RACISMO,
VIOLÊNCIA
E ESTADO
Três faces, uma única
estrutura de dominação
articulada – abordagem
conceitual
Esta publicação, produzida por CRIOLA, integra o projeto Justiça
para mulheres negras: enfrentando a violência racial e de
gênero e ampliando direitos, financiado pelo Baobá - Fundo para
Equidade Racial.
Racismo, violência e Estado: três faces, uma única estrutura de
dominação articulada – abordagem conceitual, volume 1
Supervisão Lúcia Xavier
Pesquisa e redação Élida Lauris
Coordenação editorial Júlia Tavares
Colaboração Thula Pires
Revisão de texto Cintia Uzêda
Edição Criola
Projeto gráfico e diagramação Agência Malacacheta
Fotos Agência Brasil e Mídia Ninja
CRIOLA. Rio de Janeiro, outubro de 2022.
É permitida a reprodução total ou parcial do texto, de forma
gratuita, desde que sejam citados os autores e a instituição
realizadora do estudo, bem como a inclusão de referência ao
artigo ou ao texto original.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Lauris, Élida
Racismo, violência e Estado [livro eletrônico] : três faces, uma
única estrutura de dominação articulada : abordagem conceitual :
volume 1 / Élida Lauris. – 1. ed. – Rio de Janeiro, RJ : Criola, 2022.
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Bibliografia
ISBN 978-85-87137-08-1
1. Ciências sociais 2. Mulheres negras 3. Políticas públicas
4. Racismo 5. Relações étnicas 6. Violência racial I. Título.
22-133872 CDD-305.42
Índices para catálogo sistemático:
1. Mulheres negras : Aspectos sociais : Sociologia 305.42
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380
Av. Presidente Vargas, 482 - Sobreloja 203 - Centro
Rio de Janeiro – RJ – CEP: 20071-909
Tel. (21) 2518-7964
E-mail:
[email protected] Redes sociais: @ongCriola
criola.org.br
Foto: Arquivo/Agência Brasil
O projeto Justiça para mulheres negras: enfrentando a violência racial e de
gênero e ampliando direitos, financiado pelo Baobá - Fundo para Equidade Racial,
tem como objetivo geral fortalecer as lideranças negras e suas organizações para
o desenvolvimento de ações políticas que visem ao enfrentamento do impacto da
violência racial, da criminalização e das desigualdades raciais. Através da análise
crítica sobre o funcionamento do sistema de justiça, buscamos construir meca-
nismos para a efetivação e garantia dos direitos para as mulheres negras.
Esta publicação apresenta o estudo “Racismo, violência e Estado: três faces,
uma única estrutura de dominação articulada – abordagem conceitual”, a primeira
de uma série de análises a serem lançadas no âmbito do Projeto “Justiça para
mulheres negras” sobre a relação entre racismo e violência e o papel do sistema de
justiça. O presente estudo inaugura a discussão, aprofundando, conceitualmente,
o debate sobre violência racial na relação com o Estado e suas instituições. A dinâ-
mica entre Estado, racismo e violência é crucial para a articulação do racismo como
instrumento de poder, subalternização, abuso da força e morte, infligidos contra a
população negra.
CONTEÚDO
APRESENTAÇÃO ............................................................................... 5
RACISMO, VIOLÊNCIA E ESTADO:
TRÊS FACES, UMA ÚNICA ESTRUTURA DE DOMINAÇÃO ARTICULADA .............. 7
Concepções idealistas, institucionais e materialistas do racismo:
discutindo alternativas à concepção dominante de racismo ................ 16
DESENVOLVENDO UMA TEORIA SOBRE VIOLÊNCIA
RACIAL SISTÊMICA ........................................................................... 26
Políticas da precariedade e da vulnerabilidade ................................... 32
Políticas de assassinatos ................................................................. 36
Políticas de punição sistemática, apropriação e destruição
do corpo e da saúde de mulheres negras ......................................... 40
Políticas de vigilância, controle e brutalidade sobre o corpo negro ...... 46
Políticas de desterritorialização ........................................................ 54
Epistemicídio .................................................................................. 59
Conclusões .................................................................................... 60
BIBLIOGRAFIA ................................................................................... 63
APRESENTAÇÃO
C RIOLA é uma organização da sociedade civil, fundada em 1992 e conduzida por
mulheres negras. Atua na defesa e promoção de direitos das mulheres negras,
em uma perspectiva integrada e transversal, tendo como missão atuar para a erra-
dicação do racismo patriarcal cis-heteronormativo, contribuindo para a instrumen-
talização de mulheres negras jovens e adultas, cis e trans, e para a garantia dos
direitos, da democracia, da justiça e pelo Bem Viver.
Ao longo desses 30 anos, o debate – e incidência – sobre o sistema de justiça
tem sido central em nossos esforços para o enfrentamento ao racismo patriarcal
cis-heteronormativo. Além das denúncias contra as práticas nocivas desse sistema –
violência policial, encarceramento em massa de mulheres negras, cis e trans, discri-
minação racial, tortura, abuso da força e morte –, Criola desenvolve ações de
sensibilização de profissionais do Direito e judicialização dos casos emblemáticos
de práticas racistas, discriminatórias e violentas, empenhando-se em ampliar a parti-
cipação da sociedade civil e contribuindo para a melhoria da legislação.
No intuito de somarmos com outras organizações nesta luta, nossa organização
tem desenvolvido o projeto “Justiça para as mulheres negras: enfrentando a violência
racial e de gênero e ampliando direitos”, financiado pelo Fundo Baobá, com foco
no enfrentamento do impacto da violência racial, da criminalização e das desigual-
dades raciais, e no fortalecimento de lideranças negras e de suas organizações.
Trazemos como desafios iniciais a necessidade de romper com práticas racistas
perpetradas pelo Estado, constituindo estratégias que rompam com tais práticas e
estabelecendo espaços públicos sensíveis para o debate. Além desses desafios,
há o de promover o fortalecimento da comunidade, de modo que esta se sinta
segura e apoiada para tensionar as instituições democráticas pelo fim do racismo
e da violência racial sistêmica.
Esta é, portanto, a primeira de uma série de publicações que procuram encarar
os desafios citados previamente, colocando o sistema de justiça, suas práticas
e políticas no centro do debate. A partir da discussão teórica lançada com este
texto, pretendemos aprofundar o debate em um conjunto de publicações, as quais
analisarão as práticas nocivas do sistema de justiça contra a população negra, bem
como as políticas antidiscriminação – e em favor de grupos vulnerabilizados –,
promovidas pelos diferentes órgãos e instituições com responsabilidades sobre a
justiça. Nosso objetivo final é propor uma agenda compreensiva, colaborativa e de
luta antirracista por transformação do sistema de justiça.
O documento analítico, aqui apresentado, parte da estratégia do projeto e está
centrado na chave do racismo patriarcal cis-heteronormativo. Assim sendo, são
oferecidas a nós possibilidades de compreender as faces articuladas da estrutura
de dominação racial, em que a ação violenta do Estado circunscreve-se, sobretudo,
aos corpos negros, em especial das mulheres negras. Os corpos negros e das
mulheres negras são os sujeitos ocultos das análises sobre o impacto da violência e
da brutalidade policial e sexual que estão presentes nas ações e políticas do Estado.
Esta oportunidade de reflexão conceitual aprofundada é também uma chance
para discutir, rever e aprofundar as estratégias adotadas, até agora, no enfrenta-
mento do racismo e da violência pelos movimentos negros e de mulheres negras.
Boa leitura!
Apresentação 6
RACISMO, VIOLÊNCIA
E ESTADO:
TRÊS FACES, UMA ÚNICA ESTRUTURA
DE DOMINAÇÃO ARTICULADA
E m Orfeu e o Poder, afirma Luiza Bairros (1996) que a violência racial é o mais
importante princípio organizador do racismo. Em outras palavras, há uma circula-
ridade, característica de Estados modernos e pós-modernos; sociedades e Estados
são racializados porque o racismo lhes é inerente, enquanto forma de violência
racial; a violência racial e o racismo são inerentes a sociedades e Estados porque
ambos são racializados. Isso acontece porque Estados modernos e pós-modernos
são raciais e racistas. O racismo é parte da formação política, social e ideológica do
projeto de Estado-nação, de tal modo que o que se conhece como Estado é um
Estado racial. De acordo com Goldberg (2002), os Estados são raciais pelos modos
como definem, determinam e estruturam sua população. Complementarmente, são
Estados racistas devido a esses modos de definir, determinar e estruturar a popu-
lação, cujo único propósito é operar desvantagens e privilégios, utilizando a raça
como dispositivo de organização, exclusão e inclusão, o que define quem vive,
quem tem proteção e quem morre. A diferenciação racial integra os métodos de
governamentalidade (no sentido de Foucault) do Estado sobre a população, e os
Estados raciais são, por sua vez, Estados de violência.
Foto: Mídia NINJA
O Estado está longe de corresponder ao ideal de um ente externo, autônomo,
igualitário, universalmente protetor ou coerente (Goldberg, 2002). As normas,
princípios, indivíduos, grupos, a burocracia, as leis e as instituições resultam das
disputas entre grupos internamente diversos, fraturados em diferentes dinâmicas
de dominação e subalternização. Sociedade, leis e instituições cocriam-se em
um Estado que cria e recria a raça – e é criado e recriado por ela –, em diferentes
estruturas, em vários níveis, respondendo a contextos culturais, sociais, políticos
e econômicos. Por esse meio, a ordem racial determina quais pessoas fazem parte
da nação (sociedade imaginada como homogênea e igualitária), quais os níveis de
inclusão de cada grupo e quais grupos e pessoas são externalizadas do projeto de
Estado-nação, através de exclusões radicais. Isto é, uma ordem racial naturalizada
e normalizada determina quem são os sujeitos políticos universais e quem são os
outros. A formação racial, de classe e de gênero do Estado resulta do poder de
excluir e incluir da ordem racial e conta com um regime de verdade e uma ideologia
racial que articula e dá sustentação às várias estruturas de dominação.
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 8
Stuart Hall (1980) contribuiu para avançar na discussão do papel operado pelo
racismo nas estruturas de poder ao argumentar que não existe racismo em abstrato,
racismo em geral ou apenas um racismo ideológico. Para ele, o racismo é resultado
de processos históricos situados e desenvolve-se sob circunstâncias históricas
específicas. O racismo traduz-se numa categoria independente, que cria um conjunto
de práticas econômicas, político-jurídicas, sociais e ideológicas articuladas com
outras práticas de formação social. Ainda segundo Hall, as práticas políticas, sociais
e ideológicas não compõem uma unidade, mas se estruturam de forma complexa em
relações de dominação e subordinação diversas e articulam estruturas de dominação
nas sociedades. A ideia de estruturas de dominação que se articulam oferece uma
leitura sobre o racismo que não se limita a interpretar a construção social da raça e
as relações raciais apenas como parte da ideologia dominante ou como resultado
das atitudes de indivíduos e dos padrões de funcionamento das instituições. Stuart
Hall aponta para a necessidade de desenvolver uma teoria que dê conta de formular
sobre: (a) o papel do racismo em conformar estruturas jurídico-políticas e ideológicas
que legitimam o Estado racial como democrático e igualitário; (b) a materialização,
pelo racismo, de condições concretas de existência radicalmente desiguais, dentro
de um modo de produção capitalista hegemônico; e (c) o processo de cocriação
em que o racismo cria estruturas e sustenta relações de poder racistas, sendo que
estas reproduzem e recriam o racismo.
A operação do racismo, nas condições de existência da população negra, esta-
belece um lugar para o corpo negro no sistema capitalista, em que as relações de
classe, por si só, não dão conta de explicar. No mesmo sentido, há uma condição
histórica e social específica sobre ser negro em sociedade, conferindo outro signifi-
cado às relações de dominação com base no gênero. Hall alerta que, por um lado, é
certo que, no modo de produção capitalista, o racismo assume funções ideológicas
que permitem à classe dominante configurar regimes de verdade, particularmente
poderosos, nos quais as noções de cor, posição social e origem étnica articulam-se
com outras ideologias, atribuindo a estas um caráter natural e universal. A ideo-
logia do racismo, argumenta Hall, é penetrante, desistoriciza, fragmenta, invisibiliza,
desloca e individualiza a experiência da opressão. O racismo, ao mesmo tempo
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 9
que articula o sistema de opressão, desarticula a pessoa oprimida. Por outro lado,
as questões que afetam a existência concreta da pessoa negra também devem
ganhar centralidade na teoria. No que tange às desigualdades materiais, o capi-
talismo reproduz a classe e suas diferenças, o que inclui a raça. Hall afirma que a
raça é a modalidade através da qual a classe é vivida e por meio da qual se tem a
experiência das relações de classe. A raça igualmente estrutura a forma pela qual
a condição de classe é apropriada e contra a qual se luta. O autor ainda relembra
que, se a raça introduz contradições internas nas relações de gênero e classe, é
através da raça que essas relações se coordenam, já que o racismo desempenha
uma função ideológica estruturante nos sistemas de dominação do capitalismo.
A violência é outra categoria estruturante que articula os sistemas de opressão.
A violência racial organiza o exercício do poder dentro do Estado, definindo os
corpos racialmente descartáveis, os quais são abandonados à morte prematura.
Nas palavras de Ruth Gilmore (2007): “O racismo, especificamente, é a ação legal
do Estado ou a produção extralegal que explora a vulnerabilidade de grupos dife-
renciados à morte prematura (p. 28)”. Para Goldberg (2002), o projeto de gover-
nança do Estado racial inclui, necessariamente, a violência, isto é, o exercício do
Estado nos níveis macro e micro, através da institucionalização, instrumentalização
e aplicação concreta de formas de coerção e de violência física e simbólica, reve-
zando modos mais – ou menos – implícitos de vigilância e disciplina, e utilizando a
hegemonia para a produção difusa de consenso. Estados raciais adotam e ajustam
tanto construções sociais da raça quanto tecnologias e mecanismos de ordem,
controle e coerção para fins de governo. Raça e violência são instrumentais para a
existência e manutenção do Estado racial. Nesse sentido, Goldberg afirma que um
Estado racial é inerentemente violento e que Estados raciais têm, na violência, uma
condição para a sua existência.
Ainda de acordo com Goldberg, quanto mais intensificado um Estado de violência
na vida cotidiana de uma nação, mais facilmente se governa utilizando a violência como
norma e identificando, deliberada e publicamente, os alvos preferenciais do Estado
e das operações extralegais. Num contexto de violência sistêmica e generalizada, os
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 10
agentes e as vítimas reiteradas da violência são abertamente conhecidos, e não há
um regime de responsabilidade, seja do indivíduo, seja das instituições, ou, ainda,
das determinantes invisíveis da violência (desigualdades, injustiça social). Goldberg
salienta que a violência racial, exercida em consonância com os objetivos de domi-
nação do Estado, invariavelmente assume uma expressão específica de gênero.
As políticas de produção e reprodução das relações de trabalho também tomam
formas que resultam em hierarquias raciais articuladas com o gênero. O gênero, do
mesmo modo, conforma uma estrutura de dominação e articula-se para estruturar a
dominação na sociedade. A ordem racial estrutura-se com o gênero para articular os
modos de socialização e dominação do Estado, expressando um regime de poder
e violência baseado no patriarcado racial.
A violência adotada e instrumentalizada corresponde a um fenômeno complexo,
múltiplo e politicamente neutro, de acordo com Babovic e Suboticki (2013). Ela
compreende tanto uma abordagem reducionista, em que a violência significa o
dano físico direto, quanto uma abordagem estrutural. A base teórica de fundação
do debate sobre violência estrutural foi lançada por Galtung (1969), que vai além
da concepção de violência como incapacitação, dano físico ou privação da saúde,
estabelecendo que a violência está presente quando os seres humanos estão sendo
influenciados para que suas realizações materiais e mentais fiquem abaixo do seu
potencial. Nesse sentido, Galtung confere 6 dimensões à violência, de acordo com
Babovic e Suboticki (2013):
1_ No exercício da violência, a influência pode assumir várias formas: física, bioló-
gica, psicológica;
2_ A influência pode ser negativa e positiva, o que significa que a pessoa violen-
tada nem sempre é, necessária e unicamente, punida para atender ao objetivo
da violência;
3_ Seres humanos não são, exclusivamente, o alvo da violência. A destruição
de coisas pode ser considerada como violência, caso possua a finalidade de
afetar pessoas;
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 11
Foto: Mídia NINJA
4_ Violência não implica, obrigatoriamente, a existência de agentes individuais. Ela
pode estar presente, mesmo na ausência de um autor individual responsável
pelos atos violentos. A violência emana das estruturas sociais e se materializa
como poder desigual, acarretando, consequentemente, oportunidades e poten-
cialidades de vida desiguais;
5_ A violência não precisa ser deliberada e intencional. A violência estrutural é, prin-
cipalmente, não intencionada, mas penetrante e comprometedora das condições
de vida das pessoas a quem afeta;
6_ A violência pode ser manifesta e imediata, bem como latente e estendida no tempo.
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 12
Se, em decorrência de viverem dentro de Estados raciais, as pessoas raciali-
zadas encontram-se sistematicamente privadas de alcançarem, de forma plena,
o seu potencial, a ordem racial é organizada e administrada pela violência estru-
tural. A ordem violenta dos Estados racializados é o racismo estrutural. Trata-se de
um Estado de violência permanente, intenso, latente, manifesto, inquebrantável,
tomado por episódios frequentes e massivos de privação, e exercício de violência
direta, obtendo como resultado a morte ou a incapacitação de um número signifi-
cativo de pessoas negras. A alta disseminação, a intensidade e a sistematicidade
da violência fazem parecer que a responsabilização e a reparação pelo dano siste-
mático são impossíveis.
Sílvio de Almeida (2019) chama a atenção para dois fenômenos complementares
à manutenção da ordem racial, estruturalmente violenta nas sociedades. Em primeiro
lugar, o racismo é tanto criatura quanto criador da ordem social. O autor alerta
que, se existem padrões de crenças e comportamentos individuais – e institucio-
nais – racistas, é porque o racismo faz parte da ordem social. Por outro ângulo, o
racismo é articulado dentro de processos históricos e políticos e, assim, conforma
dispositivos jurídico-políticos, integra a ideologia dominante e, do mesmo modo,
desenvolve condições sociais para a operacionalização da violência racial, como
uma prática reiterada e sistemática. Em segundo lugar, Almeida alinha-se à ideia de
que os Estados são raciais, com a ressalva de que a ordem racial patriarcal violenta
depende do Estado. Assegura o autor que o Estado, ocupando o centro das rela-
ções políticas em sociedade, utiliza-se de aparatos repressivos ou ideológicos para
desenvolver os meios indispensáveis à normalização do racismo e da violência
sistemática no interior das sociedades. O Estado desempenha, desta maneira, um
papel determinante para que a ordem racial patriarcal – em forma de ações legais,
extralegais ou ilegais – seja vista como algo natural, algo orgânico às relações sociais
e ao processo de socialização.
Estados raciais governam por meio do racismo estrutural. Estados raciais patriar-
cais fazem do corpo e da saúde das mulheres os alvos preferenciais do controle,
da violação e da punição sistemática. A ordem patriarcal racial explora e destrói a
masculinidade negra em regimes extremos de uso da força e do extermínio. Nos
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 13
termos de McKittrick (2011), a economia racial legaliza um regime de servidão negra,
no qual as trabalhadoras e os trabalhadores são definidos pela falta: falta de terra,
falta de lar, falta de propriedade de si mesmo. A ordenação racial do território, ainda
de acordo com McKittrick, reserva aos corpos negros os lugares da decadência
ambiental, social e de infraestrutura; as geografias negras delimitam espaços de
exclusão, onde as pessoas negras são contidas em áreas de vigilância e estigma-
tizadas como perigosas. Como recorda Goldberg (2002), a violência se manifesta
não só nos atos, nas estruturas e nos espaços de violação, mas também no regime
de desresponsabilização, que oculta as causas da violência e os seus responsáveis.
Para Goldberg, a violência é concebida, em geral, como a invocação e uso de
instrumentos do Estado (aparelhos do Estado) para o exercício do poder e impo-
sição dos seus efeitos àquelas e àqueles contra quem o poder é exercido. O autor
argumenta, entretanto, que é possível pensar a violência de forma mais extensiva
e, aqui, ele encontra-se em plena consonância com o conceito de violência estru-
tural de Galtung. De acordo com Goldberg, a violência é, igualmente, a dispersão,
por todo o tecido social, de arranjos que, de forma sistemática, denegam a indiví-
duos o acesso a meios institucionais de proteção e garantia de direitos, em virtude
da pertença racial, enquanto mantém relativamente ocultos os instrumentos utili-
zados para reproduzir essa inacessibilidade. Conforme o autor, isso é violento, não
apenas porque arranca as possibilidades da vida de alguns e eleva a de outros.
Trata-se de um regime ainda mais violento, pois se recusa a reconhecer o que está
por trás dessa inacessibilidade, empregando os mecanismos de dominação racial
para que indivíduos e grupos sistematicamente excluídos - sua omissão, ação ou
inadequação – sejam considerados responsáveis pelo regime de privação a que
estão submetidos.
Os processos utilizados para sustentar a violência como legítima constituem-se
como uma forma de violência, denominada por Galtung (1990) de “violência cultural
ou violência simbólica”. A violência cultural diz respeito àqueles aspectos da cultura,
a esfera simbólica de nossa existência – exemplificados pela religião e ideologia,
linguagem e arte, ciência empírica e ciência formal (lógica, matemática) – que podem
ser usados para justificar ou legitimar a violência direta ou estrutural.
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 14
Sobre a desresponsabilização perante a manutenção e propagação do racismo
no Brasil, Jurema Werneck (2005) atenta para a existência de políticas estatais,
discursos, práticas cotidianas de representação e produção de discriminação e
violência contra pessoas negras que acabam por tornar invisível a violência racial
em suas diferentes formas. Tais políticas, discursos e práticas, ao invisibilizarem a
violência, suas causas e seus responsáveis, contribuem para a baixa percepção
das pessoas brancas quanto à estrutura de privilégios raciais que se movimentam
na sociedade.
Ronaldo Sales Jr. (2006) aborda o papel da cordialidade e do não-dito racista
como instrumentos de integração social subordinada da pessoa negra na sociedade
brasileira. Para o autor, a cordialidade e a estigmatização, como tecnologias políticas,
ganharam utilidade econômica e social a partir da década de 30, contribuindo para
a consolidação do Estado Novo. À medida em que o racismo espirituoso, a cordia-
lidade e o não-dito racista permitem a negação da violência da discriminação racial,
tais fatores criam condições para a assimilação do negro na sociedade de classes
em condições de subalternidade. A negação da violência racial através do insulto
racial proferido, cuja responsabilidade é negada pelo autor, o não-dito, exemplifica
bem como a camuflagem e a negação da violência perpetuam um Estado racial
co-constituído e mantido pela sustentação da violência. De acordo com Sales Jr.:
O poder do não-dito racista está em, ao fazer o interlocutor continuar o diálogo, colocá-lo
diante de um dilema: ou “deixar passar” e, com isso, subscrever o pressuposto, refor-
çando, por sua omissão cúmplice, aquilo que é apresentado como evidente – o estigma
negro –, ou opor-se a ele, mas então podendo ser acusado de interromper a conversa, de
mudar de assunto, de pretender “envenenar a discussão”, de “elevar o tom” da conversa,
coisas que, dependendo dos laços sociais entre os interlocutores e das relações de poder
entre eles, o destinatário pode não ter interesse em desempenhar. O não-dito é, pois, não
apenas forma de produção (estigmatização), mas também de circulação, de disseminação
do estigma negro. No domínio da “democracia racial”, culpado (reprovável) é aquele que
tenta apresentar o discurso racial, racista ou não, na forma do discurso sério, público e
formal, tematizando as relações raciais: reconhecer a idéia [sic] de raça e promover qual-
quer ação anti-racista [sic] baseada nessa idéia [sic] é interpretado como racismo (p. 235).
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 15
CONCEPÇÕES IDEALISTAS,
INSTITUCIONAIS E
MATERIALISTAS DO RACISMO:
DISCUTINDO ALTERNATIVAS
À CONCEPÇÃO DOMINANTE
DE RACISMO
Afirmar que o racismo opera através
da violência estrutural implica a cons-
trução de um arcabouço teórico que
possa ir além da noção de racismo,
enquanto conjunto de crenças e
atitudes de indivíduos no âmbito inter-
pessoal ou institucional. Bonilla-Silva
(2001) assinala as limitações daquilo
que chama de abordagem idealista do
racismo. A abordagem idealista enfa-
tiza o papel da ideologia em conformar
ideias, crenças, discursos, práticas
e atitudes. Ela pode ser definida em
três passos, de acordo com o autor
previamente mencionado. Primeiro: o
racismo é definido como um conjunto
de ideias e crenças baseadas na utili-
zação da raça como critério de desigualdade entre indivíduos. Segundo: as crenças
e ideias influenciam indivíduos, levando ao desenvolvimento de sentimentos,
pensamentos e opiniões pré-concebidas contra determinados grupos. Terceiro:
as ideias, crenças e opiniões pré-concebidas influenciam as ações concretas, as
quais discriminam grupos racialmente diversos.
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 16
Santos, Shucman e Martins (2012) descrevem os três principais momentos do
pensamento psicológico brasileiro sobre as relações raciais, o que influenciou,
no contexto brasileiro, a existência de crenças sobre a inferioridade e a condição
subalterna da população negra. No final do século XIX e início do século XX, uma
concepção biológico-causal reforçava o papel do determinismo biológico, que
apontava a raça negra como inferior e deficiente a partir de características psicofí-
sicas. O racismo biológico dessa concepção mantém-se atual e está a serviço de
um projeto punitivo e de vigilância sobre a pessoa negra, pois traça uma relação
entre raça, patologias psiquiátricas e tipologias criminais. Entre 1930 e 1950, a crítica
e desconstrução do determinismo biológico foi alcançada com o desenvolvimento
de uma concepção culturalista, a qual procurou explicar a diferença entre as raças
a partir de fatores ambientais (condições econômicas, educacionais e sociais).
Visões liberais atuam sobre essa concepção, responsabilizando o indivíduo negro
pela sua condição social com base na ideia de meritocracia. A partir de 1990, os
estudos sobre branqueamento e branquitude ajudaram a consolidar o entendimento
de que o racismo é relacional. Conforme este prisma, o negro é uma criação social
do branco, o qual pertence ao grupo dominante, com poder econômico e social
para definir quem é o outro. Esta concepção tornou possível demonstrar que o
racismo se realiza no âmbito de relações de poder desiguais e se materializa nos
resultados dessas desigualdades. Assim sendo, o racismo é fonte de hierarquização
e diferenciação, desigualdade e injustiça social.
Para Bonilla-Silva, a abordagem idealista eleva o risco de reduzir a realidade
do racismo ao campo da psicologia, sendo imperioso avançar a discussão teórica
sobre as relações que moldam o racismo, as estruturas de poder e vantagem social,
e o impacto da ordem racial patriarcal na determinação das condições de vida
concretas das pessoas racializadas. Como já foi referido, a ordem racial configura
e sustenta ideologicamente relações, práticas, discursos que operam a distribuição
de recursos e o acesso ao poder nas sociedades, naturalizando a desigualdade e
a violência racial. Bonilla-Silva acrescenta que os grupos dominantes desenvolvem
um conjunto de práticas e uma ideologia para manter as vantagens que detêm em
decorrência da posição de superioridade social de que desfrutam com base na
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 17
raça. Em outras palavras, a classe branca é dominante porque recebe benefícios
do Estado racial, e vice-versa – o Estado racial distribui benefícios à classe branca
porque ela é dominante. Como será argumentado a seguir, análises culturalistas e
institucionalistas são insuficientes para dar conta da complexa estrutura de manu-
tenção do poder no Estado racial, sendo imprescindível aprofundar abordagens
materialistas. De acordo com Bonilla-Silva:
[...] A fundação do racismo não são as ideias que os indivíduos podem ter sobre os outros,
mas o edifício social erguido sobre as desigualdades raciais. Se a desigualdade racial e as
práticas que a mantêm forem eliminadas, o racismo e a divisão de pessoas em categorias
raciais desaparecerão (p. 22).
As análises marxistas, se conseguem examinar as desigualdades em sociedade,
são reducionistas ao interpretar o racismo. Isso porque a raça é entendida como uma
categoria dependente da classe, e o racismo é visto como contradição secundária
do sistema de divisão de classes, uma derivação desse sistema (Bonilla-Silva, 2001).
O racismo seria parte da superestrutura de dominação do capital, uma ideologia
utilizada para os fins de fragmentar a luta da classe trabalhadora. Não há dúvidas
de que as estruturas de classe são ainda mais desiguais quando fragmentadas pela
ideologia do racismo. Se o racismo tem o poder de provocar uma divisão de classe
própria, racialmente determinada, as estruturas de classe são, na verdade, transfor-
madas pela estrutura de poder racial. O racismo articula, de forma independente, a
estrutura de exploração. As relações raciais não são uma forma especial de mani-
festação das relações de classe que acentua as desigualdades. Concordando com
Bonilla-Silva (2001), as relações raciais e de classe são relações de desigualdade
independentes, com base material própria, que se articulam dentro de uma estru-
tura ampla de dominação. Em Estados raciais, é o racismo que ordena a lógica da
exploração e as experiências de opressão. Como afirma Jurema Werneck (2016):
[...] o racismo pode ser visto também como um sistema, dada sua ampla e complexa atuação,
seu modo de organização e desenvolvimento através de estruturas, políticas, práticas e
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 18
normas capazes de definir oportunidades e valores para pessoas e populações a partir de
sua aparência (Jones, 2002), atuando em diferentes níveis (p. 541).
E ainda:
Já tem sido fartamente explicitado que nas sociedades da diáspora africana o racismo se
desenvolve estabelecendo o que W. E. B. DuBois definiu como “linha de cor”. Ou seja,
sob o racismo, uma separação (segregação) é feita a partir da cor da pele das pessoas,
permitindo aos mais claros ocuparem posições superiores na hierarquia social, enquanto os
mais escuros serão mantidos nas posições inferiores, independentemente de sua condição
(ou seus privilégios) de gênero ou quaisquer outros. Note-se que a linha de cor, ainda que
guarde certa flexibilidade em relação às diferentes tonalidades, reivindicará e resguardará,
nas disputas cotidianas e gerais, o lugar de privilégio sempre para os mais claros.
Portanto será somente a partir desta segregação que outras hierarquias serão estabelecidas,
tendo forte participação nas iniquidades baseadas na valoração diferenciada e hierárquica
dos diferentes papéis e identidades de gênero das pessoas, permitindo aos homens e a
heterossexuais ocuparem posições superiores nos diferentes polos acima e abaixo da linha
de cor. (Geledés, 2013: 12)
São amplamente reconhecidos nos estudos sobre racismo os avanços trazidos
pelo conceito de racismo institucional. De acordo com Sílvio Almeida (2018), a
dimensão institucional tem a vantagem de reposicionar o debate sobre racismo.
Para o autor, o conceito de racismo institucional indica que as desigualdades raciais
são parte da sociedade, não somente pela ação discriminatória de indivíduos, mas,
principalmente, pelo papel desempenhado pelas instituições. Cabe às instituições
absorver os conflitos raciais e reorganizar os interesses de acordo com o status
quo e a hegemonia do grupo racialmente dominante. Os estados contam com uma
dimensão programática e política que, de acordo com Werneck (2016), concerne à
“ação institucional voltada para a geração da proteção e/ou redução da vulnerabi-
lidade de indivíduos e grupos, na perspectiva de seus direitos humanos” (p. 542).
O racismo institucional, ou sistêmico, diz respeito ao conjunto de “ações e políticas
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 19
institucionais capazes de produzir a vulnerabilidade de indivíduos e grupos sociais
vitimados pelo racismo” (Geledés, 2013: 18)
No manual “Racismo Institucional – uma abordagem conceitual”, Jurema Werneck
destaca as seguintes vantagens operacionalizadas pela categoria “racismo institucional”:
1_ destaca o papel de lógicas, processos, procedimentos, condutas que, ao impreg-
narem a cultura institucional, tornam-se invisíveis, fazendo do racismo a ordem
“natural” das coisas;
2_ permite discutir efeitos e resultados do racismo entre agentes do Estado em
geral, atores institucionais específicos, na reprodução das relações de poder
dentro das instituições e, ainda, a repercussão das desvantagens raciais para
indivíduos e grupos vulnerabilizados pelas ações e políticas institucionais;
3_ demonstra como o racismo subordina a democracia e o direito, aprofundando
as suas contradições;
4_ expõe a plasticidade e singularidade com que o racismo opera, sendo capaz
de exercer barreiras amplas e, ao mesmo tempo, singulares, e de articular dife-
rentes eixos de opressão que criam métodos de exclusão seletivos e profundos
(Geledés, 2013: 17 – 19).
Bonilla-Silva (2001) argumenta que a construção do conceito de racismo insti-
tucional reconfigurou o campo de debate sobre o racismo. Primeiro, através da
demonstração de evidências sólidas do caráter sistêmico e penetrante do racismo
nas instituições, com a produção de dados sobre as desvantagens de pessoas
negras no âmbito dos sistemas educacionais, judiciais, econômicos, políticos e
de saúde. Em segundo lugar, a incidência política, a partir desse conceito, tem
sustentado iniciativas relevantes de reivindicação por mudanças nas instituições.
Contudo, o autor em questão salienta que o conceito de racismo institucional não
logrou desafiar a perspectiva dominante, a qual posiciona o racismo no nível ideo-
lógico. De um lado, o conceito de racismo pode ser estendido e representar tudo
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 20
aquilo interpretado na cultura institucional como racista. Na prática, há uma margem
explorada pelas instituições para responderem ao racismo institucional de forma
seletiva. As instituições escolhem, dentre as suas práticas institucionais, aquelas em
que vão reconhecer o racismo institucional e sobre as quais vão atuar, bem como a
intensidade dessa atuação. De outro lado, enquanto o racismo institucional é plás-
tico, profundo e disseminado, a leitura e a interpretação do racismo no âmbito das
instituições podem ser reduzidas às atitudes e práticas racistas dos seus indivíduos.
Para Bonilla-Silva (2001), ao fim, desenvolve-se uma noção todo-poderosa de
racismo, a qual é aprisionada pelas próprias instituições na ideia de atitude racista,
aquela que permeia toda a sociedade e desponta em comportamentos que são
individualizados, mesmo em nível institucional. Em outras palavras, o racismo insti-
tucional existe e é comprovado pelos indicadores de desigualdades raciais, porém
as instituições não são racistas; racistas só podem ser considerados aqueles indi-
víduos em que fique comprovada a intenção deliberada de discriminar com base na
raça. Uma racionalidade circular sustenta a existência de um racismo sem racistas.
As instituições reproduzem o racismo como ideologia dominante, as práticas institu-
cionais racistas decorrem das crenças e das atitudes dos indivíduos, os indivíduos
repetem práticas e crenças que estão impregnadas na cultura institucional, a cultura
institucional reproduz a ideologia dominante. A hegemonia branca cria o racismo e
esconde os racistas. O racismo institucional tem gestores e beneficiários, mas não
tem responsáveis.
Bonilla-Silva resume da seguinte maneira os principais problemas das concep-
ções dominantes de racismo, apoiadas de alguma maneira na ideologia:
1_ Há o risco de as explicações sobre o racismo serem desconectadas da fundação
e da estrutura do sistema social. Se o racismo resulta de uma cadeia em que
o fundamento final é a ideologia dominante, a estrutura da sociedade não é
vista como racista. É certo que o conceito de racismo institucional, ao contrário
da abordagem marxista do racismo, trouxe ideias e conceitos que permitiram
a definição do racismo como um fenômeno estrutural. Contudo, a explicação
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 21
sobre como essa estrutura opera cria margem para fundamentações do racismo
enquanto uma ideologia sem base social própria;
2_ Em última instância, o racismo acaba sendo explicado como um fenômeno
psicológico a ser examinado a nível individual. Neste ponto, gera-se uma
agenda de pesquisa e uma agenda de mudança social, cujo foco é a avaliação
das atitudes dos indivíduos e a definição de programas de ações para orientar
e educar indivíduos a melhorarem suas atitudes. Em regra, os resultados desse
tipo de ação são contraditórios: acaba-se por evidenciar um racismo estático, em
que indivíduos não se consideram racistas ou não admitem que se comportam
de forma racista, enquanto as desvantagens e as violências raciais se acentuam
e se transformam;
3_ O racismo pode ser tratado de forma estática. Se o racismo é tratado como um
conjunto de crenças, sem uma fundação estrutural independente, essas ideias,
ainda que rearticuladas, vão mantendo o mesmo conteúdo original ao longo do
tempo. Neste caso, as transformações sociais que geram novas configurações
do racismo são ignoradas, e as mudanças sociais acabam sendo utilizadas como
argumento para apontar que o racismo pode diminuir com o tempo;
4_ Há espaço para um reducionismo idealista que atribui o racismo a atitudes
erradas, a um pensamento irracional ou a agressores desumanos. Essa visão
tem o propósito de fazer uma separação moral entre indivíduos patológicos e
indivíduos racionais e humanizados, livres de racismo. O racismo tem uma base
social própria, criada para favorecer alguns indivíduos em detrimento das poten-
cialidades de vida de outros; a estrutura social racista tem lógica, racionalidade e
serve a objetivos bem delineados de acumulação e defesa de vantagens sociais;
5_ O racismo precisa ser conectado a uma ação aberta e violentamente racista
para ser reconhecido. O idealismo acerca do racismo como algo irracional e
desumano implica somente em reconhecer a sua aparição quando ela é manifesta
e envolve algum grau de hostilidade. A forma que as relações raciais assumem –
mais abertas ou mais sutis, fluidas e plásticas – depende do padrão de racialização
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 22
estruturado em cada sociedade, da intensidade da contestação racial, dos inte-
resses políticos estratégicos em cada contexto, entre outros fatores;
6_ Os racismos contemporâneos são vistos de forma limitada, sendo explicados
como decorrência de um pecado original, uma reminiscência de um passado
de situações raciais injustas. A ideia de racismo como um legado acaba por
embaralhar a reflexão sobre a fundação material e estrutural contemporânea
do racismo. Há uma significância histórica no reconhecimento do passado de
injustiças raciais. Tal reflexão, no entanto, tem que ser associada às ideologias
contemporâneas de racismo e à base social das desigualdades raciais que atua-
lizam e intensificam o racismo;
7_ O racismo é analisado de maneira circular. Se o racismo é definido como um
comportamento que resulta de uma crença, o racismo é, simultaneamente, a
crença e o comportamento racista. O desafio aqui é aprofundar a abordagem sobre
a fundação estrutural do racismo e sua base nas relações sociais entre raças.
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 23
Este texto está alinhado à noção de que os Estados raciais se alicerçam em
sistemas sociais racializados. Os parágrafos a seguir desenvolvem as principais carac-
terísticas dos sistemas sociais racializados, conforme a estrutura teórica proposta
por Bonilla-Silva.
Nos sistemas sociais racializados, a organização das pessoas em categorias
raciais é um ato altamente político, associado a práticas de exploração (escravidão,
servidão, conquista e colonização, imigração do trabalho). Raças são um efeito de
práticas raciais de oposição (nós versus eles). O processo de racialização atribui
significado racial a grupos, práticas sociais e relações que não tinham classificação
racial prévia. Uma vez que a raça é atribuída a um grupo, torna-se uma categoria
real e autônoma de associação e identidade.
Os níveis econômico, político e social são estruturados de acordo com o posicio-
namento das pessoas em categorias raciais. Os processos de racialização articulam
outras formas de hierarquia, mas têm autonomia e efeitos sociais independentes.
Sistemas historicamente racializados desenvolvem-se em sociedades fragmentadas
por outras estruturas de opressão, como a classe e o gênero. As sociedades são
organizadas segundo a linha de cor, e o racismo organiza a posição hierárquica dos
sujeitos subalternos em diferentes espaços-tempos (doméstico, trabalho, Estado,
família), articulando-se com hierarquias de gênero, classe e identidade sexual.
Estabelecida uma relação social racial, as lutas de classe e gênero passam a ter
um componente racial, visto que as categorias de gênero e classe são igualmente
racializadas pelo sistema. A totalidade dessas relações sociais e práticas racializadas
compõe a estrutura racial da sociedade.
A desigualdade racial é a base social imutável dos sistemas racializados, dimen-
sionando sua intensidade e organizando sua forma hierárquica. Quanto mais desigual,
mais racializado é o sistema. Os sistemas sociais racializados contam com diferentes
manifestações de contestação racial pelos grupos subalternizados. A ideologia do
sistema racializado dispõe de uma estrutura própria, fundada nas desigualdades
raciais, uma ideologia racial. A ideologia racial consolida noções e estereótipos
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 24
raciais prejudiciais e garante uma racionalização para as relações sociais, econô-
micas e políticas entre raças.
A estrutura racial é mutável e completamente independente dos sujeitos racia-
lizados. A raça não é uma categoria secundária de associação de grupo. Depois
de as categorias raciais serem utilizadas para organizar as relações, a raça torna-se
um elemento autônomo, que operacionaliza o sistema social. As relações sociais
entre raças se institucionalizam, formam uma estrutura e uma cultura, afetam a vida
social e transformam-se com ela, independentemente da ação ou da intencionali-
dade individual dos membros de cada raça.
A teoria de sistemas sociais racializados oferece uma base de reflexão para se
pensar o racismo como um sistema que se desenvolve de forma independente, de
acordo com o contexto, possuindo uma racionalidade própria. Como sistema de
dominação articulado, o racismo atualiza-se e acompanha mudanças sociais, sendo
transformado pelas formas de contestação racial desenvolvidas em cada socie-
dade. A transformação do sistema só pode ser alcançada quando se ataca suas
raízes sistêmicas. Essa visão é útil porque ajuda a reposicionar soluções – gerais,
abstratas e limitadas – de combate ao racismo. Muitas instituições reproduzem,
nas suas receitas antirracistas, a ideia equivocada de que só se supera o racismo
através da educação e de que a igualdade racial será alcançada quando os indiví-
duos forem ensinados e mais bem orientados. Soluções práticas únicas, ancoradas
em concepções idealistas – em geral individualistas e liberais –, procuram blindar
as instituições da contestação racial, enquanto mantêm intacta a estrutura racial
da sociedade. A fórmula de adoção de políticas públicas precárias, somada a uma
compreensão limitada sobre os processos de racialização das sociedades, tem
contribuído para o paradoxo de sociedades cada vez menos conscientes e infor-
madas sobre o racismo, com recorde nos índices de desigualdades e violência racial.
Três faces, uma única estrutura de dominação articulada 25
DESENVOLVENDO UMA
TEORIA SOBRE VIOLÊNCIA
RACIAL SISTÊMICA
O sistema racializado desenvolve formas próprias de manutenção da ordem racial
patriarcal. Juntamente à ideologia racial, a violência mantém a dominação e garante
o exercício de poder da classe racial dominante. A utilização mais consensual ou
deliberadamente punitiva e coercitiva da violência varia de acordo com o contexto,
as desigualdades e o grau de contestação racial em cada sociedade. É a violência
estrutural que mantém a base do sistema social racializado, gerando e mantendo
as desigualdades raciais. A legitimação social da violência sobre a população negra
é um dos principais elementos desenvolvidos pela ideologia racial.
Como discutido no tópico anterior, a partir do momento em que a raça é empre-
gada como dispositivo de diferenciação, o racismo ganha vida própria e passa a orga-
nizar o sistema social. A violência racial, por sua vez, organiza o racismo, conforme
Luiza Bairros. McKittrick (2011) salienta que as violências raciais – sejam violências
diretas ou epistêmicas, sejam padrões destinados a prejudicar, matar ou coagir –
conformam mundos negros. Historicamente, a resistência negra tem impedido que
a violência defina o seu sentido de existência. As dinâmicas entre o racismo e a
resistência ao racismo, afirma a autora, vão modulando como as violências raciais
produzem uma condição de ser negro, a qual se baseia na luta. Ainda segundo
McKittrick, é possível destacar que a violência racial organiza o racismo moldando,
pelo menos, três sentidos sobre a pessoa negra em sociedade: o sentido de ser,
de estar e de participar.
A divisão entre quem vive e quem morre, quem mata e quem é assassinado, os
atos contínuos de violência contra determinadas culturas e comunidades, os corpos
vigiados, encarcerados, sexualmente violados, dilacerados, mortos e despejados
posicionam a condição de ser negro na luta contra a morte prematura, adotando o
termo de Ruth Gilmore. A resistência ao racismo também se insurge contra o uso da
violência para definir uma geografia negra das cidades, associada à morte. A morte
de pessoas negras é desproporcional em atos de violência que provocam aniquila-
mentos no âmbito urbano: incêndios, inundações, desastres ambientais, desmorona-
mentos, decomposição de infraestruturas etc. McKittrick destaca que as geografias
negras, não inteiramente habitadas por negros, são classificadas como perigosas
ou “espaços sem espaço”, locais de exclusão. A luta antirracista contra a morte
de um sentido negro de lugar procura superar a associação de grupos, culturas e
comunidades inteiras a descritores de decadência, encarceramento, deportação,
poluição, despejos. A violência racial organiza o racismo aniquilando os sentidos
negros de ser e estar e, ao mesmo tempo, bloqueando a contestação racial, ao
rebaixar as condições de acesso ao poder e a direitos. A externalização do corpo
negro vigiado, descartável e exposto à violência dispõe-se, também, a afastar as
possibilidades de participação na sociedade e de acesso ao poder. Ao compro-
meter as potencialidades de acesso ao poder, a violência racial sistêmica cristaliza
os limites colocados à existência negra em sociedade, retirando possibilidades de
contestação do sistema racial e restringindo o alcance dessa contestação.
Frantz Fanon traz uma contribuição decisiva para a reflexão sobre a forma como
a violência molda uma geografia e cria uma condição negra no mundo: o “não-ser”.
A violência colonial cindiu a existência, partindo o mundo em dois. O negro foi
deslocado para um sentido de ser e estar colonizado, que tem uma geografia e
materialidade próprias, mediadas pela violência, e, igualmente, representando um
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 27
limbo de existência, uma zona de “não-ser”. Em “Condenados da Terra”, Fanon
descreve que:
O mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória, a fronteira, é indicada
pelos quartéis e delegacias de polícia. Nas colônias o interlocutor legal e institucional do
colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o gendarme ou o soldado.
(...) Nas regiões coloniais, ao contrário, o gendarme e o soldado, por sua presença imediata,
por suas intervenções diretas e freqüentes [sic], mantêm contacto com o colonizado e o
aconselham, a coronhadas ou com explosões de napalm, a não se mexer. Vê-se que o inter-
mediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não torna mais
leve a opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as, manifesta-as com a boa consciência
das forças da ordem. O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado.
(...)A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a médina,
* a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não
importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um
mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre
as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de
sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade: acocorada, uma cidade
ajoelhada, uma cidade acuada. (p.29)
Ao discutir os significados na “zona do não-ser”, Lewis Gordon (2005) explica
que, para Fanon, há uma ponte desumanizante entre indivíduo e estrutura, imposta
pelo racismo antinegro, que faz do negro anônimo, o que permite que o negro se
desmorone em negros, todos sem valor. Fanon sustenta, reiteradamente, como
negros não são considerados, estruturalmente, como seres humanos. Longe de
defender que o racismo é uma irracionalidade alheia à experiência humana, Fanon
sustenta que a desumanização de negros é a racionalidade da estrutura de poder.
Essa racionalidade propõe-se a fazer dos negros seres problemáticos, seres apri-
sionados na “zona do não-ser”. Gordon explica que, ao tentar responder à pergunta
sobre o que os negros querem, onde está localizado seu desejo, Fanon defende
que os negros querem se libertar do “não-ser”, livrar-se dos conflitos que carregam
em decorrência de um ato político exterior de racialização da sua existência. Ainda
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 28
de acordo com Gordon, a “zona do não-ser” pode ser lida de duas maneiras: como
o limbo, o qual colocaria os negros abaixo dos brancos, mas acima das criaturas
cuja sorte é pior; ou poderia significar simplesmente o ponto de ausência total,
o lugar mais distante da luz que, em um sistema teísta, irradia a realidade, o que
seria o inferno.
Dizer que a violência racial é sistemática é o mesmo que afirmar que ela integra
um sistema social racializado; afeta e envolve todos os integrantes do sistema;
organiza-se em vários níveis e atua através de diferentes modalidades, sendo empre-
gada para o fim de manutenção da estrutura racial da sociedade. Todos estão envol-
vidos nas dinâmicas de violência racial; todos são potenciais agentes de violência;
e todos podem sofrer as consequências da violência, independentemente da sua
posição na hierarquia racial. O Estado racial conta com um aparato institucional
próprio para o exercício socialmente legitimado da violência racial. A violência racial
configura a forma de funcionamento do aparelho repressivo do Estado, normali-
zando o excesso punitivo, o abuso da força e a tortura. Em sociedades altamente
racializadas, o aperfeiçoamento das finalidades raciais dos aparelhos repressivos
faz da brutalidade a regra do controle social. Por outro viés, o aprofundamento das
desigualdades raciais e o impacto da violência estrutural nas condições de sobrevi-
vência de grupos que representam parcela significativa da população aumentam e
complexificam os conflitos sociais. Neste contexto, narrativas de periculosidade e
risco à segurança pública alimentam ilusões securitárias, voltadas ao fortalecimento
do poder punitivo sobre os grupos racializados.
É preciso concordar com Rita Segato (2006) quando ela chama a atenção para
o fato de que, atualmente, as violências se inscrevem num espaço que não é unica-
mente mediado e controlado pelo Estado. A ação danosa de seguranças privadas
nas áreas urbanas e rurais, a atuação de organizações criminosas, e a pressão
legal – e ilegal – de agentes do extrativismo sobre os territórios são exemplos de
uma rede de interesses e poderes multifacetados, que protagonizam um intrincado
panorama de violência sobre comunidades negras – urbanas e rurais. Para Segato:
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 29
[...] um mundo faccionalizado caracterizado pelo declínio e deterioração dos estados
nacionais como o atual, máfias urbanas, condomínios imobiliários, facções partidárias,
facções corporativas, fusões de negócios, igrejas e uma variedade de entidades direta
ou indiretamente controlam e administram reservas territoriais. De uma perspectiva local,
esse processo ocorre e parece resultar de cortes progressivamente perpetrados em um
espaço antes defendido pelo Estado como politicamente contínuo. Neste novo meio, as
redes concorrentes são pressionadas a marcar seus domínios territoriais da forma mais
inequívoca possível (p. 6).
Com o objetivo de explorar uma teoria sobre a violência racial sistemática,
analisa-se, a seguir, tipos principais dessa violência. Na caracterização desses
tipos, optou-se pela terminologia “políticas de violência”. Para fins do presente
texto, considera-se como “política de violência racial” um curso de ação adotado
e perseguido no âmbito do Estado racial. Tal curso de ação rebaixa as potenciali-
dades e as condições de vida da população negra, expondo-a à morte prematura.
No curso de ação das políticas de violência racial, o Estado ocupa o centro das
relações raciais, embora não seja o único agente de violência. No mesmo sentido,
as políticas de violência podem resultar da ação ou da omissão e integram uma
rede de ações legais, ilegais e extralegais, reunindo diferentes atores com inte-
resses econômicos e políticos. Usa-se, aqui, o termo “políticas” para estabelecer
propositalmente uma oposição às políticas de combate ao racismo e promoção
da igualdade racial desenvolvidas pelo Estado. Enquanto as políticas de combate
ao racismo são contingentes, irregulares, dependentes de recursos e de vontade
política, fragmentadas e experimentais, as políticas de violência estão estruturadas
no cerne do sistema social racializado, atualizando-se com o passar do tempo e
mantendo-se em plena implementação.
Para delinear uma teoria de violência racial sistemática foi preciso, antes de
tudo, delimitar uma concepção de racismo como dispositivo de um sistema social
racializado. Esta opção teórica permite, em primeiro lugar, localizar a violência como
co-constitutiva de um Estado racial e de um sistema de exploração. A violência
desempenha um papel central na organização desse sistema e na manutenção
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 30
da sua base, as desigualdades raciais. É também uma peça-chave para articular e
defender não só a hierarquia racial, mas também a hierarquia das outras catego-
rias de opressão, criando formas gerais, seletivas e singulares de abuso da força,
espoliação e apropriação dos corpos e destruição dos sentidos de existência, de
acordo com as múltiplas subordinações – de gênero, de sexualidade ou de classe.
Nos sistemas racializados, a violência é, igualmente, um meio de exercer a política
como sistema de poder exclusivo da raça dominante, produzindo-se, ainda, com a
violência racial, os regimes de exploração e acúmulo de riqueza do modelo econô-
mico, através do abuso e do descarte dos corpos negros.
Em segundo lugar, adotar a concepção de que a violência racial estrutura os
sistemas sociais racializados e é, por eles, estruturada, detém importância parti-
cular para o contexto brasileiro. O cenário de desresponsabilização sistemática pela
violência racial e por seus resultados, no Brasil, está consideravelmente ancorado
em concepções ideológicas de racismo. A violência racial é interpretada e enfren-
tada como acontecimento isolado, resultante de uma irracionalidade episódica e
da ação individual de agentes hostis e racistas. As respostas oficiais posicionam as
instituições fora da dinâmica de violência racial, ainda que esta possa ser compro-
vada, através de episódios massivos cotidianos de violência racial por agentes de
Estado ou por agentes privados. Em regra, as instituições distanciam-se dos atos
racistas de seus agentes e adotam medidas seletivas ineficazes em resposta aos
crimes e ilegalidades praticadas. A resposta sistemática é a desresponsabilização e
a consolidação da ideia de que o que vai curar o racismo são medidas que mudem
as ideologias e as crenças de indivíduos do sistema.
Abaixo, são desenvolvidos os principais tipos de violência racial: a) políticas
da precariedade e da vulnerabilidade; b) políticas de assassinatos; c) políticas de
punição sistemática, apropriação e destruição do corpo e da saúde das mulheres
negras; d) políticas de vigilância, controle e brutalidade sobre o corpo negro; e)
políticas de desterritorialização; por fim, f) epistemicídio.
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 31
POLÍTICAS DA PRECARIEDADE E DA VULNERABILIDADE
Ao abordar o impacto do neoliberalismo na vida das mulheres subalternizadas,
especialmente das mulheres do Sul Global, Françoise Vergès (2021) destaca que
a privatização dos bens e dos serviços públicos, a desregulação das finanças, a
garantia de uma rentabilidade a curto prazo para os acionistas, a aplicação de solu-
ções técnicas para os problemas sociais, a difusão de uma retórica de mercado,
a legitimação da norma da rentabilidade e da flexibilidade, e a exacerbação do
extrativismo tiveram consequências devastadoras para as mulheres racializadas
das classes populares e para os povos indígenas, quilombolas e populações tradi-
cionais. Esse quadro se agrava para os países do Sul Global, em decorrência das
frequentes crises políticas e econômicas, em que cabe às mulheres sustentar o
peso das decisões tomadas pelos governos –que se encontram sob pressão de
medidas econômicas. Uma realidade que se aplica à crise econômica que levou a
programas de ajustes e cortes nas despesas sociais nos últimos anos. Segundo a
autora, a violência sistemática não é novidade. A história de genocídios, massacres
e pilhagens, em diferentes países, demonstra como o capitalismo impõe-se com
dimensões coloniais, raciais, globalizantes e imperialistas. Todavia, a hiperglobali-
zação e o crescimento do extrativismo têm fortes impactos na redução do padrão de
vida de muitas populações. Ainda de acordo com Vergès, no contexto da violência
neoliberal, os progressos obtidos por lutas sociais pela educação e saúde são
enfraquecidos. E, mesmo que haja menor mortalidade infantil e maior expectativa
de vida, os padrões de vida estão em decadência, comprometidos pela poluição,
devastação ambiental, epidemias, desajustes climáticos, endividamento, colapsos
de políticas de proteção social, educação e saúde. Ao mesmo tempo que a vida
de populações racializadas, em especial de mulheres negras, são afetadas pelo
desemprego, crescimento da informalidade, precarização da mão de obra nas indús-
trias de serviços, cuidado e no trabalho doméstico, há o crescimento da utilização
política de termos como insegurança e periculosidade. Ao rebaixar os padrões de
vida e a cobertura da proteção, a violência neoliberal manipula as noções sociais
de segurança e periculosidade, reforça estereótipos raciais de suspeição sobre a
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 32
população negra e investe na estratégia de que a política deve incluir mais controle,
mais vigilância e mais punição (Vergès, 2021).
Parreiras (2021) argumenta que é preciso colocar em evidência a precariedade
enfrentada por mulheres negras de favela, durante a pandemia da Covid-19, e,
também, como a precariedade no contexto em questão transformou a intimidade
e a vida privada dessas mulheres, que tiveram de lidar com o aumento do trabalho
doméstico, com a falta de dinheiro e infraestrutura e com as demandas excessivas
sobre o trabalho de cuidado. Somado a isso, ainda coube a essas mulheres, na
posição de chefes de família, enfrentar o aparato burocrático do Estado brasileiro
para acessar alternativas de apoio financeiro e proteção, enquanto o ensino remoto
trouxe uma carga maior de demandas sobre as mães.
As políticas de precariedade e vulnerabilidade não são determinadas por uma
característica única universal, como, por exemplo, a perda de postos de trabalho
formal ou a renda. A precariedade e a vulnerabilidade são moldadas pela interseção
entre fatores individuais, estruturas familiares, políticas de acesso ao mercado de
trabalho e políticas sociais (educação, saúde, assistência social). Seguindo os
preceitos de economia política feminista, Clement et al. (s/a) salientam que é impor-
tante trabalhar com o conceito de “vidas precárias”, em substituição à noção de
trabalho precário. As vidas precárias são moldadas no âmbito das estruturas sociais,
através de interconexões que contribuem para que determinados grupos estejam
mais expostos à vulnerabilidade. Nesse sentido, Clement et al. afirmam que a vida
precária diz respeito não só ao emprego precário, mas também às condições sociais
em que ele está inserido. Essas condições sociais incluem estruturas familiares,
redes de parentesco e acesso a políticas sociais, independentemente da posição de
indivíduos no mercado de trabalho. De acordo com os autores, chama-se “precária”
a situação que não é autonomamente sustentável, o que inclui as oportunidades
no mercado de trabalho e, igualmente, o sistema de apoio social e as condições
que afetam tanto a entrada quanto a saída em postos de trabalho. A vulnerabili-
dade social abrange, potencialmente, circunstâncias familiares e domésticas, como
a responsabilidade por crianças ou adultos dependentes, situações de violência
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 33
doméstica e intrafamiliar, ou questões relativas à moradia, acesso a oportunidade
educacionais e a políticas de saúde. As vidas precárias são, ainda, impactadas pelos
novos riscos sociais. Os velhos riscos sociais estão concentrados num estágio mais
tardio da vida e dizem respeito à insegurança na aposentadoria e num sistema de
proteção para eventos extraordinários, tais como doenças e acidentes. Os novos
riscos sociais (insegurança no emprego, declínio no poder de barganha dos sindi-
catos, responsabilidades de cuidado) estão relacionados ao declínio nas políticas
sociais em três áreas: (a) divisão sexual do trabalho dentro das famílias; (b) falta
de oportunidades para a construção de carreira estável nos mercados de trabalho;
e (c) perda de garantia de segurança e proteção social em diferentes estágios da
vida laboral (Clement et al., s/a).
Falquet (2013) trata de uma violência calculada, que existe e opera com leis e
instituições para reequilibrar a utilização do corpo e da força das mulheres entre
apropriação e exploração. Neste contexto, uma forma específica de trabalho, um
assalariamento inconcluso, confina as mulheres, especialmente as mulheres negras –
cis e trans –, a formas de trabalho desvalorizadas, relacionadas, sobretudo, ao
cuidado, ao sexo e à procriação.
O racismo institucional é a violência calculada que expõe a população negra
à vulnerabilidade ou à morte prematura, confinando mulheres negras às posições
mais precárias na escala social global. É nesse sentido que Jurema Werneck fala
da relação conceitual entre racismo institucional e vulnerabilidade:
O conceito de racismo institucional guarda relação com o conceito de vulnerabilidade
desenvolvido por Mann e Tarantola (1992) para analisar aspectos da epidemia de HIV/AIDS.
Para Ayres o conceito de vulnerabilidade abrange: O conjunto de aspectos individuais e
coletivos relacionados ao grau e modo de exposição a uma dada situação e, de modo
indissociável, ao menor ou maior acesso a recursos adequados para se proteger tanto do
agravo quanto de suas consequências indesejáveis.
Desenvolvido como forma de deslocamento do olhar e da ação desde as culpas e riscos
dos atingidos para as causas do acometimento, este conceito vai permitir também a
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 34
visibilização e o enfrentamento de diferentes fatores concorrentes para a produção da
infecção, expondo o plano das ações, políticas e, fundamentalmente, dos direitos.
Três diferentes dimensões interligadas foram apontadas como atuantes na produção de
maior ou menor vulnerabilidade de pessoas e populações a determinadas condições - no
caso estudado pelos autores, trata-se da vulnerabilidade à infecção pelo vírus HIV. São
elas: a) dimensão individual – onde estão inseridos comportamentos que desprotegem;
b) dimensão social – destaca as condições políticas, culturais, econômicas e etc. [sic], a
partir do que se produz e/ou legitima a vulnerabilidade; c) dimensão política ou programá-
tica – refere-se à ação institucional voltada para a geração da proteção e/ou redução da
vulnerabilidade de indivíduos e grupos, na perspectiva de seus direitos humanos.
Pelo exposto, podemos verificar a proximidade entre os conceitos de vulnerabilidade,
particularmente sua dimensão programática, e racismo institucional. Desta perspectiva,
racismo institucional equivaleria a ações e políticas institucionais capazes de produzir a
vulnerabilidade de indivíduos e grupos sociais vitimados pelo racismo. (Geledés, 2013: 12)
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 35
POLÍTICAS DE ASSASSINATOS
Sayak Valencia (2018) cunhou o termo “capitalismo gore” para definir um contexto
sociopolítico e econômico no qual a extrema violência da destruição dos corpos
serve a um propósito de resistência e convergência, em relação ao regime capi-
talista nos países marginalizados e ao centro do poder global. O termo gore (cuja
tradução aproximada é “sangrento”) faz referência aos filmes caracterizados pela
violência extrema e brutal. Valencia defende que a lógica do capitalismo tem um
preço cada vez mais alto. Para os países do Sul Global, o preço da adesão ao capi-
talismo é o derramamento de sangue indisfarçado e injustificado. Essa forma de
violência também inclui a depredação dos corpos, a serviço do crime organizado,
e a utilização das formas brutais de violência, como ferramentas de necroempode-
ramento dos grupos em disputas.
Num contexto neoliberal, em que a economia transnacionalizada cria formas
de hiperconsumo e acumulação para os países ricos, Valencia coloca a questão
sobre como a globalização e o capitalismo configuram as identidades no terceiro
mundo, quais técnicas são utilizadas e quais identidades são forjadas por pessoas
subalternas para reagir ou convergir num contexto em que não há como fugir do
capitalismo e do seu processo de dominação. Para Valencia, nos territórios de fron-
teira, onde se cruzam as várias identidades e as múltiplas estratégias de poder de
diferentes grupos, os corpos são concebidos como produtos de troca que alteram
e quebram a lógica de produção do capital, subvertendo a linguagem capitalista
da produção de mercadorias por uma mercadoria feita de carne – o corpo e a vida
humanos. Uma das maneiras de as identidades subalternas reagirem ou convergirem
ao regime de exploração dominante dá-se através da ruptura de valores e práticas,
com a utilização de técnicas predatórias de violência extrema, como os sequestros,
os assassinatos por encomenda e as execuções.
O capitalismo sangrento produz uma realidade, a qual não é um lado marginal
ou uma dinâmica secundária dos processos de globalização. A transnacionalização
do crime organizado e do tráfico de drogas, bem como o crescimento da economia
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 36
do crime, mostram como a globalização impõe uma distopia, mais visível em certas
realidades geopolíticas e consistindo em formas capitalistas ancoradas em práticas
extremas e ultraespecializadas de violência. Práticas que, em certos espaços, são
empregadas para obter reconhecimento e legitimidade. Conforme Valencia, o capi-
talismo gore está alicerçado na violência, no tráfico de drogas e no necropoder, que
fazem da morte um empreendimento lucrativo para determinados grupos. A morte,
como empreendimento de acumulação de poder e riqueza, emprega uma violência
crua que obedece a uma lógica nascida da estrutura e dos processos planejados
pelo neoliberalismo, pela globalização e pela política. O domínio do capitalismo
financeiro, que estimula a especulação, também fomenta e implementa práticas
violentas. Os fios da relação entre o capitalismo, neoliberalismo e globalização,
como causa, e a depredação dos corpos e os lucros obtidos com as mortes indis-
criminadas, como consequência, ficam, em geral, invisíveis e não têm sido suficien-
temente teorizados.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 37
Valencia ressalta que o capitalismo sangrento se mantém como um espaço não
conforme dentro da lógica capitalista, profundamente enraizado nela e, ao mesmo
tempo, insuficientemente teorizado, de forma que é interpretado como consequência
irracional, indesejada e distópica do sistema. O racismo que orienta e delimita os
espaços de depredação do capitalismo sangrento (as cidades do terceiro mundo
dominadas pelo narcotráfico e pelo crime organizado, as periferias e as favelas das
grandes cidades do Sul Global, as terras tradicionais invadidas) reforçando a invi-
sibilidade da relação entre as práticas predatórias da violência extrema e o regime
de dominação política e econômica. A racialização implícita nos discursos sobre
segurança e periculosidade opera a invisibilidade do capitalismo sangrento, assu-
mindo como a parte visível do regime político e econômico a narrativa da segurança
e da punição que, por sua vez, torna aceitável a morte como resultado, dirigida a
determinados grupos raciais.
No Brasil, as organizações da sociedade civil já têm, fartamente, demonstrado
como o discurso de guerra contra as drogas e as interações com o crime organi-
zado legitimam a violência extrema, operações policiais abusivas, uso excessivo
da força e execuções extrajudiciais nas periferias e favelas das grandes cidades,
apresentando como principal vítima o jovem negro. A adoção de práticas de exter-
mínio contra a juventude negra é uma face contundente do capitalismo sangrento no
Brasil. Os corpos de jovens negros são as mercadorias que rearranjam regimes de
legitimidade, reconhecimento, acesso ao poder e à riqueza entre as organizações
criminosas, forças de segurança pública e atores políticos e econômicos poderosos,
enquanto a face visível do regime de dominação é a defesa da segurança pública
contra os suspeitos de costume.
A ação predatória que acumula a morte de determinados corpos utiliza regimes
de gênero e de classificação racial para ampliar a legitimação social e invisibilizar
a racionalidade sistêmica da violência brutal. Como apontado por Wing (2000), em
condições de violência exterior, ao homem pertencente a um grupo oprimido não
é permitido ser homem, no uso socialmente construído desse termo. A influência
e controle do grupo exterior condicionam e instrumentalizam a masculinidade dos
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 38
homens dos grupos oprimidos. A instrumentalização da masculinidade de homens
negros é um dos métodos de emprego da violência pelo capitalismo sangrento.
Os corpos de homens negros são explorados como meio e fim das táticas de mortan-
dade. Freitas (2020) alega que, num contexto de racismo sistêmico, as práticas
de extermínio ganham maior legitimidade social, na medida em que os corpos de
homens negros podem ser empregados não só como vítimas, mas também como
agentes responsáveis pela violência.
O segundo aspecto importante nesta discussão sobre masculinidades, racismo e polícia
refere-se ao estímulo a confrontos no âmbito da ação policial que reiteram a produção
de imagens de violência referidas a homens negros. Em termos políticos, a reedição da
imagem – desumanizada e desumanizadora – de homens negros matando e morrendo no
espaço público das cidades produz o duplo papel de retroalimentar a legitimação social da
violência – tão recorrente como expusemos aqui por meio das pesquisas e levantamentos já
realizados sobre o assunto – e, ao mesmo tempo, potencializar a desresponsabilização de
outros atores institucionais com relação ao tipo de resultado decorrente do trabalho policial.
Na prática, é como se a expectativa social de obtenção da segurança e da ordem pública
alargasse ilegalmente o mandato policial, mesmo que para isso fosse necessário promover
a eliminação e violência físicas, tão disseminadas em nosso imaginário social. Tal operação
torna-se ainda mais fácil se a atividade puder ser executada por policiais, negros em sua
maioria, de modo que facilmente se possa alegar: “são negros matando negros”: (Freitas,
2020, p. 240/241)
O racismo sustenta as práticas de exploração do capitalismo sangrento tanto
na sua face visível racional, que apela para a segurança às custas dos corpos de
homens negros empregados nas forças policiais e no crime organizado, quanto no
seu resultado invisibilizado – o acúmulo dos corpos mortos de jovens negros, vítimas
da violência. O racismo institucional estrutura a racionalidade da violência, desti-
nando os corpos de homens negros às posições mais vulneráveis e de maior uso
da força nas corporações e nas organizações criminosas. A economia do racismo
sangrento tem, nos corpos negros, a força e o produto da exploração. Como afirma
Felipe Freitas:
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 39
O expediente é antigo e encontra lastro fácil na nossa memória social. Trata-se da reali-
zação de práticas de extermínio que, de fato, realizam-se pelas mãos de homens negros
que também são vítimas em potencial da violência racializada que ajudam a celebrar.
Tal aspecto é decisivo para a discussão, pois se trata de um argumento recorrente – no
senso comum hegemônico sobre relações raciais – a ideia de que os negros são os
próprios responsáveis pela existência de racismo e pela discriminação de que são vítimas.
A alegação vem geralmente apresentada na monótona frase clichê: “são os próprios negros
que se discriminam”.
Entretanto, o que o perfil racial das polícias revela é justamente o contrário desta interpre-
tação usual. O recrutamento de homens negros para funções mais vulneráveis no âmbito
da ação policial evidencia a persistência de práticas racistas e discriminatórias no interior
das corporações policiais – e não o contrário. (Freitas, 2020, p. 142)
POLÍTICAS DE PUNIÇÃO SISTEMÁTICA, APROPRIAÇÃO E
DESTRUIÇÃO DO CORPO E DA SAÚDE DE MULHERES NEGRAS
A teoria política feminista, ao discutir o fenômeno da violência contra as mulheres,
tem chamado a atenção para a existência de um estado contínuo de violência,
característico da ordem patriarcal. O conceito de feminicídio, em sentido amplo,
desenvolvido por Radford e Russell (1992), dá conta desse continuum de violência,
o que também é teorizado por estas autoras como terrorismo anti-feminino:
Feminicídio representa o fim de um continuum de terror anti-feminino e inclui uma ampla
variedade de abuso verbal e físico, como estupro, tortura, escravidão sexual (particular-
mente para prostituição), abuso sexual infantil incestuoso ou extrafamiliar, violência física e
emocional, assédio sexual (no telefone, nas ruas, no escritório e na sala de aula), mutilação
genital (clitoridectomias, excisão, infibulações), operações ginecológicas desnecessárias
(histerectomias gratuitas), heterossexualidade forçada, esterilização forçada, materni-
dade forçada (por criminalização da contracepção e do aborto), psicocirurgia, negação
de alimentos para mulheres em algumas culturas, cirurgia plástica e outras mutilações em
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 40
nome do embelezamento. Sempre que essas formas de terrorismo resultam em morte, elas
se transformam em feminicídios (p. 15).
Segato (2006) explica que, para as aludidas autoras, há uma dimensão política no
assassinato de mulheres, uma vez que as mortes resultam de uma ordem patriarcal
que sustenta uma política de controle do corpo e a capacidade punitiva sobre as
mulheres. Trata-se, igualmente, de uma violência que dissemina o ódio. Ainda de
acordo com Segato, o ódio surge da infração das mulheres a duas normas patriar-
cais: 1) o controle sobre o corpo das mulheres (quando a mulher usa de autonomia
para uso e proveito do próprio corpo, fora das convenções patriarcais); 2) a supe-
rioridade masculina (quando a mulher acede a posições de autoridade econômica
ou política). A infração desta segunda norma patriarcal gera episódios de feminicídio
político, conforme denominado por Renata Souza (2020), especialmente flagrante
na violência prolongada, enfrentada no Brasil por mulheres negras, cis e trans, que
têm acedido a cargos públicos.
Procurando distinguir entre feminicídio enquanto categoria política, que denuncia
o estado geral de violência com base no gênero, e feminicídio enquanto categoria
jurídica, que diz respeito aos atos criminosos que devem ser combatidos, Rashida
Manjoo (2012) faz a distinção entre feminicídio direto e indireto. O feminicídio direto
é definido como os assassinatos relacionados à violência perpetrada por um parceiro
íntimo ou à violência baseada em gênero, honra, etnia ou identidade étnico-racial.
O feminicídio indireto diz respeito às mortes resultantes de atos nocivos ou mal
executados. Práticas relacionadas, por exemplo, com abortos ou mortes por negli-
gência, maus-tratos ou outros tipos de ações intencionais, seja por parte de um
indivíduo, seja por parte do Estado. O feminicídio indireto engloba, do mesmo modo,
as mortes relacionadas com ação do crime organizado, como, por exemplo, o tráfico
de seres humanos. Em diálogo com Manjoo, Romio (2019: p. 101) apresenta três
tipos de feminicídio para abranger a complexidade de situações que provocam a
morte de mulheres. O feminicídio reprodutivo, vinculado às políticas de controle do
corpo e da sexualidade da mulher, cuja expressão mínima são as mortes por aborto
e as mortes maternas; o feminicídio doméstico, violência letal por agressão física
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 41
contra a mulher no contexto domiciliar, conjugal ou familiar; e o feminicídio sexual,
violência letal por agressão física contra a mulher por meio sexual.
Mulheres negras, cis e trans, são as principais vítimas de feminicídio, sejam
diretos ou indiretos. West (2005) pondera que a violência íntima, o feminicídio direto
de mulheres negras não pode ser separado do contexto amplo e prolongado de
violência, no qual essas mulheres estão inseridas. Com base em pesquisas e dados
da realidade americana, que, de certa maneira, corresponde à do Brasil, a autora
demonstra a relação entre feminicídio direto e indireto ao discutir os impactos da
violência familiar, comunitária, estrutural, cultural e os anos de trauma histórico
sobre os índices de violência de gênero que vitimizam mulheres negras. Em primeiro
lugar, West aponta estudos que demonstram que situações como a vitimização na
infância, observar a violência entre pais/cuidadores ou sofrer abuso físico estão
associadas à probabilidade de ser vítima ou agente de violência íntima na vida
adulta. Em segundo lugar, a população negra é desproporcionalmente afetada
pela conjuntura de violência, intensificada nas suas comunidades, experimentando
e testemunhando episódios de brutalidade e execuções. A referida exposição à
violência nas comunidades, em qualquer circunstância, seja assumindo o papel
de testemunha, seja de vítima ou de agente de violência, também contribui para
uma maior incidência de violência íntima e baseada no gênero na vida de mulheres
negras. Em terceiro lugar, persiste o trauma da escravização e o sofrimento agudo
e prolongado de centenas de anos de privação de direitos, violência na forma de
linchamentos, brutalidade policial e altos níveis de discriminação racial. Trata-se de
uma violência multigeracional que se soma ao trauma coletivo espiritual, psicológico,
o sofrimento emocional e cognitivo perpetuado, intergeracionalmente, através de
múltiplas experiências predatórias e de extermínio, originados com a escravização
e mantidos por meio de métodos padronizadas de racismo e discriminação até os
dias atuais.
Em quarto lugar, West destaca que o trauma histórico e a violência da privação
de direitos possuem como legado desigualdades sociais, as quais alimentam a
violência estrutural contra a população negra. A pobreza, por exemplo, impacta nas
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 42
taxas de violência baseada em gênero. A insegurança financeira e a incapacidade de
cumprir obrigações financeiras condicionam as oportunidades de mulheres negras
em quebrarem o ciclo de violência intrafamiliar e externa a que estão submetidas.
O desemprego, o trabalho informal, a falta de condições de moradia são manifesta-
ções mais visíveis de violência estrutural que convergem para intensificar a violência
na vida de mulheres negras. A violência estrutural também pode assumir a forma de
discriminação racial, além das altas taxas de relacionamento abusivo, encontradas
entre pessoas que foram vítimas de discriminação racial. Em quinto lugar, a interação
das mulheres negras com as instituições e órgãos do Estado é marcada por uma
violência institucional que as discrimina, repelindo essas mulheres da proteção do
Estado. Mulheres negras podem sofrer tratamento policial discriminatório, terem a
agressão de quem foram vítimas minimizada ou encontrar funcionários de Estado
que as responsabilizam pela violência sofrida.
Ainda de acordo com West, as sobreviventes mais afetadas pela violência com
base no gênero, as mulheres negras transgênero, vivenciam a violência num contexto
de maus-tratos e discriminação por parte de prestadores de serviços nas áreas
médica, jurídica, nos sistemas de educação e proteção social, nas polícias, dentre
outros. Até mesmo comunidades religiosas e abrigos públicos são lugares inseguros
e hostis para mulheres negras transgênero. Por fim, há um contexto de violência
cultural com atitudes, crenças generalizadas, preconceitos e estereótipos prejudi-
ciais, que são utilizados para legitimar a violência direta ou estrutural. No contexto
da violência baseada no gênero, estereótipos específicos sobre mulheres negras
sobreviventes são endossados por diferentes atores, como, por exemplo, o este-
reótipo da mulher negra agressiva e/ou promíscua. A violência cultural justifica a
omissão das instituições públicas voltada para as mulheres negras sobreviventes
que, por sua vez, percebem que agentes do Estado têm pouco interesse em sua
segurança, o que as afasta do alcance das políticas públicas contra a violência.
De acordo com Ijoma (2018), mulheres negras, cis e trans, enfrentam um sério
problema de visibilidade no ordenamento jurídico, como vítimas de violência íntima
ou de outras formas de violência de gênero. Há um grande obstáculo em aplicar a
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 43
legislação protetiva a mulheres negras, porque o sistema de justiça e outros serviços
do Estado são tendenciosos contra elas. A autora em questão salienta que, quanto
às altas taxas de abuso físico e sexual contra mulheres negras, em comparação
com mulheres de outras raças, estereótipos culturais que retratam a mulher negra
como “raivosa” e “independente” contribuem para a percepção de que meninas e
mulheres negras precisam de “menos proteção” do que mulheres brancas. Ainda
segundo Ijoma, a relação historicamente consolidada entre branquidade e a vitimi-
zação exclui naturalmente as mulheres negras de certas proteções nos diferentes
sistemas de garantia de direitos, nomeadamente educação, saúde, assistência social
e justiça. Estereótipos que contrapõem mulheres negras ao estereótipo da mulher
branca tradicional, de classe média alta, contribuem para perpetuar a crença de que
as mulheres negras são suficientemente fortes para suportar fardos emocionais e
físicos, sem a intervenção do Estado.
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 44
Os corpos das mulheres negras são desvalorizados por uma longa história de
regulação produtiva, abuso físico e emocional, violência sexual e estereótipos
prejudiciais sobre sua autonomia e responsabilidade, enquanto mulheres e mães.
Uma construção social que se destina a fazer das mulheres negras um alvo fácil da
agenda neoliberal de restrição de direitos (Roberts, 2012). Nesse contexto, medidas
securitárias e de encolhimento da proteção social do Estado, como o fechamento
de unidades de saúde e serviços de proteção social, o policiamento, o encarcera-
mento e a retirada de poder parental são apresentadas como inevitáveis e necessá-
rias para lidar com as mulheres negras e suas famílias. Dentro da lógica neoliberal,
o desmantelamento das redes e serviços de proteção social vem acompanhado da
adoção de uma série de estratégias securitárias, visando à repressão e à contenção
dos grupos subalternos afetados pela omissão do Estado. Ainda segundo Roberts
(2012), políticas, instituições e atores concretos do regime neoliberal são responsá-
veis por manter formas específicas e sistemáticas de punição das mulheres negras.
Os sistemas de saúde, assistência social, a prisão, a justiça de família são meca-
nismos e instituições que passam a cumprir um papel de regulação e policiamento
das famílias negras, mantendo um regime de controle e sujeição das mulheres negras,
encarcerando-as ou encarcerando seus familiares, comprometendo suas condições
de vida e as condições do exercício das suas responsabilidades maternas, violando
seus corpos e os seus direitos reprodutivos.
Conforme Rita Segato (2006), submissão, sexualização, feminização e conquista
funcionam como equivalentes simbólicos na ordem bélica patriarcal. Segato ainda
complementa que a sanção sobre o corpo da mulher é um lugar privilegiado do
exercício do domínio e do poder coesivo de uma coletividade. A violência direta e
institucional contra o corpo das mulheres negras, o que inclui a hiperssexualização,
o legado colonial da violência sexual como meio de afirmação da propriedade sobre
o corpo negro, as altas taxas de violência doméstica, o racismo institucional do
sistema de saúde, educação e proteção social, a violência obstétrica, as operações
ginecológicas forçadas, o encarceramento são práticas históricas que vão sendo
atualizadas e prolongadas como parte da ação normativa do Estado racial sobre a
população negra, demonstrando a existência de uma força social coesa na socie-
dade que é dirigida à adoção de práticas predatórias contra a população negra.
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 45
POLÍTICAS DE VIGILÂNCIA, CONTROLE E
BRUTALIDADE SOBRE O CORPO NEGRO
A vigilância, controle e policiamento da população negra é uma regra do funciona-
mento dos Estados raciais, uma vez que o sistema criminal foi desenvolvido no âmbito
desses Estados para operacionalizar o racismo. Como afirma Ana Flauzina (2006):
O racismo é elemento estrutural de sua constituição [do sistema penal]. O racismo é a
variável que regula a atuação do sistema, diz da intensidade das suas intervenções, formata,
enfim, a metodologia desse aparato de controle social. Sem o racismo, digamos de maneira
direta, o sistema penal passa a ser qualquer coisa, mas deixa de ser sistema penal, desde
uma concepção que adotamos.
Felipe Freitas (2020) explica como se organiza, no interior dos Estados, o
controle e a gestão racial do espaço público. Parte significativa desse controle,
exercido pelas forças de segurança, depende do mandato policial, isto é, a autori-
zação e discricionariedade conferida às forças policiais para garantir a segurança
da sociedade, o que inclui a autorização para uso da força. Freitas reforça o papel
do racismo como princípio organizador da violência “legítima”, empregada pelo
Estado através das suas forças de segurança. Trata-se de um exercício de vigilância,
controle e apropriação do corpo negro que está a serviço da gestão das cidades
e que se baseia numa “suspeição generalizada contra a população negra”. Essa
gestão espacial constitui zonas de segurança e fruição de direitos, de um lado, e
zonas incivis, marcadas pela brutalidade, tortura, execuções e outros episódios de
uso excessivo da força, do outro. A gestão e o controle racial demarcam os corpos
protegidos e os corpos expostos à morte prematura. De acordo com Freitas (2020):
O debate passa pelas questões do funcionamento das polícias como forma de gestão dos
corpos negros dentro da cidade e da relação entre o sentido de espaço urbano e a legiti-
mação social da violência do Estado a partir dos discursos sobre ordem pública e combate
à criminalidade, em que “o controle policial no espaço público se apoiava em uma ‘estra-
tégia de suspeição generalizada’ contra a população negra”.
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 46
Em outras palavras, verifica-se que o controle de corpos negros – e a chancela à violência
contra este grupo – torna-se então uma forma de governo das cidades com impacto na
definição da política criminal e das políticas de segurança pública, desde a montagem das
instituições do sistema de justiça criminal até a definição do mandato e da forma de gestão
da polícia. Forma-se aí um tipo de arranjo político, jurídico e social no qual “as relações
raciais também desenham a cidade” e, por meio de barreiras – físicas e/ou simbólicas –
limitam, definem e, no limite, eliminam negros e brancos: (p. 147/148)
De acordo com Freitas (2020), o racismo organiza a própria política urbanística
e emprega a violência do Estado para contrapor, de acordo com a raça, regimes
opostos: um regime de vigilância, segregação e morte e um regime de proteção,
segurança e vida. A contraposição entre esses dois regimes faz a garantia de vida
segura aos brancos depender da exposição da vida de negros à violência policial
e à morte por uso excessivo da força. Como um regime não pode existir sem o
outro, a classe racial dominante autoriza e legitima a ação policial sem limites, pois
ela é imprescindível para a manutenção do seu padrão de vida. Essa relação, que
faz o sentido de segurança e proteção da vida de um grupo social depender da
autorização para a intervenção policial abusiva sobre os grupos racializados, cria
o contexto que confere legitimidade social para a vigilância e a brutalidade exces-
sivas, transformando-as em práticas endógenas do trabalho policial contra pessoas
negras e em comunidades majoritariamente compostas por pessoas negras (Freitas,
2020). Dina Alves argumenta que a ilusão securitária que dá sustentação ao poli-
ciamento e à punição ostensiva de corpos negros tem por base a manipulação dos
imaginários e narrativas urbanas sobre o medo (2015):
Considerar a vigilância ostensiva, a seletividade penal a que estão submetidas as mulheres
negras é muito importante aqui porque os intérpretes da lei (...), reproduzem, disseminam
e sustentam um “regime de produção de verdade” que favorece a produção de provas e
a atuação policial voltada à ampliação do poder penal e ao encarceramento em massa de
indivíduos considerados suspeitos. A seletividade racial, em que pese o mito da demo-
cracia racial, pode ser identificada nessa vigilância ostensiva, no encarceramento despro-
porcional, no policiamento seletivo, na radicalização do medo nas narrativas de violência
urbana. Na verdade, os imaginários urbanos sobre o medo são fortemente determinados
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 47
por concepções do espaço por meio de uma episteme racial que reserva aos bairros e
corpos predominantemente negros a marca do crime. Historicamente, o medo tem sido
usado como estratégia de controle e dominação racial. (p. 37)
O controle exercido sobre as comunidades negras não se limita ao policiamento
das atividades consideradas suspeitas de ilicitude, dirige-se a controlar as formas
de vida e de construção de sentido dessas comunidades, estigmatizando-as como
atividades e manifestações culturais de produção da desordem. Felipe Freitas
(2020) reforça:
[...] alimenta-se um sentido público de uso legítimo da violência que passa a ser admitido
muito articuladamente com a ideia de que não é possível governar as cidades de forma
segura sem o recurso à ação brutalizada das polícias e sem o manejo de medidas exces-
sivas de força estatal. Estes discursos proliferam-se como uma nova forma de chancela à
violência policial e são, na prática, um modo próprio de alargamento do mandato das polícias
e de revisão de um outro “saber das ruas” que acessa o imaginário, as representações e
os sentidos coletivos “do que é” e “para quê [sic] serve a polícia nas cidades”.
[...] a classe média encontrou nos discursos sobre o medo e a violência a estratégia para a
criação de uma nova ordem urbanística marcada pela privatização da segurança pública, a
apropriação privada dos espaços públicos e a elaboração de sofisticados discursos contra
os pobres. Este controle verifica-se nas pesquisas empíricas sobre abordagem policial e
suspeição em que se constata a ocorrência de um sistemático processo de seletividade
racial, significando não só uma maior vigilância e controle policial sobre corpos negros, mas,
um próprio modelo de governamentalidade em que a gestão da vida/morte organiza-se
pelo signo da raça.
As ideias de suspeito, atitude suspeita e situação suspeita – centrais da ação de policia-
mento ostensivo – são formadas numa articulação entre características físicas, território e
determinadas práticas culturais.
[...] do ponto de vista da gestão de políticas de segurança pública, predomina o controle
policial no espaço da cidade organizado preponderantemente nas regiões de maioria negra
de modo a controlar – pela ação policial – os sentidos e os significados da presença de
diferentes grupos no território. Trata-se não apenas do controle da ordem jurídica ou da
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 48
intervenção diante de condutas criminalizadas, mas também de uma “gestão penal adminis-
trativa” que visa administrar as práticas de lazer, a cultura e o modo de vida dos diferentes
sujeitos que circulam nos espaços urbanos. (p. 153)
Como recorda Ann Cammet (2016), é preciso levar em consideração que o sistema
de justiça criminal não opera como um lugar isolado de opressão. O sistema criminal
bloqueia as expectativas de vida de pessoas negras, atuando conjuntamente com
outros sistemas estatais de regulação e controle, os quais criam barreiras regulató-
rias e burocráticas no acesso a bens e direitos e aplicam punições invisíveis (atos
nocivos, mal executados, negativa ou omissão estrutural de políticas e serviços
públicos). O desenvolvimento e a sobrevivência de pessoas negras, no que tange à
fruição de direitos básicos, como o acesso a emprego, moradia digna, apoio social,
entre outros serviços e políticas de Estado, são severamente comprometidos.
Os sistemas de regulação e controle dizem respeito a escolas públicas, serviços
de saúde e assistência social, programas de habitação social, tribunais de justiça
cível e de família, dentre outros serviços e políticas de Estado atravessados pelo
racismo institucional. A ação sobreposta e interligada dos diferentes sistemas estatais
de controle explica como a criminalização e o encarceramento de pessoas negras
resultam da ação/omissão combinada de diferentes setores do Estado e produzem
efeitos abrangentes sobre as condições de vida nas comunidades negras, para além
da pena de prisão. Trata-se de um movimento coordenado, que expande a lógica da
punição e do controle penal a outros mecanismos que sustentam a subordinação
econômica, política e social de negros e negras, atingindo não só as pessoas que
são rés em processos criminais, mas também famílias inteiras e, principalmente, as
mulheres negras.
Assim, Cammet reitera que a criminalização e o encarceramento são partes de
um sistema complexo de controle e subordinação. A criminalização inclui políticas
e práticas estatais que envolvem a estigmatização, a vigilância e a regulação das
pessoas negras, assumindo que a criminalidade, a desordem e a ilegalidade são
latentes entre elas. O avanço da criminalização e da utilização do direito penal como
forma de regulação de comunidades negras tem como consequência expandir a
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 49
lógica do controle, vigilância, regulação e
suspeição sobre pessoas negras a outras
áreas do direito e da intervenção do
Estado, incluindo-se a justiça de família,
a justiça civil, os sistemas de assistência
social e outros sistemas de acesso a
políticas públicas.
De acordo com a autora, o atual estado
de justiça criminal, inchado e punitivo,
tem como pano de fundo o neolibera-
lismo. Para além dos processos de priva-
tização e redução de gastos em políticas
sociais, Cammet salienta que o sistema de
justiça criminal sustenta o neoliberalismo
de maneira prática e simbólica. De um
lado, o encarceramento em massa serve
como um mecanismo de confinamento
de todo um grupo de pessoas de baixa
renda ou sem renda, sem acesso a polí-
ticas de educação, habilidades ou espe-
rança, bem como de todos aqueles com
vícios e doenças mentais não tratadas.
De outro lado, o policiamento ostensivo
e as operações policiais em espaços
geopolíticos – majoritariamente ocupados
pela população negra – funcionam como cerimônias de degradação, que reforçam
estereótipos raciais danosos. De um ponto de vista simbólico, a ação policial osten-
siva faz um prenúncio de segurança e dá sustentação ideológica para a manutenção
de uma justiça criminal cada vez mais questionada pelos seus métodos e resul-
tados seletivos.
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Roberts (2012) defende que o encarceramento em massa prejudica as comuni-
dades negras em três aspectos principais: destruição das redes de relacionamento
e apoio familiar, comunitário e social; distorção das normas sociais; e erosão da
cidadania social. Numa primeira dimensão, o encarceramento é parte de um legado
histórico de instituições destinadas a definir, confinar e controlar pessoas negras.
Numa segunda dimensão, através do encarceramento, é possível segregar perma-
nentemente um enorme contingente de pessoas da sociedade e da economia domi-
nantes, replicando o status de não-cidadania que vem sendo conferido a pessoas
negras desde a escravização. Por um prisma, o encarceramento aparece como
solução mais fácil para o Estado lidar com as desigualdades estruturais. A prisão em
massa permite que o Estado exerça controle direto sobre pessoas não qualificadas
e desempregadas que, devido ao racismo sistêmico, não têm lugar na economia
de mercado. Por outra perspectiva, a criminalização e o encarceramento deso-
neram o Estado da obrigação de garantir direitos e proteção a grupos e pessoas
que enfrentam uma situação sistemática e intergeracional de desvantagem social.
O emprego de mecanismos de punição, vigilância e encarceramento de mulheres
negras é estratégico para o objetivo de criar dinâmicas de controle que sustentem as
desigualdades econômicas e sociais dentro de uma ordem neoliberal. Roberts (2012)
relembra que, para a maioria das mulheres, a prisão constitui-se como o ponto alto
de um processo de vitimização por múltiplas vulnerabilidades e violências, incluindo
violência doméstica, abuso sexual, dependência de drogas e outros problemas de
saúde, falta de moradia, dentre outros. Problemas que deveriam receber a atenção
de políticas públicas de proteção social. Dina Alves (2015) exemplifica, através de
casos concretos, o rigor da punição a mulheres negras que, na realidade, deveriam
receber atenção e serviços do Estado para lidar com problemas que decorrem da
omissão estatal em garantir um padrão de vida digno a elas.
No caso específico da entrevistada Joana, evidencia-se ainda maior severidade na distri-
buição da punição pena. Primeiro, pelo número de entradas e saídas do sistema prisional e
seus trágicos encontros no ambiente marcado pela dor e pelo sofrimento. Segundo, pela
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pouca quantidade de drogas apreendidas em detrimento da pena de 07 anos de reclusão.
Terceiro, porque os laudos médicos reconhecem que Joana é dependente química. (p. 105)
O encarceramento é, também, o ponto mais alto – e visível – da violência do
sistema criminal contra mulheres negras, uma vez que a questão se mantém escondida
e pouco se discute acerca da situação de brutalidade policial, inclusive de violência
sexual, enfrentada por mulheres negras em diferentes circunstâncias de confronto
com as forças policiais – em protestos, prisões arbitrárias, prisões preventivas e
em flagrante etc. Em estudo conduzido com mulheres negras encarceradas em São
Paulo, Dina Alves (2015) revela que todas as entrevistadas vivenciaram situações
de tortura física e psicológica no encontro com o sistema criminal:
Em todos os casos analisados aqui, a tortura, tanto física quanto psicológica, nortearam
o encontro destas mulheres com o estado penal. No caso específico de Rosa, mesmo
exibindo ao juiz as marcas da tortura nos seios, ao desqualificar sua voz e ignorar as marcas
de tortura no seu corpo, ele legitimou a ação policial [...] O juiz reconheceu a prática de
tortura pelos 12 policiais, mas ignorou os dados acarretados à Rosa, ou seja, a invalidez no
ouvido direito e as marcas da eletrocussão nos seios e na barriga. (p. 107)
Mulheres negras que dependem de serviços de assistência, serviços médicos
para tratamento da dependência química, benefícios e apoio social para o cuidado
dos filhos estão ainda mais expostas a um sistema de vigilância e controle que pode
enquadrá-las em algum tipo de punição, sanção criminal ou administrativa, abuso físico
ou psicológico. Roberts evidencia que grande parte do dano provocado pelas altas
taxas de encarceramento nas comunidades negras resulta do impacto do sistema
sobre as mães negras. Uma parte significativa das mulheres negras encarceradas
são mães. Consequentemente, o encarceramento em massa de mulheres negras
sobrecarrega as redes familiares de cuidado, debilitando os meios de resiliência
das comunidades e sua capacidade de resistir. Por outro lado, ressalta Roberts, a
prisão das mães transfere a desvantagem social para as gerações futuras. O encar-
ceramento em massa priva milhares de crianças de importante apoio econômico,
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 52
afetivo e social, sobrecarregando, econômica e emocionalmente, outros membros
da família, muito provavelmente outras mulheres negras.
A separação das crianças da mãe e do pai encarcerados acarreta sérias conse-
quências sociais e psicológicas, contribuindo para a transmissão intergeracional da
punição penal dentro das famílias. Dina Alves (2015) exemplifica como a pena de
prisão dirigida a mulheres negras é compartilhada intergeracionalmente, afetando
mães, filhas/os e netas/os:
Outro ponto importante que marca a história de vida delas [mulheres acompanhadas pela
pesquisa] é a transmissão intergeracional da pena que marca gerações familiares no interior
do sistema. Joana, por exemplo, deu à luz à sua filha na referida unidade. Tempos depois
sua filha foi presa por tráfico e, atualmente, cumpre pena na mesma cela. Soma-se a isso
o fato de que a filha de Joana recentemente deu à luz a seu primeiro filho no interior da
mesma unidade. Ou seja, Joana vivencia a terceira geração, todos encarcerados – mãe/
filha/neto – marcados pelo terror da punição.
Da mesma fora as entrevistadas Maria e Cristina cumprem pena na mesma cela com suas
respectivas filhas, Lucia e Elis. Em todos os casos destas quatro mulheres foram apreen-
didos menos de 100 gramas de drogas, elas são oriundas de bairro com histórico de
pobreza, violência polícia e exclusão social, cumprem a pena sem ter nenhum benefício
processual. Maria, por exemplo, tem direito ao benefício do semiaberto por ter cumprido
mais de 1/6 da pena, mas até o término da pesquisa ela continua em regime integralmente
fechado. (p. 105)
Roberts (2012) igualmente sustenta que o encarceramento de mulheres tende a
apresentar consequências mais danosas sobre os laços familiares do que o encarce-
ramento de homens, uma vez que as mulheres são as principais responsáveis pelo
cuidado familiar. Sob outra perspectiva de análise, a autora recorda que mulheres
negras mães são, direta e desproporcionalmente, impactadas, mesmo quando não
são criminalizadas, visto que também suportam o impacto do encarceramento em
massa dos homens negros. Para além da pressão psicológica e das tensões fami-
liares relacionadas à existência de um familiar encarcerado, um enorme fardo recai
sobre as a mulheres cuidadoras, principal fonte de apoio a famílias que vivenciam
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dificuldades extremas – mulheres lutando para administrar orçamentos reduzidos;
mulheres tentando manter as famílias unidas enquanto os laços familiares estão
sob permanente tensão e ruptura; mulheres tentando administrar a vergonha e o
estigma do encarceramento; e mulheres tentando evitar que as crianças se tornem,
do mesmo modo, vítimas da guerra contra as drogas. Enfim, a autora menciona que
o impacto do encarceramento sobre as mães negras possui relação plena com a
utilização do direito penal para manter o sistema de subordinação política das comu-
nidades negras. O encarceramento, em especial a prisão em massa de mulheres
negras, devasta o tecido social e a capacidade de resistência da população negra,
retirando, desta, oportunidades para desenvolver estratégias e normas necessárias
para a solidariedade e o ativismo.
POLÍTICAS DE DESTERRITORIALIZAÇÃO
As políticas de desterritorialização são processos e eventos. Para além das exclu-
sões espaciais e expulsões das casas e dos espaços de existência (Sassen, 2014),
a desterritorialização diz respeito a um processo lento e doloroso de despossessão.
A violência e racismo estruturais são constantes que determinam as experiências
de desterritorialização e podem resultar no evento extremo da evasão, da expulsão
ou da falta de condições de sair de um espaço de degradação, desastres e mortes.
O racismo configura não só a morte prematura do corpo negro, mas a morte dos
espaços que estes corpos ocupam. O racismo estrutural determina uma condição
de debilidade permanente das formas de ser e estar que leva à busca por proteção
em outros espaços.
Há um sentido de estar, um direito de ocupar e um direito ao território siste-
maticamente violados por tecnologias e materialidades empregadas para retirar as
pessoas negras dos seus lares e territórios ou submetê-las a ocuparem espaços
insalubres, expostos a desastres, eventos extremos, degradação e privação sistemá-
tica de direitos e políticas públicas básicas. O Estado desempenha um papel central
na produção e aplicação das tecnologias e materialidades da desterritorialização
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 54
ao mesmo tempo em que contribui para a construção de categorias rígidas que
limitam quem é a pessoa forçadamente deslocada que tem direito à proteção (Adey
et. al., 2020).
São múltiplas as formas de desterritorialização. Elas variam de acordo com as pers-
pectivas de análise. A desterritorialização se estende desde os fluxos e mobilidades
internacionais (isto é, fora do Estado-nação) ao interior de cada Estado, nas suas
regiões, cidades e bairros, nas casas e nos corpos de cada pessoa. Os despejos,
a evasão, expulsão, mobilidade ou retenção dos corpos, que impactam grupos
populacionais específicos, em maior ou menor escala, são exemplos de desterri-
torialização. Afetando grupos inteiros de pessoas, a desterritorialização é também
uma experiência íntima; a partir do corpo, ela alcança o resto do mundo (Adey et.
al., 2020). A experiência íntima, a forma como a desterritorialização atinge cada
pessoa, a partir de certas características (mulher, criança, nacionais, migrantes,
negras e negros, minorias étnicas) determina a multiplicidade desse fenômeno.
Essa intimidade da desterritorialização mostra como a violência da mobilidade, da
expulsão e da retenção forçadas ajudam a reorganizar os corpos numa hierarquia
espacial, definindo quem pertence a cada espaço e quem irá ocupar os espaços
de violência ou mover-se entre eles (Pain e Staeheli, 2014). A desterritorialização é
assim um conceito que articula experiências e processos íntimos, locais, nacionais
e globais, aparentemente desarticulados (Lees e Phillips, 2018).
As tecnologias e as burocracias da desterritorialização procuram reduzir e engessar
quem são as pessoas que contam como pessoas forçadamente deslocadas e assim
reduzir a extensão das obrigações humanitárias e de implementação dos direitos
humanos pelos Estados. Os sujeitos da desterritorialização não cabem numa categoria
rígida, como pessoas migrantes ou refugiadas. São sujeitos da desterritorialização
todas aquelas pessoas que, sobreviventes das violências, buscam por proteção
dentro de um espaço (Landau, 2018). Sobreviventes de violência doméstica, por
exemplo, podem ser sujeitos da desterritorialização (Adey et. al., 2020).
As políticas de desterritorialização estão sustentadas numa geometria do poder
(Massey, 1993), isto é, na forma como a estrutura de poder e dominação configuram
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as diferenças sociais distribuindo os grupos populacionais em condições alta-
mente desiguais para poderem se mover ou permanecer nos lugares que ocupam.
Em sociedades racializadas, a violência racial determina a geometria do poder criando
hierarquias de mobilidade, ocupação e pertença aos espaços. A desterritorialização
também não se limita a uma experiência de vida marcada por um momento único de
ruptura. A geometria do poder submete as pessoas racializadas a deslocamentos
múltiplos, que se sobrepõem, retirando-lhes condições de autonomia e poder para
decidir sobre o seu pertencimento. Os tempos das políticas de desterritorialização
são variados e correspondem a momentos de violência também diversificados.
A violência inclui tanto o ato singular de força que retém ou impõe o deslocamento;
quanto a violência lenta e silenciosa do processo de desterritorializar (Tyner, 2020).
A violência silenciosa faz com que as pessoas desterritorializadas lidem permanen-
temente com traumas, perigos, danos e violações de direitos que se entendem no
tempo e as afetam gradualmente, o que inclui lidar com a burocracia, a tecnologia e
as forças de segurança de um Estado responsável pelas condições que as obrigam
a moverem-se ou a manterem-se onde estão.
A retomada de um sentido de estar e pertencer pelos sujeitos da desterritoriali-
zação envolve uma luta contra a morte dos seus espaços e sentidos de existência,
afirmando tanto uma liberdade de mobilidade, com direitos e proteção, quanto um
direito à moradia. Este direito a morar e a ocupar ultrapassa uma concepção mera-
mente física e envolve um direito à dignidade e à transformação dos espaços em
lugares de bem viver.
A desterritorialização é sustentada por uma ecologia política. Elmhirst (2020)
discute as concepções segundo as quais a garantia de controle do poder do Estado
e o controle das populações “indisciplinadas”, consideradas racialmente inferiores,
estão sustentadas em práticas de desterritorialização. Tratam-se de remoções e
reassentamentos daqueles grupos considerados “fora do lugar”, enquanto seus lares
e territórios tornam-se os espaços de desenvolvimento dos negócios das elites.
A autora fala da existência de uma marginalização ecológica em que as raízes das
remoções e das expulsões estão fincadas em um capitalismo racial em que o Estado
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 56
e suas elites impõem regimes extrativos insustentáveis e conflitos sobre pequenos
agricultores, povos indígenas e quilombolas e povos tradicionais. No mesmo sentido,
os desastres, longe de serem acontecimentos naturais, revelam uma economia de
apropriação e lucro, tornando-se oportunidades de acumulação para os poderosos.
Processos econômicos de extrativismo, urbanização, gentrificação, desastres e
degradação ambiental compõem a racionalidade dos despejos, remoções e reas-
sentamentos forçados da economia global capitalista. Elmhirst ainda recorda que a
desterritorialização não implica necessariamente a expulsão ou o reassentamento,
também se traduz em práticas de despossessão que vão gradualmente retirando
dos povos as possibilidades de preservar sua existência física e cultural.
Ainda de acordo com Elmhirst, deve-se ter em mente o papel do capital trans-
nacional e da financeirização do meio ambiente como um veículo de exclusão e
despossessão. As mudanças climáticas (e sua mitigação), a crise financeira, o
extrativismo e o boom mundial das commodities fornecem um contexto para as
formas de desterritorialização que acompanham o estabelecimento e crescimento
de mercados ambientais dentro de uma “economia de reparação” (Elmhirst, 2020).
A natureza é valorizada pela mercantilização do carbono, dos recursos minerais e
dos valores estéticos, etc.
A Relatora Especial sobre formas contemporâneas de racismo salienta que “a
pobreza e o subdesenvolvimento são o resultado previsível de séculos de estrutu-
ração econômica em que potências coloniais integraram territórios coloniais e suas
economias aos mercados globais em condições de dependência econômica, tendo
a cumplicidade das elites nacionais do Sul global e às custas da grande maioria de
suas populações. O extrativismo, tanto agora como no passado, está no centro
dessa dependência e desigualdade; tem profundas implicações para a justiça e a
igualdade raciais” (Achiume, 2019). A dominação racial estrutura essa estratégia de
subordinação porque “quem arca com o maior custo da economia extrativista são
os povos que antes foram colonizados com base em falsas alegações de inferio-
ridade racial. São aquelas pessoas que, sob a economia do extrativismo colonial,
foram socialmente construídas como não-brancas ou não-europeias, que hoje
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permanecem subordinadas, excluídas e marginais dentro da economia global do
extrativismo”(Achiume, 2019).
As consequências desse processo são as violações extremas de direitos humanos
das comunidades étnicas e tradicionais, especialmente das mulheres, que estão
na linha de frente da luta contra a devastação promovida pela economia extrativa.
São as comunidades étnicas e raciais, econômica e culturalmente marginalizadas,
em circunstâncias de vulnerabilidade e insegurança sobre a propriedade de seus
territórios e que não dispõem dos meios de proteção necessários contra projetos
extrativos, que estão na linha de frente da luta contra interesses políticos e econô-
micos poderosos, dentro de estados militarizados, corruptos e repartidos em torno
da cumplicidade com grandes empresas e seus empreendimentos.
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 58
EPISTEMICÍDIO
Sueli Carneiro (2005) argumenta, a partir de Foucault, que o racismo consiste
na operacionalização do biopoder por meio de um dispositivo de racialidade, que
ordena, classifica, subordina e cria regimes de verdade em prejuízo do grupo social
construído como pertencente a uma raça inferior – a população negra.
Um dos resultados dessa realidade é a implementação de um sistema prolon-
gado de indigência cultural, que não só inferioriza, rebaixa e deslegitima os conheci-
mentos produzidos pelas pessoas negras, como também lhes nega a racionalidade
e a humanidade. Trata-se de um processo que não seria possível sem um contexto
sistemático de violência estrutural, o qual priva pessoas negras do acesso a direitos
básicos, e violência cultural, que legitima a violência reforçando os estereótipos de
desumanização. Para Sueli Carneiro:
[...] o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos
subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação
ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelec-
tual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor
de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou
pelo comprometimento da auto-estima [sic] pelos processos de discriminação correntes
no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conheci-
mento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente,
como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar
o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racio-
nalidade do subjugado ou a seqüestra [sic], mutila a capacidade de aprender etc.
É uma forma de seqüestro [sic] da razão em duplo sentido: pela negação da racionalidade
do Outro ou pela assimilação cultural que em outros casos lhe é imposta. Sendo, pois, um
processo persistente de produção da inferioridade intelectual ou da negação da possibili-
dade de realizar as capacidades intelectuais, o epistemicídio nas suas vinculações com as
racialidades realiza, sobre seres humanos instituídos como diferentes e inferiores constitui,
uma tecnologia que integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e que tem por caracte-
rística específica compartilhar características tanto do dispositivo quanto do biopoder, a
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 59
saber, disciplinar/ normalizar e matar ou anular. É um elo de ligação que não mais se destina
ao corpo individual e coletivo, mas ao controle de mentes e corações. (p. 97)
O resgate do conceito de epistemicídio, da maneira como é formulado por
Sueli Carneiro, é relevante para destacar a extensão da violência racial sistêmica.
A violência racial não se limita a comprometer o corpo, a vida e as condições de
vida da população negra. Ela também é voltada para aniquilar a sua capacidade de
produzir sentidos de existência, de produzir uma racionalidade de ser e estar e,
consequentemente, de resistir e criar laços de resistência e contestação num mundo
estruturado pela ordem racial. Esse estado de indigência cultural tem por objetivo
manter as condições de subordinação das pessoas negras dentro do Estado racial,
inibindo sua capacidade de formular alternativas de futuro e, desta forma, refrear a
contestação racial pelos grupos oprimidos.
CONCLUSÕES
A abrangência e o caráter estrutural da violência racial entre nós, bem como o
papel que ela tem desempenhado na sustentação do regime político e econômico,
faz da antinegritude um dos pilares do Estado racial brasileiro. Uma antinegritude
que é histórica, endêmica, permanente e que continua se reproduzindo em polí-
ticas e práticas cotidianas, reiterando o sofrimento negro (Dumas e Ross, 2016).
Dumas e Ross (2016) endossam que, de fato, não há um ser negro que ainda não
seja suspeito – ou alvo – da morte nas estruturas sociais racializadas. A reinscrição
e a rejustificação da violência faz da participação de pessoas negras na vida social,
na condição de cidadãos, algo ininteligível (Dumas e Ross, 2016). Dentro do projeto
intelectual denominado “afro-pessimismo”, esse antagonismo sistemático, perma-
nente e disseminado à negritude, postula pela impossibilidade da humanidade negra.
Negros e negras persistem no imaginário ainda como escravos. Vitimizados por uma
morte social, têm pouco direito de viver, mover-se ou existir por si mesmos (Dumas
e Ross, 2016). A persistência da violência racial reinscreve e atualiza, na sociedade,
esse imaginário, não abrindo margem para mudanças.
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 60
Jurema Werneck (2005) oferece outro enquadramento sobre o caráter estru-
tural da violência racial, ao defender que os esforços políticos de enfrentamento
ao racismo devem dirigir-se a derrubar a crença no silêncio. Para esta pensadora,
se o racismo se impõe como modelo de hierarquização das relações sociais, é
o antirracismo articulado pela população negra o seu principal interpelador. Esse
processo de resistência traz à tona o ruído do racismo. O silêncio corresponde a
um conjunto de políticas estatais, discursos, práticas cotidianas de representação
e produção de discriminação e violência contra negras e negros. Ainda de acordo
com Werneck, uma das consequências do regime de silêncio é a ignorância persis-
tente sobre as várias formas de resistência empreendidas pela população negra.
Logo, o silêncio tem a função de promover um reducionismo, que desqualifica a
luta política das organizações e movimentos negros. Reconhecendo-se os efeitos
devastadores do racismo e sua íntima conexão com um estado incivil de violência
antinegras e negros, é preciso, igualmente, atestar o antirracismo como vetor da luta
política empreendida por parte significativa da população negra (Werneck, 2005).
Uma luta que, dentro das suas estratégias, tem o Estado como alvo central. Se é
o Estado o principal vetor das políticas de violência racista, ele deve ser forçado a
impulsionar políticas de igualdade racial. Esse é um dos pressupostos de uma luta
antirracista que aposta na reversão dos aparelhos que sustentam o Estado racial.
Os resultados da luta antirracista sobre o Estado, no caso brasileiro, têm reper-
cutido em resultados positivos em algumas políticas, as quais, no entanto, não
conseguiram reverter os índices crescentes de violência e letalidade contra a popu-
lação negra. Dentre as razões desse estado inalterado de coisas, está a realização
fragmentária e experimental de políticas que não visaram atacar, de fato, as desi-
gualdades raciais que amparam o edifício do racismo estrutural no Brasil. Um dos
poderes do Estado que se mantém alheio e intocado perante as reivindicações e
lutas antirracistas é o Poder Judiciário.
Enquanto o problema do racismo sistêmico exige compromisso político antirra-
cista para a formulação de respostas sistêmicas e planos de ação abrangentes, o
sistema de justiça tem ensaiado soluções experimentais, fragmentadas, heterogêneas,
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 61
de curto alcance e influenciadas por concepções punitivas e produtivistas. Neste
cenário, o compromisso antirracista é substituído por fórmulas suaves (promoção da
diversidade, compromisso em acelerar o julgamento dos processos, aumento das
formações em questões raciais) ineficazes, no que diz respeito a atingir as raízes do
problema. Essa relação entre problemas sistêmicos e soluções superficiais funda o
aparente paradoxo do momento atual. Por um lado, a compreensão das questões
raciais está cada vez mais disseminada, e o sistema de justiça tem assumido publi-
camente uma agenda de igualdade racial. Por outro lado, os índices de violência e
letalidade da população negra não param de crescer e, com a omissão e cumplici-
dade das instituições de justiça, vêm batendo recordes a cada ano.
Nos próximos textos da presente série, discutiremos as práticas nocivas do
sistema de justiça contra a população negra, as quais se mantêm intocadas, bem
como as respostas fracas que o sistema tem formulado para se dirigir aos questio-
namentos levantados pelas organizações negras ao longo de vários anos.
Desenvolvendo uma teoria sobre violência racial sistêmica 62
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CRIOLA é uma organização da sociedade civil com 30 anos de trajetória na defesa
e promoção dos direitos das mulheres negras. Nossa missão é contribuir para a
instrumentalização de mulheres negras jovens e adultas, cis e trans, e para a garantia
dos direitos, da democracia, da justiça e pelo Bem Viver.
Os objetivos de Criola são: (i) incrementar a pressão política sobre governos e demais
instâncias públicas e privadas, para a garantia dos direitos humanos, da ampliação
da democracia e da justiça e pelo Bem Viver; (ii) produzir e difundir conhecimento
voltado para a erradicação do racismo patriarcal cisheteronormativo, para a garantia
de direitos, para a ampliação da democracia e da justiça e pelo Bem Viver; (iii) formar
lideranças negras aptas a elaborar suas agendas de demanda por políticas públicas
e a conduzir processos de interlocução com gestores públicos.
Criola tem suas ações definidas por seu corpo de associadas e recebe apoio de
diferentes organizações e movimentos, bem como de organizações filantrópicas
nacionais e internacionais. É, também e principalmente, apoiada pela população
negra, especialmente por mulheres negras. Ao completar 30 anos, em 2022, reitera
o seu compromisso com a defesa e a ampliação dos direitos das mulheres negras,
da democracia, da justiça e pelo Bem Viver.