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O Sol Na Cabeça - Geovani Martins - 2018

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Rafael Verly G.
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Espiral

Começou muito cedo. Eu não entendia. Quando passei a voltar


sozinho da escola, percebi esses movimentos. Primeiro com os moleques
do colégio particular que ficava na esquina da rua da minha escola, eles
tremiam quando meu bonde passava. Era estranho, até engraçado,
porque meus amigos e eu, na nossa própria escola, não metíamos medo
em ninguém. Muito pelo contrário, vivíamos fugindo dos moleques
maiores, mais fortes, mais corajosos e violentos. Andando pelas ruas da
Gávea, com meu uniforme escolar, me sentia um desses moleques que
me intimidavam na sala de aula. Principalmente quando passava na
frente do colégio particular, ou quando uma velha segurava a bolsa e
atravessava a rua pra não topar comigo. Tinha vezes, naquela época, que
eu gostava dessa sensação. Mas, como já disse, eu não entendia nada do
que estava acontecendo.
As pessoas costumam dizer que morar numa favela de Zona Sul é
privilégio, se compararmos a outras favelas na Zona Norte, Oeste,
Baixada. De certa forma, entendo esse pensamento, acredito que tenha
sentido. O que pouco se fala é que, diferente das outras favelas, o abismo
que marca a fronteira entre o morro e o asfalto na Zona Sul é muito mais
profundo. É foda sair do beco, dividindo com canos e mais canos o
espaço da escada, atravessar as valas abertas, encarar os olhares dos
ratos, desviar a cabeça dos fios de energia elétrica, ver seus amigos de
infância portando armas de guerra, pra depois de quinze minutos estar
de frente pra um condomínio, com plantas ornamentais enfeitando o
caminho das grades, e então assistir adolescentes fazendo aulas
particulares de tênis. É tudo muito próximo e muito distante. E, quanto
mais crescemos, maiores se tornam os muros.
Nunca esquecerei da minha primeira perseguição. Tudo começou do
jeito que eu mais detestava: quando eu, de tão distraído, me assustava
com o susto da pessoa e, quando via, era eu o motivo, a ameaça. Prendi
a respiração, o choro, me segurei, mais de uma vez, pra não xingar a
velha que visivelmente se incomodava de dividir comigo, e só comigo, o
ponto de ônibus. No entanto, dessa vez, ao invés de sair de perto, como
sempre fazia, me aproximei. Ela tentava olhar pra trás sem mostrar que
estava olhando, eu ia chegando mais perto. Ela começou a olhar em
volta, buscando ajuda, suplicando com os olhos, daí então colei junto
dela, mirando diretamente a bolsa, fingindo que estava interessado no
que pudesse ter ali dentro, tentando parecer capaz de fazer qualquer
coisa pra conseguir o que queria. Ela saiu andando pra longe do ponto, o
passo era lento. Eu a observava se afastar de mim. Não entendia bem o
que sentia. Foi quando, sem pensar em mais nada, comecei a andar atrás
da velha. Ela logo percebeu. Estava atenta, dura, no limite de sua tensão.
Tentou apertar o passo pra chegar o mais rápido possível a qualquer
lugar. Mas na rua era como se existíssemos apenas nós dois. Por vezes eu
aumentava minha velocidade, ia sentindo o gosto daquele medo, cheio
de poeira de outras épocas. Depois diminuía um pouco, permitindo que
ela respirasse. Não sei quanto tempo durou tudo aquilo, provavelmente
não mais que alguns minutos, mas, para nós, era como se fosse toda uma
vida. Até que ela entrou numa cafeteria e segui meu caminho.
Passado o turbilhão, fiquei com nojo de ter ido tão longe, lembrando
da minha avó, imaginando que aquela senhora também devia ter netos.
Porém, esse estado de culpa durou pouco, logo lembrei que aquela
mesma velha, que tremia de pavor antes mesmo que eu desse qualquer
motivo, com certeza não imaginava que eu também tivera avó, mãe,
família, amigos, essas coisas todas que fazem nossa liberdade valer muito
mais do que qualquer bolsa, nacional ou importada.
Por mais que às vezes me parecesse loucura, sentia que não poderia
parar, já que eles não parariam. As vítimas eram diversas: homens,
mulheres, adolescentes e idosos. Apesar da variedade, algo sempre os
unia, como se fossem todos da mesma família, tentando proteger um
patrimônio comum.
Veio a solidão. Ficava cada vez mais difícil enfrentar qualquer assunto
banal. Nem nos livros conseguia me concentrar. Não queria saber se
chovia ou fazia sol, se no domingo daria Flamengo ou Fluminense, se
Carlos terminou com Jaque, se o cinema estava em promoção. Meus
amigos não entendiam. Não podia contar o motivo de minhas ausências,
e, aos poucos, fui sentindo que me afastava de gente realmente
importante para mim.
Com o passar do tempo essa obsessão foi ganhando forma de pesquisa,
estudo sobre relações humanas. Passei então a ser tanto cobaia quanto
realizador de uma experiência. Começava a entender com clareza meus
movimentos, decifrar os códigos dos meus instintos. No entanto, a
dificuldade de entender as reações de minhas vítimas foi se mostrando
cada vez maior. São pessoas que vivem num mundo que não conheço.
Sem contar que o tempo que tenho pra analisá-las frente a frente é curto
e confuso, já que preciso atuar simultaneamente. Percebendo isso,
cheguei à conclusão de que precisaria me concentrar num único
indivíduo.
Não foi nada fácil encontrar essa pessoa. Me perdia entre as
personalidades, não conseguia escolher. Tinha medo. Até que um dia,
andava pela rua, era noite alta, um homem virou a esquina no mesmo
momento que eu, trombamos. Ele levantou os braços, se rendendo ao
assalto. Eu disse: “Fica tranquilo. E vai embora”. Depois de muito tempo
sentia mais uma vez aquele ódio primeiro, descontrolado, aquele que
enche os olhos d’água. Há tempos já tinha me abstraído da humilhação,
e até mesmo da vingança. Encarava o desafio com o olhar cada vez mais
distante, científico. Mas alguma coisa nos movimentos daquele homem
— o levantar de braços, a expressão de terror — fez reacender aquela
chama do dia em que fui atrás da minha primeira vítima. Era ele. Só
podia ser ele. Esperei um pouco e fui atrás, invisível.
Mário é o nome dele. Consegui pescar essa informação observando de
perto, próximo ao seu local de trabalho, enquanto ele cumprimentava
seus conhecidos pela rua. Tem duas filhas pequenas, uma pela casa dos
sete, oito anos, a outra com quatro, no máximo cinco. Não consegui
descobrir o nome delas, pois, quando estava com a família, eu
acompanhava de longe, pra não atrair suspeitas. Acabei batizando de
Maria Eduarda a mais velha e Valentina a mais nova. Nomes compatíveis
com suas carinhas de crianças bem alimentadas. À esposa dei o nome de
Sophia. Olhando a partir da minha distância, pareciam felizes. No dia em
que foram fazer um piquenique no Jardim Botânico, brincavam, comiam
bolos, doces, observavam juntos as plantas. Um verdadeiro comercial de
margarina, com exceção da babá, que os seguia toda de branco.
Durante o primeiro mês, forcei nosso encontro muitas vezes. Em
algumas ele ficou intimidado com minha presença, em outras parecia
não notar ou não se importar. Eu ficava me perguntando quando é que
ele daria conta de minha existência. Três meses. Até o dia em que li em
sua expressão o horror da descoberta. Muita coisa mudou depois disso.
Mário passou a ser outra pessoa. Sempre preocupado, olhando em volta.
Eu observava. Às vezes o perseguia claramente, via sua tensão crescer,
até quase explodir. Então parava, entrava em algum lugar, fingia
naturalidade.
Chegamos ao momento presente. Passei uns dias rondando um pouco
mais perto de sua casa. O que antes era privilégio, morar perto do
trabalho, virou um dos seus maiores motivos de preocupação. Ele
tentava me despistar dando voltas pelos quarteirões, mas seu esforço era
inútil, já que há bastante tempo eu sabia onde ficava seu apartamento.
Foram dias complicados pra ambas as partes, eu sentia que dava um
passo definitivo, só não tinha certeza de onde me levaria esse caminho.
Até que entramos na jogada final. Comecei a segui-lo, como das outras
vezes, num lugar próximo a sua casa. Mas dessa vez ele não fez questão
de me despistar, pelo contrário, pegou o caminho mais rápido até o
apartamento. Suava pelas ruas, a cara vermelha. Também eu tremia
diante das possibilidades de desfecho.
Ele entrou no prédio, cumprimentou o porteiro feito máquina, subiu.
Apenas uma janela. Era o que se mostrava do apartamento no meu
campo de visão. Fiquei mirando fixamente aquele ponto, sem me
esconder dessa vez; se eu o visse, também ele me veria. Alguns minutos
depois apareceu Mário, completamente transtornado, segurava uma
pistola automática. Sorri pra ele, percebendo naquele momento que, se
quisesse continuar jogando esse jogo, precisaria também de uma arma de
fogo.
O caso da borboleta

“Ninguém nasce borboleta”, pensou Breno. Depois disse baixinho: “A


borboleta é um presente do tempo”. Lá fora, ela, a borboleta, não
pensava nada disso. Ocupava-se em voar pela noite de árvore em árvore.
Era azul e sem dúvida um dia havia sido lagarta. Breno tem nove anos e
é uma criança, a lagarta é como se fosse uma borboleta criança, mas
quando Breno for adulto vira homem e não borboleta, e homens não
voam. Sonho de Breno é voar, seja como piloto de avião ou jogador de
futebol. Como borboleta, Breno nunca chegou a pensar, tem nove anos,
mas sabe que é menino e não lagarta. A avó de Breno sempre diz:
“Lagarta queima o dedinho e come planta, mas vira borboleta. Ninguém
nasce borboleta”. Agora o menino pensa e olha a borboleta na janela.
“De manhã vi um monte de buraquinhos nas folhas”; explicaram a ele:
“É coisa de lagarta”. Os buracos nas acerolas e goiabas eram coisa dos
passarinhos. Isso ninguém precisou explicar, porque ele sempre viu os
passarinhos indo bicar as frutas, menos o beija-flor, que só ia bicar a
água no copo de flor pendurado na goiabeira. “O que será que borboleta
come? Será que beija-flor só bebe água?” Pensou muito nisso e sentiu
fome. Saiu em direção à cozinha.
A avó cochilava de frente para a novela das sete. Justamente aquela
durante a qual ela mais gostava de cochilar. Breno sabia disso e não quis
acordá-la pra pedir comida. Na cozinha a janela estava aberta. Era uma
janela enorme e dava de frente pro quintal da casa. Algumas vezes
Breno ouviu gente falando como era engraçado aquela janela na
cozinha. A avó sempre explicava que, antes de cozinha, ali havia sido
quarto, e por isso a tal janela. Breno achava normal. Desde que tem
lembrança, ali é cozinha e tem janela e ele adora. Enquanto sua avó faz
o almoço, ele olha para o mundo. O azar é daqueles que não têm janela
na cozinha. Breno decidiu que a melhor coisa pra comer naquele
momento era biscoito. “Tomara que tenha. Se não tiver, seria muito bom
comer uns ovos.” Sabe como fazer: é só acender o fogo apertando o
botão, colocar a frigideira em cima do fogo, quebrar o ovo em cima da
frigideira e ficar mexendo com o garfo. Agora que já tem nove anos nem
precisa mais de cadeira pra mexer no fogão. Abre a geladeira e tem três
ovos. Fecha a geladeira e vai procurar o biscoito. Entra uma borboleta na
cozinha. É maior e mais bonita que a outra. Parece desesperada, bate nas
paredes uma a uma até ficar presa pela porta encostada. Breno vai até a
porta e a puxa para que saia, de lá voa direto pro outro lado da cozinha,
onde ficam a janela e o fogão. Breno acompanha com o olhar e espera
que consiga sair logo pela janela. Em cima do fogão tem uma panela
destampada cheia de óleo (no almoço teve batata frita), a borboleta voa
na direção do fogão e, assim que chega em cima da panela, cai no óleo
como se tivesse sido atraída pra lá igual quando Breno atrai moedas com
seu ímã.
Ele correu pra ver a borboleta, ela nadava pelo óleo lentamente. Quis
tirá-la de lá, mas nunca colocou a mão no óleo antes. Só queima se
estiver de fogo aceso, tinha quase certeza. Correu até o papel-toalha e
tirou a borboleta de dentro da panela. Olhou-a com atenção: toda
coberta de óleo. Todas as partes do seu corpo de inseto. As asas
pingavam óleo pela cozinha. Agora tinha certeza: só queimava se tivesse
ligado o fogo. A borboleta se mexia muito. Tratou de colocá-la em cima
da janela.
Pegou o biscoito e foi para o quarto. Começou a comer, era de
chocolate e era bom. Ainda assim, não conseguia esquecer a borboleta
nadando no óleo. Seu corpo inteiro afundado no óleo. Logo começou a
imaginar como seria se fosse ele, mergulhado no óleo numa panela
gigante que cabe criança. Imaginou seu cabelo cheio de óleo, seus olhos,
ouvidos, nariz, boca. Comia o biscoito e imaginava. Lambeu o dedo que
havia colocado na panela pra imaginar melhor seu corpo no óleo. Não
gostava de imaginar, mas não conseguia evitar. Era igual cheirar a mão
quando está fedendo, ou alguma coisa assim. Lambeu, e o gosto era
péssimo. Muito pior que o gosto do biscoito de chocolate. Lembrou de
sua avó que dizia que o pozinho da borboleta, se batesse no olho,
deixava cego. Ficou com medo de passar mal. O dedo que lambeu, além
de óleo devia ter o tal pozinho. Correu até a cozinha para ver a
borboleta. Estava dura, morta. Teve pena e quis enterrar. Decidiu que a
borboleta seria seu bicho preferido, caso não passasse mal por conta
daquela lambidinha no dedo. Precisava avisar a avó pra não fritar mais
batata naquela panela. Enquanto não amanhecia, deixaria a borboleta na
janela da cozinha. No caminho de volta pro quarto viu que a avó ainda
cochilava. Deitou na cama, sua cabeça realizou os últimos mergulhos no
óleo. Começou a pensar apenas em não passar mal por conta do pozinho
da borboleta. Ninguém nasce borboleta. Sentiu medo e uns trecos no
estômago, se apavorou achando que era consequência do pozinho que
cega quando cai no olho, e depois dormiu.

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