NAS TRAMAS DO PARTO: MULHER, VIOLÊNCIA E DIREITO.
Fernanda Sousa Oliveira1
Renata Dutra Botelho2
Sissilia Vilarinho Neto3
RESUMO
O presente texto objetiva abordar o fenômeno da violência obstétrica no Brasil,
identificando suas características sociais e culturais, as permanências de
práticas no campo da saúde e a ausência de regulamentação, se comparado a
outros países latino-americanos.
PALAVRAS-CHAVE
Violência obstétrica, práticas no campo da saúde e regulamentação.
Notas iniciais
As preces e súplicas que invocam a nossa senhora do bom parto
têm sido, por muitas décadas, utilizadas por mulheres em estado de
parturiência e por seus familiares. A intenção é solicitar à divindade a
oportunidade de receber a graça de não sentir dor ou, ao menos, de serem
minimizados os efeitos do processo de nascimento.
A invocação à santa do bom parto refere-se à crença de que Maria,
mãe de Deus, não sentiu os incômodos e as dores provenientes da gestação.
1
Advogada. Mestre em Sociologia. Especialista em Direito Sanitário. Docente do curso de
Direito da Universidade Federal de Goiás, Regional Cidade de Goiás. Coordenadora do Grupo
de Estudos e Pesquisa em Direito Sanitário e Antropologia da Saúde – RAIZAMA. Membro do
CEBES-GO.
2
Advogada. Mestre em Direito. Docente do curso de Direito da Universidade Federal de Goiás,
Regional Cidade de Goiás.
3
Professora de Educação Física. Doutora em Educação. Docente da Faculdade de Educação
Física e Dança, Regional Goiânia, da Universidade Federal de Goiás.
Ela foi agraciada com “um bom parto”. Esse fato religioso é considerado uma
dádiva divina e almejado por várias mulheres em estado de parto.
Na oração religiosa, destaca-se o sentimento de insegurança e
medo, os quais afligem as mulheres em estado de gestação. Na frase “olhai
para mim, vossa serva, que na aproximação do parto, sofro angústias e
incertezas”, revela-se profunda necessidade das mulheres em receberem
amparo por parte do divino.
Neste momento vão se delineando alguns questionamentos
perturbadores sobre a questão do parto e da evocação ao divino, tais como: o
que está por traz da evocação da divindade? Por que as mulheres ainda têm
tanto medo e insegurança no processo de nascimento do bebê? O que dá
legitimidade social a este sofrimento da mulher? Os procedimentos médicos
não são eficazes para garantir um bom parto? Há violência sendo produzida e
reproduzida pelas instituições hospitalocêntricas? Como se caracteriza a
violência obstétrica? Qual a relação desta violência com a violência contra a
mulher? Existem leis específicas que garantam os direitos das mulheres em
estado reprodutivo?
Corpo e violência contra a mulher
Recorrer às preces, à dimensão religiosa da vida, à fé, àquilo que
não é palpável quando do parto, indica, no mínimo, que, do ponto de vista
material, as condições sociais (aparato jurídico, educação, cultura, políticas
públicas, práticas profissionais etc.) são precárias para que as mulheres
possam lidar com tranquilidade psicossocial com a sua própria condição de ser
mulher.
Abordar a questão específica da violência obstétrica requer
contextualiza-la com a dimensão mais ampla da questão relativa à violência
contra a mulher.
Por violência, entendemos com Chauí (1985), que ela possui dos
ângulos. Um que se dá por meio de relações hierárquicas, transformando
aquilo que é diferente em algo desigual, com a finalidade de dominação,
exploração e opressão. O segundo ângulo dá-se na dimensão de que o ser
humano, objeto de violência, perde sua condição de sujeito, transformando-se
em coisa, de maneira que sua atividade e/ou sua fala passam a ser impedidas
ou aniquiladas por causa da atitude de inércia, silêncio e passividade assumida
pelo próprio sujeito.
A violência contra a mulher pode ser compreendida dentro do
conceito de violência de gênero “[...] e se caracteriza por qualquer ato que
produza dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, incluindo
ameaças, coerção e privação de liberdade, assim como castigos, maus-tratos,
pornografia, agressão sexual e incesto.” (VICENTE e VIEIRA, 2009, p. 64)
Conforme Heise e col., (1994, apud PEDROSA e SPINK, 2011, p.
129)
Os efeitos da violência sexual sobre a saúde podem ser prolongados
e crônicos exigindo tratamento e apoio apropriados, tanto pela equipe
de saúde quanto pela família e amigos. Problemas como o estresse
pós-traumático, que muitas vezes é caracterizado por sintomas como
insônia, pesadelos, falta de concentração e irritabilidade, podem
permanecer semanas ou meses após a agressão, assim como as
dores no baixo ventre ou infecções e transtornos digestivos, como
falta de apetite, náusea, vômito, cólica e dor no estômago. Agravos
como as doenças sexualmente transmissíveis (DST/aids), infecções
urinárias e vaginais, e gravidez são consequências que também
podem se manifestar posteriormente.
A literatura científica indica que os fundamentos históricos da
violência contra a mulher podem ser localizados tanto nas tradições culturais
(sejam elas religiosas ou de contratos sociais) quanto no próprio
desenvolvimento da ciência, e estão delimitadas por produção de
representações a partir das diferenças corporais entre os sexos.
Conforme Silva (1995), a identidade da mulher se constitui de forma
fragmentada a partir de relações de dominação entre homem e mulher, o que
produz um sentido de decapitação cultural e de silenciamento da condição da
mulher.
Apesar de ser da natureza do ser humano a capacidade de
identificar diferenças, por exemplo, entre os sexos, o ponto fulcral da
especificidade humana é a capacidade de ser consciente destas diferenças
biológicas, qualifica-las e estabelecer hierarquização entre elas por meio de
processos classificatórios. As consequências desta atitude humana são
exclusão, subjugação e/ou extermínio. Atitudes que incluiremos no conceito de
violência.
E aqui não estamos negando a diferença. Mulheres e homens são
iguais como gênero humano, mas apresentam, também,
singularidades e diferenças. No entanto, e aqui reside nossa reflexão,
“a diferença, a particularidade, a singularidade de gostos,
sentimentos, desejos, hábitos, ações não poderiam estabelecer uma
relação de desigualdade entre seres pertencentes ao gênero
humano” [...]. Não poderiam demarcar, em virtude da diferença, o
estigma da segregação! (GOELLNER, et. al., 1995, p. 139-140)
A diferença biológica entre os sexos tem sido, ao longo da história
humana, usada como forma de marcar a mulher e demarcar a superioridade do
homem. As características corporais da mulher, seus ciclos biológicos, a sua
capacidade de gerar vida foram, por séculos, na tradição ocidental, descritas
como um problema.
Do ponto de vista da religiosidade cristã, o mito do patriarcado define
a mulher como símbolo do fracasso da humanidade na terra. Por meio deste
mito, o castigo divino estabelecido a ela foi a dor: a dor do ciclo menstrual, a
dor do parto, a dor da maternidade. A vida da mulher foi convertida em
sofrimento e conformismo: as duas alternativas de superação do erro cometido
no início da vida do ser humano na terra.
A dor, como castigo, associa-se a uma representação da mulher
como algo frágil, que requer cuidados e proteção. O espaço privado vai se
constituindo como de privilégio da mulher, mas não no sentido da sua
governança. No âmbito da casa, a mulher encarrega-se da higiene, da limpeza,
dos cuidados com o bebê, do aconchego para o homem. A força produtiva da
mulher torna-se reduzida, a sua participação social limitada à geração de novos
indivíduos fortes e saudáveis.
A tradição religiosa cristã teve influência até mesmo no
desenvolvimento da ciência médica. Conforme Silva (1995, p. 110),
Quando da descoberta da anestesia, o último campo da medicina no
qual ela foi utilizado foi a obstetrícia, visto que a grande maioria dos
médicos receava desafiar a “maldição bíblica” e aliviar as dores das
parturientes, temendo a eventual reação da igreja.
Mesmo com o desenvolvimento da ciência desde o século XIV, em
particular da ciência médica, não houve alteração na estrutura de dominação
da mulher. O processo de desenvolvimento da medicina, associada aos
impulsos de progresso da modernidade, foi, paulatinamente, transformando o
corpo em um objeto passível de ser conhecido, mensurado e dominado. A
produção de saberes sobre o corpo possibilitou à medicina tornar-se autônoma
frente a Igreja e garantiu-lhe legitimidade para discursar e interver nas diversas
práticas corporais, especialmente aquelas relativas à saúde da mulher.
As ciências biomédicas, predominantemente de base empírico-
analítica, e vinculada às ciências naturais, criaram e aprimoraram um conjunto
de técnicas de intervenção no corpo que visaram (e visam ainda), no caso
específico da mulher, adequá-la ao padrão de saúde, de higiene, de
produtividade e de beleza pertinentes à sociedade moderna. Exercícios
corporais para fortalecimento do corpo e adequação aos padrões de beleza
feminina; regras para realizar a higiene corporal de si, das crianças e da casa;
cirurgias obstétricas; técnicas de cuidados com o recém-nascido; e cirurgias
estéticas para manter a mulher sempre jovem e bela são exemplos do alcance
da intervenção social médica no corpo das mulheres, a partir dos saberes
constituído pela ciência (SOARES, 1995; SILVA, 2001).
Destaca-se que tais saberes sempre tiveram pretensão de
neutralidade tanto na sua produção quanto na sua intervenção, de forma que
experiências e hábitos culturais, bem como a subjetividade da mulher não eram
considerados como positivos, mas, de modo geral, como entraves ao
progresso social. Inumeráveis atos de violência física e simbólica foram e ainda
são produzidos em nome de uma ideia de saúde vinculada à correção de
distúrbios sociais e individuais. A continuidade disto ainda pode ser observada
hodiernamente.
Conforme Vicente e Vieira (2009), Pedrosa e Spink (2011) e Aguiar,
D’Oliveira e Schraiber (2013), a formação acadêmico-profissional na área da
saúde, especialmente a formação de médicos e enfermeiros, ainda possui
características muito técnicas e centradas na abordagem saúde-doença-
conduta. Temas como gênero e violência contra a mulher raramente são
tratados nos currículos. Predominantemente, o tratamento toma o corpo da
mulher como objeto. O processo de especialização reforça as características
da formação inicial, considerando a mulher como um conjunto de células,
órgãos e funções fisiológicas. Até mesmo a ginecologia reproduz está lógica.
Esta perspectiva de formação acaba por reforçar e reproduzir, no
âmbito do cuidado com a saúde, o contexto mais amplo de violência no qual a
mulher está submetida. Gera, por um lado, dificuldade dos profissionais da
saúde em lidar com os casos de violência contra a mulher que chegam nos
hospitais ou centros de saúde. As pesquisas evidenciam que os profissionais
apresentam diversas limitações, dentre elas destacam-se: a) preconceito em
relação à paciente que vive em situação de violência e b) relutância em atuar
nestes casos por não saber como proceder tanto do ponto de vista do
encaminhamento para outros serviços sociais quanto da conduta terapêutica
(VICENTE e VIEIRA, 2009). De modo geral, a atuação do profissional fica
limitada à experiências e vivências pessoais (PEDROSA e SPINK, 2011).
Por outro lado, estas dificuldades da atuação profissional produzem
violência institucional e abuso da autoridade médica e dos profissionais
vinculados a esta área.
A violência institucional em maternidades públicas tem sido apontada
em alguns estudos como resultado da própria precariedade do
sistema de saúde e entendida como ligada à falta de investimentos no
setor. Em outros estudos, a explicação de sua ocorrência inclui a
conduta pessoal de desrespeito dos profissionais às pacientes.
(AGUIAR, D’OLIVEIRA e SCHRAIBER, 2013, p. 2288).
Conforme Aguiar, D’Oliveira e Schraiber (2013), a autoridade
técnico-científica do médico sobre o corpo da mulher e a ausência da
apropriação de um saber que possibilite ao médico compreender a mulher nas
relações de gênero, bem como nas diversas situações sociais que geram
violência (como a condição econômica, a formação cultural, a escolaridade
etc.) faz com que se tornem legítimas e naturais os tratamentos grosseiros,
desrespeitosos e discriminatórios, a violência física e psicológica, a desatenção
quanto às necessidades de analgesia, agressões sexuais e o uso
indiscriminado de tecnologias para as cirurgias de cesarianas e de técnicas que
deixam dor iatrogênica.
Desta forma, a violência institucional sustenta-se em dois pilares: o pilar da
legitimidade científica do conhecimento na área da saúde e o pilar da
dependência da mulher em relação a este saber, do qual ela não tem domínio.
Assim, a violência institucional desenvolvida pela prática profissional na área
da saúde é considerada uma das mais difíceis de serem percebidas como tal
pelos sujeitos envolvidos “[...] ainda que impliquem de forma bastante clara a
anulação da autonomia e a discriminação por diferença de classe, raça ou
gênero.” (AGUIAR, D’OLIVEIRA e SCHRAIBER, 2013, p. 2289).
Da violência obstétrica à constituição dos direitos da parturiente
A violência obstétrica é um fenômeno recorrente na América Latina.
Em alguns países como a Venezuela e Argentina há previsão legislativa para a
detecção e repressão desse ato. No Brasil, são muitos os casos já relatados
por vias midiáticas, por instituições de defesa à mulher. Contudo, não há
previsão legal que ampare detalhadamente a especificidade dessa
manifestação de violência contra a mulher.
Existe, no Brasil, um dossiê, intitulado de “ Violência Obstétrica:
Parirás com Dor” produzido pela rede Parto do Princípio – Mulheres em rede
pela maternidade ativa que compilou leis estrangeiras e delineou as
possibilidades de agressão contra a mulher em estado de parturiência.
De acordo com o texto produzido pelo dossiê, foi sendo delineado.
[...] uma tipificação própria para a abordagem das modalidades de
violência obstétrica no Brasil, e que abarcasse ao máximo as
situações desrespeitosas e degradantes com as quais nos
deparamos. A razão pela qual não abordamos a violência obstétrica
com sendo aquela praticada como única e exclusivamente por
profissional da saúde deve-se ao fato de constatarmos que são
plurais as fontes de agressão contra as mulheres em seus processos
reprodutivos – sobre estes, consideramos também o aborto, diante
dos inúmeros relatos de maus tratos e violências nesta
circunstâncias. É, também, uma maneira de incluir os aspectos
relativos à esterilização”.(DOSSIÊ, 2012, p. 60)
Tem-se que a violência obstétrica pode ocorrer desde a ideia de
controle do corpo feminino por meio de uso medicamentoso para ter ou não ter
filhos; passando pelos estágios iniciais de gestação até sua finalização e, em
situações de pós-parto, que também são passiveis de serem elencadas, como
sendo uma agressão aos direitos fundamentais da mulher.
O trabalho realizado pelo Dossiê indica alguns elementos
fundamentais que possibilitam caracterizar as agressões; atos
caracterizadores, caráter físico, caráter psicológico, caráter sexual, caráter
institucional, caráter material e caráter midiático.
Quadro 1 – Elementos caracterizadores das agressões da violência obstétrica
Todos aqueles praticados contra a mulher no exercício de sua saúde
Dos atos
sexual e reprodutiva, podendo ser cometidos por profissionais de
caracterizadores da
saúde, servidor público, profissionais técnico administrativo de
violência obstétrica
instituições públicas e privadas.
Ações que incidam sobre o corpo da mulher e que interfiram
causando dor ou dano sem recomendação baseada em evidencias
Caráter físico cientificas. Exemplos: privação de alimentos, manobra kristeller, a
tricotomia, uso rotineiro de ocitocina, não utilização de analgésico
quando indicado.
Decorrem de ações verbais ou comportamentais que gerem
sentimentos de inferioridade, vulnerabilidade, medo, insegurança,
Caráter psicológico
dignidade. São exemplos: ameaças, piadas, desrespeito a padrões
culturais, dissuasão.
Decorrem de ações que violem a mulher em sua intimidade ou
pudor, incidindo sobre seu senso de integridade sexual e
reprodutiva, com acesso direto ou não aos órgãos sexuais e partes
Caráter sexual
íntimas. Nesse contexto, tem-se os casos de episiotomia, toque,
cesariana sem consentimento informado, exames repetitivos nos
mamilos.
Ações que dificultem, retardam ou impeçam o acesso da mulher aos
seus direitos que seja em âmbito público ou privado. Exemplo: falta
Caráter institucional
de fiscalização das agências reguladoras e outros órgãos
competentes.
Ações que visam obter recursos financeiros de mulheres em estado
de reprodução, violando direitos positivados. Tais como: cobrança
Caráter Material
de indevida pelos planos de saúde para garantir acesso a
acompanhante no momento do parto.
Decorrem de práticas realizadas por profissionais que atuam nos
meios de comunicação. E, são responsáveis pela propagação de
práticas científicas contraindicadas, mas que possuem fins sociais e
Caráter Midiático
econômicos de dominação. Nessa categoria encontra-se a apologia
à cirurgia cesariana, substituição do aleitamento materno por
alimento industrializados e específicos.
Fonte: Adaptação do texto “Violência Obstétrica: Parirás com Dor”. Dossiê da Rede Parto do
Princípio, 2012.
Esses elementos que compõem a caracterização da violência
obstétrica visam suprir o vazio jurídico brasileiro e, em certa medida, dar
suporte a construção legislativa sobre tema tão importante e recorrente no
cotidiano das mulheres. As poucas leis e regulamentos que atendem a questão
no país quase no são conhecidas pela população e, principalmente, não são
cumpridas. O fato de não se conhecer a lei e seus argumentos legais
influenciam no momento de um enfrentamento entre paciente e hospital
possibilitando aos detentores dos saberes médicos manipularem a situação,
geralmente, vinculados a ganhos econômicos.
O parto, em si, não é uma tarefa fácil de ser desempenhada, e, em
condições de degradação da honra, da imagem e da integridade física da
parturiente o torna ainda mais complicado. Um dos exemplos mais recorrentes
em entrevistas, documentários e textos que tratam do assunto, está na
proibição de acompanhante no período do parto e do pós-parto.
Visando a humanização do atendimento médico e bem estar da
parturiente, a Lei brasileira nº 11.108/2005, também conhecida como Lei do
Acompanhante, aos poucos, torna-se um marco importante na vida das
mulheres. Esta lei altera a Lei nº 8.080/1990, “para garantir às parturientes o
direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-
parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.” (BRASIL, 2005)
Esta lei estabelece no artigo 19-J que,
Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou
conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1
(um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e
pós-parto imediato.
§ 1º O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela
parturiente.
§ 2º As ações destinadas a viabilizar o pleno exercício dos direitos de que
trata este artigo constarão do regulamento da lei, a ser elaborado pelo órgão
competente do Poder Executivo. (BRASIL, 2005)
O direito ao acompanhante é reafirmado pela Resolução da Diretoria
Colegiada nº 36 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), de 3 de
junho de 2008, trazendo, ainda, informações sobre a estrutura física,
biossegurança, prevenção e controle de infecção para trabalhadores, mulheres
e seus acompanhantes.
Respaldando esse direito, também foi editada a Resolução Normativa
nº 211 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), de 11 janeiro de
2010, cuja finalidade é evitar a cobrança de despesas do acompanhante para
planos de saúde que contemplem o atendimento hospitalar com obstetrícia,
seja em modalidade de quarto coletivo (enfermaria) seja privativo (individual),
considerando tal prática ilegal e abusiva.
Eu fui barrada na portaria do hospital ao exigir o direito de
acompanhar o parto da minha filha. Segundo o hospital, eles não
permitiam a entrada e permanência de terceiros porque não tinham
estrutura para atendê-los na sala de parto e, ainda, que o
regulamento do hospital não previa tal situação. Eu mostrei a eles a
legislação e mesmo assim fui barrada (...) mas, depois veio um
funcionário e disse que se eu pagasse uma taxa, poderia assistir ao
parto. Não se cumpre a lei! (Maria, entrevista realizada em 2-09-2014)
Buscando coibir tal prática e dar um caráter mais rígido, o art.19-L da
lei 11. 108 de 2005 previa crime de responsabilidade e sujeitava o infrator
diretamente responsável às penalidades previstas na legislação nos casos de
descumprimento. Contudo, esse artigo foi motivo de veto devido ausência de
previsão legal para tipificação da conduta violada.
Mas o que parecia um grande avanço, na verdade, mostrou-se um
meio ineficaz para assegurar o direito ao acompanhante durante o parto já que,
embora a lei preveja o direito à parturiente de apenas um acompanhante de
sua escolha, esta não possui meios de estabelecer punição a quem impedir ou
não fizer cumprir a mesma, por falta de fundamentos no corpo do Código
Penal.
Desta feita, o Brasil está na contra mão do combate à violência contra a
mulher, ao contrário de países latino-americanos como Argentina e Venezuela.
Em 2004, a Argentina sancionou a Lei nº 26.485 de “Proteção Integral para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres nos Âmbitos em que
se Desenvolvem suas Relações Interpessoais”. Nesta lei, estão tipificadas seis
tipos de violência contra a mulher, a saber: violência doméstica, institucional,
laboral, violência contra a liberdade reprodutiva, obstétrica (grifo nosso) e
midiática.
Dois anos depois, em 25 de novembro de 2006, ao celebrar-se o Dia
Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, a Assembleia
Nacional da República Bolivariana da Venezuela aprovou a Lei Orgânica sobre
o Direito das Mulheres a uma Vida Livre da Violência (Ley Orgánica sobre el
Derecho de las Mujeres a una Vida Libre de Violencia - Gaceta Oficial nº
38.647 del 19 de marzo de 2007) que tipifica 19 formas de violência contra a
mulher, sendo a mais nova a violência obstétrica (grifo nosso). Tal lei, trata,
ainda, da violência psicológica, do assédio ou intimidação, da ameaça, da
violência física, da violência doméstica, da violência sexual, do acesso carnal
violento, da prostituição forçada, da escravidão sexual, do assédio sexual, da
violência laboral, da violência patrimonial e econômica, da esterilização
forçada, da violência midiática, da violência institucional, da violência simbólica,
do tráfico de mulheres, de meninas e de adolescentes.
Essa lei dispõem que, em relação a violência obstétrica, a esterilização
forçada e a violência institucional
Ley Orgánica sobre el Derecho de las Mujeres a una Vida Libre de
Violencia - Gaceta Oficial Nº 38.647 del 19 de marzo de 2007
Artículo 15 – Se consideran formas de violencia de género en contra de las
mujeres, las siguientes:
[...]
Artículo 13. Violencia obstétrica: Se entiende por violencia obstétrica la
apropiación del cuerpo y procesos reproductivos de las mujeres por
personal de salud, que se expresa en un trato deshumanizador, en un
abuso de medicalización y patologización de los procesos naturales,
trayendo consigo pérdida de autonomía y capacidad de decidir libremente
sobre sus cuerpos y sexualidad, impactando negativamente en la calidad de
vida de las mujeres.
Artículo 14. Esterilización forzada: Se entiende por esterilización forzada,
realizar o causar intencionalmente a la mujer, sin brindarle la debida
información, sin su consentimiento voluntario e informado y sin que la
misma haya tenido justificación, un tratamiento médico o quirúrgico u otro
acto que tenga como resultado su esterilización o la privación de su
capacidad biológica y reproductiva.
[...]
Artículo 16. Violencia institucional: Son las acciones u omisiones que
realizan las autoridades, funcionarios y funcionarias, profesionales, personal
y agentes pertenecientes a cualquier órgano u ente público que
contrariamente al debido ejercicio de sus atribuciones, retarden obstaculicen
o impidan que las mujeres tengan acceso a las políticas públicas y ejerzan
los derechos previstos en esta Ley, para asegurarles una vida libre de
violencia. (REPÚBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA, 2007)
A Argentina, tal qual a Venezuela, segue nessa perspectiva de guarda,
de proteção à vulnerabilidade feminina nas condições de pré-parto, parto e
pós-parto. A lei nacional sobre parto humanizado (2004) assumido pelo
legislativo argentino indica que:
Artículo 2º.- Toda mujer, en relación con el embarazo, el trabajo de parto, el
parto y el postparto, tiene los siguientes derechos:
a) A ser informada sobre las distintas intervenciones médicas que pudieren
tener lugar durante esos procesos de manera que pueda optar libremente
cuando existieren diferentes alternativas.
b) A ser tratada con respeto, y de modo individual y personalizado que le
garantice la intimidad durante todo el proceso asistencial y tenga en
consideración sus pautas culturales.
c) A ser considerada, en su situación respecto del proceso de nacimiento,
como persona sana, de modo que se facilite su participación como
protagonista de su propio parto.
d) Al parto natural, respetuoso de los tiempos biológico y psicológico,
evitando prácticas invasivas y suministro de medicación que no estén
justificados por el estado de salud de la parturienta o de la persona por
nacer.
e) A ser informada sobre la evolución de su parto, el estado de su hijo o hija
y, en general, a que se le haga partícipe de las diferentes actuaciones de los
profesionales.
f) A no ser sometida a ningún examen o intervención cuyo propósito sea de
investigación, salvo consentimiento manifestado por escrito bajo protocolo
aprobado por el Comité de Bioética.
g) A estar acompañada, por una persona de su confianza y elección durante
el trabajo de parto, parto y postparto.
h) A tener a su lado a su hijo o hija durante la permanencia en el
establecimiento sanitario, siempre que el recién nacido no requiera de
cuidados especiales.
i) A ser informada, desde el embarazo, sobre los beneficios de la lactancia
materna y recibir apoyo para amamantar.
j) A recibir asesoramiento e información sobre los cuidados de sí misma y
del niño o niña.
k) A ser informada específicamente sobre los efectos adversos del tabaco,
el alcohol y las drogas sobre el niño o niña y ella misma.
Tanto na Venezuela quanto na Argentina, nitidamente observa-se o
compromisso com a defesa do direito humano à saúde, em especial, a saúde
da mulher e do bebê. As duas legislações preveem responsabilizações civis
que incidem contra os praticantes dos delitos, de modo a garantirem reparação
de danos.
No Brasil, ao contrário desses dois países, ainda se violam o corpo da
mulher utilizando técnicas de rotinas que, por meio da medicina baseada em
evidências, não há comprovação de efetiva necessidade e eficácia do ato.
Exemplo é o uso da técnica da episiotomia, conhecida como o pique na região
vaginal da mulher.
A médica começou a massagear minha vagina e, logo em seguida,
sem aviso algum, fui dilacerado com o bisturi. A dor foi muito intensa,
um corte sem anestesia, sem preocupação com o que eu queria
naquele momento. Eu já sabia sobre essa técnica e havia solicitado
antes de ir para a sala de cirurgia que não fosse feito em mim, mas
de nada adiantou. Até hoje sinto fisgadas na região e também tenho
uma cicatriz muito feia. (Caroline, entrevista realizada dia 04-09-2014)
Desde o inicio da década de 1980 há fortes indícios de que a episiotomia
de rotina é prejudicial para a mãe e não oferece benefícios para o bebê, além
de haver contra indicação pela Organização Mundial de Saúde. (CARROLI,
BELIZÁN, WHO, 1999 e 1985 apud Dossiê Parirás com Dor, 2012)
A episiotomia, consentida ou não, caracteriza-se como uma violação ao
corpo feminino desde o momento em que se pratica o corte até o seu término
com a sutura. O controle do corpo é total e, em grande medida, direcionado
para o universo masculino. Associado a tal prática tem-se outra que é
conhecida entre os profissionais da medicina como o “ponto do marido” que
corresponde à sutura mais “apertada” para “restaurar” o órgão genital feminino
e provocar, no marido, a sensação de virgindade.
O medico disse que iria me costurar depois do nascimento do bebê e
que eu não precisa me preocupar porque eu e meu marido podíamos
ter uma nova lua de mel (...) eu ficaria como virgem de novo, bem
apertada. Ainda sinto dores e desconforto para a prática sexual, para
mim não foi agradável. (Laura, entrevista realizada dia 02-09-2014)
Notas Finais
O texto proposto buscou apresentar o fenômeno da violência obstétrica
no Brasil e algumas de suas nuances. A medicina brasileira detém o controle
do corpo feminino, das técnicas reprodutivas e ainda não eliminou as práticas
invasivas que utilizam há décadas para a realização do parto. Comumente,
legitimam os tratamentos desrespeitosos e discriminatórios, que ensejam o
aparecimento da violência em sua forma física ou psicológica.
A devoção a nossa senhora do Bom Parto e as súplicas para
recebimento da graça de passar por um parto tranquilo, sem violência física ou
psíquica continuará sendo um suporte para as parturientes e seus familiares,
pois, a insegurança e medo ainda se fazem presente.
Para o Brasil está posto a demanda de reconhecer as práticas
atentatórias à segurança, à honra, à dignidade da mulher e às experiências
culturais e impor o cumprimento das leis, bem como promover a produção de
normas que assegurem às mulheres, direitos relativos ao fenômeno da
gestação e ao controle do seu próprio corpo.
Referências
AGUIAR, J.M.; D’OLIVEIRA, A.P.L.; SCHRAIBER, L.B. Violência
institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica
dos profissionais de saúde. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29,
n. 11, p. 2287-2296, nov., 2013.
ARGENTINA. Lei nº 26.485. Proteção Integral para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra as Mulheres nos Âmbitos em que se Desenvolvem suas
Relações Interpessoais. 2004.
BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Brasília, DF: [s.n], 1990.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm>. Acesso
em: 14 de novembro de 2014.
BRASIL. Lei 11. 108 de 07 de abril de 2005. Brasília, DF, 2005. Disponível
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