convidado por um portal de notícias online, rapper brasileiro
Emicida foi ao Bronx para assistir à pré-estreia da série The Get
Down, com o elenco original, e comentou, em emocionada reação ao
final:
- 366 -
O músico também destacou que, num ano em que não houve
nenhuma indicação de atriz ou ator negros ao Oscar, todos os atores
e artistas negros estadunidenses que participaram do evento foram
pronta e intensamente ovacionados. Infelizmente, a mídia brasileira
– em sua maior e mais influente parte – segue a linha demonstrada
no Oscar, ao invés da linha do público de The Get Down, e o faz
sistemática, contínua e permanentemente.
- 367 -
partir da década de 1850 (RIBEIRO, 2006, p. 222). Tal projeto,
compreendendo um plano estatal estruturado na sociedade
brasileira, transformou-se em política de governo, abertamente
declarando a necessidade de um embranquecimento da população
para melhor qualidade dos trabalhadores industriais, obedecendo a
um "critério étnico" (VARGAS, 2011, p. 287).
Assim, sendo intencionalmente afastada – no imaginário
popular – a possibilidade de negros serem expoentes intelectuais ou
econômicos, relegam-se a eles áreas como música e esportes, além
os trabalhos braçais (OLIVEIRA, 2011, p. 31).
A mídia brasileira (que é controlada pelos detentores do
poder econômico) tem o condão de reproduzir um imaginário e
induzir comportamentos padrões que deixam de questionar os
privilégios, a manutenção do status quo e afastam a conscientização
histórica-social de cada grupo de indivíduos.
Nas palavras de Denis de Oliveira
- 368 -
negativarem sempre tais valores – nas revistas
masculinas eróticas, a objetificação sexual
extremada é até valorizada –, a cristalização
destes consolida a supremacia dos valores brancos
como referenciais de poder nas estruturas sociais.
Concedendo um espaço insignificante
para os afrodescendentes – inferior, até mesmo,
ao dos EUA, país com percentual de negros três
vezes inferior ao do Brasil –, a mídia cria uma
paisagem estética branca, com pinceladas de
participação negra em determinadas situações,
nas quais o negro sempre aparece como algo
exótico e voltado para satisfação da curiosidade
ou do desejo sexual diferente.
Colocada nesses termos, a sociedade de
consumo construída pela mídia permite a
pequena participação de negros e negras como
objetos de consumo – sexuais ou folclóricos.
Assim, a transfiguração de que fala Ianni (2003),
da sociedade em mercado, não transforma o
cidadão negro em consumidor negro – isto está
reservado ao branco –, mas sim em objeto de
consumo; este é o lugar do negro na sociedade
de consumo na reconstrução social operada pela
mídia.
Diante disso, as pequenas concessões de
espaço aos negros e negras nas revistas
segmentadas não significam uma redução do
preconceito racial, mas sim um deslocamento
deste, com a criação de bantustões simbólicos
formados por processos de objetificação (grifos
não originais) (OLIVEIRA, 2011, pp. 39-40)
- 369 -
operado pela grande mídia. Ele [hip-hop] permite ao negro falar por
si próprio, gerando forte empoderamento e criando nos demais
negros – que consomem a cultura do hip-hop – conscientização sobre
si e sobre suas origens.
- 370 -
reforçando a conscientização, autoafirmação, contestação ao sistema
padrão, características típicas do hip-hop, mas que apresentam um
reflexo da época em que é produzida (RABASSALLO, 2015-1).
Atualmente, as questões – e principalmente a conscientização
e a representatividade – sociais trazidas pelo hip-hop ainda carecem
de intenso debate, que deve envolver um maior número de pessoas.
- 371 -
De Angela Davis e Lelia Gonzalez à Karol Conka e a Mulher Negra
Brasileira na atualidade
Ainda relacionando o reflexo do ativismo negro nos Estados
Unidos (EEUU) no Brasil, vemos frutos do ativismo de Angela Davis
nos EEUU e de Lélia Gonzalez no Brasil, no que se refere a
representatividade da mulher negra na mídia brasileira, quando
avaliamos a participação de Karol Conka na abertura das Olimpíadas
de 2016 no Rio de Janeiro.
Mesmo havendo majoritariamente uma população feminina
negra no Brasil, é facilmente percebido que mídias direcionadas ao
público feminino relega ínfimo espaço à mulher negra – o qual
comumente é seguido de adjetivos desviando a atenção da essência
do "belo", sendo estampada como exótica ou mais sensual que a
mulher branca. Notamos esta restrição de espaço quando apenas em
2011, a Revista Vogue Brasil, voltada ao público feminino da "alta
sociedade", publica a primeira revista com uma mulher negra
brasileira sozinha em sua capa – Emanuela de Paula – ainda assim,
possuindo cabelos lisos (MARQUES, 2014). Anteriormente, houve
apenas publicações de Naomi Campbell, replicando o modelo da
revista europeu e americano.
Em contrapartida ao lamentável percentual de participação da
mulher negra no nicho representado acima, deve-se atentar ao ritmo
- 372 -
crescente na representatividade da mulher negra no hip-hop e rap
brasileiro, direcionado ao empoderamento feminino e enaltecimento
da cultura e fenótipo negro, reduzindo a objetificação e machismo
iminente nas anteriores aparições de mulheres negras na música
brasileira.
Citamos como participantes deste movimento, possuindo tais
prismas em comum e com maior visibilidade na veiculação de suas
produções a própria Karol Conka anteriormente comentada, Negra Li,
Yzalu, Ellen Oléria, Drik Barbosa, Tássia Reis, Flora Matos, Nega Gizza.
Tal participação não só eleva a autoestima e
representatividade da mulher negra, mas hinos de resistência e
ativismo negro são criados. Abaixo citações que explicitam tal
afirmação:
- 373 -
(CONKA 2014)
Considerações finais
O hip-hop, por mais que represente uma influência
estrangeira, traz consigo uma história de luta e autoafirmação. Assim,
após sua plena integração à cultura brasileira, o hip-hop possui um
papel essencial ao povo negro: reconhecimento de si e da sua
história, conscientização, empoderamento e o imaginário para uma
transformação.
- 374 -
Faz-se com que o próprio negro escreva e conteste sua
realidade e sua história, buscando um futuro melhor para um imenso
grupo de pessoas. Há importantíssima função, também, para as
mulheres negras, especificamente, pois elas tomam grande espaço
de representação e, por falarem por si, retiram os estigmas e
objetificação que lhes foram impostos.
- 375 -
Referências Bibliográficas
CARVALHO, Cláudia Lima. The Get Down a história dos miúdos que
nos deram o hip-hop. Cultura-Ípsilon. Público. Portugal, 2016.
Disponível em: https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/the-
get-down-a-historia-dos-herois-que-nos-deram-o-hiphop-1741057.
Acesso em 19 set. 2016.
- 376 -
Disponível em: http://legcounsel.house.gov/Comps/civil68.pdf.
Acesso em: 15 set. 2016.
- 377 -
RABASSALLO, Luciana. Emicida exalta a cultura negra em disco com
mensagem acessível e extremamente relevante. Cultura de Rua.
Rolling Stone, ago. 2015. Disponível em:
<http://rollingstone.uol.com.br/blog/cultura-de-rua/emicida-exalta-
cultura-negra-em-disco-com-mensagem-acessivel-mas-extremamente-
relevante#imagem0>. Acesso em: 18 set. 2016.
- 378 -
<https://www.law.cornell.edu/constitution/amendmentxiv>. Acesso
em: 16 set. 2016.
- 379 -
“A escrita tomou as ruas!”: a tática black bloc como crítica
da linguagem
Introdução
A partir da irrupção, em junho de 2013, do novo tipo de
manifestações de rua que transformou o horizonte do debate político
brasileiro, e notadamente do recurso, no seu seio, à tática conhecida
como “black bloc”, voltou a colocar-se fortemente a questão da
relação entre, de um lado, a violência de uma ordem instituída e, de
outro, todas as violências, “físicas” ou “simbólicas”, que se propõem
desestabilizar essa ordem. Me proponho, aqui, a pensar essa
violência crítica não como “violência simbólica”, e sim como uma
intervenção material que vem desestabilizar um sistema simbólico
que, ele mesmo, também é melhor pensado como material.
O texto é composto de três partes. Na primeira, critico um
ensaio de Eugênio Bucci para defender que as manifestações são
menos “linguagem” do que uma crítica concreta da linguagem. Na
segunda, analiso o caso de uma intervenção “simbólica” praticada
122
Doutorando em Direito, PUC-Rio.
- 380 -
por manifestantes em face de um político brasileiro, a fim de pôr em
questão uma dimensão estratégica da ação. Na última, e mais
extensa, abordo a questão da tática black bloc para pensá-la como
paradigma da relação entre a ordem instituída, a violência crítica e a
linguagem simbólica.
Defendo que, embora a tática black bloc tenha tido, em certos
momentos, um papel crítico importante, ela logo deixou-se capturar
por uma ordem simbólica que, mais do que desestabilizar, acabou
por reforçar. Coloca-se, assim, no percurso desse debate, a questão
das estratégias de ruptura, isto é, de como os aspectos complexos e
contingentes, a cada caso singular, podem determinar a efetividade
ou a frustração de uma ação de ruptura. A partir dessas
considerações, gostaria de mostrar que as estratégias de ruptura
nunca podem ser julgadas em abstrato ou fora de contexto, mas sim
em uma relação concreta com o campo em que intervêm.
- 381 -
Lacan: “Você viu suas estruturas em maio? Aquilo eram pessoas nas
ruas!” Ao que Lacan teria respondido, “Se os acontecimentos de
maio demonstraram alguma coisa, foi justamente que as estruturas
tomaram as ruas!” (DOSSE, 1998, p.122).
Se quisermos, porém, ir além do estruturalismo, então talvez
devesse ser dito, com Derrida (1967), que não as estruturas ou a
linguagem, mas a escrita tomou as ruas, no sentido de uma série de
marcas sem centro ou significado garantidos, cujo contexto e código
não estão necessariamente disponíveis, cujo autor está ausente, e
que precisam, assim, ser decifradas.
“A escrita tomou as ruas” – essa formulação remete a
expressões urbanas contemporâneas como o grafite e a pichação, e a
relação não é sem sentido. De fato, embora o senso comum diga que
um grafite procura comunicar alguma coisa, isso não explica a força
desses “atos materiais [...] gravados na superfície mesma da cidade,
riscadas em formas previamente construídas” (SCHATER, 2014, p.20).
Não explica, acima de tudo, o fato de que o grafite se apresenta
muitas vezes como deliberadamente incompreensível, senão para
todos, para a maioria das pessoas.
É verdade que há muitas mensagens em busca de
comunicação, como os “Fora ALCA” ou “Não vai ter copa”. Porém, a
exemplo do tagging – um dos tipos mais onipresentes de arte de rua
- 382 -
– muitos grafites costumam se caracterizar pela sua caligrafia
“incompreensível” que, ao invés de passar uma mensagem, evoca
uma “resposta especial” dos espectadores (SCHATER, 2014, p.25). As
paredes de uma cidade como São Paulo estão repletas dessas runas
indecifráveis, pelo menos, para aqueles que não pertencem a um
grupo muito restrito. Nesse sentido, poderia se dizer que a
“mensagem” dessa escrita que toma as ruas poderia ser formulada
assim: “Há – talvez – uma linguagem aqui, mas você não é capaz de
compreendê-la”. Há, antes de mais nada, escrita.
Em seu ensaio “Violência na linguagem: a forma bruta dos
protestos”, apresentado no colóquio “Mutações: Fontes passionais
da violência”, Eugênio Bucci escreve que os protestos urbanos (como
os de maio de 1968 ou os de junho de 2013),
- 383 -
extremas, são violentos em si mesmos”. Ele ressalva, contudo, que,
mesmo nestas últimas situações, “os protestos são comunicação”.
Em que sentido seria possível, no marco da presente discussão,
concordar com isso? Apenas, é claro, em uma certa medida. Afinal, se
há um aspecto de comunicação na escrita urbana dos protestos, eles
sem dúvida não são redutíveis a esse aspecto. Sempre há um resto
que corresponde à ordem do irrepresentável e da pura manifestação,
que não representa nada para além de si mesma, mas apenas
manifesta-se a si mesma123.
Nesse sentido, há muito nas manifestações que não tem a ver
com comunicar algo, mas com afirmar um irrepresentável; não com
expressar-se em uma dada linguagem, mas com desestabilizar a
linguagem dada. Bucci (2015, p.410) não deixa de nota-lo. Ele escreve
123
Em Benjamin (2011), há uma oposição entre a manifestação, ligada à ordem do
imediato, e a comunicação, ligada à ordem do mediato, da representação, etc.
Proponho, com base nessa distinção, uma diferenciação entre as noções de
protesto e manifestação. Todo protesto é um protesto por ou contra alguma coisa,
de modo que algo deve ser comunicado em uma linguagem, um significado deve
ser expresso por um significante, e essa mensagem deve poder ser recebida e
interpretada por certas instituições capazes de responder a elas, mesmo obrigadas
a isso, geralmente instituições representativas. A representação está ao lado do
protesto, seja na medida em que a sua interlocução com as autoridades deve se
dar por meio de alguma espécie de liderança, seja porque outros órgãos de
representação, como a imprensa, são necessários para a difusão das suas
demandas. Já a manifestação simplesmente se manifesta. Ela não comunica ou
significa nada, e é avessa a toda mediação ou representação. No momento em que
é representada, já não é propriamente manifestação. Nesse sentido, poder-se-ia
dizer que o protesto é transitivo, ao passo que a manifestação é absolutamente
intransitiva. A distinção, porém – é preciso ressaltar –, não significa que protesto e
manifestação não possam conviver e misturar-se.
- 384 -
que “nos nossos dias, a ordem urbana conforma, mantém e expressa
[...] uma linguagem própria” nas suas placas de trânsito, no traçado
das vias, nas conexões elétricas e digitais. Esses “protocolos
linguísticos” apresentam-se hoje “bastante globalizados”, de modo
que “todas as cidades do mundo, cada vez mais, parecem falar uma
mesma língua ordenadora”.
Diante disso, Bucci afirma que o “pulo do gato dos protestos
de rua” é que
- 385 -
Nesse sentido, a linguagem das manifestações de que fala
Bucci já não é uma linguagem, mas o oposto da linguagem, o outro
lado da linguagem que age apenas para suspender e deslocar uma
linguagem posta. Uma dimensão de violência pura, puramente
suspensiva da ordem, como a que queria Benjamin (2011) e, mais
recentemente e sob sua influência, Agamben (2004; 2010). É nesse
sentido que as manifestações “se dirigem às câmeras do mundo”
para “capturar as formas de representação instituídas pelas
instituições da comunicação social, pela mídia, pelo jornalismo e
também pela indústria do entretenimento” (Bucci, 2015, p.411). Não
para que esses dispositivos hermenêuticos possam interpretá-las,
mas justamente para esculhambar todo esse aparato interpretativo.
A “violência que escreveu seu texto sobre o chão das cidades
brasileiras”, não está simplesmente, como escreve Bucci (2015,
p.413), “na linguagem e a serviço da linguagem, mais do que da
política”. Ela se volta em grande medida contra a linguagem – e nada
é mais político que isso.
- 386 -
violência, com a performatividade e com a estética. Trata-se da
ocasião em que um grupo de ativistas ligados ao Levante Popular da
Juventude, em atitude de protesto, jogou purpurina sobre o
deputado federal de extrema direita Jair Bolsonaro.
Na ocasião – que gerou, é claro, muito debate nas redes
sociais – houve quem levantasse a questão de que benefícios essa
tática traz. Segundo o Levante, tratava-se de uma intervenção
“simbólica” para fins de “combater um projeto de sociedade
antidemocrático e conservador”. A inspiração dos ativistas tinha, sem
dúvida, a ver com a arte, e especialmente com as performances e
intervenções artísticas, voltadas a interromper e desestabilizar um
sistema simbólico. A despeito das boas intenções, porém, coloca-se a
questão se essa ação não poderia gerar mais benefícios do que
malefícios para o próprio deputado, e, portanto, para o
desenvolvimento do projeto de sociedade objeto da crítica. Afinal, é
perceptível o quanto um certo discurso de vitimização é essencial
para a narrativa por trás do mesmo projeto.
Questão, assim, relacionada à capacidade problematizadora
da intervenção “artística”, mas também à problematização da
própria intervenção como escolha tática. Se uma atitude de
confronto como essa pode gerar efeitos mais negativos que positivos,
então ficam proibidas as estratégias de ruptura – artísticas ou não?
- 387 -
Aqueles que não estão conformados com uma dada situação deverão
ser sempre, necessariamente, diplomáticos? Essa conclusão, sem
dúvida, é problemática. Não se pode transformar, a priori, toda
manifestação em passeata, todo protesto em carnaval fora de época.
Há, porém, distinções a serem feitas. A primeira, que anda
esquecida, é a diferença importantíssima entre que uma tática seja
condenável e que ela seja simplesmente uma má estratégia em uma
dada situação. O exemplo paradigmático, ao qual voltaremos em
extensão mais adiante, é a tática black bloc. É possível condenar a
violência contra a polícia ou contra as agências de bancos,
comparada à violência da polícia e dos bancos? Dificilmente. Mas isso
não significa que ela não possa ser vista, em retrospecto, como tendo
ajudado a entregar o espaço interpretativo das manifestações a
grupos mais conservadores. O fato de que a maioria das
interpretações dirigidas aos black blocs – seja da parte da mídia, seja
da parte da esquerda tradicional – são abusivas e equivocadas não
obsta que a tática seja contraproducente.
Nesse ponto, torna-se necessário levantar diretamente a
questão do que é, afinal, uma estratégia de ruptura. Admitindo-se
que não se possa simplesmente condenar todas as estratégias de
ruptura, ainda resta a questão: O que é uma? O paradigma que
gostaria de propor, no seio desta discussão, é aquele trazido por
- 388 -
Walter Benjamin (2011) sob o nome de violência “divina” ou “pura”
ou ainda de “puro meio” – a estratégia de ruptura por excelência, no
seu estado mais puro.
O que cabe contestar, nesse contexto, não é a pertinência das
estratégias de ruptura, e sim se esses atos específicos (tática black
bloc, purpurina lançada contra deputado) são de fato exemplos dessa
categoria, já que isto não está dado de antemão. Afinal, o que define
essas práticas como estratégias de ruptura? O mero fato de serem
escrachadas? Ou ainda o fato de não se apresentarem à
interpretação, desde logo, como meios legítimos (adequados aos
procedimentos normais da democracia como a conhecemos, etc.)?
Algo que Derrida (2008), na sua discussão sobre Benjamin,
ajuda a perceber, é a importância da dimensão interpretativa na
questão da violência, do direito (legitimidade, etc.) e, portanto, da
estratégia de ruptura. Qualquer ruptura deve, de alguma forma,
suspender os meios interpretativos vigentes, romper justamente com
a “ordem de leitura” instituída a fim de possibilitar o advento de
outra. O senso comum vigente condiciona todas as interpretações,
de modo que a possibilidade de uma interpretação irruptiva, de um
“olhar novo”, depende da sua suspensão/ruptura. Isso implica que
uma estratégia de ruptura se caracterize não pelo seu escracho, mas
pela sua capacidade de gerar desconcerto interpretativo, isto é, de se
- 389 -
subtrair dos dispositivos de leitura presentemente disponíveis. Ao
deparar-se com algo que é irredutível ao nosso senso comum, somos
obrigados a olhar novamente, e assim podemos desenvolver novas
interpretações, incomensuráveis às anteriores. Poder-se-ia dizer que
é em conflitos assim que acontece toda evolução histórica, de
concepção de direitos etc.
Para Raquel Rolnik (2013, p.12), toda proposta alternativa a
um sistema atualmente dominante tem “seu tempo de formulação e
experimentação”. É natural que, em um primeiro momento, essas
propostas apareçam como incompreensíveis e insustentáveis.
Também Slavoj Žižek (2012a, p.19) ressalta a importância de, em
alguma medida, permanecer-se retirado “do campo pragmático das
negociações e propostas ‘realistas’”. Segundo ele, qualquer debate
que pretenda se pautar estritamente em argumentos razoáveis é
“um debate no território do inimigo”, de modo que “é preciso tempo
para posicionar um novo conteúdo”.
Nesse sentido, Žižek propõe que se mantenha, paralelamente
às propostas realistas, um certo “silêncio violento”, “agourento e
ameaçador como deve ser”. Por que o momento da ruptura deve ser
um momento silencioso? Porque a dimensão do legível ainda está
tomada pela ordem precedente. Toda tentativa de expressão, nesse
momento, será produzida através dessa ordem de leitura, que só
- 390 -
poderá levar à repetição do anteriormente possível, isto é, a “tomar”
ou “recuperar” os discursos para o ciclo da reprodução do direito.
Como a dimensão da expressão e da compreensão – e portanto a das
demandas legíveis por direitos – ainda está sob a autoridade anterior,
esse é o momento em que uma estratégia de ruptura é necessária, e
essa estratégia não é da ordem da expressão, mas do silêncio. Ela
está ligada à interrupção das atividades, que procura, em primeiro
lugar, subtrair essas atividades aos dispositivos de interpretação e de
conhecimento que poderiam torná-las inócuas.
Não é impossível, do ponto de vista epistemológico, ter uma
boa ideia de quais são os dispositivos interpretativos dominantes em
um dado contexto. No caso do black bloc, por exemplo, criou-se
claramente uma narrativa, em especial da parte da grande mídia, em
que o par pacíficos/baderneiros ou legítimos/vândalos servia para
enquadrar essa suposta estratégia de ruptura de forma altamente
azeitada em um quadro que não só a tornava inofensiva, como
ajudava a deslegitimar outras táticas.
No caso da purpurina, o que ocorre não é tão diferente. Já
existe todo um aparato interpretativo, toda uma fôrma pré-pronta
em que esse ato se encaixa perfeitamente. Uma interpretação que o
subsume à “intolerância dos LGBT a Bolsonaro” cai nele como uma
luva, não porque seja uma interpretação verdadeira (coisa que não
- 391 -
existe em si mesma), mas porque o aparato social para produzir essa
interpretação está colocado. Em que sentido, a final de contas,
podemos falar nesse caso de uma ruptura?
Isso posto, parece necessário um exercício de interpretação,
de estudo detalhado do campo de jogo, antes de qualquer passagem
ao ato. A partir daí, é preciso criar ações que causem desconcerto, no
sentido de que para elas não exista, a priori, nenhuma interpretação
óbvia. É a especialidade dos artistas. Nesse sentido, pode-se sugerir
que o ativismo – e, em especial, é claro, aquele que se pretende
“performático” ou “simbólico” – tem a aprender da arte
contemporânea e performática, do teatro, do mundo da estética e do
humor. As ações estratégicas de ruptura aparecem, nesse ponto de
vista, ligadas justamente a uma sensibilidade que poderia ser
chamada “estética” no sentido de relacionar-se a uma percepção
aguda do sistema simbólico que está em questão, voltada a intervir
para desestabilizá-lo.
- 392 -
a partir dos quais seja possível pensar essa violência não-violenta e
imediata que se manifesta em uma interrupção da ordem vigente.
Sem dúvida uma modalidade de ação observada em junho
cujo caráter pode ser considerado fortemente anti-representacional,
promovendo uma ruptura com todas as instâncias de representação,
é a chamada ação direta adotada por dois dos grupos que tiveram
mais protagonismo nas manifestações de junho, o MPL e os black
blocs.
A rigor, a expressão “black bloc” não designa um grupo, mas
“um tipo de ação coletiva, uma tática” (DUPUIS-DERI, 2003, p.5),
embora a urgência do discurso midiático em referir-se de alguma
forma aos seus praticantes sem rosto tenha resultado no uso
metonímico que designa de black bloc o indivíduo ou o grupo. A
prática apareceu inicialmente na Berlim Ocidental durante o inverno
de 1980, em uma ocasião em que a polícia vinha desocupando
violentamente os squats de militantes do movimento autonomista
(DUPUIS-DERI, 2003). Francis Dupuis-Deri (2004, p.6) explica que
"não há um black bloc, mas black blocs, cada um formando-se à
ocasião de uma manifestação para depois dissolver-se junto a ela. O
tamanho dos black blocs varia de algumas dezenas a alguns milhares
de indivíduos. Em certos casos, vários black blocs permanecem ativos
- 393 -
simultaneamente no seio de um mesmo acontecimento de
contestação”.
No contexto das manifestações de 2013 no Brasil, inúmeros
mal-entendidos se proliferaram em torno dos black blocs, ao ponto
de predominarem sobre as informações mais qualificadas. Bruno
Fiuza (2013) escreve que “uma das questões que mais saltam aos
olhos no debate sobre os black blocs no Brasil é a impressionante
falta de disposição dos críticos em se informar sobre essa tática
militante que existe há mais de 30 anos”. Ele adiciona que “ao não
compreenderem a novidade do fenômeno [tanto as vozes
dominantes quanto pensadores críticos] tentaram enquadrá-lo à
força em esquemas conhecidos”.
Obviamente, é impossível saber quais os motivos de ordem
pessoal ou psicológica que levam cada indivíduo a aderir à prática
black bloc, mas o fato é que o seu desenvolvimento histórico não
pode ser reduzido, como muito se fez, ao mero desejo de violência.
Dupuis-Deri (2003, p.12) reconhece que “os black bloc atraem, é
claro, muitos indivíduos que pensam seu engajamento político
unicamente em termos de violência”. Contudo, ele sublinha que “os
black bloc não recorrem sempre à força: eles são favoráveis ao
respeito à diversidade de táticas e julgam apropriado que, de acordo
com a sensibilidade e a lógica de cada um, alguns se manifestem
- 394 -
pacificamente e outros se expressem através da força” (DUPUIS-DERI,
2003, p.9).
Assim, os adeptos do black bloc não se resumem a jovens
revoltados com um desejo incontrolável por destruição, e sim
dispõem de uma narrativa de ordem política, quer se concorde com
ela ou não. Levar isso em conta é indispensável para discutir
seriamente o fenômeno. Para além disso, parece haver uma falta
geral de clareza sobre o funcionamento da tática, que procurarei
elucidar a seguir.
Bucci (2015, p.416), no ensaio citado mais acima, fala de uma
“natureza sígnica do black bloc” – semelhante à que ele atribui às
manifestações em geral – tendo em vista que, na sua ação direta,
“signos do dinheiro, da ostentação e do Estado viraram alvos de
guerra, guerra simbólica, guerra das imagens”. Francis Dupuis-Deri
(2004, p.34), no mesmo sentido, escreve que a violência black bloc “é
acima de tudo simbólica e se inscreve em uma vontade de
comunicação política”. Para Dupuis-Deri (2003, p.5), "a primeira
função de um black bloc é a de expressar uma presença anarquista e
uma crítica radical no coração de uma manifestação”. Segundo ele,
“a ação direta permite ao ator indicar aqui e agora o julgamento
crítico que ele esposa em relação a um sistema imoral” (DUPUIS-
DERI, 2004, p.34). O autor ressalta que
- 395 -
A ação dos black blocs é direta porque ela é levada
a cabo pelo autor ele mesmo, e não por seus
representantes, mas também porque o objeto da
injustiça do Estado, do Capital e da Globalização
se incarna em um policial, na vitrine de um
McDonald’s [etc.] e pode ser diretamente atingida
(DUPUIS-DERI, 2004, p.35)
- 396 -
ruas. Gostaria, por outro lado, de ressaltar justamente o lado anti-
representacional da tática black bloc, inclusive no próprio âmbito de
uma manifestação, cuja importância não raro parece ser
subestimada.
Dupuis-Deri (2004, p.32), em seu artigo “Penser l’action
directe des black blocs”, deixa transparecer a tendência anti-
representacional dessa tática. Ele explica que, para os participantes
dos black blocs, uma manifestação é heterogênea, e “essa multidão
[multitude] não pode ser ‘representada’ sem que haja
necessariamente simplificação [...] da vontade geral, ela mesma
necessariamente heterogênea”. Em um vocabulário que lembra
muito o de Derrida, Dupuis-Deri (2004, p.29) escreve que os
partidários do black bloc “se inscrevem em uma lógica política toda
outra [tout autre]124”, na medida em que “eles não objetivam
introduzir seus porta-vozes nos meios de comunicação ou nas mesas
de negociação”. Eles inclusive servem como “contraponto aos
dirigentes de organizações que procuram [...] garantir uma imagem
homogênea, respeitável e calma ao movimento que eles querem
representar” (DUPUIS-DERI, 2004, p.28). Em contraposição a atitudes
desse tipo, os black bloc, para Dupuis-Deri, (2004, p.31), “mostram
124
Expressão cara a Derrida, “tout autre” se refere à alteridade absoluta que chega
em um acontecimento. “Desconstruir é preparar a vinda do outro [...], heterogêneo
e incalculável” (Derrida, 1987, p.53). Ao final de “Prenome de Benjamin”, Derrida
(2005) chega a equalizar le tout autre à violência “divina” de Banjamin.
- 397 -
[...] que a multidão [multitude] pode coletivamente deliberar” e
“muitas vezes transborda e faz explodir o quadro político da
representação”.
Assim, faz parte da vontade desses grupos de manifestantes
“viver ‘outramente’ sua participação política” (DUPUIS-DERI, 2004,
p.7). Por vezes, seu objetivo é recusar-se a “deixar o monopólio da
violência ao Estado” (Dupuis-Deri, 2003, p.12). Nesse sentido, a ação
direta deve permitir ao agente “sair do papel de vítima passiva,
mudar a sua forma de pensar a sua relação com a cidade, com a
propriedade e com a política”. A ação direta já se mostra como um
puro meio, cuja função não é de comunicar algo, mas de produzir em
si mesma a circunstância política que almeja. Ademais, essa violência
pura é capaz de desestabilizar a economia da violência, expondo a
violência daquilo que, normalmente, é considerado não-violento.
Ainda que em tom descrente, Marco Aurélio Nogueira (2013)
escreve que um dos objetivos dos black blocs é, “supostamente”,
“revelar a face brutal do Esado”. De forma não menos crítica, Bucci
(2015, p.421) afirma que a atuação “mais pirotécnica do que
propriamente destrutiva” dos black bloc “serviria para desnudar e
denunciar aquela que efetivamente é a violência maior (mais
silenciosa, oculta, subliminar), qual seja, a violência materializada na
rotina da ordem estabelecida”.
- 398 -
O autor considera essa, porém, uma “justificativa moral um
tanto rasa”, e, embora a abordagem adotada aqui seja diferente, não
deixa de ser necessário recolocar, a esta altura, a questão levantada
mais acima: Será que a tática black bloc, como estratégia de
intervenção e ruptura em relação à violência de um sistema
simbólico posto, é defensável do ponto de vista da sua efetividade
estratégica, independentemente de considerações dispensáveis
sobre a sua justificação abstrata?
Violência e frustração
É que, em que pese sua vocação anti-representacional e
desestabilizadora, a estratégia black bloc parece ter terminado, com
maior frequência do que seria desejável, por produzir efeitos
negativos para a insurgência política.
Para Bucci (2015, p.417), os adeptos do black bloc
“produziram o oposto do que pretendiam” e que, “em lugar de
fortalecer as passeatas [...], só conseguiram esvaziá-las”. O autor não
nega que os mascarados, inicialmente, através de uma certa aura
revolucionária, foram um dos elementos que trouxeram as multidões
às ruas, mas argumenta que “depois essa relação finalmente se
inverteu e o signo black bloc operou mais como fator de repulsa do
que de atração” (Bucci, 2015, p.438).
- 399 -
Signo, agora sim, pois os dispositivos de significação e
representação já discutidos aqui, notadamente a grande mídia,
operaram a tradução do que acontecia nas ruas para o signo
“vândalos”, “baderneiros” e assim por diante. O resultado, de todo
modo, é que os black blocs logo passaram a ser rejeitados, por
exemplo, por 95% dos paulistanos, contribuindo para que o índice de
rejeição das manifestações em geral, que segundo o instituto
Datafolha era de 15% em junho de 2013, tivesse escalado para 42%
até fevereiro de 2014 (GOHN, 2014). Isso permite a Nogueira (2013)
concluir que se trata de “uma via torta, contraproducente”, ainda
que haja “um tipo de política nela” que, segundo o autor, deve ser
compreendida.
De certo modo, é um cacoete iluminista tentar explicar de
modo exaustivo a violência black bloc em termos de uma ação
calculada e razoável. Ao contrário, poderia ser interessante pensá-la
como sintoma, à maneira das explosões coléricas que Žižek qualificou
como “protestos em grau zero”, mesmo porque essa não deixa de ser
a forma como seus adeptos muitas vezes a pensam. Segundo o
próprio Dupuis-Deri (2003, p.10), o confronto entre os black blocs e a
polícia é pensado, em parte, como “a oportunidade de uma vingança
que funciona como válvula de escape” para aqueles que sofrem, nos
- 400 -
demais contextos de suas vidas, com a violência policial, a exemplo
dos moradores de periferias.
Dupuis-Deri explica que “entramos aqui no domínio das
justificações de caráter sociopsicológico: o tumulto da ação direta
provoca uma espécie de gozo” que, além de psicológico, é também
político. O autor cita um manifestante que descreve a ação direta
violenta como “uma manifestação de frustração”, e “uma catarse da
parte de pessoas que compreenderam ter interesses contraditórios
àqueles das instituições que atacam” (Dupuis-Deri, 2003, p.10, grifos
meus).
Quanto ao caso do Brasil, Nogueira (2013) escreve que
“muitos dos que quebram e destroem são jovens revoltados com as
vida infame da periferia”. Segundo ele, “adrenalina não sobra para
enfrentar a polícia, pois a polícia é um dos piores pesadelos das
periferias urbanas, onde entra sem pedir licença, sem dialogar,
matando com espantosa facilidade”. Nesse sentido, os black blocs
mais politizados não se distinguiriam tanto dos jovens negros e
pardos que, de torso nu e com blusas de cores quaisquer enroladas
na cabeça, causaram tumulto em algumas manifestações mais
conturbadas. “A democracia política não lhes faz muito sentido”,
escreve Nogueira, “pois seus resultados não são palpáveis, não são
- 401 -
decodificados. [Na periferia] agem operadores e associações de outro
tipo, algumas delas especializadas em fomentar violência”.
Para Nogueira (2013) a violência colérica, black bloc ou não,
“é, na verdade, o efeito colateral de uma via bloqueada, sem
esperança, sem utopia, individualizada e fragmentada, de uma
sociedade em que a violência entrou na corrente sanguínea, de um
Estado pouco eficiente, de uma cultura que homenageia o
espetáculo, mas não se complementa com uma ética pública
consistente. Produto das contradições de um capitalismo sem freios
e do descontrole que afeta a vida coletiva”.
Žižek (2008, p.76) argumenta que, diante desses protestos em
grau zero125, o que “deve ser resistido” é o que ele chama de
“tentação hermenêutica: a busca de um sentido ou de uma
mensagem mais profunda escondida nessas explosões de cólera”. O
que precisamos aceitar, segundo o autor, é que esse tipo de revolta
não tem sentido, não é senão uma passagem cega à ação deflagrada
por uma frustração intolerável. Seu objetivo é “criar um problema,
125
Žižek (2008, p.75) dá o exemplo dos protestos de 2005 nos subúrbios de Paris.
Segundo ele, “não havia demandas específicas” nesses protestos. Havia apenas
“um ressentimento vago e não articulado”. A mensagem desses protestos não era,
para Žižek (2008, p.77), “que os manifestantes viam sua identidade étnico-religiosa
ameaçada pelo universalismo republicano francês, mas, ao contrário, que eles não
eram incluídos nele, que eles se encontravam do outro lado da parede que separa
a parte visível do espaço social republicano da sua parte invisível. Eles não estavam
nem oferecendo uma solução nem constituindo um movimento para encontrar
uma. Seu objetivo era criar um problema”.
- 402 -
mostrar que há um problema que já não pode ser ignorado” e, para
isso, Žižek (2008, p.77) aponta que a violência era necessária: “se eles
tivessem organizado uma passeata [march] não-violenta, tudo o que
teriam obtido seria uma pequena nota de pé de página”. Essas
manifestações coléricas são assim, como já eram em Benjamin, um
meio puro. O meio é a mensagem. Não se trata de uma demanda por
reconhecimento ou pela aceitação de uma demanda, mas da
“rejeição da estrutura [framework] mesma através da qual o
reconhecimento se dá” (Žižek, 2008, p.78). O que se faz necessário é
uma nova estrutura.
Embora esse sintoma indique a exaustão de um modelo que
parece aproximar-se do seu limite, contando assim com algo como
uma justificativa política (ainda que projetada em um porvir
indeterminado), há que se fazer aqui, novamente, a distinção entre
condenar uma prática e considerá-la estrategicamente
contraproducente. Afinal, não se pode condenar moral ou
politicamente um sintoma, uma reação desesperada. Mas pode-se
considerar equivocada uma tática de ruptura quando ela falha em
produzir ruptura. Para Nogueira (2013), a violência do black bloc “não
gera comunidade ou democracia, mas seu oposto [...]; ataca o
sistema e seus ícones, mas não os põe em xeque, antes os reforça;
- 403 -
empurra as pessoas de volta para casa” e, portanto, para longe da
política.
Aqui talvez se torne clara a razão pela qual a violência
colérica126, já em Benjamin (2011), está do lado da violência “mítica”,
e não da “divina”, muito embora seja, como esta última, um meio
puro. É que a cólera, ao contrário da violência pura, deixa-se capturar
no ciclo da instituição e da manutenção do direito, tornando-se
impotente. Na medida em que as instituições de mediação e
representação colocam em funcionamento os dispositivos
interpretativos necessários para capturar uma violência livre (por
exemplo através do par “pacíficos”/“baderneiros”) ela perde a sua
capacidade de deslocar o aparato institucional, passando a servir, ao
contrário, como meio para a sua conservação.
Respondendo, então, à grande pergunta colocada mais acima,
e que muitas vezes foi levantada, desde 2013, em âmbitos
acadêmicos ou não, creio poder dizer que talvez em algum momento
o black bloc tenha se manifestado como o que Benjamin chama de
126
Para Benjamin (2011, p.146), a violência “Mítica” estaria ligada à cólera como
violência que não se relaciona como meio a um fim determinado, mas apenas
mostra a si mesma enquanto violência. Quem externa colericamente uma violência
não pretende com isso nada além de externá-la. A violência da cólera “não é meio,
e sim manifestação”, escreve Benjamin (2011, p.146). Ele explica que “a violência
mítica em sua forma arquetípica” está na “manifestação dos deuses”. Benjamin
(2011, p.144) escreve que a violência colérica “é comparável muito menos a uma
máquina, que para quando o foguista a abandona do que a uma fera que, logo que
o domador lhe dá as costas, enlouquece desvairadamente”.
- 404 -
violência “divina”, e talvez isso tenha continuado a dar-se, por vezes,
em alguma medida, mas seu papel parece ter se tornado em primeiro
lugar o de uma violência colérica frustrada, que reforça o aparato
contra o qual se bate.
O que define, afinal, uma estratégia de ruptura? Nos termos
discutidos aqui, parece insuficiente (ou mesmo irrelevante) que uma
prática apareça claramente como violenta (como violência
“subjetiva”) ou que rejeite de forma absoluta um estado vigente de
coisas. Antes, o essencial é que ela produza uma suspensão ou
deslocamento nos dispositivos interpretativos vigentes, de maneira a
criar um espaço em que novas interpretações, incomensuráveis com
o que as precede, possam irromper.
Que o black bloc, em certas circunstâncias, tenha acabado
tornando-se uma estratégia de ruptura frustrada, não implica,
contudo, que as estratégias de ruptura não sejam possíveis, ou não
mais, no nosso contexto. Significa apenas que essas estratégias
devem ser, justamente, estratégicas, no sentido de lançar mão de
uma sensibilidade e uma inteligência aguçadas, sempre que se
puserem em movimento. E sempre novamente, tendo em vista a
característica essencial da noção de estratégia, conforme procura-se
pensá-la aqui, relacionada à singularidade da situação: cada caso é
um novo caso, absolutamente singular, e tomar uma posição
- 405 -
estratégica em relação a ele implica justamente em não tomar por
garantido nenhum efeito anterior, obtido em outra situação por uma
prática afim.
Conclusão
Nesta discussão, defendi que as ações de ruptura em relação
a uma ordem estabelecida não podem ser entendidas em termos
gerais, mas apenas em relação a casos singulares, e diante, portanto,
de considerações estratégicas.
No que toca à ação política, a consequência disso parece ser
que nenhuma fórmula geral, nenhuma metodologia, nenhuma ideia e
nenhuma utopia podem orientar, de forma garantida, a prática
política insurgente. Isso implica em que nem, de um lado, a
condenação definitiva de qualquer violência como antidemocrática,
nem, de outro, uma apologia cega e redentora da violência pela
violência, se justificam. Antes, é preciso a cada caso avaliar a relação
entre um dado impulso de força e as estruturas colocadas para
recebê-lo, de modo a encontrar o ponto e o momento exatos em que
uma intervenção é capaz de reorganizar produtivamente um sistema.
“É uma arte”, dir-se-ia, sem que fosse preciso temer as conotações –
questão de uma sensibilidade tanto de interpretação quanto de ação,
de leitura como de poética.
- 406 -
Antes das ideias, então, as práticas do dia-após-dia. Antes de
uma utopia futura, várias heterotopias presentes, a cada vez. Falar
em estratégias de ruptura e nas rupturas como estratégicas é dizer,
finalmente, que nenhuma ruptura é uma ruptura em sentido estrito,
que em toda ruptura há uma dimensão de continuidade.
Se ainda hoje podemos e devemos olhar para os estranhos
acontecimentos de junho de 2013 em busca de inspiração para novas
práticas políticas, democráticas, críticas e até poéticas, não deve ser
para buscar, naquele momento passado, uma revolução que poderia
ter sido e não foi, e para assim recuperá-la, ou para encontrar ali um
paradigma de ação política cuja repetição nos levará ao futuro. Se
2013 pode ensinar-nos, ainda, novas formas de agir politicamente, é
a partir da noção de que, naquele momento e a cada momento
desde então, novas práticas políticas são possíveis. As temos visto
desde sempre, onde houve resistência, mas também onde houve
arte, poesia, sátira. Ao mesmo tempo, nenhuma dessas instâncias
jamais garantiu a próxima. Depois de junho de 2013, nada está
garantido, nada se repetirá. O que talvez se repita é somente o que
se deu: algo sem precedentes.
- 407 -
Referências Bibliográficas:
ARAÚJO, Jorge. A volta dos baderneiros. Veja. São Paulo: Abril, ed.
2461, ano 49, nº 3, 20 de janeiro de 2016. P.47
- 408 -
______. Penser l’action directe des black blocs. In.: Politix, vol. 14, nº
68. 2004. Disponível em:
<http://classiques.uqac.ca/contemporains/dupuis_deri_francis/pens
er_action_black_blocs/penser_action_black_blocs.pdf>. Acessado
em 5 de fevereiro de 2016.
- 409 -
ROLNIK, Raquel. Apresentação – As Vozes das Ruas: as revoltas de
junho e suas interpretações. In.: MARICATO, Ermínia et al. Cidades
Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do
Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013, p.7-12.
SAFATLE, Vladimir. Amar uma Ideia. In.: HARVEY, David et al. Occupy:
Os movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo:
Boitempo, 2012b, p.45-55.
SCHACTER, Rafael. Ornament and Order: Graffiti, street art and the
parergon. Burlington: Ashgate, 2014.
- 410 -
Êxodos: O corpo, a memória e a tarefa persistente
Elielson Figueiredo127
Introdução
Neste breve comentário tentamos traçar alguns dos
contornos mais evidentes, por vezes os mais inquietantes, da
literatura brasileira contemporânea no intuito de seguir argumentos
já defendidos por críticos e ensaístas, mas sem descuidar da
resistência a alguns outros, menos consistentes.
Quatro preocupações norteiam este texto. Iniciamos a
reflexão pela problematização do conceito de pós-utópico, retomado
de Haroldo de Campos e defendido por Flávio Carneiro. Quanto a
este conceito, entendemos a necessidade de dissociá-lo de qualquer
atitude radicalmente avessa ao modernismo e mesmo ao cânone
mais tradicional. Parece-nos muito precipitado afirmar que o pós-
utópico é a marca do que se escreve no Brasil a partir dos anos 2000,
de vez que muito há de um contemporâneo engajamento cujas
formas de expressão são, em si mesmas, flagrantes de um diálogo
com as minorias sociais, de onde emerge uma estética do choque.
Não nos parece, neste tema, que a motivação da literatura brasileira
127
doutorando do PPGL/UFPA. Professor Assistente do Departamento de Língua e
Literatura da Universidade do Estado do Pará (UEPA.
- 411 -
atual, sobretudo da narrativa, seja, simplesmente, a afirmação da
fatalidade.
O passo seguinte é uma breve referência à crise da
representação na literatura brasileira contemporânea. Pensando na
tensa relação entre o real e a ficção, abordamos as expressões do
realismo nas últimas décadas para entender como a palavra se
tornou mais próxima do significante ou emprega mais esforços para
alcançá-lo. Sempre ameaçado pelo tempo, o artista procura meios
para superar o vácuo entre o que vê e o que representa. De certa
maneira, a literatura contemporânea impõe-se a tarefa de narrar a
microfísica do cotidiano atendo-se à reflexão sobre a impossibilidade
de reunir os fragmentos dispersos da experiência humana, também
sobre a impossibilidade de representar qualquer coisa além da
própria linguagem.
A seguir, passamos à discussão de duas atitudes muito
presentes atualmente na ficção brasileira: a subjetivação e a
desterritorialização. Tratamos da errância como um deslocamento
que recolhe os sinais do passado, portanto como uma procura pela
ausência. O espaço urbano é o lugar desse deslocamento, espaço
textual por onde transitam aleatoriamente sujeitos que vão tateando
as ruas, os prédios, os monumentos e terminais de passageiros como
narrativas da história. Sem lugar e identidades fixas, personagens
errantes recompõem memórias obedecendo apenas o fluxo de suas
- 412 -
subjetividades, agregando ao corpo inscrições de tempos e espaços
que passam a reescrever segundo a sintaxe de suas experiências.
Por fim, discutimos certa economia dos deslocamentos na
qual corpo e espaço se imbricam para assumir uma inteireza
indissociável. Apontamos uma estratégia dos narradores atuais que
consiste em imprimir sobre as personagens as fronteiras geográficas
e econômicas do lugar social a que pertencem. Nessa estratégia está
um jogo com as artes cênicas, um apelo à performance das
personagens e ao olhar atento do leitor, este convidado a perceber
cada movimento, gesto e palavra, capazes de denunciar as
circunstâncias socioeconômicas sob as quais foram cunhadas cada
personagem. O espetáculo corporal alegoriza a cartografia das
relações sociais, as formas violentas de relacionamento entre corpos
espacializados e a intolerância com os arquivos, aqui representados
pelos corpos cuja presença ameaçam uma ordem instituída.
- 413 -
possiblidade de presentificação do real, sendo capaz de emitir um
julgamento consistente sobre a condição atual da literatura, no Brasil
especificamente, sem se deixar arrastar pela ideia lampejante e
inspirada da última hora.
Quando Flávio Carneiro, em prefácio escrito para o seu No
país do presente: ficção brasileira no início do século XXI (2005)
defendeu a tese de que havíamos entrado na era do pós-utópico a
partir de 1980 mostrou-se apressado, o que no mais das vezes
constitui um empecilho para o bom trabalho, para cumprir o primeiro
quesito mencionado acima. O autor do prefácio defendeu a ideia de
que a literatura e as demais artes haviam rompido com a procura por
um lugar adiante, por uma saída ou passagem para depois de
superados os embates entre o Novo e o Velho trazidos pela
modernidade. Tal argumento seria a sustentação de seu novo
conceito, este capaz de superar o que havíamos apreendido como
pós-moderno. Daí que, vivendo a contemporaneidade literária uma
experiência de pós-utopia, tudo seria indistinto no âmbito da cultura
e das linguagens artísticas sob pena de nos mantermos ainda presos
a cânones paralisantes caso insistamos em afirmar particularidades e
propósitos específicos. Contudo, afirmar a indistinção como abertura
ideológica que se opõe à ditadura do modernismo significa também
empunhar uma bandeira de combate e luta, definir para si o
propósito de chegar a um futuro almejado, e isso é bastante para
- 414 -
mostrar que a pós-utopia, segundo entendida por Flávio Carneiro,
ainda é muito utópica.
O que há de precário no argumento defendido? Aposto na
pressa por dizer as linhas gerais da ficção brasileira dos anos de 1990
e 2000. Basta olharmos com Erik Schøllhammer (2009) e veremos
que a literatura contemporânea não dispensa a visitação ao passado
nem os objetivos ou propósitos políticos e sociais que apontam para
perspectivas futuras de renovação dos quadros culturais brasileiros.
Temos uma literatura que atingiu maturidade necessária para despir-
se de purismos estetizantes e promover o hibridismo pela adesão de
outras linguagens com as quais sempre “jogou”, quero dizer,
linguagens às quais sempre se expôs, influenciou, provocou,
desafiou. Trata-se de uma atitude contemporânea não porque esteja
em sintonia com uma crítica blasé e cética que dessublimou a ideia
de literatura. Toda essa abertura mostra o afinco da literatura
brasileira por novas possibilidades, não é protesto pós-utópico
alavancado pelo mercado editorial barateiro, movido pelas mídias
digitais e pelo baixo custo das edições destinadas às livrarias de
farmácia. Se assim fosse, estaríamos assistindo o surgimento de
outra “escola” de escritores.
O que há de contemporâneo em escritores como Marçal
Aquino e Marcelino Freire, por exemplo, é a procura pela linguagem
das margens para objetar seus textos, ou seja, apontá-los para um
determinado fim ou alvo a ser atingido: a afetividade dos leitores –
- 415 -
em geral oriundos da classe média – para que possam sentir de
maneira táctil um real mais real que aquele representado pela
mimese praticada pelo realismo histórico. Fica claro que ser
contemporâneo não significa assumir um ceticismo programático,
tampouco entregar-se à cultura do best seller popular que atende às
expectativas do mercado. Toda a indistinção que rompe com os
binarismos essencialistas como ficção/documentário é movida pelo
olhar do autor lançado sobre o mundo, um olhar capaz de ver a si
mesmo e questionar qual sua performance como artista quando os
olhos da sociedade apontam também contra si; de perceber o real
através de uma estética do choque que move a busca por outras
formas de expressividade mais condizentes com a urgência do que se
quer dizer. Tudo que foge a isso, ou se rende ao mercado e não
sobrevive ou empunha ainda uma bandeira de ceticismo que, quando
tomado como programa do gosto atual, não passa de uma nova
canonização. Nas palavras de Schøllhammer:
- 416 -
Até agora, estamos caminhando para algumas conclusões: a)
o pós-utópico não é um anti-cânone ou anti-modernismo que
demoniza o passado cultural e literário, é muito mais uma
experiência do sujeito no mundo contemporâneo; b) se tomada
como um programa da literatura atual, ou seja, sinalizando para um
entendimento apenas cronológico do contemporâneo, toda a
produção recente marcada pelo ceticismo se converterá num novo
cânone e c) a literatura contemporânea não pode ser avaliada
somente pela ampliação do mercado e das mídias, já que isso não
implica necessariamente a circulação de textos significativos ou
capazes de sobreviver aos modismos, nem implica obrigatoriamente
num consciente hibridismo entre literatura e outras textualidades.
Quanto a estas primeiras conclusões,
128
grifo nosso
- 417 -
Não se trata de abandonar o cânone apenas, ou
simplesmente aderir a um ceticismo em voga, ou ainda, associar a
literatura contemporânea aos multimeios digitais. Trata-se de
- 418 -
graças à presença de escritores nos meios digitais “o talento literário
parece ter, hoje, mais chance de ser identificado pelo garimpo das
editoras comerciais” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 20).
Quanto à relação da literatura contemporânea com o real,
ainda é possível perceber nos escritores de agora uma herança
daquela geração de 1970, seja pelo realismo urbano, seja pelas
inovações estilísticas. Cremos que isso também sinaliza a
permanência de um engajamento político que desbanca a tese de um
pós-utópico, sobretudo se pensarmos nos ficcionistas de hoje mais
ligados aos retratos da marginalidade social, da violência e do crime.
Como dito antes, essa produção que cerca a realidade pelas margens
aponta para um determinado quadro social intentando resistir,
questioná-lo e destituí-lo de seu status de imanência através de uma
recuperação do grotesco, do feio, como recalque de existências
historicamente subordinadas a padrões da classe média, padrões que
tendem a ser cada vez mais homogêneos e globais. Isso explica
porque, ainda sob a herança de 1970, a chamada geração “00” tem
abandonado os tons universalistas em favor de vozes periféricas que
podem, enfim, projetar-se na écran lacaniana para dizer o que veem,
inclusive a si próprias. São sujeitos historicamente calados por serem
femininos, homo afetivos, negros, favelados, afro descendentes,
doentes mentais. Tais narrativas muitas vezes casam com a
autobiografia – como ocorre em Capão Pecado, de Ferréz –
produzindo uma “expressão mais propícia a um novo tipo de
- 419 -
engajamento” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 24) que ainda aprofunda o
hibridismo já presente desde a crônica política, do romance-ensaio e
do romance-reportagem, só que agora sob uma expressão enunciada
da periferia. Assim, de fato a era das utopias passou, mas o
engajamento continua o mesmo quando adentramos nos textos em
que é patente a construção de subjetividades mergulhadas na
monotonia do dia a dia. Insisto que entender o pós-utópico como
uma rendição à indiferença, como uma renúncia à possibilidade de
interferir sobre outras linguagens ao invés de afastar-se delas, é um
equívoco. Muito ao contrário, a literatura contemporânea espalhou-
se dentro de todas as demais linguagens numa atitude larga e
abrangente que intenta reduzir o déficit entre a linguagem e o real
para criar efeitos cada vez mais afetivos sobre o leitor. É certo que os
novos canais proporcionaram uma proliferação midiática da figura do
escritor, agora transformado em celebridade emergente em feiras e
blogs. Mas, a mesma rapidez que leva o escrevente à condição de
escritor, em duas ou três postagens comentadas por centenas de
seguidores se encarrega de afirmar o que é significativo e o que é
passatempo em capsulas de charme diletante.
Contemporaneidade e representação
Numa reunião de textos de Valêncio Xavier intitulada O Mez
da Grippe e outros livros (1998) encontramos o conto Mistério do
Menino Morto, publicado originalmente no jornal O Estado do
- 420 -
Paraná em 18 de junho de 1985. Neste, o narrador é um fotógrafo
que vai se reconhecendo como um artista contemporâneo já que sua
procura é por registrar um presente, um instante, inalcançável e
insubmisso a qualquer registro. Ao longo de todo o texto
acompanhamos muito mais a dissertação sobre a memória,
recuperada somente nos momentos finais da vida segundo diz a
cultura popular, do que propriamente a narração dos fatos. O
episódio que sustenta a narrativa é a morte de um menino que o
fotógrafo havia clicado dias antes de seu falecimento inesperado. A
partir daí o narrador se entrega ao esforço de recuperar o que sua
lente não pode alcançar. Que imagens passaram pela memória do
menino nos últimos momentos? O que via o menino quando a mãe
lhe oferecia uma pequena esfera de vidro pela qual se punha a
observar a paisagem? Não demora e o narrador vai imaginando o
momento de sua própria morte entre questionamentos sobre o que
haveria de recordar em seus últimos momentos.
Trata-se de enredo que prima pelo adensamento da
experiência cotidiana. Desvenda-se a experiência estética do dia a
dia, mais propriamente sua procura pela contemporaneidade e a
falência de meios para alcançar tal propósito. Dos recursos todos,
mesmo a imagem nada pode dizer do conjunto inapreensível de
todos os instantes vividos, ficando tudo perdido ou guardado para os
últimos momentos de vida, tudo guardado e irrepresentável,
indizível. Tudo fragmentado para só ao fim ser reunido, o que faz da
- 421 -
morte a culminância de uma grande procura pelo real, ou pelas
melhores representações do real que, finalmente encontradas, já de
nada servem porque sempre ficam presas na memória e morrem
junto com ela.
Apesar do tom intimista e filosófico o conto debate uma das
grandes questões da contemporaneidade, a saber, a crise da
representação. Por vezes o menino fotografado tomava uma esfera
azul de vidro e a punha entre o olho e a paisagem, cena performática
que representa muito bem o sujeito com a câmera nas mãos. De
certo modo, o menino estava a perguntar: o que faz você com essa
câmera sem poder mostrar o que é refletido na superfície da esfera
azul? Este olho que vê pelo vidro azul está refletido na realidade e a
realidade é quem diz quem ele é, mas, nem um nem outro estão ao
alcance da lente do fotógrafo. Então, como atravessar esse déficit
entre a linguagem, mesmo a artística, e o real?
Sobre seus últimos momentos, o narrador vai concluindo que
talvez tudo seja imagem, olhar e memória e então, sobre uma mulher
que amava, indaga:
- 422 -
desaparecerá comigo para todo o sempre
(XAVIER, 1998, p. 257)
Subjetivação e Desterritorialização
Para bem desta argumentação penso que seja importante
apresentar quais sejam as principais orientações temáticas e
procedimentos formais da narrativa ficcional contemporânea feita no
Brasil. Minha incursão agora é por Bem longe de Marienbad, texto de
Caio Fernando Abreu publicado no volume de contos Estranhos
Estrangeiros129 (2002) e cuja primeira edição brasileira é de 1996,
ano da morte do autor. A epígrafe, retirada de uma carta de Camilie
Claudel a Rodin, diz sobre a experiência da incompletude e da
fragmentação interior que leva à movência vã por lugares sinistros,
129
Daqui em diante esta obra será referida pela sigla E.E
- 423 -
adjetivo que o narrador escolhe para nomear a cidade de Saint-
Nazarie, ao norte da França, onde desembarca de um trem. Lama,
escuridão, entulhos de construção civil pela rua, o labirinto de
escadas e pavimentos da estação de trens, um velho manco e
enguias espremidas no aquário de um restaurante indiciam a
ausência de qualquer convicção ou grandioso heroísmo do indivíduo
que acabara de chegar. Sem saber a hora precisa e sem ter quem o
aguarde, o narrador nos deixa perceber que se entrega a uma busca
sem objeto, já que o amigo que julgava aguardá-lo não aparecerá.
Quase flanando, traçando com precariedade as coordenadas
de um mapa que o vento tenta impedi-lo de ler, o narrador
recompõe narrativas de guerra e nazismo que permeiam seu olhar
estrangeiro lançado sobre o texto arquitetônico da cidade. Tudo ali é
“escombro e ruína” (E.E. p. 22) de um tempo cujos fios estão
esgarçados o suficiente para que o vejamos em sua consistência,
livres da trama histórica e da ideia petrificada de progresso linear (Cf.
BENJAMIN, 1984, p. 188).130 É um tempo de “explosão e cacos,
estilhaços na carne macia das crianças” (E.E. p. 22), embora nada
dessa história diga muito ao narrador, ou diga sequer algum nexo
entre aquele tempo de antes e este de agora. Até aqui temos o
suficiente para antever a Cidade como um espaço privilegiado da
memória e desta como atividade cartográfica que vai desfiando as
130
Esta referência a W. Benjamin não significa dizer que ele seja um partidário das
teses pós-modernistas acerca do fim dos grandes relatos, de vez que sua crítica à
modernidade ainda tem raízes no marxismo.
- 424 -
subjetividades contemporâneas representadas em certa vertente da
literatura brasileira recente. Este conto, exemplarmente, mostra-nos
um narrador que vai recolhendo fragmentos de tempo para dar-lhes
novo conjunto, tudo “loucura, ilusão” de gauche que “faz lembrar [...]
outra coisa num lugar diverso” (E.E. p. 24). Essa maneira rizomática
(Cf. DELEUZE, 2004, p. 15) de reconhecer-se no mundo, livre de
núcleo identitário, está diretamente ligada à “convicção crescente de
que a experiência afetiva da marginalidade social - como ela emerge
em formas culturais não-canônicas - transforma nossas estratégias
críticas” (BHABHA, 1998, p. 240) e que engendra novas formas de
subjetivação, ou seja, de representação do mundo e de si. Vejamos
como se define o narrador a certa altura de sua procura pelo amigo
que chama apenas de “K”:
- 425 -
Brixton ou num hotel turco. Essas múltiplas referências anulam umas
às outras tornando-se indistintas e isso nos convida a compreender
os mapas culturais e a admitir que “o espaço se erige na
epistemologia contemporânea como uma das categorias mais
importantes para as ciências humanas” (CURY, 2007, p. 8), estas
tomadas transversalmente para, aliadas à crítica literária e exercendo
sobre ela seu discurso, investigar como a literatura contemporânea
tem devassado fronteiras entre os gêneros e linguagens para
representar a “modernidade líquida” e sua concepção de que a
“habilidade da civilidade” é desnecessária e capaz de converter a
Cidade em não-lugares que
- 426 -
performance – que resiste ao grande relato quando encena diante do
leitor um jogo de errância que obriga o narrador a mover suas
experiências, acionar suas memórias, na difícil tarefa de
compreender o espaço, subjetiva-lo, e assim não ser tragado por ele.
Resistir às grandes narrativas é mover-se, fazer-se permanentemente
obra citada, citação, texto cuja presença denuncia a ausência. Daí
que o narrador de Caio Fernando, ao acordar depois da procura vã,
esteja “quase feliz” e precise “viajar, esquecer, talvez Amar” (E.E. p.
32). Faço notar ainda a obsessão do narrador por ouvir a voz do
amigo, perceber sua dicção artificial, sentir a temperatura de suas
mãos ou, em sua ausência, encontrar no não-lugar as “marcas da
passagem de K” (idem). Destaco esta informação para dizer que o
trânsito, a passagem e a brevidade do micro relato anônimo são as
atuais formas de estar out, fora, como “K” deixa-se insinuar:
- 427 -
milhares de homossexuais foi obrigado a deixar a ilha de Fidel Castro
em 1980 para viver em Miami. A condição de exilado do autor
cubano é próxima do que Caio Fernando chama de “Estranho” no
título do seu livro, referindo-se àqueles sujeitos que transitam
invisíveis e errantes, sujeitos que, cotejados com a massa urbana,
parecem ser eles mesmos um não-lugar, uma persona que não existe
no mapa social e afetivo de ninguém. Ao escolher a epígrafe retirada
de Miguel Torga – “pareço uma dessas árvores que se transplantam,
que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra
natal”131 – Caio Fernando antecipa-nos a dolorosa condição do
expatriado, aquele cujo corpo e a escrita dispersam-se de um Lugar,
de um território definitivo, sem jamais convergir ou retornar porque
não pode mais distinguir onde esteja sua origem ou quem seja ele
mesmo. Em sua crônica dedicada a Reinaldo Arenas132 o contista nos
fala de sua estadia em Saint-Nazaire em 1992 e do contato decisivo
com as Meditations de Saint-Nazaire, de Arenas, durante sua estadia
na Maison des Écrivains Étrangers no mesmo apartamento em que
pouco tempo antes o escritor cubano se hospedara. Deste contato,
incisivo sobre a desterritorialização de Caio Fernando Abreu, surgiu
Bien Loin de Marienbad, escrito durante os sessenta dias vividos sob
o impacto da escrita aflita do artista cubano, publicado originalmente
131
apud ABREU, 2002, p. 10
132
Cf. texto publicado no jornal O Estado de São Paulo em 27 de novembro de
1994, Caderno 2, p. 234
- 428 -
em francês pela Arcane 17 com edição brasileira, esta que utilizo
aqui, pelas mãos de Luiz Schwarz.133
Em Bem longe de Marienbad o narrador faz diversos inserts
para revelar os diversos ângulos do cenário urbano, mas sem
descuidar de, vez ou outra, fazer ponderações sobre objetos
dispostos no apartamento, beirando um minimalismo em prosa que
deixa antever uma poética do fragmento e da dispersão. Essa opção
por planos gerais cortados por pequenas e variadas inserções
contempla feição performática do espaço urbano (CURY, 2007, p. 09)
cujas ruínas deixam restos de história, de identidades que não mais
se reconstituem (WALTY apud CURY, 2007, p. 11). Arriscamos dizer
que Caio Fernando Abreu adentra num memorialismo que não é
capaz, ou talvez não deseje, atravessar. Não se trata de passar a
limpo uma história pessoal imbricada nos relatos da história nacional
ou regional, é antes uma fantasmagoria de tempo cíclico, um
conjunto de citações históricas que de alguma forma tornam o
presente uma cifra, um enigma apontando em direção ao próprio
narrador que, às vezes, não sabe o que realmente está fazendo
esgueirando-se por vielas e prédios velhos. Entendemos agora aquele
excerto da prosa de Reinaldo Arenas encontrado como o único
fragmento deixado por “K”, trata-se de uma escrita cuja presença
indicia uma passagem, uma ausência que tenta desesperadamente
133
Cf. texto publicado no jornal O Estado de São Paulo em 11 de dezembro de
1994, Caderno 2, p. 229
- 429 -
permanecer. É uma cópia de Arenas, feita com a caligrafia de “K”, é
uma ausência que sinaliza outra ausência. Talvez não haja forma mais
radical de desterritorialização do que esta que leva o Sujeito a
perder-se, exilar-se, de si. O excerto nos diz: “Aún no sé si este es el
sitio donde yo pueda vivir. Talvez para un desterrado - como la
palabra lo indica - no haya sitio en la tierra. Solo quisiera pedirle a
este cielo resplandeciente y a este mar, que por unos días aún podré
contemplar, que acojan mi terror” (E.E. p. 34). A fascinação de “K”
pelo texto de Arenas, a ponto de transcrevê-lo, mostra que eles são o
mesmo corpo fraturado em línguas distintas, corpos separados,
unidos apenas pela cópia, duplos sem original. Nada mais
radicalmente pós-moderno. Estamos no nível semântico do
deslocamento que toma a alteridade como “ponto de partida para
uma apreensão [...] do mundo e não como uma busca de afirmação
de uma identidade” já que “deslocamentos espaciais (e temporais),
também encenam uma busca subjetiva, um movimento “para
dentro”, na busca do espaço interior de seus narradores e
personagens/protagonistas, discursos de memória em que
estranhamente é a representação do presente134 o objeto de
disputa” (CURY, 2007 p. 12) e neste tempo, como na escrita de “K”
“tudo lembrará outra coisa” (E.E. p. 38).
134
Neste conto de Caio Fernando este tempo, como o espaço a que está
invariavelmente ligado, são metaforizados por “K”, ou melhor, por sua ausência
- 430 -
Quase ao final da narrativa um texto escrito por “K” nos fala
de sua partida e lamento por não ter encontrado o leopardo dos
mares135, alusão a um rapaz com um leopardo pulando sete ondas
verdes tatuado no braço, alguém que “K” procurou durante trinta
dias, sem sucesso. O rapaz procurado é, não por acaso, o narrador,
aquele que também procura. Sabemos agora que há um desencontro
entre quem deixa e quem recolhe memórias, pois no apartamento há
uma pasta cheia de catálogos, fotografia, textos grifados e escritos
com data do dia anterior, dia da partida de um e chegada do outro.
Dois errantes, corpos ausentes, corpos presos dentro de trens
atravessando pontes, recolhendo memórias desencontradas que aos
poucos vão alinhavando precariamente suas vidas. O que sabemos
sobre o narrador, bem como sobre “K”, Reinaldo Arenas e outros
artistas e intelectuais citados no conto é que seus corpos são a beleza
que permeia os vãos da Cidade, que
135
Título de uma novela publicada em edição bilíngue pela Arcane 17 em 1993,
depois da viagem de Caio Fernando Abreu a Saint-Nazaire
- 431 -
Penso que esta leitura de Caio Fernando Abreu possa
interessar minimamente a quem carregue o propósito de investigar a
literatura brasileira contemporânea à procura de entender suas
formas de representação das novas cartografias, rotas e caminhos
por onde se entrelaçam subjetivação, desterritorialização e espaço
urbano.
Corpos deslocados
O corpo tem sido encenado pela literatura para dizer quase
tudo, atualmente. Ao longo da história literária ocidental, desde a
Grécia homérica, são muitas as narrativas em que o corpo é o lugar
do registro, a rasura do tempo onde se inscrevem os eventos.
Consequentemente, o corpo é o lugar da memória, da reelaboração
do passado, mas também da política, ou seja, da atividade exercida
sobre outros corpos. O corpo é um arquivo, no sentido referido por
Derrida (2001), leitor de Freud. Do grego arkhê, arquivo significa,
etimologicamente, começo e também comando e isso é fundamental
para compreendermos o corpo como arquivo, ou seja, como texto
que guarda secretos ligados ao exercício ou perda do poder.
Daí decorre a importância de se ter o controle dos corpos, dos
arquivos, para que não exponham os segredos que venham a
comprometer o comando ou poder exercido por quem os controla. É
disso que está tratando Regina Dalcastagnè (2005) quando fala de
corpo e marginalidade. Afinal, a literatura contemporânea, segundo a
- 432 -
autora, tem criado corpos territorializados que guardam em si os
contornos da memória social. Projetamos sobre o corpo o olhar do
Outro para definir quem somos e o espaço a que pertencemos
socialmente, o que é praticamente uma sinonímia. Assim, corpos são
espaços e há fronteiras que determinam até onde esses corpos
podem transitar, falar ou simplesmente permanecer. Esses corpos
territorializados ou espaços corporificados devem estar controlados,
dominados e vigiados por outros corpos que socialmente exercem o
poder econômico. Em síntese, corpos marginais não podem invadir o
oásis da classe média urbana.
Os corpos marginalizados carreguem em si as marcas do
poder a que servem economicamente e tentem esforçadamente
inscrever sobre si outras marcas, as da classe média burguesa, e
apagar as marcas da marginalidade econômica. Isso explica “o
cuidado dos indivíduos com o corte de cabelo, as formas esculpidas
em academias ou em mesas cirúrgicas, seja o idioma bem
pronunciado (incluindo aí o inglês)” (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 72)
sejam os corpos abastados que querem afirmar seu poder, sejam os
corpos marginalizados que desejam ascender a ele. A tese que
estamos defendendo é a de que corpos, como espaços, são
dominados para impedir que atormentem outros corpos, os
dominantes. Contudo, as incursões invasivas vindas das margens em
direção aos templos do poder econômico burguês – como shoppings
e aeroportos – são inevitáveis, já que a própria classe média promove
- 433 -
uma espetacularização de seus modos, seu prestígio e seu êxito a fim
de fazer-se desejar.
Tais presenças invasivas e obviamente indesejadas,
perturbadoras da ordem que se quer manter no centro, bem longe
das margens, já podem ser sugeridas no título de um dos romances
de Cristóvão Tezza: O fantasma da infância (2007). Um dos planos
narrativos do romance mostra um advogado bem-sucedido
atormentado por “alguma coisa irresolvida que está em parte alguma
mas viaja pelos nervos. Quem sabe uma espécie de vergonha”
(TEZZA, 2007, p. 9). Note que embora não se saiba o que ocorre,
sabe-se que isso passa “pelos nervos” sem que André Devinne – o
protagonista – possa esboçar reação, pois não sabe contra o que
deve resistir. Essa é uma circunstância interessante.
Por hora, o que ameaça André Devinne não conhece outra
manifestação física além de seu próprio corpo. Isso permite entender
o arquivo/corpo depondo em favor da memória, do diálogo entre
passado e presente, exigindo um balanço elucidativo que revele a
verdade sobre o que está escondido pela nova condição econômica e
geográfica do protagonista. Com vista para a Lagoa e frases em inglês
na cabeça, André Devinne sofre a forçada condição de quem se sabe
envolto num silêncio de arquivo segredado que esconde vergonhas
passadas. Quando a frase em inglês chegou à cabeça “tentou
esquecê-la de imediato, mas era tarde: o corpo inteiro se povoou de
lembrança e de ansiedade, exigindo explicações. ”
- 434 -
Daí em diante, a chegada do amigo do passado vai romper o
silêncio. O amigo indesejado traz no corpo o endereço de um lugar
incompatível com os móveis e ornamentos da casa de André
Devinne, sua presença é testemunho que depõe contra o silêncio
acerca das memórias de André, o corpo do outro “fala de um tempo
e de um lugar que precisam ser enterrados para que o novo Devinne
sobreviva” (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 78). Odair, o visitante
indesejado, passará a ser hóspede de Devinne e isso lhe dá a
oportunidade de confrontar-se com todos os objetos da casa que o
declaram invasor de fronteiras onde seus arquivos não podem ser
abertos sob risco de causarem a desordem.
Lacanianamente, (Cf. SCHØLLHAMMER, 2002, p. 83) Odair “se
vê com os olhos de Devinne, com os olhos daqueles que possuem
dinheiro para andar sempre limpos, com os cabelos bem cortados e
dentes cuidados” (idem). Mas, o mais interessante é que Devinne
toma o olhar de Odair para ver a si mesmo como um embuste que,
diante daquela presença depoente, poderia ser desmascarado. Esse
olhar que conhece e pode usar o que conhece contra as máscaras do
presente, projeta contra o pano de fundo da vida confortável
“alguma circustância talvez não muito lisonjeira” sobre o advogado
bem-sucedido.
Dito isso, podemos entender que os espaços são construídos
social e economicamente e que o valor da distinção é o privilégio
econômico. Os corpos, como os territórios, guardam em si as
- 435 -
memórias infantis, as marcas da exclusão que incita à corrupção
(sugerida pela possível prisão de Devinne no passado) e ao crime.
Embora possam circular, os corpos levam consigo os signos que
socialmente os esculpiram, algo como a palavra talhada na carne e
pelas mãos da elite econômica. Só o dinheiro pode mascarar tais
signos, como ocorre com Devinne. Ameaçar abrir esses arquivos,
rasurar o traço forte e espesso com o qual são traçados os limites
econômicos, ameaçar o poder excludente comprado com dinheiro,
abrir as gavetas de um arquivo secreto, é tudo isso um risco que tem
preço alto e que se paga com a vida, como pagou Odair.
Conclusão
Após estes breves apontamentos sobre as linhas gerais da
literatura brasileira contemporânea, podemos avaliar com mais
serenidade os contornos dessa produção localizada entre os anos de
1980 e os dias presentes. O experimentalismo que marcou os anos de
1990 ainda figura em textos mais recentes e faz par com um
abandono do estilo retórico que procurou a inserção da literatura no
universo da escrita referencial. Em suma, podemos dizer que a
grande experiência literária foi abrir mão do status de texto literário,
pensado este adjetivo em seu sentido mais excludente, ou seja, mais
arraigado no purismo esteticista e autocentrado. Contudo, essa
renovação não significa o fim das utopias. Ao contrário, atualiza uma
busca por outras linguagens como a do cinema, a da crônica policial e
- 436 -
a das artes plásticas, por exemplo, e é essa abertura a atitude que
sustenta ainda um engajamento e uma urgência pelo real.
Tal urgência move a contemporaneidade a um
questionamento acerca das possibilidades de representação do real
através da palavra escrita, consequentemente a um questionamento
acerca do que é possível ao artista dizer sobre o mundo quando,
inegavelmente, ele mesmo também é moldado pelo real. Reunir as
mínimas partículas do real, compor o quadro cotidiano sem que se
perca na escrita a instantaneidade do acontecimento é o grande
desafio do artista e um dos mais complexos temas da arte
contemporânea. Daí que se queira tanto discutir o corpo como
repositório da experiência e, portanto, da memória. O lugar do corpo,
sua movência e sua errância têm permitido a experiência da
desterritorialização e, de certo modo, ao tematizar os constantes
deslocamentos dos indivíduos, a literatura tem representado o corpo
como um lugar onde todos os territórios e todos os tempos se
(des)ordenam desfazendo subjetividades para, constantemente,
refazê-las. Essa corporeidade do lugar tem transformado o corpo
numa fronteira de espaços socioeconômicos e culturais que, em
confronto, têm sido decisivos para a densidade das tramas e para a
figuração cênica dos embates sociais.
- 437 -
Referências Bibliográficas
ABREU, Caio Fernando. Estranhos Estrangeiros. 1ª reimpressão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
- 438 -
PUC-RJ; São Paulo: Loyola, 2002. p. 76-90.
- 439 -
A figuração da Ditadura Militar em três obras literárias
posteriores à época: uma reflexão
Introdução
A literatura e a crítica literária lidam e dialogam com textos
múltiplos, de caráter por vezes dúbios e diversificados. Com base
nessa premissa, o estudo de obras literárias por muitas vezes se
depara com questões que não competiam a uma ideia preliminar de
estudo da obra, e justamente por isso é necessário afirmar que o
presente trabalho opta por analisar e se aprofundar apenas num
aspecto (apesar da grande variedade de interessantes características
existentes nas obras): as diferentes figurações (enquanto ato de
tornar algo visível a alguém numa obra) e representações (visto aqui
como ato de evocar, simular algo ou acontecimento) da Ditadura
Militar brasileira dentro de três obras literárias que tem em cena a
Ditadura Militar brasileira, ocorrida de 1964 até 1985. As obras são
situadas em diferentes épocas, com diferentes autores e perspectivas
quanto ao acontecimento histórico brasileiro. Não falei, de Beatriz
Bracher, e K. – Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski e Romance
136
Mestrando em Letras, UFPR.
- 440 -
sem palavras, de Carlos Heitor Cony, foram as obras escolhidas para
esse breve estudo devido ao seu distanciamento temporal entre o
período histórico de escrita – todas publicadas depois do ano de
1999 – e o período da Ditadura propriamente dita. Essa escolha por
obras que possuem tal afastamento de modo algum serve para o que
alguns teóricos apontam como uma “necessidade” para a
concretização de um romance histórico, mas meramente por uma
questão prática: em épocas de censura a qualquer obra literária e
artística a simples citação da expressão “Ditadura Militar” seria algo
vetado e limado de publicação, sendo, portanto, a referência a tal,
em obras que ocorreram concomitante ao período, de difícil
localização, haja vista a sutileza necessária para fugir aos olhos da
censura.
Essa análise visa apresentar uma hipótese de leitura quanto
ao caráter e natureza polivalente da Ditadura Militar dentro das
narrativas citadas, em questão o modo como ela pode ser vista
enquanto, sob determinado olhar, de três maneiras possíveis: a)
representada como uma personagem central para a obra; b) um
“pano de fundo” – um cenário instalado em tempo e espaço bem
definido e que vai servir apenas para contextualizar o leitor, ou quem
sabe até mesmo conferir à obra um “quê” de dramática –, e ainda c)
uma presença tênue dentro da obra, explicitamente apresentada,
- 441 -
mas não sendo objeto que toma importância crucial para o texto,
mas sim algo que ajuda na construção da identidade de um
personagem.
- 442 -
possui lugar certo como ou ficção, ou relato verídico, e isso faz parte
justamente do jogo ficcional estabelecido pelo criador - até que
ponto a história é mera criação, e até que ponto ela de fato existiu,
visto que o tom geral da obra é o de uma verdade envolta em nuvens
de mistérios, ou seja, algo que é certo, mas rodeado por tantas
incertezas que fazem a própria certeza ser questionada.
O discurso de memórias apresentado no romance Não falei,
de Beatriz Bracher, se dá de modo recorrente e proeminente. O livro,
cujo enredo tematiza e enfoca aspectos de uma tentativa de
relembrança da vida do personagem-narrador da obra sobre os
eventos da Ditadura Militar brasileira, somados com eventos
particulares e íntimos (para a finalidade de uma entrevista com uma
jornalista que quer conversar com pessoas que viveram o golpe de
64), transmite ao leitor - em um primeiro momento - um caos de
informações e linhas do tempo, uma série fragmentada e recortada
de acontecimentos dúbios e débeis, nos quais o autor se coloca e se
revela pouco a pouco, conforme a narrativa progride. Entretanto,
logo de início, na abertura do texto, o narrador já - de certo modo -
apresenta resumidamente sua intenção quanto às memórias que
serão lidas em todo o livro:
- 443 -
mim criado, uma revelação do que em mim e de
mim se esconde e pronto está, se fosse possível
que nascesse assim evidente e sem origem aos
olhos de todos e então, sem o esforço do meu
sopro - tom de voz, ritmo e hesitação, meus olhos -,
surgisse como pensamento de cada um, ou ainda,
uma coisa, mais que um pensamento, se coisa
assim fosse possível existir, eu gostaria de contar
uma história (BRACHER, 2004, p. 7).
- 444 -
dois homens conheceram-se numa cela de prisão durante a Ditadura
Militar, acontecimento que não nos é deixado esquecer em
momento algum pelo narrador, que retoma o fato incessantemente.
Compilado ao redor de dois blocos narrativos, o primeiro
denominado “Primeiro Tempo” e o segundo “Segundo Tempo”, em
alusão clara a um jogo de futebol, a obra possui ao todo 40 capítulos,
dos quais 14 são dedicados a cenas que se passam num tempo
passado ao da narrativa, num processo de reconstituição de
memórias por parte de Beto, ou seja, algo próximo de um terço da
obra se dedica exclusivamente à rememoração do passado,
marcando assim a relevância desse para a obra.
O modo como a Ditadura Militar se faz presente na obra é
percebido logo no começo, nas primeiras linhas da primeira página:
“Ainda que viva cem, mil anos, não esquecerei aquele dia em que,
deitado no leito miserável da cela B 17, a porta se abriu e dois
soldados empurraram um corpo que logo se estatelou no chão de
ladrilhos” (CONY, 2008, p.11). A recorrência ao termo “cela B 17” é
gritante ao leitor: faz-se presente em toda a obra num total de 25
vezes – uma clara e constante volta ao papel da Ditadura para a
construção do personagem Beto, um elemento muito importante
para a situação do enredo e do espaço (a prisão) e tempo (a Ditadura
militar) narrativos.
Postas essas primeiras informações quanto as obras e uma
mínima informação quanto aos seus enredos, fica evidente que a
- 445 -
incerteza e a dúvida desenvolvidas ao longo de toda a narrativa da
obra de Kucinski não apenas são a força motriz do texto, mas
também podem ser lidas como algo que pode muito bem ser
encarado, à luz do texto “A personagem de ficção”, de Antonio
Candido, como uma característica essencial para a caracterização da
Ditadura Militar, momento histórico brasileiro - e que, num primeiro
instante poderia ser vista como a tematização temporal-espacial da
obra - como também uma personagem da obra, e nesse caso uma
extremamente importante e relevante. Já no romance de Bracher,
que não explora com grande detalhamento situações fora do que se
passa na mente do autor, a Ditadura não aparece propriamente
como um personagem, mas sim como um acontecimento que fez
parte da criação da história do personagem-narrador: é mais um
marco histórico que influenciou e influencia várias das reflexões da
voz que leva o texto ao longo do livro do que algo ativo, que dá o tom
da obra e é ativamente algo que a modifica. Por fim, na obra de Cony
a Ditadura é marcada constantemente através da lembrança da cela
dividida pelo protagonista com o amigo ex-padre. Mesmo que não
seja muito mais trabalhada além do fato de ser algo que situe a obra
num espaço-tempo bem delimitado, a importância do período
histórico para a construção do romance é fundamental, visto que o
enredo depende disso para fazer o texto funcionar.
- 446 -
Questão dos capítulos e das mudanças de foco narrativo e teor em
K. Relato de uma busca
O livro que tematiza a procura de um pai por sua filha
desaparecida possui um total de 29 capítulos137. Nos seguintes 14
capítulos: Sorvedouro de pessoas; Os informantes; Os primeiros
óculos; O matrimônio clandestino; Jacobo, uma aparição; Nesse dia, a
Terra parou; A matzeivá; Imunidades, um paradoxo; Na Baixada
Fluminense, pesadelo; Um inventário de memórias; O abandono da
literatura; Os extorsionários; As ruas e os nomes; No Barro Branco, o
romance de Kucinski apresenta o desenrolar de uma trama que
tematiza o personagem K. e sua busca pela filha levada pelos
militares. Tal foco narrativo apresenta as relações que o protagonista
trava com outros personagens, de modo a evidenciar as situações
sofridas e vivenciadas pelo personagem principal. Em contrapartida,
nos outros 13 capítulos, A queda do ponto; Carta a uma amiga; Livros
e expropriação; A cadela; A abertura; Os desamparados; Dois
informes; Paixão, compaixão; A terapia; O livro da vida militar; A
reunião da Congregação; Sobreviventes, uma reflexão; Mensagem ao
companheiro Klemente, há um deslocamento do foco para situações
que extrapolam a linha narrativa central, ou o fio condutor da
história (a busca), e que servem para apresentar pedaços,
fragmentos de acontecimentos e cenas que servem para dar à linha
137
Na edição ebook há 2 capítulos extras, mas que posteriormente foram
reformulados e inseridos no livro Os visitantes.
- 447 -
central do texto um reforço considerável de significado e peso. Neste
último bloco, a ditadura é figurada de maneira clara, as tramas
reveladas e postas sob a luz, enquanto que naquela a ditadura é
coberta pelas sombras e, de certo modo, mistificada. Com a leitura
de Candido, podemos ver como uma maneira eficaz de retratar a
Ditadura:
- 448 -
representa - através de recortes e passagens que gradualmente
servem para dar ao leitor a impressão de uma totalidade - é similar
ao de um personagem que representa algo já existente no mundo
fora dos livros. Segundo Candido, “quando pensamos no enredo,
pensamos simultaneamente nos personagens;” (CANDIDO, 2007, p.
53), e podemos refletir que K. sem a Ditadura perde uma carga
importante de significado. Ainda em Candido, “O enredo existe
através das personagens” (CANDIDO, 2007, p.54) e “a personagem
pareça o que há de mais vivo no romance;” (CANDIDO, 2007, p. 54), o
que nos ajuda a poder identificar e raciocinar a Ditadura como algo
além de mero pano de fundo histórico.
Outro aspecto que reforça essa ideia é o fato do termo
“Ditadura” aparecer 19 vezes ao decorrer da obra, enquanto que
“sorvedouro de pessoas/sumidouro de pessoas” é registrado 6 vezes
no romance, o que pode ser identificado como uma marca de
referencialidade a algo recorrente e importante para o texto, ou seja,
a retomada constante e apresentações e reapresentações de sujeitos
para a narrativa, o que reforça novamente a possibilidade de se ler
em K. a representação da ditadura enquanto uma personagem.
- 449 -
Neste tipo de documento a escrita tem duas
funções principais: "Uma é o armazenamento de
informações, que permite comunicar através do
tempo e do espaço, e fornece ao homem um
processo de marcação, memorização e registro"; a
outra, "ao assegurar a passagem da esfera auditiva
à visual", permite "reexaminar, reordenar, retificar
frases e até palavras isoladas" [Goody, 1977b, p.
78]
- 450 -
Quando escrevo eu sei. A solidão com meus
apontamentos e autores, o próprio vocabulário da
linguagem escrita auxilia a organizar o pensamento.
E não estou escrevendo sobre minhas ideias, meu
trabalho, mas sobre ideias e trabalhos. Mesmo em
debates públicos, entrevistas para jornais e
revistas, há uma batalha específica sendo travada,
um ponto do real em questão e minha voz é uma
intervenção no que conheço. Mas memória?
Consigo entender a posteridade das ideias, porque
são um desenvolvimento, mesmo que brigado e
partido, do que veio antes e um argumento ao que
virá então e então e então. (BRACHER, 2004,
p.103).
- 451 -
No romance, isso fica explícito durante os vários trechos em
que o personagem em profusão de pensamentos procura relembrar a
tortura que sofreu durante o período histórico da Ditadura Militar e
da morte do melhor amigo em decorrência do que ele sempre
pensou como sendo culpa sua. A partir de vários fragmentos o leitor
pode, aos poucos, notar como esse processo de revisitação da
memória feita pelo personagem-narrador na realidade também é um
processo de aceitação e superação de um momento traumático em
sua vida, que leva o leitor, em muitas situações, a ter certa confusão
e dúvida quanto ao que lê. Com base na definição proposta por Le
Goff (e já citada), no entanto, fica evidente que essa característica
amórfica das memórias do personagem faz parte das mesmas, de
modo inerente.
Contudo, através de fragmentos textuais de outras obras
(existentes apenas dentro do romance e outras que existem no
mundo real além da obra) - tais quais “Tecendo a manhã”, de João
Cabral de Melo Neto; o livro a ser lançado pelo irmão do narrador; O
círio perfeito, de Pedro Nava; relatos de pais de alunos sobre seus
filhos; documentos do narrador com reflexões sobre a Educação;
Ninguém sabe o dia que nascerá, de Edgar Morin; A trégua, de Primo
Levi; Beira-Mar, de Pedro Nava; a canção “Preciso me encontrar”, de
Candeia; lembranças da irmã caçula do narrador, do pai e de si
mesmo; a música “Cortando o pano”, de Luiz Gonzaga, Miguel Lima e
J. Portela. - a narrativa das memórias do narrador parece ser
- 452 -
contaminada e influenciada por sua característica textual primária: a
ordem lógica da organização de ideias e pensamentos. Antes
desconexa e marcada por parágrafos sem nenhuma coesão entre si,
o final da narrativa, quando começa a ser pontuado pela presença
constante e recorrente de trechos e excertos das obras citadas, passa
a adquirir um tom textual mais uno e coeso, seguindo uma linha de
raciocínio próprio e nítido ao leitor. Se antes o texto alternava entre
memórias, situações do presente, leituras ocasionais de trechos do
livro inédito do irmão, com a aproximação do final isso muda de
figura e contorno. Nas páginas derradeiras, os dramas relembrados
pelo personagem-narrador se tornam claros e conscientes, e é em
torno deles que a narrativa vai se fechando, como pode-se verificar
nos seguintes trechos:
- 453 -
e situações com pouca relação explícita entre si. Isso, que se pode
pensar como um ápice do livro, no qual o narrador finalmente
consegue organizar, pensar e refletir seu próprio passado, acontece
justamente pela marcação recorrente de outras obras escritas em
paralelo às lembranças, pois fica claro durante a leitura da obra que
não são os trechos citados meras citações ou epígrafes, mas leituras
feitas pelo narrador.
No fim, é possível ler o livro como uma demonstração
ficcional de uma dificuldade de se dar coerência e sentido a um
período histórico vivido que não pode ser totalmente compreendido
por aquele que o viveu (o da Ditadura Militar e os anos posteriores a
ela), o que não é uma surpresa para o leitor, já que o narrador deixa
claro, em dado momento, que ele tem consciência dessa dificuldade:
“Com suas entrevistas saberá mais sobre uma época do que as
pessoas que a viveram” (BRACHER, 2004, p. 115). Dessa maneira, a
busca do personagem-narrador, que só ao final tomamos ciência que
se chama Gustavo, não dá espaço para o desenvolvimento pleno de
outros personagens, tão densos quanto a si mesmo.
Se em K. Relato de uma busca a Ditadura pode ser lida como
um personagem ativo na trama, que reforça a ideia de que foi um
período tão terrível que não apenas está presente e sustenta o
universo da obra, mas é parte ativa da mesma, na obra Não falei ela
possui outro caráter e outra função diversos: pode ser lido antes
- 454 -
como elemento que ampara a construção do eu que reflexivo que
permeia toda a obra do que encarado enquanto personagem.
- 455 -
uma crítica direto ao período, mas sim focar-se em desnudar uma
trama amorosa, regada a um suspense narrativo que é reforçado
pelas memórias do protagonista – e a profundidade do
relacionamento que estabelece com os outros personagens – que
vão surgindo pouco a pouco durante o andar da obra. Apesar disso,
em uma nota anteposta ao corpo da obra o autor anuncia:
Ora, não nos cabe enquanto crítica adivinhar o que não está
escrito, mas sim nos focarmos naquilo que de fato foi apresentado a
nós, leitores. Tentar adivinhar as misteriosas palavras assinadas no
começo do livro por Cony não nos compete, sendo portanto algo que
de maneira consciente para a análise é deixado de lado.
Entretanto, apesar da negação do autor quanto ao rumo
principal da obra, dos 40 capítulos totais da mesma, quase um terço
(14) deles são voltados para a recuperação das memórias de Beto e
que tem como principal função narrativa o reforço do laço entre os
personagens e do adensamento dramático da trama amorosa. Como
exemplo, os capítulos 17, 18, 19, 21, 22 apresentam o laço e a
importância da personagem Iracema com Beto; os capítulos 1, 12, 13,
- 456 -
19, 24, 25, 30 apresentam o laço de Beto com Jorge Marcos; os
capítulos 14, 23 o laço de Jorge Marcos com Iracema e, por fim, os
capítulos que denotam a relação que ocorre entre os três não se dá
em tempos passados, através de memórias, mas exclusivamente em
acontecimentos presentes, em especial nos capítulos referentes ao
“Segundo Tempo”.
A proximidade entre Beto e Jorge Marcos é quantificada pela
escolha do autor em reforçar o relacionamento dos dois em 7 dos 14
capítulos que tematizam as memórias do protagonista, nos quais o
termo “B 17”, que remete a um espaço-temporal da Ditadura militar,
aparece com intensa frequência, um total de 25 vezes, todas elas
associadas à relação entre os dois personagens.
Considerações Finais
Dessa maneira, fica evidente que, pelo fato da Ditadura ser
personalizada e tematizada de maneira ambivalente na obra de
Kucinski, isso pode ser visto como um dos fatores principais para a
aparente grandeza e gigantismo que a figura da Ditadura possui na
obra, de maneira semelhante a do sistema narrado ao longo da obra
O Processo, de Franz Kafka, pois, como aponta Candido, “No
romance, podemos variar relativamente a nossa interpretação da
personagem; mas o escritor lhe deu, desde logo, uma linha de
coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua existência
- 457 -
e a natureza do seu modo-de-ser. Daí ela ser relativamente mais
lógica, mais fixa do que nós” (CANDIDO, p.59).
É nesse regime quase onipotente, onipresente e onisciente
que a obra se embasa, como meio de tematizar algo que não apenas
pode ser visto como mera localização histórica, ou ainda simples
denúncia verídica, mas sim um meio literário eficaz de desvelar algo
que até então era tido como menor, como - em certa medida - um
exagero. A Ditadura brasileira, ao tomar papel de destaque, a ponto
de ser um dos personagens principais da obra, é revelada e
escancarada em seu cerne e base - a conivência brasileira, e que é
mordazmente apontada e acusada no capítulo “Sobreviventes, uma
reflexão”, em que a voz do autor jornalista toma forma nítida e clara,
apontando influências e movimentos estéticos e discursivos que
estão sendo construídos ao longo de todo o livro. Posto isso, K. -
Relato de uma busca tem seu título enriquecido de sentido, visto que
há pelos menos duas buscas: a escancarada e à luz do dia, embasada
na procura pela filha desaparecida; e uma outra, secreta, furtiva e
subterrânea, a busca pelo rosto da Ditadura Militar brasileira.
Contudo, em Não falei, a Ditadura não assume tal
importância. Mais situada como um marco na trajetória da voz do
narrador que lentamente se constrói e reconstrói a partir das
lembranças e rememorações do que uma outra voz que age no texto,
a construção da Ditadura Militar se dá através do olhar do narrador,
de maneira oblíqua, do que diretamente e ativamente enquanto
- 458 -
escolha do autor em pontuar ou reforçar uma característica que
gostaria de demarcar na obra.
Ainda, em Romance sem palavras o papel exercido pela
Ditadura remete a um suporte da narrativa, que está em grande
medida centralizada no desenvolvimento do enredo e dos
personagens que compõem o triângulo amoroso. Por ser remetida e
referenciada por diversas vezes a um lugar físico e um momento
temporal delimitado, entende-se que ela enquanto elemento textual,
apesar de ser apontada como crucial para a obra, não assume tanta
importância quanto ao papel exercido na obra de Kucinski.
Isso posto, a ditadura ora como personagem, ora como
momento e amparo para a narrativa, ou ainda como um lugar e um
tempo que servem de base para o desenvolvimento de uma trama
que se enfoca num enredo mais trabalhado, fica evidenciado que a
postura do autor é significativa para a elaboração e reforço de algo
que ele próprio julga enquanto significativo também o seja em sua
obra. Parece um tanto quanto óbvio afirmar que é o autor de um
livro que escolhe e enumera como algo deve ou não ser lido – um
passeio pelos bosques do estudos da relação autor-obra-leitor que
Eco se dedicou em grande parte de sua obra crítica e teórica que não
iremos nos arriscar a dar –, entretanto, é relevante demarcar que a
figuração de um acontecimento histórico, um período sombrio para a
história brasileira, pode ser encarado e utilizado de maneiras diversas
em obras ficcionais, e como isso as altera e as particulariza.
- 459 -
Relembrando os cinco aspectos básicos da constituição literária
ficcional (enredo, narrador, personagem, espaço e tempo), e à luz das
leituras feitas dessas três obras, fica evidente que escolher áreas
espaciais e temporais para a Ditadura Militar ocupar ao invés da de
personagem modifica significativamente a obra, conferindo a ela tons
completamente diferentes, mas que nem por isso qualificam uma ou
desqualificam outra: a pluralidade da representação desse período
histórico apenas serve para reforçar a ideia de que os diálogos da
literatura com a história são ricos e vastos, sendo capazes de
produzirem, à escolha do autor, uma gama de obras variada e plural,
o que certamente apenas contribui para a apreensão de um
momento histórico que ainda não foi completamente deglutido e
superado em nossa história nacional.
- 460 -
Referências Bibliográficas
- 461 -
Marcas de violência na literatura clariceana
Adriane Cherpinski138
Considerações iniciais
Entremeada à ficção, a literatura integra amplo leque de
realidades sociais e humanas, representando, dessa forma, diversas
manifestações do homem, entre elas a violência.
O propósito deste artigo é refletir sobre a representação da
violência a partir da recepção dos contos “A solução” e “A língua do
P”, de Clarice Lispector (1920-1977), com o intuito de contribuir
teórica e metodologicamente para uma ampliação nos
conhecimentos relacionados à literatura.
Além da preocupação em realizar uma pesquisa voltada para
a prática da leitura do texto literário, este trabalho justifica-se
também pela importância da autora e de sua obra no contexto da
literatura brasileira, pois, com sua realização, procura-se minimizar a
carência de estudos sobre alguns contos ainda não amplamente
explorados, fomentando a produção intelectual com ênfase na
temática da violência.
138
Mestre em língua e literatura, UNICENTRO.
- 462 -
O artigo fundamentado em concepções teóricas sobre
literatura e leitor, pautadas especialmente na Estética da Recepção,
visa, em um primeiro momento, à leitura dos contos mencionados,
de modo a buscar sua constituição literária; posteriormente refletir
acerca das representações estabelecidas a partir da violência,
atualizando aos aspectos sociais presentes na atualidade.
A literatura clariceana provoca no leitor a elaboração de
novas ideias ou comportamentos frente a situações cotidianas
relacionadas à violência, levando-o a compreender o modo específico
de se relacionar com a leitura e com as condições sociais enfrentadas
no mundo.
Os contos “A solução” e “A língua do p” têm em comum a
representação da violência num contexto histórico e social de
emancipação da mulher, quando esta ainda luta pela conquista dos
seus direitos perante à sociedade brasileira. A análise permite
entender marcas distintas de violência relacionadas ao corpo, a partir
do intimismo das personagens protagonistas, as quais demonstram
resistência, mesmo diante do cerceamento convencionalizado.
A partir do método analítico, os aspectos metodológicos
compreendem um aparato teórico e bibliográfico, que subsidia a
fortuna crítica e teórica sobre Clarice Lispector e suas produções
artísticas recortadas para este estudo, compreendendo estudiosos
como: Umberto Eco, Antonio Candido, Antoine Compagnon, Roland
Barthes, entre outros.
- 463 -
Fundamentação teórica
É por meio da arte que o ser humano cria, pratica a sua
imaginação, expressa ou transmite suas impressões. As diversas
manifestações da arte suscitam interesse ou comoção,
desprendimento ou repugnância tocando nos sentimentos mais
íntimos do seu receptor. “A arte é uma reduplicação da vida”
(BACHELARD, 2003, p. 17), por isso possibilita ao homem viver coisas
novas.
Sendo superior à própria vida, a arte não pode ser definida de
forma lógica, teórica ou única. No entanto, promove a possibilidade
de ser vivenciada. Para tanto, a arte compreende signos polivalentes
e, dentre as suas diversas manifestações, a que se serve da expressão
verbal é a literatura.
Desde sua origem, a literatura está condicionada à produção
escrita, o que pressupõe um documento destinado à leitura. É por
meio da leitura que o homem vive e vivencia a literatura a cada dia.
A criação do texto literário encontra sua base na escrita, onde
o autor seleciona palavras, constrói temas e organiza a narrativa de
forma peculiar para expressar fatos cotidianos e pensamentos da
humanidade. Para Barthes (1996), o texto é organizado pelo escritor
e, posteriormente, pelas inferências do leitor.
- 464 -
Eco (1991) expõe que a obra somente existe em movimento
pelo leitor. O autor apenas guia o leitor pelo texto, onde também
deixa brechas/pistas para que o leitor possa seguir além do que está
dito. Ao ler, o leitor alimenta a própria imaginação e leva a obra ao
inesgotável. Assim, o leitor colabora na produção de sentidos da
obra.
Barthes (1996, p. 82) entende o texto literário como um
“tecido”, o qual se reproduz num entrelaçamento contínuo. Imerso
nesta rede, o leitor constrói novas ideias a partir do diálogo contínuo
com o texto, apreendendo o mundo em profundidade. Dessa forma,
depreende-se que a literatura, além de constituir uma forma de
comunicação, compreende a ligação do mundo exterior e do mundo
interior, pois possibilita a capacidade de percepção de si mesmo e do
mundo.
Além disso, a obra literária é aquela que possui receptividade
perante a tradição, ou seja, o texto diz em momento histórico diverso
daquele em sua situação original, de produção. Assim, é literatura a
obra que perdura ao longo do tempo e que amplia sua capacidade de
produção.
A literatura implica pensar nos limites existentes entre a
ficção e a realidade. Candido (1972) expressa que a literatura não
compreende apenas a própria estrutura, pois busca atender e
fomentar as expectativas de ficção e fantasia do homem, tanto do
que produz quanto do que recebe. Essa fantasia está continuamente
- 465 -
relacionada à realidade do leitor no ato da leitura, porque a literatura
tem a função integradora e transformadora dessa realidade. Dessa
forma, o leitor interage com a leitura, se reconhece e modifica-se;
esse processo possibilita uma nova visão sobre a realidade.
De acordo com o tipo de adversidade que uma narrativa
procura solucionar, a natureza fictícia possibilita ao leitor
capacidades múltiplas. Assim, “o texto literário é uma figura fictícia”
(ISER, 1996, p. 101) que necessita de atributos reais. Embora sejam
polos opostos, a ficção informa algo sobre a realidade.
Sob o mesmo aspecto, Eco (2002) explica que as referências
do mundo real estão estreitamente ligadas à ficção, causando, assim,
a aproximação desses campos. Logo, o leitor mistura os elementos
vivenciados na ficção à sua realidade. Além disso, a literatura, para
Candido (1972), também tem a incumbência integradora ou
humanizadora, que representa uma realidade social e humana.
Neste contexto, a multissignificação é um dos pontos
fundamentais do texto literário, pois possibilita ao leitor fazer
múltiplas leituras de uma mesma obra. Segundo Bloom (2001), o
leitor lê em busca de prazer e satisfação de interesses pessoais. A
fórmula da leitura, então, é “encontrar algo que nos diga respeito,
que possa ser usado como base para avaliar, refletir, que pareça ser
fruto de uma natureza semelhante à nossa e que seja livre da tirania
do tempo” (BLOOM, 2001, p. 18). Torna-se necessário, assim, refletir
- 466 -
em que sentido a obra literária diz respeito e se vai ao encontro das
aspirações do leitor.
A recepção de uma obra literária implica a reconstrução de
sua produção. Os valores emocionais, a significação estética dos
elementos formais e os critérios da função social de uma obra
mudam ao longo do tempo. Eagleton (2001) discorre que importa
como o leitor vê a obra e como ela age em cada sujeito, com
conhecimentos de mundo particulares. Assim, a obra é atualizada a
cada leitura.
Na mesma perspectiva, Compagnon (2001) explicita que o
leitor adquire conhecimento e experiência com a literatura, visto que
“a subjetividade moderna desenvolveu-se com a ajuda da experiência
literária, e o leitor é o modelo de homem livre” (COMPAGNON, 2001,
p. 36). O teórico afirma ainda que o leitor integra-se ao que leu e não
é o mesmo de quando iniciou a leitura, pois atingiu a essência da
obra literária e transformou-se. Neste sentido, nenhuma leitura pode
ser final, acabada ou engessada. Toda leitura, de forma recíproca,
exige do leitor informações sobre a criação do texto, do autor, do
contexto histórico e do vocabulário específico.
Zilberman (2005) destaca que o leitor, enquanto sujeito
histórico, modifica-se em função das transformações sociais,
refletindo o conhecimento de mundo. Assim, a leitura estimula o
leitor a participar do processo compreensivo da obra, organizando
- 467 -
imagens e acontecimentos que desencadeiam a constituição de
significados, o que faz com que a obra passe a ser objeto estético.
A leitura da literatura incita os sentidos, a percepção, os
afetos e a razão do leitor, o qual é atraído para responder as lacunas
deixadas pelo discurso. Desta forma, o leitor é deslocado do seu lugar
comum para outro contexto, para visualizar novas coisas, pensar
diferente e conhecer particularidades.
Para isso, é importante que o leitor estabeleça reflexões e
análises sobre textos literários considerando os fatores sociais,
políticos, culturais e ideológicos implícitos nas lacunas textuais e que
atravessam a produção de sentido.
Gênero conto
O gênero literário instrumento desta análise – conto –
procede do latim commentu, que expressa “invenção”, “ficção”.
Segundo Moisés (1968), o conto compreende tema, efeito,
brevidade, intensidade/tensão e um desfecho. “A estrutura do conto
corre linhas paralelas com as unidades e o número de personagens.
O conto é essencialmente ‘objetivo’, ‘plástico’, ‘horizontal’, e, por
isso, costuma ser narrado na terceira pessoa” (MOISÉS, 1968, p. 103).
O estilo em que o conto é construído, bem como sua
linguagem, devem ser pautados em metáforas de imediata
compreensão para o leitor. Para Moisés (1968, p. 103), “o conto
quer-se narrado em linguagem direta, concreta, objetiva”.
- 468 -
Normalmente os contos são veiculados em livros, revistas,
jornais, materiais didáticos, entre outros. A intenção comunicacional
de um conto compreende proporcionar reflexões, motivar revolta,
medo ou emoção, despertar a criatividade e a emoção, fazer rir,
criticar, ensinar, dentre outros.
- 469 -
“raiar” de Clarice Lispector, demonstrando certa preocupação
epistemológica que continuaria presente nos textos subsequentes,
ou seja, a literatura clariceana procurava “fazer da ficção uma forma
de conhecimento do mundo das ideias” (CANDIDO, 1977, p. 126).
Como se casou com um diplomata, Clarice Lispector viveu
dezesseis anos fora do Brasil, morando entre a Europa e os Estados
Unidos. Nesse período, escreveu mais três romances que, da mesma
forma, geraram grande repercussão (LERNER, 2007).
Após o divórcio, Clarice Lispector voltou a residir no Rio de
Janeiro junto com seus dois filhos, iniciando o trabalho de cronista,
contista e entrevistadora para jornais e revistas de circulação
nacional, em virtude das dificuldades financeiras, as quais se
acentuaram um ano antes de sua morte, em 1976, pois fora demitida
do Jornal do Brasil, embora ainda não soubesse do câncer que a
mataria um ano depois (LERNER, 2007).
Durante a madrugada de 14 de setembro de 1966, a literata
adormeceu com um cigarro acesso, o que provocou um incêndio
destruindo todo o seu quarto. Clarice sofreu muitas queimaduras
pelo corpo, por três dias passou risco de morte e por dois meses
ficou hospitalizada. A mão direita foi a mais afetada, por isso, quase
amputada (LERNER, 2007).
Com vasta publicação, Clarice Lispector faleceu no Rio de
Janeiro em 09 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57
anos, vítima de câncer de ovário.
- 470 -
O acervo literário clariceano concentra a prosa de sondagem
psicológica, reflexão das inquietações e crises existenciais, ou seja,
refere-se à busca da compreensão do mundo interior de seus
personagens. Neste sentido, suas narrativas fundamentam-se no
fluxo de consciência. Assim, elementos como: tempo, espaço,
começo, meio e fim não são tidos como principais (LERNER, 2007).
É possível apontar que as temáticas abordadas por Clarice
Lispector compreendem um conjunto essencialmente humano e
universal, sendo as conexões entre o eu e o outro, a condição social
feminina, a dissimulação das relações humanas, o esgotamento das
relações familiares, a relação humana com a natureza, a violência e, a
própria linguagem, a qual é entendida por Clarice como insuficiente e
imperfeita, mas que materializa a sondagem psicológica do ser
humano, a percepção de si e da realidade.
Intensamente lida e re-lida, a obra de Clarice Lispector é
distinta, visto que a reflexão psicológica, o monólogo interior e a
interpolação por temas humanos e universais são fundamentais na
edificação de uma produção literária profunda e peculiar, que se
destaca entre as mais importantes da narrativa literária brasileira.
Violência
A violência não é uma mácula da sociedade contemporânea,
pois está presente entre os sujeitos desde os tempos imemoriais.
- 471 -
Contudo, a cada tempo, ela se manifesta de formas e em
circunstâncias diversas.
O conceito de violência é amplamente complexo, visto que a
ação geradora ou sentimento relativo à violência pode ter
significados múltiplos e diferentes de acordo com a cultura,
momento e condições nas quais ocorre.
Rocha (2006, p. 10) descreve que:
- 472 -
A violência compreende aquilo que é contra o direito e a
justiça, neste campo é dado início às delimitações que são
denominadas positivas em formato de leis (códigos civil e penal) e, de
outro lado, a justiça define o campo do respeito dos direitos
humanos e do cidadão. Entretanto, a violação dos direitos e da
justiça como valores não constitui, necessariamente, um ato de
violência, embora possa constituir um delito ou crime (PINO, 2007).
Sabe-se que na literatura brasileira, constantemente, a
violência se relaciona com temas associados a imagens do corpo
humano, em um leque que vai desde a sexualidade até a tortura e a
morte. Em algumas obras, a violência se dá por meio de um processo
coletivo, ligado a movimentos sociais ou ações do Estado. A violência
também está articulada à perda e à melancolia. Se a realidade social
ainda está ancorada na tradição cultural da dominação masculina, é
na ficção, campo artístico, em que se encontra o repúdio a tal
cultura.
Personagens podem ser executores ou vítimas de violência,
ou ainda atravessar essas duas vivências. Espaços podem ser
desagradáveis e motivar atos violentos. Entre a diversidade dos tipos
de violência presentes na literatura, verifica-se a violência contra a
mulher.
- 473 -
Desde o século XIX, a literatura registra tanto as sutilezas
como o horror da violência física e simbólica que sustentam a
dominação masculina. Machado (2010, p. 57) ressalta que os
principais motivos de violência contra a mulher centram-se na
manutenção do poder e na defesa da honra: “em nome do controle,
do poder e dos ciúmes, os atos tendem a ser de violência cotidiana e
crônica física, psíquica. Podem e desencadeiam em morte”.
A partir da década de 70, com o feminismo, a violência contra
a mulher insere-se na literatura. Tal representação evidencia que a
família, a escola e o estado contribuem para fortalecer o constructo
cultural da submissão feminina.
Além da violência no âmbito doméstico, a violência contra a
mulher também se encontra como parte da violência urbana,
expressa em crimes de estupro e agressão sexual. Essa violência é
representada de forma sofisticada no conto “A língua do P”, onde a
personagem principal, Maria Aparecida, incorpora essa temática na
ficção.
No século XX, a literatura de autoria feminina começa a
questionar os diversos tipos de violência física e simbólica contra a
mulher, tal como: O quinze (1930), de Raquel de Queiroz, Perto do
coração selvagem (1944), de Clarice Lispector e Ciranda de pedra
(1954), de Lygia Fagundes Telles.
- 474 -
Conto “A solução”
O conto “A solução” permite refletir a respeito das condições
em que se fundam os comportamentos violentos. Uma leitura
apressada poderia recorrer, incorretamente, a uma compreensão
simplista ou estereotipada, e Almira – protagonista - poderia ser
descrita como uma mulher insana e irracional. Porém, essa leitura
apressada perderia de vista a complexidade da narrativa.
Para analisar as relações da violência na literatura, é muito
importante o estudo de narradores, pois o vocabulário adotado pelo
narrador está associado às maneiras pelas quais cada leitor pode
interpretar os eventos narrados. Torna-se igualmente fundamental
verificar se o narrador opina sobre os acontecimentos que expõe; se
ele muda de opinião ao longo da narrativa; se demonstra dúvidas ou
incertezas. Em “A solução”, é preciso observar: as ações de Almira e
Alice; as reações e percepções de outros personagens, diante dessas
ações e os modos como o narrador articula as ações de Almira.
O conto “A solução” foi publicado no livro A legião
estrangeira, em 1964; explicita o corriqueiro e o inesperado. Essa
data é significativa e cabe retomar seu contexto para a compreensão
do conto, pois, conforme Eco (1991), a interpretação de uma obra
- 475 -
literária agrega a tríade autor-obra-leitor, bem como seus contextos
históricos, políticos, culturais, sociais e econômicos.
Sabe-se que a década de 60 concentrou diversos marcos
históricos, transformando a sociedade brasileira e até mesmo
mundial. Um dos fatos marcantes deste período foi o feminismo, no
Brasil, Inglaterra e EUA, na busca por igualdade entre homens e
mulheres. Dessa forma, é a partir da década de 60 que a mulher
passa a lutar por autonomia e emancipação, pela inserção no
mercado de trabalho e pela participação política.
Ao voltar para o conto “A solução”, observa-se que narra a
história de duas datilógrafas e amigas: Almira e Alice; a primeira
sensível; a segunda, indiferente. Duas mulheres efetivas no mercado
de trabalho, indicando alterações na estrutura da sociedade
brasileira, o que sugere que o campo de atuação feminino não está
mais restrito ao lar: “Ambas eram datilógrafas e colegas, o que não
explicava. Ambas lanchavam juntas, o que não explicava. Saíam do
escritório à mesma hora e esperavam condução na mesma fila”
(LISPECTOR, 1964, p. 16). Verifica-se a inclusão feminina no mercado
de trabalho, autônomas para decidir o rumo a tomar, desprendidas
dos limites das atividades domésticas.
O conto evidencia uma amizade esfíngica entre estas duas
moças. Um fator que chama atenção é o padrão de beleza
- 476 -
determinado na época: “Alice era pequena e delicada. Almira tinha o
rosto muito largo, amarelado e brilhante: com ela o batom não
durava nos lábios, ela era das que comem o batom sem querer”
(LISPECTOR, 1964, p. 16) e “só a natureza de Almira era delicada.
Com todo aquele corpanzil, podia perder uma noite de sono por ter
dito uma palavra menos bem dita” (LISPECTOR, 1964, p. 16).
Torna-se importante lembrar que na década de 50, anterior à
época da gênese do conto, o padrão cultuado para a beleza feminina
era marcado por seios fortes, coxas volumosas e curvas acentuadas,
o que pode perfeitamente representar Almira, já que possui um físico
no conto caracterizado por um “corpanzil”.
Eco (2002) explicita que a narrativa de ficção não diz tudo
sobre o mundo, entretanto, faz alusão ao leitor e solicita sua
interferência para preencher as lacunas deixadas pelo autor.
Além disso, o conto sugere outras pistas ao afirmar que Alice,
“pequena e delicada”, embora hostil, reproduz o novo padrão de
beleza no mundo feminino. O ideal de beleza que se preconiza a
partir da década de 60 valoriza as mulheres mais magras.
Além dessas transformações históricas e sociais, a ditadura
militar também se fez presente no cenário brasileiro, e apresenta-se
de forma sutil no conto em estudo: “Gostei tanto do programa da
Rádio Ministério da Educação, dizia Almira, procurando de algum
- 477 -
modo agradar. Mas Alice recebia tudo como se lhe fosse devido,
inclusive a ópera do Ministério da Educação” (LISPECTOR, 1964, p.
16). Neste período, os meios de comunicação de todo o país tinham
pautas restritas e não podiam veicular músicas de cunho ideológico
contra a ditadura militar.
Embora fossem amigas, havia certa incompatibilidade entre as
duas. Almira tinha carinho por Alice, desejava sua amizade e suas
confidências. No entanto, Alice mostrava-se sempre distante e
indiferente, deixava Almira de lado, entendia a amizade de Almira,
mas fingia não vê-la. Porém, Alice sentia prazer em ser o centro de
atenções da outra.
Dentre as temáticas presentes na literatura clariceana, estão
os temas universais. O conto “A solução” retratou a indiferença e o
desprezo que culmina na violência, pois, enquanto Almira bajulava
Alice, esta mostrava-se indiferente ao comportamento da outra que
queria tanto sua amizade: “Alice era pensativa e sorria sem ouvi-la,
continuando a bater a máquina. À medida que a amizade de Alice
não existia, a amizade de Almira mais crescia” (LISPECTOR, 1964, p.
16).
Apesar de Almira apresentar um aspecto mais grosseiro, era
delicada com Alice e com todos. Uma das preocupações de Almira
- 478 -
consistia em empregar palavras ou expressões de forma que
magoassem o outro, assim vivia a se desculpar.
A estabilidade da narrativa é quebrada quando Alice chega ao
trabalho com os olhos vermelhos, o que preocupou muito Almira, a
qual insistiu para saber o que aconteceu. O clímax do conto se dá no
momento em que vão almoçar juntas. Almira insistindo para
descobrir o motivo do choro de Alice.
Em um momento de cólera e de forma inesperada, Alice
humilha Almira, caracterizando-a de gorda, chata e intrometida,
conta que as lágrimas deviam-se ao final de um namoro.
Subitamente Almira golpea a melhor amiga com um garfo no
pescoço, assustando todos que estavam no restaurante. O narrador
descreve a ação afirmando que Almira permaneceu quieta, de cabeça
baixa após a violência cometida. Alice foi encaminhada para o
hospital e Almira, detida em flagrante.
Antes dessa cena, o narrador conta que Almira tinha um
singular interesse em Alice. Relata também que Almira era delicada e
educada com as pessoas. Esses eventos levam a interpretar Almira
como uma personagem caracterizada pela carência afetiva, embora o
ato de cometer tal violência física com a amiga deliberadamente
poderia expressar crueldade. Esse episódio constitui evidência da
presença da violência na literatura.
- 479 -
Almira podia ser grande, gorda e desajeitada, porém tinha
sensibilidade: quando se feriu muito por dentro entregou-se,
enlouqueceu. Na prisão fez novas amizades e encontrou nelas o que
Alice não lhe deu: atenção e amor. A felicidade de Almira é associada
à necessidade de atenção e carinho.
Explicitamente o preconceito, outra forma de violência, se faz
presente no conto em análise, no momento em que Almira convida
Alice para almoçar e, esta ignora a preocupação e insistência da sua
parceira gritando: “Sua gorda! Disse Alice de repente, branca de
raiva. Você não pode me deixar em paz?” (LISPECTOR, 1964, p. 16).
Observa-se que o narrador deste conto é onisciente,
encontra-se presente em todos os fatos, conhece o enredo e o
interior dos personagens:
- 480 -
comportamento pode ser problematizado através de diferentes
ângulos, que não se conciliam.
O conto “A solução” tem uma estrutura fechada de apenas
uma história e um clímax. Para Alfredo Bosi (1974, p. 7):
- 481 -
magra, com a atitude agressiva; isso leva a entender que a conduta
hostil comumente é das magras.
O desfecho do conto descortina ao leitor os motivos pelos
quais Almira foi submissa em relação à Alice: solidão e carência. É na
prisão que estes sentimentos são supridos, já que naquele lugar
Almira encontrou amigas verdadeiras: “Na prisão Almira comportou-
se com docilidade e alegria, talvez melancólica, mas alegria mesmo.
Fazia graças para as companheiras. Finalmente tinha companheiras”
(LISPECTOR, 1964, p. 16).
O intimismo de Clarice Lispector se atesta no conto “A
solução”, pois, a partir do cotidiano, a escritora reflete a violência,
entre outras temáticas que alcançam o leitor de qualquer período
histórico, continuamente rotineira quando se trata do
comportamento humano.
Língua do P
O conto “A língua do P” foi publicado na coletânea A via crucis
do corpo, em 1974. Apresenta uma visão panorâmica de como a
violência contra a mulher é construída na literatura brasileira, bem
como a resistência feminina diante disso, com destaque para o
femicídio.
- 482 -
De forma particular, Clarice Lispector, projeta um perfil sádico
do homicida em “A língua do P”. Trata-se de uma narrativa estética
híbrida de ficção e jornalismo, explicitando as fronteiras do contexto
social e do texto literário.
O conto tem como eixo a sexualidade humana. Descreve a
fantasia sexual de marginais que falam do prazer em agredir e fazer
refém uma mulher durante um assalto. Verifica-se uma associação da
violência física como parte da identidade violenta do homem. Diante
do inesperado desejo de domínio e exploração do corpo feminino por
meio do sexo e da violência, tem-se a construção de uma
personagem que encontra na vulgarização uma chance para escapar
dos seus agressores.
Desta forma, “A língua do P” narra um femicídio praticado por
homens estranhos. Como desdobramento do mesmo problema,
banaliza-se a violência física e o crime. O crime nasce da vontade de
um homem em possuir uma passageira de um trem. A narrativa
demonstra tanto a violência verbal, quanto a física.
O conto evidencia que a violência, muitas vezes, se confunde
com o desejo sexual. Inicialmente, observa-se apenas o assédio
sexual por meio do emprego de palavrões. Posteriormente, ocorre o
estupro seguido de assassinato, expondo como o corpo feminino está
- 483 -
suscetível aos perigos da violência urbana e aos desejos
incontrolados dos homens.
A violência começa no momento em que Cidinha, personagem
principal do conto, é assediada dentro do trem e termina com o
estupro e o femicídio de outra mulher. Essa troca de vítimas leva o
leitor a perceber o quanto esse tipo de crime é um constructo
machista e opressor, ou seja, sacia o desejo irreprimido, não importa
com qual mulher.
Visualizam-se duas perspectivas, uma externa e outra interna;
a interna diz respeito à angústia, ao horror e ao medo pelos quais
passa a personagem e, a externa referente ao abuso sexual. Esses
movimentos narrativos são fundamentais para compreender como a
violência deixa consequências desfavoráveis para as vítimas, tais
como distúrbios emocionais e a sensação de inutilidade da mulher.
O narrador, onisciente, leva o leitor a refletir sobre a
vulnerabilidade da mulher. “A língua do P” relaciona a violência
sexual com a virgindade de Cidinha, uma professora de inglês que se
apavora quando descobre que será abusada sexualmente.
Durante o trajeto entre Minas Gerais e Rio de Janeiro, Cidinha
se depara com dois homens estranhos que passam a assediá-la por
meio de uma linguagem cifrada, a língua do “p”. A relação espaço-
tempo da narrativa expressa o momento de angústia e aflição do
- 484 -
assédio sexual: “Havia um mal-estar no vagão. Como se fizesse calor
demais. A moça inquieta. Os homens em alerta” (LISPECTOR, 1998, p.
67).
Assim, o ambiente despropositado do conto remete a uma
sociedade de normas aviltantes que pertencem ao desrespeito aos
direitos da mulher. Observa-se que a violência funda-se por meio de
um constructo simbólico nas relações de gêneros, visto que a
“construção hegemônica dos valores do masculino se faz em torno
do desafio da honra, do controle das mulheres e da disputa entre
homens” (MACHADO, 2006, p. 14). Ao ser vista sozinha e bem
vestida, Cidinha passa a ser pretendida por dois homens
desconhecidos que planejam o crime por meio da força e do
comando da situação.
No entanto, Cidinha entendia a linguagem que eles usavam.
Ela entrou em pânico, sentindo-se, incialmente, perplexa e sem ação.
Ao traduzir a fala dos dois homens, ela desesperou-se: “queriam
dizer que iam currá-la no túnel... O que fazer? Cidinha não sabia e
tremia de medo” (LISPECTOR, 1998, p. 68). Como se não bastasse o
ato sexual violento, eles ameaçavam matá-la: “Se resistisse podiam
matá-la. Era assim então” (LISPECTOR, 1998, p. 68).
Recuperada da imobilidade perplexa inicial, imediatamente
Cidinha começa a traçar um plano para fugir daquele trágico destino.
- 485 -
Angustiada, pensou: “se eu me fingir de prostituta, eles desistem,
não gostam de vagabunda” (LISPECTOR, 1998, p. 69). Ao se rebaixar
como mulher, a personagem encontra uma saída possível, visto que
explora uma visão comum das sociedades patriarcais de que o corpo
da mulher é desprezado e desvalorizado. A dissimulação da
protagonista torna-se patética e a alternação de papéis femininos no
contexto social expressa uma crítica ao sadismo cultural de que o
desejo masculino desperta por mulheres “exemplares”. Neste
contexto, o corpo feminino como fantasia sexual motiva o desejo
violento, o qual somente é saciado quando os agressores abusarem
de uma “mulher de família”.
A despeito da violência das palavras e da agressão verbal
sofrida, ao se passar por prostituta, Cidinha se salva. Recorre a gestos
sensuais e exibe um amplo decote, motivos estes que levam-na a ser
expulsa do trem, após a denúncia do bilheteiro ao maquinista: “vou
entregar ela pra polícia na primeira estação” (LISPECTOR, 1998, p.
69).
Somada à tentativa de estupro, Cidinha passa por uma via
crucis da violência, posterior o crime. A agressão torna-se invisível na
medida em que está presente nas contínuas omissões de que será
vítima, retratando o quando a mulher vítima de violência sexual
encontra-se vulnerável e desprotegida pelo Estado. A narrativa
- 486 -
demonstra que a versão da mulher nem é ouvida, ela torna-se
culpada e é punida por ter apresentado um comportamento
desrespeitoso. A vítima de violência sexual não é, em nenhum
momento, defendida pelos funcionários do trem ou pela própria
polícia.
Cidinha ficou presa por três dias. Somente depois é que
conseguiu seguir viagem. Contudo, toda aquela humilhação deixou
marcas. Passou a sentir-se deprimida e confusa, afinal, ainda era
virgem. Seu estado emocional ficou ainda mais abalado ao ler uma
manchete de jornal que lhe causou choque, pavor e maior
insegurança: uma mulher havia sido assassinada: “Moça currada e
assassinada no trem” (LISPECTOR, 1998, p. 70). Diante do exposto e
conforme relato de diversas pesquisas, o abuso sexual é usado como
meio para o femicídio, resultado final da violência física contra a
mulher (MACHADO, 2006).
Clarice Lispector expõe o femicídio como um crime oriundo da
violência urbana, demonstra que as convenções que sustentam, de
forma simbólica, a dominação masculina atravessa desiguais relações
de poder e de desrespeito aos direitos da mulher. O conto escancara
que a mulher está exposta aos impulsos masculinos sexuais violentos,
isto do espaço familiar ao urbano. Dessa forma, Clarice Lispector
registra, por meio da literatura, atitudes criminosas, relacionadas aos
- 487 -
impulsos sexuais agressivos, os quais precisam ser denunciados e
punidos.
O tema violência contra a mulher retoma, simbolicamente,
alguns aspectos do convencionamento de gênero, que ainda integra
o modo como a dominação masculina percorre as relações de poder
na sociedade, pois “o próprio gênero acaba por se revelar uma
camisa de força: o homem deve agredir, porque macho deve dominar
a qualquer custo, e a mulher deve suportar agressões de toda ordem,
porque seu ‘destino’ assim determina” (SAFFIOTI, 1999, p. 88).
Nesta perspectiva, o conto “A língua do P” vai além de
descrever uma vítima do crime sexual, pois refere-se também à dupla
violência que as mulheres padecem num estupro: a do criminoso e a
da própria polícia que, muitas vezes, não investiga devidamente,
quando responsabiliza a mulher por atentado ao pudor. Assim,
percebe-se que a violência contra a mulher está além do assassinato,
pois compreende a invisibilidade desses casos nas delegacias, espaço
este, ainda predominantemente masculino, aonde o corpo feminino
sofre novamente controle e punição de um corpo regrado por
“esquemas predeterminados, coercitivos e repressores” (XAVIER,
2007, p. 59).
Considerações finais
- 488 -
As produções literárias, de diferentes épocas e gêneros
textuais, apresentam rico acervo a ser explorado a partir da
representação da violência, tais como: O navio negreiro, de Castro
Alves (1868), Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de
Assis (1881), Os sertões, de Euclides da Cunha (1901), A rosa do povo,
de Carlos Drummond de Andrade (1945), Infância, de Graciliano
Ramos (1945), Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (1956),
Lavoura arcaica, de Raduan Nassar (1975), entre outros. Além disso,
ao abordar as relações de violência, o acervo literário de Clarice
Lispector apresenta-se vasto, pois além dos contos estudados, torna-
se importante verificar Carta ao ministro da educação (1968) e
Mineirinho (1962).
Entre muitas outras que poderiam aqui ser mencionadas, tais
obras compreendem um amplo leque, diversificado e motivador para
o estudo da representação da violência na literatura brasileira. Para
isso, é importante sempre recorrer aos conhecimentos das áreas de
História, Antropologia, Sociologia e Ciência Política.
Foi possível examinar como, em cada conto específico, a
violência se relaciona com outros temas apresentados. O diferencial
dos textos analisados é construído pela capacidade de o narrador
desnudar as sutilezas da violência emocional.
- 489 -
A partir da análise do conto “A língua do P”, observa-se que a
literatura brasileira demonstra uma perspectiva desmistificadora
sobre a violência contra a mulher, apresentando as especificidades
que envolvem o assédio sexual e a violência doméstica. Verifica-se
ainda que a violência contra a mulher é precedida por aspectos
simbólicos. Esses constructos sociais fazem parte de uma cultura
fundamentada na premissa de que o assédio moral e sexual é parte
das convenções sociais prescritas à maioria das mulheres.
Os dois contos analisados têm um ponto em comum, o
questionamento da violência, pois ressaltam uma postura
contestatória explícita. Portanto, o estudo da violência na literatura
brasileira torna-se uma possibilidade para refletir esse crime na
sociedade. É importante destacar a força da literatura brasileira de
autoria feminina em problematizar a violência, destacando a
transferência social da mulher como oposição à ordem estabelecida.
Não se pretendeu expectativa de esgotamento de
possibilidades interpretativas, o exposto não é absoluto, completo ou
definitivo, e nem pretende ser a melhor leitura possível.
- 490 -
Referências Bibliográficas:
BLOOM, H. Como e por que ler. Tradução José Roberto O’Shea. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2001.
- 491 -
MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Melhoramentos,
1968.
- 492 -
Sobre os autores
Adriane Cherpinski
http://lattes.cnpq.br/7831073261441289
Graduada em Letras Português e suas Literaturas (2006) pela UNICENTRO -
Universidade Estadual do Centro Oeste, pós-graduada em Literatura e
Contemporaneidade (2008) e em Gestão Escolar (2011) também pela
UNICENTRO. É docente efetiva em Língua Portuguesa na Educação Básica
(SEED - Secretaria de Estado da Educação do Paraná). Mestre em língua e
literatura, pela UNICENTRO (2013). Leciona na FAI - Faculdades Alto Iguaçu,
desde agosto de 2012. Dedica-se aos estudos comparativos, especialmente
no campo da literatura brasileira, com ênfase em Clarice Lispector.
- 493 -
Letras Espanhol na Universidade Federal de Santa Maria e Professora no
Instituto Federal Farroupilha, Campus São Vicente do Sul. Tem experiência
na área de Letras, com ênfase em Literatura e História, atuando
principalmente nos seguintes temas: literatura, história, imigração, romance
histórico e memória.
- 494 -
curso pré-vestibular Canaã na área de português (gramática e produção
textual).
Elielson Figueiredo
http://lattes.cnpq.br/9943163443684554
Possui mestrado em Letras - Estudos Literários - pela Universidade Federal
do Pará (2005). É professor assistente da Universidade do Estado do Pará e
tem experiência como docente no curso de Letras, com ênfase em Teoria
Literária e Literatura Brasileira. Entre os anos de 2009 e 2011 foi
coordenador do Campus Universitário de Vigia de Nazaré (UEPA). Atua na
pós-graduação lato sensu na área de estudos literários e integra o grupo de
pesquisa LELIT- Linguística, Educação e Literatura - onde coordena a linha de
pesquisa LITERATURA DE TESTEMUNHO E LITERATURA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA. Seus temas de interesse são a ficção contemporânea
brasileira e suas expressões de Violência e Barbárie, particularmente as
narrativas sobre a Ditadura militar brasileira e sobre as memórias da Shoah e
do exílio de Judeus no Brasil. Atualmente é aluno do curso de Doutorado em
Estudos Literários no PPGL - UFPA onde desenvolve pesquisa acerca das
- 495 -
memórias do exílio de judeus no Brasil e do pensamento de Emmanuel
Lévinas.
- 496 -
orientação da Prof.ª Juliana Neuenschwander Magalhães e coorientação da
Prof.ª Carla Rodrigues.. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Pelotas (2011) mediante a apresentação do
trabalho "A Tese da Única Resposta Correta em Dworkin", sob a orientação
do Prof. Oscar José Echenique Magalhães. Realizou estágio de docência na
disciplina de Teoria do Direito I, na Faculdade Nacional de Direito, sob a
orientação do Prof. Alexandre Bernardino Costa.
- 497 -
además, desde 2012, como miembro activo del Centro Cultural “En eso
estamos” y de la biblioteca popular “Cocina de ideas”, ambosubicados en la
calle 8 n460 de la ciudad de La Plata.
- 498 -
Termos, Conceitos e Pesquisas em Análise do Discurso e Áreas Afins. Atua
como professor de Incentivo à Leitura e Produção de Textos, Língua
Portuguesa e Literatura das redes municipal (Nova Iguaçu) e estadual (RJ).
Possui formação técnica em Comunicação-Publicidade (Flama-2002). Tem
experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise do Discurso,
desenvolvendo pesquisas sobre sujeito, sentidos, política e político nas
cidades brasileiras.
Samantha Borges
http://lattes.cnpq.br/3992791677044673
Atualmente é Doutoranda e bolsista CAPES em Estudos Literários pela
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com período de Doutorado
Sanduíche na Université Sorbonne Nouvelle Paris 3, no Centre de
Recherches sur les Pays Lusophones, em Paris - França (março a dezembro
de 2015). É Jornalista graduada pela UFSM e Mestre em Literatura pela
mesma instituição. Ênfase de pesquisa em Intermidialidade,
- 499 -
Transmidialidade e adaptação de obras literárias para revista e televisão.
Áreas de interesse de pesquisa: folhetim em jornais e revistas; mídia
impressa; ficção televisiva; literatura, outras artes e mídias; cinema;
intermidialidade; transmidialidade. Possui experiência nas áreas de
Jornalismo Impresso, Radiojornalismo e Assessoria de Imprensa.
- 500 -
Anselmo Peres Alós. Foi integrante do projeto de pesquisa "O melodrama na
literatura brasileira: gêneros e autoria" de 2011 a 2014, sob orientação da
Prof.ª. Renata Farias de Felippe. Possui interesse na área de Literatura e nos
estudos de Crítica Literária, Teoria Literária, Estudos Interartes e
Narratologia; e nas Literaturas de Língua Inglesa e de Língua Portuguesa.
Atuou no ensino básico como voluntária ministrando aulas de inglês para os
5ºs anos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Vicente Farencena,
localizada em Santa Maria (RS), durante o ano de 2012. Atualmente é
bolsista Capes/DS.
- 501 -
O espaço da arte é um local privilegiado para
que discursos outros sejam ouvidos, num
movimento que se constitui como resistência,
ao possibilitar, não apenas dar voz aos
oprimidos, mas principalmente (re) significar
suas histórias. Nessa perspectiva, Violência e
Resistência: problematizações estéticas reúne
pesquisas que discutem temas relacionados
ao universo da arte e aos movimentos de
violência, autoritarismo e resistência social. O
objetivo foi incentivar debates acadêmicos
que incorporam essas questões em suas
pesquisas, observando como as expressões
artísticas podem reforçar ou romper com
valores de preconceito e agressão ao outro,
ampliando, assim, as discussões sobre o
universo da arte e seu potencial de
questionamento ético.
- 502 -