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Tratado de Metrificação Portugueza

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869,56

C352
tr

1874

A 857,026
RIY

Unive
s

Hrabies

ESSC VERITAS
UNIVERS
MICHIGA
OF
LIBRARI ITY
N
ES
560

OF

University of

Michigan

Libraries ,

1817
SCIENTIA VERITAS
ARTES
79
83 Victor Pompeu 1. Baltiges
TRATADO
100
DE

METRIFICAÇÃO PORTUGUEZA

SEGUIDO DE CONSIDERAÇÕES SOBRE A DECLAMAÇÃO


E A POETICA

PELO

VISCONDE DE CASTILHO

4.ª EDIÇÃO

REVISTA E AUGMENTADA

PORTO:
LIVRARIA MORÉ - EDITORA

1874.
869.56

C352 tv
1874

TYP . DE MANOEL JOSÉ PEREIRA,


Rua de Santa Thereza , n. 4 6.
63-311759 Victor Pompou 3. Rodrigues

A SEUS FILHOS

e aos dos seus amigos

Auctor.
EXTRACTO

DO

PROLOGO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

PARA SERVIR DE PROLOGO A ESTA.

O presente livro é um quasi tratado, segundo eu


soube e pude fazel-o ; e ao mesmo tempo compendio ,
que por breve e claro não deixará de aproveitar aos
principiantes .
Tudo que vai em lettra mais grada constitue
doutrina que tenho por indispensavel; em typo mais
miudo lancei as explanações , e certas digressões, de
que absolutamente se podia prescindir, mas que
servirão para tornar os preceitos mais convincentes.
A consecutiva leitura das paginas todas sobrará, ou
eu me engano muito, para qualquer completar sem
mestre o seu tirocinio de poeta.
Examinando tudo que sobre versificação se es-
crevêra em nossa lingua, convenci-me de que a ma-
teria estava apenas encetada, e por homens que só
viam a arte da parte de fóra : muito empirismo, al-
6

guma coisa de fórma, nada de sentimento poetico ,


nada absolutamente de philosophia .
O amor e consciencia com que trabalhei agora
nesta cultura, que ha trinta annos é a minha, á pri-
meira vista os reconhecerá quem folhear este volu-
minho; aqui se lhe depararão trabalhos minuciosos
de analyse , que ninguem antes havia feito , que me
conste, nem talvez tentado, e cujos resultados pra-
ticos devem ser muitos e importantes . Entre esses
trabalhos alguns ba, que pediam e mereciam maior
desenvolvimento ; alguns poderão ser melhorados
por mais habeis mãos, e provavelmente para o fu-
turo o hão-de ser; é facil accrescentar ; e o progres-
so é para todas as coisas . D'aqui até lá entendo que
os professores de poetica , seguindo as regras que
dou com as elucidações que lhes junto , e ajuntando
elles mesmos a umas e outras o que a sua propria
pericia lhes aconselhar, deitarão das suas escolas
alumnos muito mais aproveitados ; esse o unico fim
que me induziu a estas obscuras e inglorias lucubra-
ções.
Se bem soubera alguem, como eu sei , a abun-
dancia de dissabores , e a pouquidade de gostos ver-
dadeiros, que o poetar, e em geral o tratar lettras,
me tem acarretado, por muito santa alma e honrada
lingua que elle fosse, temo que me haveria por uma
especie de sectario do diabo , que por estar penando
sem remedio procura attrair para o seu inferno os
espiritos ainda não perdidos . Eu porém, em boa e
leal verdade não prego a ninguem para que seja
- 7

poeta ou litterato por vida em Portugal ; de certo não;


o que faço, e o que procuro fazer, é dar a mão aos
imberbes, ás senhoritas, e ainda a algum peccado-
raço calejado que já tem pacto com o demonio da
poesia, e uma vez que já nasceram prescitos para as
rimas e regrinhas deseguaes , induzil-os e acostu-
mal-os a atanasarem, o menos que possam , o ouvi-
do, o bom gosto, e o bom senso ao seu proximo que
nem lhes fez mal , nem tem culpa do seu fadario.
Outro reparo farão ainda alguns , vendo sair este
folheto quando tão fresca anda ainda a historia do
esmerado agasalho , que a outro , tres mil vezes mais
util do que este e quantos hei- de jámais fazer, libe-
ralisaram , com tanta justiça como cortezia e decen-
cia, certos arautos officiaes da litteratura patria. Não
importa; já agora ... Quod scripsi, scripsi, e o que
escrevi, ha-de ir aos typos , dê por onde der, e sáia
o que sair; não é isso que me ha- de a mim desvelar
as noites.

Quero acabar com uma derradeira ponderação


em abono do opusculo . Tenho eu que a materia ,
que se nelle ensina, não é só util para os que aspi-
ram a fazer versos ; entendo que em toda e qualquer
educação liberal deve entrar infallivelmente como
elemento; assim o fazem em Italia , em França , em
Inglaterra, em muita Allemanha, e até já por terras
da nossa visinha , a velha e juvenil Castella, que em
quanto nos outros nos attascamos , por querer, na
8

ignorancia hereditaria, lá se vai alando com o pro-


prio impulso para todo o bom saber .
Se o fazer versos é para poucos , o entender de
versos, o poder avalial-os com exacção, e recital- os
com justeza, é para um e outro sexo uma prenda de
manifesta vantagem ; requinta- se o gosto de uma im-
portante especie de leitura , que desenvolve , e pule
o gosto natural ; não se refoge por medo ou justa
vergonha de ler em voz alta e em publico , e sobre
tudo com este tão facil como agradavel tirocinio se
affaz o ouvido para escrever a prosa nacional com
muito mais graça e affinação ; verdade esta que po-
derá parecer nova e tonteria a alguem, mas que era
já credo velho para Maury, para La Harpe , para Rol-
lin , para Voltaire, para Plinio , para Quintiliano, para
Cicero, e para os mestres de Cicero, os grandes ho-
mens da grande Athenas; verdade que eu sempre
defenderei , pois a conservo como reliquia de um ex-
cellente e eruditissimo varão , que me honrou com
a sua amizade, e com os seus conselhos me introdu-
ziu ainda menino ao caminho das lettras . Esta auc-
toridade, que ninguem em Portugal recusará, é a
do Sr. Antonio Ribeiro dos Santos , a quem a poesia
serviu muito mais ainda na prosa que no verso .

ADVERTENCIA DO EDITOR

Seguindo a indicação do auctor, supprimiram- se por es-


cusados o prologo da segunda , e o da terceira edição.
TRATADO DE METRIFICAÇÃO

CAPITULO I

O QUE SEJA VERSO

Verso, ou metro, é um ajuntamento de palavras ,


e até, em alguns casos , uma só palavra, comprehen-
dendo determinado numero de syllabas , com uma,
ou mais pausas obrigadas, de que resulta uma ca-
dencia aprazivel .

Antes de enumerarmos as differentes especies de versos


usadas em portuguez, e de ensinarmos as regras particulares
de cada uma d'essas especies, é indispensavel, como funda-
mento, sabermos o que se entende por syllabas, e o que se
entende por pausas.

DAS SYLLABAS

A contagem das syllabas não é para o poeta o mesmo,


que para o grammatico : num dado trecho de versos acha o
grammatico muito mais avultado numero de syllabas, que o
metrificador; a differença anda em nossa lingua, segundo o
meu calculo (salvo o erro) por um sexto de excesso.

O grammatico conta por syllabas todos os sons.


distinctos, em que as palavras se podem rigorosa-
mente dividir, sendo cada um d'esses sons distinc-
tos, ou uma vogal só per si, ou duas vogaes, quasi .
· 10 -

simultaneamente proferidas, a que se chama diton-


go (ão, ae, ai, ao , au, ei, eo, eu, io, iu, oe, oi, ue,
ui) 1 ou uma vogal com uma ou mais consoantes ,
que com ella ferem , quer lhe fiquem antes, quer de-
pois , quer a levem entre si , (como: pa, ar, cre,
trans); ou finalmente um ditongo com consoantes ,
que se lhe articulem , (como: pae, grei, paes , greis,
etc. )
O metrificador, porém, não conta por syllabas ,
nem por coisa alguma , as que no modo corrente de
fallar passam , ou sem inteiramente se perceberem,
ou percebendo-se tão pouco, que é como se não exis-
tiram .

O grammatico não cura do que parece aos ouvidos, mas


só do que é precisamente. O versificador não se embaraça com
o que precisamente é, mas só com os que aos ouvidos se fi-
gura.
Governa -se o primeiro por uma especie de philosophia
especulativa, aliás de grande utilidade, e mesmo necessaria; o
outro, se assim nos podemos expressar, pela toada da pratica,
segundo a qual não só na recitação dos versos, mas ainda na
leitura da prosa, e até, e sobre tudo na conversação , mormen-
te na familiarissima, a cada passo se omittem, com a voz, sons,
que aliás com a penna se representam. Além d'esta manifes-
ta differença, outra ha ainda muito real, que torna mais nu-
merosas as syllabas; porque os ditongos, philosophicamente
considerados, se reduzem cada um a duas syllabas, por serem
duas as vogaes de que se compõem; observação esta pouco
importante para aquí, mas importantissima para o bom еe mais
facil ensino do ler. Vá exemplo, que ao mesmo tempo sirva
de exercicio. Eis aqui a primeira fabula de Lafontaine na tra-
ducção de Filinto. Por cima de cada verso se põem as mes-
mas palavras d'elle em lettra gripha, syllabadas grammatical-
mente, e por cima das duas linhas outra, em que as syllabas
são contadas募 rigorosamente, quando aconteça haver ditongo.

(1) Na 4.a edição do nosso methodo de leitura estabelecemos a dou-


trina ortodoxa de que , não podendo haver duas vozes simultaneas ou
numa só emissão, os ditongos portuguezes eram cada um de per si uma
syllaba usual, mas essencialmente decomponivel em duas syllabas na-
turaes.
-- 11 -

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14
A ci-gar-ra a can-tar pas-sa-ra o es-ti-o
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
A ci-gar-rá can- tar pas- sá-res- ti-o

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
E-IS QUE AS -SO -PRA O NOR - DES -TE E SE A- CHA BAL- DA
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 13 13 14 15
Eis que as-so-pra o nor - des- te e se a-cha bal-da
2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Eis-qua-so - pro-nor-des- ti- sá- cha-bal-da

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Sem mi-ga-lha de mos-ca nem de ver-me
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Sem mi-ga-lha de mos- ca nem de ver- me

1 2 3 4 5 6 7 8 9
VA-I GRI-TAN DO LA-ZE - I-RA
1 2 3 4 5 6 7
Vai gri-tan-do la-zei-ra
1 2 3 4 5 6 7
Vai gri-tan-do la- zei-ra

1 2 9 4 5 6 7 8 9 10 11
A' for-mi-ga pe- dir su-a vi- si- nha
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
A' -for-mi-ga-pe- dir-su -a- vi- si-nha
- 12 ---

1 2 3 4 5 6 7 8(1)9 10 11 12 13 14 15
QUE LHE EM-PRES -TE AL- GUM GRA- O PA-RA IR VI-VEN- DO
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14
Que lhe em-pres-te al-gum grão pa-ra ir vi-ven-do
1 2. 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Que lhem-pres- tal-gum- grão - pa - rir-vi-ven-do

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
TÈ QUE A NO-VA ES - TA - ÇÃ- O BEM-VIN- DA A- PON-TE
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14
Té que a no-va es-ta -ção bem vin- da a -pon-te
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Té-qua-no-ves-ta- ção-bem-vin-dá - pon - te

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14
Diz-lhe á fé de ci-gar- ra an-tes de a-gos-to
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Diz-lhá-fé-de- ci -gá- rran- tes -da -gos- to

(1 ) Quer parecer ao autor, que em se generalisando mais (e obser-


vando-se com o devido escrupulo) o ensino da leitura pelo methodo
portuguez, a pouco e pouco se haverá enfraquecido uma censura, que
estrangeiros, e portuguezes tambem, fazem á nossa lingua, pelo des-
agrado que dizem provir- lhe do chamado latido canino do ão, que tanto
abunda n'ella . Quem na escola se houver acostumado a dizer a- u, divi-
didos, antes de pronunciar ão unido, ficará provavelmente amançando
depois na pronuncia este som, e terá a final desapparecido esta pedra
de escandalo .
Tão bom remedio podessemos nós dar á exprobração que se faz á
lingua portugueza , á conta do som do s no final das palavas ou das
syllabas ! Esse sim, que é um desar, e um peccado, tanto mais grave,
contra a euphonia, quanto esses ss chocalhados são de uma superabun
dancia e frequencia, que chega a enfadar .
- 13 -

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
PA-GA-RE-I TU- DO PRIN-CI-PAL E JU-ROS
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Pa-ga-rei tu-do prin-ci-pal e ju-ros
1 2 3 4 5 2 7 8 9 10 11
Pa-ga-rei -tu -do-prin -ci - pal e ju -ros

1 2 3 4 5 7 7 8 9 10
NÃ-O SER FA- CIL NO EM-PRES- TI-MO
1 2 3 4 5 6 7 8 9
Não ser fa-cil no em-pres-ti-mo
1 2 34 5 6 7 8
Não ser fa- cil nim - pres - ti -mo

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
E' NA FOR-MI- GA A MA- CU-LA MA- IS LE-VE
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
E' na for- mi-ga a ma- cu-la mais le-ve
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
E' na-for-mi-gá-ma- cu -la-mais - le- ve

1 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Com que diz á que vem pe- dir pres-ta-do
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Com que diz á que vem pe -dir pres - ta-do

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
EM QUE LI-DA-VAS DO CA- LOR NA QU -A - DRA
- 14

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Em que li-da-vas do ca -lor na qua-dra
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Em que li -da-vas do ca-lor na qua- dra

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
A-I FA-C A-ME FA-VOR E -U NO-I - TE E DI - A
A- ÇA-1
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Ai fa-ça-me fa-vor eu noi-te e di-a
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Ai-fa-ça-me fa-vor- eu noi- ti-di-a

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
CAN-TA-VA A QU-AN-TOS I-A- U -QU - AN -TOS VI- NHÃ - U
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Can -ta-vu - a quan-tos i- do -quan-tos -vi- nhão
1 2 3 4 6 57 8 9 10 11
Can-tá-vá-quan-tos - i-ão - quan- tos-vi- nhão

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
CAN-TA-VAS-MU-I-TO FOL - GO-DAN- ÇA- A- GO-RA
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Can-ta-vas-mui-to-fol-go-dan-ça-a-go-ra
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Can-ta-vas-mui - to -fol -go-dan-çá-go-ra

Neste sentido e conformidade convirá que o principiante


antes de progredir, se demore a praticar em qualquer livro
de verso ou prosa , pois isso lhe dará a facilidade de reduzir
as syllabas rigorosas ás grammaticaes, e as grammaticaes ás
15 -

usuaes; facilidade indispensavel para quem tem de metrificar;


mas, para que vá com mais segurança de acerto, aqui lhe of-
ferecemos principios ou regras geraes, que não deve perder
de vista.

Da contagem das syllabas

REGRA 1.ª-Uma vogal antes de outra vogal ab-


sorve-se nella, ficando as duas syllabas a formar
uma só syllaba (os ditongos são fundados neste
principio, que é fundado elle mesmo na propria na-
tureza das vogaes) : esta regra não só se applica nos
casos em que uma vogal está em fim de palavra, e a
123 4 5 6 7
outra no começo da seguinte, como, felicidade inau-
8 9 12 3 4 5 6 7 8
dita, que se lê felicidadinaudita; mas até nos casos
em que as dnas vogaes concorrem dentro na mesma
1 2 3 4 1
palavra, como: pi-e-da-de, que pronunciamos pie-
2 3 1 2 3 4
da-de e sa-u-da-de, que geralmente pronunciamos
1 2 3
sau-da-de. (1)

(1) Nas composições dialogadas acontece frequentemente acabar


uma falla em principio ou meio de um verso, e inteirar-se este com o
principio da falla seguinte. Exemplo:
Amas-me caro Henrique?-Adoro-te, querida!
Pessoa de muito voto nestas materias propoz-nos a seguinte duvida;
se sim ou não será bem permittido que na passagem de falla para falla
dentro do • mesmo verso se absorva a ultima syllaba breve da falla
precedente na primeira vogal da falla immediata; fundando -se o seu
escrupulo em que passada a voz de pessoa para pessoa ha uma que-
bra que se lhe representa incompativel com a continuidade necessaria
para a absorpção.
Sem escurecermos a tal qual razão do critico, assentamos todavia
em que a absorpção se póde n'esses casos effectuar sem escandalo para
o ouvido; e fundamos esta doutrina em que assim o praticam sempre
nas tragedias e comedias os melhores versificadores da Italia, da Hes-
panha, de França, de Portugal, etc., etc., etc. Poderiamos facilmente
encher um volume com exemplos disto.
- 16

Excepções da regra precedente. — Ha excepções ,


e eil-as aqui: se a vogal antecedente é muito forte-
mente accentuada, ou é parte de ditongo, não se ab-
1 2
sorve na seguinte; por exemplo: só eu, de que não
1 1 23
podemos fazer seu, e, viu uma , que não podemos di-
1 2
zer vûma . (1 )

Vogaes mais ou menos difficeis de


absorver

Ha vogaes mais ou menos duras : em geral , o o


é mais duro que o a, u a mais que o i, o i mais que
o e.

Pronunciações das vogaes

Cada vogal tem em portuguez diversas pronun-


cias : o a duas bem distinctas ; uma mais aberta ,
como na primeira syllaba de pára (verbo) , outra me-
nos aberta, como na segunda syllaba da mesma pa-
lavra; em Pará (nome de uma provincia do Brazil)
o primeiro a é o menos aberto , e o segundo o mais.
O e tem quatro pronuncias (2) : abertissima como em
fé; aberta como em merce; surda como na ultima de
piedade; e de i ou quasi i, como na conjuncção e;
pois escrevendo- se Pedro e Antonio , se lê Pedro i
Antonio: fealdade que lemos fialdade; edição , idição,
etc. O o tem pelo menos tres pronuncias ; abertissi-
ma como em pó, aberta como na segunda de Diogo,

(1) Antonio Ferreira, Francisco Manoel, e outros metrificadores in-


cultos, muitas vezes o fazem, mas não são n'isso para imitar.
(2) No nosso methodo de leitura mostramos que em realidade tem
seis; mas para aqui contentemo-nos com as quatro.
- 17

fechada, surda e como de u na ultima syllaba do


mesmo nome Diogo . O u não é susceptivel de mo-
dificações, por ser dos cinco sons vogaes o menos
substancial, e que se forma com a boca já quasi de
todo cerrada: entretanto , se por esta mesma razão
se não póde transformar, algumas vezes se póde
omittir na pronuncia, como em quente, que lemos
como se se escrevesse qente. Comprehendido e ad-
vertido bem isto podemos pôr outra regra.
REGRA 2 .-- Uma vogal será tanto mais facil de
absorver na seguinte, quanto fôr menos forte de sua
natureza, menos accentuada , e menos pausada. As
mais abertas , mais accentuadas e mais pausadas não
se elidem sem violencia , violencia que será sempre
um defeito , e ás vezes um erro imperdoavel .
Explicação. -Elidir, ou absorver uma vogal em
outra, não quer sempre dizer omittil-a inteiramente
na pronuncia; umas vezes se omitte , outras não :
omitte-se, por exemplo, em bondade infinita o ulti-
mo e de bondade; em minha amada o ultimo a de
minha; em todo o dia o ultimo o de todo; mas já se
não omitte absolutamente, ainda que deixe de se
1 2 3 4
contar, em Santo amaro o ultimo o de Santo.

Em Santo Antonio, vós ouvireis não só entre os rusti-


1 2 3
cos, mas ainda entre as pessoas cultas, a uns dizer Santanto-
4 1 2 3 4
nio, a outros Santoantonio.

Quando as duas vogaes que se embebem uma


na outra são identicas, soam ambas como uma só ,
mas o mais aberta e forte que é possivel , como no já
citado exemplo de a brando, e a brando, no fim de
2
18

minha, e no principio de amada, onde dos dois se


faz um só a , mas fortissimo minhámáda . (¹)
REGRA 3. -Não só duas vogaes concorrentes se
elidem, no caso da primeira não ser longa, mas po-
derão elidir-se mais, se mais ahi concorrerem com
1 2 3 4 56 7
o mesmo requisito ; em piedade e amor não só ab-
sorvemos a primeira na segunda syllaba, mas tam-
bem a quarta e quinta na sexta , pronunciando d'este
2 3 4
modo: pie-da-dea-mor .
Limitação. A absorpção de quatro vogaes em
uma só syllaba seria ainda possivel , rigorosamente
fallando, mas deve sempre evitar-se . Por exemplo :
quem fizesse de gloria e amor -gloramor commet-
teria um barbarismo , ainda que não um erro.

O bom ouvido, e afeito á lição dos bons metrificadores,


ensina todas estas coisas muito melhor e mais facilmente do
que todos os preceitos theoricos.

Synérese e Synalepha

A cada um dos sobreditos modos de diminuir o numero


das syllabas, dão os preceptistas seu nome technico , que bom
é conhecer, ainda que sem elles se possa passar excellente-
mente.

A' absorpção das vogaes dentro em uma só pa-


lavra chamam Synérese ; á contracção de duas ou mais
syllabas em uma , mas operada na passagem de uma

(1) Temos por vasia de fundamento a censura que alguns provincia-


nos perluxos fazem aos lisbonenses, quando estes por analogia e cobe-
1234
rencia dizem todódia, pois assim como se faz um á forte de dois aa bran-
dos, se póde fazer de dois oo brandos um ó forte . Não é isto defender -nos
a nós pessoalmente , que pronunciamos todo o dia, e não todódia.
-- 19 --

palavra para outra , dão o nome de Synalepha . Nesta


formula temos tudo :

Vogaes contrahe a Synérese ,


dentro na mesma dicção ;
mas tu , Synalepha, absorvel-as ,
se em duas palavras são.

RESUMO DA DOUTRINA PRECEDENTE

O metrificador não conta as syllabas pelo que el-


las são grammaticalmente, mas só pelos tempos em
que as pronuncia . Todas as vogaes , que em uma ou
diversas palavras se pronunciam, ou se podem pro-
nunciar como que em um só tempo , são para o me-
trificador uma só syllaba . O metrificador em alguns
casos tem obrigação de elidir as vogaes; em outros
faculdade de elidir, ou não ; em outros impossibili-
1 2 3 4
dade de as elidir: obrigação , como em muito amor,
1 2 3
de que fará sempre muit'amor: liberdade, como em
1 2 3 4 1 2 3
saudade que pode ser sa u da de ou sau da de: pro-
1 2 3
hibição, como em má alma, que por modo nenhum
1 2
fará málma, posto que similhantes exemplos se en-
contrem em antigos , e até em modernos. O regula-
dor é o ouvido, pois as regras só por elle e para elle
foram dictadas.
20

SEGUNDO MODO DE ALTERAR O NUMERO


DAS SYLLABAS

Até aqui temos visto o como as syllabas se dimi-


nuem na recitação , sem aliás se violar a sua integri-
dade orthographica : agora veremos o como certas
palavras se pódem na escripta reduzir, pela subtrac-
ção de lettras , e outras, por accrescentamento de let-
tras, augmentar- se . O augmento ou diminuição póde
ser no principio, no meio, ou em fim de palavra: ao
augmento no principio chamam os grammaticos Pró-
these, no meio Epênthese, no fim Paragóge.

Exemplos da figura Próthese. - De pastar se fez repastar;


(sem lhe augmentar a significação); de cantar, descantar; de
cypreste, acypreste; de teimar, ateimar; de tambor, atambor;
de lampeão, alampeão; de levantar e baixar, alevantar e abai-
xar; de chegar, achegar; de lampadario, alampadario ; de cos-
tumar, acostumar; de voar, avoar; de credor, acredor; de fó-
ra, afóra; de lagôa, alagoa; de ruido, arruido. Exemplos da fi-
gura Epenthese. - Mavorte por Marte, Pagano e Musulmano
por Pagão e Musulmão, tráhia, por traha. Exemplos da figura
Paragóge.- Pertinace por pertinaz; felice por feliz ; Leonora
por Leonor; Izabela por Izabel; martyre por martyr; produze
por produz; fugace por fugaz; mobiles por moveis ; Joane por
João.

A diminuição pode ser egualmente de principio ,


meio, ou fim de vocabulo. A'do principio chamaram
os grammaticos Aphérese; á do meio Syncope; á do
fim Apócope.

Exemplos da figura Aphérese. -Splendido, por esplendi-


do; maginação, por imaginação; bobada, por abobada ; praz ,
por apraz; ante, por diante; inda , por ainda; poz, por apoz;
traz, por atraz; lampejar, em vez de relampejar; rependimen-
to, por arrependimento; venturar, por aventurar; liança, por
alliança; delgaçar, por adelgaçar; star, por estar; batina, por
21

abatina. Exemplo da figura Syncope. - Podroso, por poderoso;


cuidoso, por cuidadoso; padar, por paladar; sabroso, por sa-
boroso; insua, por insula; eleto, por eleito; perla, por perola;
diffrente, por differente; seclo, por seculo; p'ra, por para ;
mór, por maior; esp'rança, por esperança; mortorio, por mor-
tuorio; folgo, por folego; p'rigo, por perigo; reprender, por
reprehender; tabernaclo, por tabernaculo; esp'rito, por espi-
rito; imigo, por― inimigo; asp'ro, por aspero. Exemplos da fi-
gura Apocope. Simples, por simplices; calix, por calices;
nume, por numen ; germe, por germen; arvor, por arvore;
marmor, por marmore; lisonge, por lisonjeie; esté, por esteja;
lhe, por Îhes.

Na seguinte formula podemos sem custo decorar


os nomes, e prestimos das seis figuras, com que as
palavras se pódem alterar :

Principios come a Aphérese;


a Prótese os inventa;
no meio tira a Syncope;
a Epenthese accrescenta;
corta nos fins a Apócope;
Paragóge os augmenta .

ADVERTENCIA RESTRICTIVA

No usar de qualquer das seis figuras sobreditas


deve haver summa cautela, pois que o nome de fi-
gura, como desculpa ou atenuação de culpa, só é
n'estes casos mascara lustrosa, com que se pretende
encobrir um defeito .

O uso geral de um povo altera no correr dos annos mui-


tas palavras, por todos os seis modos indicados; do que seria
facil amontoar para aqui exemplos. Todas essas alterações,
depois de assim generalisadas ficam sendo licitas, até aos mi-
nimos escrevedores; mas adulterar por propria auctoridade
uma palavra, accrescentando-a ou mutilando-a, é ousadia,
22

que os mesmos escriptores maximos, e mais idoneos para le-


gislar vernaculidade na sua terra, ou não tomam, ou de que
só usam parcissimamente em grandes apertos, e com boas ra-
zões para resalva. Os melhores metrificadores são os que me-
nos tomam taes licenças; os peiores inçam d'estes aleijões, en-
feitados com o titulo de figuras, tudo quanto escrevem . Bo-
cage, de todos os nossos versificadores o mais delicioso, e o
que mais se deve, quanto ao metro, inculcar aos principian-
tes como carta de guia, Bocage, rarissimas vezes se valeu
d'esses recursos. Ferreira e Filinto, de todos os nossos me-
trificadores os mais duros, e desastrados, não dão passada sem
aquellas muletas.

RESUMO DA DOUTRINA PRECEDENTE

Resumamos, e reduzamos a regras geraes o que


o bom juizo dicta a este respeito.
REGRA 1. -As figuras Próthese, Epenthese, Pa-
ragóge, Aphérese, Syncope e Apócope, consistindo.
em viciar as palavras, são essencialmente defeitos .
REGRA 2.0 uso d'estas figuras é todavia ad-
missivel nos casos em que , em logar de ser o escri-
ptor o primeiro que emprega um vocabulo adultera-
do, o recebeu já assim pelo costume geral , ou do fal-
lar do seu tempo, ou dos poetas de boa nota.

REGRA 3. Quando ou o uso geral do fallar con-
temporaneo, ou o dos poetas de boa nota , tem pre-
valecido, e a palavra é já mais conhecida e familiar
na sua fórma figurada, do que o seria no seu primi-
tivo e genuino ser , então o vicio e a virtude trocam
entre si os nomes ; o figurado fica sendo o natural, e
o natural figurado .
23

CAPITULO II

DOS ACCENTOS PREDOMINANTES , OU PAUSAS


EM GERAL

Accento predominante ou pausa num vocabulo


se chama aquella syllaba em que parecemos insistir,
1 2
ou deter-nos mais , v . g .: em louvo , a primeira; em
1 2 3 1 2 3
louvado, a segunda; em louvador , a terceira; em
1 2 3 4 3 1 2 3 4 5 6 7
omnipotente, a quarta; em extravagantissimo, a
quinta. A pausa ou accento predominante nada tem
com o mais ou menos aberto da vogal , ou som da
syllaba; mas só com a demora d'ella, como havemos
dito: uma vogal mais aberta póde não ser pausa no
vocabulo, ao mesmo tempo , que outra menos aber-
ta o seja; em ambar está a pausa na primeira sylla-
ba, cujo som é o mais demorado , ainda que frouxo ;
1 2 3 4
em similhança, está no an da terceira syllaba , do
qual se pode dizer o mesmo ; comtudo o mais geral
é recahir o accento predominante em vogal abertis-
sima , como na primeira syllaba de patria , na segun-
da de estólido , na terceira de jacaré.
Toda a palavra tem necessariamente uma pausa ,
nem mais , nem menos . As rarissimas , que parecem
ter dois accentos , e como taes algumas vezes tem si-
do empregadas , reflicta-se bem, e achar- se-ha sem-
pre que não são uma palavra senão duas unidas por
composição: como horridamente, similhantemente,
valorosamente, etc. , que são combinações do subs-
24 -

tantivo mente com adjectivos , na devida parte femi-


nina.
Insistimos , portanto , em que toda a palavra tem
uma pausa , e nada é mais facil do que reconhecel- a;
citam - se como excepções os seguintes monosyllabos
o, os, a, as, do, dos, da, das no, nos , na, nas , ao,
aos, á, ás, me , te , se , lhe, lhes , a conjuncção e, o
que, etc. Sem pretendermos negar que tudo isso se-
jam grammaticalmente palavras, observaremos com-
tudo que tão dependentes são por indole todas ellas ,
que nunca figuram, nem podem figurar , senão con-
chegadas a outras, e tão conchegadas , que muitas
vezes se escrevem juntas, e até tão juntas , que vão
alterar na orthographia o vocabulo com que se tra-
vam , como: ouvi-lo , quere-los, adora-la, aborrece-
las, aonde o r final dos infinitivos, a que se junta o
artigo como complemento, se transforma em I para
lisonja do ouvido. Quer, porém, se escrevam estes
monosyllabos encorporados com o vocabulo , a que o
sentido os associa , quer se escrevam sobre si , sem-
pre na recitação lhe ficam pertencendo, sempre vão
figurando como uma syllaba d'elle , e sempre essa
syllaba é breve e incapaz de pausa; e quando não,
indagae:
1 2 3 4
Levantamos tem a terceira syllaba longa seguin-
do-se-lhe por consequencia uma só breve ; se juntan-
1 2 3 4
do-lhe o complemento - nos- disserdes levantámo-
5
nos, sentireis depois d'aquella syllaba longa , não já
uma só breve, mas duas breves; a mesma differen-
ça vai de amámos para amámo -la , de fugimos para
fugimos-lhe, etc.
Ainda mais: tão manifesta e incontestavel é a
brevidade e fugacidade d'estes pobres monosyllabos ,
- 25

que d'elles se podem juntar não só um , senão dois


a outra palavra, cuja penultima syllaba seja longa,
ficando assim contra o costume de nossa lingua,
apóz uma syllaba longa, uma sequencia de tres bre-
ves, como neste verso:

1 2 3
A Ticio em geiras nove o corpo estira-se-lhe .

O QUE SEJAM PALAVRAS AGUDAS , GRAVES


E ESDRUXULAS

Segundo o logar em que se acha a syllaba longa,


recebe a palavra, considerada em relação á metrifi-
cação, o nome de aguda , grave, ou esdruxula; nome
que ella communica ao verso em que é posta de re-
mate . Palavra aguda, se diz a que tem por ultima
syllaba uma aguda , ou uma pausa, o que vale o mes-
mo; se a palavra fôr monosyllaba , visto está, e já o
dissemos , que será aguda: palavra grave se chama
a que tem por penultima syllaba , uma aguda, e por
ultima, uma breve: palavra esdruxula finalmente, ou
dactilica, a que tem por antepenultima syllaba uma
aguda, e depois d'ella duas breves . Exemplos de pa-
lavras agudas: rei, paixão , collosal, contrapezar,
edificação; exemplos de palavras graves: dado, ba-
ralho, recommendo , amoreira, aguafurtada , exqui-
sitamente; exemplos de palavras esdruxulas: aspero,
pyramide, mathematico, encyclopedico , venerabilis-
simo .
A acertada mistura de palavras agudas, graves
26 ―

e esdruxulas , não deixa de concorrer para a boa har-


monia d'um verso.
Agora, que já sabemos como se contam as sylla-
bas, e como as pausas se reconhecem , segue-se ex-
plicarmos de quantas syllabas , e com que pausas,
cada especie de verso se compõe .

CAPITULO III

QUANTAS ESPECIES DE METROS HA EM


LINGUA PORTUGUEZA

Muitas são as medidas usadas mais ou menos


em nossa lingua: temos versos de duas syllabas , de
tres , de quatro , de cinco , de seis , de sette , de oito,
de nove, de dez, de onze , de doze; advertimos que
nós contamos por syllabas de um metro, as que nelle
se proferem até à ultima aguda ou pausa, e nenhum
caso fazemos da uma ou das duas breves , que ain-
da se possam seguir; pois , chegado o accento pre-
dominante, já se acha preenchida a obrigação ; nisto
nos desviamos da pratica geral , que é designar o
metro, contando-lhe mais uma syllaba para além da
pausa, d'onde veio chamarem todos endecasyllabo
ou de onze syllabas ao heroico, a que nós chamamos
decasyllabo ou de dez syllabas .

Elles, fundando - se em que os graves são mais frequen-


tes, que os agudos e esdruxulos, e em que podendo os ver-
sos de dez syllabas deitar até doze, quando terminam por
duas breves, o meio entre o minimo de dez, e o maximo de
27

doze, é onze; e nós, fundando-nos em que ha absurdo em cha-


mar verso de onze syllabas ao que só tem dez e está certo,
como:

E' fraqueza entre ovelhas ser leão,

e em que finalmente em onze ha sempre dez, e em dez não ha


onze nem doze. A'quelles a quem esta innovação parecer mi-
nuciosa, responderemos que não é minucia ser exacto no fal-
lar, e que o sel- o é obrigação, e muito mais quando nenhum
lucro se tira do contrario; isto posto, fique entendido, que to-
das as vezes que fallarmos de versos de oito syllabas, nos re-
ferimos ao que os outros desiguam por de nove; os alcunha-
dos de oito são para nós de sette; os de sette de seis, e assim
por diante. Prosigamos dando exemplos de todas as medidas
supra-indicadas .

Metros de duas syllabas

Aqui
a flor
surri
amor.

Metros de tres syllabas

De amor foge ,
coração ,
não te arroje
num volcão .

Metros de quatro syllabas

A primavera
nos reconduz
lá de Cythéra
flores e luz.
28 --

Metros de cinco syllabas

O inverno que importa


se o fogo em meu lar ,
fechada esta porta
nos vem alegrar?

Metros de seis syllabas

Salve florinhas simplices ,


que em dita me egualaes ;
bellas sem artificios ,
felizes sem rivaes !

Metros de sette syllabas

Que eu fosse emfim desgraçado ,


escreveu do fado a mão:
não se mudam leis do fado ,
triste do meu coração!

Metros de oito syllabas

Acompanhae meu vão lamento ,


auras ligeiras, que passaes!
Tu, caro a amor, doce instrumento ,
caza c'os meus teus frouxos ais!

Metros de nove syllabas

Vem , ó dona das graças e flores ;


volve ao mundo teu mago calor :
nos que fogem d'amor, gera amores ;
nos que a amores se dão , cria amor.
29

Metros de dez syllabas

Nos deleitosos campos do Mondego,


quando perto era já teu matador,
tu sonhavas , Ignez , posta em socego,
annos sem termo, que doirava amor.

Metros de onze syllabas

D'espigas e palmas c'roemos a enxada,


morgado e não pena dos filhos d'Adão;
mais velha que os sceptros , mais util que a espada,
thesoiro é só ella, só ella brasão .

Metros de doze syllabas

Se a fortuna um diadema em teu berço ha lançado,


d'esse dom casual não me attrahe o esplendor;
tem mais rico diadema, eterno, conquistado;
quem mede em ti o sabio, esquece o Imperador.

SOBRE OS VERSOS PORTUGUEZES DE MEDIÇÃO


LATINA

Nas onze especies que deixámos exemplificadas, temos


quantos metros se podem usar em portuguez; pelo menos ne-
nhum outro se poderá talvez inventar, que não seja compos-
to de algumas das medidas supra- indicadas, e que por sobejo
longo se não deva condemnar A tentativa não já moderna,
mas em que tanto insistiu modernamente o nosso, aliás bom
engenho, Vicente Pedro Nolasco, de fazer versos portuguezes
30 ―

hexâmetros e pentâmetros, é uma quimera sem o minimo vis-


lumbre de possibilidade. Carecendo de quantidades, condição
indispensavel para os onze pés do distico, o portuguez nada
mais póde que arremedal - o, como um João de las Vinhas, mechi-
do por arames imitaria os passos, gestos e acções de um actor
vivo e excellente; mas insistir em tão evidente materia, e que
de mais a mais ninguem hoje contraria, fôra malbaratar o tem-
po que as sãs doutrinas estão pedindo.

Entretanto, agora, quatro annos depois da quarta edi-


ção, reflectindo novamente na materia, confessamos que a
exclusão absoluta que faziamos da metrificação latina para
o portuguez, já nos não parece tão bem fundada. Subsiste
sim a objecção de não haver em nossa lingua as quantida-
des, como havia no latim; mas a essa póde - se responder
que os entendedores d'esse bello idioma , dado o não saibam
pronunciar, nem por consequencia lhe possam conhecer as
longas e as breves, não deixam comtudo de reconhecer a
harmonia dos versos de Virgilio ou de Ovidio; tanto assim,
que na leitura, embora rapida , estremam logo , como quer
que seja, um metro que por ventura escapasse mal medido.
Esta só ponderação já persuade que o nosso ouvido , que as-
sim aprecia esses metros pronunciados sem a respectiva
prosodia antiga, e á portugueza, bem póde por analogia
achar muzica aceitavel nos que em portuguez se lhes asse-
melharem .
Uma vantagem grande, e grandissima , poderia ter es-
ta introducção, se por uma parte os hexametros e penta-
metros não fossem feitos senão por quem andasse bem en-
frascado na lingua do Lacio, e possuisse assaz de engenho
para os imitar com felicidade; e por outra parte, os leito-
res não tivessem negação , ou completa falta de conheci-
mentos, para os apreciarem; a vantagem, repetimol - o , se-
ria o muito maior ambito , que assim adquiriria a emissão
do pensamento poetico . O alexandrino, tão guerreado , já a
final pegou, e está generalisadissimo; e porque? não tanto
pela sua muita muzica, como pela sua extensão ; logo, a
medição latina, por inda mais extensa, muito melhor se ac-
comodaria á ambição de espaço em que os poetas tantas
vezes laboram.
31 ―

Outra consideração não despicienda : ao mesmo tempo


que todos os nossos outros metros são obrigados a numero
invariavel de syllabas, estes novos , pela liberdade de en-
tremear ad libitum arremedos de dactylos e espondeus , são
susceptiveis de muito maior folego . O hexametro póde con-
star de treze, quatorze, quinze, dezaseis, ou dezasete syl-
labas ; isto é : quatro syllabas mais que o opulento alexan-
drino; e o pentametro de doze até treze ou quatorze sylla-
bas . Mas deixando explicações theoricas , vejamos um fra-
gmento de uma tentativa feita por poeta devidamente ver-
sado no latim :

Hexametros

A bruma do alto mar some ao longe o Real foragido .


Chora-o de pé na torre a constante, a miserrima Dido .
Na tormenta cruel que lhe agita as turbadas idêas ,
Enêas brilha só ; triste Dido , o teu mundo era Eneas!
E Enêas vai cortando (impia sorte! ) as undosas campinas ;
superna mão lhe aponta entre nevoas as plagas latinas .
Nada espera nem vê, se interroga o cerrado futuro ;
se inquire o que la vai ... só vê Troia abrazada no escuro.
O marulho do Oceano os rugidos do incendio arremeda;
e os síbilos do vento o estralar da fatal labareda .
E olhando além Carthago a sumir-se entre as sombras da tarde,
em gemidos exhala as profundas saudades em que arde.

&c. & c. &c.

O mesmo pensamento em
disticos, ou parelhas de hexametros
e pentametros

A bruma do alto mar some ao longe o Real foragido .


Pranteia em pé na torre a lamentosa Dido.
No rude turbilhão que lhe agita as turbadas idêas ,
só o vê; triste Dido, era o seu mundo Enêas .
E Enêas vai cortando (impia sorte ! ) as undosas campinas ;
mão superna lhe aponta as regiões latinas .
Nada espera nem vê, se interroga o cerrado futuro ;
se inquire o que lá vai , vê Troia a arder no escuro.
32 -

O marulho do Oceano os rugidos do incendio arremeda ;


e o uivar do largo vento imita a labareda.
E olhando além Carthago a sumir-se entre as sombras da tarde,
em gemidos exhala o acerbo amor em que arde.

&c. &c. &c.

Julio de Castilho .

Se as amostras que deixamos transcritas lograrem a


fortuna de persuadir aos espiritos não hospedes no latim
que a novidade pode ser prestadia, a esses rogamos que
ponderem que immensa facilitação não encontraria para o
seu trabalho n'estas amplas formas quem emprehendesse
dar á nossa litteratura os grandiosos poetas romanos ! E'
ponto que vale a pena de ser meditado.

30 de julho de 1871 .

CAPITULO IV

VERSOS AGUDOS , GRAVES E ESDRUXULOS

Já dissemos o que se entendia por palavras agu-


das, palavras graves e palavras esdruxulas : se a
palavra ultima de um verso qualquer é aguda , agu-
do se nomeia o verso; se grave, grave; se esdruxula,
esdruxulo ; do que resulta que os versos de duas syl-
labas pódem deitar até tres e quatro; os de tres até
quatro e cinco ; os de quatro até cinco e seis ; os de
cinco até seis e sette; os de seis até sette e oito ; os
de sette até oito e nove; os de oito até nove e dez;
os de nove até dez e onze ; os de dez até onze e doze;
--- 33

os de onze até doze e treze; os de doze emfim até


treze e quatorze .

Dos versos graves em geral

A grande maioria dos vocabulos portuguezes são


graves; d'aqui vem que em todas as onze medidas
os versos graves são os mais faceis e obvios , e os
mais constantemente seguidos por todos os poetas .
Por esta mesma razão talvez , de ser esta cadencia,
de uma longa, seguida de uma breve, aquella a que
o nosso ouvido anda mais affeito até na prosa , nos
parece o verso grave , o mais digno do seu nome, o
menos affectado , e o mais decente ou unico decente
para os assumptos heroicos , tragicos , philosophicos
e didacticos; pelo menos estão elles de posse imme-
morial d'estas e de quantas materias nobres a poe-
sia mette em si.

Dos versos agudos em geral

Os versos agudos , pelo seu modo secco e esta-


lado de acabar, sem elasticidade , sem vibração, se
assim o podemos dizer , têem o que quer que seja
de ingrato ao ouvido; seriam insoffriveis , se alguem
se lembrasse de nol-os dar enfiados aos centos e aos
milheiros, como os graves nos apparecem, sem nos
cançarem; demais, por isso mesmo que os vocabu-
los agudos são menos frequentes, d'ahi tiram os ver-
sos agudos um quid de exhibição e exquisitice , que
não parece frisar senão com as idéas extravagantes ,
comicas, brutescas ou satyricas . Correi os sonetos de
Bocage, poeta que no tocante a decencia, a gosto in-
stinctivo, e a incorruptivel delicadeza de ouvido , se-
3
34 -

remos sempre obrigados a citar como auctoridade ;


em todos os seus sonetos não encontrareis um sé-
rio com um só verso agudo, ao mesmo tempo que
jocosos e mordazes , todos em versos agudos , encon-
trareis muitos .

Dos versos esdruxulos em geral

As palavras de duas syllabas breves depois de


uma longa , excedem tanto em musica aos termos só
graves, como os graves excedem aos agudos; e é is-
to o que faz com que, sem embargo de serem os
termos esdruxulos ou dactilicos ainda menos fre-
quentes em nossa lingua que os agudos , nem por is-
so se estranham, quando occorrem naturalmente .
Idéas ha talvez, com as quaes a sua toada tem uma
secreta affinidade; v. g .: à idéa de extensão ou gran-
deza ; considerae os superlativos , todos dactilicos:
maximo, optimo, grandissimo, bonissimo, altissimo,
vastissimo, profundissimo, amplissimo, etc.; não é
verdade que o mesmo tom material d'estes adjecti-
vos assim, tem alguma coisa de representativo? Mas
não é só com a idéa de grandeza que os esdruxulos
fraternisam, é tambem com a dos sons apraziveis :
musica, cythara, harmonica , melodica, cantico ; é
com as suavidades, amenidades e enlevo: placido,
tacito, balsamico, odorifero, flórido, sympathico, es-
tatico, lagrimas, delicias, extase, angelico, zephiro,
candido, ceruleo, umbrifero , selvatico, murmurio,
diafano, limpido, morbido; e com as de movimento
e força: trémulo, rapido, indomito, quadrupede, hy-
pogripho, armigero, precipite, vertice, rispido, bar-
baro, frenetico, turbido, impeto, subito, relampago;
é finalmente até com as oppostas ás suaves: horri-
do, lugubre, funebre, lobrego, tumulo, tetrico, ba-
― 35

ratro, palido, mortifero, pestifero , funereo , lapide,


sarcofago, pyramide, horrifico, toxico, espiritos, Lu-
cifer, Eumenides .

Quantos outros vocabulos não poderiam enriquecer ain-


da cada um d'estes catalogos, onde só vão os que affluiram
ao correr da penna ! E quantos mais ainda se uma philoso-
phia artistica houvesse podido presidir á formação da lingua !
Mas as linguas são grandes obras humanas, que o homem não
faz; fazem- se com elle, talvez d'elle tambem; porém, mais su-
jeitas a circunstancias fortuitas, e á fortuna, que á vontade,
ao poder, e á força de ninguem . Mas voltando ao assumpto,
d'onde provirá esta harmonia, se, como cuidamos, ella existe
realmente entre a natureza do dactilico , e estas tão diversas
naturezas de idéas? Ignoramol- o; a não ser por ventura de que
nesse resvalar por duas breves ao cabo da palavra, nesse re-
pousarmo-nos do esforço, que na syllaba longa fizemos, o nos-
so espirito como que vai seguindo por mais tempo , ainda que
vagamente, o seu pensamento ou affecto; assim como um bar-
co, depois do impulso do remo, voga ainda per si na mesma
direcção; assim como á ave depois do ultimo bater d'azas se
continua ainda o vôo ; assim como ao instrumento sonoro ,
passado o golpe que lhe extrahiu uma nota, só a pouco e pou-
co se vai o som esvaecendo.
Estas são parte das excellencias dos esdruxulos; mas el-
les têem não menos que os agudos um contra , que não será
fóra de proposito assignalar.

Contra dos esdruxulos

Dissemos que, de serem os vocabulos agudos


menos numerosos que os graves , se seguia , o não
poderem sem estranheza empregar- se, tanto como
os graves, no final dos versos ; ora sendo os vocabu-
los esdruxulos menos frequentes ainda que os agu-
dos, segue-se, e pela mesma razão, que o seu em-
prego em remate de versos , deve ser muito raro.
Uma serie de versos esdruxulos sem interrupção ,
ou com poucas interrupções, tem um ar desnatural,
36

affectado, exquisito, e que facilmente degenerará em


ridiculo.

Nos dityrambos do nosso Antonio Diniz da Cruz, e nos


dos outros Arcades, até Belchior Curvo Semedo, apparecem
os Kyrios de esdruxulos com a intenção de caracterisar o de-
lirio e enthusiasmo da embriaguez .
Todos sabem o effeito que produz em doutos e indoutos
aquelle trecho de impostura charlatã muito de industria posto
por Antonio Xavier no seu entremez de Manoel Mendes En-
xundia, Senhor Doutor, eu tenho umas casas na ilha do
«Pico; e maquinava construir-lhe um passadiço cubico para
«outras que possuo no Baltico; porém, como entre umas e ou-
tras ha terrificos de diversos arbitros, por isso eu não em-
«prehendo o trafego sem primeiro saber se transgrido as leis
juridicas.» Outra causa concorre talvez ainda para o ruim
effeito dos muitos esdruxulos accumulados, que é a supera-
bundancia de dactilicos que a technologia das sciencias, mór-
mente das naturaes, vai tomar ao Grego e ao Latim, com que
a linguagem dos seus mais sisudos cultores, e sobre tudo, a
dos seus charlatães e contrabandistas, faz nos ouvidos de to-
das as pessoas não iniciadas, uma impressão de cousa phan-
tasmagorica, nebulosa , e só inventada para empalhar e diver-
tir.

PROPORÇÃO DOS VERSOS AGUDOS , GRAVES


E ESDRUXULOS PARA O PORTUGUEZ

Do expendido por boa razão se infere: 1.º que


em toda e qualquer especie de metro são os versos
graves que devem predominar; 2. ° que, sendo es-
tylo serio e grave , e a versificação solta, os agudos
devem ser excluidos , salvo em algum rarissimo ca-
so, em que se empreguem intencionalmente para ef-
feito onomatopico ; (Onomatopéa se chama uma es-
pecie de representação da idéa, pelo som material
37 -

da palavra; trovão , mar, truz, trom, ai, ciciar, re-


tumbar, murmurio e murmurinho, ribombar, preci-
picio, sussurro, estoiro, baque, relampago , vortice,
são onomatopéas) ; 3.º na poesia rimada os agudos
caem perfeitamente, sendo postos com symetria;
mórmente se com elles se fecham á italiana os dois
ramos parallelos de uma estrophe grave :

Oh que aspérrimo Dezembro!


Treme o frio em cada membro ,
se cogito, se me lembro ,
do que lá por fóra vae!

Pelos gelos da vidraça


olho a rua; ninguem passa,
mais que o vento , que esvoaça
sobre a neve , e neve cae!

4.° os esdruxulos entre versos soltos graves , mui-


tas vezes se empregam com felicidade, e com gran-
de effeito onomatopico; entretanto o seu uso deve
ser sobrio e discreto, posto que não tão restricto
como o dos agudos ; 5.º os esdruxulos em poesia ri-
mada e séria deverão evitar- se como consoantes , mas
nos versos soltos que formam intervallo aos rima-
dos, cabem elles peregrinamente, uma vez que se
colloquem com symetria e não ao acaso :

Entrae, ruins espiritos,


no lume eterno e fosco!
Espiritos angelicos , I
vós ficareis comnosco ;
38 -

dareis c'oas azas candidas


abrigo ao vosso irmão !

Vós sois os primogenitos


de todo o innocentinho;
para entre nós trouxeste- los
do céo, seu patrio ninho;
no valle pois das lagrimas
lhes dae consolação .

CAPITULO V

DOS METROS SIMPLICES E COMPOSTOS EM GERAL

As onze variedades de metros , que já deixámos


especificadas, a saber : de duas syllabas até doze,
pódem dividir-se em duas classes ; metros elemen-
tares ou simplices, e metros compostos ; á primeira
d'estas classes pertencem os versos de duas sylla-
bas, os de tres, e os de quatro; os metros d'ahi por
diante são já compostos, isto é, cada um d'elles é
reduzivel a dois ou mais metros simplices.

Este conhecimento analytico, e o exercicio que o princi-


piante fizer de decompor os metros da segunda classe em me-
tros elementares, afinando e habilitando singularmente o ou-
vido, o farão chegar em pouco tempo a uma precisão e cor-
recção metrica, em que poetas aliás de merito muitas vezes
falham .
39

Composição dos versos de cinco syllabas

Cada verso de cinco syllabas consta de dois ver-


sos; o primeiro de duas , e o segundo de tres. Exem-
plo:

O inverno que importa


se o fogo em meu lar,
fechada esta porta,
nos vem alegrar!

1 2
Oin-ver
1 2 3
no quim-por ... ta
2
sio-fo
1 2 3
goem -meu-lar
1 2
fe-cha
1 2 3
daes-ta-por ... ta
1 2
nos-vem
1 2 3
a-le-grar

(entenda-se bem que fallando aqui de metro, não cu-


ramos da integridade das palavras, mas sómente de
som musico, isto é, de numero e pausas . ) Outras
vezes , ainda que muito mais raras , poderá esta mes-
ma medida ter por primeiro elemento as tres sylla-
40

bas, e as duas por ultimo; entretanto os melhores


versos de cinco syllabas são os de duas e tres.

Composição do metro de seis syllabas

De quatro modos se póde este metro desmem-


brar; em tres metros de duas syllabas, ou em dois
de tres syllabas , ou em um de duas e outro de qua-
tro, ou em um de quatro e outro de duas . Felizes
sem rivaes : reduz-se a tres metros de duas sylla-
bas:

2
Fe-li
1 2
zes-sem
1 2
ri-vaes

Bellas sem artificios: contém dois de tres sylla-


bas cada um :

1 2 3
Be-llas-sem
1 2 3
ar-ti-fi ... cios .

Que em dita me egualaes: dá um de duas e ou-


tro de quatro :

Quiem- di
1 2 3 4
ta-mi-gua-laés .
44

Salve florinhas simplices: póde dar um de qua-


tro syllabas e outro de duas:

1 2 3 4
Sal-ve-flo-ri
1 2
nhas-sim... plices .

Os melhores versos de seis syllabas são os que


se reduzem a tres metros de duas syllabas; entre-
tanto todos os outros são bons , e mesmo para varie-
dade é conveniente entremearem-se de todos os qua-
tro padrões . Os menos bons porém sempre são os
de tres e tres syllabas.

Composição dos metros de sette syllabas

O verso de sette syllabas admitte muito variadas


composições; ora se divide em um metro de quatro
syllabas e outro de tres: Triste do meu coração.

1 2 3 4
Tris-te-do - meu
1 2 3
co-ra-ção,

ou em um de tres e um de quatro : Respirava a sua-


vidade.
1 2 3
Res-pi-ra
2 3 4
va-sua-vi- da...de,

ou em tres metros, o 1.º de duas , o 2.º de duas , e o


3. de tres: Cansou-me assás: vés a campa?
42

1 2
Can-sou
1 2
mea-ssás:
1 2 3
vês-a-cam...pa?

ou em tres metros , um de tres , outro de duas , e ou-


tro de duas: Uma tocha côr da noite.

1 2 3
U-ma-to
1 2
cha-côr
1 2
da-noi...te.

D'estas quatro composições as melhores são,


quatro e tres syllabas; tres, duas e duas syllabas;
tres e quatro syllabas. Os italianos só por milagre
deixam de pausar na syllaba terceira ; entretanto
num poema de versos setisyllabos não só é commo-
do para o auctor, mas agradavel ao leitor, que os
haja de todas as contexturas .

Composição dos metros de oito syllabas

O metro de oito syllabas, póde- se dizer, que


ainda não é usado em portuguez. Nada ha talvez es-
cripto nelle , afóra uma ou duas tentativas de José
Anastacio da Cunha , que por ventura o estreou, e
uma ou duas minhas , sem continuação, nem imita-
dor; razão porque a sua harmonia se não acha ainda
devidamente fixada, nem o ouvido nacional por ora
se lhe ageita . Todavia quando mais e melhor culti-
43

vado, este metro, a julgar-mo-lo pelos seus elemen-


tos, e pelo que os francezes d'elle tem chegado a fa-
zer, póde vir ainda a ser muito apreciado.

Compõe-se elle de dois versos de quatro sylla-


bas: Fatal doença : golpe fero .

1 2 3 4
Fa-tal-do-en
1 2 34
ça-gol- pe-fe ... ro,

ou de quatro de duas syllabas ,

1 2
Fa-tal
1 2
do-en
1 2
ça -gol
1
pe-fe ... ro ,

ou um de duas e outro de seis: Morrer! e sem ao


meu encanto.

2
Mo-rrer
1 2 3 4 5 6
e-sem-ao-meu-en-can...to ,

ou de um de tres , outro de tres , e outro de duas :


Terno amor que me faz feliz.

1 2 3
Ter-noa-mor
44

1 2 3
que- me-faz
1 2
fe - liz ,

ou finalmente de um de duas, um de tres, e outro


de tres: Um Deus, que ha soffrido, e triumpha.

1 2
Um-Deus
1 2 3
queha-so-ffri
1 2 3
doe-tri-um... pha.

D'estas cinco variedades as mais apraziveis são ,


a de dois , tres e tres ; a de dois , dois , dois , e dois;
e a de quatro, e quatro. O rhythmo das outras duas
é apenas perceptivel .

Composição do verso de nove syllabas

O verso de nove syllabas, inquestionavelmente


bellissimo , compõe-se de tres metros de tres sylla-
bas cada um: Tu és Venus, e Deusa da lyra.

1 2 3
Tu-és-Ve
1 2 3
nus-e-Deu
1 2 3
sa- da-ly ...ra.

Qualquer outra composição deturparia esta me-


dida.
45

Composição do verso de dez syllabas

UNIVERSITY
LY
N
Este verso , denominado tambem italiano , e por

MICHIGA
LIBRARI
antonomasia heroico , é de grande formosura, de suf-
ficiente grandeza para abranger pensamento, e sus-
ceptivel de grande variedade .

OF
A sua pausa constante e infallivel é (sabido está)
a da syllaba decima, mas além d'esta tem mais uma
obrigada, que é a sexta :

6 10
As armas e os barões assignalados;

ou faltando a sexta , a quarta e a oitava:

8 10
Nise formosa, como as graças pura.

Compõe-se o verso heroico ou de um metro de seis


syllabas, e outro de quatro , como :

1 2 3 5 6
As-ar-mas-eos-ba-rões
1 2 3 &
as-sig-na-la ... dos ,

ou de um de quatro, outro de quatro e outro de


duas , como :

D'Africa as terras, do Oriente os mares.

1 2 9 3
D'A-fri-cas-te
2 3 4
rras-doo-ri-en
46 -

1 2
teos-ma...res;

ou de cinco metros de duas syllabas cada um :

Prazeres socios meus e meus tyrannos.

1 2
Pra-ze
1 2
res-so
1 2
cios- meus
1 2
e-meus
1 2
ty-ra ...nnos ;

ou de um de duas, um de quatro, um de duas, e


um de duas:

A Rita capataz de femeas chóchas.

A-Ri
1 2 3
ta-ca-pa-taz
1 2
de-fe
2
meas-chô ...chas ,

ou de tres, tres e quatro :

Quando amor por meu mal me perseguia.


47

2 3
Quan-doa-mor
1 2 3
por-meu -mal
1 2 3 4
me-per-se-guia .

Todas estas composições são boas, mas as melhores


de todas serão sempre aquellas , em que maior nu-
mero das supra-indicadas pausas se encontrar .

Ha ainda duas variedades de verso heroico, não sem bons


exemplos em alguns poetas italianos, e alguma vez, ainda que
rara, imitada pelos nossos; mas que os ouvidos melindrosos
condemnam como inadmissivel : a primeira consta de um me-
tro de duas syllabas, um de cinco , e um de tres: A ferrea pre-
cipitada bigorna.

A-fe
1 2 3 4 5
rrea-
a-pre-ci-pi-ta
2 3
da-bi-gor...na;

a segunda consta de um metro de quatro syllabas , um de tres,


e um de tres:

A triumphante vermelha bandeira.

1 2 3 ↓
A -tri-um -phan
1 2 3
te-ver-me

lha- ban-dei ... ra.

Tal composição é frequentissima nos versos francezes d'esta


medida, o que torna para nós summamente prosaica a lição
dos seus poemas decassyllabos.
Penso não obstante que um pequeno poema em nossa lin-
gua armado todo de decassyllabos pausados na 4. , 7.ª e 10.* ,
- 48 ―

poderia sair muito aprazivel e sobremodo accommodavel ao


canto. Vale tanto mais a pena de se experimentar quanto o
bom resultado é quasi infallivel .
O verso heroico , quando bem feito, sae de tal maneira
bello na nossa sonorosa e musicalissima lingua, que dispensa
e desdenha o arrebique dos consoantes, ao mesmo passo que
todos os outros metros mais ou menos o requerem.

Composição do verso de onze syllabas

O verso de onze syllabas , a que chamam de arte


maior , consta de dois metros , um de cinco syllabas ,
outro de seis:

Da serra de Cintra, por Deus enviado.

1 2 3 4 5
Da-se-rra-de- Cin
1 2 3 4 5 6
tra-por-Deus -en-vi-a ... do ,

ou de um de duas syllabas , e tres de tres :

1 2
Da-se
1 2 3
rra-de-Cin
1 2 3
tra-por- Deus
1 2 3
en-vi-a... do .

Os mais perfeitos são aquelles que tem, como se


― 49 -

acaba de ver, pausa na segunda syllaba, na quinta ,


na oitava, e na decima primeira:

2 5 8 11
A ver-vos Rei alto cabeça guerreira .

Admittem-se ainda, posto que parcamente, entre-


sachados com estes, alguns tendo só a quinta pau-
sa, a oitava, e a decima-primeira, isto é, faltando-
lhes das duas a segunda :

11
Té que alfim aos d'elles juntando os seus fados.

Composição dos versos de doze syllabas

O verso de doze syllabas compõe- se de dois de


seis:

«Pobreza eu te agradeço, o honrado velho diz.

1 2 3 5 6
Po bre zaeu tea gra de
2 4 5 6
coohon rra do ve lho diz .

Recordado o que dissemos , tratando do metro de


seis syllabas, tem-se quanto poderiamos agora di-
zer a respeito d'este, pois se compõe de dois d'a-
quelles .
Para todas as outras qualidades de versos com-
postos não será fóra de proposito advertir, como de
leve o tocámos ácerca dos settissyllabos , que é bom
50

variarem-se as composições a fim de se evitar a mo-


notonia, sobre tudo em composições extensas 1 .
Cabe advertir por precaução, que muitos, e não
só principiantes , facilmente erram a medida dos ver-
sos de doze syllabas , por suppôrem que sempre que
tenham dois versos de seis syllabas terão um de do-
ze; não é assim ; requer- se indispensavelmente que
se a ultima palavra do primeiro é grave , a sua final
breve se perca, elidida em outra vogal, por onde co-
mece a segunda parte .

Ao verso de doze syllabas chamam alexandrino, e tam-


bem francez; alexandrino, porque um antigo poeta Alexandre,
de Pariz, deixou neste metro um poema intitulado Alexandre
magno; e francez porque entre os francezes é elle o heroico,
como o de dez syllabas o tem sido em Portugal, Castella, e
Italia, como entre os Latinos e os Gregos o fôra o hexâmetro.
As Epopéas, Tragedias e Comedias de França, quasi todas
em alexandrinos são escriptas, e além d'esses poemas maxi-
mos, grandissima parte dos de menor vulto. Com razão o
apreciam elles assim. Surda e anti-musical a sua lingua, mas
necessitando em poesia de uma medida, que por sua exten-
são abrangesse maior summa de idéas, sommaram dois ver-
sos de pausas assaz constantes, para a conseguirem; se o seu
verso heroico se partisse, como o nosso, em porções deseguaes,
deixaria de ser reconhecivel; sem passar a ser prosa, deixa-
ria de ser verso.
Não será facil atinar com a razão porque um verso mais
espaçoso, que todos os outros, por consequencia mais capaz
de pensamento, e com uma partição symetrica, o que para o
espírito de quem os faz, e para o agrado de quem os lê é ain-
da uma vantagem, tem sido até hoje tão escassamente culti-
vado em nossa lingua. Não dizemos que se proscreva o nosso

(1) Nesta parte, andou, a nosso ver, mal aconselhado o snr. Decou-
dret no seu livrinho de rithmica franceza. Alli se exige que todos os ver-
sos de um poema tenham rigorosamente as mesmas pausas. Juntai lá
mais essa difficuldade a tantas outras com que já se vê abarbado o pocta,
e dir-me-heis se fica sendo possivel, senão por milagre, o fazer poemas
de valia, sobretudo longos. Esse presumido prazer, e prazer frivolo, dos
ouvidos, sabiria pago muito caro. Nas poesias do proprio author do alvi-
tre temos nós a prova d'isso.- Todo o ponto está em que, das fórmas
permissiveis a cada metro se não tomem senão as melhores na conformi-
dade com o que temos vindo indicando até aqui.
51

heroico para dar entrada ao peregrino; mas que mal haveria


em o cultivarmos em mais abundancia? O soneto, por exem-

ITY
plo, em alexandrinos, como os francezes, porém rimado á nossa

ES
N
moda, e todo grave, e feito como cá se sabe fazer, não seria

MICHIGA
pelo menos tão bom como o de versos de dez syllabas? e não

UNIVERS
LIBRARI
poderia ser ainda melhor com o accrescimo de vinte oito syl-
labas, em que o talento necessariamente se alargaria?
Para amostra eis - aqui um de auctor, que lhe não parece
dos mais afeiçoados. Não é bom, mas é do Abbade de Jazen-

OF
de, que tambem pela bitola usual os não fazia dos melhores.

Musas deixai -me em paz, que a heroica harmonia,


com que adornaes de novo a lingua portugueza,
dos rudes labios meus mettida na dureza,
em vez de consonancia horrores causaria.

Do engenho mais feliz que occupe a valentia


metro, que de um heroe tem nome e tem grandeza;
que eu para me surrir de alguma louca empreza,
nos numeros da Patria encontro a melodia.

Mas se vós pretendeis com temerario intento


lançar do sacro monte aquelles versos fóra,
que fazem immortal o luso atrevimento;

que conduzindo o Gama ás regiões d'Aurora,


lhe são da gloria sua eterno monumento;
musas, se tal quereis...... fique- se o Pindo embora.

Eis -aqui outro soneto egualmente alexandrino:

Á INSIGNE ARTISTA
A SENHORA ERSILIA AGOSTINI
CANTANDO NA OPERA
I CAPULETI E MONTECHI
NO REAL THEATRO DE S. CARLOS DE LISBOA
a 18 de Abril de 1853
SONETO
De Romeu e Julieta ao memorando fado,
no amor e no infortunio exemplos sobre-humanos,
52

devia -se um cantor, gigante e coroado:


foi Shakspeare, o rei dos tragicos britanos.

Para roubar-lhe a lyra o cantico inspirado,


seu fogo, sua dor, seus intimos arcanos,
foi preciso um Romani; o genio aviventado
de todo o immenso ardor dos ceos italianos.

Eis duplice tropheo de glorias opulento!


Accresce, porque excelso explenda a toda a parte,
a Romani, um Bellini; ao portento, um portento.

Mas eis portento novo, oh! natureza! oh! arte!


para c'roa a Bellini, e c'roa ao monumento,
reune Ersilia os dons que o céo por mil reparte.

Depois que nós, por inteiramente convictos do prestimo e


das excellencias dos alexandrinos nos entregámos desengana-
da e abertamente ao seu grangeio e successivo aperfeiçoa-
mento em portuguez, muitos dos nossos mais bem nascidos
poetas o tomaram tambem a si e o tem já na verdade subido
à grande apuro, sendo já hoje facil prever que dentro em pou-
co este metro, que tanto se conchega á elegancia da fraze e
do estylo, ha-de pleitear ousadamente preferencias ao nosso
velho heroico, apezar da prescripção da sua posse, até o dei-
xar afinal, não dizemos destruido, nem o desejamos, mas quan-
do menos suplantado.
As objecções que se tem levantado contra o alexandrino
nestes ultimos annos são menos solidas que especiosas.
A primeira, cuja autoria pertence ao Abbade de Jazende
no soneto supracitado, funda-se num mal cabido espirito de
nacionalidade: o alexandrino ― dizem é medida franceza.
Não percebemos a força do argumento. Se o ter sido uma
medida uzada primeiro noutras terras fosse impedimento para
a sua naturalisação em Portugal, teriamos para logo de nos
despedir de todos os metros em que até agora havemos escri-
pto. Se é ponderação patriotica, demos as honras de bons pa-
triotas aos aldeões serranos e semi silvestres, que blasfemam
contra o systema metrico -decimal, e atiram aos rios os pa-
drões das novas medidas; os vapores por mar, pelas vias ter-
restres e nas fabricas hão -de- se tambem injeitar como galicis-
mos; e se a logica apertar muito ha-de-nos deixar descalços e
53

nus a viver por choças e comer raizes. Até onde póde che-
gar a exageração de sentimentos generosos !
Outro contra, consiste em que, se o verso de doze sylla-
bas não é senão dois versos de seis syllabas, cada um não se
póde considerar como verso sobre si, e mais vale escrevel - o
decomposto nos seus dois elementos.
Esta subtileza só poderá seduzir a quem olhar as coisas
pela rama. Ora estae commigo como dizia o nosso Padre Viei-
ra quando se empenhava em que por falta de attenção lhe
não desacompanhassem o argumento.
Em primeiro logar nem sempre que ha dois versos de seis
syllabas se tem nelles um verso de doze syllabas certo, pois,
como já dissemos, se o primeiro dos dois fôr grave, e a sua
syllaba ultima se não elidir, os dois serão certos, mas o ale-
xandrino errado; por outra: não existirá tal alexandrino, mas
sim um aleijão metrico sem nome.
Em segundo logar, ninguem de apurado gosto deixará de
sentir que ler dois versos distinctos e separados não produz
nem ao ouvido nem ao espirito o mesmo effeito , que ler os
mesmissimos dois versos incorporados num, formoso pela sua
unidade, e cheio de nova alma, pelo concerto daquellas duas
muzicas numa só.
Uma comparação trivial fará comprehender perfeitamente
a nossa idéa: apresentae a qualquer pessoa que tenha sede
meia canada de uma bella agua num grande copo cristalino,
e outra meia repartida em dois copos de quartilho . O copo
grande não contém realmente nem mais liquido nem melhor
que os dois pequenos; mas será o mesmo para a sede beber
dum folego a meia canada que os dois quartilhos por duas ve-
zes?
Seria superfluidade insistir mais em coisa tão manifesta.

ADVERTENCIA

Hoje, andados só quatro annos depois d'isto, que na quarta


edição diziamos ácerca do alexandrino, os votos que então fa-
ziamos para que este excellente verso se generalisasse, acham-
se emfim realisados. A custo se encontrará com poeta, quer
portuguez quer brazileiro, que lhe não tenha mostrado prati-
camente a sua predilecção. Mais cabal resposta aos adversa-
rios, não cuidamos que a possa haver.
31 de Julho de 1871.
54 -

CAPITULO VI

Primeiro exercicio metrico

Chegado o discipulo a este ponto de theoria, convem ha-


bituar o ouvido á cadencia dos metros, ou pelo menos à dos
principaes; a saber: do heroico, e do seu quebrado, que é o
de seis syllabas; do de sette, que é tanto em Portugal, como
em Hespanha o popularissimo. Um methodo que para este
fim imaginei, reune á vantagem de extremamente simples, a
de fixar na memoria em muito pouco tempo e para sempre o
rithmo, como o posso affirmar pela experiencia, que tenho
feito em varios alumnos.

Tenha-se uma cantilena para cada especie de


metro, com a qual cada syllaba e cada accento d'el-
le, isto é, cada tempo distincto e cada pausa obriga-
da, se estreme e caracterise rigorosamente .

A toada musical que uma vez ajustou ao verso, para que


foi feita, ficará ajustando sempre a quantos de egual bitola se
The apresentarem, e provando de um modo infallivel o ex-
cesso ou a mingoa dos errados. Chamemos-lhe a pedra de
tocar da metrificação.

Estas cantilenas , que devem ser simplicissimas,


qualquer as pode fazer para seu uso .
A cantilena é muito , mas não é tudo ; quer-se
que, além do ouvido , o tacto mesmo e os olhos ve-
rifiquem a pontualidade metrica . Dois discipulos sen-
tados defronte e ao pé um do outro baterão simul-
taneamente com as mãos abertas: primeiro nos joe-
lhos ; depois cada um com a sua direita na esquer-
da; depois com a sua direita na esquerda do parcei-
ro, e vice-versa; e outra vez cada um com uma mão
na outra; outra vez nos joelhos ; e assim por diante
55 -

sempre pela mesma ordem, até que o numero das


pancadas haja egualado o das syllabas cantadas ; ha-
vendo cuidado de marcar com pancada mais sonora
as syllabas dos accentos metricos , e de pôr um pe-
queno intervallo no fim de cada verso. Os resulta-
dos d'este nada, ou antes d'este recreio , são incal-
culaveis para formar um bom ouvido.

Segundo exercicio metrico

Até aqui tem o estudioso colhido as regras do metrificar;


resta-lhe pratical- as; passar, porque assim o digamos, do exer-
cicio passivo ao activo. Para facilitar e tornar mais rapida, e
por consequencia mais fructifera, esta pratica, convem sim-
plifical- a quanto fôr possivel, abstrahir do que é poesia pro-
priamente dita, para se atêr simplesmente ás formulas pres-
criptas da sua expressão, ao que se póde chamar sua parte
mechanica ou plastica. O pensamento, o affecto, o ideal , muito
mais vasto, muito mais indefinido, e muito menos sujeito a
regras, constitue um estudo á parte, conhecido sob o titulo de
Poetica. As suas difficuldades, são innumeraveis, e algumas
d'ellas immensas. O principiante, que ambicionasse conciliar
o bello do pensamento com o bello da versificação , aspiraria
a uma chimera, e com a ancia de chegar logo ao mais , deixa-
ria de conseguir o menos . Assenhoreae- vos do instrumento :
quando elle vos não oppozer já resistencia, quando o mane-
jardes sem falha, e como que brincando; então, livre já de
uma distracção, que vos preoccupava metade das vossas fa-
culdades, podereis pensar em fantasias de Haydn ou de Mo-
zart: então podeis dar largas aos caprichos da vossa imagina-
ção creadora. Segui o exemplo do pintor : crêdes vós, que o
seu primeiro trabalho foi esse quadro vivo, que vos enleva,
que se admira em toda a parte, e diante do qual os pintores
de todas as edades virão meditar e instruir- se? Enganaes- vos.
Primeiro aprendeu a dar com um pobre lapis algumas rectas
e curvas sem significação; bosquejou parte por parte, mas des-
connexas e mortas as feições humanas, depois compoz a ca-
beça; nella veio já alvorecendo a vida; juntou o corpo e a at-
titude, compoz os grupos, mandou - lhes sentir, e fallar; ás
plantas, que vegetassem; ao céo, que resplandecesse; ás cor-
rentes, que fugissem; á natureza inteira, que sahisse do nada!
56 -

Algum dia fareis o quadro : agora os rudimentos, agora o tra-


cejar, e nada mais.

Começae os vossos trabalhos pelo mais facil dos


metros, o settissyllabo , (a que chamam redondilho
perfeito) . Componde-os de idéas , embora desconne-
xas, até de palavras sem relação grammatical, mas
procurae compol-os com perfeita observancia das
respectivas regras, e o mais melodiosos que vos for
possivel.

Versos nonsenses (sem sentido) denominam os Inglezes aos


exercicios d'este genero, que nas suas escholas fazem para o
latim e para o grego, e de que tiram optimos resultados.

Fazei primeiro versos nonsenses ; depois com


grammatica; depois com pensamento; a final com
poesia e rima . Logo que vos sentirdes senhores
d'esta medida , segui o mesmo processo com o me-
tro de seis syllabas , que é o quebrado ou a primeira
parte do heroico . Do de seis syllabas passae , pelo
mesmo modo, para o heroico inteiro; depois para o
alexandrino; para o de cinco syllabas ; para o de no-
ve; para o de quatro ; para o de tres ; para o de duas ;
para o de onze; e ultimamente para o de oito .

Esta ordem me parece a preferivel, pois entendo que assim


se procede do mais facil para o mais difficil ; entretanto se a
quizerdes inverter, se se vos figurar que os metros, que vão
primeiros nesta escala, não são para vós os mais faceis, ne-
nhuma inconveniencia ha em que os invertaes.
- 57 -

CAPITULO VII

DISPENSAVEL DIGRESSÃO SOBRE A INDOLE DA

LINGUA PORTUGUEZA EM RELAÇÃO AOS METROS

O presente capitulo custou dias de longa, minuciosa, e


cansadissima applicação; mas os corollarios, a que por ella
cheguei, deixaram-me bem pago do meu trabalho . Se eu hou-
vesse tido tanto tempo como boa vontade, esta estatistica de
nova especie, seria muito mais ampla. Mediria dez ou vinte
vezes maior extensão de prosa, posto que na que medi me
parece haver já um rasoavel termo medio; os trechos da pro-
sa que eu medisse não seriam sommados todos juntos indis-
tinctamente, mas agrupados com mais de uma classificação;
por exemplo; mediria á parte o portuguez antigo, o moderno,
e o modernissimo; e á parte, sobre tudo, mediria os diversos
generos ou estylos. O caminho fica riscado e aberto; quem
quizer poderá seguil - o.
Eis-aqui como eu procedi nesta investigação. Tomado
sem escolha um trecho em prosador portuguez legitimo, pro-
curei que versos de doze syllabas se continham nelle. A fim
de que nenhum me escapasse, procurei se começando pela
primeira palavra, e continuando pelas proximas seguintes,
descobria um ; passava a fazer egual diligencia desde a se-
gunda palavra ávante; depois desde a terceira; e assim por
diante, até ao fim do trecho, tomando apontamento do nu-
mero dos versos que descobria; identicamente a respeito do
metro de onze syllabas, e assim até ao de duas. Não deixei de
considerar palavras, para começar por ellas cada medição, os
monosyllabos, artigos, ou conjuncções, ainda que se elidis-
sem. Do pensamento nenhum caso fiz, mas só da fórma ma-
terial em relação ao rythmo; não chamei só versos aos excel-
lentes por sua cadencia; admitti-os frouxos e duros, com sy-
58

néreses, e diéreses, com hiatos e absorpções quasi insoffriveis ;


entretanto sempre rigorosamente metros. Vou associar os cu-
riosos ao meu trabalho.

De Vieira tomei do tomo 1.º dos Sermões, edição de


1679, a columna 1039, etc. , 1.º § do Sermão de Cinzas, a sa-
ber: 125 linhas as quaes comprehendem 508 palavras . De-
ram-me estas:

Versos de doze syllabas 100


» » onze >> 113
‫ע‬ » dez D 122
>> >>> nove >> 54
D » oito >> 221
>> » sette >> 207
>> » seis >> 236
>> » cinco >> 238
>>> >> quatro >> 223
>>> » tres >> 261
>>> » duas 265

Somma, versos . • 2:040

Tomei de Fernão Mendes Pinto, do tomo 13.º da Livra-


ria Classica (1.ª edição) a paginas 5 e 6, os primeiros dois §§,
a saber: 24 linhas, as quaes comprehendem 149 palavras. De-
ram-me estas:

Versos de doze syllabas 19


D D onze >> 46
>> » dez >> 56
>> >> nove 39
> oito 90
» sette >> 62
‫ת‬ >> seis >> 56
D » cinco ‫ע‬ 81
» quatro D 74
>> » tres 64
» » duas 58

Somma, versos . 645


59

Tomei de Jacintho Freire de Andrade, da Vida de D.


João de Castro, edição de Lisboa, de 1703, até ao fim do 1.º

UNIVERSITY
§ do Livro 1.º paginas 1 e 2, 27 linhas, as quaes comprehen-

LIBRARIES
MICHIGAN
dem 173 palavras. Deram-me estas:

Versos de doze syllabas 19


» >>> onze >>> 25

OF
>> » dez >> 78
» » nove » 21
>> › oito >> 83
>> >> sette >>> 93
>> >> seis D 97
>> > cinco >> 102
>> >> quatro >> 84
>> » tres >> 72
» duas >> 84

Somma, versos . 758

Tomei de Sá de Miranda, tomo 2.º, edição de Lisboa, de


1784, no principio do acto 2.º dos-Vilhalpandos - 9 linhas,
as quaes comprehendem 66 palavras. Deram-se estas:

Versos de doze syllabas 20


>>> >>onze >>> 17
>> » dez >> 40
>> > nove » 17
>> » oito >> 45
>> >>sette 40
› >>seis >> 43
» »cinco >>> 31
» » quatro >> 36
>> tres >> 28
» duas >> 30

Somma, versos . 347


- 60

Tomei do Padre Manoel Bernardes, tomo 1.º da Livraria


Classica (1.ª edição) a paginas 18, do artigo- Consolação -as

24328RR≈≈88
primeiras 13 linhas, as quaes comprehendem 70 palavras. De-
ram-me estas:

Versos de doze syllabas 12


‫ע‬ >> onze > 15
> » dez D 33
>>> › nove ‫ע‬ 21
>> » oito » 39
>> › sette >
» › seis D
> » cinco » 33
>> >> quatro >>> 33
D » tres D 39
>>> » duas >> 30

Somma, versos . 341

KANAURUNGK
Tomei de Garcia de Rezende, tomo 10.º, da Livraria
Classica (1.ª edição) a paginas 5, 12 linhas, as quaes compre-
hendem 95 palavras. Deram-me estas:

Versos de doze syllabas 23


>> » onze >> 30
>>> » dez D 52
>> >> nove 15
D » oito D 65
>> » sette D 59
>> >> seis >> 62
» » cinco >>> 52
>> D quatro X 49
1 » tres » 53
>> » duas " 40

Somma, versos . 500

Tomei de Rodrigues Lobo, da— Primavera- edição de


1704, a paginas 3, 13 linhas, as quaes comprehendem 98 pa-
lavras. Deram- me estas:
61

Versos de doze syllabas · 15


» > onze 15
» » dez » 40
* » nove ‫ע‬ 14
>> » oito >> 57
» » sette ‫ע‬ 54
> › seis 56
» cinco 48
» >>> quatro ‫ע‬ 52
» » tres ‫ע‬ 48
> » duas » 45

Somma, versos . 444

Tomei de Fr. Luiz de Sousa-Vida do Arcebispo―edi-


ção de Paris de 1760, tomo 1.º, pagina 1 , as primeiras 10 li-
nhas, as quaes comprehendem 79 palavras. Deram-me estas:

Versos de doze syllabas • 17


‫מ‬ ‫ ע‬onze ‫ע‬ 18
>>> » dez >> 36
09438

«nove >> 16
» oito >>> 45
» » sette 47
» » seis ‫ע‬ 43
> » cinco » 43
>> quatro >> 37
» » tres > 31
» duas 38

Somma, versos . 371

CONSEQUENCIAS DOS FACTOS SUPRA-INDICADOS

1. Consequencia. -A prosa tem harmonia ou numero.


2.ª Consequencia. —A harmonia ou numero da prosa é
variavel.
3. Consequencia.- Cada auctor tem, sem se sentir, maior
queda para certos metros, que para outros. Em cada um dos
oito analysados, eis-aqui a proporção em que se acha esta
tendencia:
VIEIRA PINTO MIRAND
ANDRAD
REZEND
BERNARADES
E LOBO SOUSA

Metros
Versos
Versos

Metros
Metros
Versos
Metros

Versos
Metros
Versos
Metros
Versos
Versos

Metros
Versos
Metros

2265 9
80 5102 45 4
63 8 65 57
7
47
3261 8
51 97 43 43 6 62 56 85
4
-

82

5
238 4 74 7 93 40 39 59 54 4
53
འ པ་ པ་

6236 6
34 10
84 40 8 39 53 52 6 43

3692
8674

8678
4
1223 7 62 4 84 4 36 4 33 5 52 48 2 38
62
62-

221
8
2 58 83 31 5 33 52
10 48 3
47
67
207 56 10 78 3
20 33
10 49 2 45 10 36
122
10 56 3 72 3 28 -2
30 40 10 40 31
42

113
11
46 11 12
25 20 9 21 30
11 11 15 18
11
3
100
12
9 9 9 21
1
9 7 15
11 12 23 12 15 12 17
5
12
9
194 17
11
19
|1
12
|| 2 9 15 9 14 1
96
» >>> >>> >> >>> >> >>>


2
2

de 1 : 238 palavras de prosa, distillado de si 5:446 versos de


4. Consequencia.- Havendo toda a supra-citada massa
AUCTORES
METROS TOTAL
Vieira Pinto Andrade Miranda Bernardes Rezende Lobo Sousa

265 58 84 30 30 40 45 38 590
3 64
261 72 28 39 53 48 31 596
223 74 84 36 33 49 52 37 588
-

238 81 102 31 33 52 48 43 628


236 56 97 43 43 62 56 43 636

23456
7 207 62 93 40 43 59 54 47 605
63 -

221 90 83 45 39 65 57 45 645
9 54 39 21 17 21 15 14 16 197
10 122 56 78 40 33 52 40 36 457
11 113 46 25 17 15 30 15 18 279
12 100 19 19 20 12 23 15 17 225

vSomma
,. ersos 5446
para com os outros, em lingua portugueza, é a seguinte:
metros, acha-se que a proporção em que os metros estão uns
onze differentes medições, distribuidos estes por cada um dos
- 64

5. Consequencia. - Do mappa supra se deduz que : o me-


tro mais natural em lingua portugueza parece ser o de oito syl-
labas; depois o de seis; depois o de cinco; depois o de sette;
depois o de tres; depois o de duas; depois o de quatro; depois
o de dez; depois o de onze; depois o de doze; depois o de
nove.

Com isto fica em parte confirmado, e em parte rectifica-


do, o que a este respeito escrevi no tomo 16 da Livraria Clas-
sica, paginas 129 e seguinte .
6. Consequencia. -Logo os versos mais faceis de fazer
em portuguez, deverão ser os de oito syllabas; depois os de
seis; depois os de sette; depois os de dez; depois os de onze;
depois os de doze; depois os de nove. E não se julgue haver
contradição em supprimirmos aqui do seu logar, os metros de
cinco, tres, duas, e quatro syllabas, pois que ainda que na
prosa abundem taes composições, o versificador acha sempre
no metro curto muito maior resistencia, para ahi introduzir
bom pensamento; difficuldade de si mui grande, e maior se se
adverte em que quanto mais pequeno é o verso, tanto mais
parece necessitar de rima.

7. Consequencia .-O que deixo expresso na consequen-


cia 5. , pois é fundado em auctores todos bem vernaculos,
póde servir de craveira, por onde se gradue, quanto ao nu-
mero e harmonia, a vernaculidade de qualquer escripto por-
tuguez.
O processo é simples e claro.
Decomponde uma sufficiente porção d'esse escripto nos
diversos metros que ella possa dar de si, numerae os versos
de cada especie, e acareae essa numeração com esta.
A concordancia ou discrepancia governarão o vosso juizo
ácerca do numero e harmonia do escriptor, pois é esse um
dote em que geralmente se costuma votar á tôa, e sobre que
todos os dias se disputa tão sem razão como sobre os gostos.
65

CAPITULO VIII

OBSERVAÇÕES SOBRE A MELODIA DOS VERSOS

Acertar um verso não é tudo ; versos ha que ten-


do o numero preciso de syllabas, com as devidas.
pausas, destoam ou desagradam, assim como entre
os bem feitos , uns nos contentam mais , outros me-
nos .

Os versos de Filinto desagradam e martyrisam a qual-


quer ouvido, até sem ser dos melindrosos; os de Camões
commummente satisfazem; os de Bocage encantam ; a estes,
se alguma coisa se houvesse de reprehender seria a sua mes-
ma perfeição excessivamente constante. A maioria de um
poema deve ser versos bons; entre esses devem apparecer al-
guns optimos, mas de involta com os bons e optimos, não só
pódem, senão que devem coar alguns, não rigorosamente frou-
xos ou duros, mas de menos melodia e primor: são como os
escuros na pintura ; como os recitativos na opera; são os in-
tervallos que realçam os prazeres.
Todavia a ambição e diligencia do versificador, e em par-
ticular do versificador principiante, devem levar sempre por
alvo a perfeição maxima; procurae vós sempre os versos bons
que os menos bons, e os ruins por seu pé virão, e talvez até
sem que nelles advirtaes .

Investiguemos pois quaes sejam os principaes


requisitos para o agrado do verso, abstraindo da
idéa, do affecto , do estylo, e da linguagem . De to-
dos estes requisitos, o primeiro é que o verso não
seja duro nem frouxo .
- 66 -

Dos versos duros

Por varios modos póde um verso peccar em du-


reza: duro será, quando muitas palavras de difficil,
ou desagradavel pronunciação, se incluirem nelle;
ou quando a uma palavra finda em consoante, seguir
outra começada por consoante sua inimiga , como:
ao―r, o ― r; como : mar revolto; amor reprehensivel;
o - r, ao - s; como: mais rico; sois rei; o —r, ao —l;
mal real; mil riquezas; etc .; ou quando se fizer sy-
nalepha ou absorpção de um diphthongo ou de vo-
gal longa, em outro diphthongo, ou vogal longa, co-
mo: só eu, formando seu; razão alta, formando ra-
zalta , ou mesmo em breve , de palavra para palavra,
por synalepha; como : só amor , formando samor; já
amava, formando jamava; ou quando por synerese
reduzimos a uma syllaba, as vogaes de duas, que o
uso geral do fallar, manifestamente divide ; como :
1 2 3 1 2 3 4 1 2
dia lo go em vez de di a lo go, Via na em logar de
1 2 3
Vi a na; ou quando monosyllabos fortemente accen-
tuados superabundam , como:

-Mar chão, sol bom, bom ar, á nau serviam ;-

ou quando se dá repetição consecutiva da mesma


consoante, como: do dador; tu tens tempo; — vai
vivo; vicio a que chamam tautologia , ou batologia,
mas que pode passar a virtude quando ajuda a pin-
tar pelo som a idéa, isto é quando é onomatopico.
67

Versos frouxos

Frouxo será o verso quando, para chegar á me-


dida, fôr necessario deixar hiatos , isto é , quando se
não absorver uma vogal , que devêra sumir- se nou-
tra:

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Se eu lhe votoamor e ella foge.-

ou quando o uso é fazer-se synérese , e se não faz:

1 2 34 5 6 7 8 9 10
-Victoria sem par queob teve Annibal.-

ou quando empregamos vocabulo em demazia esti-


rado:

-Se aproveitou de tal misericordia.-

ou quando as syllabas das pausas são fracamente ac-


centuadas :

-Lei não conheço que possa obrigal-a.-

ou quando o accento se põe em palavra , em que o


sentido nos não deixa parar, como:

-Testimunho do meu animo grato.-

Esta ultima clausula merece especialissima attenção. O


desprezo d'ella é talvez o capital vicio e causa de desagrado
na versificação de José Agostinho de Macedo.
68

Versos monophonos

Tambem não contentam aquelles versos , em que


as vogaes não vem sortidas com variedade.

-O termo d'este imperio encheu a terra.-


-Amargas ancias causa amar ingratas.—
--Vi poderios mil cahir no olvido.-

Nesta parte os melhores versos , são aquelles em que


as syllabas contêem maior variedade de vogaes , ou,
repetindo-se alguma , leva de cada vez um dos seus
valores differentes:

Rugindo estoira o mar em brutas serras .

Nize formosa como as graças pura.


Amavel Nize como as graças bella .

Nenhum poeta é nisto mais feliz que Bocage.

Versos cacophonicos

Sobre modo são reprehensiveis os versos que


têem cacophonia, ou som ruim .
De tres sortes póde ser a cacophonia: de torpe-
za, de immundice , e de simples desagrado . Torpeza
quando as extremidades convisinhas de duas pala-
vras produzem um vocabulo indecente:

-Alma minha gentil que te partiste.-

Immundicie, quando de egual reunião, provém um


69

termo repugnante em conversação de pessoas deli-


cadas :

-Em Mecca cada qual se apresentava.-

E será ainda vicio d'este genero o só fazer lembrar


palavra indecorosa:

-Tens-me já dado amor bastantes penas.-

O desagrado cacophonico póde ser ainda de dous


modos; ou quando da continuidade de dois termos
se forma um terceiro e bem perceptivel, sobre tudo
se a significação é desagradavel, ou baixa, como :

Mas morra emfim ás mãos da bruta gente ;

ou mesmo quando, sem formar vocabulo algum , dá


uma combinação pouco bella:

Vendo a sua ré linda el-rei perdoa.

Alguns outros leves defeitos póde ainda haver na versi-


ficação, os quaes por minuciosos se omittem.

CAPITULO IX

Agora vamos fazer uma tentativa, não talvez absoluta-


mente inutil para versificadores, sobre cada uma das lettras
do alphabeto.
― 70

Da lettra—A—

Esta lettra é de todas a mais franca ; de todas a


mais facil na pronuncia . E' a primeira e por muito
tempo a só que proferimos. Os nossos vocabularios
se estream por ella ; o da infancia não tem outra. E'
a expressão natural da admiração, da alegria, do al-
voroço, e da ternura; o sentimento de respeito e en-
thusiasmo para com tudo que é grande, parece que
melhor se exprimirá por termos em que prevaleça
о А.

Ouvi os dois grandes Epicos; Virgilio, e Camões, quan-


do, senhoreados d'estro, propõem ao mundo o objecto, que
pretendem immortalisar.

Horrentia Martis
arma, virumque cano Trojæ qui primus ab oris
Italiam fato profugus Lavinaque venit
litora....

As armas e os Varões assignalados


que da occidental praia Lusitana,
por mares nunca d'antes navegados
passaram inda além da Taprobana:
que em perigos, e guerras esforçados,
mais do que permittia a força humana,
entre gente remota edificaram
novo Reino que tanto sublimaram;

E tambem as memorias gloriosas


d'aquelles Reis que foram dilatando
a Fé, o imperio, e as terras viciosas
d'Africa, e d'Asia andaram devastando:
e aquelles que por obras valorosas
se vam da ley da Morte libertando,
cantando espalharei por toda a parte
se a tanto me ajudar o engenho, e arte, etc.
71

Innumeraveis exemplos analogos se poderiam citar. De-


lille commentando aquelle verso de Virgilio:

-Omnia sub magna labentia flumina terra,—

nota como aquellas desinencias todas em A combinam com a


vastidão e frescura da idéa: Os rios todos que vão manando
por baixo da espaçosa terra.
E ainda Camões :

-Bramindo o negro mar de longe brada


como se désse em vão nalgum rochedo.-

Mas se o A condiz com a magestade, não condiz me-


nos com os affectos maviosos.

Ouvi outra vez Virgilio no introito do mais dramatico li-


vro da antiguidade, o 4. da Eneida :

-At Regina gravi jamdudum saucia curâ


Vulnus alit venis , et cæco carpitur igni.—

¿A terminação da parte feminina nos adjectivos trifor-


mes dos Latinos, e a que em Portuguez lhe corresponde, não
teriam a sua origem numa especie de consciencia instinctiva
da feminidade do A?
¿Não é entre nós o A a suave marca do nome da mulher,
de quantos objectos lhe pertencem, de quantas qualidades se
lhe referem?

Maria formosa, boa, modesta, casta, singela.

Se não é possivel provar que o A se applicou ao femi-


nino, por effeito de um conhecimento previo e philosophico
do seu valor, é pelo menos innegavel que o uso de o ouvir-
mos desde o berço figurar sempre assim nas mais amantes re-
lações, lhe imprimiu, se elle o não tinha já per si , o que quer
que seja de mais namorado e voluptuoso que as outras lettras.

Da lettra- E

A vogal E póde-se haver por uma degeneração


do A; um sem numero de palavras derivadas o pro-
- 72

variam, se para nos convencermos não bastara com-


pararmos os movimentos da boca para formarem um
e outro d'estes sons. Com menor explosão , com me-
nor volume e resonancia , que o A, 0 E parece inca-
paz de valor algum onomatopico, ou representativo,
a não ser para expressar languidez , tibieza , quieta-
ção, e ainda os gozos serenos , que participam d'es-
tas qualidades; o E é de todas as vogaes a menos
distincta, e a menos musica .

E' talvez, sobre tudo, á conta da superabundancia de ee


que a lingua franceza tanto cede em merecimento phonico á
nossa, á castelhana e á italiana.
Assim como do A forte se descae com a voz até ao A
fraquissimo, assim do A fraquissimo se cae, por uma transi-
ção facil, para o E forte, e d'este para o menos forte, e do
menos forte para o fraquissimo, que já no ouvido se confunde
com I; pelo que me parece que o A, o E e o I constituem
uma escala natural, como o O e o U constituem outra.

Da lettra—I—

Se a vogal A , que nos abriu a primeira escala


dos sons , expressa a grandeza e a alegria ; o I, em
que a mesma escala termina, parece convirá com as
idéas de pequenez e de tristeza.

Quanto á idéa de pequenez todos sem custo o reconhe-


cerão; os diminutivos, essa grande riqueza da nossa lingua,
quando o seu uso corre por boas mãos, mas riqueza, que cer-
tos espiritos seccos e sem gosto desentendem, e motejam; os
diminutivos, digo, quasi todos se formam em portuguez pela
addição essencial de um I; flôr, florinha, florita, florica; por-
ta, portinha, portita, portica. Ha ainda no uso familiarissimo
diminutivos de diminutivos, que se formam pela addição de
um novo I ao Ijá posto; diminutivo de pequeno , pequenino;
diminutivo de diminutivo pequenino, pequenininho, ou pe-
quenichinho, ou pequirrichinho, ou pequerruchinho; e casos
ha em que ainda se chega a uma terceira distillação de pe-
73

quenez, como pequenichichinho, por onde parece evidente


que para o nosso espirito o I sôa naturalmente como signal de
exiguidade. Neste particular havemos que a nossa lingua e a
castelhana levam vantagem ás duas outras de origem latina,
e á latina mesma, pois os francezes formam commummente os
seus diminutivos pela addição do adjectivo petit ao positivo ,
e se algumas raras vezes modificam o substantivo , ou adjec-
tivo positivo, é dando- lhes terminações com as quaes o I nada
tem que vêr; herbe, herbette, bergère, bergeréte, Jeanne, Jean-
nette, Louise, Louison; oiseau, oison; vieux, vieillot. Os italia-
nos fazem outro tanto a seu modo. Os latinos tambem não
aproveitaram o I como designativo da diminuição : os, oscu-
lum; liber, libellus ; puer, puellus; e depois puellulus; labium,
labellus; e de labellus, labellulus. A leftra L parecia supprir-
lhes nisto o nosso I.
Ouvi as mães e as amas extremosas, quando palram com
os seus pequeninos de mama; dir- se -ia que têem para elles
uma linguagem toda miudinha, e toda de II; pelo contrario os
augmentativos não só evitam o I, senão que tendem por sua
natureza para o A, o que ainda confirma a nossa theoria: sa-
bio, sabichão; bebado, beberrão; velha, velhaça ; casa, casarão;
ladrão, ladravaz; linguareiro, linguaraz; bruto, brutaz; e
analogicamente, voraz, roaz, pugnaz , etc.; ás vezes vão tam-
bem para o 0 (e ver- se-ha o porquê quando tratarmos d'es-
sa vogal) cavallo, cavallorio; simples, simplorio; etc.; mas, pro-
seguindo na propriedade attenuativa do I, para a provar cita
muito a ponto Bluteau a Virgilio ; fallando das embarcações,
por cujas gretas com sua delgadeza penetra a agua, diz Vir-
gilio com muito I:

laxis lateruin compagibus omnes


-Accipiunt inimicum imbrem, rimisque fatiscunt.--

Garcia de Rezende, invectivando as pequenezas do seu


tempo , escreve:

Agora vemos capinhas,


muito curtos pellotinhos,
golpinhos, e sapatinhos,
fundas pequenas, mulinhas,
gibõezinhos , barretinhos,
estreitas cabeçadinhas,
pequenas nominasinhas,
74 -

estreitinhas guarnições,
e muito más invenções,
pois que tudo são coisinhas.

Aos objectos tristes e luctuosos accrescenta o já citado


Bluteau, convir a lettra I; do que adduz para exemplo aquel-
les versos, que Virgilio põe na boca de Eneas, no livro 2.º,
preparando -se para contar a destruição da sua patria :

-Eruerint Danai; quæque ipse miserrima vidi,


et quorum pars magna fui..

O mesmo Virgilio na Egloga 1. " , entre os queixumes de Me-


libeu, põe este vcrso :

-Spem gregis, ah! silice in nuda connixa reliquit.-


e estes:

-Non equidem invideo: miror magis, undique totis–


Usque adeo turbatur agris ......

¿Não poderá ser que a terminação da primeira pessoa


do singular dos preteritos recebesse o I, que tanto no latim,
como no portuguez a caracterisa, por ser esta lettra mais con-
forme á magoa e sentimento que naturalmente acompanha a
idéa do que já lá vai ?—amava , amei -vidi, vi-vixi, vivi=
audivi, oùvi.
Camões, deplorando a morte de uma pessoa muito que-
rida, rompe o seu soneto por um verso pausado todo em I:
-Alma minha gentil, que te partiste.

Os seguintes seis versos do mesmo Camões apresentam


ordenados com soffrivel conhecimento os ii, e os aa, e po-
dem ser confirmação do que deixamos considerado.
Verão morrer com fome os filhos caros,
em tanto amor gerados, e nascidos,
verão os Cafres asperos, e aváros
tirar á linda dama seus vestidos :
os cristalinos membros, e preclaros
á calma, ao frio, ao ar verão despidos.
75 --

Da lettra—0

0 0 é na segunda escala das vogaes o que o A


é na primeira; som franco, rasgado, energico, e co-
mo que uma explosão da alma. O chamar, o excla-
mar, por elle se exprimem . Parece ter um não sei
que de varonil e de activo, de forte e imperioso .

Nas boas descripções de tempestades da natureza ou do


animo, de batalhas, etc., quando escriptas por poetas esmera-
dos, observar-se-ha como o O predomina, e com que effeito .

Da lettra

Do som do O se passa tão naturalmente para o do U,


que em todas as palavras terminadas por O breve , este assu-
me o valor de U; como: Santo-Antonio, que se lê como se se
escrevesse Santu Antoniu. O artigo masculino como Use pro-
fere, assim no singular, como no plural ; e no meio dos voca-
bulos tão identico ao valor do U´é muitas vezes o do O, que
faz duvidar na orthographia. Fica logo claro que fallando nós
aqui do valor, e não da figura das lettras, tudo que do U
díssermos, ao O que tiver valor de U se deverá igualmente
applicar.

E' o U um som abafado , que se emitte com a


boca já quasi de todo cerrada. Sumido e soturno
parece convir á desanimação , á tristeza profunda, aos
assumptos luctuosos; sepulchro , tumulo, funebre,
funereo, lugubre, carrancudo.

Ainda a medo de incorrer na censura de minucioso , e


de observador de puerilidades, notarei, que todos os dias as
amas e pessoas indiscretas, quando procuram intimidar aos
meninos, fazendo-lhes vêr côcos, e phantasmas na escuridade,
ou a profundeza de um poço, nenhum outro som empregam
senão o do U, quasi aspirado e prolongadissimo. E aos que
taxassem de futeis os reparos d'essa especie, responderiamos,
76

que, para as investigações que estamos fazendo, as quaes tal-


vez não são de todo inuteis, nenhum guia se póde procurar
mais seguro, que a propria natureza, e que os oraculos d'ella,
mais depressa e mais genuinos se hão de encontrar nos entes
rudes, e sobre tudo na puericia, e na infancia, do que nos es-
piritos em quem a instrucção, e as convenções já tem des-
truido, em grande parte, o primitivo ser.

RECAPITULAÇÃO SOBRE A INDOLE DAS CINCO VOGAES

O A é brilhante e arrojado; o E tenue e incerto;


o I subtil e triste; o O animoso e forte ; o U carran-
cudo e turvo .

Se ousassemos não temer o ridiculo, comparariamos_o


tom do A á harpa; o do E ao machete; o do I ao pifaro ; o do
O á trompa; o do U ao zabumba.

CAPITULO X

DOS DIPHTONGOS E DAS VOGAES NAZALADAS

(ARTIGO NOVO NA PRESENTE EDIÇÃO)

Dando os diphtongos som mais cheio que uma


qualquer vogal só per si , e havendo nas vogaes na-
zaladas muito mais ressonancia que nas vogaes sin-
gelas, claro fica logo, que os diphtongos e vogaes
nazaladas dão ao verso muito maior força. Bem o
tinha Bocage adivinhado para o seu uso. Um só
77

exemplo citaremos ; vão n'elle assignaladas as sylla-


bas em que predominam sons das duas especies :

SONETO

Ao crebro som de lugubre instrumento


com tardo pé caminha o delinquente
Um Deus consolador, um Deus clemente,
lhe inspira, lhe vigora o soffrimento.

Duro nó pela mão do algoz cruento


estreitar-se no collo o réo já sente.
Multiplicada a morte, anceia a mente!
bate horror sobre horror no pensamento.

Olhos e ais dirigindo á divindade,


sobe, envolto nas nuvens da tristeza,
ao termo expiador da iniquidade.

Das leis se cumpre a salutar dureza.


Sai a alma d'entre os veos da humanidade;
folga a Justiça, e geme a Natureza.

Contêem-se nos quatorze versos nada menos de 10 di-


phtongos, e 22 vogaes nazaladas; somma 32 sons fortemente
muzicaes. (1)

(1) Veja-se o que adiante diremos a respeito da consoante M.


78

REDUCÇÃO DA DOUTRINA PRECEDENTE ÁCERCA


DOS SONS OU VOZES DA LINGUA PORTUGUEZA

(ARTIGO NOVO NA PRESENTE EDIÇÃO)

Temos nove sons oraes, ou puros , a saber : -


1.° a forte como na primeira syllaba de casa ; 2. ° a
brando como na segunda syllaba da da mesma pala-
vra; 3.º e forte como em fé; 4. ° e medio com em vê;
5.º e fraco e quasi mudo como na preposição de ; 6.º ·
i como em vi; 7.° o forte como em pó; 8.º o brando
como em grou; 9.º u como em tu.
Além destas vozes oraes temos outras cinco mais
resoantes designadas pelo nome de nazaes ou naza-
ladas que são : -an , en, in, on , un.
Sommam portanto ao todo os sons da lingua por-
tugueza quatorze .
E' claro que fallando dos sons ou vozes não con-
tamos as variedades das outras com que alguns dos
mesmos sons se podem representar, materia essa
que pertence exclusivamente á ortographia, a qual na-
da tem que ver com o assumpto de que tractamos.

FORMULA METRICA EM QUE VAE CIFRADA TODA A


CLASSIFICAÇÃO DAS VOZES E INFLEXÕES
DA LINGUA PORTUGUEZA

Os elementos da falla
da nossa e das mais nações
dividem-se em duas classes
que são vozes e INFLEXÕES.
Nas vozes duas familias
distinguimos bem marcadas;
79 ―

a primeira: ORAES ou puras


a segunda: NAZALADAS .
São vozes PURAS: á á
é é i o ó u;
NAZALADAS : an en in
on un (vae rol nu e cru).
Nas inflexões seis familias
bem distinctas encontraes ;
é GUTURAES a primeira;
e a segunda LINGUAES ;

LINGUO- PALATAES terceira;


a quarta LINGUO- DENTAES;
DENTO-LABIAES a quinta;
a sexta emfim LABIAES.

São GUTURAES gue e q;


são c z j X LINGUAES;
são rr rllh n nh
as LINGUO - PALATINAES.

São LINGUO DENTAES d t;


fv DENTO-LABIAES;
só bp em nos restam
que se chamam LABIAES.

CAPITULO XI

DAS LETTRAS CONSOANTES EM GERAL

Cada um dos quatorze sons , cujo valor acabamos


de considerar, e cada um dos diphtongos ou sons
duplices , é susceptivel de mui variadas modificações ,
segundo as articulações que na mesma syllaba pre-
80

cedem ou seguem , isto é , segundo as consoantes


com que se travam ; ora, assim como o som, a alma
da syllaba, a vogal , é susceptivel de uma especie de
significação vaga, que póde ajudar ou contrariar o
effeito da palavra, assim tambem as consoantes, que
fazem corpo com essas vogaes , tem muitas vezes re-
lações tacitas com taes ou taes objectos conhecidos ,
e fazendo com que nol-os recordemos , d'elles assu-
mem uma tal qual similhança para si .

O exame de cada uma e os exemplos nos farão melhor


comprehender. Advirto que havendo entre as consoantes al-
gumas com identico valor, e fallando nós só d'este, e não da
figura das lettras, nos não deteremos a dizer do C brando o
que alias vai implicito no S brando; nem do S aspero o que
é commum com o Z; nem do C aspero, e do K, o que vai no
Q; o Ph e o F serão reputados como a mesma coisa; bem co-
mo o G brando e o J; o Ch e o X. Do H inicial, e sem valor,
nenhum caso faremos.

Das letras-B, e P

O Be o P, articulações sobre modo similhantes,


e formadas ambas pela separação repentina da ex-
tremidade dos labios , poderão, pelo tal qual estalido
que as acompanha, frizar mui bem com os objectos
em que pouco ou muito houver um soído repentino ,
breve e destacado: em estylo familiar , pinga e pin-
gar ninguem dirá que não sejam onomatopicos .
No mesmo estylo se representa com muita propriedade
pela syllaba pa o estrondo de uma bofetada, e por pum um
tiro. O estampido da granada foi engenhosamente descripto
naquelle bem sabido verso latino:

-Horrida per campos bum bum bombarda sonabat.—

Bomba, zabumba, bombo ou bumbo, como hoje lhe cha-


mam; atabales, ou timbales; baque, aboccar, bicar, picar, api-
81

to, embicar, tropicar, tropeçar, esbarrar, pór, beijo, e como


estes mil outros vocabulos ajudam não levemente a nossa per-
suasão.

Das lettras- C ,

O soido que por estas duas lettras se represen-


ta, é tão facil e natural , que , segundo observa Esca-
ligero, não depende de industria; basta só lançar-
mos um pouco mais fortemente a expiração para se
elle ouvir; é talvez isto, sobre tudo , o que torna o
seu uso frequentissimo.

Se Pindaro o evitava, devia de ser isso ou por particu-


lar antipathia, difficultosa de explicar, ou porque entre os
seus Thebanos se pronunciasse mui diversamente do que en-
tre nós .

Tem a natureza animal e a inanimada sons que


arremedam com muita propriedade o S, taes como:
o silvo da serpente ; o siciar da seara ; o assoviar do
vento pela enxarcia ; e o ruído macio da ressaca,
quando o mar arregaça brandamente as fraldas de
cima das areas declives de suas praias. E' logo ma-
nifesto que onde houvermos de imitar estas ou si-
milhantes vozes da natureza , o emprego de palavras
com S ou C ajudará material, mas efficazmente, a
representação da idéa. Os exemplos são triviaes em
todos os poetas de alguma conta .

Entendido está, que não fallamos ainda aqui do S, final


dos pluraes portuguezes, nem do Z, final de alguns vocabulos,
pois que soam com o valor de X; como : em casas, que soa
casax; em homens, que soa homenx; e em paz, que soa pax
taes SS e ZZ serão comprehendidos no que houvermos de di-
zer do X e do Ch.
― 82

Das letras - D, e T-

Proferindo-se ambas estas lettras quasi do mes-


mo modo, que é ferindo subitamente com a ponta
da lingua os dentes superiores, identico fica sendo o
seu effeito artistico na composição dos vocabulos;
effeito muito analogo ao do B e P, de que já trata-
mos ; só com a differença, que sendo a pancada da
lingua nos dentes no De T mais forte que o estali-
do com que os labios se despegam no B e no P,
tambem a sua representação fica sendo por isso mes-
mo mais energica. Por De T se representarão , pois ,
com assaz de naturalidade as pancadas seccas e for-
tes , ás quédas repentinas e duras, os tropeços e as
topadas violentas, os tiros e as explosões : d'ahi vem
em parte a propriedade das palavras : martellar , dar,
bater, truz, traz, triz, trovão , tambor, tantan, as-
sentar, açoitar.

Tres passos de Virgilio , grande sabedor e pratico d'estas


virtudes e effeitos das lettras, darão luz de sol ao que dize-
mos. Pinta um embate de cavallaria, e diz:

.... prefractaque quadrupedantum


pectora pectoribus rumpunt ....

No livro 8.º descreve uma carreira de cavallaria e põe :

Quadrupedante putrem sonitu quatit ungula campum.

Pintando a officina e trabalhos dos Cyclopes :

..gemit impositum incudibus antrum.


Illi inter sese multa vi brachia tollunt
in numerum, versantque, tenaci forcipe massam.
83

Quereis mais? ouvi Camões:

Cabeças pelo campo vão saltando,


braços, pernas, sem dono, sem sentido,
e d'outros as entranhas palpitando ,
pallida a côr, e o gesto amortecido;
já perde o campo o exercito nefando;
correm rios do sangue desparzido .

Das lettras- F, Ph, e V-

O soído do F, quer o escrevamos com F, quer


com Ph, e o do V, tão similhantemente se formam
nos labios, que não passam de duas variedades de
uma só e mesma especie; o V, é o F mais aspero, o
F, é o V mais suave . Quanto á representação , am-
bos se pode dizer que tem a mesma, só com a diffe-
rença de mais ou menos caracterisada .
Alguma coisa que lembra estes soídos , se en-
contra realmente na natureza ; reparae no vento que
silva pela frincha de uma porta , ou pela espessura
de um arvoredo, que lhe resiste e o rasga; percebe-
reis o que quer que seja, ora de F, ora de V. O res-
folegar de um folle ; o zoar de um pião em certos
momentos ; o zunido de uma pedra pelos ares ; o zum-
bir de alguns insectos ; o vôo das aves valentes e ve-
lozes ; o murmurinho da prôa , que fende as aguas; o
rugir do fogo, quando em dadas circumstancias se
liberta de uma forte compressão, como em alguns
artificios de foguetaria ; o bufar do gato e das cobras ,
e mil outros effeitos naturaes, se se poderam expri-
mir, ninguem diria que fosse por outras lettras.

D'aqui vem, que por uma predisposição imitativa innata


no homem, um grande numero de vocabulos, destinados a
representar estes ou similhantes objectos, levam no principio,
ou no meio o V, ou o F; como fogo, forja, foguete, valverde,
84

vulcão, faisca, ave, vòo, fender, fôfo, assovio, vento, veloz,


voga, vela, veado, verruma, formão, vassoira, folego, vortice,
fervura, vergasta, esbaforido, farfalhada, etc.

Convém ainda notar a respeito d'estas duas ar-


ticulações , que , pelo esforço com que as pronunciâ-
mos , parecem prestar-se de boa mente a significar
os objectos fortes e resistentes, ou a valentia que ac-
commette e atropella as difficuldades .

D'isto são testimunhos, se me não engano: força, forte,


valente e valentia, activo, vivo, fero, ferro, triumphar, confun-
dir, subverter, fazer, desfazer, vibrar, ferir, aferrolhar, vaga,
vagalhão, vomito, fortaleza, afincadamente, fito, alvo, vagão,
voragem, forja, etc.

Das lettras—G, (com valor de Gue)


do Caspero, do K, e do Q

Em todos estes diversos modos de escrever, não


temos em realidade mais que duas articulações , a
saber: 1.ª G (soando como Gue); 2.ª o Q.
O som d'este Ge do Q tem entre si a mesma si-
milhança de formação e a mesma affinidade, que já
observámos existir entre o C brando e o S, entre o
De o T, entre o Fe o Ve entre o B e o P; tanto
assim , que os etymologos , nas palavras derivadas ,
nos descobrem um sem numero de exemplos da
troca do som Gue em Q, e do som Q em Gue. Um e
outro se dão asperamente e com difficuldade, rete-
zando e curvando a lingua para o pádar, e arrojando
com força a expiração, d'onde resulta convirem am-
bas estas articulações á expressão dos objectos dif-
ficeis , resistentes, escabrosos , e similhantes, como:
agonia, angustia, esgalhar, estroncar, accarretar,
aguentar, agarrar, garrar, engasgar, cortar, conter,
85

enganchar, gato, tigre , arcabuz, lascar, riscar, ras-


gar, agro, acrimonia, inimigo , tronco, barroca, enca-
lhe, acre, gago, guincho, conter, cair, erguer, guer-
ra, vaga, beliscão, furacão, agatanhar, agraço, mala-
gueta, beleguim , briga, afôgo, fincar, arrancar, dis-
cordancia, algaravia, grito, gósma , etc. , etc.

Já se vê, que sendo estes sons ingratos, se devem por


via de regra evitar, mas que por isso mesmo para os casos
a pontados podem servir galhardamente.

Das lettras—G, (com valor de Ge), J, X, Ch


e S, e Z- no final de palavra

Para evitar confusão, á vista de tanta multiplicidade de


lettras, como aqui abrangemos em um só capitulo, advirta-se,
que em todos estes diversos modos de escrever, não ha real-
mente mais de duas articulações, e mui similhantes, que por
isso se reunem, a saber : o G e o Ch; pois que o J se identi-
fica com o G, assim como o X se identifica com o Ch, e com
o S final, como em casas, que soa como se escreveramos ca-
sax, e com o Z final, que tem egual soído , v. g., em capaz,
que articulamos como se escreveramos, capax. Notemos mais,
que dos muito variados valores que o X tem em nossa lin-
gua, só consideramos aqui o primario e natural . Quando fi-
gura de Cs, como em connexo, cabe-lhe o que ponderamos
sobre o Qe sobre o C; quando finalmente vale por Z, como
em exemplo, compete-lhe o que havemos de propôr sobre o
Z. Isto entendido, passemos a examinar os dois valores pu-
ros: Ch e J.

Tanto o Ch, como o J, são , até certo ponto , uma


artificial reproducção de alguns sons da natureza,
e nomeadamente do soído das folhas e das aguas .

Dizia a celebre poetisa franceza M.me Amable Tastu, que


a regalava, e lhe refrigerava a alma, ouvir fallar o portuguez,
posto o não entendesse; porquanto aquella frequencia, e quasi
86 -

continuação dos sons de X, resultante, sobre tudo, dos SS nos


pluraes, lhe fazia ao ouvido o effeito de uma cascata perenne.
A palavra fresco, posto se não orthographe com um ou
com outro signal d'estes, já nos podéra servir de exemplo,
por ter no seu S o valor de X e outro tanto poderamos di-
zer de cascata; mas considerae a eufonia de, chuva, jorro,
chocalhar, chafariz , chafurdar, enxame, chamuscar, cheia, ja-
culação, repucho, chama.

Das lettras-L e Lh-

Ao L, que é articulação de sua natureza mui


branda, não chegámos ainda a descobrir indole al-
guma representativa, a não ser, que a especie de es-
talido, que a ponta da lingua faz para o proferir, ex-
pedindo do ceo da boca, o torna por ventura apto
para significar a acção de quebrar , ou partir, como
na propria palavra estalido; em estalo, estalar; ou
estralar ; martelar, descolar, lascar, alluir , deslocar,
applaudir.

Os francezes parecem attribuir-lhe a mesma virtude : éclat,


éclater, souffleter.

Quanto porém ao Lh, facil é perceber-lhe um não


sei que no som, que muito bem conforma com a
idéa de coisa esmiunçada, ou dividida em miudos,
como: esmigalhar, chocalhar , cascalhar, ramalhar,
baralhar, esgalhar, esbandalhar, escangalhar, ralhar,
batalha, marulho , mergulho, cascabulho, serrabulho,
entulho, engulho, vidrilho, espalhar, ciscalhada,
malhar, talhar.

Quem bem reparar em certa analogia fonica, que se dá


entre Lh e a articulação Ch, de que fallámos, poderá talvez
descobrir na indole peculiar do H por onde explique esta se-
87

mi-coincidencia, esta propriedade que elle parece ter num e


noutro caso para se transformar em soido de liquidos, e de
outros corpos miudos, e facilmente divisiveis.

Da lettra- M

Duas diversas propriedades sentimos n'esta let-


tra; a primeira é de affecto.

Ao revez de todas as outras lettras, esta parece, ainda


que assim não seja, proferir- se tomando a pessoa que falla o
ar a si, em vez de o expedir, e unindo os labios, como para
beijar. Por M se começa talvez em todas as linguas o nome
de mãe, e em amor predomina o M. A palavra amo para os
francezes é o proprio nome da lettra sem nada mais . Em quan-
tas expressões de ternura não figura ella em nosso idioma e
em outros muitos? meu, minha, amigo, amiga, amante, ama-
dor, amado, amada, mano, meiguice, mimo , etc.

O segundo valor é mais acustico . O Mem fim


de syllaba, e principalmente depois de A, O e U, dá
á palavra , uma extraordinaria resonancia, como: re-
tumbar, ribombar, zabumba.

Para fallar com mais exacção, o M umas vezes é consoan-


te, outras mero signal para indicar, no fim de palavra ou syl-
laba, que a vogal que o precede mudou de valor, passando de
simples a nazalada. Aclaremos isto com exemplos :
Nas palavras cama , semente, caminho, gamo, mumia, é
lettra, e lettra labial. Nas palavras, campo, sempre, timpano,
trompa, zumbido, o M nada diz senão que essas vogaes A, E,
I, O, U, passaram a nazaladas.

Das lettras - N e Nh-

ON collocado emfim de syllaba, é como o M; dá


á vogal uma certa resonancia , ou echo; um nazal, que
fez com que os Romanos a appellidassem littera ti-
88 -

niens, lettra que retine , com o que ganham os voca-


bulos um accrescimo notavel de eufonia: tirae ás pa-
lavras, monte, esplendido , vingança, estrondo o N,
e vereis quanto não perdem do seu effeito, e para
aqui vem inteiramente cabida a observação que dei-
xamos feita ácerca do M. Assim como o M, Né
lettra consoante , sempre que se acha anteposto ȧ vo-
gal; e posposto a vogal, nem consoante, nem lettra
é; não passa de signal de que a vogal anterior se
converteu em nazalada. Seguido de H, o N perde o
echo, mas essa perda é por ventura ressarcida pela
secreta virtude , que o Htem para exprimir os sons
de liquido, ou miudeza, segundo já o advertimos.

Vinho é preferivel ao vino dos hespanhoes, e dos italia-


nos, e ao vinum dos latinos; mas o pequenho dos hespanhoes
é preferivel a pequeno.
Não é sem razão que de inho e inha se fez a maior parte
dos nossos diminutivos . Quanto á verdadeira natureza do H,
pede a boa philosophia que o não consideremos como lettra
de valor, mas como um simples signal indicativo de que o N
ou o L que lhe fica atraz, se profere com o seu segundo som,
a que chamam molhado: LH, NH.

Da lettra- R-

Não ha lettra cujo valor imitativo seja tão incon-


testavel e tão universalmente reconhecido como o
do R. Quer fortissimo , como na palavra , rama, quer
só forte como em arma, é formado , quando se pro-
fere, por um tremor na ponta da lingua revirada pa-
ra cima, d'onde vem que mesmo por instincto, se
applica para designar aquellas coisas, que de si lan-
çam algum som duro e tremulo, ou com isso pare-
cido: trovão, raio , artilheria, granada, tiro, retinir,
resoar, ribombar, vibrar, trompa, rufo, carro, car-
89

reira, trote, tremor , horror , rouco , frémito , arrui-


nar, arrazar, arrastar, arrastrar, rabecão , trombe-
ta, rugido, arranco, tropear , quadrupede , relincho ,
corrente, groza , serra , etc.

Versejadores, que nunca sequer suspeitaram prestimo al-


gum individual e significativo em nenhuma das outras lettras,
ouvil - os-heis, chegados a descrever um charco de rãs, ou um
temporal, desabar sobre vós com ridicula affectação um ven-
daval de RR, que por pouco bom gosto que tenhaes , vos fa-
rão quasi tomar teiró com onomatopeias. Posto que de Boca-
ge, não deixam de ser viciosos os seguintes versos; pois que
ahi a arte, que não soube esconder- se, deixou de ser arte.

Ruem por terra as emperradas portas,


das Eolias horrisonas masmorras ,
que d'um fero encontrão rugindo arromba
a caterva dos Euros.

Quanto melhor Virgilio em assumpto identico, e fallando dos


ventos ao sairem da caverna do seu rei !

Quà data porta, ruunt, et terras turbine perflant.


Incubuere mari, totumque à sedibus imis
ună Eurusque Notusque ruunt, creberque procellis
Africus; et vastos volvunt ad littora fluctus.
Insequitur clamorque virum, stridorque rudentum .

Das lettras–Z e S, valendo Z—

São estas articulações as mais affins por sua in-


dole áquell'outra do S, de que já tratamos , só diffe-
rindo uma de outra em que o Sassovia mais do que
zune, e que o Z zune mais do que assovia . Em mui-
tos casos se poderão usar promiscuamente, mas o
soído do Z virá sempre mais bem cabido ás coisas ,
cujo som tiver uma certa aspereza: zunido , zumbi-
do, zurro, bezoiro, zoada, horrisono, zabumba , zum-
zum , zangão, zanguizarra , zarabatana, aza, sanzála,
zás, dezancar, desabar, zorra, azoinado , azoado.
90 -

RESUMO DE TODA A DOUTRINA PRECEDENTE A RESPEITO


DAS CONSOANTES

Tem cada uma das lettras consoantes , pelo ma-


terial do seu proprio som, e relações que se dão en-
tre elle e alguns outros da natureza, um caracter
distincto, que muito póde contribuir para accrescen-
tar ás palavras o seu effeito.
O Beo P exprimem percussão subita; o De o
To mesmo, porém com mais energia; o C com va-
lor de S, e o S , silvo ; o S com valor de Z, e o Z, zu-
nido; o F, e o Ph com valor de F, e o V, os sons
analogos como quer que seja ao bufar dos gatos ; o
G com o valor de J, e o J, o X com o valor de Ch , e
o Ch, e o Se Z finaes , o correr dos liquidos ; o C
com o valor de K, e u K, o Q, e o G com o seu valor
aspero, aspereza , escabrozidade , e resistencia ; o L,
estalido; o Lh esmiunçamento, ou divisão em miu-
dos; o M, affecto mavioso, servindo em fim de syl-
laba para augmentar a resonancia; o R, sons fortes
e tremulos.

CAPITULO XII

DIGRESSÃO

Estatistica dos sons e articulações


na lingua portugueza

Parece-me que, para bem se avaliar uma lingua quanto á


eufonia, seria não só util , mas necessario, averiguar em que
proporção entram nella os sons e as articulações; assim como
91 >

suspeito, que, para a comparação das linguas umas com as


outras, sobremodo seria conducente um similhante inquerito
feito em cada uma d'ellas; mas o trabalho é dos mais fastidio-
sos, e não sem espinhos e duvidas. Emprehendi - o , e fil-o
quanto à nossa, como já se vae ver. Advirto, porém, que não
foi o meu fim contar as vogaes e consoantes que entram, por
exemplo, em uma folha de composição portugueza; qualquer
fundidor de typos, ou compositor de imprensa, poderia dizer
isso; tratei unicamente do que eram valores reaes ; assim, to-
das as consoantes, que soam como singelas, como singelas as
contei; todas as que na pronuncia se omittem, omitti-as; to-
das as que na composição tomam diverso valor, tomei -as n'es-
ses casos para o rol a que esse valor m'as adscrevia ; assim ,
do S entre duas vogaes na mesma palavra, ou em passagem
de palavra para palavra, fiz Z; do Sou Z final, X; pela mes-
ma razão, o E valendo por I, arrumei -o para o I; e o O va-
lendo U, para o U; e o U depois de Qou G, desprezei-o ,
etc., etc. Os trechos, em que se operou, foram colhidos em
diversos auctores; o resultado foi o seguinte :

A · 444 D 133
Am, An, Ä 37 481 X, Ch, e S e Z (finaes) . 133
Ce S 110
E • 338 C (aspero) K e Q 91
Em, En 36 374 M 74
N 67
U • . 272 L 66
Um, Un 9 281 P 62
V 60
Ie Y 204 Ze S (entre vogaes) 49
Im, In • 12 216 G (aspero) . 35
Fe Ph. 33
0 151 B 29
Om, On 9 160 Ge J 16
Nh · 10
R • • 220 Lh . 7
T 136
- 92 -

CAPITULO XIII

AMPLIAÇÃO DA THEORIA DOS VALORES DAS


VOGAES E CONSOANTES

Bem que á à primeira vista pareça que os sons,


singelos ou articulados , não podem representar se-
não sons , já pelo que deixamos considerado e exem-
plificado, se haverá entrevisto a possibilidade de es-
tender o seu uso a objectos, que nenhum som fazem ,
a coisas incorporeas, até a attributos do espirito . E
como? pelas translações . Assim, quem exprimisse o
susto por termos em que predominassem o u e or,
ajudaria pelo som a pintura d'esta paixão ; porque,
ao mesmo passo que o u sympathisa com o pavor, o
r, designativo dos sons tremulos , expressaria figu-
radamente a trepidação das idéas , natural a esta pai-
xão, ou a convulsão, que d'ella resulta nos dentes e
em todo o corpo .

Como se deve usar da theoria precedente

Seria mais que puerilidade, seria empenho de


nescio, ou de louco rematado, querer em um escri-
pto afinar sempre os sons e articulações, isto é, as
vogaes e consoantes , pelas coisas e idéas designa-
das nos vocabulos; tal correlação e correspondencia,
não se dá senão em certos casos . Aproveital- a sa-
gazmente, quando nos cáe debaixo da mão, ou se
nos acha muito ao alcance , é obra de bom engenho,
e documento de instincto poetico ; desviar, porém ,
93

do caminho direito do pensamento , ir arrancar ao


longe, e trazer forçados para a phrase esses meios
accidentaes de effeito, é o mais seguro meio de não
conseguir nenhum, afóra o desprezo e o escarneo .
Negar a realidade e a conveniencia das onomato-
peas, como alguns teem feito, é bruteza decidida ;
querer ser a todo o proposito, e a todo o despropo-
sito, onomatopico, fôra vaidade insensatissima . Nis-
to, como em tudo, é só no meio que está a virtude .

Digressão sobre a composição fonica


das palavras

Facilmente cairá este conselho a quem quer que analyse


bom numero de palavras de qualquer lingua, pois por cada
palavra onomatopica encontrará duzias d'ellas, que não só-
mente o não são, podendo-o ser, senão que os elementos de
que ellas se compõem dão o effeito contrario ao que seria
para desejar. Exemplo: se descarga pinta a sua idéa pelas ar-
ticulações D, X, Q, R, G, a primeira para o estallo do gati-
lho, a segunda para o arder da escorva, a terceira para o re-
cuo ou coice da arma, a quarta para o estampido troante, a
quinta para o zunido aspero da bala e para o golpe; e se
egualmente a pinta pelas vogaes, a primeira surda, a segunda
abertissima, a terceira aberta; —a palavra tiro, com intenção
de representar a mesma idéa, nada pinta pela tibieza do I,
pelo surdo do O com o valor de U, e pela insufficiencia do
seu R brando. As palavras assim malfeitas são, mesmo em
nossa lingua, com ser nesta parte uma das melhores, muito
mais numerosas que as perfeitas. E como deixaria de ser as-
sim? tantos elementos heterogeneos, rudes, casuaes e capri-
chosos, entram na confeição, e successivas transformações das
linguas, que por demais seria procurar nellas um systema
qualquer.
A mais formosa, a mais artistica, a mais facil de aprender
e de conservar, d'entre todas as linguas, e d'entre todas a
mais digna do nome de natural, seria aquella, que, não nas-
cida de outra alguma, se tivesse ido formando por uma razão
superior e constante sobre o reflexivo estudo e reconheci-
mento da indole propria de cada um dos sons e cada uma
94 -

das articulações , colhendo estes elementos em primeira mão


do seio da propria natureza. Essa lingua, se fôra possivel
crial-a , se fora possivel, sobre tudo, mantel -a, teria unidade
admiravel, com variedade summa ; musica, poesia, e clareza
no mais alto grau. As conversações das primeiras familias do
mundo, só nessa ou em mui similhante linguagem se deve-
ram passar . De tal lingua primitiva e primeva alguns des-
connexos e adulterados vestigios se podem talvez ainda reco-
nhecer em cada uma das conhecidas ; e esses vestigios mais
ou menos confusos, não são outros senão os termos onomato-
picos.
Outrem que siga, se quizer, esta risonha utopia; eu não
me atrevo.
Outrem que lance como semente no espirito do genero
humano a idea de um congresso universal, como o de Vol-
ney, para nelle se elaborar, e por elle se decretar uma lingua
universal; esse desiderandum maximo da philosophia, esse
caminho de ferro do entendimento, esse laço de fraternidade ,
que faria de todos os povos um só povo ! Tão alta não é á
missão, nem a auctoridade de um contador de syllabas.

Lingua primitiva

Só annos depois de escripto o que se acaba de ler, e


quando já se achava typographicamente composto e impresso
este leve esboço sobre as onomatopeas, é que tive occasião
de percorrer a admiravel e eruditissima obra de Mr. Court
de Gébelin, Monde primitif, analysé et comparé avec le monde
moderne, considéré dans l'histoire naturelle de la parole, ou
origine du langage et de l'écriture.
Posto que nesse escripto de milagrosa felicidade, o au-
ctor, por um estudo profundamente reflexivo do instrumento
vocal humano, e por uma confrontação minuciosa de um sem
numero de linguas, nos haja como que revelado a lingua pri-
meva do genero humano, lingua necessaria e essencialmente
onomatopica, e cujos vestigios se descobrem em todas as an-
tigas e modernas universalmente, quando se aprendeu a bem
observar; parece-me, salvo o atacamento devido a tão grande
homem, que para o objecto que eu aqui tratava, isto é, para
a intelligencia e pratica das onomatopeas, a minha tabellazi-
nha de valores, por mais circunscripta que o seu, profuso, e,
por isso mesmo, ás vezes mui vago tratado, poderá ser pre-
ferida. A sua analyse das vogaes é engenhosa, e talvez em
95

grande parte verdadeira; mas pelas conversões numerosas a


que todas ellas são sujeitas, e que o auctor mesmo reconhece
é submette a regras ignoradas pelo commum, deixam de ter
para o commum dos ouvidos e entendimentos essa originaria
e radical significação; ao mesmo tempo que em o nosso opus-
culo, em que se consultou menos a archeologia que o senso
geral, a intenção significativa que ás vogaes se attribue, é obvia,
muito clara, e muito mais simples . As articulações ou into-
nações, isto é, as consoantes, pouco differem no seu tratado
e no meu opusculo; na maior parte d'ellas tive o gosto de ver
as minhas fantasias confirmadas pelo seu saber . Nos pontos,
porém, em que discrepamos, posto que o ser parte litigante
me vede o ser juiz, parece-me que se vai mais seguro de ef-
feito pela minha theoria; e quando não, compare- se por
exemplo o que elle estatue como doutrina sobre todas as la-
biaes, e o que eu em diverso, e talvez em contrario sentido,
proponho e comprovo, cuido eu, sobre algumas d'ellas.

CAPITULO XIV

AMOSTRAS E EXERCICIOS ONOMATOPICOS

APPENDIX ÁS DOUTRINAS PRECEDENTES

Se o espaço, que a razão demarca a este compendio, não


fosse tão estreito, que de documentos da realidade e vanta-
gens das onomatopeas não poderiamos depositar aqui? Mas
por não podermos o mais, não deixaremos de fazer o menos.
Mil considerações estavam pedindo que todos os exem-
plos, que houvesse de presentar, fossem alheios e de aucto-
res celebres. A pressa me prohibiu procural-os. Limitei-me
ao que a memoria me suggeriu . Se alguns vão de minha
propria lavra, peço venia: tomei os que me vieram . O me-
nos bom é ainda melhor que o nada.
96 -

Filinto, Canto 1. ° do Oberon.


HUÓL TRANSVIADO NA MATTA DO MONTE LIBANO:

Leva a pé, pelas redeas o cavallo,


quanto o permitte a brenha; nas raizes,
nas fragas, cada passo, é um tropêço .
Encapota-se o céo com negras nuvens;
invia, ignota é a brenha . Leões horridos
rugem, strugem-lhe insolitos ouvidos:
repetem- lhe o rugido alpestres rochas,
que co'a mudez d'apoz calam mor susto,
e o peito mais valente abalariam.
O nosso heroe, a quem nenhum guerreiro,
deu pavor, sente os nervos relaxarem - se- lhe;

Dá c'uma lapa, que rompeu natura


na profundez do monte, a cuja umbreira
ardia e crepitava accesa rama.
A resplendente cima do rochedo,
de selvaticas çarças assombrada ,
(como por arte magica) despega- se
da negra noite; e as çarças que se alpendram
das fendas dos penhascos affiguram
os reflexos d'um fogo, que verdeja.

II

CONFUSÃO NOS PAÇOS DE CARLOS MAGNO, PELA IRA


DO IMPERADOR QUE PRETENDE VINGAR EM
HUÓL A MORTE DO FILHO:

Já se erguem paladins; já no ar fuzilam,


despedem sustos laminas minaces;
97

feros uivos nas bóbedas restrugem .


Treme o chão, as vidraças, velhas ringem :

III

MORTE DE AMAURI NO DUELLO COM HUÓL:

Vomita ondas de sangue o monstro e morre .

IV

SCHERASMIM ATERRADO AO DAR COM O ANÃO NA SELVA


ENCANTADA, FOGE EMPUCHANDO PELA RÉDEA O
CAVALLO DO AMO:

.Parte o velho, como um gamo,


tira rijo traz si do amo o cavallo,
salta barrancos , troncos abalrôa,
dá d'esporas té ver- se bosque em fóra.
Em tanto se ergue horrivel tempestade:
trovões roncam , relampagos fuzilam ,
densa treva, que chove, esconde a lua;
brama e rebrama em echos o estampido,
por ocas furnas, reboantes brenhas.
Crêras, que cada tronco estala, e escacha.
Travam guerra enraivada os elementos.
Na turbulenta frágua da tormenta
do genio a meiga voz se deu a ouvir- se :

7
- 98 -

DANSA DOS FRADES E FREIRAS DA PROCISSÃO AO


TOQUE DA BUZINA MAGICA DE OBERON:

Novo delirio accende os dansarinos!


Afferventa-se a valsa, e theor leva
de turbo redopio. -Altos os pulos,
cegas as rodas, em suor derretem-nos,
como as neves, em dia de desgélo.
Bate-lhe o peito a pulsações redobres,
arquejam.....
Filinto só á sua parte daria para volumes de eguaes ex-
cerptos . Todos estes são colhidos de poucas paginas, mas
n'essas mesmas deixamos a mina quasi intacta.

VI

Traducção das Metamorphoses de Ovidio.


RIO EM QUE DIANA APPETECE BANHAR- SE:

Entrou a Deusa em gelida espessura,


onde ia com fresquissimo murmurio
por sobre fina area movediça
escorregando um rio preguiçoso.

VII

CAVERNA ONDE OS COMPAHEIROS DE CADMO VÃO


BUSCAR AGUA PARA OS SACRIFICIOS:

Negreja annosa matta, onde o machado


jámais entrou; lá se abre uma caverna
99

de vimes e de arbustos enriçada.


Formam-lhe o arco humilde uns seixos toscos,
e em copiosas aguas sempre abunda.
Nella mora Dragão, sagrado a Marte:
aurea e cristada a fronte, os olhos lume,
tumido o corpo de lethal veneno,
triplice a lingua, os dentes em tres ordens.
Neste arvoredo os tyrios emissarios
entram com pé sinistro: mal que a urna
descendo ás aguas retumbou pelo antro,
eis do fundo do longo esconderijo
ergue o dragão cerúleo a fronte enorme,
e horrendos silvos solta; ao vel -o, e ouvil- o,
foge o sangue; das mãos as urnas caem;
subitânea tremura os accommette.
Vel-o em voluveis voltas desconcentra
os escamosos circulos; e a pulos
colleando avança; mais de meio erguido
domina toda a selva; em corpulencia,
nem cede, ao que separa as Ursas ambas.
Emquanto, ou para a briga os tyrios se armam,
ou se dispõe á fuga, ou fuga e briga
lhes impede o pavor, co'a turba investe!
uns, nos dentes os leva; outros, nas roscas
entalados arrastra, estes, derriba
co'o bafo immundo; aquelles, co'a peçonha.

Já o sol a pino as sombras encolhia;


da tardança dos seus Cadmo se espanta,
e a procural-os parte: hirsuta pelle
de vencido leão lhe cobre o corpo;
por armas leva um dardo, a vasta lança,
e o brio, em peito heroe, melhor que as armas.
Mal põe no bosque a planta, avista os mortos;
o enorme vencedor sobre elles poisa;
lambe-lhe as f'ridas co'a sanguinea farpa.
«Companheiros fieis, por mim vingados,
«ou seguidos por mim sereis, » exclama.
Rocha, que eguala as mós, toma na dextra,
balança-a, dá-lhe impulso egual ao peso,
fal-a voar troando; ao rude embate
torreadas muralhas tremeriam;
a serpe fica illesa, que a escamosa
loriga natural, e o coiro negro
repercutem o tiro: egual ventura
100

contra o dardo comtudo a não defende;


pelo meio da espinha dobradiça
varou, lá jaz na entranha o ferro inteiro.
Furioso co'a dôr retorce o monstro
a fronte sobre o dorso; olha a ferida;
na hastea, em si cravada , enterra os dentes;
para aqui, para alli, revolve, alarga,
até que a arranca emfim; mas fica o ferro.
Co'a ferida recente a furia innata,
cresce, requinta agora: incham -lhe o collo
tumidas vêas; de espumosa baba
alveja a larga, a pestilente boca;
das escamas roçado o chão resôa;
o bafo escuro das tartareas fauces
infecta as auras, contamina as plantas;
ora espiral se aperta em orbe immenso,
ora arvorado mastro imita a prumo,
ora nos vastos impetos simelha
rio feroz co'as cheias engrossado;
rompe, alvorota as arvores passando .
Retrocede alguns passos o Agenoreo;
co'o leonino espolio na sinistra ,
The apara a furia, oppõe-lhe a lança em riste.
Braveja o Drago affoito; no impassivel
ferro os dentes amola, e morde o gume.
Já do padar pungido está correndo
sangue empestado, que rocia as hervas;
mas é leve a ferida, porque o monstro
sente o pico, e retrahe- se ; o damno enceta,
surge atraz, nem dá tempo a que entre o golpe.
O Agenoride então dobrando esforço,
já mergulhado na guela o ferro,
segue-o, leva-o de encontro, até que obstando
no caminho um carvalho, collo e tronco
do mesmo lanço alli deixou pregados;
dobra- se a arvore ao peso, e geme aos golpes,
com que a cauda indignada açoita o tronco.
101 -

VIII

CASTIGO INFLIGIDO POR BACCO ÁS FILHAS DE MINEO,


POR ESTAS LHE PROFANAREM COM O TRABALHO
DO THEAR E ROCA O SEU DIA DE FESTA:

Rompem subito estrepito atabales


raucitroantes, curvicorneas gaitas,
metaes de retintinulos repiques;
tudo invisivel! de açafrões, de myrrhas
nadam no ar suavissimas fragrancias.
Eis quem lhe dará fé ! o alvor das têas
que se entra a esverdear ! os largos pannos
em guisa de hera a frondejar- se! os fios,
não tapados ainda, a alar- se em vides!
Estames, que das rocas vem sahindo,
vem sahindo em festões de frescas parras!
e das lustrosas purpuras, luzentes
cachos se entufam de formosas uvas!

Como encontrada de um tufão retreme,


do fundamento ao tecto a estancia toda!
Resinosos archotes voam, zunem !
Retinge as casas crepitante incendio!
Correm phantasmas de ululantes feras!
Pelos altos desvãos cegos de fumo
vão- se as impias irmãs, dispersas, loucas,
contra o fogo e clarão buscando asylo .

IX

ATHAMANTE DESPEDAÇANDO O FILHO:

arranca-o , roda- o
duas, tres vezes pelo ar, qual funda ;
feroz o solta, e num penedo o esmaga.
102 -

INO COM O FILHINHO PRECIPITANDO - SE DO MAR:

Surge um penhasco ás aguas sobranceiro.


Das ondas o vaivem por baixo o mina,
vasto pégo co'a abobada protege ;
¡tanto a fronte escabrosa investe os mares!
Ino, pois lhe ala forças o delirio,
lá vinga; e, sem temor, co'a linda carga
salta ao profundo ¡ abysma-se! co'o baque
as aguas alvejando espadanaram .

XI

COMBATE DE PERSEU COM O MONSTRO MARINHO PARA


SALVAR ANDROMEDA :

eis do profundo
remuge um rouco estrondo, eis surde, ao largo,
monstro, que vasto mar co'o peito abarca,
co'a fronte erguida sobreleva ás ondas,
e contra a costa remessado investe.

N'isto, qual voga com sonora prôa


lenho impellido de suados remos,
tal o monstro co'o peito as vagas rasga
direito ás rochas, de que dista apenas,
quanto a funda balear co'o tiro alcança.
Na terra os pés com força repellindo
foge o mancebo, e se remonta ás nuvens.
A' sombra, que de lá no pégo estampa,
a fera, esbravejando, se arremeça.
Mas, como aguia real, que em raso avista
livida escamea serpe ao sol jazendo,
detraz a investe, e, por vedar, que os dentes
lhe revire, á cerviz lhe aferra as garras;
- 103

baixa dos ceos o voador, de chofre,


contra o dorso ferino , inteiro o curvo
ferro lhe ensopa na direita espadua.
Ruge, e troveja o monstro co'a ferida;
ora se atira aos ares, ora ao fundo
mergulha, ora se volve e se revolve ,
qual bruto javali num cerco estreito
de ladradores cães desatinado.
O argivo heroe, voando sempre , illude
a boca enorme, que o persegue sempre,
e, voando, retalha ás cutiladas,
quanto á flor d'agua assoma, agora o dorso
de conchas encrustado , agora os lados,
agora, onde a cauda se adelgaça,
e acaba em peixe.-A fera já vomita
a um tempo ondas de mar, e ondas de sangue.
Perseu, que d'estes sordidos borrifos
humedecidos os talares sente,
teme arriscar -se mais; nota um penhasco,
que aos mares sobresahe, quando quietos ;
quando agitados, cobre-se; faz d'elle
contrapé; no penedo mais visinho
aferra a esquerda, e co'a direita armada,
debruçando- se, eis, tres, eis, quatro vezes
as entranhas lhe passa, e lhe repassa.

Com palmas, e clamores repentinos,


retumba a praia, os altos ceos se estrugem .

XII

O BANQUETE DE NOIVADO NOS PAÇOS D'EL-REI CEPHEO


DESATANDO- SE EM TUMULTO:

Eis, ruidoso alvoroto atrôa os atrios!


Não é de povo conjugal descante,
senão feroz rebate. O festim ledo,
degenerado em trepido tumulto,
lembra o mar, que os tufões colheram liso,
e, dos tufões entrado, estoira, espuma.
104 ---

XIII

NOITE DE S. JOÃO NA ALDEA (de um poema inedito):

Verás girar seus bailes rebatidos


em redor das estridulas fogueiras,
ouvirás os seus canticos em côro
devoto e enamorado; a bomba foge,
zune fugindo e solapada estoira;
o buscapé no ar caracolando,
morde n'um, morde n'outro, ameaça a todos,
dispersa os grupos, gasta- se raivando,
e entre os risos rebenta atroando os ares;
alli circula em vortice vistoso
a roda leve espadanando incendios,
chovendo oiro luzente, e estrellas alvas;
aqui florea o fulgido valverde ,
volcão sonoro, que arremette ás nuvens;
vôa, remonta impaciente aos ares,
o ignivomo foguete estrepitoso.

XIV

ASCENÇÃO DE ROMULO AOS CÉOS , da traducção dos


Fastos de Ovidio, no livro 2.°

Caprea palude, se chamou de antigos


o lugar onde Romulo por uso,
justiça, e leis aos subditos dictava.
Lá era: foge o sol, negrejam nuvens,
o céo se obumbra, horrisono chuveiro
se desata, precipite, rebrama
trovão tetro, relampagos tremulam,
roxos coriscos pelas sombras giram!
Foge-se; neste horror, mavorcio coche
vôa aos céos! lá vai Romulo ser Nume.
105

CAPITULO XV

NOVO EXERCICIO DE VERSIFICAÇÃO

O descriptivo

O primeiro exercicio que propuz aos principian-


tes, fundando-me na experiencia , foi o de compassar
com certa cantilena e palmas , versos alheios , e com
grande continuação ; o segundo fazer versos chama-
dos nonsenses. Agora é preciso adiantar já um pas-
so, e entrar um pouco por dentro na poesia .
Os versos devem já ter intenção e pensamento.
Seguindo o nosso costume, iremos tambem aqui do
mais facil para o mais difficil, e propor-nos-hemos
antes de mais nada o simples descriptivo .

Não é o descriptivo um genero especial de poesia ; é um


elemento, que em maior ou menor abundancia entra na com-
posição de todos os generos. Descrever por descrever foi já
systema e seita. Delille quasi não fez outra coisa. Os seus
poemas originaes, sobre tudo o da Imaginação, são galerias de
pequenas pinturas; cada uma formosa, algumas perfeitas, mas
desconnexas, frías, e que, apesar do seu brilho parcial, nos
não sabem interessar, e a poucos passos nos fatigam. Os poe-
tas pastoris do seculo atraz, e os allemães e suissos em pri-
meira linha, tambem concorreram muito pelo abuso para o
desapreço e mofa em que o descriptivo se viu cair. E' por-
que o descriptivo é simplesmente materia, corpo e fórma. A
alma, a vida, é a idealidade ; faltando o pensamento forte e
creador, que se colloque como centro no meio dos differentes
vultos do universo, sobre o qual elles actuem, e que reaja so-
bre elles, e que d'elles e de si combinados extraia um uni-
verso novo, uma nova revelação ou aspiração do bello; a au-
rora mais bem descripta, o sol, a lua, ou o rio, mais bem da-
- 106 -

guerreotypados, ficarão eternamente mudos e sem significa-


ção.
Retalhae um quadro de Raphael nas innumeraveis partes
de que o seu genio o compoz; tereis na verdade lindas mãos,
formosos olhos e bocas, admiraveis panejamentos, viçosos ra-
mos, tudo; e esse tudo será nada; porque faltará ahi o con-
certo, o enthusiasmo que pozera tão diversas coisas em rela-
ção maravilhosa, não já com os olhos, senão com o espirito
de cada espectador.
Entretanto, assim como sem essas partes não ha quadro,
tambem sem descripção não ha poema; pelo menos ainda o
não vimos, nem lhe imaginâmos a possibilidade. Acostume-
se pois, o estudioso a transladar do natural para a sua phrase
metrica distinctos objectos da natureza ou da arte , como o
pintor novel se adestra antes de se abalançar ás grandes com-
posições, em copiar os pormenores com exacção e graça.

Neste exercicio persevere por algum tempo, ap-


plicando a cada objecto que elegeu , primeiro aquella
especie de metro para que já reconheceu ter mais
disposição , depois a immediata, logo a outra, e as-
sim até à ultima, aquella em que sentiu maior re-
beldia . Evite porém ainda a rima em todas estas
tentativas; assaz e sobejas difficuldades encontrará
já no reduzir a numero e a pausas de syllabas a ex-
pressão da sua idéa, sem ser necessario que essa
nova tyrannia o venha desesperar.

Outra vantagem de não leve monta lhe provirá d'esta exer-


citação : acostumar-se-ha desde logo a variar por muitos mo-
dos a linguagem, para occorrer ás successivas exigencias dos
varios metros; extraordinario recurso que depois se applau-
dirá de possuir .
Alguem aconselharia para aqui os chamados diccionarios
poeticos,―esses açougues em que os talentos de primeira or-
dem se acham cortados aos pedaços, escorrendo sangue, e im-
possiveis de reconhecer: os Gradus ad parnasum, e regia
parnasi, os thesaurus phrazium poeticarum, a Prosodia de
Bento Pereira, e o Diccionario de Candido Lusitano; nós pelo
contrario recommendariamos que de livros taes até a memo-
ria se perdesse; e realmente, se quereis descrever a madru-
107 -

gada, careceis de que outrem a visse antes de vós? não é mais


seguro para effeito de naturalidade, levantar-vos um dia cedo,
e ir-lhe tomar as inspirações em primeira mão? quem se lem-
brou jamais de pintar um objecto vivo e presente, por outro
retrato já feito, por mais bello, por mais fiel que elle podesse
ter saído? Imitae, mas imitae a natureza, e não os seus imi-
tadores.
Todas as luas descriptas ha dois mil annos não valem
tanto como uma donosa lua cheia, que pela calada de uma
noite de estio vos comece a alvorecer lá ao longe por detraz
dos cabeços; que vos vem despontando, por entre a escura
confusão da matta, como um pensamento suave por entre pe-
nas saudosas; e que da orla do horisonte, subiu risonha e se-
gura pela amplidão infinita e diafana dos ares, offuscou as es-
trellas, prateou as aguas, esclareceu o vosso valle, e scintilla
lá ao longe na vidraça da vossa querida, e acordou ao mesmo
tempo a viração fresca da noite, o canto do rouxinol, e uns
sons de flauta, que vos chegam não sabeis d'onde, e vos en-
feitiçam.
Não dissimulamos que, para o inteiramente bisonho no
poetar, poderão ser convenientes , e até necessarios, alguns
modellos que o encaminhem; mas esses modellos não são, nem
devem, nem podem ser, poetas mortos e mutilados; esses
modellos são as obras inteiras e completas;-é ler com atten-
ção os auctores recommendados, medital- os parte por parte,
costumando- se a discernir o optimo do bom, e o bom do me-
nos bom, procurando o quê, e o porquê de cada phrase; o
como a expressão usual e familiar se nobilitou , convertendo-
se na formula poetica; o que nessa formula se encontra lou-
vavel, segundo o tempo em que foi escripto, mas já repugna-
do ou desdenhado pelo gosto moderno. Estes sim, que são
estudos não servis ! estes sim, que fecundam o talento, e po-
dem fazer do imitador um creador, preferivel ao seu mo-
dello!

Outro exercicio

Para alguns poderá ser conveniente , além de


commodo, o traduzir, ou , melhor ainda, o imitar ou
paraphrasear, quer de auctor estrangeiro, quer mes-
mo de prosa nacional para verso , ou de poeta nosso
antigo para a linguagem e estylo moderno.
- 108

Mais um exercicio

EXPRESSÃO DOS AFFECTOS

Ganha facilidade nos exercicios precedentes, é


passar ávante, e pôr peito a pinturas de uma ordem
superior e mais difficeis ; á pintura dos affectos .
Nesta parte do tirocinio não duvidaremos acon-
selhar o uso dos romances modernos de melhor no-
ta, nunca para os traduzir, nem ainda para os para-
phrasear, ou imitar, mas só para ganhar o geito e
facilidade de analysar e exprimir as paixões e todos
os diversos movimentos d'alma; genero em que afoi-
tamente podemos dizer que os modernos, e os con-
temporaneos levam a palma aos antigos . Quanto á
rima, repetimos ainda aqui o que aconselhámos tra-
tando do descriptivo: evitar por ora esse grilhão,
pois é agro e escabroso o caminho por onde subis;
só quando as forças se vos houverem desenvolvido
de victoria em victoria, só quando sentirdes que po-
deis levar sem violencia e com graça esse novo pe-
so, só então vos consentimos que submettaes a elle
os hombros , se quizerdes .

CAPITULO XVI

LEXICOLOGIA

Se ao orador com tanta razão aconselhavam Cicero e Quin-


tiliano que fizesse por adquirir a maior copia de vocabulos
em todas as materias, a fim de ter numa pressa com que va-
109

riar a sua phrase, quanto mais se não deve prégar aos que se
destinam á poesia, que estudem com diligencia a lingua pa-
tria, colhendo, analysando, registando e coordenando do me-
lhor modo as diversas palavras e phrases com que cada idéa
póde ser expressa ! Quanto maior for este peculio, tanto mais
facil e deleitosa se tornará a fabricação dos versos sonoros ,
variados, expressivos e onomatopicos; assim como vemos que
tanto mais perfeita e rapida vae surgindo uma parede sob as
mãos do alveneu, quanto mais diversas são em tamanho e fi-
gura as achegas de pedras, cascalho e tijolos que tem ao seu
dispôr.
O triste que para uma idéa não possue mais que uma só
palavra, muitas vezes parará consternado a comparal- a com o
vão que no seu metro tem de encher, achando ora que sobra,
ora que mingúa. Ainda se, como os versificadores italianos,
tivessemos uma grande liberdade de accrescentar os vocabu-
los com protheses, epentheses e parágoges, e de os diminuir
com aphéreses, syncopes e apócopes!... mas os vocabulos por-
tuguezes são muito menos elasticos, e taes figuras, como já o
notámos, são sempre para nós defeitos mais ou menos gra-
ves.
O versificador pobre de vocabulario ver-se-ha a cada passo
necessitado de recorrer ás construcções violentas, ás expres-
sões improprias, aos pleonasmos ou redundancias, aos epithe-
tos que enervam, e a outros miseraveis subsidios da impo-
tencia.
O modo de grangear grande somma de palavras, e multi-
plicidade de expressões, para cada idéa , é Ĩer não só poetas ,
mas os prosadores, com reflexão, e com a penna sempre em
punho, para extractar, como por toda a sua larga vida o pra-
ticou o nosso doutissimo D. Fr. Francisco de S. Luiz. Um
dos fructos d'esses seus optimos trabalhos foi o ensaio sobre
os synonymos em lingua portugueza; obra que não podemos
deixar de recommendar para o presente estudo como primeira
entre as primeiras; pois ao mesmo tempo que nos abasta de
uma grande somma de termos, nos ensina a bem differen-
çal-os, e nos habitua a essa analyse comparativa, sem a qual
nunca jamais haverá escriptor de verdadeiro merito.
Os diccionarios, e nomeadamente o de synonymos de Blu-
teau; o que sobre esse escreveu e publicou, em pequeno e
portatil volume, José da Fonseca; e os outros vocabularios
parciaes com que o grande do mesmo erudito Bluteau se co-
roou, são tudo excellentes auxiliares para o estudo que re-
commendamos .
- 110 ―

DOS VERSOS SOLTOS E DOS RIMADOS EM GERAL

Muito se tem disputado sobre o dever- se, ou não se dever


rimar. Por ambas as partes se dispararam bons argumentos,
e melhores epigrammas; hoje quasi toda a gente se acha con-
corde: a rima é um postiço e um enfeite; as linguas de si
formosas dispensam-na; as menos bellas, têem razão para a
tomar; as feias, necessidade. Por formosura e fealdade aqui
entendemos só a melodia e a carencia de melodia. Os gregos
e romanos não rimaram jámais ; os francezes, por mais esfor-
ços que fizessem, não se libertaram, nem se hão-de libertar
nunca, da rima: os italianos, os castelhanos e nós, rimâmos,
ou deixamos de rimar segundo nos apraz.

Vantagens dos versos não rimados

Os versos sem rima ou soltos, a que tambem chamam


brancos, têem por si : 1.º maior facilidade de se fazerem; 2.º
não pôrem o pensamento do poeta num como leito de Pro-
custes, que aos pequenos os estira e desloca, aos grandes os
ennovella e esmaga, para se ajustarem á medida; 3.º a possi-
bilidade de estender ou encurtar cada periodo; 4.º mais va-
riedade; 5.º maior naturalidade.

Vantagem dos versos rimados

Os versos rimados têem não menos que allegar em seu


favor: 1.º que se as rimas excluem idéas, tambem ás vezes as
apresentam, ou as chamam; 2.º que por isso mesmo que re-
tardam o trabalho, fazem concentrar nelle maior attenção, e
conseguintemente lhe proporcionam mais primor; 3.º que dis-
farçam durezas, frouxidões, e outros vicios, que, em versos
soltos, se não desculpariam; 4.º que dão aos periodos syme-
tria; 5.º que tornam a fórma poetica mais perceptivel e sabo-
rosa ao commum dos leitores e ouvintes; 6.° que ajudam a
memoria, pois chamando cada desinencia pela sua similhante,
mais promptamente suscita a palavra, e com a palavra vem
a phrase toda como que apegada.
- 111

Em que obras são preferiveis


os versos soltos

Generos ha para os quaes os versos soltos são


innegavelmente preferiveis; os assumptos mais gra-
ves e sisudos , como as obras moraes e didacticas ;
aquelles em que se expressam as paixões vehemen-
tes, como a tragedia , deverão limitar-se ao verso
solto, porque a rima a cada linha nos está descobrin-
do artificio .

Em que obras são preferiveis


os versos rimados

Os poemas de qualquer extensão que sejam , des-


tinados simplesmente a agradar; os que nascem para
as sociedades, para as damas, e para a musica; os
que tratam os affectos como simples passatempo; os
que, ainda que tendam a instruir e moralisar , em-
pregam como meio a mordacidade e o riso; a come-
dia jocosa; o namorado, o campestre, o ameno, re-
ceberão da rima o realce, que uma pequena pintura
recebe do verniz .

Não quero dizer, que assim esta regra geral, como a pre-
cedente, não admitta excepções; os dotados de bom gosto, e
que pelo estudo o houverem aperfeiçoado, lá examinarão em
sua consciencia e á vista do seu objecto, qual mais lhe con-
vem d'estas duas fórmas; a theoria, se quizesse descer a taes
pormenores, achar-se-hia perdida num labyrintho espinho-
sissimo.

Qual é o metro portuguez que melhor


póde dispensar a rima

Até hoje ainda em lingua portugueza se não fi-


- 112

zeram inteiramente soltos , que nos conste, senão : -


1.º os versos heroicos ou de dez syllabas , seguidos
e sem mistura: -2 . ° os versos de dez syllabas , re-
gular , ou irregularmente intermeados dos seus res-
pectivos quebrados , isto é , dos versos de seis :
3.º os versos de dez syllabas, seguidos, de tres em
tres , de um de quatro syllabas , chamando-se a es-
ses quatro juntos , uma estrophe saphica . Algumas
outras tentativas terá havido ; mas ou nos não cons-
tam ou não nos occorrem: só sim nos versos de sette
syllabas: tentativa de Garcia de Rezende , e renova-
da em tempos modernos , mas que por de ruim sa-
bor não pegou . Das quatro fórmas supra- indicadas ,
a primeira é a mais plausivel e a mais usual , e para
o dizer temos por nós não só Portugal, senão Cas-
tella e Italia.
Parece-nos todavia que não perderiam o seu tem-
po os nossos poetas feitos, se experimentassem li-
bertar da estrophe, e do grilhão da rima algumas
outras especies de metros , sobre tudo os de maior
medida ; os de onze syllabas , os de doze, os de no-
ve, tomados , já se sabe, e seguidos cada um d'elles ,
sem mistura de outros , tenho por sem duvida que
dariam grande effeito . Se assim fosse numa coisa
excederiam desde logo os de onze aos de dez, e os
de doze aos de onze, que alargariam o campo ao
pensamento.

Algumas clausulas que se devem


observar para os versos soltos

O verso solto, qualquer que seja a sua medida,


pois que se livrou do captiveiro das desinencias uni-
formes , é, em compensação obrigado a ter nellas a
maior diversidade; não só o consoante lhe fica sendo
113

um defeito imperdoavel , senão que até se lhe estra-


nha a coincidencia das mesmas vogaes na ultima
pausa de dois versos a fio , sobre tudo se na syllaba
breve, que á pausa se seguir, se der tambem outra
identica coincidencia .

Por meio d'esta selva inextricavel


vaga sósinha a esposa do Tonante.

São dois versos aliás bons , mas que para soltos


não deveriam ir um após o outro , pois que á syllaba
ca de inextricavel, corresponde a syllaba nan de to-
nante; e á syllaba vel, a syllaba te, á, é no primeiro e
á, é no segundo ; uma vez por outra poderá, comtu-
do, perdoar-se este senão: os melhores versificado-
res nem sempre o evitam .
As vogaes deverão ser em cada verso solto o
mais variadas que se possa; o verso que tiver todas
as cinco será a este respeito o melhor, como o já ci-
tado:

--Rugindo estoura o mar em brutas serras.-

O de quatro vogaes distinctas será rico :

-D'elle serão meus ultimos suspiros.-

O de tres bom:

-Por lagrimas de sangue o quero, ó Numes.-

O de duas já será mau :

-Este fez sempre o mal alegremente.-

De uma só seria difficil encontral-os. A esta se-


8
114

mi- regra cabe pôr uma excepção : quando a mesma


vogal se repetir, e embora dominar todo o verso
para effeito onomatopico, o defeito passará a ser
uma excellencia .
Além d'isto tanto a dureza como a frouxidão são
no verso solto sobremodo reprehensiveis .
Sobre o que seja frouxidão e dureza já noutra
parte dissemos quanto basta .
As syllabas mais cheias, as de sons mais aber-
tos, e de articulações mais resonantes, são no verso
solto, e sobre tudo em seus accentos, as mais plau-
siveis.

--Se tentas sublimar-te a grandes coisas ,


se mais que a força tua, é tua empreza ,
eis numen bemfazejo , inspira o canto;
numen de quem rival não fôra Apollo,
nem de Aonias irmãs turba engenhosa.-

Outra clausula apontaremos ainda para a perfei-


ção dos versos brancos : convem dar aos seus perio-
dos a maior variedade de córtes ; ora o sentido ap-
pareça redondo e absoluto num só verso ; ora se atire
ao principio, ao meio , ou ao fim do segundo ; ora ao
terceiro; algumas vezes mesmo até ao quarto , e ao
quinto, mas na pluralidade dos casos quanto menos
versos se fecharem entre dois pontos finaes, tanto
maior será cæteris paribus a elegancia; a sentença
ou conceito num só verso , brilha como um diamante
grande engastado entre perolas . Advirta-se porém,
que o excesso até nas virtudes se torna vicio; que
um poema todo , ou quasi todo em versos destaca-
dos fora intoleravelmente monotono; que no variar
é que está a summa arte.
- 115

Divisão das rimas em consoantes


e toantes

Rimas se chamam em geral todas as palavras de


identica ou mui parecida terminação , sendo o som e
não as lettras o que constitue as rimas . Se duas pa-
lavras se conformam inteiramente no som, desde a
vogal ou ditongo, do accento predominante até à ul-
tima syllaba , rimam perfeitamente, e chamam- se
consoantes . Exemplos de consoantes agudos : chão,
paixão, vencerão, etc. Exemplos de consoantes gra-
ves: aza, caza, braza, etc. Exemplos de consoantes
esdruxulos : estatistico, eucharistico, mistico, etc. Se
porém, duas palavras, só conformam uma com a ou-
tra em ter na pausa a mesma vogal ou ditongo , e
ainda similhança de vogaes na syllaba breve que se
The siga, e havendo duas syllabas breves depois do
accento, coincidencia tambem na vogal ultima, cha-
mam-se toantes . Exemplos de toantes agudos : chá,
mortal, paz, etc. Exemplos de toantes graves : man-
to, casco, banhos, etc. Exemplos de toantes esdru-
xulos: horrifico, santissimo, delirio , etc.

Do uso dos toantes

Dos toantes ninguem hoje se serve na Europa senão os


castelhanos; foram elles os que en Portugal os generalisaram
com o uso da sua lingua pelos tempos dos Filippes, e a mo-
da, posto que não das mais guapas, sobreviveu ainda á sua.
dominação: pelo reinado de D. João 5. ainda os discretos se
presavam de escrever em toantes longos romances, serios, jo-
cosos e joco-serios, que por via de regra só faziam rir quando
menos o desejavam.
Com os conceitos, gongorismos, e trocadilhos de palavras,
passaram os toantes.
Da Arcadia para cá poucos vestigios d'elles se encontra-
- 116

rão, a não ser pelos serões d'aldea, alguma trova improvisada


em descantes dos rusticos; por isso é que nesta materia só
direi quanto baste, para que o estudioso de versificação não
fique totalmente desconhecendo esta particula fossil da sua
arte.
Um illustre contemporaneo brazileiro, o Snr. Conselheiro
Miguel da Silva Lisboa, actualmente ministro do Brazil n'esta
côrte, publicou , ha poucos annos, um estimado volume de
chacaras em quadras settisyllabas em toantes; mas o exem-
plo, ainda que de tão distincto escriptor, não encontrou se-
guidores nem lá, que nós saibamos, nem por cá.
A rima toante só se empregava em periodos regulares de
quatro versos, quer de dez syllabas -ou heroicos, quer de
sette syllabas -ou redondilhos; esta segunda era a mais usual;
o primeiro e terceiro verso eram soltos; os toantes estavam
no segundo e quarto. O canto começado por uma especie de
toante tinha obrigação de continuar por ella, até ao fim, o
que, bem lançadas as contas, vinha a neutralisar o que aliás
se queria forrar de trabalho em fugir de rima perfeita: assim,
se os versos pares da primeira quadra tinham na penultima
syllaba um I, e na ultima um 0, todos os versos pares até á
quadra derradeira ficavam captivos ao mesmo I e ao mesmo
o poema tinha mais de um canto, os toantes podiam
ser diversos em cada um d'elles.
Dois consoantes ou rimas perfeitas numa só quadra, eram
para elles tão defesos, como o seria para nós uma rima im-
perfeita.

Combinação dos toantes com os


consoantes para chacara

A chacara, o romance popular, popularissimo, das Hespa-


nhas, esse formoso e invejado quasi exclusivo das nossas gen-
tes, tinha por formula quasi consagrada e indispensavel o
verso settisyllabo em quadras, com rima toante, ainda que al-
gumas vezes se enfiava toda a narração, só um ou outro la-
pso, em rimas perfeitas, que commummente não passavam do
ia. Renasceu a chácara em nossos dias, porém tão desfigura-
da que faz pena. Não se lhe estudou assaz a indole sincera,
graciosa, hyperbolica, e infantil ao mesmo tempo, aquelle qué
particular de estylo que a caracterisava, e de que ainda ahi
pelas serras alguma velha tonta sabe mais do que todos os
117

nossos poetas; sobretudo não se curou de a revestir com coisa


que se assimilhasse, por pouco que fosse, á sua rima. Sob o
nome de chacara se fizeram uns pequenos poemas, talvez de
maior quilate poetico absoluto, mas que não eram chacaras, e
que, se aqui ou acolá a faziam lembrar, era só para sauda-
des. E' pois esta uma rica mina, que está ainda para explo-
rar, e que deverá enriquecer aos que devidamente prepara-
dos, e com bom animo , a tentarem . Os exemplares para es-
tudo, ainda que não sobejos, existem em sufficiente numero;
são os romanceiros castelhanos; são alguns trechos de poesia
de Gil Vicente, fóra do seu Theatro; são alguns d'esses autos
mal impressos, mas reimpressos cem vezes, e cujos unicos
consumidores são o povo infimo e os aldeões; o Cancioneiro
original de Ignacio Pizarro de Moraes Sarmento, o Cancio-
neiro do meu antigo amigo Garrett, e o Cancioneiro do Al-
garve do tambem meu amigo o Snr. Estacio da Veiga. A'quel-
les que a tal empreza houvessem de pôr peito, aproveito eu
esta occasião para lembrar, que a rima é uma das principaes
feições por onde a chacara genuina se contrastea e reconhe-
ce, e que substituir-lhe consoantes variados é matal -a.
Como porém ousaremos rimar em toantes?
Não é necessario; rimae cada quadra em consoantes, e ca-
da quadra com as outras do canto em toantes; ou todas as
quadras em consoantes perfeitos, e os mesmos se quizerdes.
Para qualquer d'estes dois modos vos dão exemplos e abo-
nos os Cancioneiros; esta conciliação nem é impossivel nem
difficil, pois que eu mesmo mais de uma vez a tenho feito,
como se pode ver na Chacara da Senhora da Nazareth, e nas
Chacaras de Santa Iria, e do Acalentar da Neta, que inseri
nas minhas- Escavações Poeticas. —Terminarei este capitulo
dos toantes, notando que entre toantes agudos algumas vezes
se encontram nos romances velhos palavras graves, de cuja
ultima syllaba por consequencia se não faz caso, e outras ve-
zes entre os toantes graves palavras esdruxulas, cuja penulti-
ma syllaba se despresa.

Differença de merito de consoantes


ou rimas perfeitas

Nem todos os consoantes se podem ter por de


egual valor.
1. Os sons mais triviaes como o ão , ar , or, ado,
118

oso, issimo, etc. , merecem menos apreço do que ou-


tros mais raros, como arte, uria , érno, etc.

Neste particular são commummente desleixados os nossos


poetas antigos; Camões mesmo se não exime da censura; logo
as primeiras rimas dos Lusiadas a estão provocando— ados—
ana-aram - ozas -ando -- etc.

2. As rimas exquisitissimas , que são o extre-


mo opposto das triviaes, devem ser empregadas
com parcimonia, porque ás vezes roçam pelo esco-
lho do ridiculo .
3. As palavras de identica indole grammatical,
são rimas geralmente mais pobres , que as palavras
de indole grammatical diversa .

Isto é, rimará melhor quem rimar um verbo com um sub-


stantivo, um adjectivo e um adverbio, do que quem rimar
um adjectivo com outros adjectivos, um adverbio com outros
adverbios, etc. Assignalados, navegados, esforçados, tudo ad-
jectivos, e de mais a mais participios; -edificaram, sublima-
ram, ambos verbos e no mesmo modo, tempo, numero e pes-
soa; -gloriosas, viciosas, valorosas, tudo adjectivos, e adjecti-
vos qualificativos ; — foram dilatandɔ, andaram devastando,
vão libertando, tudo gerundios ; - fizeram, tiveram, obedece-
ram, tudo tambem verbos, e tambem no mesmo modo, tem-
po, numero e pessoa -- são deploraveis desares no primeiro
introito de tal poema como os Lusiadas.

D'entre as palavras de identica indole gramma-


tical, as que dão rimas menos mesquinhas são os
substantivos; depois os adjectivos ; depois os ver-
bos.
A rima de verbo com verbo, póde passar de vi-
ciosa a plausivel, quando cada um d'elles fôr diver-
so em modo, tempo , numero, e pessoa; ou pelo me-
nos em algumas d'estas clausulas . Se edificaram, e
sublimaram , rimam mal , edificaram e param, ri-
119

mam excellentemente ; assim como, está e fará;


diz e ouvis; -vigia e cantaria; -estivesse e téce;
adoçou-se e fosse; -disse e subisse, etc. Estes quasi
preceitos não são inspirações do mero instincto ; ex-
plicam-se pela razão . A rima é uma difficuldade ven-
cida para agrado do ouvido . Se as rimas são corri-
queiras, nenhuma difficuldade com ellas se venceu ;
se irmãs quanto a classificação dos grammaticos , ac-
crescentam á monotonia do som , uma nova monoto-
nia , e com esta annullam áquella todo o seu merito ,
mais convencional que real .

O que neste capitulo deixâmos dito, são menos leis abso-


lutas, que avisos e conselhos, os quaes é todavia bom não
perder jámais de vista , se se aspira, como se deve aspirar, á
maxima perfeição da fórma poetica. Bocage é ainda nisto um
dos modellos menos arriscados. Em diverso genero, a rima de
Tolentino é tambem magistral. Se eu me não tivesse imposto
como obrigação o não citar neste tratado os contemporaneos,
não por alguma repugnancia que tenha ao louvar, mas por-
que o louvor dado a um, muitos outros o tomam como inju-
ria, poderia juntar a estes dois bellos nomes, os de mance-
bos que algum dia têem de preencher logar brilhante na nossa
historia litteraria.

Rimas opulentas

Hesitei sobre se traria para aqui uma proposta,


já por alguns adoptada , de aperfeiçoamento no sys-
tema de rimar. Fallo das rimas ricas e opulentas .
Afinal, decido-me pela affirmativa .
Chamamos rima opulenta áquella em que não só
as vozes finaes de um verso conformam rigorosa-
mente com as vozes finaes de outro verso , mas até
num e noutro são identicas as inflexões que formam
syllaba com essas vozes . Exemplo : grado e agrado,
monte e remonte, passo e espaço , Lacio e palacio,
capa e escapа.
120

Muitos poetas, aliás excellentes, tem este rigor


de exacção por excessivo; e entendem que elle não
vale tanto quanto custa , uma vez que as rimas não
incorram em algum dos graves defeitos acima apon-
tados , sáiam ellas com que inflexões saírem , todas
acham acceitaveis por egual .
Póde ser que até esta perfeita identidade de syl-
labas lhes pareça grandemente arriscada a monoto-
nia. Impertinente seria ventilarmos aqui essa ques-
tão, na qual os votos dos competentes até em Fran-
ça andam muito repartidos ; mas sempre direi que ,
se a rima assim opulenta é um novo e pesadissimo
grilhão para os poetas cujo lavor, mesmo sem isso,
já de si é tão difficil , esse onus , esse mal, teria me
parece em compensação a vantagem de assustar e
pôr fóra da liça muitos intrusos que verdadeiramente
não entram nella senão para fazer pejamento e des-
ordem, tomar o campo aos bons cavalleiros e des-
gostal-os .
Como quer que seja , o rei dos poetas e rimado-
res actuaes, Victor Hugo, vê - se que adora para si
as rimas opulentas , e outro tanto se pode dizer
daquell'outros dois principes da arte, Méry e Barthé-
lemy; e não são os unicos : o nosso amigo Monteiro
Teixeira, o Barthélemy portuguez , nas suas admira-
veis poesias francezas timbra e capricha em correr
sob o peso d'esta cadeia de bronze com tanta ligei-
reza e graça como se inteiramente andára ás soltas.
O Brazil possue hoje na pessoa do illustrado
poeta o Rev.do Snr. José Joaquim Corrêa d'Almeida,
um observante perpetuo e admiravel da rima rica
em nossa lingua.
Claro está que um poema todo com esta rigorosa
observancia não seria exequivel sem frequentes e
gravissimas lesões para o pensamento poetico; todo
o caso está em que as rimas assim cabaes predomi-
121

nem e que entre as restantes nenhuma se possa ta-


xar de pobre .

Como em Portugal esta maneira de rimar se não acha por


ora plantada nem quasi conhecida, seja -nos permittido, pois
somos talvez por em quanto quem só a tem cultivado, faze-la
conhecer aos nossos principiantes por uma pequena amostra
da traducção das Georgicas de Virgilio . E sobre tão melin-
droso assumpto nada mais acerescentaremos :

PRINCIPIO DO LIVRO I

O que as messes alegre; o astro que mais convide


a revolver o solo, e a armar no olmeiro a vide;
criação de armento e fato; e quanto de sciencia
o parco enxame pede, e ensina a experiencia,
Mecenas, vou cantar.
Fanaes do ethereo espaço,
que pelos ceos guiaes o anno a passo e passo!
Baccho, alma Ceres, vós por quem a terra antiga
mudou chaonia glande em substancial espiga,
e aos copos d'Achelôo uniu do mosto o achado!
Faunos bons, por quem sempre o agreste é despachado!
correi, Faunos ! correi , ó Dryades donzellas !
descanto os vossos dons.
Arbitro das procellas,
que ao trus do grão tridente o incognito cavallo
romper do chão fizeste aos rinchos, e a escarval-o,
Neptuno!
O' morador dos memoraes encerros,
para quem tosa em Ceia armento de bezerros
trezentos côr de neve as sarças como relva!
Os bosques do Lyceo deixando, e a patria selva,
tu, de ovelhas pastor, se os Menalos amenos
te importam, Pan Tegêo, assiste-me não menos!
Minerva, ỏ mãi da olival
O' moço autor do arado!`
O' Silvano, que em punho ostentas arvorado,
co'a raiz toda, o escol dos juvenis cyprestes!
Quanto ha'hi deus emfim, quanta ha'hi deusa, prestes
sempre ao campo a acudir, crear-lhe sem semente,
e espalhar no semeado as chuvas largamente!
122

Numes de tanto amor, não me sejaes adversos:


as vossas glorias canto; auxiliae meus versos!
E tu, Cesar, tambem; tu és tambem deidade:
0 que só por emquanto ignora a humanidade
é de quaes has- de entrar no eterno ajuntamento:
das terras, das nações, apraz- te o regimento?
e do orbe a immensidade, accorde em conferir-t'o,
cingindo-te o materno e glorioso myrto,
ter- se-ha por influidor dos fiuctos e das quadras?
Ou, deus do infindo mar, nos transes das esquadras
serás o só chamado? abrangerás no mando
Thule, do mundo extrema? e Tethys, proclamando
o poderio teu, por suas vagas todas
comprar-te-ha para genro, ufana com taes bodas?
Ou, constellação nova, eleges ir grupar-te
co'as dos mezes do tarde, enchendo aquella parte
que entre Erigone se abre, e o Scorpião que a segue?
Teu desejo sem custo o exito consegue,
que o proprio monstro ardente os braços d'improviso
encolhe, a te alargar mais campo que o preciso.
Seja qual for teu reino (o Tartaro exceptua;
reinar lá, fôra atroz; não seja ambição tua,
por mais que a Grecia admire a elysia amenidade,
e Prosérpina fuja á maternal saudade)
facilita-me o passo; annue-me á audaz empreza;
comigo ao camponez que da ignorancia é presa,
dá compaixão, põe luz; sê guia aos teus devotos!
Principia já hoje a acostumar-te a votos!

Erro, ou quando menos grave descuido,


em que alguns cáem no rimar

Se a rima é objecto de luxo , como realmente é,


claro está que se não fôr perfeita não se deve admit-
tir. Pode- se-lhe applicar o que dos poemas em ge-
ral dizia Horacio: « N'um banquete , musica desafi-
nada, essencias rançosas, papoilas com mel sardo ,
levam-se a mal porque sem essas coisas se podia
muito bem comer. Assim a poesia que se inventou
123 -

para deleitação dos animos , por pouquissimo que se


aparte do apice descamba para o infimo . » -
Não basta pois para que duas rimas sejam acei-
tas o serem identicas as inflexões que se lhes refe-
rem. E' necessario que essas vogaes sejam de egual
valor . Se o não forem , o versificador brioso tem de
regeitar essa rima como falha. Ponhamos exemplos :
prego, e nego - rimam bem; prego e Mondego - ri-
mam mal; prelo e velo , bem; prelo e camello , mal ;
vesta e esta, bem ; mesta e cesta , mal; socego e Mon-
dego, bem; cego e morcego, mal ; echo e especo, bem;
boneco e peco, mal ; ceus e veus , bem; ceus e Deus,
mal; fé e sé, bem; José e dé, mal.
O som iu monosyllabo tambem alguns o confun-
dem erradamente com o dissylabo io, e assim rimam
o substantivo rio que é grave com o riu terceira pes-
soa do preterito de rir que é agudo . Fica assigna-
lado o escolho aos principiantes .

DO MODO DE USAR DOS CONSOANTES

Quanto ao modo de usar dos consoantes, é impossivel não


reconhecer uma linha de demarcação, que nos separa dos nos-
sos antigos . Para os antigos tudo estava pautado segundo
os padrões d'Italia e Castella : para fóra das demarcações sa-
bidas, e mui limitadas em numero, ninguem aventurava nem
um passo. Em nossos dias não só cada qual engenha novas
composições de estrophes, senão que no mesmo poema , por
mais curto que seja, as varia a seu sabor, e muitas vezes com
violação notavel da razão e da harmonia.
124

CAPITULO XVII

Emprego dos consoantes entre os antigos

Os nossos maiores tinham para o verso heroico


(decassyllabo), as parelhas, os tercetos, as sextinas ,
as oitavas e os sonetos .

PARELHAS

As semsabores parelhas são os versos decassyl-


labos rimados a dois e dois .

Exemplo:

Passeando o pavão com ufania,


é fama que dissera ao corvo um dia:
« Repara quanto devo a natureza,
«olha que lindas cores! que viveza!
«que adorno ! que matiz ! Olha este rabo !
«em mim não ha senão. E tu, diabo,
«negro como um carvão, como um bisoiro,
«inda és, de mais a mais, ave de agoiro. »
O corvo que na lingua não tem papas,
The responde: « Essas penas são mui guapas,
«mas, para refrear teu desvario,
«observa d'essas pernas o feitio.»>
Ainda (quem dará credito a isto ! )
as pernas o pavão não tinha visto.
Mas que muito, se ha gente, e gente grave,
que em seus olhos não vê nem uma trave!
(BOCAGE.)

TERCETOS

Os tercetos são periodos de tres versos, riman-


- 125 -

do o verso primeiro com o terceiro, e o do centro


com as duas extremidades do terceto seguinte; o
centro d'esse com as duas do immediato, e assim
por diante , até ao fim da composição , que necessa-
riamente rematava n'um quarteto com as rimas cru-
zadas.

Exemplo:

A' foz do Tejo, em bronca penedia,


minada pelas ondas salitrosas,
prisioneiro d'amor Tritão gemia.

Luziam-lhe as espaduas escamosas;


sustentava o maritimo instrumento,
o busio atroador, nas mãos calosas.

Conchas da côr do liquido elemento,


parte do corpo enorme lhe vestiam,
igual na ligeireza ao proprio vento ,

« Rebentae de vulcão, que o mundo abale,


e a peste, que exhalaes do peito horrendo
o fero coração de Lilia rale.>>

Calou-se, e do alto escolho á pressa erguendo


o formidavel corpo, inda mais alto,
e as negras mãos frenetico mordendo,
por entre as ondas se abysmou d'um salto.
(BOCAGE.)

Esta era a fórma usualissima das elegias e epis-


tolas.
126 ―

SEXTINAS

Eram as sextinas geralmente consagradas a as-


sumptos amorosos . Não eram propriamente rimas,
mas tambem não deixavam de o ser; consistiam em
seis versos todos com desinencias differentes, e que
deviam ser substantivos , e geralmente de duas syl-
labas ; todas as sextinas de que uma composição
constasse , por mais que ellas fossem, haviam de
conter cada uma as mesmissimas seis palavras, no
remate dos seus seis versos ; o 1.º verso da segunda
sextina, terminava como o ultimo da primeira; o 2.º
da segunda como o 1. ° da primeira ; o 3.º como o
5.º; o 4.º como o 2.º; o 5.º como o 4.º ; o 6.º como
o 3.º; a sextina, terceira, correspondia á 2.ª como a
segunda correspondia á 1.ª , a quarta á terceira, e
assim por diante; o fecho eram tres versos , conclui-
dos ainda por tres d'aquellas já estafadas palavras,
e que para não ficarem devendo nada, levavam den-
tro em si as outras tres .

Exemplo:

Oh triste! oh tenebroso ! oh cruel dia!


Amanhecido já para meu damno !
Podeste-me apartar d'aquella vista,
por quem vivia com meu mal contente?
Ah! se o supremo fôras d'esta vida,
que em ti se começára a minha gloria!

Mas como eu não nasci para ter gloria,


senão pena, que cresça cada dia ,
o ceo me está negando o fim da vida,
porque não tenha tim com ella o damno,
para que nunca possa ser contente.
Da vista me tirou aquella vista.
127 --

Não via maior gloria que o meu damno,


quando do damno meu eras contente ;
agora me é tormento a maior gloria
que pode prometter- me amor na vida,
pois tirar- te não poude amor da vista,
que só na tua achava a luz do dia.

E pois de dia em dia cresce o danino,


nem posso sem tal vista ser contente,
só com perder a vida acharei gloria.
(CAMÕES.)

Se o senhor poeta toscano Arnaudo Danielo, não inven-


tou em sua vida alguma coisa melhor que estas molhadas de
dormideiras, escusava muito bem o ter nascido ; as sextinas,
de que ha ainda outras confeições, são sempre tão insulsas
como difficeis ; Camões, creado com a leitura de Dante e Pe-
trarca, talvez só para mostrar engenho as compoz; mas são
dessaborosas, como pela amostra se acaba de vêr ; que admi-
ra? impossiveis ninguem os faz.

OITAVAS

A composição da oitava empregada com preferen-


cia na poesia epica , e em geral na narrativa, não ca-
rece de certa symetria graciosa : as suas rimas são
tres , a saber: verso 1.º , 3.º e 5.º; verso 2. ° , 4.º e
6.º; verso 7.º e 8.º; os primeiros quatro versos cer-
ram um periodo.

Exemplo:
Nem deixarão meus versos esquecidos
aquelles, que nos reinos lá da aurora
se fizeram por armas tão subidos,
vossa bandeira sempre vencedora:
um Pacheco fortissimo, e os temidos
Almeidas, por quem sempre o Tejo chora;
Albuquerque terribil, Castro forte,
e outros em quem poder não teve a morte.
(CAMÕES . )
128

SONETOS

Do soneto ha varias composições ; mas a mais


usada entre os antigos, e a unica usada entre nós , é
a seguinte: dois periodos ; um de oito versos, outro
de seis; o primeiro subdividido em dois de quatro
versos , chamados quartetos ; o segundo em dois de
tres chamados tercetos; os quartetos com duas ri-
mas , os tercetos com outras duas; das duas rimas
dos quartetos uma é nos versos 1.º, 4.0, 5.º e 8.º,
a outra nos versos 2.º, 3.º, 6.º e 7.º; das duas ri-
mas dos tercetus uma é nos versos 9.º , 11. ° e 13.º;
a outra finalmente nos versos 10.º, 12.º e 14. °

Exemplo:

Sobre estas duras cavernosas fragas,


que o marinho furor vai carcomendo,
me estão negras paixões n'alma fervendo,
como fervem no pégo as crespas vagas.

Razão feroz, o coração me indagas


de meus erros a sombra esclarecendo ,
e vais n'elle (ai de mim! ) palpando, e vendo
de agudas ancias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,


mil objectos de horror co'a idéa eu corro,
solto gemidos, lagrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu soccorro,


mandas-me não amar : eu ardo, eu amo :
dizes-me que socegue: eu peno, eu morro.
(BOCAGE.)

Os italianos e os nossos quinhentistas punham ás vezes


nos tercetos do soneto tres rimas diversas em vez de duas.
Damos por exemplo o final do primeiro soneto de Camões:
129

O' vós que amor obriga a ser sujeitos


a diversas vontades; quando lerdes
num breve livro casos tão diversos ;

verdades puras são, e não defeitos;


entendei que segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos.
(CAMÕES).

O uso desterrou com razão os tercetos d'esta especie.


Quanto aos quartetos dos sonetos ha tambem outra ma-
neira de os rimar, que é pondo a primeira das suas duas ri-
mas nos versos impares : 1, 3, 5, e 7; e a segunda nos versos
pares : 2, 4 , 6, e 8. No soneto alexandrino a pag. 39 se póde
ver o exemplo.
Os quinhentistas á imitação dos italianos faziam ás vezes
uns sonetos a que chamavam de cauda, que eram com uns
poucos de versos, mais ou menos, postos depois dos quatorze
em ar de postscriptum, anomalia que tambem passou como
outras muitas. Por curiosidade exemplificaremos com Ca-
mões:

Tanto se foram, Nimpha, costumando


meus olhos a chorar tua dureza,
que vão passando já por natureza,
o que por accidente iam passando.

no que ao somno se deve estou velando ,


e venho a velar só minha tristeza;
o choro não abranda esta aspereza,
e meus olhos estão sempre chorando.

Assim de dôr em dôr, de magua em magua,


consumindo- se vão inutilmente ,
e esta vida tambem vão consumindo.

Sobre o fogo de amor inutil agua!


Pois eu em choro estou continuamente,
e do que vou chorando te vais rindo.
130

Assim nova corrente


levas de choro em foro,
porque de ver- te rir, de novo choro.
(CAMÕES .)

SOBRE OS CINCO PRECEDENTES GENEROS DE RIMA

A sextina é, redonda e inquestionavelmente , in-


admissivel ; a parelha deve ser condemnada pela sua
insipidez; o terceto e a oitava podem ainda empre-
gar-se com vantagem , posto hajam caido geralmente
em desuso; o soneto é uma bella composição , mas
pelo abuso que d'ella se fez, tanto como pelas suas
apertadissimas difficuldades, tambem já quasi se
não faz . O soneto portuguez podemos dizer sem exag-
geração nasceu com Bocage, e com Bocage morreu .

Demais: um engenho que respeita a sua propria liberda-


de, e sabe como os arrojos poeticos lhe veem incalculados, re-
pugna forçosamente a circumscrever por força o seu poema
em cento e cincoenta e quatro syllabas, divididas por quatro
periodos preestabelecidos: dois, de quarenta e quatro syllabas
cada um, e dois de trinta e tres.
O soneto portanto não parece muito compativel com a
indole da escola poetica hodierna, o que poderá em parte ex-
plicar a sua raridade.
- 131 -

CAPITULO XVIII

CONTINUAÇÃO SOBRE A RIMA DOS ANTIGOS


VERSOS DE SETTE SYLLABAS

O verso lyrico de sette syllabas , o mais frequen-


tado dos nossos metros , era variamente combinado
e rimado pelos nossos maiores; as fórmas principaes
eram quadras, quintilhas, e decimas; mas tinham ou-
tras: parelhas, tercetos, sextinas, estrophes de sette
versos, oitavas, e estrophes de nove versos .

PARELHAS

Eram dois versos rimando um com outro , e que


commummente serviam para motes e divisas .

Exemplo:

Serra que tal gado tem


não na subirá ninguem .

TERCETOS

Usavam-se principalmente para motes ; por exem-


plo, apoz um verso settisyllabo solto, uma parelha
de eguaes versos rimados .
132

Exemplo:
Esforça, meu coração!
Não na mates, se quizeres ;
lembra-te que são mulheres.

QUADRAS

São estrophes de quatro versos, cujo quarto ri-


ma com o segundo, ficando soltos o primeiro e o
terceiro.

Exemplo:

Defender os patrios lares,


dar a vida pelo rei,
é dos lusos valorosos
caracter, costume e lei.

Ha tambem quadras todas rimadas , a saber: o


primeiro verso com o terceiro, e o segundo com o
quarto .

Exemplo:

Alma tão sem assocego,


que nem d'este ar me farto ,
d'onde com queixume chego,
com mil queixumes me aparto.

ou o primeiro com o quarto, e o segundo com o ter-


ceiro.

Exemplo:

Qual vos vi, e qual me vistes,


meus amados arvoredos,
fui como vós quando ledos,
agora como eu sois tristes.
133

Achámos tambem quadras em que os tres primeiros


versos rimam entre si , e o quarto com o quarto da
quadra seguinte .

E' muito agradavel forma esta de rimar, que eu procu-


rei e consegui introduzir entre os contemporaneos : para lhe
requintar o sabor convem muito nestas quadras que os tres
primeiros versos sejam graves, e o quarto agudo: assim mes-
mo as achamos já no cancioneiro de Rezende.

Exemplo:

Linda caça mui subida,


se descobre em nossa vida,
a qual nunca foi sabida,
nem seu preço quanto val.
Oh! da grã matta Lisboa,
onde toda a caça voa ,
Arabia, Persia, Goa,
tudo cabe em seu curral.

QUINTILHAS

Estrophes de cinco versos e duas rimas; estas


podem ser diversamente collocadas , a saber: uma
no 1.º, 3.º e 5. ° verso; outra no 2.º e 4.º; ou uma
no 1.º, 3.º e 4.º, e a outra no 2.º e 5.º Acham -se
exemplos de composições, nas quaes as quintilhas
d'ambas estas contexturas se vão alternativamente
revezando.

Exemplo :

Pelas ribeiras de uns rios


por onde cantam as aves,
por entre bosques sombrios,
depois de contos mais graves,
ouvi d'estes mais baldios.
- 134 -

E porque eu tambem me afasto


do povo que me não veja,
e traz si me leve a rasto,
vede do tempo em que gasto,
o que me ás vezes sobeja.

Em Sá de Miranda, o principe das quintillas portu-


guezas , achamol-as ainda com outra variedade , a sa-
ber: uma rimando o 1.º verso com o 4.º e o 2.º com
o 3.º e 5.º; e a seguinte rimando o 1.º com o 3.º e
4.º, e o 2.° com o 5.°

Exemplo:

Como eu vi correr pardaos


por Cabeceiras de Basto,
crescer em cercas e gasto,
e vi por campos tão maos
tal trilha, e tamanho rasto!

Nessa hora os olhos ergui


á casa antiga e á torre,
dizendo commigo assi :
se nos Deus não val aqui,
perigoso imigo corre.

SEXTINAS

A mesma difficultosa semsaboria, que já sob este


titulo apontamos , feita com versos heroicos , se fazia
não menos com os de sette syllabas .

Exemplo:

Não posso tirar os olhos


d'onde os não leva a razão. C
Quem porá lei á vontade,
135

confirmada do costume,
vontade, que ás suas leis
manda obedecer por força .

Isto que al é senão força


que me fazem os meus olhos
quebrantadores das leis?
Brada apoz mi a razão,
mas que val contra o costume
em que está posta a vontade?

E' morta ou dorme a razão,


ou não sente por costume,
que farei á maior força?
Hajam piedade as leis
de quem entregue á vontade
vai preso apoz os seus olhos.

Olhos apoz a vontade,


as leis apoz o costume,
apoz a força a razão.

ESTROPHES DE SETTE VERSOS

Compõe- se de tres rimas; a 1.ª nos versos 1.º e


3.º; a 2.a nos versos 2. °, 4. ° e 5.º; a 3.2 no 6. ° e 7.°

Exemplo:

O jogo sempre traz damno,


a quem joga mais verdade;
o ganho vem por engano,
por burlas e falsidade;
e de tal enfermidade
poucos podem escapar,
se não deixam de jogar.
- 136

OITAVAS DE SETTE SYLLABAS

D'estes versos faziam tambem umas oitavas que


eram propriamente duas quadras, com duas rimas
cada uma; na primeira rimando verso 1.º e 4. °, e
verso 2.º e 3.º; na segunda verso 1.º e 3.º , e verso
2.º e 4.°

Exemplo:

Não sei que possa dizer


por vós que seja louvor!
que se tão ousado fôr,
perderei o intender.
Quando quero começar
é coisa que não tem cabo:
antes me quero calar
que cuidarem que vos gabo .

A's vezes a oitava tinha a quadra rimada , como esta


segunda, em 1.º logar, e a rimada como a primeira
no 2.º

Exemplo:

Vós não no tomaes por vós,


mas vós sois tão desairoso,
que fazeis qualquer de nós
de semsabor gracioso .
De mula e de cavallo
no terreiro, e no serão,
sois tão fóra de feição ,
que eu já não posso calal- o .

ESTROPHES DE NOVE VERSOS

Compunham-se, ainda que não frequentemente ,


137 -

umas estrophes de nove versos , divididos em dois


periodos , e cada periodo de duas rimas ; um perio-
do de cinco versos rimando, como já dissemos da
quintilha, e outro de quatro rimando entre si os pa-
res, e entre si os impares .

Exemplo:

Dos nossos Sás Colonezes


gram tronco, nobre columna,
grosso ramo dos Menezes,
em sangue, e bens de fortuna,
que é tudo entre os portuguezes.
Mas vós que sempre vos ristes
do povo que não vê mais,
ricamente alma vestistes,
o mais tendo por demais.

DECIMAS

A decima divide- se em dois periodos; um de


quatro versos ; outro de seis ; as suas rimas são : 1. °
com 4. ° e 5.º; 2.º com 3.º; 6.º e 7.º com 10.º; 8.º
com o 9.º: ao todo quatro rimas diversas.

Exemplo:

Tres vezes sobre meus lares,


vozeou quando eu nascia
ave, que aborrece o dia,
que prevê crueis azares.
Amor dividira os ares
de seus tormentos cercado,
á funda estancia do fado
o vôo havia abatido,
e ambos tinham resolvido
que eu fosse emfim desgraçado.
(BOCAGE . )
138 -

Em tempos mais antigos davam o nome de decima


a umas estrophes divididas em duas quintilhas , e
talvez mais engraçadas; uma das quintilhas com duas
rimas alternadas ; a outra rimando o 1.º verso com
o 2. ° e o 5.º; e o 3.º com o 4.º

Exemplo:

Qual será o coração,


tão crú e sem piedade,
que lhe não cause paixão
uma tão gram crueldade ,
e morte tão sem razão!
Triste de mim, innocente,
que por ter muito fervente
lealdade, fé, amor
ao principe, meu senhor,
me mataram cruamente.

SOBRE AS CINCO PRECEDENTES COMPOSIÇÕES DE RIMA

Exceptuando as sextinas , todas as especies exem-


plificadas acima são susceptiveis de bello effeito,
quando tratadas por mãos babeis ; sobre tudo as
quadras, as quintilhas , e a liga da quintilha com a
quadra. Quanto á quintilha per si só observaremos ,
que admitte ainda uma nova variedade , a saber:
rima do 1.º verso com o 2.º e 4.º; e do 3.º com o 5.º

Exemplo:

Eis o nosso pegureiro,


plantando em torno do olmeiro,
verde purpureo rosal,
monumento de um primeiro
doce beijo virginal.

Como a variedade sem confusão , seja um dos prin-


cipios de agrado para o ouvido, bom acerto será em
439 ―

um poema de quintilhas revesal-as symetricamente,


quando menos de duas diversas composições ; o
mesmo diremos quanto ás quadras; muito melhor
faria quem as alternasse rimadas de diverso modo ;
quanto á decima, alguma coisa se podéra dizer ; mas
o seu tempo parece ter passado com os oiteiros, e
as glosas: um gosto extremado não achará nessa
perda muito que deplorar .
De todas estas formas, a quadra, em que só ri-
mam o segundo com o quarto verso , é a mais cos-
tumada por facillima, e a que sae de improviso até
aos que não sabem ler.

Omittimos outras composições hybridas de estrophes e


consoantes dos versos de sette syllabas; o que fica posto é
já sobejo.

CONTINUAÇÃO DA RIMA DOS ANTIGOS

Versos de onze syllabas

OITAVAS

Compunha-se de dois periodos com tres con-


soantes; o 1.º verso rimava com o 3.º; o 2.º com o
4.º, 5. ° e 8.º; o 6.º com o 7.º

Exemplo:
Meus olhos mais agua que fontes lançavam;
mui grandes gemidos a voltas se iam;
meus tristes sentidos jámais repousavam,
mas antes seus males dobrados sentiam .
Prazer e descanço de mim se partiam ,
á conta d'aquestes, comigo ficava :
se minha firmeza esperança me dava,
vossos desfavores matar-me queriam.
-- 140 -

Dos versos quebrados, e seu uso nas


rimas dos antigos

Costumavam os nossos antigos misturar syme-


tricamente com certas especies de versos , os seus
respectivos quebrados , isto é , a sua primeira meta-
de ou hemistichio; com o verso de dez syllabas, o
de seis; com o de sette syllabas, o de tres ou de
quatro; com o de onze, o de cinco; e assim, riman-
do, se lhes aprazia , variavam as suas estrophes .

Exemplo de estrophes decasyllabas com quebrados :

Oh! Delia, que apesar da nevoa grossa,


co'os teus raios de prata
a noite escura fazes que não possa
encontrar o que trata,
e o que n'alma retrata
amor, por teu divino
raio, porque endoideço e desatino.
(CAMÕES. )

Exemplos de versos redondilhos com os seus quebrados :


-«Senhora, pois minha vida
«tendes em vosso poder :
«por serdes d'ella servida,
«não queiraes que destruida
"possa ser.»-
-«Falso cavalleiro ingrato,
«enganaes-me,
«vós dizeis que eu vos mato,
«e vós mataes- me.>>

Exemplos de versos d'arte maior com os seus quebrados :


O qual se lamenta
da adversa fortuna, em que corre tormenta,
e porque a comedia vai tão decrarada,
e tão raso o estylo, não serve de nada
o mais argumento, e cerro a ementa.
- 141

CONCLUSÃO DA MATERIA PRECEDENTE

Além d'estes padrões principaes, poderiam apontar-se com-


posições antigas com differentes combinações metricas e ac-
cidentes de rimas; o curioso sem guia os encontrará, queren-
do folhear os auctores ; nós julgâmos ser já tempo de levantar
mão d'esta materia, para virmos aos contemporaneos.

CAPITULO XIX

DAS ESTROPHES E RIMAS DOS


CONTEMPORANEOS

Um tomo houveramos de encher, a querermos miudear e


exemplificar todas as variedades de composições metricas dos
nossos dias. Nisto a liberdade, quanto a nós, tem passado a
licença e anarchia; é sim a variedade uma origem de praze-
res; mas, quando o bom gosto lhe não preside, degenera fa-
cilmente em confusão, que fatiga e enfastia ; razão porque os
principiantes, em quanto o forem, farão melhor em se ir for-
mando nos bons e approvados exemplares, do que em se
abalançarem a innovações; por onde os Dedalos vôam , preci-
pitam-se os Icaros.

Em duas especies podemos dividir a actual poe-


-
sia rimada, regular e irregular. A primeira é para
todos a mais segura; a segunda é capaz de grandes
effeitos, mas sobre modo occasionada a precipicios .
A primeira, a de estrophes uniformes, offerece a
difficuldade de sujeitar a compartimentos de eguaes
dimensões os pensamentos dos mais diversos volu-
mes; mas a segunda, pelas suas ostentosas presum-
142

pções , obtem menos indulgencia quando pecca, e


pecca muitas vezes .

Requer ella essencialmente : -1 .° um grande conhecimento


das affinidades, e repugnancias mutuas dos metros; —2.º um
tino não vulgar no auctor para bem comprehender a secreta
relação ou repugnancia que se dá entre tal ordem de idéas e
tal rithmo, que se lhes destina. Variar de medida só por va-
riar, mais vezes indica esterilidade, que abundancia . O lei-
tor, a cada uma d'essas transformações de fórma, estaca, sem
saber como lêa: é o que succederia numa dansa se o tocador
malicioso inopinadamente lhe invertesse os compassos; e o
leitor iniciado na arte, não percebendo logo o porquê de tal
capricho no poeta , diz comsigo sorrindo "acabaram-se-lhe
as forças para proseguir por onde ia. » - Se já Horacio acima
citado com tanta razão escrevia, que os poemas inventados
para deleite, em declinando um poucochinho do optimo, iam
logo pendidos para o pessimo, e punha como razão que em
coisas de luxo se não perdoava á mediania , quanto mais se-
vero se não deve ser com o que é mais luxo que poesia , pois
é poesia rimada; e mais luxo ainda que poesia rimada, pois
é rimada a capricho, e com atrevimento só a rarissimos con-
cedivel!
Deixando, portanto, esta materia, que pertence exclusiva-
mente aquelles que não carecem das nossas regras, fallemos
só das estrophes regulares.

Da composição das estrophes regulares

Como principio muito prudente e seguro, assen-


temos em que as estrophes ou periodos metricos
eguaes, em que um poema longo ou curto se divi-
de, devem compor-se, ou de versos inteiros todos
da mesma medida , ou symetricamente entremeados
ou rematados pelos seus quebrados respectivos .
Segundo o que, onde na 1.ª estrophe ficarem versos
graves, onde agudos , onde esdruxulos , devem egual-
mente cair em todas as outras estrophes, versos
graves, versos agudos, e versos esdruxulos . Nisto
143 -

julgo cifrados os principaes preceitos . Ha, porém,


ainda advertencias, a que o principiante deverá dar
muita attenção .
Quando as estrophes constam de dois ramos ,
quer estes sejam eguaes em quantidade de versos ,
quer deseguaes ; por exemplo, quatro e quatro , qua-
tro e tres , tres e quatro , cinco e tres , seis e dois ,
etc. , o ouvido approva muito, não só que esses dois
ramos rimem um com o outro pelo fim, mas que ri-
mem em agudo.

Exemplo:

Vós á terra e ao ceo propicios,


que daes com mil beneficios,
contra a fome, e contra os vicios,
asylo ao bando infantil;
redobrae com mãos piedosas
esmolas, que, milagrosas,
recobrareis feitas rosas,
nos campos do eterno abril.

O sultão entre columnas


sobre coxins d'escarlata,
oiça do eunuco a volata,
veja seios nús pular;
não se move; inerte e frio,
é qual idolo vasio
entre aromas, sobre o altar.

Nasci no rico Oriente,


criei-me entre as verdes palmas
para amor.
Amor me poz no Occidente,
fez-me d'alma duas almas
para a dor.

Recordas-te, ingrata,
quando eu te dizia,
144 -

que em sonhos Armia


cedia a meus ais?
sorrias; córavas;
fugias; juravas
que nunca meus sonhos ,
seriam leaes.

Os versos que antecedem ao ultimo em cada


ramo da estrophe, convem sejam ou todos graves,
como nos exemplos precedentes, ou symetricamente
entremeados de esdruxulos .

São estes uns primores, que nossos maiores nem suspei-


tavam ; pertencem todos á arte moderna; a sua origem deve-
se á Italia, e nomeadamente ao popularissimo Metastasio. Tho-
maz Antonio Gonzaga, na sua Marilia de Dirceo, póde ser ha-
vido por introductor de tão bom costume entre nós.

Nas composições em periodos de quatro versos ,


de qualquer medição que elles sejam, a melhor ri-
ma é a do 1.º com o 3.º em grave , e a do 2.º com o
4.º em agudo.

Exemplo:

Voto a Allá, meu laúde cançado ,


se consigo esta flôr das Huris,
que has- de em Mecca pender marchetado
de oiro e perlas, de prâta e rubis.

O pôr sempre tantas rimas graves como agudas ,


não é, porém, para nós uma obrigação rigorosa ,
como é para os francezes; e para nossa lingua seria
isso muito mais difficil, do que o é para a d'elles ;
entretanto chegando- se a conseguir e bem, ter-se-
ha feito boa obra ; os versos agudos no 1.º e 3.º, e
os graves no 2.º e 4.º , ou os graves no 1.º e 4.º, e
os agudos no 2.º e 3.º , já não provam tão bem; o
145 -

1.º e 3.° soltos são admissiveis ; quando, porém,


esses soltos são esdruxulos , podem-se haver por
muito mais ricos , do que se rima fossem.

Exemplo:

Salve frondente abobada.


Salve calado olmeiro ,
vós testimunhas unicas
do beijo meu primeiro.

Todo o verso agudo ou esdruxulo posto ao aca-


so, onde nas outras estrophes do mesmo poema se
poz sempre grave, e por isso o ouvido tinha direito
de contar com elle, se não é erro, é um defeito .

Do modo de procurar as rimas

A facilidade do rimar é filha do uso; no principio nin-


guem a possue, mas a poder de exercicio a tal ponto chega
ella, que se improvisa. Este exercicio faz - se por dois modos
conjunctamente: lendo com attenção poesias bem rimadas, e
rimando ao cabo; tão de improviso se acham as rimas como
o metro; pois que outra coisa é a facilidade de rimar senão
ter a memoria bem provida de consoantes, e o habito de os
escolher com rapidez?
Eis aqui um remedio caseiro e facil para supprir diccio-
nario de rimas.

Vamos combinando mentalmente com a desinen-


cia, para a qual desejamos rima, cada uma das let-
tras do alphabeto, e em cada uma detendo-nos o
tempo necessario para nos occorrerem as palavras
nossas conhecidas, que assim terminam; v . g. quer-
se rima em asco? A, asco; B, barbasco; C, chasco,
casco nome e casco verbo, descasco, entrecasco; D,
nada; F, nada; G, gasco; J, nada; L, lasco, Nolas-
co, Velasco; M, masco, damasco; N, penhasco; P,
10
146 -

nada ; Q, nada; R, rasco, enrasco, desenrasco, fras-


co; T, atasco; V, Vasco; X, nada; Z, nada .

Conselho optimo será, que nas horas ociosas o princi-


piante se adestre em escogitar assim os vocabulos, para quan-
tas desinencias lhe occorrerem ; é um divertimento que dá
fructo, e elle o sentirá depois em querendo rimar ; é um suave
emprego para os agradaveis minutos que medêam entre o
aninhar na cama, e o pegar no somno, e de tal natureza, que
até ajuda a concilial-o.

CAPITULO XX

SOBRE A RECITAÇÃO DOS VERSOS

Agora que julgo ter disposto , com assaz de desenvolvi-


mento, tudo que respeita á parte mechanica da composição,
convém que desfaçamos um andaimo que haviamos armado
para nos servir nesta construcção, que durante ella nos foi
util, mas que já d'aqui avante se não poderia soffrer; fallo
da cantilena com que o ouvido se habituou para reconhecer
de un modo certo e infallivel a justeza de cada metro.

A recitação dos versos não ha-de ser modulada


como geralmente a costumam .

Em verdade que é este um abuso bem difficil de desar-


reigar; é antigo, e é de todos os povos. Os poetas, que são os
que nisso mais perdem, foram provavelmente os seus intro-
ductores; dos auctores dos poemas pegou- se aos leitores d'el-
les: a posse o fez parecer necessidade natural.
Era mister nada menos que uma revolução completa nas
147

artes, para lhe demonstrar o absurdo e estirpal- o ; essa revo-


lução fez -se, ou, pelo menos, está começada. O theatro, que
era o mais contagioso propagador da falsa declamação, do tom
artificioso, enfatico, e monotono, o theatro, benzido pela phi-
losophia nova, desendemoninhou-se, e fallou ; voltou para a
natureza simples que tinha renegado , ousou ser verdadeiro,
e para logo a poesia, que se arrebicava para lhe comprazer,
arremeçou os oiropeles, e trajos ridiculos, que a desfigura-
vam, e appareceu como as deusas do cinzel grego, rica e or-
nada de sua mesma desnudez . Se tratassemos aqui de alguma
coisa mais do que de declamação, poderiamos, e deveriamos
talvez, notar excessos d'esta reacção da natureza contra o ar-
tificio, porque a desnudez da poesia renascente timbrou tanto
em assoalhar o que era obsceno, torpe e repugnante, como
mil graças nativas, que d'antes sem razão e contra toda a ra-
zão se recatavam; mas nós tratâmos hoje unicamente da de-
clamação, e até de uma só e minima parte d'ella ; os estudos,
que sobre o total d'essa importante arte tenho feito, reque-
rem e hão-de ter um livro á parte; digo, pois, em summa, o
que já outra vez ponderei a respeito da recitação dos versos
no prologo á minha traducção das Metamorphoses, pag. 21 e
seguintes, que :

recitar versos não deve ser medil-os nem cantal-os ;


os tons e inflexões da voz devem-se variar, como até
na prosa, para fugir da monotonia, alternando- se to-
das as diversas notas semi- musicas, que houver na
escala natural da voz do recitador; o emprego d'es-
tas notas não deve ser ao acaso , mas regular-se pelo
discernimento; pois ha verdadeiras correspondencias
de sympathia ou antipathia, entre cada uma d'ellas ,
e cada uma das idéas ; as notas mais graves , condi-
zem com os pensamentos mais graves e pausados ;
as mais agudas , com os mais impetuosos , com os
mais ardentes; a desanimação e a melancolia, que-
rem tons baixos; a alegria, o enthusiasmo, tons su-
bidos ; é espreitar minuciosamente a natureza , co-
lhel-a, e seguil-a .
As pausas do recitador não devem ser determi-
nadas pela contagem das syllabas, mas pelos cortes
148 ---

mais ou menos profundos do pensamento ou do affe-


cto que se expressa.

Os versos pontuados com miudeza, como eu me propuz e


pratiquei na traducção das Metamorphoses, poderiam nesta
parte ajudar os exercicios do principiante .

Nem o hemistichio necessita de ser com a reci-


tação extremado do hemistichio, nem mesmo cada
metro dividido do seguinte , salvo quando no hemis-
tichio ou metro a idéa mesma vier pedindo uma pa-
ragem .
A velocidade da recitação , variando-se calcula-
damente, contribue sobre modo para commover,
persuadir e arrastar o ouvinte .
Neste particular a boa declamação só pode ser
filha de um estudo previo e profundo; do trecho que
se pretende declamar; para direcção eis-aqui alguns
principios geraes : o que é raciocinio e meditação , re-
quer morosidade; o que é extemporaneo , subito e
como que inspirado, exige rapidez; a melancolia é
morosa; a jocosidade, o alvoroço, o enthusiasmo, os
affectos vivos , a ira, são tanto mais velozes quanto
maior é a sua intensidade; a vingança costuma ser
tardia nas suas concepções, como que hesita de pas-
so a passo; a benevolencia brota do instincto e corre
caudalosa. O que se refere á velhice , á desgraça , ao
outomno e inverno, á noite e á morte, assume em
geral o caracter do recolhimento; pelo contrario o
que é da meninice e adolescencia, dos folgares da
primavera e estio, etc., arremessa- se com facilida-
de. As excursões do espirito pelas regiões d'além
mundo são constantemente precedidas da sonda , em
quanto pelo tumulto da vida social, e delicias do vi-
ver cidadão, a alma se precipita como por terreno
conhecido e declive.
― 149

Entre os graus de velocidade, e os da escala de


tons, ha secretas harmonias , mas que se reconhe-
cem facilmente; os tons mais baixos sympathisam
com as pausas mais dilatadas; os mais agudos com
as mais ligeiras .
A força de voz deve ser proporcionada á inten-
ção que acompanha cada idéa ; esta escala é vastis-
sima, pois corre desde o tom confidencial e do se-
gredo , que são caracteristicos da tristeza , da inveja,
e de outros affectos que a si mesmos se aborrecem ,
até ao brado, ao grito, ao clamor, que parecem es-
pontaneos no alvoroço e nas paixões nobres . Não
quero dizer que havemos de seguir aqui á risca a
natureza, tomando como expressão d'ella o familiar;
digo, porém, que atravez das modificações exigidas
pelo decoro do declamador e dos ouvintes, essa mes-
ma natureza se deve sempre reconhecer , como por
baixo dos panejamentos da estatua, da pintura ou
do vivo, avultam ou se adivinham as fórmas do cor-
po humano.
É um estudo este, mui delicado, mui difficil, e
em que os nossos actores ainda desgraçadamente
não cairam .
Quanto mais perfeitamente se comprehenderem ,
e com mais exacção se desempenharem estas re-
gras, tanto menos distará de perfeita a declamação ,
assim dos versos , como da prosa .
A respiração é outro ponto muito digno de es-
tudo; todos os dias ouvimos cantores , aliás excellen-
tes , por não haverem aprendido a tomar o folego a
tempo, deitarem a perder as suas arias, desfallecen-
do-lhes, ou faltando- lhes de todo a voz, onde mais
careciam d'ella ; e outro tanto se haverá observado
em tocadores de instrumentos de sopro..
A recitação , quer de verso , quer de prosa, tem
de apresentar, assim como a musica, periodos mais
150

ou menos longos , e em cada um dos quaes póde ha-


ver mais ou menos dispendio de expiração ; por con-
seguinte devem regular-se prudentemente os tem-
pos das aspirações, assim como a maior ou menor
abundancia d'ellas .
Depois de ponto final é sempre conveniente en-
cher de ar toda a caixa do peito, assim como o é,
quasi sempre, depois da interrogação ou da admira-
ção; apoz os dois pontos , e mesmo apoz o ponto e
virgula, poderão ainda os pulmões prover-se com
bom acerto; na simples virgula será já improprio ; e
onde nem virgula cabe , será absolutamente inadmis-
sivel. Em summa, haver-se-ha cuidado em que a as-
piração coincida , quanto possivel fôr , com as pausas
ou córtes racionaes, por maneira que o ouvinte a não
perceba, pois não sendo ella declamação , nem parte
de declamação , mas só uma condição physica para
que a declamação exista , o deixar- se perceber dis-
trahe a quem escuta , e faz recair da illusão na reali-
dade, e do ideal no positivo, como nestas caixas de
musica mechanica o estridor de certas molas ou ro-
das mais asperas , ou menos bem assentes , nos veda
attender ás melodias e harmonias das sonatas . Tra-
tae de reconhecer a extensão ordinaria do vosso fo-
lego, comparando-a repetidas vezes com periodos de
diversas extensões ; obtido este conhecimento neces-
sario , medi com os olhos , antes de encetardes cada
periodo que haveis de ler, o comprimento d'esse
mesmo periodo, isto é , certificae- vos se o numero
de vocabulos comprehendidos entre ponto e ponto,
entre ponto e dous pontos , ponto e admiração , etc.,
vos cabe sem violencia em uma só aspiração; achan-
do que sim, tomae-o e accommettei- o; aliás , registae
de antemão alguma paragem intermedia, como pon-
to e gula, em que disfarçadamente aspireis ,
151 -

Concluindo esta parte do nosso tratado, não podemos abster-


nos de fazer uma pequena excursão por um assumpto convisi-
nho, de muito mais importancia do que á primeira vista poderá
parecer. O metal da voz, de que depende inegavelmente uma
grande parte do effeito favoravel ou desfavoravel do que se
recita, é sem duvida um dote natural; é como a formosura ou
a fealdade, uma graça ou uma desgraça original . Se bem o ob-
servardes, notareis certas vozes, tanto em mulheres como em
homens, de tal maneira sympathicas, que tudo quanto pro-
ferem o aformoseam, e vos captivam e persuadem indepen-
dentemente da razão, e muita vez a despeito d'ella; que vos
fazem amar mais o erro conhecido, do que outras a verdade
manifesta. O metal de voz resultado do diametro e compri-
mento da trachea, da construcção da larynge, da farynge, da
boca, das fossas nasaes, etc., é inquestionavelmente, como dis-
semos, um dote natural; entretanto com estudo bem dirigido
e perseverante, tenho, que será possivel, senão transformal-o
de feio em formoso, pelo menos modifical- o grandemente; e
que perderiam os mal aquinhoados da natureza em o tentar?
o orador gregro não domou vicios rebeldes da sua falla á força
de teimar? e S. Jeronymo não chegou a limar os dentes para
bem pronunciar o hebraico?
Aquelles, que por lhes parecer nova a proposição, para
logo a escarnecessem e regeitassem como utopia, pediria eu,
que, antes de rir, se dessem ao trabalho de ponderar alguns
factos, cuja existencia não podem negar; e admittidos os quaes,
a utopia deixa por ventura de o ser; esses factos eil - os aqui ;
são communs. Domesticos antigos contrahem involuntaria-
mente, e sem se sentir, não só parte do pensar dos senhores
com quem convivem , e muito das suas maneiras e gestos, se-
não tambem o que quer que seja da sua voz. Os actores de
primeira ordem, dir- se-ia que transformam tantas vezes o
seu orgão vocal, quantos são os caracteres que desempe-
nham .
Ha pessoas em quem a faculdade imitativa da falla chega
ao ponto de quasi completa illusão.
As mulheres cuja vida licenciosa as traz mais familiarisa.
das com os homens do que com os individuos do seu sexo, e
que nelle só tratam com entes já egualmente desnaturalisa-
dos, têem no seu fallar um não sei quê de masculino, que se
não deve attribuir só á crápula, e ao abuso dos prazeres. Fi-
nalmente os proprios instrumentos musicos, que pela sua ma-
teria e pela sua construcção, poderam parecer menos sujeitos
a influxos taes, como a flauta, a clarineta, a corneta, a tróm-
pa, se é verdade o que dizem os seus professores, aprendem
152

asperezas e desafinações quando barbaramente tocados, assim


como, com a boa e constante educação se melhoram, e apu-
ram .
Vós a quem a natureza recusou uma das primeiras e mais
irresistiveis seducções, a da falla, ponde peito a conseguil- a
se sois poetas; ponde-o, se sois oradores, actores, educadores,
mestres oraes de qualquer sciencia ou arte; e ponde- o, ainda
que não sejaes cousa alguma d'estas; por pouquissimo effeito
que vos surtam os vossos esforços por bem pagos d'elles vos
dareis.
O nosso amigo snr. Duarte de Sá, que todos reconhecem
por mestre, e exemplar peritissimo de representação e decla-
mação, apresentará n'um livro que traz entre mãos , para in-
strucção e aperfeiçoamento de actores, um sem numero de
verdades uteis e utilissimas, que o seu estudo, a pratica, e a
reflexão, lhe teem feito descobrir ácerca de todas estas coisas .
Nós só deixamos apontadas algumas idêas geraes; o desen-
volvel-as e completal - as toca ao benemerito professor.

CAPITULO XXI

DA POESIA

Construimos, e afinamos o instrumento; aprendemos -lhe


a escala e os segredos; -falta o hymno que o ha-de animar, e
divinisal-o.
O esculptor tem prestes a argilla e os utensís de model-
lar; o pintor a palheta e os pinceis; mas a estatua está por
formar; a tela, que ha-de ser quadro, conserva-se em branco.
O templo, os incensos, e as flores, estam prestes; o sacer-
dote perante a ara, e o Deus, a quem todo este culto se en-
dereça, não baixou. O seu oraculo, a poesia, não existe ainda.
Os versos, de que até aqui temos tratado, não são mais
que a fórma sensivel, e como quer que seja material, com
que a poesia se nos revella. Como todas as artes plasticas, a
versificação pode ser facilmente submettida á analyse, e su-
153 -

jeita a regras; não assim o enthusiasmo. A sua essencia é li-


berdade. Creador, como o Creador de quem procede, é ao
novo, ao desconhecido, que o enthusiasmo aspira de contí-
nuo. Debalde estudarieis a sua historia para lhe profetisar-
des o porvir; e mais debalde ainda para por ella The impor-
des leis . Variavel como Proteo, e inexhaurivel como a na-
tureza, incarna -se em toda a especie de gigantes repentinos e
inesperaveis; aqui, sob o nome de Homero; além, de Moyses,
de Jeremias, de Baruc , de David, de Salomão, de Virgilio, de
Propercio, de Dante, de Shakspeare, de Klopstock, de Ca-
mões, de Hugo, de Lamartine; é o Wishnou da mythologia
Indica, apparecendo cada vez com uma diversa metamor-
phose, e cuja derradeira está ainda e estará sempre por che-
gar.
A observação e o estudo conseguiram reduzir a codigos,
não só as acções do homem, senão ainda os trabalhos da na-
tureza. Predizem- se ao musgo e ao cedro todas as fases da
sua existencia; ao mosquito e á aguia, todas as suas obras; ao
oceano, aos planetas, ás constellações, os seus movimentos; ao
estro não. ¿Quem dira onde elle poisa, e que prepara em cada
hora? ¿Dormita sonhando a felicidade do genero humano?
¿Inclina a sua fronte meditativa para o abysmo do passado,
ou para o do futuro?-Onde esperaes que vos baixe do céo,
como pomba candida, surge-vos do abysmo; -quando aos
abysmos perguntaes por elle, vos baixa das alturas. Uma vez
alvorece com a aurora todo a rir- se para a terra florescente ;
-outras, sentado aos pés da cruz na clareira dos bosques,
verte lagrimas suaves, em que a luz mistica das estrellas se
apraz de reflectir-se.
Se jamais, porém, a poesia como inspiração foi potencia
incoercivel, é hoje; hoje que a tempestade entrou na caverna
da Sybilla, alvorotou, confundiu , e perdeu todas as folhas em
que ella havia escripto as suas antigas respostas:

....nec ponere in ordine curat.

Os centenares de poeticas antigas, que não passavam de


registos ou actas, do que a poesia deixava apoz si em tal ou
tal seculo e paiz, legislam hoje tanto como as mumias dos
Pharaós dentro nas suas pyramides no meio dos areaes de-
sertos. O mundo velho desappareceu com a sua espirituali-
dade materialistica, com a sua fatalistica liberdade, com os
seus canticos de luz e rosas , com as suas duas extremidades
cifradas ambas no seu presente; -passou! os seus derradeiros
154

echos, que ainda por dezoito seculos lhe sobreviveram, aca-


bam de se esvaecer.
A logica e o sentimento vedam qualquer passo retrogrado
para o que foi. A nossa era é christã; não christã confessora,
nem martyr, nem apostola como a primitiva da egreja; não
de fé positiva, explicita e ardente; não de caridade sublime;
mas christa por philosophia; christã de esperança ; christã de
remorsos; christã de aspirações para o summo bem; christa
de amor vago; de sympathia para com tudo; christã em fim,
menos por authoridade, ou por convicções demonstrativas,
do que por desejo, por instincto, e por infortunios. Esta in-
filtração do espirito do christianismo no intimo dos entendi-
mentos que o direito divino fez principes e conductores por
entre a imitativa plebe dos espiritos, produziu o mais nota-
vel caracteristico da poesia hodierna. A poesia antiga pouco
mais tinha que a actualidade:

Quod sit futurum cras, fuge quærere ;

a de hoje, pelo contrario, quasi que não sabe considerar o


presente em abstracto das relações com o que era, e com o
que ha-de ser; a antiga cantava as delicias do viver, inter-
rompendo - se apenas com um gemido, quando um espinho por
entre as suas rosas a picava, quandò d'entre os seus lyrios a
mordia uma abelha:

Mens sana in corpore sano ;

a presente, acceita as dores, procura-as e enthesoira-as, pede


ao preterito ora saudades, ora arrependimentos; ao possivel,
ora receios, ora esperanças.
O amor para com a mãe, e o amor para com os filhos,
symbolisariam esta poesia; symbolisal- a-hia ainda o amor da
terra, que é de alguma sorte complexo d'aquelles dois. A po-
breza e o infortunio são mais inspiradores para esta poesia,
do que os deleites e a serenidade o foram para a que morreu.
As incertezas mesmas dos nossos tempos; as continuas des-
truições a que assistimos; o anhelar de toda uma geração para
o progresso, são incommodos, mas são poesia. Antigamente,
a poesia fazia- se, ou apanhava- se feita, como se colhem po-
mos e boninas; hoje a poesia vive-se; resalta de tudo que nos
cerca; podendo-se dizer com assaz de exacção, o quê já al-
guem disse; que a artificial é a prosa , e a poesia a natural ;
porque o natural da alma intelligente e affectiva, é multipli-
155

car cada vez mais as suas relações com os entes do mundo


externo.
A poesia grega, a romana, e a romanisada, tinham o seu
pendor para a synthese; a nossa tem o seu para a analyse;
d'ahi provinha ser aquella susceptivel de maior perfeição de
contornos, e de um gosto mais irreprehensivel ; ao mesmo
passo que esta faz absolver as suas mesmas irregularidades,
por um cardume de pequenos effeitos novos e imprevistos;
os productos d'aquella eram como os da estatuaria, em que a
fórma extrinseca é tudo; os d'esta lembram os trabalhos da
anatomia e da pathologia, nos quaes o desencantamento de
milhões de arcanos, compensa muita repugnancia e muito as-
co; lá, mostrava -se do viver humano a sala e o jardim; cá,
descerram-se, talvez com demasiada franqueza, todos os re-
cantos e penetraes mais intimos; o camarim, a alcova, o sub-
terraneo, o oratorio, e o mirante; onde não chega a luz do dia,
vae- se com a lanterna exploradora. Em summa , então o can-
to era só melodia, o Parnaso o seu mundo; agora todo o
mundo, e todos os mundos, são o seu Parnaso; e os seus can-
tos uma harmonia infinita n'uma harpa de mil cordas . D'um
lado a perfeição, mas desanimada; do outro, as commoções,
mas a miudo acompanhadas do delirio . Para Anacreonte bas-
tava uma taça e violetas; para Horacio a fonte de Blandusio ,
e um banquete de epicureo em casa de Mecenas; o genio ao
presente necessita de que o seu alaúde troveje no inferno,
cante ou gema na terra, suspire no ceo, e se disperse pelo in-
finito.
O desiderandum, a ambição de todo o verdadeiro poeta,
deveria ser contornar, se é possivel, toda a paixão moderna
com a severidade das fórmas antigas; fundir com a graça ele-
gante e irreprehensivel de Virgilio, a desgrenhada nudez de
Shakspeare; produzir d'estes elementos diversos, mas não op-
postos, um todo mais precioso que elles ambos; como dos va-
rios metaes, derretidos pelo incendio, appareceu para esta-
tuas de deuses o metal de Corintho.. ¿Que seria necessario
para o conseguir? o estudo profundo dos modelos antigos, de-
terminando o que lhes fallece; e egual estudo das obras pri-
mas modernas, apontando o que lhes sobra; ter sempre pre-
sente ao espirito, que a arte é alguma coisa mais do que a na-
tureza, e para o ser não póde prescindir de sublimar o ver-
dadeiro até ao ideal, isto é, de aspirar ao bello, á perfeição
archétypa em tudo e constantemente. Numa palavra, e por
derradeiro, se é difficil e impraticavel prescrever hoje leis á
poesia, um conselho saudavel se póde, e deve dar comtudo
aos seus noveis cultores; este conselho não é novo; já ha
156

dezenove seculos, já antes que despontasse da Judéa o sol da


moral, das artes e da civilisação, já no seio da mais corrom-
pida cidade do mundo, para pagãos o havia escripto o pri-
meiro mestre da poetica.
«Aprendei a philosophia dos deveres, » dizia elle, « apren-
dei o que se deve á patria, aos amigos ; o amor que vos me-
recem vossos paes, vosso irmão, e o vosso hospede; as obri-
gações do soldado, do general, do juiz; seja Socrates o vosso
mestre.»
Mais do que Socrates, seja o nosso; seja aquelle, que, ci-
frando em si a humanidade e a divindade, não só completou
e exemplificou a theoria de todas as virtudes, mas foi elle
mesmo o prototypo da mais completa, da mais absoluta poe-
sia; a conciliação mais portentosa do positivo com o ideal.

P. S. O auctor annunciára ha annos uma tentativa so-


bre poetica para se ajuntar como complemento ao presente
opusculo sobre metrificação . Parte d'esse projecto, principiou
a ser impressa; mas taes montanhas de difficuldades a todos
os momentos lhe surgiam em tão vasto, tão complicado, e tão
controvertido assumpto, que o obrigaram a parar, e a desis-
tir do empenho, e para sempre. Uma poetica geral para hoje,
figura-se-lhe coisa impossivel. Cada um tem a sua boa, ou
má, e nenhuma outra aceitaria.

FIM .
INDEX

Pag.
Dedicatoria.. 3
Prologo... 5

CAPITULO I

O que seja verso . 9

CAPITULO II

Dos accentos predominantes, ou pausas em


geral .... 23

CAPITULO III

Quantas especies de metros ha em lingua


portugueza ... 26

CAPITULO IV

Versos agudos , graves e esdruxulos. . . . . . . 32

CAPITULO V

Dos metros simplices e compostos em geral 38


INDEX

CAPITULO VI

Primeiro exercicio metrico ... 54

CAPITULO VII

Dispensavel digressão sobre a indole da lin-


gua portugueza em relação aos metros .. 57

CAPITULO VIII

Observações sobre a melodia dos versos ... 65

CAPITULO IX

Tentativa sobre cada uma das lettras do al-


phabeto.. 69

CAPITULO X

Dos diphtongos e das vogaes nazaladas. . . . 76

CAPITULO XI

Das lettras consoantes em geral . . 79

CAPITULO XII

Digressão -Estatistica dos sons e articula-


ções na lingua portugueza ... 90

CAPITULO XIII

Ampliação da theoria dos valores das vogaes


e consoantes .... 92
INDEX

CAPITULO XIV

Amostras e exercicios onomatopicos.... 95

CAPITULO XV

Novo exercicio de versificação ........ 105

CAPITULO XVI

Lexicologia.... 108

CAPITULO XVII

Emprego dos consoantes entre os antigos... 124

CAPITULO XVIII

Continuação sobre a rima dos antigos ver-


sos de sette syllabas . 131

CAPITULO XIX

Das estrophes e rima dos contemporaneos . 141

CAPITULO XX

Sobre a recitação dos versos .. 146

CAPITULO XXI

Da Poesia... 152
е
ч
е
л
б

Victor Pompeu S. Rodrigues


ци
MET

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