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O Contrabaixo No Choro - 240626 - 142027

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

MARCOS DA SILVA DE PAIVA

AS BAIXARIAS NO CHORO E SEU USO NOS CONTRABAIXOS ELÉTRICO E


ACÚSTICO

CAMPINAS
2020
MARCOS DA SILVA DE PAIVA

AS BAIXARIAS NO CHORO E SEU USO NOS CONTRABAIXOS


ELÉTRICO E ACÚSTICO

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes


da Universidade Estadual de Campinas como
parte dos requisitos exigidos para a obtenção
do título de Mestre em Música, na área de
Música: Teoria, Criação e Prática.

ORIENTADOR: JOSÉ ALEXANDRE LEME LOPES CARVALHO

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO
MARCOS DA SILVA DE PAIVA, E ORIENTADO PELO
PROF. DR. JOSÉ ALEXANDRE LEME LOPES
CARVALHO.

CAMPINAS

2020
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Paiva, Marcos da Silva de, 1974-


P166b PaiAs baixarias no choro e seu uso nos contrabaixos elétrico e acústico /
Marcos da Silva de Paiva. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

PaiOrientador: José Alexandre Leme Lopes Carvalho.


PaiDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Artes.

Pai1. Choro (Música). 2. Música brasileira. 3. Violão. 4. Contrabaixo. 5. Baixo


elétrico. I. Carvalho, José Alexandre Leme Lopes, 1967-. II. Universidade
Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The baixarias in choro and its use in electric and acoustic bass
Palavras-chave em inglês:
Choros
Brazilian music
Guitar
Double bass
Bass guitar
Área de concentração: Música: Teoria, Criação e Prática
Titulação: Mestre em Música
Banca examinadora:
José Alexandre Leme Lopes Carvalho [Orientador]
Mário Sève Wanderley Lopes
Manuel Silveira Falleiros
Data de defesa: 30-11-2020
Programa de Pós-Graduação: Música

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0003-0877-1996
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/7471073992320305

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

MARCOS DA SILVA DE PAIVA

ORIENTADOR: JOSÉ ALEXANDRE LEME LOPES CARVALHO

MEMBROS:

1. PROF. DR. JOSÉ ALEXANDRE LEME LOPES CARVALHO


2. PROF. DR. MÁRIO SÈVE WANDERLEY LOPES
3. PROF. DR. MANUEL SILVEIRA FALLEIROS

Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de


Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão examinadora


encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa
da Unidade.

DATA DA DEFESA: 30.11.2020


à Catia e ao Antônio.
AGRADECIMENTOS
Ao orientador Zé Alexandre Carvalho, pela troca de ideias, paciência e por abraçar esta e outras
pesquisas relacionadas à música brasileira.
Aos membros da banca, Manuel Falleiros e Mário Sève, por sugestões preciosas e seriedade.
Obrigado.
Aos queridos companheiros de conversas sobre este trabalho e sobre música brasileira: Giba
Favery, Luiz Cláudio Sousa e Carlos dos Santos.
Aos professores Carlos Machado Neto e Hermilson Garcia do Nascimento, por contribuírem
com ideias que ajudaram esta pesquisa no processo de qualificação.
Maria Luísa Bissoto, pela contribuição valiosa no projeto inicial desta pesquisa e pela ajuda
imensa no processo de formatação e revisão da dissertação.
Valéria de Paiva, pela contribuição no processo da feitura do projeto deste trabalho.
José Maria, Marly, Ica, Fofa e Dani, meus pais e irmãos – obrigado!
Marilu e Rê – obrigado!
Aos professores das disciplinas cursadas e a todos os funcionários da Pós-Graduação.
Aos amigos de caminhada no aprendizado do choro: Cesar Roversi, Ricardo Valverde, Deni
Domenico, Wagner Oliveira, Maik Oliveira, Daniel Grajew, Nailor Proveta, Wanessa Dourado,
Bruno Tessele e Agnaldo Luz. Sem eles, eu não teria chegado até aqui.

Dedico este trabalho aos grandes mestres da música brasileira ligados ao choro e as conduções
da linha de baixo. Alguns foram bem pouco lembrados na história, até agora. Mas a importância
destes senhores foi imensa. Por isso, deixo um muito obrigado especial. São eles: Irineu de
almeida, Irmãos Eymard, Lica Bombardão, Jorge Seixas, Candinho Trombone, Octávio Dutra,
Tute, China, Henrique Brito, Jacy Pereira, Carlos Lentine e Ney Orestes.
RESUMO

Este trabalho investigou as baixarias do violão sete cordas no choro para propor o seu uso e
interpretação ao contrabaixo. Foi realizada uma análise histórica das baixarias do choro desde
o início do século XX, até meados da década de 1960. O estudo deste conteúdo histórico indicou
um possível caminho percorrido por estas linhas de baixo, assim como os diferentes
instrumentos responsáveis pela execução das mesmas. Os ambientes e situações sociais
definiram o trânsito de músicos e de repertórios em diversas formações musicais utilizadas ao
longo do período, ajudando a definir, inclusive, o surgimento de novos gêneros e estilos. A
partir das análises de algumas transcrições, sobretudo de linhas de Dino Sete Cordas,
encontramos estruturas de organização dessas baixarias, o que permitiu a identificação de
padrões. Com esses padrões delimitados, que nomeamos de Elementos Técnicos, buscamos
trabalhar as possibilidades de adaptação dos mesmos para linha a ser executada aos
contrabaixos. Por fim, propusemos como parte da metodologia de adaptação das linhas aos
contrabaixos o conceito de transcriação, utilizado em traduções de textos poéticos. Como parte
das conclusões finais foram apresentados cinco exemplos autorais de transcriação, sendo
possível afirmar que o uso das baixarias nos contrabaixos é um caminho musicalmente
promissor. Entendemos que esse estudo, para além do uso artístico e do aprimoramento da
performance, poderá estimular a pesquisa sobre as diversas possibilidades de uso das
características idiomáticas do choro para o ensino dos contrabaixos no Brasil.

Palavras-chave: Música brasileira; Choro; Violão de sete cordas; Contrabaixo no choro


ABSTRACT

This work investigated the “baixarias” of the seven-string guitar in the choro to propose
its use and interpretation to the double bass. A historical analysis of the “baixarias” of
choro was conducted from the early 20th century until the mid-1960s. The study of this
historical content indicated a possible path taken along these lines, as well as the different
instruments responsible for performing them. Social environments and situations defined
the transit of musicians and repertoires in various musical formations used throughout the
period, helping to define, including, the emergence of new genres and styles. From the
analysis of some transcriptions, especially Dino Sete Corda’s lines, we found structures of
organization of these basslines, which allowed the identification of patterns. With these
delimited patterns, which we call Technical Elements, we seek to work the possibilities of
adapting them to the line to be executed to the contrabasses. Finally, we proposed as part
of the methodology of adapting the lines to the contrabasses the concept of transcreation,
used in translations of poetic texts. As part of the final conclusions, five authorial examples
of transcreation were presented, and it is possible to affirm that the use of “baixarias” is
musically promising way. We understand that this study, in addition to artistic use and
performance improvement, may stimulate research on the various possibilities of using the
idiomatic characteristics of choro for the teaching of double basses in Brazil.

Keywords: Brazilian music; Choro; Seven-string guitar; Double bass and bass guitar
in Choro
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Tessituras dos instrumentos contrabaixo, tuba, oficleide, bombardino, trombone, violão de
seis cordas e violão de sete cordas ....................................................................................................... 15
Figura 2 - Condução do violão com acordes e baixarias ....................................................................... 22
Figura 3 - Condução do violão somente com os baixos escritos .......................................................... 22
Figura 4 - Exemplo de acompanhamento executado pelo violão de Mário Pinheiro em "A Vacina
Obrigatória"........................................................................................................................................... 25
Figura 5 - Exemplo de baixaria executada pelo violão em Roseira....................................................... 26
Figura 6 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de Eduardo das Neves em Isto é Bom ............. 28
Figura 7 - Exemplo de baixaria executada pelo violão em Preta Mina ................................................. 29
Figura 8 - Exemplo de baixaria executada pela tuba em Belinha ......................................................... 32
Figura 9 - Exemplo de baixaria executada pela tuba em Carnaval de 1910 ......................................... 33
Figura 10 - Exemplo de baixaria executada pelo oficleide em Albertina .............................................. 36
Figura 11 - Exemplo de baixaria executada pelo bombardino em Carne Assada ................................. 38
Figura 12 - Exemplo de baixaria executada pelo violão em O Maxixe.................................................. 41
Figura 13 - Desenho rítmico da baixaria executada pelo violão em Sofres Por Que Queres ............... 44
Figura 14 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de Tute em Sofres Porque Queres ................ 44
Figura 15- Exemplo de baixaria executada pelo violão em Gorgulho .................................................. 49
Figura 16 - Exemplo de baixaria executada pelo violão em Harmonia Selvagem ................................ 51
Figura 17 - Os dois últimos compassos da parte A2 da baixaria em Harmonia Selvagem ................... 51
Figura 18 - Exemplo de baixaria executada pelo violão em Amigo Urso .............................................. 53
Figura 19 - Exemplo de baixaria executada pelo saxofone tenor em André de Sapato Novo/Parte A 55
Figura 20 - Exemplo de baixaria executada pelo saxofone tenor em André de Sapato Novo/Parte B 56
Figura 21 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Enigmático/Parte A ......... 59
Figura 22 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Enigmático/Parte C ......... 60
Figura 23 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Os Cinco
Companheiros/Parte A .......................................................................................................................... 63
Figura 24 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Os Cinco
Companheiros/Parte B2 ........................................................................................................................ 65
Figura 25 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Os Cinco Companheiros .. 66
Figura 26 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Receita de Samba /Parte A1
e A2 ....................................................................................................................................................... 68
Figura 27 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Ingênuo/Parte B2 ............ 70
Figura 28 - Comparação entre as frases do violão e da tuba, em Receita de Samba e Carnaval de 1910
............................................................................................................................................................... 74
Figura 29 - Os Cinco Companheiros ...................................................................................................... 85
Figura 30 - Hilda (Teu Beijo) .................................................................................................................. 86
Figura 31 - Os Cinco Companheiros ...................................................................................................... 87
Figura 32 - Haroldo no Choro ................................................................................................................ 90
Figura 33 - Proezas de Solon ................................................................................................................. 91
Figura 34 - É do que Há ......................................................................................................................... 92
Figura 35 - Flor de Abacate ................................................................................................................... 93
Figura 36 - André de Sapato Novo ........................................................................................................ 93
Figura 37 - Implicante ........................................................................................................................... 94
Figura 38 - Introdução de Receita de Samba/violão ............................................................................. 98
Figura 39 - Adaptação direta de Receita de Samba/contrabaixo ......................................................... 98
Figura 40 - Adaptação simplificada 1 de Receita de Samba/contrabaixo Acústico .............................. 99
Figura 41 - Adaptação simplificada 2 de Receita de Samba/contrabaixo Acústico .............................. 99
Figura 42 - Frase para retorno parte A de Bem Brasil/violão ............................................................. 100
Figura 43 - Adaptação direta da baixaria cromática da música Bem Brasil/contrabaixos.................. 101
Figura 44 - Adaptação simplificada da baixaria cromática da música Bem Brasil/contrabaixo acústico
............................................................................................................................................................. 101
Figura 45 - Adaptação livre da baixaria cromática da música Bem Brasil/contrabaixo acústico e
elétrico ................................................................................................................................................ 102
Figura 46 - Baixaria em Arpejo na música É do que Há/violão ........................................................... 103
Figura 47 - Adaptação da baixaria em Arpejo da música É do que Há/baixo elétrico ........................ 103
Figura 48 - Adaptação da baixaria em Arpejo na música É do que Há/4o compasso oitava
abaixo/baixos acústico e elétrico ........................................................................................................ 104
Figura 49 - Adaptação da baixaria em Arpejo na música É do que Há/com substituição do arpejo no
4o compasso/baixos acústico e elétrico ............................................................................................. 104
Figura 50 - Baixaria em Arpejo na música Vibrações/violão............................................................... 105
Figura 51 - Baixaria em Arpejo na música Vibrações/contrabaixos.................................................... 105
Figura 52 - Baixaria simplificada em arpejo na música Vibrações/baixos .......................................... 106
Figura 53 - Baixaria mista na música Sofres porque Queres/violão ................................................... 107
Figura 54 - Baixaria mista na música Sofres porque Queres/contrabaixos ........................................ 107
Figura 55 - Baixaria mista na música Os Cinco Companheiros/violão ................................................ 108
Figura 56 - Adaptação (1) de baixaria mista na música Os Cinco Companheiros/baixo..................... 108
Figura 57 - Adaptação (2) da baixaria mista na música Os Cinco Companheiros/baixo acústico e
Elétrico ................................................................................................................................................ 109
Figura 58 - Adaptação (3) de baixaria mista na música Os Cinco Companheiros/baixo acústico ...... 109
Figura 59 - Baixaria rítmica na música É do que Há/violão ................................................................. 111
Figura 60 - Adaptação direta da baixaria rítmica na música É do que Há/contrabaixos .................... 111
Figura 61 - Legato na música Arabiando/violão ................................................................................. 114
Figura 62 - Legato na música Arabiando/baixo elétrico ..................................................................... 114
Figura 63 - Legato na música Arabiando/baixo acústico nível avançado ........................................... 115
Figura 64 - Legato na música Arabiando/baixo acústico nível médio................................................. 116
Figura 65 - Legato em Receita de Samba/violão................................................................................. 116
Figura 66 - Legato em Receita de Samba/contrabaixos ..................................................................... 117
Figura 67 - Stacatto na música Cabuloso/violão ................................................................................. 118
Figura 68 - Stacatto na música Cabuloso/contrabaixos ...................................................................... 118
Figura 69 - Pizzicato na música Ingênuo/violão .................................................................................. 120
Figura 70 - Pizzicato na música Ingênuo/baixo elétrico...................................................................... 121
Figura 71 - Exemplo Contrabaixo em Barão/Tema Parte A2 e B ........................................................ 129
Figura 72 - Exemplo contrabaixo em Barão/Parte A1 e A2 no solo de saxofone ............................... 130
Figura 73 - Contrabaixo no fonograma 1X7/Parte A2......................................................................... 133
Figura 74 - Contrabaixo no fonograma 1X7/Parte B2 ......................................................................... 135
Figura 75 - Contrabaixo em Amando Sempre/Parte A ....................................................................... 136
Figura 76- Música Seu Chico Salgado.................................................................................................. 138
Figura 77 - Seu Chico Salgado/baixo elétrico ...................................................................................... 140
Figura 78 - Noites Cariocas/Baixo elétrico .......................................................................................... 144
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................................................14
1 AS LINHAS DE BAIXO NO CHORO DE 1900 A 1967 ................................................................................. 19
1.1 CANTORES-VIOLONISTAS DA PRIMEIRA DÉCADA DE 1900 ......................................................24
1.1.1 MÁRIO PINHEIRO (DATA: 1904) .....................................................................................................25
1.1.2 SENHOR ANDRADE (DATA: 1905) ...................................................................................................26
1.1.3 EDUARDO DAS NEVES (DATA: 1907)..............................................................................................27
1.1.4 LUIZ DE OLIVEIRA (DATA: 1910) ...................................................................................................28
1.2 GRUPOS E INSTRUMENTISTAS DA DÉCADA DE 1900 E DE 1920 ................................................31
1.2.1 IRMÃOS EYMARD (DATA: 1904) .....................................................................................................31
1.2.2 RANCHO CARNAVALESCO AMENO RESEDÁ (DATA: 1910) .....................................................33
1.2.3 CHORO CARIOCA (DATA: 1911) .....................................................................................................34
1.2.4 CHORO CARIOCA (DATA: 1913) .....................................................................................................37
1.2.5 TERROR DOS FACÕES (DATA: 1913)..............................................................................................40
1.2.6 GRUPO PIXINGUINHA (DATA: 1917) ..............................................................................................43
1.3 DÉCADA DE 1920 ...................................................................................................................................46
1.4 OS REGIONAIS ENTRE 1930 E 1940 ...................................................................................................47
1.4.1 GENTE DO MORRO EM GORGULHO (DATA: 1932)......................................................................48
1.4.2 DANTE SANTORO E SEU REGIONAL EM HARMONIA SELVAGEM (DATA: 1938) ..................50
1.4.3 REGIONAL DE BENEDITO LACERDA EM AMIGO URSO (DATA: 1941) ...................................52
1.4.4 PIXINGUINHA E BENEDITO LACERDA EM ANDRÉ DE SAPATO NOVO (DATA: 1946) ..........54
1.5 O VIOLÃO DE DINO SETE CORDAS NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960 ...........................................57
1.5.1 REGIONAL DO CANHOTO EM ENIGMÁTICO (DATA: 1953).......................................................58
1.5.2 GRUPO DE ALTAMIRO CARRILHO EM OS CINCO COMPANHEIROS (DATA: 1964)..............62
1.5.3 JACOB DO BANDOLIM E SEU CONJUNTO ÉPOCA DE OURO EM RECEITA DE SAMBA E
INGÊNUO ......................................................................................................................................................67
1.6 REFLEXÕES SOBRE AS BAIXARIAS NA MÚSICA POPULAR NO SÉCULO XX .........................71
2 ESTRUTURAÇÃO DA LINHA DE BAIXO NO CHORO ..................................................................76
2.1. HERANÇAS DA MÚSICA DE CONCERTO ........................................................................................77
2.2 HERANÇAS DAS BANDAS DE MÚSICA .............................................................................................79
2.3 CARACTERÍSTICAS BÁSICAS ............................................................................................................83
2.3.1 DIRECIONALIDADE ..........................................................................................................................84
2.3.2 DIRECIONALIDADE NO CHORO ATRAVÉS DE EXEMPLOS.....................................................85
2.3.2.1 DIRECIONALIDADE EM OS CINCO COMPANHEIROS.........................................................85
2.3.2.2 DIRECIONALIDADE EM HILDA (TEU BEIJO) .......................................................................86
2.3.2.3 DIRECIONALIDADE EM OS CINCO COMPANHEIROS / PARTE C .....................................87
2.3.3 FUNÇÃO ESTRUTURAL ....................................................................................................................87
2.3.4 FUNÇÃO ESTRUTURAL NO CHORO ATRAVÉS DE EXEMPLOS ..............................................90
2.3.4.1 FUNÇÃO ESTRUTURAL EM HAROLDO NO CHORO..................................................................90
2.3.4.2 FUNÇÃO ESTRUTURAL EM PROEZAS DE SOLON ....................................................................91
2.3.4.3 FUNÇÃO ESTRUTURAL EM É DO QUE HÁ (LUIZ AMERICANO) ...........................................92
2.3.4.4 FUNÇÃO ESTRUTURAL EM FLOR DE ABACATE ......................................................................93
2.3.4.5 FUNÇÃO ESTRUTURAL EM ANDRÉ DE SAPATO NOVO ..........................................................93
2.3.4.6 FUNÇÃO ESTRUTURAL EM IMPLICANTE .................................................................................94
2.4 CONCLUSÃO DA ESTRUTURAÇÃO DAS LINHAS DE BAIXO NO CHORO .................................95
2.5 ELEMENTOS IDIOMÁTICOS OU TÉCNICOS...................................................................................95
2.5.1 TIPOLOGIA DAS BAIXARIAS ..........................................................................................................97
2.5.1.1 BAIXARIA MELÓDICA DIATÔNICA OU BAIXARIA DIATÔNICA ..........................................97
2.5.1.2 BAIXARIA CROMÁTICA ..............................................................................................................100
2.5.1.3 BAIXARIA POR ARPEJO ..............................................................................................................102
2.5.1.4 BAIXARIA MISTA .........................................................................................................................106
2.5.1.5 BAIXARIA DE OBRIGAÇÃO ........................................................................................................110
2.5.1.6 BAIXARIA RÍTMICA.....................................................................................................................110
2.5.1.7 CONCLUSÃO SOBRE OS ELEMENTOS TÉCNICOS ................................................................112
2.6 ARTICULAÇÕES E TÉCNICAS ESPECÍFICAS ...............................................................................113
2.6.1 LEGATO..............................................................................................................................................114
2.6.1.1 LEGATO NA MÚSICA ARABIANDO .............................................................................................114
2.6.1.2 LEGATO NA MÚSICA RECEITA DE SAMBA ..............................................................................116
2.6.1.3 STACATTO.......................................................................................................................................117
2.6.1.3.1 STACATTO NA MÚSICA CABULOSO ........................................................................................118
2.6.2 PIZZICATO........................................................................................................................................119
2.6.2.1 PIZZICATO NA MÚSICA INGÊNUO ............................................................................................120
2.6.3 PREENCHIMENTO DE ACORDES .................................................................................................121
2.6.4 DEDEIRA ...........................................................................................................................................122
2.7 REFLEXÕES SOBRE A ADAPTAÇÃO DAS BAIXARIAS DO VIOLÃO DE 7 CORDAS PARA OS
CONTRABAIXOS ......................................................................................................................................123
3 TRANSCRIAÇÕES NOS BAIXOS ACÚSTICO E ELÉTRICO ............................................................126
3.1 UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE TRANSCRIÇÃO, ADAPTAÇÃO E TRANSCRIAÇÃO..........126
3.2 EXEMPLOS DE TRANSCRIAÇÃO NO CONTRABAIXO ACÚSTICO ...........................................127
3.2.1 MÚSICA BARÃO ................................................................................................................................128
3.2.2 MÚSICA 1X7 ......................................................................................................................................132
3.2.3 MÚSICA AMANDO SEMPRE............................................................................................................135
3.3 EXEMPLOS DE TRANSCRIAÇÃO NO CONTRABAIXO ELÉTRICO ...........................................138
3.3.1 SEU CHICO SALGADO......................................................................................................................138
3.3.2 NOITE CARIOCAS .............................................................................................................................143
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................................149
REFERÊNCIAS ..........................................................................................................................................152
14

INTRODUÇÃO
Este presente trabalho nasceu de uma inquietude, acredito eu, sentida por uma
quantidade significativa de baixistas: o que fazer ou como fazer para aproveitar as linhas dos
violões de sete cordas no contrabaixo.

Minha inquietude foi um pouco além. Havia uma busca por alguma linha de baixo
nos gêneros brasileiros, que proporcionasse o desenvolvimento técnico e de conhecimento
musical que o walking bass do jazz americano promove. Por ser uma linha que caminha pelo
braço inteiro, o walking bass acaba obrigando o estudo de todos os arpejos e escalas, assim
como as aproximações cromáticas nas linhas de baixo do jazz. A questão era se existia algo
assim aqui no Brasil que poderíamos aproveitar nos contrabaixos.

Com essas questões em mente já em 2007, e procurando diversificar o ambiente


jazzístico, no qual eu me encontrava inserido, encontrei nas linhas de violão de sete cordas e
nos contrapontos do saxofone de Pixinguinha os elementos musicais que procurava, e através
de uma pesquisa inicial, ainda pouco estruturada em termos metodológicos e acadêmicos,
comecei a elaborar processos de adaptação e de aprendizagem dessa linguagem das baixarias.
Esta pesquisa acabou tendo um grande impacto em minha carreira artística, resultando em mais
de 130 apresentações autorais, quatro álbuns, sendo um deles com a cantora Vânia Bastos,
trabalho este responsável por 86 destas apresentações. Minha atuação na docência também foi
afetada, gerando a criação de um método chamado “O Contrabaixo na Roda de Choro”,
publicado numa primeira edição em pela Editora Kirja, em 2017, e numa segunda edição em
inglês, pela editora alemã Gruber, em 2018, e em mais de 15 Masterclasses sobre este mesmo
assunto. Destaco esses pontos dentro de um percurso profissional, que hoje somam mais de 25
anos de carreira na música, sendo 13 anos de estudo dedicados ao choro. Salientamos que, nesse
percurso de 13 anos, um acontecimento foi determinante para a compreensão do que estávamos
procurando: a roda de choro.

Passei dois anos, de 2011 a 2013, tocando semanalmente num tradicional bar de
choro na cidade de São Paulo, o Bar do Cidão. Com um conjunto formado de cavaco, pandeiro,
saxofone e contrabaixo, foi possível ali vivenciar o choro de maneira completa e real.
Atualmente, tenho plena consciência de que nada substitui a experiência da roda de choro para
o aprendizado dessa linguagem musical, tão fundamentada na performance ao vivo, e na
interação entre os músicos e a plateia.
15

‘A performance semanal na roda possibilitou entender os diversos recortes de


repertório de acordo com os instrumentos solistas, os ritmos das diversas danças por trás de
cada música, a forma de atuação de acordo com os solistas e instrumentistas participantes, além
da imersão no gênero através das trocas de áudios, CDs, partituras, assim como padrões de
comportamento (como não usar partituras nas rodas). Esses e outros inúmeros aprendizados,
que somente a vivência da performance musical nos ensina, materializaram a certeza de que o
caminho para o aproveitamento da linguagem das baixarias era possível.

Gostaria de ressaltar que nesses dois anos fui o responsável pelas baixarias na roda
em quase a totalidade do tempo. Embora existissem fortes indícios de que eu estava no rumo
certo, uma dúvida ainda me incomodava: a clareza no som dessas linhas de contraponto
executadas ao contrabaixo. Afinal, historicamente, as baixarias sempre foram executadas por
instrumentos médio-graves, como o violão, e alguns sopros graves, raramente por instrumentos
contrabaixos. Para melhor exemplificar esta importante questão apresentamos, a seguir, uma
figura em que aparecem as tessituras dos principais instrumentos historicamente utilizados nas
baixarias.

Observamos que o violão, que hoje em dia é o principal instrumento associado à


linguagem das baixarias, possivelmente herdou dos sopros suas principais características.
Egressos das bandas, os instrumentos graves, como o bombardino, o oficleide, o saxofone e o
trombone, eram os preferidos para as baixarias na virada dos séculos XIX para XX. Este fato
pode ser explicado, dentro outros motivos, pela semelhança das tessituras na região grave.
Vejamos abaixo, na figura 1, que compara a tessitura dos instrumentos citados:

Figura 1 - Tessituras dos instrumentos contrabaixo, tuba, oficleide, bombardino, trombone, violão de seis cordas
16

e violão de sete cordas

Fonte: Elaborado pelo autor com base em Wikipedia, 2020.

Como podemos observar acima, as tessituras dos instrumentos de sopro médio-


grave, como o oficleide, o trombone e o bombardino se aproximam bastante com a dos violões.
Talvez, essa proximidade tenha ajudado na transposição das baixarias dos instrumentos de
sopro diretamente para o violão, pois, afinal, as tessituras são muito parecidas.
Algumas hipóteses podem ser elencadas para explicar a ausência dos contrabaixos
na Roda de Choro. A primeira hipótese diz respeito à frequência de atuação dos instrumentos
baixos e contrabaixos. Ainda que esses instrumentos consigam tocar as notas dos instrumentos
médio graves, essas não irão se situar numa região de boa sonoridade e de facilidade de
execução. Outra hipótese possível, é o preço mais elevado dos instrumentos grandes e sua
dificuldade de transporte. E por último, a questão acústica. Uma tuba, segundo Jardim (2008),
consegue ser base presente e estruturante de uma banda com até 20 instrumentos de sopro e
percussão. Estas hipóteses nos levaram a concluir que numa formação típica, como o terno de
flauta, cavaquinho e violão, o contrabaixo descaracterizaria o aspecto de leveza e agilidade das
linhas de contracanto usadas no choro.
Estes questionamentos permearam nossa pesquisa, e mediaram nossa vontade de
utilizar de forma artística as linhas de baixo no choro, executadas pelos contrabaixos.
Antes de apresentarmos um resumo dos capítulos, gostaríamos de observar que este trabalho
propõe uma linha de baixo baseada nas baixarias do violão de sete cordas, e assim essas
baixarias e seus criadores é que foram estudados e analisados. Reconhecemos a importância do
trabalho de baixistas que ao longo de toda a trajetória do choro e do samba participaram de
forma bastante positiva de gravações e apresentações ao vivo. Nomes históricos do início do
século XX, como: João Martins, Bonfíglio de Oliveira, José Américo, Sebastião Pimentel,
17

Antônio Francisco dos Santos e Pedro Vidal1. Ou contemporâneos, como: Dininho, Papito e
Alexandre Brasil2, foram e continuam sendo fundamentais para o desenvolvimento e
performance das baixarias e linhas de baixo de maneira musical e efetiva. No entanto, os
sujeitos de nosso estudo foram violonistas (mais precisamente, “sete cordistas”), suas
improvisações, suas baixarias. Seguimos com a exposição do resumo dos capítulos da
dissertação.

No primeiro capítulo deste trabalho transcrevemos e analisamos algumas linhas de


baixo executadas pelos violões e pelos sopros, no período que vai de 1900 a 1967, com o
objetivo de definir suas idiossincrasias, a saber: notas utilizadas em relação à harmonia,
principais ritmos e articulações, região de atuação, instrumentação, entre outros aspectos. Nosso
foco foi compreender as características musicais e as transformações ocorridas nas mesmas.
Vimos que determinadas características se mantiveram ao longo de todo período estudado, no
qual se fixou uma linha de baixo virtuosística e original, conhecida como baixaria do choro e,
popularmente, apenas como baixaria. No final do capítulo, determinamos algumas das
principais características desta linha, como a marcha harmônica, a função estrutural, as
articulações e os tipos de baixarias, dentre outras características, o que nos ajudou a
contextualizar seu uso e suas transformações ao longo do tempo.

No segundo capítulo, buscamos entender historicamente de onde essas baixarias


herdaram suas principais características e como se estruturavam. Transcrevemos e analisamos
algumas baixarias realizadas por grandes nomes do violão 7 cordas. Em seguida, usamos essas
informações, transcrições e análises como material para criarmos as adaptações de pequenos
trechos das linhas do violão de 7 cordas para os contrabaixos elétrico e acústico. Essas
adaptações resultaram num maior entendimento de como esse vasto material fraseológico
poderia ser usado pelos contrabaixos. Em exemplos que pairaram dúvidas quanto ao nível
técnico exigido para a execução de determinadas adaptações, optamos por acrescentar uma
adaptação simplificada afim de abranger o estudante de contrabaixo; não somente o
profissional.

1
João Martins (Orquestra Diabos do Céu sob a direção de Pixinguinha); Bonfíglio de Oliveira (no chope La
Concha, ao lado do pianista Pádua Machado, Pixinguinha e Otávio Vianna “China”); José Américo (tubista que
tocava contrabaixo); Sebastião Pimentel (Orquestra Andreozzi): Antônio Francisco dos Santos (Orquestra de
Salão do Assírio); Pedro Vidal (atuou ao lado de Radamés Gnattali e nas Orquestras da Rádio Nacional, TV
Excelsior e na gravadora Continental)
2
Dininho (Raphael Rabello, Paulinho da Viola e Dino Sete Cordas); Papito (grupo Nó em Pingo D’Água);
Alexandre Brasil (grupo Rabo de Largatixa)
18

No terceiro capítulo apresentamos alguns exemplos de como foram desenvolvidas


as adaptações dos instrumentos tradicionais da baixaria para os contrabaixos, objetivando tratar
tais dúvidas. Entendendo este processo de adaptação como uma tradução, emprestamos o
conceito de transcriação, originalmente utilizado no campo da tradução literária, para nomear
o processo criativo que desenvolvemos. A ideia era usar as baixarias do violão sem a tentativa
de cópia, antes, propondo um trabalho de recriação, nas quais os processos estruturais e
expressivos da execução das baixarias são adaptados a um instrumento alheio ao universo do
choro. Nesse sentido, analisamos cinco exemplos nos quais estão presentes transcriações
produzidas por este autor e nas quais atuou como músico, compositor e produtor musical. Os
exemplos Noites Cariocas e Seu Chico Salgado foram produzidos para este trabalho. Os
demais, Barão, 1X7 e Amando Sempre, foram retirados do CDs lançados no mercado
fonográfico e elencados abaixo:

 Álbum Choroso - Marcos Paiva Trio (2015)


 Álbum Bailado – Marcos Paiva e Daniel Grajew (2016)
 Álbum Nós – Maiara Moraes (2017)

Como resultados, conseguimos compreender as características chaves das linhas de


baixo no choro, através de nossa análise histórica, assim como uma discussão substanciosa
sobre as múltiplas possibilidades de adaptação das baixarias do violão de sete cordas para os
contrabaixos. O entendimento de que poderíamos adaptar e absorver esse idioma dos violões
do choro no contrabaixo nos conduziu ao conceito de transcriação, que, possibilitou recriar não
somente as baixarias do violão do choro, mas outras características musicais, como a formação
instrumental e a forma musical. Por fim, conseguimos compreender de forma favorável o uso
das baixarias nos contrabaixos.
19

1 AS LINHAS DE BAIXO NO CHORO DE 1900 A 1967


Dino Sete Cordas (Horondino José da Silva, 1918 – 2006) pode ser considerado a
maior referência nas baixarias do violão de sete cordas em nossa história. Inúmeros estudos
científicos e não científicos apontam para isso.
Porém, apesar de Dino ter se tornado uma referência, muitos outros instrumentistas
da metade do século XIX às primeiras cinco décadas do século XX contribuíram
significativamente no desenvolvimento das baixarias no choro. As quais, diga-se, dificilmente
saberemos com exatidão como nasceram.
Para tentar entender um pouco mais essa trajetória, buscamos, neste primeiro
capítulo, compreender como essas linhas de contracanto3 no choro, que chamaremos de
baixarias, foram sendo modificadas, adaptadas e acrescidas de novos elementos musicais com
o passar do tempo, e destacar alguns dos principais atores desse processo musical, até chegar
no violão de Dino.
Essas baixarias, que fundamentaram a linguagem do violão do choro, serão
encontradas na performance de vários instrumentos do início do século. Além do violão,
instrumentos tenores de banda, como o bombardino (maneira popular e acadêmica de se
denominar o instrumento eufônio no Brasil), o oficleide4 e o trombone foram usados nas
primeiras formações de choro como instrumentos de acompanhamento. Ou seja, eram
responsáveis pelas linhas de baixo em grupos a base de violão, cavaquinho e flauta.
Quando lemos o livro O Choro, de Alexandre Gonçalves Pinto, publicado pela
primeira vez em 1936, é significativo a quantidade desses instrumentos de sopro no ambiente
de choro.
Em sua tese sobre o livro de Alexandre Gonçalves, Pedro Aragão analisa os
fichamentos de O Choro, feitos por Jacob do Bandolim (ARAGÃO, 2011, p. 41), que nos
possibilita entender a relevância que esses instrumentos de sopro tiveram neste período e no
ambiente da gênese do choro. A quantidade de violonistas descritos no livro, 72, não é tão
distante da quantidade de instrumentistas de acompanhamento de sopro, 53, sendo que

3 Usaremos a palavra contracanto para nos referirmos aos contornos melódicos de acompanhamento das linhas de
baixo no choro por se tratar de uma maneira menos rígida na interpretação das regras de contraponto da música
europeia. Na verdade, como bem definiu Braga (2002), a linha de melodia do baixo no choro “poderá assumir o
caráter de contraponto – não no estilo severo, palestriano ou devedor a Fux –, sujeitado à inventiva que é, por sua
vez, diretamente dependente do conhecimento que se tiver do estilo, (...)” (Ibid., p. 35).
4
Instrumento de sopro da família dos metais. A palavra ophicleide (do francês “ophicléide”) compunha-se do
grego “ophis” (serpente) e “kleis” (chave, tampa ou abafador) de forma que foi traduzido por serpente de
chaves…traz em sua extremidade estreita o bocal, algo similar ao trombone baixo. Extraído do Dicionário Groove
de Música- Edição Concisa. 1994, p.669.
20

incluímos nessa soma os instrumentistas do bombardino, do oficleide e do trombone.


Realmente, é muito revelador a quantidade de instrumentistas de sopro que fazem uso das
baixarias de acompanhamento nos ambientes em que o choro foi forjado.
Aragão (2011, p. 205) afirma que:

ao longo do século XX, instrumentos típicos do contracanto do choro, como o


oficleide e o bombardino, caem em desuso, sendo as partes de contracantos graves
incorporados ao violão de sete cordas; por conseguinte, partes escritas e “obligatas”
de contracanto praticamente desapareceram, sendo a maior parte das vezes
improvisadas pelo violão de sete cordas [...]

É importante compreendermos que a relação entre as baixarias do nascente choro e


os instrumentos de sopro citados passa pelo compartilhamento de ambientes e culturas musicais
distintas, pois estes instrumentos de sopro eram tocados em bandas marciais, bandas civis e em
pequenos grupos orquestrais, que podemos classificar como ambientes musicais formais. Mas
também eram tocados em eventos que podemos classificar como ambientes musicais informais,
como por exemplo, as festas de aniversários e batizados, além de outras festas seculares.
Ademais, possivelmente o aprendizado mais organizado e a vivência em repertórios bem
orquestrados, baseados na tradição europeia, propiciaram um caráter mais arranjado ou
sistematizado na estruturação dos contracantos da linha do baixo nos instrumentos de sopro.
Carvalho (2006, p. 13) aponta que a linha de baixo manteve a função estrutural e
harmônica durante todo o período Clássico e Romântico e, no âmbito da música tonal, estas
funções continuaram a ser exercidas. Sendo o choro diretamente descendente das danças
europeias, como a polca, a mazurca, o schottish e a valsa, músicas tonais, é lógico, para nós, o
aproveitamento do choro das estruturas e dos elementos musicais, como sua linha do baixo, as
formas musicais e escalas, por exemplo, das mesmas. Esse apontamento também corrobora com
o que tratamos anteriormente.
Dito isso, no segundo capítulo detalharemos, com a atenção devida, a comparação
dos elementos em comum entre as baixarias no choro e na música europeia. É consenso, entre
diversos pesquisadores e músicos, como Carvalho (2006), Braga (2002), Aragão (2011),
Pellegrini (2005), Borges (2009), Taborda (1995) e Caetano (2010), a herança recebida pelo
choro (e, na verdade, recebida por todas as músicas “nascidas” no novo continente) das regras
da música erudita europeia, a partir do início do estabelecimento do tonalismo, no Barroco.
Contudo, veremos que o choro desenvolveu uma maneira própria e menos rigorosa de
interpretar e de utilizar essas “regras”. Esse fato é de extrema importância para nossa
compreensão histórica, pois, aos poucos, técnicas de acompanhamento das linhas de baixo irão
21

se fixando como características específicas da música interpretada como choro.


Para começar a pesquisar as linhas de baixo5 no choro, ou as baixarias, seguiremos
a definição de Carvalho (2006), que classifica os dois tipos de linhas de baixo como: baixo
rítmico e baixo melódico. Acompanhando a conceituação desse pesquisador, encontramos que
o baixo rítmico

é o tipo mais comum de linha de baixo, ele é encontrado em todo tipo de música,
particularmente nas melodias acompanhadas. Formado basicamente através da
aplicação de um determinado padrão rítmico aos baixos dos acordes, o baixo rítmico
geralmente utiliza padrões que se repetem a cada um, ou a cada dois compassos. Esse
tipo de linha de baixo facilita a estruturação do acompanhamento, pois conduz
ritmicamente a base através das repetições, e define claramente os acordes e a marcha
harmônica (direcionalidade), já que apenas os baixos dos acordes com algumas
poucas notas de passagem são utilizados (CARVALHO, 2006, p. 23).

O conceito de baixo melódico, segundo Carvalho (2006, p. 23), afirma que

visando o aprimoramento melódico da linha, outras notas são acrescentadas aos


baixos dos acordes, e começam a aparecer as notas de aproximação cromática, os
arpejos e as inversões. Desta forma a linha torna-se mais cantabile e ganha maior
destaque, aí sim atuando como uma segunda melodia, surgindo o baixo melódico. A
importância na condução harmônica e rítmica, porém, não pode ser esquecida, e de
nada adianta uma linha de baixo melodicamente bem feita, se ela não mantiver o seu
papel de servir como base para as outras vozes.

Por fim, Carvalho aponta uma delimitação de região (frequência) dos tipos de
baixo, em que “o baixo rítmico geralmente é realizado nas oitavas mais graves, entre o C2 e o
C1, pelos instrumentos contrabaixos, e o baixo melódico em regiões mais agudas não indo
abaixo do E1” (2006, p. 25).
O termo baixaria já tem uso consagrado tanto no ambiente do choro como no
acadêmico e científico. Por este motivo, adaptaremos a classificação de Carvalho (2006),
trocando o termo baixo por baixaria. Assim, ao invés de baixo melódico, teremos baixaria
melódica e o mesmo entre baixo rítmico e baixaria rítmica. No entanto, as características
musicais permanecem as mesmas, conforme definidas anteriormente.
Aproveitando que estamos tratando das baixarias, gostaríamos de fazer uma rápida

5. Carvalho (2006) organiza um quadro com as definições “atribuídas ao termo baixo: 1- A melodia mais grave
em uma composição ou trecho musical, que possui importância fundamental na estruturação rítmico-harmônica
das composições (linha de baixo). 2- A nota mais baixa (grave) em um acorde. 3- A voz masculina mais grave,
com tessitura aproximada entre o E1 e o F3. 4- Os instrumentos que executam a linha de baixo. 5- O termo
coloquial para o contrabaixo” (2006, p. 10). E em outro momento, Carvalho define: Se em harmonia o baixo é a
nota mais grave de um acorde, a linha de baixo seria na sua definição mais simples, a sequência dos baixos de uma
progressão harmônica (2006, p.18).
22

explicação sobre nossas transcrições. Em relação às baixarias, observamos que quando


executadas aos violões, via de regra, são complementadas por acordes. Nos contrabaixos, isso
é impossível, ou esteticamente não indicado. Por estarmos focados somente nas baixarias,
optaremos por não transcrever os acompanhamentos dos acordes dos violões de seis e sete
cordas. Acreditamos que essa separação irá facilitar visualmente o entendimento da baixaria
para as análises previstas. Os exemplos das figuras 2 e 3, abaixo, demonstrarão como as
baixarias dos violões irão aparecer neste trabalho.

Figura 2 - Condução do violão com acordes e baixarias

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

Na figura acima, vemos uma condução de violão completa, com as baixarias e os


acordes.

Figura 3 - Condução do violão somente com os baixos escritos

Fonte: Transcrição do autor, 2020.


23

A partitura acima, por não conter os acordes escritos no pentagrama, torna-se mais
clara e destaca o movimento da linha de baixo. Dessa maneira, acreditamos facilitar o processo
de análise das baixarias nos choros escolhidos.
Outro ponto importante foi a padronização dos símbolos para as primeiras músicas
cantadas. Cada letra determinará uma parte da música, sendo A, para estrofe, B, para refrão, I,
para interlúdio, e Intro (Introdução), para a introdução de uma música.

É comum, no estudo do choro, a discussão sobre se devemos considerá-lo um


gênero ou um estilo, se é uma sonoridade, uma formação instrumental, uma forma de
interpretação, entre outras especulações. Historicamente, podemos observar diversas
transformações no significado deste termo e de sua importância no cenário cultural brasileiro.
A pesquisa nos mostra, que no início do século XX, os centenas de fonogramas gravados no
país não apresentavam naquele momento uma unidade de classificação em gêneros musicais a
partir de características estéticas sedimentadas, mas pelo contrário, os elementos musicais
característicos perpassavam diversos estilos se amalgamando e dificultado uma simples
definição de gênero.
Os elementos musicais, como cadências harmônicas, estrutura formal, caráter
rítmico, instrumentação, características estéticas e aspectos melódicos, perpassavam diversos
tipos e estilos de músicas da época. Podemos dar o exemplo da música Preta Mina, do baiano
Xisto Bahia, que recebeu nas gravações de 1904, 1905 e 1909, as indicações de gênero polca,
modinha e tango (polca pela Banda da Casa Edison - Odeon Record 10.048-R197, modinha por
Mário Pinheiro - Odeon Record 40.406 e tango por Luís de Oliveira - Victor Record 98.799).
Era comum também em partituras e fonogramas as classificações mistas: polca-choro, tango
brasileiro, polca-tango, maxixe- carnavalesco, entre muitas outras.
Nesse primeiro capítulo, fazemos uma análise de linhas de baixo em diversos
fonogramas dentro do período delimitado, que abrange o início do século XX até o final de
1960. Entram, em nossa análise, as linhas de baixo em fonogramas de cantores como Eduardo
das Neves e Mário Pinheiro, passando por grupos como o Choro Carioca, o Terror dos Facões
e Gente do Morro, até as gravações de Dino Sete Cordas no Grupo Época de Ouro.
Determinamos o álbum Vibrações, de Jacob do Bandolim, como o ponto final de nossa análise,
sendo um dos álbuns mais indicados, entre os violonistas, para se aprender as linhas de baixo
no choro (PELLEGRINI, 2005, p. 60).
A análise passará por abranger a tipologia das baixarias rítmicas ou melódicas, a
função estrutural das mesmas, e em alguns casos análise sobre o tipo de escala e o uso de
24

inversões que possam caracterizar a marcha harmônica. A característica particular da prática


criativa para a realização destas linhas nos leva a adotar o nome direcionalidade
preferencialmente. Braga (2002, p. 35) descreve: “a boa baixaria ata-se, portanto, a esse duplo
caráter: boa condução baixo/melodia, já indicando uma direcionalidade, mais o caráter de
melodia imposta como contrapartida da melodia principal”. Está implicada no processo criativo
destas linhas a observação de duas premissas, uma que podemos chamar de dependência
vertical, que se relaciona com os acordes da harmonia, e outra horizontal, relacionada à própria
melodia resultante. Neste desenvolvimento a ideia de atingir uma nota representativa do acorde
(notas-alvo), geralmente no início dos compassos acaba dirigindo a frase e sendo a causa de
determinadas escolhas melódicas, como a direção ascendente ou descendente da frase, as
ornamentações, os retardos, etc.; (obviamente também é observada a rítmica, os "obligatos" e
contrapontos com a melodia principal, sintetizando desta forma estes elementos
caracterizantes). O pensamento envolvido na construção destas linhas é impregnado da ideia de
fazer a melodia ir em "direção" à determinadas notas, e dessa forma, o termo direcionalidade
se justifica.
Por último, estipulamos que as notas serão escritas por extenso e com iniciais
maiúsculas, como Dó, Ré, Mi e assim, sucessivamente. Por outro lado, os acordes serão
descritos como na música popular, em que C é Dó Maior e Cm é Dó menor, D é Ré Maior e
Dm é Ré menor, E é Mi Maior (idem para o menor), F é Fá Maior (idem para o menor), G é Sol
Maior (idem para o menor), A é Lá Maior (idem para o menor) e B é Si Maior (idem para o
menor). Quando acrescentarmos uma 7a menor no acorde de G, por exemplo, grafamos G76, e
assim, aparecendo dissonâncias, explicaremos em detalhes.

1.1 CANTORES-VIOLONISTAS DA PRIMEIRA DÉCADA DE 1900


As baixarias rítmicas e melódicas das gravações analisadas abaixo são transcrições
de fonogramas de cantores importantes no início do século XX. Seguiremos uma ordem
cronológica para facilitar nossa organização.
O formato voz e violão, dos exemplos abaixo, indica que o preenchimento
harmônico (acompanhamento com acordes) existirá sempre e, por isso, não será um elemento
apontado e discutido por nós.

6 Usamos como material de referência os livros de harmonia popular de Ian Guest (Guest, 2010) e de Paulo José
de Siqueira Tiné (Tiné, 2011).
25

1.1.1 MÁRIO PINHEIRO (DATA: 1904)


A primeira transcrição será a cancioneta A Vacina Obrigatória (compositor não
encontrado), gravada pelo cantor e violonista Mário Pinheiro, em 1904, no disco R. 40.169, da
Odeon Record.

Figura 4 - Exemplo de acompanhamento executado pelo violão de Mário Pinheiro em "A Vacina Obrigatória"

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

Mário Pinheiro (1880-1923) foi um cantor lírico que se tornou sucesso no disco por
sua dicção clara, impostação e vibrato uniformes: “A discografia completa de Mário Pinheiro
consta de 424 registros de 353 títulos diferentes” (Ulhôa, 2013).
O violão nesta gravação é de grande importância, pois, além do acompanhamento
da voz, é o responsável pelo interlúdio que separa as estrofes (parte acima transcrita). Seguindo
o conceito definido anteriormente, temos uma baixaria rítmica com um padrão que se repete
continuamente na música, definindo a condução e a direcionalidade com clareza. No interlúdio,
no trecho acima transcrito, os baixos seguem este mesmo padrão de alternância de nota e
acrescenta a preparação para a troca de seção e as inversões finais, que finalizam o interlúdio e
preparam a volta da voz.
Abaixo, o resumo das principais características da baixaria executada pelo violão
em A Vacina Obrigatória:
1) Função estrutural com frase diatônica em colcheia definindo a entrada da parte
instrumental, que separa as estrofes;
2) Alternância dos baixos em acordes parados através do uso de inversões (C Maior),
caracterizando a direcionalidade de uma típica baixaria rítmica;
3) Uso de inversões no acorde de A7, com resolução na terça do acorde seguinte, Dm.
Uso do baixo invertido no acorde de G Maior (nota Ré no primeiro tempo e nota Sol,
no segundo tempo), fortalecendo a conclusão da cadência para C Maior.
26

1.1.2 SENHOR ANDRADE (DATA: 1905)


A segunda transcrição analisada é a modinha Roseira (compositor não encontrado).
“Cantada pelo senhor Andrade para Casa Edison, Rio de Janeiro” (locução da gravação de
1905). Roseira possui o número do registro R.10.124, para a Odeon Record.

Figura 5 - Exemplo de baixaria executada pelo violão em Roseira

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

No Instituto Memória Musical Brasileira, sediado em Niterói, encontramos


catalogados 4 fonogramas gravados por Andrade. Dois deles possuem data (1906 e 1907) e
dois, incluindo, aqui, o fonograma Roseira, sem data. Na coleção de Nirez
(https://ims.com.br/titular-colecao/nirez/), encontramos a data de 1905. Na compilação feita
pela professora Martha Tupinambá de Ulhôa, sobre o cantor e violonista Mário Pinheiro, as
numerações 10.125, 10.126 e 10.127, assim como anteriores, 10.117, 10.118 e 10.119 datam de
1905. Em assim sendo, embora não possamos afirmar indubitavelmente o ano de 1905,
encontramos indícios de que mesmo se essa não for a data exata, tudo indica para que seja
próxima a essa.
A transcrição do interlúdio acima mostra uma linha de baixo que usa vários recursos
técnicos para a boa construção de uma baixaria, até os dias de hoje (2020). A alternância do
baixo da tônica (primeiro tempo) para a terça (no segundo tempo), no acorde de Am menor, que
em seguida repousa na quinta de E Maior (nota Si) se repete tanto no interlúdio, quanto na
música inteira.
Esta baixaria rítmica, que pode soar aos nossos ouvidos como uma aproximação
27

cromática (da nota Dó para a nota Si), é usada até hoje em acompanhamentos de maxixe, samba,
choro e outros ritmos brasileiros. Ao mesmo tempo, o intervalo de meio tom (da nota Dó para
Si) proporciona uma condução melódica e orgânica para a linha de baixo, pois desenha a
harmonia com precisão. Além das frases curtas, que ligam os acordes subsequentes, outro ponto
interessante é o uso de uma frase grande no interlúdio (compassos 6 e 7), que propicia aos
ouvidos atuais um elemento melódico claro e cativante.
Vamos apontar o resumo das características da baixaria, executada pelo violão em
Roseira:
1) Função estrutural com frase diatônica iniciando o interlúdio instrumental;
2) Alternância dos baixos dos acordes (Am menor, E Maior e Dm menor) através do uso
de inversões, propiciando uma melhor direcionalidade. Baixaria rítmica no
acompanhamento da voz (parte A);
3) Baixaria melódica com longas frases diatônicas conduzindo o baixo para o acorde
seguinte, nos compassos 6 e 7;
4) Baixaria melódica com frases curtas para encadeamento harmônico, como o
compasso 5 (na passagem de Am menor para A Maior com resolução em Dm menor), e
no compasso 1;
5) Uso de inversões e frases curtas para ajudar a direcionalidade (em toda a música);
6) Mudança de desenho rítmico por grau conjunto nos compassos 4 e 5 enriquecendo o
acompanhamento.

1.1.3 EDUARDO DAS NEVES (DATA: 1907)


A terceira transcrição é o lundu Isto é Bom (Xisto Bahia), na gravação do cantor
Eduardo das Neves para a Casa Edison, Odeon R., número de registro 108.076, de 1907.
28

Figura 6 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de Eduardo das Neves em Isto é Bom

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

Vemos acima que a introdução valoriza a linha do baixo. E que esta (a linha) possui
o caráter de estruturação da canção. A direcionalidade da parte A é construída por meio das
inversões de baixo que remetem a música anterior (Roseira). Porém, aqui, em tom maior. As
baixarias rítmicas seguem na música inteira, não havendo interlúdios específicos entre as
estrofes. O cantor Eduardo das Neves emprega a voz falada como interlúdio. A baixaria da
introdução possui ainda deslocamentos rítmicos nos baixos, acentuando as semicolcheias 2 e 4,
no segundo tempo do compasso 3.
Apontamos o resumo das características principais da baixaria executada pelo violão
em Isto É Bom:
1) Função estrutural separando a introdução da parte A;
2) Baixarias rítmicas e o uso de deslocamento do tempo forte (sincopa) nos baixos no
segundo tempo do compasso 3;
3) Uso de inversões, propiciando a direcionalidade na tonalidade de Fá Maior. A
progressão da linha do baixo do violão, nos compassos 5 e 6, nos remete à música
anterior. O violonista usa tônica-terça, no primeiro grau do compasso 5, e quinta-tônica,
no acorde dominante do compasso 6;
4) Baixa rítmica descendente do segundo para o terceiro compasso (do C Maior para o
F Maior).

1.1.4 LUIZ DE OLIVEIRA (DATA: 1910)


O quarto exemplo é a transcrição de um trecho do fonograma Preta Mina (Xisto
Bahia), de 1910. Gravado pela Victor, com No 98.799, esta composição teve outras versões
gravadas na primeira década do século XX: Cadete (ZON-O-FONE, No X-1016), a Banda da
29

Casa Edison (Odeon, No 10048, R-197) e o cantor e violonista Mário Pinheiro (Odeon, No
40406) gravaram Preta Mina.
Em seu artigo “Por Uma Discografia Nordestina: 1902-1919” (Caçapa, 2017), o
pesquisador Rodrigo Caçapa credita a autoria de Preta Mina ao compositor baiano Xisto Bahia.
Nas outras três gravações desta música, catalogadas no Instituto Memória Musical Brasileira,
a música não possui autoria. O intérprete Luiz de Oliveira tão pouco é reconhecido na história
musical. Caçapa retirou suas informações na base de dados da Fundação Joaquim Nabuco e no
Instituto Moreira Salles. O fonograma foi catalogado como tango e samba, respectivamente,
nas duas instituições, e, ao contrário de outras gravações, o áudio disponível para nossa audição
não possui a locução inicial tão usada nas gravações da época.

Figura 7 - Exemplo de baixaria executada pelo violão em Preta Mina

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

Preta Mina é outro fonograma interessante, que indica como as linhas de baixo
(baixarias rítmicas e melódicas) permearam diversos estilos musicais e musicistas da época. A
linha tocada presta-se a garantir um criativo acompanhamento de baixaria rítmica através do
uso das inversões e de movimentos rítmicos sincopados. Observamos que as curtas linhas
melódicas, que aparecem nos compassos 2, 3 e 10, por serem divisões sincopadas, perdem a
força melódica de uma linha contínua, porém ganham em riqueza rítmica e criatividade.
Poderíamos descrever a introdução como um grande baixo pedal7 no campo

7 O recurso de pedal ou baixo pedal se dá quando na ocorrência de várias mudanças de acordes sobre um mesmo
baixo (este baixo é tocado com uma nota longa, ou uma série de notas com valores curtos repetidos visando dar
uma sensação de uma nota longa) (CARVALHO, 2006).
30

harmônico de Dm menor. No penúltimo compasso, que apresenta a finalização a ideia da


introdução, vemos o uso de síncopas nas notas finais (notas Fá e Mi), que resolvem na tônica
do acorde de Dm menor. O baixo possui a função estrutural, pois o final da frase aponta o
término de uma seção e o começo da segunda parte musical (transição da Introdução para a
parte A).
A parte A inteira é tocada com o uso das inversões, que estabelece a direcionalidade
e a condução rítmica da música. Movimentos de resolução da terça menor do acorde de Gm
menor (Si bemol) para a quinta do próximo, Dm menor (Lá), visto nos exemplos anteriores,
(Roseira e Isto é Bom), também acontecem neste fonograma. No 12o compasso existe uma
antecipação da tônica (do acorde de Dm menor). Esta característica de antecipação da tônica do
acorde seguinte é ouvida em muitos momentos da música. É mais um elemento rítmico que
enriquece a baixaria.
Segue o resumo das características da baixaria executada pelo violão em Preta
Mina:
1) Função estrutural separando a Introdução da parte A;
2) Baixarias rítmicas constantes e o uso de sincopa ou deslocamento de tempo forte nos
baixos em momentos da Introdução e da parte A (compassos 2, 3, 10 e 11);
3) Uso de inversões propiciando a direcionalidade na tonalidade de Ré menor. Linha do
baixo do violão, nos compassos 9, 10 e 11, que remete à música anterior com resolução
de terça de um acorde para quinta do próximo (de Gm menor para Dm menor e de Dm
menor para A Maior).

Passaremos à década seguinte com mais exemplos e análises das linhas de baixo,
porém temos que apontar que as linhas de baixo no violão, na primeira década do século XX,
já possuíam um amadurecimento técnico vigoroso e robusto. A audição completa destes
fonogramas nos leva a compreender o grau de complexidade dessas linhas, que via de regra
possuem, ao longo do fonograma, uma grande quantidade de variação e de alternância na
execução dos elementos ou desenhos rítmicos, tanto nos baixos, quanto nos acordes. Isso, nos
leva a acreditar, como afirmamos anteriormente, que esses tais elementos técnicos da
estruturação dos acompanhamentos (das linhas de baixo) faziam parte do repertório de técnicas
de performance, tanto dos instrumentistas, quanto dos cantores-violonistas. A compreensão
desse quadro é entendida quando se ouve dezenas de fonogramas da época (da primeira e
segunda décadas de 1900), como Marocas (Eduardo das Neves, Odeon, No 108.073), O
Amolador (Eduardo das Neves, Odeon, No 108.078), Moreninha (Eduardo das Neves e Mário
31

Pinheiro, Odeon, No 108.125), A Casinha Bonitinha (Mário Pinheiro, Odeon, No 108.191),


Bem-Te-Quero (Mário Pinheiro, Victor Record, No 99.735), Casinha Pequenina (Mário
Pinheiro, Odeon, No 40.472), Balas (Cadete, Odeon, No 108.485), Vá Saindo (Cadete, Odeon,
No 108.505) e Constelações (Roberto Roldan, Odeon, No 120.566). Poderíamos escrever
dezenas deles aqui, sempre nas gravações nas quais o violão é o instrumento acompanhador. É
um dado interessante, se pensarmos que essas linhas se estabeleceram em definitivo no violão
de sete cordas somente na década de 1950. Contudo, se já estavam no repertório do violão desde
a virada dos séculos XIX para XX, foi mais para frente que ganharam a relevância de ser “um
dos elementos mais complexos e de maiores consequências estéticas na música brasileira”
(ITIBERÊ, 1970).

1.2 GRUPOS E INSTRUMENTISTAS DA DÉCADA DE 1900 E DE 1920


Como foi descrito no começo deste capítulo, os instrumentos tenores como
bombardino, oficleide e trombone, tiveram um papel importante na história dessas linhas de
contracanto. Analisaremos alguns grupos dentro do período proposto, para mostrar como essas
baixarias, tocadas por estes instrumentos de sopro, foram incorporando elementos novos e
ajudando a consolidar esteticamente essa linguagem musical.
Dentro do período de tempo indicado, teríamos dezenas de fonogramas para
escolher, devido ao uso frequente destes contracantos em gravações instrumentais e cantadas.
Por isso, decidimos escolher apenas os grupos e instrumentistas mais consagrados em nossa
história, sendo que tentaremos descrever brevemente sua importância, ou indicar uma
bibliografia que atenda a esse propósito.

1.2.1 IRMÃOS EYMARD (DATA: 1904)


O trecho transcrito é do fonograma Belinha (compositor não encontrado), na
gravação dos Irmãos Eymard, de 1904. A quantidade de gravações dos irmãos para a Casa
Edison, 32 fonogramas, mostra a relevância histórica do conjunto, embora seja muito difícil
encontrar informações publicadas sobre o grupo. O fonograma Belina se encontra no Catálogo
No 10.029, da Odeon Record, licenciado pela Casa Edison.
32

Figura 8 - Exemplo de baixaria executada pela tuba em Belinha

Fonte: Transcrições do autor, 2020

A transcrição acima (repetição do A) é muito significativa dentro do nosso objeto


de estudo. A direcionalidade na tuba é construída mediante o uso de inversões. Um novo
elemento que aparece e que reforça o entendimento da direcionalidade é o uso da articulação
staccato.
Nos compassos 2 e 6, observamos que o músico usa dois caminhos para fazer a
aproximação para a nota Ré do acorde seguinte (um D7). No compasso 2, ele usa uma
aproximação cromática (Dó sustenido) e, no compasso 6, usa uma nota da escala (a terça de
Cm menor/a nota Mi bemol). O sentido de usar uma resolução por meio tom é uma tentativa
clara de melhorar a condução do baixo rítmico e sua fluidez melódica. A função estrutural
também está ali, no compasso 8. A finalização no segundo tempo indica que, a partir dali, será
iniciada uma nova seção (que pode ser a repetição do A ou uma nova parte da música).
Principais pontos da baixaria executada pela tuba em Belinha:

1) Baixaria rítmica com o uso de inversões favorecendo a direcionalidade;


2) Função estrutural com baixaria melódica indicando o fim da parte ou seção;
3) Uso de baixaria com aproximação diatônica e cromática para garantir uma fluidez à
linha do baixo;
4) Uso da articulação staccato para melhorar a condução rítmica.
33

1.2.2 RANCHO CARNAVALESCO AMENO RESEDÁ (DATA: 1910)


O próximo fonograma merecia sua transcrição na íntegra, pela beleza e por conter
passagens das mais relevantes na condução das linhas de baixo por instrumentos de sopro do
início do século XX. A gravação de Carnaval de 1910 (compositor não encontrado) é do Rancho
Carnavalesco Ameno Resedá, no ano de 1910, Catálogo No 70.244, da gravadora BRAZIL. Não
podemos afirmar com precisão, mas, através da comparação de fotos antigas, tudo indica ser o
músico Luiz Gonzaga da Hora, integrante do Rancho, responsável pela performance do
bombardão na gravação.
O “Ameno Resedá” é tido como referência na história do carnaval e da música
brasileira por diversos autores brasileiros como Jota Efegê (1974), Tinhorão (1998), Moura
(1983), Araújo (2003).
O arranjo transcrito possui vozes (femininas e masculinas), instrumentos de metais,
violões, cavaquinhos e percussão pequena.

Figura 9 - Exemplo de baixaria executada pela tuba em Carnaval de 1910

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

Como o exemplo anterior, Belinha, esta baixaria é muito relevante por conter vários
elementos importantes na construção de uma linha de baixo no choro. A baixaria rítmica, com
alternância nas notas do acorde e o uso de inversões, promove a direcionalidade. Neste
exemplo, observamos o uso da baixaria melódica em momentos de descanso da melodia
principal. Nos compassos 3, 4, 7 e 8, temos um contracanto na linha de baixo muito bem
34

construído, que, inclusive, é dobrado pelas vozes masculinas.


A transcrição acima mostra o uso de notas de aproximação diatônica e cromática
para melhor condução harmônica, como nos compassos 10 (com resolução no compasso
seguinte), e 12 (idem). A função estrutural da baixaria está presente no compasso 15 e 16,
quando acontece a finalização da parte A.
A articulação de staccato está presente nas linhas dos sopros e ajuda a
direcionalidade. Neste exemplo, vemos ainda o legato nas baixarias melódicas dos compassos
3, 4, 7, e 8. As escalas usadas (Dm natural, Dm harmônica e Gm harmônica) acompanham a
cadência (progressão) da harmonia diatonicamente. Principais pontos da baixaria executada
pela tuba em “Carnaval de 1910:
1) Baixaria rítmica com o uso de inversões e aproximações cromáticas favorecendo a
direcionalidade e a fluidez melódica do mesmo;
2) Baixaria melódica como contracanto a melodia principal;
3) Função estrutural com a baixaria melódica indicando o fim da seção;
4) Uso de escala diatônica (menor natural e menor harmônica) nos baixarias rítmicas e
melódicas;
6) Uso da articulação para melhorar a condução rítmica e a interpretação da linha
(staccato e legato).

1.2.3 CHORO CARIOCA (DATA: 1911)


No ano de 1911, o músico Irineu de Almeida (“Batina”) formou o grupo Choro
Carioca, que, além do próprio Irineu, no oficleide e bombardino, tinha Pixinguinha, na flauta,
China e Léo nos violões (irmãos de Pixinguinha) e um cavaquinhista desconhecido, que pelos
depoimentos de Pixinguinha, em diferentes épocas, poderia ser Luís de Faria ou Henrique
Vianna8. Essas primeiras gravações do grupo foram pela Favorite R. No ano de 1913, já pela
gravadora Phoenix, aconteceu uma mudança na formação, com a saída Irineu e do
cavaquinhista e a entrada de Jorge (bombardino)9, Adalberto Vieira de Azevedo (bandolim) e

8
Consta no site oficial de Pixinguinha, no Instituto Moreira Salles, a informação que: “em relação ao cavaquinho
do conjunto nas gravações da Favorite Records, há, segundo Sérgio Cabral em sua biografia de Pixinguinha, duas
informações conflitantes do próprio compositor: ao historiador José Ramos Tinhorão, Pixinguinha afirmara que o
cavaquinhista era Luís de Faria (conhecido como Lulu Cavaquinho); já no depoimento para o Museu da Imagem
e do Som, afirmara que era Henrique, seu irmão”. (ver perfil no site do IMS -
https://pixinguinha.com.br/perfil/choro-carioca/).

9
Possivelmente Jorge Seixas, que tocava oficleide e bombardino e era integrante do Rancho Ameno Resedá.
35

Honório de Matos (cavaquinho). Nesta segunda formação, o grupo contou com a participação
especial do trompetista Bonfiglio de Oliveira em dois fonogramas.
Em ambas as formações, o grupo possui um papel importante em nossa pesquisa
por três motivos distintos. O primeiro, diz respeito as baixarias, que neste grupo tinham um
papel muito importante e protagonista. O segundo motivo, é pelo fato de ter nas performances
do grupo, principalmente na segunda formação, contracantos improvisados a três vozes, que
nos passa a ideia de um caráter mais improvisado entre flauta, trompete e bombardino. Em
relação ao bombardino, vemos baixarias melódicas que não se repetem dentro de um padrão de
interpretação, em que intuímos que existia uma liberdade de construção melódica de
acompanhamento. O terceiro motivo é histórico, pois, além de Pixinguinha ter sido aluno de
Irineu de Almeida quando criança, a vivência de Pixinguinha com os muitos oficleidistas da
época e, principalmente, com o próprio Irineu, formou no jovem flautista uma concepção
estética de melodias em contracanto na região médio-grave. Credita-se, ainda, que a vivência
desde criança com diversos nomes importantes da música carioca (além da convivência com
Irineu) aproximou Pixinguinha do universo de chorões do século XIX, favorecendo a apreensão
de elementos que ele carregou em todo o seu trabalho musical: o senso de forma musical e os
contrapontos populares (as baixarias).
Acreditamos também que a vivência ao lado de Irineu de Almeida foi determinante
para a história das baixarias no choro, pois Pixinguinha, já mais velho e experiente, passou a
tocar o saxofone tenor ao lado de Benedito Lacerda, tendo como violonista o jovem Dino Sete
Cordas (este ainda violonista de seis cordas). Mas essa história fica um pouco mais para frente.
As baixarias no grupo Choro Carioca serão analisadas a seguir, porém as
dividiremos em dois exemplos, visando compreender as duas formações do grupo. Começamos
com a parte B da polca Albertina, composta por Irineu de Almeida, e gravada para a Favorite
R., Catálogo No 1-450.030.
36

Figura 10 - Exemplo de baixaria executada pelo oficleide em Albertina

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

Em primeiro lugar, gostaríamos de chamar a atenção para o caráter virtuosístico da


baixaria melódica tocada por Irineu. Este caráter é nítido nos instrumentos de sopro médio-
graves (oficleide, bombardino, trombone e sax tenor). E fica evidente quando vemos o exemplo
acima, no qual as baixarias melódicas são quase a totalidade do acompanhamento da seção.
Outro ponto que dimensiona o elucidado é o aparecimento dos arpejos em abundância (11
compassos de um total de 16).
Ao contrário, os instrumentos graves, como tuba e bombardão, em formações
maiores como as bandas, por não terem a mesma agilidade dos instrumentos médio-graves,
eram responsáveis pelos baixos rítmicos.
Como já tratado anteriormente, o pesquisador José Alexandre Carvalho discutiu,
historicamente, no item “Aspectos Estruturais” da sua dissertação, a divisão da linha de baixo
em duas linhas, sendo uma mais de marcação (baixo rítmico) e uma outra de contracanto (baixo
melódico) (CARVALHO, 2006, p. 18). Essa segunda linha, que chamamos de baixaria
melódica, é exatamente a linha acima, de Irineu de Almeida (e será futuramente a linha de
contracanto do saxofone de Pixinguinha). Mesmo virtuosa, ela mantém a função de conduzir o
grupo, pois se fizermos uma redução da linha melódica e olharmos sempre a primeira nota de
cada tempo, veremos que ela se baseia nos baixos dos acordes e suas inversões. Esses baixos
rítmicos, que se servem das tônicas e das inversões das notas do acorde, foram preenchidos
pelos arpejos dos acordes ou notas diatônicas (ou cromáticas), criando um movimento que
impulsiona o conjunto para frente.
37

Irineu, com sua extrema capacidade musical e seu conhecimento técnico de banda
e de orquestração, nos parece reduzir a tuba e o bombardino na mesma baixaria. A função
estrutural é sentida em movimento de quatro em quatro compassos e, claro, no final da seção.
Vemos o uso de notas diatônicas e cromáticas por grau conjunto (compassos 3 e 4, e,
posteriormente, na redução melódica dos compassos 13, 14 e 15). Um outro ponto muito
interessante, que não transcrevemos, é a dobra de violão em quase a totalidade das notas do
oficleide.
Vamos a análise dos principais pontos da baixaria executada pelo oficleide em
Albertina:
1) Baixaria melódica em quase sua totalidade, reforçando a direcionalidade;
2) Baixaria rítmica movendo-se por semitom nos compassos 3 e 4, e 14 e 15 (notas
diatônicas e cromáticas);
3) Função estrutural clara e precisa, com marcação de 4 em 4 compassos e indicação de
final de seção;
4) Uso de arpejo e de frases diatônicas de acordo com a harmonia;
5) Uso da articulação staccato.

1.2.4 CHORO CARIOCA (DATA: 1913)


No próximo exemplo, da segunda formação do Choro Carioca, escolhemos a polca
Carne Assada, composta por Pixinguinha, e com participação do trompetista Bonfíglio de
Oliveira. Nessa gravação para a Phoenix, em 1913, ao contrário da organização estrutural
sentida na liderança de Irineu de Almeida, percebemos o caráter improvisado dos instrumentos
de sopro. A execução de cada parte nos soa mais improvisada por notarmos a ausência de uma
organização rítmica e melódica nas frases do bombardino e do trompete (repetições de padrão,
por exemplo). Não podemos afirmar que as linhas gravadas foram improvisadas, mas, por nossa
experiência em rodas de choro, tudo nos leva a afirmar que sim. Outro ponto que reforça nosso
ponto de vista é o erro harmônico no compasso 12. Nas duas repetições da parte A, Jorge toca
a nota Fá sustenido em cima do acorde de Dm menor. Esse erro grosseiro pode indicar a
ausência de uma figura centralizadora na direção musical e no arranjo.
Por não ter um desenvolvimento melódico estruturado, as linhas de contracanto de
Jorge, nessa gravação, nos levam a crer que o músico atuou de maneira livre – ou seja, fazendo
as baixarias de improviso.
Pixinguinha, ao que tudo sugere, flertava desde o início de sua carreira com a
38

liberdade de interpretação, que podemos chamar, hoje, de improvisação idiomática. Bessa


(2005), nos descreve a famosa passagem no Cineteatro Rio Branco, quando Pixinguinha, então
com 15 anos de idade, substituiu o importante flautista Antônio Maria Passos. Pixinguinha, no
depoimento ao Museu da Imagem e do Som (RJ), explica que em determinada valsa ele “saía
da partitura e fazia uma espécie de contraponto”, ao contrário de Passos (apud BESSA, 2005,
p. 48, Depoimento de Pixinguinha ao MIS, p. 58). Com isso, Pixinguinha permaneceu no
emprego, causando uma polêmica entre os dois músicos.
Bessa, escrevendo sobre a enorme capacidade de improvisação de Pixinguinha, diz
que esse dominava um tipo de prática que “requer não apenas destreza técnica no instrumento,
mas também um profundo conhecimento do idioma musical sobre o qual se improvisa – no
caso, o choro” (BESSA, 2005, p. 48).
Apesar de tanto a linha do bombardino quanto a do trompete apresentarem
variações melódicas na repetição da parte A, iremos analisar a linha do bombardino da parte
A1, conforme abaixo:

Figura 11 - Exemplo de baixaria executada pelo bombardino em Carne Assada

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

Na linha de bombardino observa-se de maneira geral, a fim de caracterizar a


harmonia da música, a combinação de arpejos com frases diatônicas, diferentemente do
exemplo anterior, executado por Irineu ao oficleide, no qual apenas se observam,
majoritariamente, o emprego de arpejos. Na figura acima, a linha de bombardino apresenta
39

notas de aproximação cromática (compasso 5), bordaduras (compasso 4), figuras de síncopa
(compassos 3, 5 e 7).
O uso de arpejos demonstra que o instrumentista também conhecia a linguagem de
banda e a técnica do instrumento, pelo virtuosismo exigido para tal feito. No compasso 9, 10,
11 e 12, vemos uma baixaria rítmica descendente que resolve harmonicamente no “fatídico” Fá
sustenido (em cima do acorde de Dm menor). Porém, mesmo a baixaria rítmica de Jorge nos
soa parecido com as baixarias melódicas, por não conter a articulação staccato.
Com isso, nos parece que sua linha de contracanto não carrega a obrigação de ser
uma linha de baixo robusta (ver CARVALHO, 2006, p. 22), e sim, uma segunda linha na região
médio-grave (região tenor). Ao contrário de Irineu, e dos outros exemplos anteriores, Jorge
parece desfrutar da improvisação contrapontística do choro, ao lado de Pixinguinha (melodia
na flauta) e Bonfíglio (trompete). Embora exerça a função de baixo (linha de baixo), o músico
parece confiar aos violões e ao cavaquinho a condução da direcionalidade. Como exemplo,
vemos acima o último compasso da seção A, em que o bombardino não finaliza a parte A. Ao
contrário, Jorge já inicia, no último compasso, a ideia para a seção seguinte. A baixaria do
bombardino repousa na 9a do acorde de Fá Maior, a nota Sol, nos levando a interpretar esta nota
como uma nota de resolução indireta ou uma suspensão para a tônica do acorde seguinte, a nota
Fá. Isso tudo nos leva, de imediato, aos contracantos que Pixinguinha viria a realizar a partir da
década de 1940, ao lado de Benedito Lacerda.
Seguem os principais pontos da baixaria executada pelo bombardino em Carne
Assada:
1) Baixaria melódica em quase sua totalidade, sem a rigidez de preservar a
direcionalidade. Não existe um pensamento de preenchimento de banda (escrita para
banda), e sim, desenhos melódicos de contracanto improvisado;
2) Baixaria rítmica que nos soa mais um desenho melódico (nos compassos 10, 11 e 12)
pela ausência da articulação staccato;
3) Função estrutural não tão clara e precisa. Nesta linha, temos a presença de duas linhas
de baixo atuando juntas. A linha tocada por Jorge é mais livre, muito em função da
presença dos violões de Leo e Henrique Vianna (irmãos de Pixinguinha).
4) Uso de arpejo e de escala diatônica de acordo com a harmonia;
5) Uso das notas cromáticas de uma maneira nova (no meio de frase, compasso 4, e
dentro de um acento rítmico forte, no compasso 10).
40

1.2.5 TERROR DOS FACÕES (DATA: 1913)


Ainda em 1913, as gravações do gaúcho Octávio Dutra e seu grupo Terror dos
Facões são de enorme importância em nossa análise. Octávio Dutra é considerado um dos
músicos mais importantes do início do século, que morou fora da cidade do Rio de Janeiro, e
está presente em estudos científicos ou diletantes de vários estudiosos brasileiros.
O músico Henrique Cazes afirma que “embora o choro fosse um fenômeno carioca,
algumas das melhores gravações dessa época são do grupo gaúcho Terror dos Facões,
organizado em Porto Alegre pelo violonista, compositor e teatrólogo Octávio Dutra (1884-
1937)” (CAZES, 1998, p.41). Na dissertação de Felipe Paula Pessoa, o pesquisador aponta que
o grupo gaúcho apresenta “alto rigor técnico e cuidado meticuloso nos arranjos e execução,
preocupações até então não encontradas nos grupos cariocas, que, apesar de serem em
quantidade bem maior, ainda não apresentavam uma homogeneidade quanto à atuação
profissional e amadora” (PESSOA, 2012, p. 49). E em 2010, o pesquisador Márcio de Souza
escreveu sua tese de doutorado, “Mágoas do Violão: mediações culturais na música de Octávio
Dutra (Porto Alegre, 1900-1935)” (SOUZA, 2010).
Concordamos com esses autores, pois, além da qualidade das gravações, as
baixarias do violão de Octávio Dutra apresentam características musicais similares às baixarias
feitas por instrumentos de sopros discutidas em nossos exemplos anteriores. Porém, dentro dos
recursos técnicos do violão de seis cordas. Dos 23 fonogramas gravados pelo grupo Terror dos
Facões no ano de 1913, escolhemos o fonograma O Maxixe (Octávio Dutra), pelo Odeon R.,
Catálogo No 120.692. Lembramos que o violão soa uma oitava abaixo do que está escrito.
41

Figura 12 - Exemplo de baixaria executada pelo violão em O Maxixe


42

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

Na parte A, o músico usou notas de aproximação cromática (diatônicas e não


diatônicas) através de baixos rítmicos descendentes e ascendentes nos compassos 1, 5, 7, 9, 13,
17, 19, 21, 25 e 29. Observamos baixarias melódicas curtas e longas (de 3 a 7 notas) com notas
de passagem cromáticas nos compassos 2, 8, 12, 24, 26 e 28, na parte A também. A baixaria do
violão é demasiadamente rica e incorpora muitos elementos vistos também nos instrumentos de
sopro, como as frases com escalas diatônicas maiores (ocupando um compasso inteiro) e arpejos
dos acordes (compassos 4, 6, 10, 18, 20 e 22 da parte A). Embora já tenhamos descrito,
chamamos atenção para as duas baixarias melódicas ascendente e descendente nos compassos
8 e 24, da parte A.
Outro aspecto interessante é o uso de inversões para ajudar a direcionalidade.
Porém, no caso de Octávio Dutra, observamos que as inversões são usadas para, além desse
sentido, colorir a harmonia, como podemos ver na parte B da música, nos compassos 2, 10 e
13. O aspecto de colorir a harmonia é sentido pelo uso de notas longas com inversões de sétimas
e terça nos acordes dos compassos citados acima. Com esse repouso, conseguimos ouvir com
a atenção necessária o colorido da inversão, ao contrário de outros exemplos, em que as
inversões eram tocadas com o uso do staccato.
Dutra, assim como Irineu e vários outros compositores deste período, usa a técnica
de pergunta e resposta na composição entre a linha de baixo e a melodia principal. Essas
43

baixarias escritas, e que fazem parte da melodia, são chamadas de baixaria de obrigação10. Ou
seja, os intérpretes não podem modificá-las, a princípio, por pertencerem à composição. Nos
compassos 1, 5 e 9 da parte B vemos a baixaria de obrigação, que é respondida em seguida pela
flauta. O músico Octávio Dutra adapta muitos elementos vistos nos sopros em suas
interpretações com o grupo Terror dos Facões. Suas linhas de baixo no violão são inteligentes,
soam claras, límpidas e de alto nível técnico.
Destacamos os principais pontos da baixaria executada pelo violão em O Maxixe:
1) Baixaria rítmica com uso de notas de aproximação cromática ascendentes e
descendentes e uso de inversões, favorecendo a direcionalidade;
2) Baixarias melódicas curtas com notas cromáticas e escala diatônica;
3) Baixarias melódicas longas, com notas cromáticas e arpejos;
4) Arpejos de acordes;
5) Baixaria de obrigação na parte B.

1.2.6 GRUPO PIXINGUINHA (DATA: 1917)


Em 1917, temos uma outra gravação importante para nossa pesquisa: Sofres Porque
Queres (Pixinguinha e Benedito Lacerda), pelo Grupo Pixinguinha, para Odeon R., Catálogo
No 121.364. Pixinguinha, que é o autor da composição, então com 20 anos de idade, realiza as
primeiras gravações como líder. O que vemos, em dois fonogramas gravados de 191711, pois
Pixinguinha ainda gravou Rosa (Evocação), é uma espécie de resumo dos elementos estéticos
das baixarias, até esse determinado momento. Acreditamos que tanto Pixinguinha, quanto Tute,
o violonista da gravação, apreenderam todos esses elementos estéticos, que se encontravam
disseminados no ambiente musical do Rio de Janeiro da época, e usaram-os na execução destes
fonogramas. Começamos nossa análise de Sofres Porque Queres mostrando, na figura 13,
alguns desenhos rítmicos tocados por Tute, que trazem elementos novos para as linhas do
violão:

10
Irineu de Almeida fez uso dessas baixarias de obrigação em várias de suas composições autorais. E Pixinguinha
também adotou essa técnica de composição em algumas músicas como “Sofres Porque Queres” (1917) e “Ainda
Me Recordo” (1948).
11
Coincidentemente, 1917 é o ano do primeiro samba gravado no Brasil: Pelo Telefone, de Donga (Gravadora
Odeon, Catálogo 121313, Matriz R-204, 1917). Dois anos depois, em 1919, os dois músicos, Donga e Pixinguinha,
estariam juntos no grupo Os Oito Batutas.
44

Figura 13 - Desenho rítmico da baixaria executada pelo violão em Sofres Por Que Queres

Fonte: Transcrições do autor, 2020

Essas rítmicas acima, usadas nessa gravação por Tute, aparecem nas baixarias
melódicas dos bombardinos e oficleides, em bandas, e na mão esquerda do piano, em partituras
de polcas de compositores como Nazareth, Sinhô, Chiquinha Gonzaga, dentre outros. Portanto,
sendo Tute integrante da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, e do grupo de
Chiquinha Gonzaga, consideramos que o músico estava bastante habituado a essa rítmica
sincopada nos baixos. E reforçamos a ideia de que todo um ambiente musical ainda estava se
estabelecendo. Ou seja, os diversos tipos de música e danças do século XIX estavam
vagarosamente começando a separar suas particularidades melódicas, harmônicas e rítmicas
para, mais tarde, se tornarem gêneros definidos com características próprias. Vamos a
transcrição da baixaria da parte A de Sofres Porque Queres, na figura 14.

Figura 14 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de Tute em Sofres Porque Queres
45

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

Na parte A, acima, começamos nossa análise observando que Pixinguinha buscou


um elemento muito usado por seu professor, Irineu de Almeida: as baixarias de obrigação. Esses
baixos são elementos composicionais que fazem parte da melodia da música. Por serem
compostos como parte integrante da melodia, a baixaria de obrigação é comumente repetida
por todos os intérpretes, e tratada tal qual a melodia principal.
As baixarias melódicas, longas e sincopadas dos compassos 1, 2, 6, 9, 10, 18, 25,
26 e 27, foram construídas com passagens cromáticas, diatônicas e arpejos. As baixarias
rítmicas, dos compassos 5, 6, 17, 18, 20 e 22, caminham pelas notas dos acordes (arpejos) e
fazem uso das inversões e dos desenhos sincopados destacados na figura 13. Vemos várias
frases curtas, de três notas em semicolcheia, com repouso nas inversões, como nos compassos
3, 7, 11, 19 e 21. Seguindo o mesmo modelo em semicolcheia, temos uma frase curta diatônica,
no compasso 14, repousando na terça do acorde seguinte. A função estrutural é muito clara,
tendo a baixaria a função de iniciar e terminar a parte A. No decorrer das demais partes da
música, Tute continua usando estes mesmos elementos técnicos para a elaboração da sua
baixaria no violão.
Os principais pontos da baixaria executada pelo violão em Sofres Porque Queres
são:
1) Baixarias rítmicas com o uso de inversões proporcionando a direcionalidade e com
desenhos sincopados;
2) Baixarias melódicas curtas com notas cromáticas e diatônicas (sentido de
direcionalidade) e baixarias melódicas longas com notas diatônicas;
3) Uso de arpejos em ritmo sincopado;
46

4) Função estrutural com baixaria de obrigação, no início, e frase de finalização de


seção.

1.3 DÉCADA DE 1920


No final da década de 1910, e início da década de 1920, ainda teremos
aproximadamente mais 12 gravações encontradas do Grupo Pixinguinha, com Tute, ao violão,
e Nelson Alves ou Henrique Vianna, no cavaquinho. Em 1922, o músico gravou 6 fonogramas
para Casa Edison (Odeon R.). Nesses fonogramas, o violão de Tute segue a mesma lógica na
construção das baixarias, independente do gênero anunciado pelos locutores das gravadoras.
Mesmo em gêneros estrangeiros, como o foxtrote e o tango argentino, ou no samba e na valsa,
o músico utiliza os recursos das baixarias melódicas e rítmicas do fonograma Sofres Porque
Queres.
Nas músicas classificadas como samba, Tute utiliza de maneira constante a segunda
e terceira rítmica da figura 13. O desenho rítmico de colcheia pontuada e semicolcheia, usado
em demasia por Tute nos sambas gravadas ao lado de Pixinguinha, será “estabelecido” como o
desenho rítmico do samba, e adotado pelos contrabaixistas no futuro.
O que veremos a partir de 1920 é um aumento das formações musicais com a
inclusão das percussões e demais instrumentos de sopro. Com o aumento das formações, duas
características se modificam. A primeira característica é o uso de baixarias rítmicas mais
estáveis, para auxiliar a direcionalidade nos grupos grandes (em conjunto com as percussões,
que também vão crescendo em número e em peso). Onde, outrora, ouvíamos contracantos
executados pelos instrumentos médio-graves, passamos a ouvir desenhos melódicos arranjados
(e espalhados) para os diversos naipes da orquestra.
A liberdade vista nos pequenos grupos, em que a condução aparecia quase ao
mesmo nível que a melodia principal, é substituída por arranjos orquestrais. Para analisarmos
essa transformação, podemos ler os exemplos de baixarias (linhas de baixo) na dissertação de
Carvalho (2006), no capítulo “Transcrições Comentadas” (CARVALHO, 2006, p. 81), em que
fica nítida essa modificação. Mesmo Pixinguinha adota o recurso de espalhar os contracantos
para os diversos instrumentos das orquestras, como vemos nos arranjos para seus grupos na
década de 1920: Oito Batutas (1919-1923), Orquestra Típica Pixinguinha-Donga (1928-1929),
Orquestra Típica dos Oito Batutas (1928-1929) e Orquestra Victor Brasileira (1929-1935?).
Na verdade, temos uma mudança no mercado da música com o surgimento de
muitos grupos grandes e orquestras, influenciados pelas bandas de jazz estadunidense no pós-
47

Primeira Grande Guerra, em 1920. Carvalho (2006, p. 71) traduz o tempo histórico: “Nome da
moda e verdadeira mania nacional nas décadas de 1920 e 1930, as jazz bands influenciaram até
os grupos da zona rural e das regiões distantes do eixo Rio-São Paulo”.
Pedro Paes de Carvalho, em sua dissertação sobre o saxofone no Brasil, reforça essa
visão, revelando que “o número de ocorrências do termo jazz-band nos periódicos do Rio de
Janeiro vai de 1 em 1919 a quase 3000 a partir de 1920” (PAES DE CARVALHO, 2015, p. 13).
Ainda temos um aumento de arranjadores de fora do país, como Simon Bountman,
Arnold Gluckmann, Romeo Ghipsmann, Isaac Kolman e a entrada de uma nova safra de
arranjadores brasileiros, como Radamés Gnattali, João Tomás, Guerra Peixe e Gaó. Porém, é
notório que esses novos arranjadores citados, seja de fora do país ou brasileiros, não tiveram
contato com a “primeira geração do choro” e com os contracantos melódicos de instrumentos
como o oficleide, o bombardino e o trombone, da nascente música urbana brasileira.
Poderíamos dar exemplos de alguns contracantos da linha do baixo em formações
maiores, mas esses não estariam no âmbito da nossa pesquisa. Seguiremos para as décadas de
1930 e 1940, nas quais, pelo crescente aumento no número das rádios no país, surgirá um
mercado de trabalho para grupos menores, chamados de regionais, que terão um papel
importante no mercado musical brasileiro. Para nossa pesquisa, serão determinantes. Afinal, a
consolidação dos contracantos melódicos na linguagem do violão de sete cordas foi
proporcionada pelo renascimento do mercado de trabalho para tais grupos.

1.4 OS REGIONAIS ENTRE 1930 E 1940


Se com o passar da década de 1920 as formações menores tiveram uma menor
participação no mercado fonográfico, observamos que nas duas décadas seguintes,
principalmente pelo crescimento exponencial das rádios, ocorreu o contrário. Os grupos
menores, que passaram a ser denominados como “regionais”, se fixaram como uma formação
musical importante e ajudaram a fixar as linhas de contracanto melódico de uma maneira
definitiva em nossa história.
Estes grupos regionais, formados por violões, cavaquinhos, percussões leves e
solistas, se solidificaram nos programas de rádio por sua versatilidade e maneabilidade na
aquando do acompanhamento dos cantores, criando a base na hora, ou preenchendo vazios da
programação, executando temas instrumentais de grande virtuosidade. Historiadores,
pesquisadores e estudiosos da música, como Tinhorão (1998), Cazes (1998), Pellegrini (2005),
Bessa (2005), Carvalho (2006), Souza (2010), Aragão (2011), Bittar (2011), Sève (2015), dentre
48

muitos outros, destacam a importância dessa formação na consolidação da linguagem do choro


e do samba.
Vale ressaltar que na virada das décadas de 1920 a 1930, concomitantemente às
chegadas das grandes gravadoras internacionais e à invasão dos formatos das jazz-bands,
aconteceu a profissionalização do mercado dos músicos e instrumentistas, fato que, de uma
maneira ou de outra, acabou por “filtrar” os músicos que não se encaixaram neste novo formato
de produção musical.
É relevante sinalizar que a continuidade e a “sistematização” dos contracantos
melódicos dos “velhos chorões”, ou seja, de um estilo que era corriqueiro na virada dos séculos
XIX para XX, se deu pelas mãos dos músicos mais velhos, como Pixinguinha, Benedito
Lacerda, Tute, Luiz Americano, Candinho Trombone, Donga, Nelson Alves, Jacob do
Bandolim, e outros instrumentistas, que vivenciaram o desenvolvimento enquanto jovens.

1.4.1 GENTE DO MORRO EM GORGULHO (DATA: 1932)


Começamos nossa análise pelo grupo mais importante do início da década de 1930,
o Gente do Morro, de Benedito Lacerda, o qual estabeleceu uma mudança de paradigma
rítmico, que “pode ser considerada como um turning point tanto para o samba como para o
choro” (…) (ARAGÃO, 2011, p. 185). O grupo Gente do Morro era formado por Benedito
(flauta e voz), Julio dos Santos (cavaquinho), Russo (pandeiro), Bide e Gastão (tamborins),
Juvenal Lopes (chocalho e outras percussões), Jacy Pereira (de cognome Gorgulho) e Henrique
Brito (violões).
Partindo desse grupo, Lacerda deu a configuração definitiva à formação do
conjunto regional nos anos posteriores, ao determiná-la como composta por dois violões (Carlos
Lentine e Ney Orestes), cavaco (Canhoto) e pandeiro (Russo). No meio da década de trinta, em
1937, Horondino José da Silva, o Dino, e Jaime Tomás Florence, o Meira, ingressariam no
conjunto. Com isso, o Regional de Benedito Lacerda seria responsável por unir Dino, Meira e
Canhoto, “o mais célebre trio de base de toda a história dos regionais” (CAZES, 1998, p. 84).
Se tivesse parado por aí, com o grupo Gente do Morro, Benedito Lacerda já estaria
na história da música brasileira. Porém, como referimos acima, seu grupo ainda foi definidor
de uma nova maneira de se tocar choro, mesclando a influência das batidas do samba e a
introdução de novos instrumentos, como a cuíca e o tamborim à formação do regional.
Atentemos ao depoimento de Maurício Carrilho, retirada da tese de Pedro Aragão (2011):
49

A geração de meu pai e meu tio [os flautistas Álvaro e Altamiro Carrilho
respectivamente] identificava no Benedito o nascimento de uma nova forma de se
acompanhar o choro, que seria este choro-sambado. Essa forma de se acompanhar era,
de forma geral, baseada na batida do tamborim. A partir do Benedito e seu regional,
qualquer um que não tocasse seguindo este padrão “balançado” era classificado como
‘quadrado’. Ou seja, quem só tocava no padrão antigo, o padrão da polca, era
considerado ‘quadrado’ (depoimento do violonista e arranjador Maurício Carrilho, em
10 de janeiro de 2011 appud ARAGÃO, 2011, p. 186)

A influência de Bide, e dos demais percussionistas do grupo Gente do Morro,


modificou a maneira como Benedito organizava seus grupos, mesclando a batida do choro
amaxixado ao samba nascido no bairro do Estácio. Das formações regionais que iremos
analisar, os grupos de Benedito, e outros regionais da mesma época, serão os primeiros a
transformarem o balanço do choro mais próximo do samba, rompendo ainda mais a herança
herdada do maxixe. Seguimos com a gravação do grupo Gente do Morro em Gorgulho, de
Benedito Lacerda e Waldemar de Azevedo, de 1932, na figura 15:

Figura 15- Exemplo de baixaria executada pelo violão em Gorgulho

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

O fonograma Gorgulho, gravado em 1932 pela Columbia, Catálogo No 22.129-B,


apresenta um problema interessante para essa pesquisa. Os arranjos para dois violões, ou para
duas vozes na região grave e médio-grave, que nasceram quando das primeiras gravações de
grupos instrumentais, começaram a ser aperfeiçoados a partir desta década de 1930, culminando
nos arranjos para dois e três violões do regional do Canhoto e, posteriormente, no grupo de
50

Jacob do Bandolim.
O “problema” para nossa pesquisa se revela na dificuldade em transcrever o que
cada violão efetivamente fez nas gravações. Como não temos o objetivo de estudar
particularmente a interação ou os arranjos entre os violões, colocaremos sempre em nossa
transcrição aquilo que nos aparece como contracanto a melodia principal. Com a melhora das
gravações, nas décadas de 1950 e 1960, conseguiremos ouvir a parte de cada violão mais
facilmente.
Seguindo para nossa análise, a parte A transcrita acima mostra uma direcionalidade
clara, através das baixarias rítmicas em inversões nos compassos na quase totalidade da música.
A função estrutural das baixarias fica clara quando vemos as frases do violão nos compassos 8
e 16; ou seja, no meio da parte A e em sua finalização. Nesse exemplo, o violão toca uma frase
para voltar à tônica do acorde de Gm menor. A linha de baixo faz uso de notas de aproximação
cromática e diatônica (nos baixos rítmicos), como nos compassos 7, 10, 11 e 15, e nas baixarias
melódicas, como nos compassos 5, 14 e 16.
Seguem os principais pontos da baixaria executada pelo violão em Gorgulho:
1) Baixaria rítmica em quase sua totalidade, impulsionando a direcionalidade através do
uso de inversões;
2) Baixaria melódica em quatro compassos da parte A, enriquecendo a linha de
contracanto (e também ajudando a direcionalidade);
3) Função estrutural clara e precisa (nos compassos 8 e 16);
4) Uso de frases com notas diatônica e cromática, e fragmentos de escala mista12 nas
baixarias melódicas.

1.4.2 DANTE SANTORO E SEU REGIONAL EM HARMONIA SELVAGEM (DATA:


1938)
Seguimos para mais uma gravação dentro da década de 1930, mais especificamente
em 1938. A música escolhida foi Harmonia Selvagem (Dante Santoro), conforme representada
parcialmente na figura 16, na gravação de Dante Santoro e Seu Conjunto, para gravadora Victor,
Catálogo No 34.352-A e Matriz 80.784.

12
Sempre que nos referirmos a expressões como fragmento de escala mista, notas de passagem mista, estaremos
nos referindo às baixarias com notas diatônicas, cromáticas e arpejos dentro da mesma frase. Com isso, teremos
passagens diatônicas, cromáticas, mistas e o uso de arpejos. Mais adiante, principalmente no segundo capítulo,
delimitaremos a tipologia das baixarias a partir deste conceito, sendo a baixaria mista usada nessa situação de tipos
diferentes de passagens ou fragmentos de escala numa mesma frase.
51

Virtuoso da flauta e líder de grupo, Santoro atuou por 33 anos na Rádio Nacional,
tendo ao seu lado músicos importantes como Carlos Lentile, Jorginho da Silva, César Moreno,
César Farias, entre outros.

Figura 16 - Exemplo de baixaria executada pelo violão em Harmonia Selvagem

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

A parte A do violão, em Harmonia Selvagem, apresenta características pontuais para


a construção de uma boa baixaria no choro. A direcionalidade é sentida de dois em dois
compassos, ao contrário de outros exemplos, em que vemos as inversões de baixo no mesmo
compasso. Porém, o violonista usa os elementos rítmicos sincopados, como no compasso 3 e 4,
e os baixos com o apoio de semicolcheia, muito usado por Tute, para dar movimento à linha. A
baixaria rítmica, vista nos compassos 7 e 8, mostra como o violonista privilegiou a condução
da linha melódica na mudança de acordes através do uso de inversões.
Vemos notas de aproximação cromáticas em frases curtas nos compassos 1, 5, 9 e
11 e frases longas com escala diatônica e repouso em inversões, como nos compassos 8 e 13.
O violonista não usa arpejos na parte A, ao contrário de quase todos os outros exemplos
anteriores. A função estrutural é vista na baixaria que divide a seção, no compasso 8, e na
mudança da seção (parte) A para a parte B, transcrita logo abaixo, na figura 17:

Figura 17 - Os dois últimos compassos da parte A2 da baixaria em Harmonia Selvagem


52

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

Destacamos os principais pontos da baixaria executada pelo violão em Harmonia


Selvagem:
1) Baixaria rítmica com o uso de inversões e de desenhos sincopados para impulsionar
a direcionalidade;
2) Baixarias melódicas com frases curtas e longas;
3) Função estrutural com frase no meio do período (compasso 8) e na mudança para a
parte B;
4) Uso de notas cromáticas (nas passagens com frases curtas) e diatônicas (passagens
com frases longas).

1.4.3 REGIONAL DE BENEDITO LACERDA EM AMIGO URSO (DATA: 1941)


O Regional de Benedito Lacerda gravou inúmeros fonogramas, tendo o próprio
Benedito no vocal ou acompanhando renomados cantores do casting das gravadoras e rádios,
como Carmen Miranda, Aurora Miranda, Noel Rosa, Raul Torres, Sílvio Caldas, Francisco
Alves e muitos outros. Passando por diversas formações, foi a partir de 1937, que o conjunto
se estabilizou, com Benedito (na flauta), Popeye (no pandeiro), Dino (Horondino Silva, no
violão), Meira (Jayme Florence, no violão) e Canhoto (no cavaquinho), como já referido
anteriormente. E é com essa formação que iremos analisar a gravação do regional,
acompanhando o cantor Moreira da Silva, de 1941, pela gravadora Victor, Catálogo No 34.754-
a, e composta por Henrique Gonçalez,
53

Figura 18 - Exemplo de baixaria executada pelo violão em Amigo Urso

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

A baixaria do violão em Amigo Urso mostra recursos idiomáticos que são usados
pelos violonistas até os dias atuais. É uma linha que mistura momentos de melodia em
contracanto (a melodia principal), muitas vezes em duas vozes, porém, sem jamais abandonar
a importante função de ser a baixaria rítmica do grupo. Essas características, que estiveram, ora
mais, ora menos, equilibradas nas transcrições analisadas até agora, começam a se constituir
como componentes fixos dentro da lógica organizacional da construção das baixarias do violão
no choro.
A função estrutural é clara, com frases iniciando e fechando a parte A (seção). Ainda
vemos uma frase marcando a divisão da seção, no compasso 8 da parte A transcrita. As baixarias
rítmicas, através do uso de inversões e de alguns ritmos sincopados, definem a direcionalidade
e impulsiona o grupo para frente. A linha de baixo contém ainda frases curtas, com notas
diatônicas, como nos compassos 1, 3, 5, 13, 18 e 19 (da transcrição), e frases maiores com
baixarias mistas (que misturam passagens com notas diatônicas, cromáticas e arpejos), como
nos compassos 7, 9 e 17 (idem). Vemos também baixarias com arpejos nos compassos 10 e 14
(da parte A).
Um ponto não investigado por nós, mas que já mostra toda a inventividade desse
“trio de ouro” (Dino, Meira e Canhoto), é a interação dos dois violões e do cavaquinho neste
54

fonograma. Digno de um estudo mais profundo, a inventividade dos dois violões em Amigo
Urso lembra os arranjos de dois e três violões feitos 20 anos depois, no grupo Época de Ouro.
Vamos aos pontos principais da baixaria executada pelo violão em Amigo Urso:
1) Baixaria rítmica com o uso de inversões e de desenhos sincopados para impulsionar
a direcionalidade;
2) Baixarias melódicas com frases curtas e longas;
3) Função estrutural com frase no início, meio e fim do período (seção);
4) Uso de passagens com notas cromáticas, diatônicas e passagens mistas.

1.4.4 PIXINGUINHA E BENEDITO LACERDA EM ANDRÉ DE SAPATO NOVO (DATA:


1946)
Em 1946, Pixinguinha e Benedita Lacerda iniciam aquela que seria uma das
maiores e mais importantes parcerias da música popular brasileira. A história da dupla foi
descrita e estudada por muitos autores, de dentro e de fora da academia, por propiciar, entre
muitas histórias e controvérsias, os famosos contracantos de Pixinguinha, no seu saxofone
tenor. A dupla, que gravou 34 fonogramas para RCA Victor, entre os anos de 1946 e 1951 (ano
de morte de Benedito), visitou um repertório que possibilitou a união de compositores antigos,
como Viriato, Mário Álvares, e o repertório de Pixinguinha. A união da “velha polca” com o
“choro-sambado”, possibilitou uma linha de continuidade entre o “passado” e o “presente”.
Talvez esse seja o ponto cardeal e digno de tantos estudos.
Além dos famosos contracantos de Pixinguinha, a importância dessas gravações
também se encontra na presença de Horondino Silva, o futuro Dino Sete Cordas (além de
Canhoto e Meira). O encontro desses dois personagens são fundamentais para nossa pesquisa,
pois o talentoso Horondino Silva teve a oportunidade de assimilar o estilo de acompanhamento
da velha geração, como Irineu de Almeida e Jorge (Choro Carioca), pelas mãos de Pixinguinha.
O virtuoso flautista conviveu, quando criança e jovem, com a tradição dos contracantos dos
oficleides e bombardinos em festas, terreiros, clubes e cafés, no início do século XX.
Pixinguinha ainda teve o privilégio de ter convivido com Irineu em sua casa, durante um
período em que esse músico morou com sua família. Essa tradição da improvisação nos
acompanhamentos e na interpretação das melodias sempre fez parte da história do choro e da
trajetória de Pixinguinha13 . Seguimos com Pixinguinha e Benedito Lacerda em André de

13
Ver Bessa (2005) e Caldi (1999).
55

Sapato Novo, figura 19, RCA Victor, Catálogo No 80-0577-a, Matriz No S-078732-1, do
compositor André Victor Corrêa:

Figura 19 - Exemplo de baixaria executada pelo saxofone tenor em André de Sapato Novo/Parte A

Fonte: Choro Duetos, Vol. 2 / Pixinguinha e Benedito Lacerda; coordenação de Mário Sève e David Ganc. - 1.ed.
- São Paulo: Irmãos Vitale, 2011.

No trecho transcrito da parte A acima, percebemos que a baixaria do saxofone faz


a função estrutural através do arranjo da música. No 8o compasso da parte A, a baixaria
responde, com a nota mais grave da sua linha, a nota mais alta da melodia da flauta. A resposta
é no contratempo da melodia e seguida de uma pausa. Ou seja, estabeleceu-se essa nota mais
grave seguida de pausa para marcar a volta da melodia na parte A.
Vemos uma mistura bem sistemática (sistemática, pois vemos isso repetidamente
em muitos contracantos de Pixinguinha) entre o uso de escalas e arpejos. Um outro ponto
primordial para o entendimento dessas baixarias de Pixinguinha consiste em saber que
juntamente a esses baixos melódicos do saxofone temos as baixarias nos violões de Dino e
Meira. Quando ouvimos com atenção, observamos que esses dois violões garantem a
direcionalidade da música, deixando Pixinguinha livre para “voar” pelos contracantos.
Na partitura transcrita acima, em baixarias longas ou curtas, notamos que o repouso
dessas frases se dá através de notas diatônicas em graus conjuntos, como nos compassos 2-3,
3-4 e 7-8. Enquanto que os arpejos foram mais utilizados nos meios das frases, como nos
compassos 4, 6 e 7. Em relação à tipologia das baixarias, vemos somente o uso de baixarias
diatônicas e o uso de arpejos. Passemos para a parte B da composição:
56

Figura 20 - Exemplo de baixaria executada pelo saxofone tenor em André de Sapato Novo/Parte B

Fonte: Choro Duetos, Vol. 2 / Pixinguinha e Benedito Lacerda; coordenação de Mário Sève e David Ganc. - 1.ed.
- São Paulo: Irmãos Vitale, 2011.

Na parte B, acima, já vemos outros caminhos muito expressivos e muito utilizados


nas demais interpretações de Pixinguinha ao sax tenor. As baixarias do saxofone adquirem,
nesta parte B, um modelo mais parecido com outras linhas melódicas, já analisadas
anteriormente. Temos baixarias rítmicas com notas de aproximação cromática, como nos
compassos 1, 3, 4, 11 e 12 e baixarias rítmicas com uso de inversões, como nos compassos 2,
6, 13 e 14. Baixarias melódicas foram usadas sempre com arpejos, como nos compassos 5, 8,
9, 15 e 16.
A função estrutural está clara com nota de aproximação cromática no início da
seção, e um arpejo no penúltimo compasso, sugerindo a finalização da mesma (seção ou parte).
Ainda temos o uso do staccato, que ajuda ritmicamente o grupo (o seu “balanço” ou o swing).
A interpretação com o uso do staccato, embora simples, muda completamente a estrutura
rítmica do acompanhamento. As baixarias incluem frases com fragmentos de escala cromáticas,
diatônicas e mistas14. Ainda há o uso de arpejos com passagens cromáticas revelando a riqueza
dessa linha de contracanto melódico.

14
Reforçamos que, no segundo capítulo, chamaremos de baixaria mista o modelo de baixaria que inclua passagens
cromáticas, diatônicas e arpejos na mesma frase.
57

Vamos ao resumo da baixaria executada pelo saxofone em André de Sapato Novo:


1) Baixaria melódica com frases curtas e longas;
2) Baixaria rítmica com o uso de inversões para impulsionar a direcionalidade;
3) Função estrutural com apoio no início e no fim da parte (seção);
4) Uso de fragmentos de escala cromática, diatônica e mista;
5) Uso de arpejos e com desenhos sincopados;
6) Uso de articulação staccato para valorizar os desenhos rítmicos e ajudar o balanço do
grupo.

1.5 O VIOLÃO DE DINO SETE CORDAS NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960


Os violonistas de sete cordas importantes do país não hesitam em afirmar, em
entrevistas e depoimentos, a importância de Dino Sete Cordas na “escola” do violão sete cordas
e em “fixar profissionalmente o violão de sete cordas no panorama da música brasileira (..)
(BRAGA, 2002, p. 07).
Nascido em uma família de poucos recursos, precisou trabalhar desde muito cedo e
ingressou no mercado de trabalho como operário em uma confecção de calçados. O aprendizado
musical de Horondino da Silva ocorreu por meio de trocas informais, em casamentos, festas de
família ou saraus, aos quais seu pai o levava para se revezarem ao violão. Outro professor de
Dino foram os programas diários de rádio, nos quais se tocava choro, que Dino podia ouvir - e
decorar - as conduções de Carlos Lentine e Nei Orestes.
Segundo Taborda (1995, p. 47), esses encontros foram determinantes na carreira de
Dino, pois conheceu as duas pessoas que o levaram para o mercado de trabalho musical:
Augusto Calheiros, o Patativa do Norte, e Jaco Palmieri, pandeirista do grupo Oito Batutas. E
foi através desses músicos que Dino ingressou no mercado de trabalho artístico. Primeiro,
acompanhando Calheiros em espetáculos de circos pequenos e periféricos, e com cachês baixos,
mas que serviam para complementar o ordenado da confecção de sapatos. E, através de
Palmieri, acabou conhecendo Benedito Lacerda e seu Regional.
Devido a esse contato, que mesmo breve marcou Benedito e seus músicos, Dino foi
lembrado no começo de 1937 para substituir Nei Orestes, que estava se recuperando de
problemas de saúde. Com o ingresso no Regional de Benedito Lacerda, Dino consegue largar
o emprego na confecção de sapatos e toma parte num dos melhores grupos de choro da história.
A biografia de Dino Sete Cordas, suas linhas de violão e sua importância na história do violão
58

brasileiro, foram estudadas nas dissertações de Taborda (1995) e na de Pellegrini (2005)15.


Dito isso, nosso estudo teve por foco a análise de algumas de suas linhas nas
décadas 1950 e 1960, em que encontramos um violonista maduro e com a linguagem das
baixarias de acompanhamento muito desenvolvida. Em nossa análise buscamos compreender o
que foi incorporado ou amadurecido nessas linhas, a partir da influência que teve dos muitos
instrumentistas anteriores a ele. Partimos, então, para a transcrição de trecho do primeiro
fonograma escolhido.

1.5.1 REGIONAL DO CANHOTO EM ENIGMÁTICO (DATA: 1953)


Em 1950, o flautista Benedito Lacerda se afasta gradativamente do seu grupo para
cuidar de assuntos políticos e pessoais, levando os músicos do regional a se separar do músico.
Canhoto assume a direção do conjunto, que passa a se chamar Regional do Canhoto, e tem
como integrantes os músicos oriundos da formação anterior, como Meira, Dino, Gilson e o
próprio Canhoto, e novos, como Altamiro Carrilho, na flauta, e Orlando Silveira, no acordeão
(FLORES, 2007, p.76 apud BITTAR, 2011, p. 91).

15
Deixamos aqui algumas indicações de trabalhos feitos na área do violão de sete cordas (que incluem Dino ou
trabalhos sobre ele) e dos acompanhamentos no choro: Taborda (1995), Pellegrini (2005), Borges (2009), Geus
(2009), Bittar (2011) e Lamas (2018). Ainda os métodos de Braga (2002) e Caetano (2011).
59

Figura 21 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Enigmático/Parte A

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

Nesta composição de Altamiro Carrilho, gravada pela RCA Victor, no Catálogo No


80-1083-a, de 1953, pelo grupo Canhoto e Seu Regional, temos nos compassos 1, 2, 9 e 10 a
melodia da música, que foi tocada pelos “baixos” do violão.
Ao longo da música, Dino mesclou com muita habilidade o equilíbrio entre as
baixarias rítmicas e melódicas. Nos compassos 3, 5, 6, 7, 11, 12 e 15, temos a condução por
baixarias rítmicas e o uso de inversões com resoluções harmônicas nas tônicas e terças. Nos
compassos 4, 13, 14 e 16, o violonista reforça a melodia com baixarias melódicas, através de
frases diatônicas.
A função estrutural é vista nas duas finalizações da parte A (casas 1 e 2). Tanto para
retornar para a parte A, quanto para seguir para a parte B, o violão foi responsável pela frase
conclusiva. Na casa 2, além da conclusão, temos uma segunda frase que encaminha para a parte
B.
Dois pontos nos chamam a atenção na parte A de Enigmático. O primeiro, é a
ausência de arpejos, característica musical muito vista nas transcrições anteriores,
principalmente nos instrumentos de sopro. O outro ponto, inédito até aqui, foi a utilização no
60

violão da técnica de pizzicatto16. Esta técnica consiste no abafamento das cordas com a mão
direita, para deixar o som seco e abafado, e foi usada na melodia da música, nos compassos 1,
2, 9 e 10. Não incluiremos o pizzicatto nas articulações, como já afirmamos anteriormente.
Iremos enquadrá-lo como uma técnica específica do violão, e não somente um recurso para a
interpretação de frases e/ou notas.
Vamos ao resumo da baixaria executada pelo violão na parte A de Enigmático:
1) Baixa melódica curtas e baixaria rítmica com o uso de inversões para impulsionar a
direcionalidade;
2) Função estrutural com a finalização da parte A (dois tipos de terminações);
3) Uso de baixarias diatônicas;
4) Ausência de articulações e de baixarias cromáticas, mistas e com arpejos;
5) Uso da técnica pizzicatto.

Seguimos com a composição Enigmático, analisando, agora, sua parte C.

Figura 22 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Enigmático/Parte C

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

A parte C deste mesmo fonograma foi transcrita para entendermos que, ao contrário

16
Diferente do contrabaixo (e da família dos violinos), que se pinça a corda com o dedo, o pizzicatto no violão usa
o abafamento das cordas para gerar um som mais percussivo e escuro. Explicaremos com detalhes esta técnica no
segundo capítulo.
61

de algumas baixarias livres, como as gravações de Octávio Dutra (Terror dos Facões), de Jorge
(segunda formação do Choro Carioca), e dos discos de Pixinguinha e Benedito Lacerda, as
linhas de baixo de Dino e Meira foram muito bem pensadas e arranjadas neste fonograma.
A “sistematização” dos arranjos para dois violões também foi uma construção
acumulada de anos e anos de vivência e prática com a música, e construída pelas mãos de
diversos instrumentistas e arranjadores. Poderíamos conjecturar que a base para o arranjo de
dois violões estaria na escrita para tuba e bombardino, ou mesmo para oficleide e violão. De
fato, anteriormente aos arranjos para dois violões, como vemos nesse fonograma, a organização
das linhas de baixo em grupos como o Choro Carioca, nos parece baseada na diferenciação ou
separação entre as duas formas de condução de baixarias: a baixaria rítmica e a melódica.
A linha de baixo no choro, sob o aspecto dos arranjos para dois violões, ganhou um
novo capítulo com Dino e Meira. A clareza construída com os anos da atuação lado a lado
(aproximadamente 45 anos tocando juntos) possibilitaram a maturidade do “papel” ou função
de cada um nas gravações e apresentações. E, claro, a capacidade musical para elaboração de
arranjos muito bem organizados, em que os violonistas aprimoraram a técnica de duas linhas
de baixarias melódicas tocadas ao mesmo tempo. Neste caso, as linhas eram arranjadas em
intervalos de terças e sextas (e algumas vezes em quartas).
No começo da dupla Dino-Meira, tanto um, quanto o outro, executavam frases e
condução rítmica dos acordes, embora, Dino sempre tenha ficado mais com as frases e Meira
com as levadas (condução dos acordes no violão). Entretanto, segundo Bittar (2011), isso foi se
tornando mais definido com o tempo, ficando Dino nas baixarias e Meira com as levadas e
aberturas de vozes nas baixarias. Neste fonograma, em determinados momentos, não
conseguimos distinguir qual dos dois violões está fazendo o quê. Isso, claro, devido a alguns
fatores como: falta de clareza na qualidade da gravação na época, o fato de os dois músicos
usarem violões de seis cordas, e ainda a capacidade e o talento de Meira para frasear as
baixarias.
Pela sonoridade dos violões, acreditamos que Meira tenha participado na execução
das linhas de baixo da parte C, transcrita acima. Acrescentamos essas três frases, que nos parece
ser de Meira, por serem determinantes na função estrutural da parte C. Porém, como se pode
notar na partitura, denominamos esses três pontos como “baixaria do 2o violão / Meira”.
Começamos nossa análise ressaltando que a função estrutural na parte C foi
executada pelo segundo violão, como acabamos de mencionar. De maneira clara, o segundo
violão introduz a parte C (compasso 1), faz a ponte para sua repetição (compasso 17), e também
faz a finalização da seção (compasso 18).
62

A direcionalidade é vista no encadeamento dos baixos rítmicos com o uso de


inversões, como nos compassos 4, 7, 8, 12 e 14, e nas frases curtas dos compassos 2, 3, 5, 6,
10, 11, 13, 15, 17 e 18. Os violonistas usam na maior parte do tempo as baixarias diatônicas.
Como exceção, temos baixarias com fragmentos de escala mista feitas pelo segundo violão
(Meira) nos compassos 1, 5, 6 e 13. A baixaria melódica do compasso 6, de Meira, é repetida
no compasso 14. Contudo, optamos por escrever no compasso 14, somente o violão de Dino.
Vamos ao resumo da baixaria executada pelos violões em Enigmático:
1) Baixaria melódica com frases curtas e baixaria rítmica com o uso de inversões para
impulsionar a direcionalidade;
2) Função estrutural com frase no início, meio e fim da seção;
3) Uso baixarias diatônicas e mistas;
4) Ausência de articulações e baixarias com arpejos.

1.5.2 GRUPO DE ALTAMIRO CARRILHO EM OS CINCO COMPANHEIROS (DATA:


1964)
Segundo o pesquisador Remo Pellegrini, um dos discos de maior referência para o
aprendizado do violão de sete cordas é o álbum Chôros Imortais (sic), de Altamiro Carrilho
(PELLEGRINI, 2005, p. 60). Lançado pela gravadora Copacabana, Catálogo No CLP 11360,
no ano de 1964, Chôros Imortais (sic) tem em seu repertório choros de vários compositores,
como Pixinguinha, Dante Santoro, Honorino Lopes, Jacob do Bandolim, José Toledo e Rubens
Leal Brito, e, como grupo acompanhante, o Regional de Canhoto. Todas as músicas do disco se
tornaram, ou já eram, clássicos do choro e fazem parte, quase que obrigatoriamente, do
repertório das rodas de choro.
Onze anos depois da gravação de Enigmático, e ao lado de praticamente os mesmos
músicos (Regional do Canhoto), a execução de Dino Sete Cordas soa mais madura e apresenta
uma técnica rebuscada ao violão. Nos parece que a convivência do violonista com os mestres
Tute, Pixinguinha e Benedito, e sua relação com músicos de “primeira linha”, como Canhoto e
Meira, em conjunto com sua musicalidade extrema e sua dedicação ao instrumento, tornou-o o
profissional celebrado e reconhecido por seus pares.
Transcrevemos 3 trechos da música Os Cinco Companheiros, por conter parte fixas
e partes livres, nas quais o violonista demonstra uma maturidade ímpar. A composição Os Cinco
Companheiros é de Pixinguinha e Benedito Lacerda.
63

Figura 23 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Os Cinco Companheiros/Parte A

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

O movimento dos primeiros quatro compassos, com baixarias melódicas curtas, que
começam no segundo tempo do compasso e terminam na inversão do acorde seguinte, acontece
sempre em resposta à melodia principal17.
As inversões dos baixos, do primeiro até o quinto compasso, no acorde de C7,
estabelecem a direcionalidade da música. As baixarias com frases curtas possuem fragmentos
de escalas diatônicas e mistas. Se temos muitas baixarias curtas, como nos compassos 1, 2, 3,
4, 6, 14 e 16, vemos uma grande frase partindo do compasso 9 e indo até o compasso 11, que
difere de outras frases analisadas anteriormente em nosso estudo pelo seu tamanho. As baixarias
rítmicas também foram usados pelo violonista, como vemos nos compassos 5, 7, 8, 12, 13 e 15.
A direcionalidade proporcionada pelo uso das inversões nos baixarias rítmicas é vista nesse
fonograma pela evolução dos acordes (o uso de dois acordes por compasso) e não exatamente
pela alternância de notas dentro de um mesmo acorde. Somente nos compassos 5 e 12 temos
baixarias rítmicas com inversões num mesmo acorde parado. No compasso 12, vemos ainda o
uso de uma célula rítmica sincopada de duas notas (3a e 9a do acorde de Gm menor) que repousa
na tônica do acorde de G# diminuto.
Na baixaria longa, que se inicia no compasso 9, Dino usa uma passagem com notas
cromáticas, que repousam na 9a menor do acorde de A7 (a nota Si bemol). É interessante
perceber que a primeira nota do acorde de A7 (compasso 10) é a nota dissonante 9a menor, um

17
Na gravação desta música, em 1940 por Pixinguinha, temos esses contracantos iniciais de forma muito similar.
64

Si bemol. Porém, mais surpreendente ainda é perceber que, na verdade, o violonista inicia essa
frase de caráter dominante ainda dentro do acorde anterior (o acorde F Maior do compasso 9).
Continuando, o repouso dessa frase acontece dois compassos e meio depois na tônica de Gm
menor. No acorde de D7, anterior ao Gm menor, a linha de baixo se inicia pela 3a Maior (Fá
sustenido) e segue da 9a menor (Mi bemol) até a 7a menor com notas cromáticas. Analisando a
frase inteira, temos nos tempos fortes as notas Si bemol (9a menor de A7), Dó sustenido (3a
Maior de A7), Fá sustenido (3a Maior de D7) e Dó natural (7a menor de D7). Nesta longa
baixaria descrita agora, Dino mescla com sabedoria arpejo e notas diatônicas e cromáticas.
Para terminar, vemos um grande amadurecimento da linha de baixo de Dino, ao
perceber a riqueza rítmica dessa baixaria longa, que tem tercina de semicolcheia no começo da
frase, semicolcheia no meio (e em sua maior parte), e colcheia no final. Uma variação de três
rítmicas diferentes dentro de uma mesma frase.
A função estrutural também é de responsabilidade do violão de sete cordas, como
no compasso 16, em que uma baixaria curta, misto de notas diatônicas e cromáticas, repousa
no primeiro compasso da parte B (um acorde de Fá Maior).
Seguimos com o resumo da baixaria executada pelo violão na parte A de Os Cinco
Companheiros:
1) Baixaria melódica com frases curtas e baixaria rítmica com o uso de inversões
(impulsionar a direcionalidade);
2) Baixaria melódica com uma frase longa e ritmicamente rica;
3) Função estrutural com baixaria na transição da parte A para a parte B;
4) Uso de passagens diatônicas, mistas (com notas diatônicas, cromáticas e arpejos) e
em arpejo.
Seguimos com a parte B2 de Os Cinco Companheiros.
65

Figura 24 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Os Cinco Companheiros/Parte B2

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

As baixarias da parte B2 de Os Cinco Companheiros são um exemplo muito


interessante para nossa análise. Temos todos os elementos já vistos anteriormente, porém, o que
surpreende é a maneira como esses elementos são usados. As baixarias, sejam curtas ou longas,
fazem sentido ao longo do desenvolvimento da seção, ao mesmo tempo em que dialogam
respeitosamente com a melodia.
As baixarias rítmicas dos compassos 1, 5, 7, 9 e 11 usam as inversões que
proporcionam a direcionalidade da música. O domínio das frases longas no violão é o grande
acréscimo visto neste fonograma, em comparação com outros anteriores. Nos parece uma
influência clara de Pixinguinha e suas longas baixarias em contracanto nas gravações da década
de 1940 e 1950, ao lado de Benedito Lacerda.
No compasso 2 e 3, o motivo melódico de aproximação cromática (com exceção do
3o motivo, que é diatônico) de duas notas com repouso na terceira resulta numa baixaria longa,
que resolve somente no primeiro tempo do compasso 4. Porém, Dino ainda emenda uma frase
de dois tempos, que se inicia com o mesmo motivo de aproximação cromática de duas notas,
que resolverá na 3a Maior do acorde de A7, do 5o compasso. Chamada por Braga (2002, p. 34)
de “técnica de pergunta e resposta”, essas duas frases se complementam. Essas serão vistas em
outras performances do violonista. Dino usa baixarias longas misturando frases com notas
diatônicas e cromáticas e arpejos, como nos compassos 6 e 10, e uma frase longa em fusa com
notas diatônicas.
66

A função estrutural é vista no compasso 16, com uma baixaria em arpejo que leva
ao tom da parte A da música. E a articulação legato é vista em dois momentos da música. No
violão, veremos que em passagens rápidas, o legato será de grande uso, visto a dificuldade de
tocar todas as notas com a dedeira.
Vamos ao nosso resumo da baixaria do violão na parte B2 de Os Cinco
Companheiros:
1) Baixaria melódica com frases curtas e baixaria rítmica com o uso de inversões
(impulsionar a direcionalidade);
2) Baixaria melódica com frases longas e ricas ritmicamente;
3) Função estrutural com frase de transição no final da seção que encaminha a seção
nova;
4) Uso de baixarias diatônicas, cromáticas, mistas e com arpejos;
5) Uso de divisão em fusa (visto pela primeira vez);
6) Articulação legato.

Como referido acima, as baixarias longas e mais estruturadas (inclusive com


divisões rítmicas diferentes ao longo da mesma) nos chamaram a atenção nesta transcrição. O
andamento médio (por volta de 70 bpm) pode ter sido um facilitador para esse tipo de
performance. Porém, analisando atentamente, é nítido que Dino amadureceu sua visão do
contracanto como um organismo vivo e autônomo. Pixinguinha pode ter sido uma grande
influência neste ponto específico? Sim. Contudo, jamais saberemos com exatidão. Podemos
dizer que os contracantos de Pixinguinha “faziam sentido por eles mesmos”, tamanha a
capacidade de composição do músico. É fato que Dino deve ter incorporado muito
conhecimento musical com a vivência ao lado de Pixinguinha. Colocaremos mais um pequeno
trecho, na figura 25, para mostrar como Dino assimilou o conceito de baixarias maiores e mais
bem elaboradas ritmicamente.

Figura 25 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Os Cinco Companheiros

Fonte: Transcrições do autor, 2020.


67

Como vemos acima, a baixaria é composta em cima de três compassos, com


resolução no quarto compasso. Dino usa, na mesma frase, notas diatônicas e arpejos. Ele inicia
a baixaria com uma passagem diatônica para fazer soar a mudança de acorde, de Bb Maior para
Bb7, para, daí, emendar os arpejos.
É interessante perceber que o violonista usa o arpejo de Bb7 com 9a (a nota Dó). É
uma sonoridade mais complexa para a época, afinal, estamos falando de uma linha de baixo do
ano de 1964, dentro do ambiente do choro. A resolução no 4o compasso é na terça do acorde de
Eb Maior (na nota Sol). Em seguida, o violonista emenda uma passagem cromática que irá
repousar na terça menor do acorde Ebm menor (nota Sol bemol). Esta última nota (Sol bemol)
não está na partitura.
Como estamos discutindo a incorporação e o acréscimo de novas sonoridades nas
baixarias do choro, decidimos dar atenção maior a este fonograma. Especialmente, nos chamou
a atenção o uso de baixarias maiores e mais elaboradas ritmicamente.

1.5.3 JACOB DO BANDOLIM E SEU CONJUNTO ÉPOCA DE OURO EM RECEITA DE


SAMBA E INGÊNUO
Para finalizar as análises desse capítulo, buscamos trechos das músicas Receita de
Samba (Jacob do Bandolim) e Ingênuo (Pixinguinha e Benedito Lacerda), gravadas no álbum
Vibrações. Este álbum é considerado, ao lado dos dois discos de Cartola, como álbuns
indispensáveis para se aprender a linguagem do violão de sete cordas.
O álbum de Jacob do Bandolim e Conjunto Época de Ouro, foi gravado em 1967
pela RCA Victor, no Catálogo No BBL 1383, e tem no grupo de músicos Dino, no violão de
sete cordas, César Farias e Carlinhos, nos violões de seis cordas, Jonas, no cavaquinho, Gilberto
d'Ávila, no pandeiro, e Jorginho, nos demais instrumentos de percussão. Começamos com a
música Receita de Samba, do próprio Jacob, da qual veremos a parte A completa. Separaremos
a mesma em A1 e A2 para facilitar nossa análise.
68

Figura 26 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Receita de Samba /Parte A1 e A2

Fonte: Transcrição de Pellegrini (2005, p. 189).

Nas partes A1 e A2, podemos começar destacando a função estrutural da linha de


contracanto. O violão prepara tanto o início da parte A1, quanto sua volta, A2, e também a
entrada da parte B1. A preparação inicial é longa (dois compassos) e começa com uma baixaria
diatônica de dois tempos em cima do acorde de G Maior, que repousa na 5a aumentada do
acorde de D7(#5), no compasso seguinte.
69

A introdução, com cavaquinho, pandeiro e tamborim, nos remete ao Conjunto


Gente do Morro, de Benedito Lacerda; grupo que mudou o paradigma de acompanhamento de
choros (ARAGÃO, 2011, p. 186). Para preparar o A1, Dino toca no último tempo da introdução
um ritmo sincopado típico do samba: pausa de semicolcheia, colcheia e semicolcheia.
As baixarias nas partes A1 e A2, mais do que responder à melodia principal, são
responsáveis por mostrar as mudanças de acordes e dar o sentido de direcionalidade. Dino
estabelece o acompanhamento de dois em dois compassos, sendo o primeiro compasso feito
por baixarias rítmicas e, o segundo, como vamos mostrar, por baixarias melódicas. Temos esse
modelo nos compassos 9-10, 13-14, 15-16, 17-18, 19-20, na parte A, e 25-26, na parte A2. As
baixarias usadas nas frases são com notas diatônicas (nos compassos 10, 18 e 20, da parte A1),
com notas cromáticas (nos compassos 14, 26, 31, 32, 33 e 34, da parte A2), fragmentos de
escala mista (compasso 14, da parte A1, e 26 e 40, da parte A2) e arpejo (compasso 16, da parte
A1).
Outro ponto interessante é o ritmo de alguns baixos. Dino usa bastante o desenho
de colcheia pontuado e semicolcheia para as baixarias rítmicas, como nos compassos 11, 12,
13, 15, 21 e 22, da parte A1. Na seção A2, o músico usou menos (somente nos compassos 28 e
36). Nas partes em que o desenho da baixaria é somente a semínima ou colcheia, Dino trabalha
com as inversões dos acordes e, ao contrário de outras músicas, não repete nenhuma nota em
nenhum momento. Isso, nos chamou a atenção.
Sobre a sonoridade do violão, Dino estabelece para a parte A inteira o som abafado
(e fechado), que como dissemos anteriormente recebe o nome de pizzicatto. Na parte B, para
contrapor, o violonista usa o som aberto sem abafamento. Tanto o pizzicatto, quanto as baixarias
rítmicas com inversões, ajudam o sentido de direcionalidade. Por mais que Dino toque de forma
livre a parte A1, vemos que o violonista usa os mesmos elementos rítmicos na seção A2, com
uma mudança de concepção na linha de baixo do meio para o final desta parte, quando uma
sucessão de frases curtas encadeia as várias mudanças de acorde para encerrar a mesma.
Seguimos com nosso resumo da baixaria executada pelo violão de sete cordas nas
partes A1 e A2 em Receita de Samba:
1) Baixarias melódicas com frases curtas (sempre na transição dos acordes) e baixarias
rítmicas com o uso de inversões (sentido de direcionalidade);
2) Função estrutural com frases nas transições de todas as partes;
3) Uso de baixarias diatônicas, cromáticas, mistas e com arpejos;
4) Uso do pizzicatto ou abafamento.
70

A próxima e última análise é a repetição da parte B da música Ingênuo, composta


por Pixinguinha (Pixinguinha e Benedito Lacerda).

Figura 27 - Exemplo de baixaria executada pelo violão de sete cordas em Ingênuo/Parte B2

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

Começaremos com a função estrutural. Em Ingênuo, vemos frases de transição


entre o B1 e B2, e entre o B2 e a volta ao A. A baixaria que finaliza a parte B1 e inicia o B2
71

(compasso 3 e 4) mostra uma alta complexidade rítmica misturando colcheias e sextinas. Dino
mistura arpejo, escala hexafônica e passagem com notas cromáticas nesta mesma frase, algo
novo em nossa análise. O final do B2 possui uma frase de transição para a volta ao A em arpejo.
A sonoridade é bem diferente devido ao uso do acorde substituto do quinto grau de Fá Maior
(Gb7), seguido pelo quinto grau (C7). Temos, então, o arpejo de Gb7, no primeiro tempo, e o
arpejo de C7, no segundo tempo. Aqui, uma outra sonoridade diferente.
Por ser uma música lenta, vemos baixarias longas que ocupam o compasso inteiro,
como nos compassos 6, 8, 9, 12, 20, 22, 24, 26, 28, 35 e 36. Nessas frases maiores, temos
passagens com notas diatônicas (compassos 6 e 8), cromáticas (compasso 20), fragmentos de
escala mista (compasso 12), arpejos e notas de passagem (compasso 9, 22, 24, 26 e 36), e
somente arpejos (compasso 28 e 35). Nos parece que pelo motivo do andamento lento não
vemos as baixarias rítmicas bem marcadas ou com alternância dos baixos em um mesmo
acorde. Pelo contrário, observamos baixos que duram um compasso inteiro, como nos
compassos 5, 7, 13, 14, 21, 23 e 25. Uma direcionalidade clara e robusta não parece ser tão
necessário em música lentas, quanto em andamentos mais rápidos.
Pelo caráter lento, notamos também que Dino não usa com frequência o som
abafado do violão. Com exceção, a frase do compasso 28, em que todos os instrumentos fazem
uma pausa e Dino responde usando a técnica do pizzicatto (abafamento) para valorizar sua frase.
Vamos ao resumo da baixaria executada pelo violão de sete cordas em Ingênuo:
1) Baixaria melódica com frases grandes em diversos momentos da seção;
2) Ausência de baixaria rítmica e, consequentemente, o sentido usualmente analisado da
direcionalidade;
3) Função estrutural com frases nas transições de todas as partes, inclusive no meio da
seção;
4) Baixarias diatônicas, cromáticas, mistas, com arpejos e ainda frase com o uso da
escala hexafônica;
5) Uso da técnica de pizzicatto.

1.6 REFLEXÕES SOBRE AS BAIXARIAS NA MÚSICA POPULAR NO SÉCULO XX


Como vimos no início deste capítulo, nossa ideia foi percorrer quase 70 anos da
música popular brasileira para entender como essas baixarias foram se transformando pelas
mãos de diversos instrumentistas.
Selecionamos fonogramas nos quais estas linhas tiveram um papel fundamental na
sonoridade dos grupos escolhidos. Ou seja, para esses grupos e para esses instrumentistas, as
72

linhas de baixo e sua condução se mostravam importantes na concepção dos arranjos do


conjunto.
Como veremos em nosso segundo capítulo, as baixarias estiveram presentes nas
diversas formações musicais através de um repertório em comum. Das bandas de música, até
formações com base de violão e cavaquinho, esses repertórios compartilhados possibilitaram
que as baixarias caminhassem do oficleide e do bombardino para o violão e o trombone (e vice-
versa), levadas por uma quantidade significativa de músicos, que atuaram nos diversos tipos de
trabalhos musicais. As baixarias receberam a herança da cultura musical europeia e da cultura
musical africana, presente no país desde o século XVI.
Entendemos que as baixarias foram se estabelecendo na música popular urbana
como uma teia, que esticada, perpassou diversos ritmos, até se consolidar nos gêneros urbanos,
como o samba e o choro.
Essa música popular urbana, que no século XIX ainda não possui uma identidade
fechada, foi se misturando de maneira informal em cerimônias seculares e católicas, em
batuques e cerimônias religiosas africanas, em cine-teatros com pequenas orquestras e bandas
de música, em cafés e chopes berrantes (quiosques ou bares com venda de bebidas diversas), e
em festas em casas de família de classe média, ao longo de quase todo este século e o início do
século XX. E sob este guarda-chuva musical e social, em que acontecia a fusão das culturas
brasileira, europeia e africana, mas importante do que o gênero, propriamente dito, era a
maneira de se tocar (e seus códigos para interpretar, acompanhar, harmonizar, improvisar,
compor, cantar e dançar). É importante compreender que sob este “guarda-chuva musical” se
tocava tanto a polca, o schottish, o maxixe, a habanera, o samba, quanto a valsa, a modinha e
o lundu.
As heranças recebidas pelas baixarias serão estudadas no segundo capítulo deste
trabalho. E antes de apresentarmos nossos resultados, reforçaremos que o conhecimento de
tradições musicais europeia e africana, mesmo que de uma maneira informal, moldou a forma
como os músicos desenvolveram as diversas formas do “tocar”. Para afirmar essa ideia,
citaremos o músico e professor José Alexandre Carvalho (2006, p. 11).:

Herdeira de toda tradição melódico-harmônica da música europeia, a linha de baixo


na música popular surgida nas Américas, incorporou a rítmica africana,
multiplicando-se numa infinidade de novos padrões. Uma das características da
música popular é o uso dos instrumentos de percussão na marcação do ritmo,
construindo juntamente com os instrumentos de harmonia e os baixos a base rítmico-
harmônica, conhecida como “levada” (em inglês groove), que é elemento fundamental
para dança. A linha de baixo por estar intimamente ligada a estruturação das levadas,
foi influenciada pelos novos ritmos e acentos, transformando-se, sem perder, no
entanto, sua importância harmônica e formal
73

Chegamos a mesma conclusão que Carvalho, entendendo que a linha de baixo no


choro “trouxe”, mesmo que de uma maneira informal, uma lógica de construção baseada na
música europeia e em sua organização formal (relativo ao conhecimento formal e estruturado).
E, claro, como já mencionamos acima, misturado com a tradição africana em território
brasileiro, o que implica muitos outros aspectos musicais e sociais pertinentes ao seu
desenvolvimento.
Partindo para o foco do nosso estudo, vimos que as baixarias estiveram presentes
desde a virada do século XIX para XX, até se estabelecerem no violão, em definitivo, na década
de 1950. Quando juntamos todas as informações analisadas por nós, podemos afirmar que
algumas características chaves estiveram presentes ao longo de todo o século XIX. Vamos aos
pontos principais.
A função estrutural apareceu em 20 dos 22 exemplos transcritos por nós. O ponto
interessante é percebermos, que com o passar do século, a linha de baixo foi ganhando
contornos cada vez mais amplos e incorporando novos elementos rítmicos e melódicos, assim
como ampliando sua atuação na estruturação das músicas. Com o tempo, foi deixando de
somente fechar as seções para se estabelecer como uma frase de ligação, através do aumento
do seu tamanho, entre as várias partes da música – inclusive, podendo preparar mudanças de
tonalidade, por exemplo. É importante dizer que a função estrutural da linha de baixo não virou
uma regra obrigatória, mas que, como Braga (2002) bem descreve, virou um elemento
importante dentro da construção de uma boa baixaria.
A tipologia das baixarias também é algo interessante de se perceber com o passar
do tempo. E, por questão lógica, as baixarias estão em todas as músicas analisadas. As frases
mais usadas em nossa análise usam notas diatônicas aos acordes maior e menor. Porém,
somando-se a essas, vieram frases com notas cromáticas, fragmentos de escala mista, que como
já explicamos anteriormente, são passagens que misturam notas diatônicas, cromáticas e arpejos
em uma mesma frase, e os arpejos. O conceito dos tipos de baixarias foi recolhido de Braga
(2002), e vamos descrevê-los da maneira abaixo:
 Baixaria diatônica: contém notas da escala do acorde.
 Baixaria cromática: caracteriza-se pelo uso de cromatizações ou fragmentos da escala
cromática.
 Baixaria arpejada: usam-se os arpejos dos acordes do momento.
 Baixaria mista: contém as três baixarias descritas anteriormente.
74

Nossas baixarias foram se transformando e se sistematizando ao longo da primeira


metade do século XX. É significativo percebemos que frases feitas em 1910 continuaram sendo
usadas na década de 1960, como o 3o e 4o compasso, de Carnaval de 1910, comparado com o
10o e 11o compasso, de Receita de Samba, como na figura 28 abaixo. Pela natureza tonal do
choro, continuamos usando ainda muitas dessas baixarias até hoje, 2020. Esse apontamento,
como podemos comparar através da figura 28, reforça a certeza de que o conhecimento é um
processo de muitas mãos.

Figura 28 - Comparação entre as frases do violão e da tuba, em Receita de Samba e Carnaval de 1910

Fonte: Transcrições de Pellegrini (2005, p. 189) e do autor (2020).

Desde a Vacina Obrigatória, de 1904, até Ingênuo, seja no violão, tuba, oficleide
e/ou saxofone, todos os instrumentistas transcritos neste trabalho usaram em maior ou menor
volume o conceito técnico de “direcionalidade”; seja através de baixarias rítmicas e suas
inversões, ou sentida nas baixarias melódicas, principalmente, em frases mais curtas.
Um pequeno parêntese. No começo de nossa análise ainda não tínhamos certeza de
que os elementos musicais seriam repetitivos, nem exatamente quais seriam esses. Por isso,
fomos amadurecendo nossa nomenclatura, buscando uma formatação. Aproveitamos conceitos
e nomes de Carvalho (2006) e Braga (2002) e traremos outros nomes e conceitos de outros
autores no segundo e terceiro capítulos.
As articulações são elementos de extrema importância em uma linguagem musical.
Tanto nos sopros, quanto nas cordas, eles estão presentes na performance do instrumentista e
no estudo do instrumento, seja um estudo formal ou informal. Vemos o exemplo de Belinha, de
1904, em que a tuba impulsiona o grupo para frente usando em sua condução a articulação
staccato. Em passagens mais rápidas e com frases maiores, pudemos ver o uso de legato em
exemplos como Carnaval de 1910. No violão, o uso dessas articulações passa a ser possível de
observar a partir de 1940, sendo que a qualidade das gravações possibilita a audição mais
fidedigna de detalhes do áudio. De um modo geral, o violão incorporou o legato de maneira
consistente. O staccato tradicional é usado no violão em momentos de ataque seguido de breque
ou pausa. Contudo, o violão desenvolveu em uma técnica própria, parecida com o staccato- o
75

efeito de “cortar o som”, ou abafá-lo continuamente. A esse efeito, que gera um som abafado e
percussivo, foi dado o nome de pizzicato, que virou uma maneira própria de acompanhar alguns
ritmos mais balançados como o maxixe, por exemplo. Em nossos exemplos, demos o nome de
abafamento ou abaf. Braga (2002) ainda denomina esse som específico de efeito tuba.
Através da nossa análise histórica, concluímos que esses quatro elementos musicais
(a função estrutural, a tipologia das baixarias, a direcionalidade e as articulações) são essenciais
à boa construção dessas linhas de contracanto. Braga (2002) e Caetano (2011) colocam em seus
métodos de violão de sete cordas esses quatro elementos como indispensáveis para a boa
construção de uma linha de “baixaria”. Os dois violonistas acrescentam discussões, que ficaram
de fora do escopo da nossa pesquisa, como o uso da dedeira e o preenchimento harmônico.
Sendo o foco final de nossa pesquisa as baixarias nos contrabaixos elétrico e acústico, não
achamos necessários incluí-los em nossa discussão.
O que faremos no próximo capítulo é entender qual foi a Herança herdada pelas
linhas de baixo do choro e discutir, mais especificamente, a adaptação dos elementos
idiomáticos presentes nas linhas do violão para os contrabaixos. Para isso, faremos a análise de
inúmeros exemplos de linhas de sete cordas, em diversas formações musicais, e sua adaptação
aos contrabaixos elétrico e acústico.
A decisão de delimitar nossa discussão entre o violão e o contrabaixo, se deu por
três motivos. O primeiro foi por um motivo técnico e de sonoridade. Os dois instrumentos usam
a técnica de cordas dedilhadas ou pinçadas, embora o contrabaixo tenha desenvolvido a sistema
de apoio ao pinçar a corda. O segundo motivo é orquestral. Tanto o violão, na formação
regional, quanto o contrabaixo em formações de trio e quarteto, possuem a responsabilidade de
conduzir a linha de baixo; ao contrário dos instrumentos de sopros de acompanhamento
analisados por nós, como o oficleide e o bombardino, que tocavam a linha melódica tenor, ou
mesmo baixo, tendo sempre o apoio de um violão que garantia os baixos dos acordes. E,
finalmente, por ser o violão, o instrumento que formatou em definitivo o resultado sonoro
dessas linhas de “contracantos graves”, que tudo indica ter vindos dos instrumentos de sopro
(ARAGÃO, 2011, p. 117, 205).
76

2 ESTRUTURAÇÃO DA LINHA DE BAIXO NO CHORO


Este segundo capítulo de nossa dissertação utilizará as características chaves
delimitadas em nosso primeiro capítulo como material metodológico para as análises
comparativas entre os instrumentos violão de sete cordas e os contrabaixo elétrico e acústico.
Essas características chaves, que podemos compreender como os elementos musicais
idiomáticos inerentes a uma boa linha de baixo no choro, serão denominadas a partir de agora
de Características Básicas e de Elementos Técnicos.
As Características Básicas irão abranger dois elementos primordiais na estruturação
de uma linha de baixo: a direcionalidade e a função estrutural. Essas características estruturais
foram investigadas dentro de uma perspectiva histórica, buscando compreender a herança
recebida pelo choro de outros gêneros musicais, assim como a influência de fatores histórico-
sociais.
Seguindo essa sequência metodológica, mostramos que o choro herdou estes
elementos estruturais intrínsecos à construção de uma linha de baixo da música de concerto e
das bandas de música. Vimos também, através de exemplos e de análises, que as Características
Básicas estão presentes de maneira consistente na elaboração das linhas de baixo no choro. A
fundamentação do baixo do acorde, que é uma característica primordial à linha de baixo, não
será mencionada de maneira separada, por ser parte sine qua non a qualquer tipo de linha de
baixo.
A partir dessa discussão mais abrangente, na qual buscamos similaridades ou
influências históricas da música de concerto e do repertório escrito para as bandas civis e
militares no Brasil, fecharemos nossa discussão para elementos pertencentes somente ao idioma
do choro. Uma análise musical desses elementos idiomáticos pertencentes às linhas de baixo
no choro, como a tipologia das baixarias, as articulações, o uso da dedeira e do
acompanhamento harmônico, foi feita buscando os pontos convergentes e divergentes quanto à
adaptação dessas mesmas linhas de baixo do violão de sete cordas para os contrabaixos elétrico
e acústico.
Esses Elementos Técnicos (idiomáticos) vistos nas linhas de baixo do violão de sete
cordas no choro já foram descritos de maneira organizada nos métodos de violão de sete cordas
de Luiz Otávio Braga (Braga, 2002) e Rogério Caetano (CAETANO, 2010, organizado por
Marco Pereira). Em Braga, ganharam o nome de “Técnicas de Baixarias”, e em Caetano, de
“Elementos Técnicos”, e são os pontos essenciais vistos nas baixarias do choro, podendo ser
utilizados em maior ou menor medida, de acordo com a melodia da música e a performance do
77

instrumentista. Adotamos a terminologia de Caetano (2010).


Para além dos pontos propostos em nossa análise, as adaptações entre os
instrumentos levarão em conta os aspectos técnicos de cada instrumento, que hora dificultam,
e hora facilitam, a performance analisada. Em alguns exemplos, tentamos indicar, mesmo que
de maneira superficial, pois isso implicaria estudos cognitivos, qual o nível esperado do músico
para ter êxito no uso de uma determinada linha. Com isso, esperamos encontrar “modos de uso”
para os contrabaixistas, ao final deste capítulo.
Se, no primeiro capítulo, colocamos um período determinado para a nossa análise
(de 1900 até 1967), acreditando ser esse o período em que as baixarias se estabeleceram de
forma definitiva nos violões de sete cordas do choro, neste segundo capítulo, como o intuito foi
a comparação entre o violão de sete cordas e os contrabaixos, entendemos que não há a
necessidade de fecharmos um escopo de tempo.
Partimos, então, para as características básicas herdadas pelo choro.

2.1. HERANÇAS DA MÚSICA DE CONCERTO


Segundo Carvalho (2006, p. 43), as linhas de baixo na cultura musical ocidental,
tanto no âmbito da música popular quanto no âmbito da música erudita, guardam semelhanças
quanto à sua origem, função e estrutura. O pesquisador descreve que as mesmas estão
relacionadas, na verdade, ao surgimento da tonalidade, no final do Renascimento, “onde o
sistema maior-menor se estabelece, e com exceção das músicas atonais, mantém sua
importância até os dias de hoje”.
A ideia de tonalidade surge em função de uma série de transformações na
organização musical, em função da substituição gradual de uma escrita polifônica por uma
homofônica. Deixamos anotado que porque os compositores buscam uma ruptura com o
período anterior, a polifonia, o acompanhamento no Barroco busca uma transição para um
modelo novo, porém com “as antigas ferramentas de estruturação musical” (DIAS, 2015, p.
132). Ou seja, mesmo fazendo o uso do contraponto como ferramenta para o acompanhamento,
este não tem mais o caráter polifônico de outrora, “oferecendo uma base bem estruturada sobre
a qual a voz solista possa aparecer com maior clareza, destacando os afetos da palavra cantada”
(DIAS, 2015, p. 132).
A mudança, iniciada no Barroco, influenciará toda a história posterior, criando o
que chamamos hoje de música tonal (uma organização sons baseada nas relações entre os
acordes, seus graus e escalas). E essa mudança, de uma composição de caráter polifônico para
78

o homofônico, faz nascer uma linha de baixo que governa as progressões harmônicas
(direcionalidade), as cadências (estruturação em frases e períodos) e a função estrutural (que
diz respeito as formas musicais com divisão de compassos).
Carvalho (2006) descreve alguns aspectos históricos das origens das linhas de baixo
no século XVII. A discussão em torno do surgimento dessas linhas abrange, entre muitos
pontos, a evolução das técnicas de execução (o plural se deve aos vários instrumentos que
podiam ser responsáveis pela linha de baixo no período), o aperfeiçoamento de técnicas de
construção dos instrumentos graves (ligado à luteria), assim como a modificação das formações
musicais (o aumento do tamanho dos grupos musicais) e das salas de concertos.
Segundo o mesmo pesquisador, foi no período Barroco que as linhas de baixo
tiveram um aumento na sua importância em contraponto à melodia principal, surgindo o baixo
cifrado ou baixo contínuo. A linha de baixo, após o surgimento do contínuo, incorporou “todos
os aspectos importantes a esta: era a base rítmico-harmônica, possuía interesse melódico e
contrapontístico, e era elemento fundamental na estruturação da forma das composições”
(Carvalho, 2006, p. 45). Continuando, “ele não servia apenas de base para as outras partes, mas
determinava também todo conteúdo harmônico e formal, por esta razão alguns compositores e
teóricos do Barroco acreditavam ser o contínuo a obra musical propriamente dita” (SADIE,
2001, apud Carvalho, 2006). Dias, acompanhando Friedrich (2001), reafirma essa ideia,
afirmando que o basso continuo assumiria a forma de um resumo da partitura completa, como
parte de órgão na música litúrgica concertada. Dias, inclusive, em sua tese sobre o papel do
contraponto no desenvolvimento da harmonia, aponta que a partir do século XVII, diversos
autores italianos, como Bianciardi (1607), Agazzari (1607), e Penna (1679), indicam uma
relação intrínseca entre o conhecimento de contraponto e a aprendizagem do acompanhamento.
E que, para isso, é importante “compreender o entendimento do contraponto como elemento
estrutural a partir do qual se desenvolve a prática do baixo contínuo (...)” (DIAS, 2015, p. 130).
A pesquisa de Dias fortalece o que Carvalho apontou anteriormente, que o baixo
era a base rítmico-harmônica (lembrando que a harmonia no século XVII está intimamente
relacionada ao contraponto), e possuía um tratamento melódico e uma função estrutural (ligado
à forma musical).
Dito isso, seguimos através da história, apontando que a partir do Classicismo
vários instrumentos começam a assumir a função do baixo, ao mesmo tempo em que a
organização musical baseada no baixo contínuo começa a cair em desuso. Além do violone, do
órgão, do cravo, da viola da gamba, do violoncelo e do fagote, do período Barroco, novos
instrumentos começam a ser usados, nos grupos de música, para realizar a linha do baixo, como
79

o contrabaixo, a tuba o contrafagote e o clarone.


Segundo Carvalho (2006), ao “final do Classicismo, todos estes instrumentos
graves passam a ter suas partes separadas, designadas pelos respectivos nomes na partitura,
sendo que todos podiam desempenhar, ou não, a função de baixo (…)”. E a “linha de baixo
mantém a sua função estrutural e harmônica durante todo o período Clássico e Romântico e, no
século XX, no âmbito da música tonal, estas funções continuam a ser exercidas” (CARVALHO,
2006, p. 13).
Se o período Barroco norteou e estruturou toda a composição da linha de baixo
posterior a ele, seja na música erudita, ou na música popular, podemos afirmar que sendo o
choro uma música tonal, recebeu toda essa herança da música de concerto.
Outro ponto essencial sobre a influência da música de concerto é a ligação umbilical
existente entre o choro e as músicas para as danças de salão europeias, que chegaram ao Brasil
no século XIX. Polcas, valsas, mazurcas, schottisches, quadrilhas e habaneras começaram a
participar da cultura musical do Rio de Janeiro, principalmente após a chegada da corte
portuguesa, em 1808.
Nolasco (2017, p. 24), afirma que no “início, como apontam vários autores, entre eles
Kiefer (2013), Tinhorão (2010) e Cazes (1998), o choro era uma maneira peculiar de interpretar as
danças europeias de salão que invadiram o Brasil durante o século XIX”. Essa prática implicava
também em um ambiente singular de interações socioculturais. Segundo o autor, “Anacleto é
considerado, ao lado de Antônio Callado, Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga, um dos
principais responsáveis pela nacionalização das danças europeias” (NOLASCO, 2017, p. 24).
O importante é percebermos que, sendo o choro influenciado pelas músicas das
danças europeias, e estas compostas e organizadas dentro das regras formais da música tonal
europeia, a herança recebida pelo choro da música de concerto é inexorável.

2.2 HERANÇAS DAS BANDAS DE MÚSICA


O choro herdou das bandas militares e civis instrumentos de sopro que foram
utilizados para acompanhamento nos grupos pequenos a base de flauta, cavaquinho e violão
(ou derivado dessa formação). Como expusemos no primeiro capítulo, o número de
instrumentistas de oficleide, bombardino, tuba e trombone atuantes nos grupos de choro,
descritos no livro de Alexandre Gonçalves Pinto, é muito alto, comparativamente aos demais
instrumentos tradicionais do choro, como o violão, o cavaquinho e a flauta.
As bandas militares fizeram parte das tradições musicais europeias. Com isso, as
80

teorias e técnicas de performance e instrumentação das bandas comungaram com a tradição de


escrita e performance dos demais tipos de música orquestral18; inclusive com a separação entre
as linhas de baixo grave e médio-grave.
De uma maneira formal ou informal (pois não há comprovação sobre tal fato) esse
conhecimento chegou à música dos chorões antigos por meio dos músicos que tocavam tanto
nas bandas militares quanto nas sociedades musicais, orquestras de teatros e ranchos
carnavalescos. Afinal, de uma maneira estruturada ou não, toda escrita para formações de sopro
derivou dentro de um mesmo percurso histórico.
Podemos deduzir que essa forma ou maneira de organização dos sons (que
denominamos de orquestração ou arranjo), e que seguia a lógica estruturada da tradição musical
europeia, foi vivenciada por dezenas de músicos de sopro que conviveram, tanto no ambiente
organizado e formal das bandas e orquestras, quanto no ambiente livre e informal das festas
regadas a choro. A troca vivida nesses dois tipos de ambientes aconteceu nos dois sentidos, com
músicos de choro ingressando nas bandas, e vice-versa.
Nolasco Junior (2017), em sua dissertação O Choro e suas Interações com a Banda
do Corpo de Bombeiros do Rio Janeiro, estudou essa relação em pormenores. O autor descreve
que músicos destacados, como “Anacleto de Medeiros, Albertino Pimentel (o Carramona),
Irineu de Almeida(o Irineu “Batina”), Cândido Pereira da Silva (o Candinho Trombone)
Antônio Maria Passos, Joaquim Luiz de Souza, Casimiro Rocha, Geraldinho, Irineu Pianinho,
João Ferreira de Almeida (o João Mulatinho), Lica (o Lica bombardão), Nhonhô Soares, Pedro
Augusto e Arthur Nascimento (o Tute)” (Nolasco Junior, 2017), tocaram nos dois ambientes e
ajudaram a estabelecer essa relação tão próxima entre essas duas formas de organização
musical.
Acreditamos também que o repertório teve um papel muito importante por revelar
a afinidade cultural (que vai para além da música) existente dentre esses músicos que atuavam
em ambos os ambientes. Nolasco Junior (2017, p. 168), descreve com clareza sobre o repertório
compartilhado entre esses dois ambientes:

Outra categoria observada diz respeito ao repertório que transitava pelo cenário das
primeiras gravações realizadas no Brasil. Danças como a polca, a valsa e a schottisch

18
As bandas militares e civis do século XIX e XX sofreram grande influência das pequenas bandas renascentistas
dos séculos XIV, XV e XVI chamadas de Alta Musike. Posteriormente, este formato foi se modificando, sendo
conhecido como Harmoniemusik com a introdução de instrumentos com clarinetes e flautas já no século XVIII
(BINDER, 2006, p. 16). No entanto, existe uma conexão de escrita entre os diversos grupos instrumentais por
todas estas estarem fixadas nas cortes europeias. Basta observar que essas formações de metais foram usadas por
vários compositores, como Haendel e Mozart, por exemplo.
81

compunham a maior parte do repertório gravado na fase mecânica, ganhando traços


peculiares nas interpretações dadas pelos chorões. Uma parcela desse repertório,
situada no todo das gravações, era composta por músicos integrantes da BCBRJ.
Muitos tinham suas composições gravadas pelos grupos, pela própria BCBRJ e por
outras bandas do cenário carioca. Exemplos da circularidade do repertório também
puderam ser encontrados em peças que foram gravadas em comum pela BCBRJ e por
grupos de choro.

A troca intensa de conhecimento acontecia nos encontros regados a choro, como


batizados, aniversários e festas em casa de famílias, e naqueles organizados pela Loja
Cavaquinho de Ouro- ponto de música referencial entre músicos da primeira e segunda geração
de chorões, como Quincas Laranjeiras, Mário Álvares, Carramona, entre outros.
Nós acrescentaríamos que a maioria desses instrumentistas de sopro ligados ao
choro e inseridos nas bandas militares também participaram dos muitos ranchos
carnavalescos19, que surgiram de maneira mais organizada no início do século XIX. Ameno
Resedá, Flor de Abacate, Filhas da Jardineira, Triunfo das Camélias, Pragas do Egito e muitos
outros ranchos mesclavam instrumentos de cordas e percussão, com os instrumentos de sopro
das bandas militares. E seguiam a maneira estruturada de escrita musical da escrita para as
bandas, embora tivessem um número bem menor de instrumentistas de sopro.
Gostaríamos de chamar a atenção para a influência das linhas de baixo dos
instrumentos graves e médio-graves das bandas ou ranchos, recebida pelos grupos de choro.
Para isso, é importante ressaltar os inúmeros instrumentistas de sopro para acompanhamento,
como bombardino, bombardão, tuba, oficleide e trombone, que atuavam tanto nas bandas,
orquestras, sociedades e ranchos, quanto nos grupos de choro à base de violão, cavaquinho e
flauta (ou outro solista como clarinete ou bandolim).
Alguns desses músicos conquistaram uma grande importância histórica, como
Irineu de Almeida “Batina” (oficleide, trombone e bombardino) e Candinho Trombone
(trombone). Outros, só não caíram no ostracismo graças ao livro de Alexandre Gonçalves Pinto,
em primeiro lugar, e ao grande número de pesquisas científicas sobre o choro, a partir dos anos
2000.
E, de fato, os instrumentistas de sopro que faziam “acompanhamentos para choros”

19
O termo “rancho carnavalesco” começa a ser utilizado a partir da década de 1910 para designar os grupos
organizados do carnaval carioca. É importante dizer que existiam diferenciações entre organizações ou sociedades
carnavalescas, ranchos de reis e dos blocos carnavalescos. Renata de Sá Gonçalves descreve sobre essa
transformação em seu artigo Cronistas, folcloristas e ranchos carnavalescos: perspectivas sobre a cultura popular
(2003).
82

e que circulavam nas bandas e sociedades musicais do Rio de Janeiro eram muitos. Alguns
ficaram conhecidos por participarem de gravações importantes ou de grupos que tiveram
destaque, como Luiz Gonzaga da Hora (bombardão), Jorge Seixas (violão e bombardino) e Lica
Bombardão.
A maioria desses músicos que circulavam, tanto em bandas e corporações de música
da cidade quanto nos encontros regados a choro, foram preservados na história pelo relato do
carteiro Gonçalves Pinto. Músicos como João Ferreira de Almeida (bombardino da BCBRJ20),
Geraldino (bombardino na BCBRJ), Santos “Nhonhô” (bombardino na BCBRJ), Salustiano
Trombone (primeiro trombonista do 7o Batalhão de Infantaria do Exército), Deodato Matta
(trombonista em sociedades e ranchos musicais), Felippe Trombone (trombonista em
sociedades musicais), Eurico (Sociedade Musical Os Africanos), Accyoli (trombonista em
orquestras de teatros), Gilberto Bombardino (bombardino na Sociedade Dansante Musical),
Alma de Maçon (bombardino), Ismael Brasil (trombone e bombardino) são alguns dos 53
nomes descritos em verbetes no livro O Choro.
Em relação ao repertório, a pesquisa de Binder (2006) reforça a existência de um
elo umbilical entre o ambiente formal das bandas e do ambiente informal das festas regadas a
choro. Binder afirma que o repertório escrito para as bandas, e vendido nas casas de música do
Rio de Janeiro, em 1872, como A Minerva, passavam pelas mesmas danças de salão que
influenciaram o nascimento das músicas urbanas brasileiras, entre elas, o choro. “Eram
dobrados, marchas, quadrilhas, polcas, schottisches, valsas, redovas, polonesas, mazurcas,
varsovianas, aberturas e fantasias, todas, sem nenhuma exceção, seguidas da expressão para
Banda Militar” (BINDER, 2006, p. 80). Um pouco a frente, o autor ressalta que:

À exceção das marchas e dobrados, tais gêneros musicais estavam muito longe de
serem descritos como “militares”. Tal repertório estava em voga no segundo reinado
e transitava por outros círculos que integrava o que Cristina Magaldi chamou de
Subcultura Operática: adaptações de óperas e outros gêneros de música teatral que
extrapolavam o restrito círculo das casas de óperas e alcançavam contextos mais
informais como as casas da recém formada burguesia carioca, os salões de danças, as
paradas carnavalescas, as ruas (MAGALDI, 2004, p. 55), sem deixar de participar,
conspicuamente, do repertório das bandas de música.

Souza (2009), em sua tese “As Gravações Históricas da Banda do Corpo de


Bombeiros do Rio de Janeiro (1902-1927): valsas, polcas e dobrados”, descreve a mesma
relação existente entre as bandas, as danças de salão e a nascente música urbana brasileira

20
Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro (BCBRJ).
83

através de um repertório comum a todos. Discussão, esta, já apontada por Binder e por Nolasco
Junior.
Souza (2009, p. 42) afirma que:

a chegada das danças europeias no Brasil oitocentista inaugura uma etapa importante
na formação do repertório destinado às bandas de música. Sem dúvida, a valsa e a
polca foram as que mais se destacaram, provavelmente pelo impacto cultural da
coreografia em pares enlaçados. Já o dobrado figurava, também, entre as peças mais
executadas pelas bandas, pois era uma ferramenta musical imprescindível para
homenagear fatos ou personalidades de destaque à época. Assim, esses três gêneros
musicais formaram um tripé sobre o qual a banda de música consolidou sua presença
na indústria emergente do disco.

Baseado nas relações acima, quer na quantidade de números de instrumentistas de


sopro no acompanhamento de choros em ambientes informais das festas em casa de família,
descritos por Gonçalves Pinto (1936), quer na pesquisa de Nolasco Junior (2017), que
estabelece parâmetros como repertório, instrumentistas, instrumentos, compositores, gêneros
musicais do repertório, gravações mecânicas e características musicais (análise rítmica,
harmônica e melódica) para medir a relação entre os dois tipos de música (focado na BCBRJ),
e, ainda, na pesquisa de Binder, que mostra a influência do repertório das danças de salão
europeias nas bandas e na música popular, podemos concluir que as linhas de baixo na nascente
música urbana brasileira sofreram a influência das bandas militares.

2.3 CARACTERÍSTICAS BÁSICAS


A herança recebida pelo choro da tradição musical europeia de escrita foi resultante
da circulação dos músicos, seus instrumentos e um repertório em comum, nos ambientes
formais e informais onde a música acontecia: seja em eventos oficiais, festas particulares,
comemorações religiosas, cafés, teatros de revista e outros.
Podemos dizer que características ligadas à condução da linha de baixo, como a
direcionalidade e a função estrutural, assim como as particularidades dos novos padrões
rítmicos oriundos do jeito africanizado de se dançar as danças europeias da moda, se
estabeleceram na nascente música urbana brasileira num fluxo de mão dupla dentro desses
diversos ambientes, e teve como mediadores culturais os músicos, os seus instrumentos e um
repertório em comum (NOLASCO, 2017, p. 33 e 167).
Por entendermos ser características que permeiam e estruturam toda a construção
das linhas de baixo, daremos o nome de Características Básicas, para os conceitos de
84

direcionalidade e de função estrutural. Entendemos que esses dois conceitos musicais, herdadas
pelas linhas de baixo no choro, ajudaram a moldar os padrões de acompanhamento das
baixarias, como foi detalhadamente apresentado anteriormente.

2.3.1 Direcionalidade
Dentro das funções da linha de baixo assimiladas historicamente pelo choro,
iniciamos nossa discussão pela direcionalidade.
Em seu método de violão chamado “O Violão de Sete Cordas: Teoria e Prática”
(Editora Lumiar, 2002), para detalhar os pormenores da construção das baixarias no choro, Luiz
Otávio Braga escreve que o uso de inversões nos encadeamentos harmônicos fortalece a ideia
da direcionalidade e, por tanto, é esperado de um bom violonista de sete cordas. Como falamos
anteriormente, o autor escreve que:

o baixo, por ser um dinamizador do movimento das partes, quase nunca fica estático,
revezando-se as inversões. Agindo assim, estaremos sempre produzindo uma linha
com certo contorno melódico na região; daí que ter o completo domínio dos acordes
e suas inversões é fundamental para a boa execução” (2002, p. 34, grifo do autor).

Por fim, finaliza com a ideia de que “a boa baixaria ata-se, portanto, a esse duplo
caráter: boa condução baixo/melodia, já indicando uma direcionalidade, mais o caráter de
melodia imposta como contrapartida da melodia principal” (BRAGA, 2002, p. 34).
Para estabelecermos uma comparação com a música europeia, tomamos de
Schoenberg (1993, p. 112) a ideia de como se deve estruturar os baixos. O autor afirma que em:

consideração à fluência, um baixo que não seja um contracanto deve fazer uso de
inversões, mesmo que elas não sejam harmonicamente necessárias (...) que deverá,
portanto, mover-se no âmbito de uma tessitura definida (exceto quando há intenções
especiais) e possuir certo grau de continuidade. O ouvido está acostumado a prestar
muita atenção ao baixo, e mesmo uma nota curta é percebida como uma voz
“contínua”, até que a nota seguinte seja executada como uma continuação (melódica).

O autor reforça ainda que, sendo a linha de baixo uma segunda melodia, “deve ser
ritmicamente equilibrado, deve evitar a monotonia (…), deve possuir uma certa variedade de
perfil e deve fazer bastante uso das inversões” (SCHOENBERG, 1993, p. 146).
Essas afirmações, de Schoenberg e de Braga, quando colocadas lado a lado, nos
mostram com muita clareza que as baixarias do choro estão intimamente ligadas à tradição de
escrita da linha de baixo na música europeia. O uso de inversões, quando não estiver sendo
usado o contraponto à melodia principal, é aconselhável nos dois tipos de música,
85

proporcionando um movimento na linha de baixo que ajudará na condução do grupo e na


condução das vozes da harmonia. Os contrapontos, ou contracantos, como preferimos
denominar, também promovem a direcionalidade e ajudam a conduzir o grupo no pulso
determinado.
Para demonstrar a direcionalidade no choro, mostramos alguns exemplos de linhas
de baixo no choro e sua análise.

2.3.2 Direcionalidade no choro através de Exemplos


Nos três exemplos a seguir indicamos a ideia de direcionalidade das linhas de baixo
no violão, através do uso de inversões e contracantos melódicos curtos. Como afirmamos no
primeiro capítulo, nomeamos essas linhas de baixarias melódica e rítmica. Tanto com a baixaria
melódica quanto com a baixaria rítmica, demonstramos as características descritas de uma boa
linha de baixo discutidas até agora: direcionalidade, variedade de perfil, fluência, quebra de
monotonia, inventividade, caráter melódico e boa relação melodia/baixaria.
Seguimos com os exemplos, nas figuras 29, 30 e 31.

2.3.2.1 Direcionalidade em Os Cinco Companheiros

Figura 29 - Os Cinco Companheiros

Fonte: Transcrições do autor, 2020

A figura acima, transcrita do álbum do flautista Altamiro Carrilho (Chôros Imortais,


Copacabana, de 1964, e composta por Pixinguinha e Bendito Lacerda), exemplifica o conceito
de direcionalidade, discutido anteriormente, através do uso da baixaria melódica. Enquanto a
melodia principal fica parada, ou com pouco movimento melódico, a linha do baixo caminha
com frases curtas e descendentes, que repousam nas inversões dos acordes, criando interesse
86

melódico e harmônico. Aqui, além do uso das inversões dos acordes, a direcionalidade é
impulsionada pelo movimento descendente da baixaria melódica que, evitando a monotonia,
torna-se uma linha inventiva e interessante para os ouvidos.

2.3.2.2 Direcionalidade em Hilda (Teu Beijo)

Figura 30 - Hilda (Teu Beijo)

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

Esta transcrição de Hilda (Mário Alvarez), do álbum de Jacob do Bandolim, Primas


e Bordões (RCA Victor/1962), nos mostra a importância das inversões de acordes na condução
da baixaria rítmica, e o uso das aproximações cromáticas (assunto que discutiremos logo a
frente), na direcionalidade das baixarias. Observamos que usando o recurso das inversões,
mesmo uma linha de baixo pouco melódica (baixaria rítmica) atinge o seu objetivo de construir
uma direcionalidade que “impele o conjunto para frente” (Braga, 2002).
87

2.3.2.3 Direcionalidade em Os Cinco Companheiros / parte C

Figura 31 - Os Cinco Companheiros

Fonte: Transcrições do autor, 2020.

Retornamos a este clássico das rodas de choro, composto por Pixinguinha e


Benedito Lacerda, para mostrar sua parte C. Fazendo uso das inversões e das frases para
encadear os acordes, o violonista Dino Sete Cordas21 repete a ideia da parte A, com o uso de
notas da escala e passagens cromáticas. O movimento descendente, apoiado por frases
melódicas repousadas nas inversões dos acordes subsequentes, produz o efeito de
direcionalidade discutido aqui, empurrando o grupo para frente.

2.3.3 Função Estrutural


As origens da linha de baixo podem ser encontradas na Europa no início do século
XVII, com o surgimento do baixo contínuo, segundo Carvalho (2002).
As divergências políticas dentro da Igreja Católica, primeiro, com a Reforma
Protestante e, em segundo, com a Contrarreforma Católica, repercutiram de forma definitiva na
produção musical em meados do século XVI. A simplificação do texto musical nas duas
correntes religiosas, ainda no século XVI, mesmo com abordagens diferentes, reorganizaram a

21
É importante contextualizar que o Regional de Canhoto, que acompanhou Altamiro Carrilho na gravação desse
LP, começou no Conjunto Gente do Morro, de Benedito Lacerda na década de trinta. Posteriormente, o Gente do
Morro virou o Regional de Benedito Lacerda, que além de Canhoto, no cavaquinho, tinha os jovens Dino e Meira,
nos violões de seis cordas. Esse trio, Dino-Meira-Canhoto, se tornou um dos mais importantes núcleos da história
da música brasileira, gravando centenas de fonogramas nos anos posteriores e sistematizando a linguagem dos
regionais e dos grupos de choro que vieram posteriormente.
88

música nas igrejas, trazendo uma mensagem mais direta aos fiéis através da monodia (canto e
acompanhamento). Isso, em contraposição à polifonia, que teve seu ápice no período anterior:
o Renascimento.
O rompimento com a polifonia, mas não com o contraponto (Dias, 2015), fortaleceu
a linha de baixo no Barroco, que passou a ter um papel estrutural fundamental nas composições.
A técnica do contraponto passa a ser usada como um meio e não mais como um fim, valorizando
a linha de baixo (contínuo) em contraponto à melodia principal, dentro do novo estilo monódico
(DIAS, 2015, p. 131-132).
Podemos tentar resumir o baixo contínuo como o alicerce estrutural da composição,
contendo em si todas as indicações para a compreensão harmônica. Consequentemente, por
determinar a harmonia da música como um todo, o baixo contínuo delimitava a estrutura formal
da mesma, sendo considerado por muitos compositores e teóricos do Barroco a obra musical
propriamente dita (SADIE, 2001, apud Carvalho, 2006).
Olhando dessa perspectiva, os procedimentos de elaboração do baixo contínuo, no
século XVI e XVII, foram indissociáveis da forma musical, visto que esse era o elemento chave
no acompanhamento musical. O acompanhamento do baixo cifrado constituía uma linha
melódica grave ou médio-grave, que dava suporte estrutural para a interpretação harmônica e
melódica da mão direita do organista na construção do acompanhamento da melodia principal
(voz ou um instrumento solista). Dizemos interpretação harmônica, pois, como indicação de
cifragem, era determinada por números que indicavam o tipo de acorde: a mão direita do
organista era livre para compor as vozes intermediárias que, em conjunto com a melodia e a
linha de baixo, davam a ideia de harmonia (apud DIAS, 2015, p. 115).
Em conjunto com o baixo contínuo, fizeram parte das transformações musicais
surgidas a partir do Barroco, o aparecimento da ideia de tonalidade, a estabilidade dos grupos
fixos de música, o surgimento ou a fixação de formas musicais que se tornaram clássicas, a
padronização das partituras, o aperfeiçoamento das técnicas de construção dos instrumentos e
o aprimoramento das escolas técnicas de execução. Por tudo isso, o Barroco é considerado um
dos períodos mais revolucionários da música.
E em relação à linha de baixo e sua contínua transformação, podemos ver que
mesmo após a divisão da mesma em diferentes linhas, no Classicismo e no Romantismo
(separação das linhas dos diferentes instrumentos), mantiveram a função estrutural e, segundo
Schoenberg (1993), deve ser tratada como uma melodia secundária, com todos os requisitos
necessários a uma boa construção melódica.
Essas características estruturais, que se iniciaram no Barroco e que continuaram se
89

modificando com o passar dos séculos, foram herdadas pelas músicas nascidas nas Américas.
E com o choro, e com todas as músicas urbanas nascidas na virada do século XIX para XX no
Brasil, não foi diferente. Carvalho (2006, p. 14) aponta que essas linhas chegaram em nosso
continente muito bem estruturadas:

A música popular nascida nas Américas herdou vários aspectos estruturais da música
erudita, entre eles o tonalismo. Iniciando o seu desenvolvimento quando a fase tonal
da música erudita atinge o seu auge, na virada do século XIX para o XX, a música
popular recebeu a linha de baixo já bem estruturada e a maioria dos instrumentos
graves já aprimorados, tanto na construção quanto nas escolas técnicas de execução.
A novidade do baixo surgido nas Américas está nos novos padrões rítmicos e no uso
de tambores, reforçando a marcação. Uma das funções primeiras da música popular
foi servir de base para as danças em festas religiosas e pagãs, e nos cortejos,
procissões, marchas e outras manifestações coletivas. O que todas estas atividades
tinham em comum, era a necessidade de uma marcação que estimulasse e cadenciasse
os movimentos, fossem eles passos de dança, ou de uma marcha. Esta marcação foi
reforçada pelo acréscimo de instrumentos de percussão ao acompanhamento,
formando a base rítmico-harmônica dos grupos, que é conhecida como seção rítmica.
Com a mesma importância que o contínuo na música barroca, a seção rítmica foi
fundamental para o desenvolvimento da música popular, estruturando as formas e
definindo os estilos.

Para estabelecermos uma relação com o choro, podemos ver em Braga (2002) que
as baixarias do choro também carregam em si a responsabilidade da função estrutural, mesmo
que de uma perspectiva estética diferente. De uma maneira prática, o autor indica que uma boa
baixaria encerra uma parte ou a peça toda e aponta mudança de parte ou o retorno a mesma. Ou
seja, uma boa linha de baixo no choro possui a importância, ou melhor, a função de apontar a
estrutura da música (grifos nossos): determina a forma da composição.
Braga (2002, p. 32) descreve que:

a baixaria, sendo costumeiramente vista como os momentos mais vistosos da linha


total do baixo – que impele o conjunto para frente –, deve ser elaborada (…) nos
momentos em que: 1) encerra-se uma parte ou peça toda; 2) nas viradas (ou chamadas)
de partes de retorno; 3) nos momentos em que a melodia principal faz pausa ou se
mantém pouco ativa (notas longas) ou nas soldaduras; 4) nas obrigações, que são
baixarias corriqueiramente consagradas or arranjos ou que são inerentes à composição
original.

Vale dizer que nas introduções de choros clássicos, principalmente na performance


ao vivo, a linha de baixo também tem um papel fundamental, definindo a entrada de todos os
outros músicos, assim como andamento a ser seguido.
Centenas de fonogramas de choros e sambas poderiam comprovar o papel estrutural
das baixarias dos violões e instrumentos de sopro ao longo da história da música brasileira.
Fonogramas como 1X0 (gravação de Benedito Lacerda e Pixinguinha), Displicente (Idem),
90

Ainda Me Recordo (Idem), Bem Brasil (gravação de Altamiro Carrilho), É Do Que Há


(gravação de Jacob do Bandolim), Chorando Baixinho (gravação de Abel Ferreira), Coralina
(gravação de Joel Nascimento), Minha Homenagem (gravação do Rago e Seu Conjunto), Chora
Cavaquinho (gravação do Regional de Canhoto), Proezas de Solon (gravação de Jacob do
Bandolim), Sarravulho (gravação de Altamiro Carrilho), entre muitos outros, possuem
baixarias que delimitam as partes da música.
Como na Direcionalidade, daremos alguns exemplos para entendermos na prática
como o choro assimilou a função estrutural da linha de baixo à sua maneira.

2.3.4 Função Estrutural no Choro através de Exemplos


Analisamos alguns trechos de fonogramas com linhas de baixo para entendermos e
exemplificarmos o papel e a importância da função estrutural em uma baixaria. Os exemplos
a seguir, nas figuras 32, 33, 34, 35, 36, 37 mostram o violão de sete cordas nas situações
descritas abaixo:

1. mudança entre as partes ou seções da música (figura 32 e 33)

2. nas partes de retorno (repetição de uma parte ou seção) (figura 34)

3. início de música (figura 35)

4. final de música (figura 36)

5. baixarias de obrigação (figura 37)

2.3.4.1 Função Estrutural em Haroldo no Choro

Figura 32 - Haroldo no Choro

Fonte: Song Book Choro, Vol. 1; transcrição e organização de Mário Sève, Rogério Souza e Dininho -Rio de
Janeiro: Lumiar Editora, 2007.
91

Esta gravação e composição do clarinetista Abel Ferreira (álbum Brasil, Sax e Clarineta) exemplifica o papel na
mudança de parte discutida acima, evidenciando a importância da linha de baixo na função estrutural da música.
Vemos o repouso da melodia principal no final da parte A (quarto compasso da figura acima), enquanto o violão
de sete cordas encaminha, através de uma frase melódica, a parte B. Escala diatônica e passagens cromáticas
foram usadas na construção das baixarias. A modulação para o relativo menor é muito usada no choro, por isso
veremos vários exemplos com este tipo de modulação.

2.3.4.2 Função Estrutural em Proezas de Solon

Figura 33 - Proezas de Solon

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

A célebre gravação de Proezas de Solon (de Pixinguinha e Benedito Lacerda), com


Pixinguinha e Benedito Lacerda, mostra a linha de baixo tocada pelo sax tenor de Pixinguinha,
que, como já referimos no primeiro capítulo deste trabalho, foi um dos mais importantes e
influentes personagens da história do contraponto no choro. Após duas frases ritmicamente
iguais (segundo e terceiro compassos da figura acima), que respeitam a cadência harmônica, a
linha de baixo resolve no acorde de Fa maior no quarto compasso. Para fazer a passagem para
a parte B, na tonalidade de Dm menor, Pixinguinha toca o arpejo de Fá maior no primeiro tempo
do compasso e, em seguida, toca uma frase descendente, que repousa na 3a Maior do primeiro
compasso da parte B (um A7). A frase descendente reforça a mudança de parte e indica a
mudança de tonalidade.
O violão de seis cordas, tocado pelo jovem Horondino Silva, futuro Dino Sete
Cordas, que também é responsável pela linha do baixo no fonograma, apoia a melodia do sax.
Como o próprio violonista afirmou posteriormente, em diversas ocasiões, seu aprimoramento
nas baixarias foi através das linhas do violonista Tute e imitando o saxofone de Pixinguinha na
época das gravações dos fonogramas históricos da década de 1940. A interação entre
Pixinguinha e Dino, Dino e Meira, Irineu e China, Tute e Candinho, e muitas outras duplas do
92

choro, mereceria um estudo aprofundado para sistematizar o conceito de arranjo para duas e
três vozes nas linhas de contracanto no baixo.

2.3.4.3 Função Estrutural em É Do Que Há (Luiz Americano)

Figura 34 - É do que Há

Fonte: Transcrição de André Belliene (Braga, 2002, p. 68).

O clássico do clarinetista Luiz Americano, interpretado por Joel do Nascimento e


mais um time de bambas do choro (Raphael Rabello, Maurício Carrilho, Beto Cazes e Mitsuru
Inoue), no álbum Chorando de Verdade, de Joel Nascimento, é um ótimo exemplo para mostrar
a baixaria como função estrutural (conduzindo para a repetição da parte C). A transcrição foi
feita por André Bellieni e está em Braga (2002, pg. 68).
Raphael Rabello aproveita o repouso da melodia no compasso 3 da figura acima
para encadear a sequência de acordes, que irá reconduzir a parte C. É notável a maneira como
ele entrelaça o acorde final da primeira parte C, um E7, com o acorde inicial do C2, um A maior.
De maneira inteligente, Raphael Rabello mantém um baixo pedal (a nota Mi) por um compasso
e meio com um desenho rítmico forte, o que altera a sensação de repouso harmônico que temos
quando se repete uma parte. Ao criar um leve suspense para a entrada desse novo C, Raphael
mostra como uma linha de baixo pode ter variedade de perfil, fluência e ser inteligente e
inventiva.
93

2.3.4.4 Função Estrutural em Flor de Abacate

Figura 35 - Flor de Abacate

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

Composta em 1915 por Álvaro Sandim, em homenagem ao rancho carnavalesco de


mesmo nome, do qual foi diretor de harmonia, este exemplo mostra a linha de baixo na função
de introdução. Na gravação transcrita acima (álbum Só Gafieira!, de Zé da Velha e Silvério
Pontes), o violão de Valter Silva soa bem percussivo, devido à maneira como o músico força a
dedeira em cima da corda. A introdução define o andamento da música e define a entrada do
resto do conjunto, confirmando um outro papel na estruturação da música.

2.3.4.5 Função Estrutural em André de Sapato Novo

Figura 36 - André de Sapato Novo

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

A transcrição do fonograma gravado por Abel Ferreira, em 1976 (álbum Brasil, Sax
e Clarineta), mostra um final de choro típico. Tanto em roda, quanto em gravação, o arpejo do
acorde final repousando a tônica no segundo tempo, ou a variação disso, indica uma conclusão
clara e forte. Embora, isoladamente, o arpejo acima não seja uma frase tão robusta, sua
importância e sua força na finalização da música vem por ser ele, na verdade, um reforço da
94

conclusão da melodia principal; ou seja, a melodia principal que finaliza no primeiro tempo do
compasso tem, em seguida, o grupo inteiro reforçando a mesma tônica no segundo tempo. Os
responsáveis pela linha de baixo acima foram o violão de sete cordas de Dino Sete Cordas e o
trombone de Raul de Barros, além do contrabaixo acústico de Sérgio Barroso, na nota Sol final.
Como curiosidade, este clássico do choro, uma composição de André Victor Corrêa,
foi gravada inúmeras vezes por artistas como Pixinguinha e Benedito Lacerda, Altamiro
Carrilho, Carlos Poyares, Sivuca, Alceu Maia, Abel Ferreira, Jacob do Bandolim, Regional de
Canhoto, Evandro do Bandolim e muitos outros artistas brasileiros. Compositor, clarinetista e
saxofonista, André Corrêa foi diretor de harmonia do afamado Rancho Ameno Resedá e
funcionário da Imprensa Nacional (ver verbete em CASA DO CHORO, 2021).

2.3.4.6 Função Estrutural em Implicante

Figura 37 - Implicante

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

As baixarias de obrigação em Implicante (Jacob do Bandolim) fogem um pouco do


assunto discutido por nós por pertencer mais à composição que à performance. Porém, mesmo
assim, sem nos alongarmos, consideramos importante mostrar um exemplo e afirmar que esse
tipo de linha de baixo é muito comum no universo do choro. E, para além disso, essas frases de
respostas à melodia principal (compassos 4, 5, 6, 7, e 8) se encaixam nos conceitos esperados
por um bom performer de violão de sete cordas no choro. Isso é, também respeitam as regras
de um bom acompanhamento descritas por nós. As resoluções das frases de obrigação repousam
95

nas terças dos acordes de E7, A7 e D Maior.


Por fazerem parte da composição, essas linhas de contraponto melódico raramente
mudam, como observamos na transcrição acima da gravação dos violonistas Yamandú Costa e
Valter Silva, de 2010, que reproduzem exatamente a mesma frase da gravação original do
próprio Jacob do Bandolim, de 1958.

2.4 CONCLUSÃO DA ESTRUTURAÇÃO DAS LINHAS DE BAIXO NO CHORO


Discutida a direcionalidade e a função estrutural das baixarias, que chamamos de
Características Básicas, seguiremos agora com algumas conclusões sobre os elementos
idiomáticos do choro, como a tipologia das baixarias, as articulações e as técnicas específicas;
tudo isso, claro, discutido comparativamente com o baixo elétrico e o baixo acústico.
A adaptação para os contrabaixos veio da transcrição e análise de trechos das
baixarias dos violões, a fim de definir pontos em comum e diferentes recursos interpretativos
nos instrumentos envolvidos. Os elementos idiomáticos ajudaram a definir o repertório
escolhido e as passagens a serem discutidas. Por essa lógica, escolhemos passagens de músicas
que exemplificaram os elementos idiomáticos desejados. Como resultado, entendemos na
prática o que é possível aproveitar da linguagem e da técnica do violão de sete cordas dentro
do universo das baixarias no choro para os contrabaixos elétrico e acústico.
Assim como Dino Sete Cordas aproveitou e adaptou para seu violão as frases de
Pixinguinha22, buscamos aproveitar o que for possível dessa linguagem tão significativa para o
contrabaixo.
O intuito, como já dito anteriormente, não é a reprodução “ipsis litteris” da
linguagem do violão nos contrabaixos, ou a intenção de substituição do violão pelo contrabaixo
no conjunto regional de choro, mas o conceito de um uso artístico e performático livre, porém
totalmente embasado na história e nas “regras musicais” definidas ao longo dos anos, por
dezenas de instrumentistas de choro do país.

2.5 ELEMENTOS IDIOMÁTICOS OU TÉCNICOS


A adaptação de um estilo de frase de um instrumento por um outro é sempre algo

22
Ver trabalhos científicos de Taborda (1995), Pellegrini (2005), Geus (2009), Sève (2015), Lima (2018) e
Lamas (2018).
96

delicado. Ligado diretamente à escuta (GREEN, 2002) e à performance (que poderíamos


traduzir como conhecimento do estilo abordado e sua prática musical), a adaptação é um
processo que engloba a técnica mecânica do instrumento, o resultado sonoro e o ambiente em
que será executado o produto final dessa performance; ou seja, o grupo musical.
Sendo nossa discussão uma análise comparativa entre as frases do violão de sete
cordas, as baixarias, e sua adaptação para os contrabaixos, separamos os diversos elementos
idiomáticos (ou técnicos) em itens e os comparamos com a performance no contrabaixo do
conteúdo adaptado. O resultado prático e performático é que o nos interessa, por isso
procuramos a performance convergente, ou o que denominamos de adaptação direta. O que não
se encaixou nesse escopo foi alvo de uma adaptação possível para o contrabaixo, levando em
consideração a sonoridade idiomática do choro.
Para reforçar, lembramos que os elementos idiomáticos, que foram os parâmetros
para nossa análise comparativa, são aqueles nomeados por Braga (2002) de “Técnicas de
Baixarias” e por Rogério Caetano como “Elementos Técnicos” (CAETANO, 2010). A partir
deste momento, empregamos a nomenclatura de Caetano, como referido no capítulo anterior. É
importante frisar que esses dois métodos são o referencial teórico/prático para nossas
comparações e análises. Esses materiais escritos, pensados para a aplicação prática e direta,
foram também os únicos materiais que encontramos a estipular parâmetros para se chegar à
performance pura.
Acreditamos que sem esse referencial metodológico, que compreende as
Características Básicas (direcionalidade e função estrutural) e os Elementos Técnicos (a ser
discutido neste capítulo), o contrabaixista dificilmente conseguiria colocar em prática um
estudo sistemático das baixarias nos instrumentos.
Os Elementos Técnicos compreendem discussões em torno da Tipologia das
Baixarias e das Articulações e Técnicas Específicas do Violão, e determinaram o caminho para
nossa análise comparativa entre as baixarias no violão e nos contrabaixos.
A definição de Braga (2002), que indica como princípio básico de uma baixaria “o
movimento melódico entre baixos de acordes sucessivos”, foi empregada somente quando
tratamos da baixaria melódica; visto que na baixaria rítmica não temos uma linha melódica ou
movimento melódico como princípio, mas sim, o movimento dos baixos dos acordes com
tônicas e inversões.
Por fim, é importante ressaltar que a análise comparativa entre os instrumentos,
através das baixarias escolhidas dentro do repertório do violão de sete cordas, resultou numa
linha adaptada e escrita para os contrabaixos. No caso específico dos pontos divergentes, é
97

importante realçarmos que propusemos uma solução musical conveniente, a partir do nosso
ponto de vista (nossa experiência artística). Os Elementos Técnicos estarão divididos em
subcapítulos, para facilitar a leitura e o entendimento. Vamos a eles.

2.5.1 Tipologia das baixarias


Carvalho (2006) percorreu o caminho das linhas de baixo brasileiras de 1870 a
1940, passando por aspectos históricos e estruturais em sua dissertação “Os Alicerces da Folia:
a linha de baixo na passagem do maxixe para o samba”. O autor argumenta que “Herdeira de
toda tradição melódico-harmônica da música europeia, a linha de baixo na música popular
surgida nas Américas, incorporou a rítmica africana, multiplicando-se numa infinidade de
novos padrões” (CARVALHO, 2006, p. 11). Estes novos padrões resultaram em dois tipos de
baixarias no choro, que já definimos no primeiro capítulo: a baixaria rítmica e a melódica.

A primeira está condicionada à repetição de um padrão rítmico a cada um ou dois


compassos, e possui um papel mais estruturante no acompanhamento harmônico. A segunda,
mais contrapontística, com passagens diatônicas e cromáticas, possui o papel de embelezar a
linha de baixo, se aproxima de uma segunda melodia, porém sem perder a sua função primária
de sustentar as demais vozes da harmonia.
Discutimos estes conceitos no Capítulo 1, e analisamos vários exemplos apontando
as baixarias rítmicas e melódicas. A seguir, tratamos, então, da tipologia das baixarias melódicas
sob a perspectiva da adaptação das mesmas para os contrabaixos.
Nossa discussão compreende o entendimento dos diversos tipos de baixaria
melódica, que dividimos em baixaria diatônica, baixaria cromática, baixaria por arpejo e
baixaria mista (o tipo de baixaria que se utilizará de pelo menos duas das anteriores), e de um
exemplo de baixaria rítmica, sempre seguido de suas adaptações para os contrabaixos e da
decorrente discussão. Apontamos como podemos incorporar tecnicamente e mecanicamente a
fraseologia do violão de sete cordas (o idioma) nos “novos instrumentos”.

2.5.1.1 Baixaria Melódica Diatônica ou Baixaria Diatônica


A baixaria diatônica será definida como o movimento melódico entre baixos de
acordes sucessivos (BRAGA, 2002), usando frases com notas diatônicas aos acordes do
momento.
98

O primeiro exemplo analisado, figura 38, foi retirado da introdução da música


Receita de Samba, de Jacob do Bandolim, e apresenta uma frase longa com movimento
diatônico em cima da escala de descendente até a quinta aumentado do acorde de D7, no
compasso seguinte.

Figura 38 - Introdução de Receita de Samba/violão

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

A adaptação direta (sem modificações) para os contrabaixos seria como a figura 40,
abaixo.

Figura 39 - Adaptação direta de Receita de Samba/contrabaixo

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

A solução de reprodução da frase do violão, neste caso, funciona perfeitamente para


o baixo elétrico. Não vemos problema de execução de uma frase dessa natureza para um
estudante dedicado de contrabaixo. A questão da oitava nos leva a ponto divergente em relação
ao baixo acústico. Ao contrário do baixo elétrico, mesmo para um contrabaixista acústico
profissional, tocar a frase acima de forma limpa, clara e segura no andamento 106 (bpm), não
99

é uma tarefa simples. Claro que, aqui, entra a questão pessoal relacionada à capacidade musical
de cada instrumentista. Porém, uma solução de mais fácil execução é possível. E o que podemos
sugerir, neste caso, são duas adaptações simplificadas.

Figura 40 - Adaptação simplificada 1 de Receita de Samba/contrabaixo Acústico

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

Figura 41 - Adaptação simplificada 2 de Receita de Samba/contrabaixo Acústico

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

Em busca de soluções para este processo de adaptação, lidamos constantemente


com variáveis e com situações em que o gosto ou a preferência estética interferirão e
determinarão o resultado final. As duas adaptações acima darão certo. O que definirá o uso de
uma ou outra é o nível do instrumentista e, em alguns casos, o ambiente o qual a performance
acontecerá.
Neste caso, e como em outros casos adiante explorados, poderíamos ter vários
outros resultados, usando a escala diatônica para a substituição ou adaptação da frase original.
O ponto primordial foi manter a ideia da frase pelo fato de ser uma baixaria extremamente
conhecida nas rodas de choro. Na forma como a apresentamos acima, acreditamos que a
adaptação não irá proporcionar nenhum incômodo aos demais músicos do grupo, por usarmos
a mesma terminação (as notas Si bemol e Ré, no segundo compasso), assim como o desenho
rítmico idêntico ou similar.
100

Diferente seria, por exemplo, se fôssemos pensar em uma baixaria nova para a
música de Jacob do Bandolim, sendo que poderíamos alongar o tamanho da frase ou criar algo
completamente diferente. Não daria certo num ambiente sem ensaio, das rodas de choro.
Para finalizar, a execução da escala em movimento diatônico não apresenta maiores
dificuldades técnicas, tanto no baixo acústico quanto no baixo elétrico. O ponto chave é estar
atento à formação instrumental na qual o contrabaixista esteja atuando, assim como o ambiente
acústico da performance. Sabemos que a linha do baixo, seja em qualquer instrumento
contrabaixo, apresenta uma difração muito grande, perdendo-se em ambientes acústicos não
tratados. Esse cuidado é necessário em ocasiões como na figura 38, por apresentar um
andamento rápido. Para isso, é importante acharmos sempre uma solução que vá ao encontro
de uma proposta estética e funcional, como fizemos nas figuras 40 e 41, com uma frase bastante
conhecida no ambiente do choro.

2.5.1.2 Baixaria Cromática


Partimos do mesmo princípio da anterior: movimento melódico entre baixos de
acordes sucessivos, usando passagens em movimentos cromáticos, como na figura 42 abaixo.

Figura 42 - Frase para retorno parte A de Bem Brasil/violão

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

A frase da composição do flautista Altamiro Carrilho mostra mais uma vez que a
adaptação das frases do violão para o contrabaixo acústico exige uma grande maturidade
musical. Se podemos fazer uma adaptação direta para o contrabaixo elétrico, já para o acústico
teremos que olhar com uma maior atenção. Os questionamentos feitos para a escala diatônica,
em relação ao baixo acústico, se repetirão novamente neste exemplo da figura 42. A execução
101

dessa frase de maneira limpa e afinada exigiria um baixista acústico de nível alto ou
profissional. Assim, optamos por apresentar três tipos de adaptação: direta (nível alto),
simplificada (nível básico) e livre (nível intermediário). Dessa forma, acreditamos que
abarcaremos os vários níveis de instrumentistas e conseguiremos chegar a um resultado musical
satisfatório. Na figura 43 abaixo, a adaptação direta.

Figura 43 - Adaptação direta da baixaria cromática da música Bem Brasil/contrabaixos

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

A adaptação direta da frase acima funciona perfeitamente para ambos os baixos.


Preferencialmente para o baixo elétrico. Para o acústico, a frase exigirá uma técnica evoluída
do instrumentista. Porém, em se tratando de altura de som (frequência) para soar no
instrumento, essa frase, começando no Mi 1 (um) é uma boa frase para uma adaptação direta.
Apresentamos uma outra adaptação abaixo.

Figura 44 - Adaptação simplificada da baixaria cromática da música Bem Brasil/contrabaixo acústico

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

Acima, vemos uma possibilidade de adaptação em que preservamos a essência da


frase (escala cromática ascendente em cima do acorde de E7), apoiando os tempos fortes de
cada grupo de quatro notas baseados nas notas da frase original. O resultado é uma condução
102

simples (arpejo de E7 com 5a aumentada) que não exige nenhuma dificuldade técnica avançada
para um estudante de nível médio. Por fim, na figura 45, veremos uma adaptação livre visando
facilitar a frase original e, ao mesmo tempo, manter seu caráter.

Figura 45 - Adaptação livre da baixaria cromática da música Bem Brasil/contrabaixo acústico e elétrico

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

A adaptação livre da frase original feita acima é uma tentativa de reproduzir a ideia
da frase original, porém tecnicamente mais simples. Mantivemos os grupos de quatro
semicolcheia, porém, subindo somente até a nota Dó 1 (um) e fazendo um movimento contrário
para finalizar na nota Lá 1 (um). Tiramos, com isso, a subida cromática até o Lá 2 (dois), que
exige uma técnica mais apurada para o contrabaixista acústico. O intervalo de terça entre a linha
de baixo e a melodia foi substituído pelo intervalo de sexta, estabelecendo uma correlação mais
próxima para nossos ouvidos (pois quando invertemos uma oitava qualquer uma das notas do
intervalo de terça, fazemos uma sexta).

2.5.1.3 Baixaria por Arpejo


O arpejo é muito usado na construção das linhas de baixo no choro. Historicamente,
os instrumentos de sopro, como o bombardino e o oficleide, usaram consideravelmente esse
tipo de frase para preencher a harmonia e parte rítmica do acompanhamento. O violão, por
conseguinte, também. E o motivo lógico foi pela facilidade em executar o mesmo, visto que ao
tocar as notas de um acorde de maneira dedilhada, automaticamente, o violonista está tocando
o arpejo de um acorde.
Nos contrabaixos, o músico terá que desenvolver esta habilidade fazendo um estudo
de todos os tipos de acordes em arpejo pelo braço inteiro, assim como em todos as tonalidades.
Além disso, este estudo facilitará enxergar o braço de uma maneira mais direta e auxiliará nos
103

demais gêneros musicais, assim como no estudo da improvisação.


A baixaria por arpejo é definida como um movimento melódico entre baixos de
acordes sucessivos, usando frases com passagens em arpejos dos acordes do momento, como
apresentado na figura 46, abaixo.

Figura 46 - Baixaria em Arpejo na música É do que Há/violão

Fonte: Transcrição de André Belliene (Braga, 2002, p. 68).

A baixaria de Raphael Rabello na música de Luís Americano, É Do Que Há, mostra


os arpejos de C7 e B7 (2o, 3o e 4o compassos). Nos compassos dois e três, o arpejo segue o
mesmo desenho, começando na quinta e terminando na terça ascendente. No acorde seguinte,
no 4o compasso, o arpejo de B7 começa na tônica e resolve na tônica do acorde seguinte (um
E7). A adaptação para o baixo elétrico pode ser feita de maneira direta (figura 47).

Figura 47 - Adaptação da baixaria em Arpejo da música É do que Há/baixo elétrico

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

Para o baixo acústico, o segundo arpejo de B7 (do 4o compasso) poderia ser feito
na oitava de baixo, o que facilitaria tecnicamente a digitação da frase. O arpejo oitava abaixo
possibilitaria um ganho de expressividade, dado a dificuldade de execução do arpejo na mesma
oitava do violão.
104

Figura 48 - Adaptação da baixaria em Arpejo na música É do que Há/4o compasso oitava abaixo/baixos acústico
e elétrico

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

Outra possibilidade, seria a substituição de um arpejo por outro (figura 49). Assim,
manteríamos a sonoridade, facilitando, contudo, a digitação e valorizando a expressividade.
Vale reforçar que as frases das figuras 48 e 49, embora pensadas para o baixo acústico, poderiam
ser muito bem aproveitadas para baixo elétrico.

Figura 49 - Adaptação da baixaria em Arpejo na música É do que Há/com substituição do arpejo no 4o


compasso/baixos acústico e elétrico

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

O próximo exemplo que daremos foi transcrito da música Vibrações, outro clássico
composto por Jacob do Bandolim. Novamente gravado pelo violonista Dino Sete Cordas, a
linha do violão caminha por baixos rítmicos até a sequência de dois arpejos no acorde de G7;
2o tempo do compasso 3 e 1o temo do compasso 4. A ligação entre os dois arpejos foi feita com
uma aproximação cromática: o Fá#.
105

Figura 50 - Baixaria em Arpejo na música Vibrações/violão

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

Seguimos com a adaptação direta da baixaria por arpejo do violão e sua análise.

Figura 51 - Baixaria em Arpejo na música Vibrações/contrabaixos

Fonte: Adaptação do autor.

A adaptação direta da baixaria do violão soa muito bem nos baixos acústico e
elétrico. Novamente, levantamos a dúvida quanto a dificuldade de execução da linha, tendo
como referência um estudante de nível médio de baixo acústico. A técnica exigida para fazer
soar essa aproximação cromática (dentro do arpejo do acorde), de maneira clara e afinada é alta.
Por isso, propusemos uma baixaria mais simples para o baixo acústico, usando o mesmo arpejo
de G7. A aproximação cromática será retirada para fazermos a subida e a descida na mesma
digitação. Com isso, acreditamos facilitar a execução da frase em arpejo. Ligaremos este arpejo
com uma frase cromático, que sugere a sonoridade da frase original do violão, como mostrado
na figura 52.
106

Figura 52 - Baixaria simplificada em arpejo na música Vibrações/baixos

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

O arpejo, sendo um elemento técnico muito utilizado na construção das baixarias,


merece sempre um cuidado especial em sua adaptação, pela dificuldade de suas digitações. Sua
natureza exigente, com saltos e longas extensões, é sempre um grande desafio, principalmente
para os contrabaixistas acústicos.
É possível construir frases com arpejos para todos os níveis de estudantes,
conseguindo manter este tipo de sonoridade dentro de uma linha de baixo no choro.
Dificuldades técnicas de “fazer soar” no instrumento serão recorrentes nas adaptações. Por isso,
é sempre importante entendermos para qual nível está sendo proposta a baixaria adaptada,
principalmente, se levarmos em conta o baixo acústico.

2.5.1.4 Baixaria Mista


Seguindo o modelo proposto, definimos como baixaria mista o movimento
melódico entre baixos de acordes sucessivos, usando frases que contenham duas das baixarias
já discutidas anteriormente; ou seja, baixarias diatônicas, cromáticas e por arpejo.
A fusão dos diferentes tipos de baixarias numa mesma frase seguirá a mesma lógica
de construção dos exemplos anteriores. Fatores técnicos ligados à execução e à sonoridade serão
sempre nosso maior desafio.
107

Figura 53 - Baixaria mista na música Sofres porque Queres/violão

Fonte: Transcrição de Braga (2002, p. 74).

Clássico de Pixinguinha e Benedito Lacerda, essa gravação do autor e do flautista


Benedito Lacerda, de 1946, realça, além do saxofone contrapontístico de Pixinguinha, o violão
de Horondino Silva, futuro Dino Sete Cordas. Analisamos somente a frase do violão.
O que vemos nos três primeiros compassos são duas frases curtas com resolução na
terça do acorde de G maior (resolução no 2o compasso) e G menor (resolução no 3o compasso).
Porém, podemos entender o trecho proposto como uma grande frase de três tempos, que começa
no segundo tempo do primeiro compasso (acorde de G Maior) e finaliza no primeiro tempo do
terceiro compasso (acorde de Gm menor). Dino, e já vimos outros exemplos assim, modifica a
tipologia da baixaria no meio da frase.
A nossa adaptação será direta considerando o andamento médio 85 bpm e a tessitura
da baixaria.

Figura 54 - Baixaria mista na música Sofres porque Queres/contrabaixos

Fonte: Adaptação pelo autor, 2020.

A adaptação para os contrabaixos elétrico e acústico de forma direta é muito


possível de execução. Como não tivemos nenhum tipo de divergência, separamos mais um
exemplo para nossa análise (composição de Pixinguinha e Benedito Lacerda).
108

Figura 55 - Baixaria mista na música Os Cinco Companheiros/violão

Fonte: Transcrição de Pellegrini (2005, p. 93).

O exemplo de baixaria mista acima, do violonista Dino Sete Cordas, reúne dentro
de uma frase longa passagens diatônicas, cromáticas e por arpejo. É um exemplo muito vistoso,
pois além dos tipos diferentes de baixarias temos três tipos de desenhos rítmicos diferentes:
tercina de semicolcheia, semicolcheia e colcheia. Tanto na adaptação para o baixo elétrico,
quanto para o baixo acústico, optamos por modificar a frase original. Dino Sete Cordas inicia a
frase com uma passagem cromática da nota Sol até a Si Bemol. Do Si Bemol, que é a 9a menor
do acorde de A7 até o Fá # do acorde seguinte, um D7, Dino mescla passagens diatônicas e por
arpejo. A última parte da frase foi tocada com passagem cromática, tal qual o seu início. A
adaptação de forma direta pode ser executada pelo baixo elétrico, como mostra a figura 56,
abaixo.

Figura 56 - Adaptação (1) de baixaria mista na música Os Cinco Companheiros/baixo

Fonte: Adaptação pelo autor, 2020.

Embora pareça agudo, a frase soa muito bem para o baixo elétrico, dentro da
109

perspectiva da condução no choro. Para o baixo acústico, a frase acima poderia ser usada, mas
apresentando um nível de dificuldade muito alto. Poderíamos adaptar de uma maneira diferente,
modificando a oitava da parte final da frase, como na figura 57, abaixo.

Figura 57 - Adaptação (2) da baixaria mista na música Os Cinco Companheiros/baixo acústico e Elétrico

Fonte: Adaptação pelo autor, 2020.

Essa segunda adaptação soa muito bem para o baixo elétrico, porém ainda não é a
ideal para o baixo acústico. A resolução na 3a de D7 (Fá #), através de uma frase em
semicolcheia começando na 3a de A7 (Dó #), nos parece muito grave para fazer soar no
instrumento. Por isso, fizemos mais uma adaptação visando solucionar essa equação, em que
jogaremos algumas notas uma oitava acima como mostra a figura abaixo.

Figura 58 - Adaptação (3) de baixaria mista na música Os Cinco Companheiros/baixo acústico

Fonte: Adaptação pelo autor, 2020.

Com essa estrutura acima, acreditamos chegar a um ponto interessante para a


sonoridade da frase original no contrabaixo acústico, mantendo suas notas originais.
Poderíamos ter mudado o tipo de frase buscando manter a sonoridade original. Mas no caso
acima, optamos por discutir a adaptação mantendo as notas originais.
110

2.5.1.5 Baixaria de Obrigação


Embora não tenha sido relacionada em nossos Elementos Técnicos, optamos por
abordar rapidamente a Baixaria de Obrigação, por entender sua importância no idiomático do
choro.
Esse tipo de baixaria, característica do choro, está ligada diretamente à parte
composicional do estilo, e foi muito usada por grandes compositores, como Irineu de Almeida,
Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Altamiro Carrilho e muitos outros. Ela foi descrita por Braga
(2002, p. 31) como baixarias “que nascem com a composição e dela não devem ser sacadas, a
não ser que um plano geral muito diferente do original seja construído”. Caetano (2010), por
estruturar seu livro de forma mais técnica, não menciona esse tipo de baixaria.
Contudo, se a abordamos em nossa discussão por sua importância no idioma do
choro, decidimos não analisá-la através de exemplos, por compreender que, tecnicamente, a
Baixaria de Obrigação se encaixa em algum modelo de baixaria discutido anteriormente
(diatônica, cromática, por arpejo ou mista).

2.5.1.6 Baixaria Rítmica


A linguagem já estabelecida dos contrabaixos em acompanhamentos para samba e
choro lembra as baixarias rítmicas dos violões no choro. O uso de padrões de acompanhamento,
que se repetem a cada um ou dois compassos, fazem parte da concepção das linhas de baixo
para todo contrabaixista. A parte musical, técnica e mecânica desse tipo de adaptação não trará
problema algum. Porém, o que difere, de forma considerável, é a quantidade de inversões de
acordes usadas pelo violão no choro.
Notoriamente, o contrabaixo se estabeleceu como o instrumento que toca a nota
mais grave do conjunto (fundamentação do acorde). Por isso, o uso das notas estruturantes
tônica e quinta na condução dos choros e sambas são frequentes. De maneira um pouco
diferente, a linguagem do violão, como estudamos anteriormente, veio de uma linguagem em
que sua linha de baixo era construída de maneira contrapontística. O violão segue a caraterística
de fazer “uso de inversões, mesmo que elas não sejam harmonicamente necessárias”, como já
citado em Schoenberg (1993), ou de “ser um dinamizador do movimento das partes, quase
nunca fica estático, revezando-se as inversões”, como já citado em Braga (2002).
Mesmo com essa diferença na concepção do acompanhamento, observamos que a
adaptação das baixarias rítmicas do violão para o contrabaixo poderá ser feita de maneira direta.
111

Figura 59 - Baixaria rítmica na música É do que Há/violão

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

Repare que o violonista usa inversões sempre privilegiando uma boa condução das
linhas de baixo. Inversões de terça, quinta e sétima foram utilizadas para a condução da parte
intermediária da seção A, de É Do Que Há (Composição de Luiz Americano).
A adaptação dessa linha de violão gravada por Dino Sete Cordas pode ser feita de
maneira direta.

Figura 60 - Adaptação direta da baixaria rítmica na música É do que Há/contrabaixos

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

Dessa forma, assim como em quase a totalidade das baixarias rítmicas, a nossa
preocupação estará na altura das notas, pois, como argumentamos, as dificuldades técnicas não
112

se constituirão como empecilho algum.

2.5.1.7 Conclusão sobre os Elementos Técnicos


Concluímos a discussão de nossos Elementos Técnicos e os vários tipos de baixarias
de forma muito positiva. A adaptação pode ser feita de algumas maneiras, visando sempre o
mesmo objetivo: incorporar (tecnicamente e mecanicamente) a sonoridade das baixarias do
violão de sete cordas nos ouvidos e nas mãos dos contrabaixistas.
Por isso, chegamos à conclusão de que, sempre num primeiro momento e visando
absorver o máximo da sonoridade do estilo, devemos tentar manter o máximo da frase original.
Num segundo momento, podemos mudar a altura da frase com transposições para oitavas acima
e abaixo. O terceiro momento poderá resultar em alguma mudança de frase, mantendo o “tipo
de baixaria” da frase original, como vimos nas baixarias feitas com arpejos. E, por fim, um tipo
de adaptação que passa por uma mudança completa da frase. Esse último tentará preservar
algum ponto da frase original, como o tipo de baixaria, a parte rítmica da mesma, ou mesmo o
tempo de duração ou tamanho da frase. Isso é, mesmo que distante, é importante trazer para o
contrabaixo o máximo possível da frase original, equacionando sempre o resultado sonoro final
(altura e frequência) e a parte técnica e mecânica da adaptação.
Os maiores problemas encontrados estão relacionados à capacidade de “fazer soar
as notas com clareza”, principalmente, no contrabaixo acústico.
O que temos como certo é que não existe uma regra matemática para as adaptações.
Como afirmamos anteriormente, muitas vezes o instrumentista poderá privilegiar aspectos
musicais ligados a estética, por exemplo, em detrimento de aspectos sonoros, como a clareza
de frase. Será sempre uma equação com muitas variáveis e que passará pelo filtro técnico,
estético e musical do instrumentista. Incluímos, também, nesse “filtro musical”, o ambiente que
este contrabaixista (e sua performance) estará inserido.
Contudo, vemos com muitos bons olhos o aproveitamento dos Elementos Técnicos
para o desenvolvimento de uma linguagem, se não nova, diferente da habitual para os
contrabaixistas. Pois, se perdemos um pouco do papel estruturante (ligado à harmonia) no uso
das baixarias melódicas no contrabaixo, ganhamos um colorido novo em nossas linhas de baixo,
ao absorvemos a linguagem dos violões de sete cordas.
113

2.6 Articulações e Técnicas Específicas


As articulações fazem parte do estilo interpretativo de todo gênero musical, e
também da natureza de cada instrumento, e da pronúncia ou dicção de cada instrumentista.
No choro, temos músicos pesquisadores, como Mário Sève (2015) e Gabriela
Machado (2019), que trataram das articulações e inflexões melódicas na interpretação de
melodias de choro de uma maneira muito rica.
Em relação ao caso específico do violão de sete cordas no choro, Borges (2008, p.
93) argumenta que “a articulação da baixaria é de fundamental importância e reforça o
idiomatismo do instrumento”, porém, pondera o pesquisador, “não há uma fórmula e nem uma
única maneira de executá-la”.
Pellegrini revela que as baixarias de Dino Sete Cordas, analisadas por ele, “se
comportam basicamente de duas maneiras: conduções em semínimas através de notas que
compõem os acordes (sob os quais são tocadas) e incursões melódicas mais articuladas que
fornecem contracantos à composição global de cada música” (2005, p. 55).
Ou seja, nas duas pesquisas, embora não focadas no estudo das articulações, realça-
se sua importância no idiomatismo do estilo.
Os métodos de Braga (2002) e Caetano (2010) tentam explicar de uma maneira
técnica o “como fazer” essas articulações, porém na mesma linha do que afirmado por Borges,
não conseguem estabelecer uma única maneira de se executá-las, creditando o uso ao sabor do
tempo e da experiência adquirida pela prática, e na “cópia” dos grandes violonistas do choro.
Acreditamos, como Sève, que, passando as articulações pelo caráter interpretativo
e de dicção do músico, seja solista ou acompanhante, as “variantes desse procedimento são
praticamente infinitas e passam por estilos individuais, podendo a elas somarem-se ainda outros
recursos, como efeitos, ornamentações, acentuações, mudanças de timbres etc” (2015, p. 237).
Sève se aprofunda, em sua tese dissertação “Fraseado do Choro: uma análise de estilo por
padrões de recorrências” (2015), sobre a expressividade implícita nas articulações, sob várias
óticas (fala, comunicação, pronúncia musical e outras interpretações).
Se as articulações dizem do instrumentista, e de sua expressão artística, não
propomos buscar uma fórmula ou lugar exato para seu uso, mas analisar se os contrabaixos
podem adaptar-se a algumas das ideias propostas e, com isso, ajudar a reforçar o idiomatismo
do choro nas linhas adaptadas para esses.
114

2.6.1 Legato
A definição de legato refere-se a um “termo que indica notas suavemente ligadas,
sem interrupção perceptível no som, nem ênfase especial; oposto de STACCATO” (Sève, 2015,
p. 33). Se o propósito é nos concentrarmos nos exemplos diretamente da performance do violão,
vamos a eles.

2.6.1.1 Legato na música Arabiando


O primeiro exemplo, na figura 61, foi retirado da música Arabiando (Esmeraldino
Sales) e possui uma série de legatos utilizando a corda solta do violão de sete cordas.

Figura 61 - Legato na música Arabiando/violão

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

Transcrito do disco de Yamandu e Valter Silva (2010), a linha foi por sua vez
transcrita do violão de aço do violonista Valter Silva. Com a sonoridade bem tradicional, o
violão de sete cordas soa bem definido e, ouvindo-se, percebe-se a força do toque através do
ataque do polegar (com a dedeira) na corda de aço. Poderíamos adaptá-la de forma direta para
o baixo elétrico, preservando a oitava do violão e as mesmas notas ligadas, figura 62.

Figura 62 - Legato na música Arabiando/baixo elétrico

Fonte: Adaptação do autor, 2020.


115

O legato para o baixo elétrico será um elemento técnico possível de adaptação


direta, devido à facilidade de execução do mesmo e ao idiomatismo do próprio instrumento,
que usa essa articulação com frequência e em diversos gêneros musicais diferentes.
Seja o legato ascendente (duas primeiras notas do 1o compasso), ou descendente
(todos os outros legatos), a tocabilidade é sempre possível, pois faz parte do que chamamos de
“usual” no instrumento.
Em compensação, o mesmo não pode ser dito para o baixo acústico. No ambiente
da música popular, o baixo acústico é tocado através do pizzicato e o uso de legatos é restrito,
devido à dificuldade de “fazer soar” as notas no instrumento.
Quando transportamos para o exemplo acima, a dificuldade aumenta, pelo
andamento da música e pela dificuldade de afinação. Os legatos poderão ser feitos
preferencialmente nas cordas Ré e Sol.
O exemplo abaixo, na figura 63, é para os contrabaixistas de nível avançado, pois
aproveitamos a frase inteira do violão, retirando somente os legatos no agudo do Fá 1 para o
Sol 1, do Lá 2 para o Sol 2, do Mi bemol 2 para o Ré 2 e do Dó 2 para o Si bemol 1. Retiramos
a ligadura do 2o para o 3o compasso para facilitar o salto e melhorar a dicção da frase no
contrabaixo. É importante deixarmos claro, novamente, que quando dizemos “contrabaixista de
nível avançado” estamos pensando na experiência própria de ter tocado essas linhas
(adaptações) em rodas de choro e apresentações com performance ao vivo.

Figura 63 - Legato na música Arabiando/baixo acústico nível avançado

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

Este exemplo inviabilizará a construção da linha de baixo para um estudante de


nível médio, visto que as frases dos dois primeiros compassos são a melodia da música
“Arabiando”; ou seja, não conseguimos modificá-las para uma forma mais simples de execução.
A título de exercício, poderíamos diminuir o andamento de 120 bpm para 80 bpm e modificar
116

a frase de resposta do 3o compasso para facilitar a tocabilidade da frase. Os legatos poderão


permanecer como escritos como no exemplo abaixo, na figura 64, por não se constituírem como
impedimento para a execução da frase.

Figura 64 - Legato na música Arabiando/baixo acústico nível médio

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

Acreditamos, que da maneira proposta acima, o estudante poderá tocar a linha de


baixo no andamento mais lento, estabelecendo como meta de estudo uma aceleração do
andamento de forma progressiva.

2.6.1.2 Legato na música Receita de Samba


O segundo exemplo, na figura 65, é um legato descendente de duas notas. O
exemplo abaixo, da composição e gravação de Jacob do Bandolim, com a baixaria do violonista
Dino Sete Cordas, servirá para discutirmos a sua funcionalidade nos contrabaixos. Veremos que
este tipo de legato com ligações entre duas notas descendente é perfeitamente aproveitado pelos
contrabaixos.

Figura 65 - Legato em Receita de Samba/violão

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

Na frase acima, de transição da parte A2 para o B, temos um legato muito


117

característico do violão, em que a nota ligada é uma corda solta do instrumento. Esse tipo de
legato, com corda solta, é muito usado em vários gêneros pelo violão, mas no choro, faz parte
da linguagem do violão.
Dito isso, o legato não apresentará nenhuma dificuldade técnica para sua adaptação
nos contrabaixos. Porém, para mantermos a característica da frase acima, optamos por mudar
as notas ligadas. Mantivemos a segunda nota solta, e, para isso, colocamos o legato nas notas
Si bemol 2 (Bb 2) e Lá 2 (A 2). Com isso, ganhamos uma sonoridade mais parecida com a
sonoridade dos violões, como vemos no exemplo abaixo, na figura 66.

Figura 66 - Legato em Receita de Samba/contrabaixos

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

A adaptação acima se mostra totalmente possível de performance nos contrabaixos


acústico e elétrico, muito em função do andamento e do tipo de legato descendentes de duas
notas separadas por semitom.

2.6.1.3 Stacatto
O stacatto é a articulação mais acessível de se tocar e adaptar aos contrabaixos. Em
Sève encontramos que “Segundo o Dicionário Grove de Música, para staccato (destacado) diz-
se de uma nota, durante a execução, separadas de suas vizinhas por perceptível silêncio de
articulação e que recebe uma certa ênfase, não exatamente MARCATO, mas oposto de
LEGATO” (apud Sève, 2015, p.33).
Este tipo de articulação não possui nenhuma especificidade técnica que
impossibilite sua performance nos contrabaixos, pois é somente a diminuição do tamanho da
duração da nota. Historicamente, o stacatto foi usado nos instrumentos graves das bandas
militares ou grupos de metais. Bombardão, tuba, bombardino, oficleide são exemplos de
instrumentos que usaram o stacatto para deixar o fraseado mais claro e inteligível e, com isso,
118

ajudar na direcionalidade. As frequências graves são as que mais causam reverberação e


difração, o que faz com o seu som demore mais para deixar de soar. Isso pode causar uma
mistura das notas no ambiente, deixando o som embolado. Por isso, na região grave, vemos
o uso de maneira recorrente do stacatto.
Vamos aos exemplos, nas figuras 67 e 68.

2.6.1.3.1 Stacatto na música Cabuloso

Figura 67 - Stacatto na música Cabuloso/violão

Fonte: Transcrição do autor, 2020.

Analisando Cabuloso (de Jacob do Bandolim), entendemos que a adaptação para os


contrabaixos poderá ser feita de forma direta, como no exemplo abaixo.

Figura 68 - Stacatto na música Cabuloso/contrabaixos

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

Segundo nossa experiência, o stacatto ajuda bastante no balanço da música. Em


alguns momentos, pode fazer o contrabaixo soar parecido com um tambor ou instrumento
percussivo grave, o que auxilia a parte rítmica da música sem perder a sua função harmônica.
119

De uma maneira geral, o stacatto está tão inserido na linguagem idiomática do


contrabaixo em gêneros como o samba, o maxixe, o frevo e o choro, que muitas vezes não
encontramos esse tipo de articulação em partituras. Isso nos leva a crer que, por estar em tal
grau subtendido na performance das linhas de baixo, o stacatto é uma articulação “notoriamente
esperada” do performer.

2.6.2 Pizzicato
Outra articulação muita usada, e que faz parte do idiomatismo do violão de sete
cordas no choro, é abafamento. Chamado por Braga (2002) de baixo tuba ou pizzicato e por
Caetano (2010) de pizzicato, estes autores divergem no como fazer o efeito, mas concordam na
importância do mesmo no idiomatismo do violão de sete cordas. Caetano descreve que o
pizzicato é “um efeito que se obtém pelo abafamento das cordas com a parte lateral da mão
direita apoiada sobre o rastilho” (Caetano, 2010, pg. 12). Enquanto Braga, indica que “a própria
mão esquerda corta a duração indicada na partitura, pela retirada sutil da pressão da mão”
(Braga, 2002, pg. 33).
A sonoridade percussiva é o resultado desta técnica, independentemente de como
fazê-la. E é muito perceptível nas gravações quando a mesma ocorre, tamanha a mudança da
sonoridade. Vários pesquisadores citaram o efeito do pizzicato em suas dissertações, como
Taborda (1995), Borges (2009), Pauletti (2017) e Lamas (2018), destacando a importância da
técnica no idioma do violão.
Em relação ao contrabaixo acústico, esta técnica será descartada prontamente. Além
da dificuldade técnica intransponível em relação à mão direita, o mais importante para nosso
estudo é que o resultado sonoro é pobre, apagado e sem a geração de harmônicos. A intenção,
quando se usa essa técnica, é que o som fique mais percussivo e se perceba a altura das notas
través do seu ataque. E isso não acontece no baixo acústico, pois as notas já morrem
naturalmente mais rápidas, em comparação com o baixo elétrico. Com isso, o efeito percussivo
esperado não acontece.
Porém, no contrabaixo elétrico, a técnica pode ser bastante utilizada, surtindo o
efeito “tuba” ou percussivo desejado. As duas técnicas de abafamento descritas acima podem
ser usadas para se chegar à sonoridade desejada. Consideramos a técnica de abafamento com a
mão direita mais adequada para o contrabaixo elétrico. Mas isso ficará à escolha do
instrumentista. Adicionamos um exemplo, para adaptarmos ao contrabaixo elétrico e discutir
seu resultado.
120

Um fato importante é desvencilhar o pizzicato do violão de sete cordas da


articulação stacatto, pois os sons são bastante diferentes, assim como seu uso. E outro ponto
importante é desvencilhar o abafamento da tradicional técnica pizzicato dos contrabaixos (em
que o contrabaixista usa a ponta dos dedos para tirar o som do instrumento). Dito isso, vamos
aos exemplos, nas figuras 69 e 70.

2.6.2.1 Pizzicato na música Ingênuo

Figura 69 - Pizzicato na música Ingênuo/violão

Fonte: Transcrição do autor, 2020

O exemplo acima, tirado da composição de Jacob do Bandolim, é interessante por


nos mostrar a técnica de pizzicato do violão em dois momentos diferentes. O primeiro é o
movimento ascendente de terças até as notas Ré e Fá #, o que caracteriza o acorde de D7. É
possível adaptar esse movimento de maneira direta. Caso o instrumentista tenha dificuldade em
fazer as duas notas simultaneamente, indicamos escolher uma das vozes, pois as duas
possibilitarão uma condução harmônica interessante e robusta.
O segundo momento é a frase do segundo compasso. Esta segunda frase se encaixa
perfeitamente na técnica do baixo elétrico, não exigindo nenhuma habilidade avançada para a
mão esquerda. Para a mão direita, será necessário o estudo de escalas e arpejos usando esta
técnica específica, até conseguir-se um som com ataque e brilho. A técnica, que segundo
Caetano usa a lateral da mão para abafar e o polegar para tocar, será idêntica no baixo elétrico,
podendo substituí-la, se considerar-se mais fácil, o polegar pelo dedo indicador. Vamos observar
a adaptação direta.
121

Figura 70 - Pizzicato na música Ingênuo/baixo elétrico

Fonte: Adaptação do autor, 2020.

Como podemos ver, a adaptação para o baixo elétrico caminha de maneira


convergente, excetuando as terças tocadas em pizzicato. Por ser em andamento lento, podemos
dizer que essa frase é de nível intermediário. E, como sugestão, ainda podemos indicar que a
escolha de apenas uma das duas vozes produz um resultado satisfatório, por manter a essência
da frase.

2.6.3 Preenchimento de acordes


Normalmente, temos no acompanhamento do violão de sete cordas as baixarias e a
execução dos acordes da música, o que chamamos de preenchimento de acordes ou harmônico.
Segundo Braga (2002, p. 33), “isto significa que os espaços entre uma nítida intervenção da
baixaria devem ser preenchidos pela levada, a baixaria se inserindo, pois, numa impressão de
não-interrupção da progressão dos acordes acompanhantes”.
O preenchimento harmônico foi um ponto que excluímos da nossa abordagem, por
também fugir do escopo, ou do recorte de estudo das linhas de baixo no choro e da característica
fundamental do contrabaixo, que é o acompanhamento rítmico-harmônico por linhas (e não por
acordes) 23. Poderíamos estabelecer relações entre o violão de sete cordas e o contrabaixo
elétrico de seis cordas, por exemplo, mas optamos por não incluir essa discussão e explicamos
nossos motivos abaixo.
O violão, historicamente, é “utilizado prioritariamente como instrumento de
acompanhamento”, tendo “como primeiro passo o estudo das aberturas de acordes”
(PELLEGRINI, 2005, p. 53). Ou seja, a linguagem do violão está totalmente relacionada com
a condução dos acordes para fins de acompanhamento. Em contraposição, se os baixos também

23
Acorde e linha – quando o violão faz as duas coisas é necessário um balanço entre as duas funções – linha de
baixo e acordes.
122

estão relacionados ao acompanhamento, não é de sua natureza a função de acompanhar com


acordes.
Carvalho (2006, p. 42) resume as definições atribuídas ao termo baixo, que nos
ajudará a entender o porquê de não discutirmos o preenchimento harmônico nos contrabaixos.
São elas:

1- A melodia mais grave em uma composição ou trecho musical, que possui


importância fundamental na estruturação rítmico-harmônica das composições (linha
de baixo). 2- A nota mais baixa (grave) em um acorde. 3- A voz masculina mais grave,
com tessitura aproximada entre o E1 e o F3. 4- Os instrumentos que executam a linha
de baixo. 5- O termo coloquial para o contrabaixo.

Por essas definições, entendemos que o baixo, aqui, abarcando tanto a linha de
baixo quanto o instrumento contrabaixo, está ligado historicamente a uma melodia ou linha
melódica na região grave e médio grave. Portanto, por entendermos que a função deste trabalho
é a de discutir as linhas de baixo no choro, excluiremos de nossa discussão o preenchimento
rítmico-harmônico com “levadas”.

2.6.4 Dedeira
Este aparato de aço ou náilon, “semelhante a uma palheta, que envolve o dedo como
um anel” (Pessoa, 2012, pg. 86), é mencionado em quase todos os estudos acadêmicos de violão
de sete cordas pesquisados por nós, como Taborda (1995), Pellegrini (2005), Borges (2009),
Pessoa (2012) e Pauletti (2017) e Lamas (2018).
Alguns desses trabalhos apoiaram-se em Braga (2002) e Caetano (2010) para
alimentar a discussão, inclusive, a própria descrição técnica do seu uso. Porém, dos dois autores
citados, somente Braga descreve mais detalhadamente a técnica necessária para seu uso, ao
colocar exemplos para demonstrar os movimentos esperados do polegar da mão direita. Braga
ainda abarca uma discussão sobre a possíveis digitações da mão esquerda ao usar o violão com
cordas de náilon.
Por ser um aparato típico do violão de sete cordas, a dedeira foi descarta em nossa
análise. Porém, vale dizer que um estudo mais específico poderia ser de grande proveito,
estabelecendo-se comparações de sonoridades, incluindo os aparatos típicos dos contrabaixos,
como a palheta, para o baixo elétrico, e o arco, para o baixo acústico. Análises comparativas
dos timbres dos contrabaixos e, consequentemente, a melhora (ou não) da audição das
performances em grupos diversos, poderiam enriquecer o debate quanto ao aproveitamento do
123

idiomático do violão no choro para os contrabaixos. A inclusão do arco no estudo das baixarias
no contrabaixo acústico, por exemplo, seria de grande valia para o instrumento, visto toda a
ligação histórica entre o choro e a música erudita.

2.7 REFLEXÕES SOBRE A ADAPTAÇÃO DAS BAIXARIAS DO VIOLÃO DE 7 CORDAS


PARA OS CONTRABAIXOS
A análise de aspectos históricos e técnicos discutida neste capítulo apresenta um
cenário muito promissor quanto ao aproveitamento do idiomatismo do violão no choro pelos
contrabaixos. É encorajador para a linguagem do contrabaixo brasileiro pensar que podemos
adaptar e usar um idioma tão rico e historicamente tão importante.
Quando analisamos separadamente cada ponto discutido, como as Características
Básicas, os Elementos Técnicos e as Articulações e Técnicas Específicas, percebemos que
podemos aproveitar todo este vasto material musical das linhas do violão de sete cordas para os
contrabaixos. Somente dois pontos específicos da técnica do violão foram exceções: o uso da
dedeira e o preenchimento harmônico.
A metodologia de análise e adaptação de baixarias clássicas para o contrabaixo nos
possibilitou a descoberta de duas dificuldades centrais. Essas dificuldades se repetiram em
momentos diversos de nossas adaptações e se deveram, basicamente, às diferenças técnicas e
idiomáticas entre os instrumentos referentes, principalmente, ao baixo acústico.
A primeira delas diz respeito à tessitura do contrabaixo. Em determinadas linhas,
vimos a necessidade de mudar a oitava da frase ou mesmo de alterar a sequência das notas ou
dos arpejos para chegar a um resultado satisfatório. Contudo, conseguimos atingir o objetivo
estabelecido após essas mudanças. O fato de os contrabaixos soarem uma oitava abaixo do
violão dificulta a clareza e o entendimento de determinadas frases na região mais grave abaixo
do C1, localizada na primeira oitava do instrumento. Sabendo disso, para viabilizar a clareza
do som, podemos indicar o uso dos baixarias rítmicas na primeira oitava, optando pelo uso das
baixarias melódicas a partir da segunda oitava.
Outro ponto importante é a escolha do som do instrumento. E mais uma vez nos
referimos ao baixo acústico, primordialmente, visto que o baixo elétrico possui uma projeção
de som mais definida pelo uso de captador e pela própria construção do instrumento. O baixo
elétrico possui ainda o controle de tonalidade (um potenciômetro que possibilita escolher um
som mais agudo ou mais grave) e, na maioria dos instrumentos, dois captadores (um que gera
um som mais grave e outro que gera um som mais agudo). O uso do captador (agudo) mais
124

perto da ponte resultará num som mais definido, ajudando à audição das linhas tocadas. Mais
um ponto que poderá nos ajudar no entendimento das linhas é a posição da mão direita. Quanto
mais perto da ponte a mão direita do músico estiver, mais as frequências médio-graves serão
ressaltadas, melhorando a clareza do som e facilitando sua escuta.
Em relação ao baixo acústico, o uso do instrumento com captador poderá ajudar na
definição e na clareza do som. Se for este o caso, o instrumentista será capaz de equalizar as
frequências que preferir no amplificador. Em relação à mão direita, indicamos descê-la o mais
próximo possível do final do espelho. Isto, possibilitará um som mais definido, ressaltando
também as frequências médias do instrumento.
A segunda dificuldade encontrada em diversos momentos de nossas adaptações foi
aquela da técnica de execução das frases do violão nos contrabaixos. Neste ponto, também, os
maiores obstáculos se deram no baixo acústico. O resultado foi propor linhas mais simples para
instrumentistas iniciantes. Porém, podemos encarar esta situação da dificuldade técnica no
instrumento sob duas óticas distintas e muito positivas. A primeira é que temos que ser mais
criativos para adaptar as linhas para o baixo acústico, caso o músico ainda não tenha uma técnica
desenvolvida no instrumento. A segunda é que as adaptações poderão ser um estopim para o
desenvolvimento técnico, visto o árduo trabalho exigido para se tocar estas frases no baixo
acústico. Nas duas situações, seja ter que usar a criatividade, ou seja melhorar sua técnica, o
estudo do choro no contrabaixo poderá ajudar o desenvolvimento do contrabaixista, seja qual
nível ele se encontre.
Contudo, se o músico optar por estudar as baixarias do choro no contrabaixo, será
de extrema importância obter o conhecimento histórico e de repertório para o uso desse idioma
musical com liberdade. Braga (2002, p. 35) defendeu ser

imprescindível ouvir e copiar os grandes violões de baixaria de um Dino Sete Cordas,


Raphael Rabello, Walter Silva e tantos outros, e, imperdível, transcrever o saxofone
tenor do Pixinguinha contraposto à flauta de Benedito Lacerda.

O que podemos entender, desse posicionamento de Braga é que, além do conhecimento técnico
aprendido nos livros e estudos, é fundamental para o aprendizado do choro ouvir, transcrever e
decorar as linhas de contracanto dos grandes violonistas da nossa história, assim, como estudar
os contrapontos gravados ao saxofone por Pixinguinha. Esse sistema de aprendizado (ouvir,
tirar e tocar), nos remete ao livro de Green, How Popular Musicians Learn (2002), mais
especificamente ao seu terceiro capítulo, quando discute sobre a capacidade de adquirir
125

habilidades. Green aponta que uma das formas mais usadas por músicos populares, para
desenvolver suas habilidades musicais, é através da audição e cópia.
Citamos Braga e Green por entender que este trabalho fez um recorte importante,
mas restrito, dentro do universo de frases de contracanto do choro. A relevância, no nosso
entender, até agora, foi elucidar os elementos técnicos e as normas básicas (direcionalidade e
função estrutural) usados na adaptação das frases do violão de sete cordas (e, claro, dos
contracantos de Pixinguinha, Irineu “Batina”, Jorge e outros) para os contrabaixos. Mas, para
um músico ampliar seu repertório de frases e aprender profundamente a linguagem dos
contracantos no choro, ele não terá outro caminho se não transcrever as baixarias, tal como
Braga defende acima. Porém, ao invés de “copiar”, o contrabaixista terá que “adaptar”.
Esse mergulho na música e na história do choro fará o contrabaixista dominar, na
prática, esses conceitos chaves do choro, que chamamos de idioma do choro. E dominar esse
idioma será fundamental para o contrabaixista empregar o que chamaremos no capítulo 3 de
transcriação melódica das baixarias para os contrabaixos. Este conceito de transcriação das
linhas de violão de sete cordas para o contrabaixo abrangerá todo o conteúdo discutido neste
trabalho até agora.
126

3 TRANSCRIAÇÕES NOS BAIXOS ACÚSTICO E ELÉTRICO

3.1 UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE TRANSCRIÇÃO, ADAPTAÇÃO E


TRANSCRIAÇÃO
Antes de começarmos nossas discussões acerca dos exemplos propostos, é
importante estabelecermos e fixarmos os conceitos paras as palavras acima, indicadas no título
desse capítulo. Nosso objetivo é chegar ao conceito transcriação. Por ser um conceito vindo de
uma outra área científica (História Literária), tentamos adaptá-la ao âmbito dos estudos da
performance, adequando-a a esse trabalho, de modo experimental, sem maiores pretensões ou
tentativas de fixarmos uma outra definição ou significado, para além daquele do nosso uso.
No capítulo 1, transcrevemos diversas linhas de contracanto ao longo do século XX,
para uma análise detalhada das mesmas, visando entender a lógica de construção dessas frases
e conduções na linha do baixo. No capítulo 2, discutimos as transcrições de linhas de violão no
choro e a adaptação das mesmas para os contrabaixos. Então, se começarmos por aqui, temos
claro que, para nós, a transcrição seria a tentativa de cópia ou o registro “ipisis literis” das
linhas propostas de um fonograma (o mais próximo possível dessas) e a adaptação sua
adequação, ajuste ou moldagem, para os contrabaixos. Esse ajuste para o contrabaixo seria uma
tentativa de aproveitar o máximo possível de uma determinada linha no novo instrumento (o
contrabaixo).
Para isso, discutimos o que seria possível, ou não, de ser “adaptável” aos
contrabaixos, incluindo na discussão vários pontos, como a técnica, a capacidade de
entendimento (ou escuta), a capacidade técnica do executante, dentre outros. Usamos a
metodologia de pontos convergentes e divergentes, numa tentativa de estabelecer performances
musicais que estariam próximas aos dois instrumentos e, em oposição, performances que não
estariam tão próximas. Esse conceito foi usado de maneira direta, e conseguimos atingir um
ponto muito proveitoso, sobre como adaptar da melhor forma o conteúdo do violão para os
contrabaixos. Neste contexto, como utilizaremos o conceito de transcriação?
O conceito de transcriação é debatido no campo da tradução literária e poética e foi
desenvolvido no contexto do Movimento da Poesia Concreta, com textos e publicações do poeta
e tradutor Haroldo de Campos, a partir da década de 1960. Elaborada a partir de algumas
teorizações do poeta americano Ezra Pound, “o principal objetivo da transcriação é a recriação
do texto original na língua de chegada, ou seja, explorar os recursos articulados na língua de
127

partida e reproduzi-los analogamente na língua de chegada” (Gessner, 2016, p. 143,). Segundo


este autor, o conceito de transcriação serve

para designar um processo de tradução, que se caracteriza por ser criativo” (…) e diz
mais respeito, portanto, a uma prática do que a uma teoria, e por não ter uma
delimitação conceitual pré-estabelecida, facilmente torna-se escorregadio, servindo-
se aos mais diferentes propósitos.

A pesquisadora Thelma Médici Nóbrega, em seu artigo baseado em Haroldo de


Campos, chamado “Transcriação e Hiperfidelidade”, de 2006, aponta para a dificuldade em
definir o conceito de transcriação, escrevendo que o próprio Haroldo de Campos, “ao longo do
tempo, usou-o em diferentes acepções, para não falar dos muitos outros neologismos que
cunhou para se referir às suas traduções de obras magnas da literatura mundial” (NÓBREGA,
2006, p. 249).
Voltando ao nosso trabalho, concentramo-nos em três palavras-chaves, que
presentes nas definições acima, podem delimitar nossa compreensão e prática das transcriações,
sendo essas palavras: a. ponto partida e ponto de chegada; b. fazer criativo e c. fazer prático.
Entendido isso, poderíamos definir para este trabalho a transcriação como um fazer “prático”,
em que usaremos a “criatividade” para interpretar ou utilizar a fraseologia do violão de sete
cordas (“ponto de partida”) aos contrabaixos (ponto de chegada). Ainda, podemos ampliar a
definição de ponto de partida para as instrumentações tradicionais do choro (formações
musicais), a forma musical (as partes de referentes a uma composição) e os elementos técnicos
para a construção dos contracantos no violão. Desse modo, temos como ponto de chegada, ou
como transcriação, a utilização criativa e interpretativa de todos esses elementos, que estão
envolvidos nos contracantos do violão de sete cordas, na construção das linhas de contrabaixo.
Definido esse importante conceito, seguimos para as análises musicais desse terceiro capítulo.

3.2 EXEMPLOS DE TRANSCRIAÇÃO NO CONTRABAIXO ACÚSTICO


As linhas de baixo escolhidas para este subcapítulo são analisadas através dos
elementos técnicos discutidos no capítulo anterior. A direcionalidade, que é uma das principais
características, está implícita na análise dos baixos rítmicos e melódicos. Uma pequena
introdução para cada fonograma selecionado, explicando sua formação e a ideia estética que
permeou sua produção, foi feita para, em seguida, analisarmos de uma maneira direta como foi
construída aquela determinada linha de baixo. Essa pequena descrição sobre a formação e outras
características do fonograma fazem parte, ainda que de forma secundária, da análise sobre a
transcriação, como enunciamos anteriormente.
128

Essas transcriações para o baixo acústico estão em dois discos do autor desse
presente estudo, lançados em 2015 e 2016, e no disco da flautista Maiara Moraes, de 2018. As
músicas escolhidas foram: Barão, 1X7 e Amando Sempre; encontradas, respectivamente, nos
discos Choroso, Bailado e Nós. Estas músicas foram escolhidas, pois cada uma apresenta uma
diferente solução de instrumentação. Barão é em trio de contrabaixo acústico, bateria e
saxofone; 1X7 é em duo de contrabaixo acústico e piano; Amando Sempre é em quarteto com
baixo acústico, bateria, piano e flauta. Com essa escolha, acreditamos enriquecer o conteúdo
deste trabalho, mostrando como o baixo acústico funcionou em três possibilidades musicais
distintas (formações).
Os elementos técnicos, discutidos no capítulo 2, estão em negrito, no discurso das
análises abaixo. Acreditamos que esta ação ajude o leitor a estruturar cada vez mais, para si,
estes conceitos técnicos, que serão de grande valia no entendimento do assunto abordado. E,
para nós, os termos destacados em negrito ajudarão a distinguir e organizar o que, de fato, foi
utilizado na linha de baixo analisada.
O último ponto importante desta introdução ao capítulo 3, é dizer que para a
construção de uma boa linha de baixo no choro, seria de bom uso aplicar as normas básicas
(direcionalidade e função estrutural) e todos os elementos técnicos analisados neste trabalho.
Entretanto, a qualidade desta linha nos contrabaixos não será contabilizada por um uso maior
ou menor desses elementos técnicos e das características básicas. A ideia original de nossa
proposta é o uso da fraseologia dos violões do choro com adaptações às condições de execução
e sonoridade dos contrabaixos, porém com o maior comprometimento possível com a estética
original das baixarias.

3.2.1 Música Barão


Em Barão, tentamos apoiar nossa formação no alicerce de uma formação
tradicional de choro: o ritmo, a melodia e o contracanto. Se reduzirmos qualquer formação de
choro aos seus elementos mínimos, poderíamos colocar como pontos de apoio importantes os
três itens acima. Com essa ideia, montamos um trio em que a bateria fica responsável pelo
ritmo, o contrabaixo, pelos contracantos, e o saxofone, pela melodia.
A partir desse ponto de partida, desenvolvemos um disco que, mesmo não sendo
um disco de choro (poderíamos dizer que é um disco de jazz brasileiro), busca não perder o
contato com essa ideia inicial inerente ao gênero. Uma curiosidade sobre Choroso é que esse
129

foi lançado em 2015, mas sua gravação é de 2010. Ou seja, bem no começo da minha pesquisa
“intuitiva” sobre os contracantos no choro no contrabaixo.
A partitura de contrabaixo em Barão é muito extensa. Por isso, separamos a parte
A2 da melodia (o A1 é somente a dobra da melodia pelo contrabaixo), a parte B inteira e a parte
A (1 e 2) da primeira passagem do improviso do saxofone. As demais partes do improviso
seguem a mesma ideia de contracanto da primeira volta, com variações e uma liberdade grande
na condução da linha de baixo.

Figura 71 - Exemplo Contrabaixo em Barão/Tema Parte A2 e B

Fonte: transcrição do autor, 2020.


130

Análise em Barão (parte A2, B1 e B2) por compassos:

1) Baixarias rítmicas: presentes em 9 compassos

2) Baixarias melódicas: presentes em 8 compassos

3) Função estrutural: compassos 24 e 31-32

4) Tipologia: baixarias diatônica, cromática e mista.

5) Articulação Stacatto: compassos 25 e 26

Figura 72 - Exemplo contrabaixo em Barão/Parte A1 e A2 no solo de saxofone


131

Fonte: transcrição do autor, 2020.

Análise em Barão (parte A2, B1 e B2) por compassos:

1) Baixarias rítmicas: presentes em 12 compassos

2) Baixarias melódicas: presentes em 19 compassos

3) Função estrutural: compassos 1, 2, 18 e 33

4) Tipologia: baixarias diatônica, cromática e mista

5) Articulação Ligato: compassos 4, 7, 10, 25 e 26

A análise de Barão nos indica a possibilidade real de uso dos contracantos no


contrabaixo. A densidade instrumental baixa, pela ausência de instrumentos harmônicos, como
o violão, cavaquinho e piano, nos ajuda a ouvir com bastante clareza as linhas contornadas pelo
baixo acústico na gravação. Ao mesmo tempo, e de forma intuitiva, pois a gravação remete ao
ano de 2010, quando o autor não havia vivenciado em maior profundidade a roda de choro24 ,
usamos os elementos técnicos de uma forma consistente e robusta.
Alguns contracantos obrigatórios também estão presentes na parte A e B, porém
dentro de um formato jazzístico. Seria mais uma espécie de convenção e arranjo, do que uma
baixaria de obrigação no formato estético-musical do choro. A estruturação (função
estrutural) das partes também vai ao encontro da ideia anterior, na parte da melodia da música.
Temos convenções e dobradas de melodia que nos remetem a ideias mais ligadas ao jazz, que
ao choro. Entretanto, assim que se inicia o improviso do sax, observamos frases que indicam a
transição das partes A1-A2 e A2-B1 com a devida clareza.
Outros aspectos, como a direcionalidade (marcha-harmônica), visto através dos
baixos rítmicos e melódicos, e as inversões, também estão presentes e de uma maneira sólida
como, por exemplo, nos compassos 19, 20, 21 e 22. Porém, a música está muito bem alicerçada
nesta norma básica.
A articulação ligato foi usada em alguns pontos específicos para facilitar a
digitação de frases rápidas. E as escalas e sua tipologia nos mostram o uso de maneira criativa

24
Como mencionado na introdução, toquei por dois anos no maior reduto do choro de São Paulo – o Bar do
Cidão.
132

dos vários tipos de escalas, com exceção vista na ausência de arpejos. É interessante essa
discussão, pois no contrabaixo acústico, o uso de arpejos necessita de um conhecimento muito
consolidado. É um estudo difícil e que requer uma prática contínua durante anos, para que seu
uso se torne fluente e natural. Seguimos para 1X7, do disco Bailado.

3.2.2 Música 1X7


A gravação deste fonograma ocorreu em dezembro de 2015. O duo Bailado foi um
projeto pensado por mim e desenvolvido em conjunto com o pianista Daniel Grajew, que teve
como objetivo unir e visitar a “escola” dos pianeiros brasileiros, como Ernesto Nazareth e
Chiquinha Gonzaga, e as linhas de contracanto no baixo, que estamos discutindo neste trabalho.
Essas linhas estariam sob a responsabilidade do contrabaixo e, em diversos momentos, na dobra
ou abertura de vozes entre os dois instrumentos na região médio-grave.

Esteticamente em 1X7, tal como em Barão, vemos uma formação mais “vazia”, que
facilita a audição das linhas virtuosas do contrabaixo. A relação ou convívio entre as linhas da
mão esquerda do piano e do contrabaixo foi pensada e escrita para não ter “surpresas”, ou notas
chocando-se em lugares pouco interessantes. Colocamos abaixo as duas linhas (baixo e mão
esquerda do piano) para facilitar a análise e o entendimento (figura 73).
133

Figura 73 - Contrabaixo no fonograma 1X7/Parte A2

Fonte: transcrição do autor, 2020.

Análise em 1X7 por compassos:

1) Baixarias rítmicas: presentes em 8 compassos


134

2) Baixarias melódicas: presentes em 11 compassos

3) Função estrutural: compassos 1, 17,

4) Tipologia: baixarias diatônica, cromáticas, mista e por arpejo

5) Articulação Stacatto: compassos 4, 6, 10, 18 e 20

A análise das duas linhas de baixo acima indica que essas trabalham dentro do que
é esperado no choro tradicional. Braga escreve que “é de bom efeito o uníssono das partes nos
violões, a escritura em oitavas e a escritura em terças e sextas (…)” (Braga, 2002, pg. 34). Em
alguns momentos fizemos o uso de frases com movimentos opostos para enriquecer o arranjo,
como nos compassos 6, 9 e 11. As aberturas tradicionais em terças e sextas estão nos compassos
3, 6, 7 e 9; as dobras em oitava (muito usadas nos arranjos de Pixinguinha na década de 1940)
estão nos compassos 13 e 17, e na passagem (Inter) para a parte B, dos compassos 18, 19, 20 e
21. É importante deixarmos claro que em momento algum ouvimos um som difuso, fosco ou
sem entendimento. Para nossa percepção, o som é bem nítido nas duas linhas de baixo, mesmo
sendo o contrabaixo um instrumento transpositor e estar soando uma oitava abaixo do que está
escrito.
A parte estrutural está bem definida nesta parte A de 1X7, com a marcação da
entrada e da saída da parte e uma passagem muito sólida das baixarias indicando a parte B.
Neste caso, a passagem (Inter) faz parte da composição e poderíamos incluí-la com uma
baixaria de obrigação.
A articulação stacatto, dos compassos 6 e 10, foi tocada com intuito de promover
o desenho rítmico ou, em outras palavras, torná-lo mais percussivo. É uma maneira também de
impulsionar a marcha-harmônica (direcionalidade).
A direcionalidade em 1X7 é sentida nos movimentos ascendentes e descendentes
dos baixos melódicos, tanto quanto nos baixos rítmicos. As frases dos baixos executadas pelo
contrabaixo e piano promovem um pulso que carrega a melodia e conduz o ouvinte “para
frente”. As mudanças de acorde sucessivas também ajudam a criar esse movimento para frente.
Por fim, as linhas de baixo usam uma boa variedade de escalas (tipologia),
prevalecendo em maior número a escala diatônica. Seguimos para mais um trecho de 1X7, a
parte B2, na figura 74, na qual chamaremos a atenção para um detalhe importante.
135

Figura 74 - Contrabaixo no fonograma 1X7/Parte B2

Fonte: transcrição do autor, 2020.

Nesta parte da seção B2 de 1X7, gostaríamos de chamar a atenção para a


diferenciação na escolha entre o baixo melódico e o baixo rítmico. Repare que nos compassos
1, 2, 3, e 5 usamos a técnica das frases curtas (baixo melódico) para fazer “andar” a harmonia
da música. E, se observarmos, nos compassos 6, 7, 8 e 9, mesmo havendo a recorrência de um
acorde por tempo, como nos primeiros compassos do exemplo acima, optamos pelos baixos
rítmicos. Uma questão discutida no capítulo 2 é a questão do uso ou não de frases rápidas na
região grave do contrabaixo (poderíamos delimitar como a primeira oitava do instrumento).
Mesmo sem termos uma resposta exata (através de pesquisa específica sobre este assunto),
nosso ouvido sempre nos leva a não usar frases rápidas nesta região. Então, usamos frases curtas
nas primeiras mudanças de acorde (compassos 1, 2, 3 e 5) e, na parte seguinte (compassos 6, 7,
8 e 9), decidimos pelos baixos rítmicos.

Carvalho (2006) discute de maneira consistente, ao longo de sua dissertação, sobre


a dificuldade técnica de execução (e de ser ouvido com clareza) no contrabaixo ao longo da
história. É sempre uma discussão pertinente. Seguimos para nossa última análise do contrabaixo
acústico, dentro de propostas já usadas, gravadas e trabalhadas no mercado musical brasileiro.

3.2.3 Música Amando Sempre


Optamos, nesse último exemplo, por uma formação mais cheia, com bateria, piano,
contrabaixo e flauta, para termos um material diferente de análise. Ao mesmo tempo, queríamos
mostrar um trabalho não pensado por mim, em que não tivesse feito o direcionamento estético;
apenas, a performance e o uso dos contracantos numa formação contemporânea do choro. A
136

partir dessa ideia, escolhemos uma música do disco Nós, da flautista Maiara Moraes, gravado
e lançado em 2018 (figura 75).

Figura 75 - Contrabaixo em Amando Sempre/Parte A

Fonte: transcrição do autor, 2020.

Análise em Amando Sempre (parte A) por compassos:

1) Baixarias rítmicas: presentes em 12 compassos

2) Baixarias Melódicas: presentes em 12 compassos

3) Função estrutural: compasso 1

4) Tipologia: baixarias diatônica e mista

5) Articulação Stacatto: compassos 14 e 15


137

Em Amando Sempre, a função estrutural é ouvida no primeiro som da música. A


dobra em terças entre o piano e o contrabaixo tem a função de preparar a entrada do A. No dito
popular, as notas de preparação para a entrada de um choro são conhecidas como “chamada”.
O responsável por finalizar a parte A é o piano, que conclui um tempo depois de todos. E quem
“chama” para a parte B é a melodia em anacruse da flauta e os pratos da bateria. O contrabaixo
fica em repouso.
A direcionalidade da condução do baixo é muito clara e alterna baixos rítmicos e
melódicos impulsionando a marcha-harmônica do grupo. Temos algumas frases de resposta a
melodia principal (compassos 3, 11, 12, 17 e 19), sendo estas escritas pela arranjadora (Maiara
Moraes) e pertencentes ao arranjo da parte A. A condução dos baixos rítmicos em seis
compassos (6, 7, 13, 21, 23 e 24) nos chama atenção por uma célula amaxixada. Vemos uma
colcheia no segundo tempo que nos remete ao balanço do choro amaxixado.
A tipologia das escalas é interessante em Amando Sempre. Interessante pela
simplicidade. De maneira não proposital, percebemos o uso somente da escala diatônica.
Mesmo os arpejos indicados no resumo da análise, são arpejos com notas diatônicas de
passagem, não caracterizando uma frase típica em arpejo no choro. Vimos outros exemplos de
arpejos com escalas, no capítulo 2. Porém, de uma maneira geral, as escalas eram usadas, ou
no começo, ou no final da frase. Aqui, temos o arpejo com notas “internas”.
Por terminar, as articulações. Como já dissemos no capítulo 1, as articulações no
contrabaixo acústico apresentam uma dificuldade maior, se compararmos com o violão, com
os sopros e mesmo com o baixo elétrico. Em Amando Sempre, observamos somente o stacatto.
Nos dois momentos do seu uso, a intenção é, como em 1X7, favorecer o balanço rítmico da
música; um pensamento percussivo (como um tambor).
As análises acima nos mostram um caminho favorável ao uso dos contracantos do
violão de sete cordas no contrabaixo acústico. Ao contrário dos exemplos no baixo elétrico, nos
exemplos que serão apresentados adiante, as linhas no baixo acústico foram criadas de forma
livre, tendo por base a vivência prática adquirida em rodas de choro, audições, transcrições e
adaptações livres. Ainda não tínhamos uma metodologia para transcriar (ou criar) uma linha de
baixo baseada nos elementos técnicos discutidos neste trabalho. Porém, como bem citamos
anteriormente, Green (2002) está correta quando afirma que um modelo consolidado de
aprendizagem se baseia na escuta e reprodução do conteúdo proposto. Braga (2002) também
afirma ser necessário esse processo (ouvir, tirar e reproduzir) para o aprendizado da linguagem
do violão de sete cordas. Os nossos exemplos no baixo acústico comprovam as afirmações, pois
138

nosso aprendizado foi baseado na escuta e reprodução. Ainda não possuíamos os


conhecimentos adquiridos neste trabalho.
Seguiremos com exemplos para o baixo elétrico e suas respectivas análises. Porém,
ao contrário das transcriações vistas no baixo acústico, propusemos duas transcriações de baixo
elétrico, baseadas no conhecimento adquirido neste trabalho. É importante ressaltar que estas
novas transcriações para o baixo elétrico foram construídas com uma maturidade posterior às
linhas de acústico já analisadas.

3.3 EXEMPLOS DE TRANSCRIAÇÃO NO CONTRABAIXO ELÉTRICO

3.3.1 Seu Chico Salgado


Dentro dos dois exemplos para baixo elétrico, escolhemos duas músicas distintas,
sendo a primeira uma composição minha de nome Seu Chico Salgado, e a segunda, o clássico
do choro Noites Cariocas. Em relação à formação musical, as duas músicas foram tocadas com
guitarra elétrica, contrabaixo elétrico, piano elétrico (Seu Chico Salgado), sopro e percussão.
As duas composições, coincidentemente, apresentam a mesma forma musical: ABA. E outros
detalhes, incluindo uma discussão mais detalhada sobre a forma de cada ABA, são abordadas
em cada subcapítulo.

Figura 76- Música Seu Chico Salgado

Fonte: Elaboração do autor, 2020.

Seu Chico Salgado é uma composição com uma rítmica tradicional do choro,
concebida no grupo Gente do Morro, de Benedito Lacerda. O desenho do tamborim dita a
condução da música e a métrica da melodia. A partitura acima poderia ser uma espécie de célula
básica ou matricial, que guia a música inteira. Poderíamos classificar a música como um choro-
sambado.
139

Usamos a formação de baixo elétrico, guitarra, piano elétrico, percussão e sopro


para exercitar outras sonoridades. O arranjo é pensado de forma simples, para exemplificar o
uso do baixo e sua transcriação. Porém, usamos dobras no baixo, convenções rítmicas e partes
abertas de improviso.
A transcriação inclui a recriação da sonoridade tradicional do choro, como a troca
do bandolim pela guitarra, do cavaco e violão de seis, pelo piano elétrico, e do violão de sete
cordas, pelo contrabaixo elétrico. A percussão seguiu de forma tradicional, contudo, optamos
por não usar o pandeiro como uma forma de alterar a sonoridade.
A forma da música é AABA. Ao término, usamos um final típico do choro, com a
repetição dos últimos compassos duas vezes, seguido de um coda com dobra de todos os
instrumentos. Essa forma de terminar a música apresenta uma dicotomia irreverente, pois se
flerta com o tradicional das rodas de choro, através da repetição do trecho final da melodia
algumas vezes, o coda convencionado, com dobra dos instrumentos, rompe com a tradição,
trazendo um elemento de fora do choro (do jazz-rock ou do fusion). Essas misturas são
tentativas de diálogo entre a tradição e elementos de outros gêneros ou subgêneros.
Em relação à forma da música, temos uma quebra na habitual forma rondó
(ABACA), porém, já muito visto em muitos compositores de choro, como Jacob do Bandolim,
por exemplo. Contudo, não é algo que possamos caracterizar como uma quebra da tradição. A
mudança de tonalidade para o relativo menor é, sim, algo bem tradicional, e está em Seu Chico
Salgado.
Algumas quebras da tradição são relevantes e fazem parte constantemente dos
processos de fusão ou abertura de um estilo. Pois, se são feitas escolhas para se afastar do que
chamamos tradicional, é importante não perder elementos importantes dessa sonoridade, que
legitimam o gênero. Por fim, decidimos escrever uma volta completa da linha de baixo da
música e não o fonograma inteiro, pois, em essência, a ideia da transcriação estará bem
representada. E, desejando abranger todas as partes fixas da música tocada no fonograma (sua
forma completa), adicionamos o final repetido e o coda. Seguimos com a análise referente a
fraseologia do baixo elétrico em Seu Chico Salgado (figura 77).
140

Figura 77 - Seu Chico Salgado/baixo elétrico


141

Fonte: Transcriação do autor, 2020.

Análise em Seu Chico Salgado por compassos:


142

1) Baixarias rítmicas: presentes em 28 compassos

2) Baixarias melódicas: presentes em 26 compassos

3) Baixos convencionados: compassos 49, 50, 74, 75, 76, 77 e 78

4) Baixos dobra de melodia: presentes em 16 compassos

5) Função estrutural: compassos 1, 17, 33, 51, 70 e 78

6) Tipologia: baixarias diatônica, cromática, por arpejo e mista

7) Articulação Stacatto: presentes 12 compassos

Nossa análise sob a linha de baixo em Seu Chico Salgado começará com pontos
que não apareceram anteriormente em nossas análises: os baixos convencionados e as dobras
de melodia. Depois, seguiremos o caminho já estabelecido anteriormente, com os elementos
técnicos.
Decidimos separar estas “duas novas modalidades” de baixo, por serem diferentes
dos outros exemplos analisados. Optamos por não incluir os baixos convencionados dentro dos
baixos rítmicos, por entender que a figura rítmica e suas notas pertencem a uma convenção
musical. Uma convenção musical significa, para nós, que todos os instrumentistas do grupo
terão que performar o mesmo desenho rítmico e as mesmas notas naqueles compassos definidos
no arranjo. Quanto às dobras de melodia, decidimos não analisá-las como baixo melódico, pois
acreditarmos não estarem inseridas como elemento de acompanhamento (ou linha de baixo). Se
dobram a melodia, naquele momento, o baixo está fazendo a melodia e não “linhas de baixo
melódicas”.
A função estrutural está bem definida no exemplo acima, estando presente no
início da música, nas passagens entre as partes A, na “chamada” para a parte B, e no
encaminhamento do A3 e do Coda. As duas convenções da música também ajudam a função
estrutural, mas, como dissemos anteriormente, não as analisaremos dentro das linhas de baixo.
Porém, é pertinente afirmar que essas também possuem um caráter estrutural de suma
importância. A passagem da parte A1 para a parte A2 possui, ao contrário das outras passagens,
um baixo rítmico sincopado. Porém, estruturalmente, esse ritmo sincopado, tal qual um
instrumento grave de percussão, como o surdo, por exemplo, é ouvido com o objetivo de
preparar para uma parte nova. Já analisamos baixos rítmicos com função estrutural nas linhas
de Dino Sete Cordas.
143

A condução do baixo possui uma direcionalidade clara através dos baixos rítmicos
e melódicos. Desde a frase inicial, que impulsiona o grupo para a música, o baixo possui um
papel de conduzir a marcha-harmônica com diferentes sensações; ora mais condutor, como
nos compassos 2, 7, 8 e 9, dentre muitos outros, e ora mais melódico, como nos compassos 3,
4 e 5. Este segundo caráter é visto em menor número. Os desenhos rítmicos que dialogam com
a melodia da música são vistos com características diferentes. Temos baixos que apoiam
ritmicamente a melodia, como nos compassos 2, 3, 10, 25 e 26, e outros que ocupam o espaço
deixado por ela ou que usam ritmos diferentes, como os compassos 5, 6, 13 e 21.
A tipologia das escalas mostra uma grande variedade de uso. Se no baixo acústico,
vimos uma predileção para as escalas diatônicas e mistas, no baixo elétrico, pela maior
facilidade técnica, temos a possibilidade de uma amostragem mais ampla. Em Seu Chico
Salgado, o que nos chama a atenção de imediato é a possibilidade do uso do arpejo, ou do que
chamamos acima de arpejo misto (que seria a mistura de arpejo com notas diatônicas). Temos
oito compassos com esta tipologia, o que significa, neste exemplo, um número substancioso.
Os tipos de escalas e seu uso estão bem divididas no exemplo acima, ficando somente abaixo o
arpejo puro.
Por fim, a articulação. No exemplo acima, o stacatto foi a única articulação usada.
Ela nos ajuda na condução da marcha-harmônica, fazendo o baixo funcionar muitas vezes como
um instrumento de percussão (um tambor), ao cortar o som ao meio. Podemos entender que seu
uso auxilia o movimento da música, ao quebrar a linearidade do som. A articulação stacatto
está tão implícita no fazer prático (no tocar) de qualquer gênero, que muitas vezes nem
percebemos sua existência.

3.3.2 Noite Cariocas


A composição de Jacob do Bandolim foi gravada pela primeira vez pelo autor em
1957, em disco de 78 rpm. Depois de dezenas regravações (no Instituto Memória Musical
Brasileira constam 101 gravações), a música se tornou um clássico dentro do repertório do
choro. A forma de Noites Cariocas, ABA, que podemos esmiuçar como AA-BB-BB-AA, foi
muito usada por Jacob em outros choros clássicos, como Receita de Samba, Benzinho, Santa
Morena, Assanhado, Doce de Coco e Vibrações.
Nossa transcriação foi desenvolvida baseada na sonoridade do exemplo anterior,
mantendo a formação idêntica de percussão, piano elétrico, sopro, guitarra e baixo elétrico. Isso
facilitou o registro dos dois fonogramas, uma vez que os mesmos músicos interpretaram as duas
144

faixas analisadas neste capítulo. A ideia de uma formação com instrumentos elétricos, e mais
percussão e sopro, nasceu da vontade de fazer algo um pouco mais “pesado” dentro do universo
do choro. Dessa forma, podemos testar o uso das linhas do baixo elétrico de uma maneira
diferente dos demais exemplos anteriores (figura 78).

Figura 78 - Noites Cariocas/Baixo elétrico


145
146

Fonte: transcriação do autor, 2020.

Análise de Noites Cariocas por compassos:

1) Baixarias rítmicas: presentes em 48 compassos

2) Baixarias Melódicas: presentes em 62 compassos

3) Função Estrutural: compassos 16, 31, 32, 48, 63, 64, 80, 98, 111 e 112

4) Tipologia: baixarias diatônica, cromática, por arpejo e mista

5) Articulação Stacatto: presentes em 15 compassos


147

Nossa última análise começa com a função estrutural de Noites Cariocas. A frase
inicial da melodia é um anacruse de um compasso inteiro. Pensando nisso, optamos por não
colocar nenhuma frase nos inícios da parte A. O sentido é valorizar a melodia principal. Porém,
na repetição do A, no compasso 16, como preparação, decidimos não colocar um baixo
melódico, mas um baixo rítmico, que marcasse a volta ao A. Esse tipo de preparação simples
de apenas uma nota no contratempo do segundo tempo é muito conhecido no samba, e mais
específico no surdo do samba.
Na passagem do A para o B, temos dois tipos de frase. A primeira, conclusiva,
reforça o término da parte A, fortalecendo sua tônica (a nota Sol). A segunda frase indica o
caminho para a parte B e aponta para a modulação para Dó Maior. Algo parecido é visto nos
compassos 47 e 48, quando acontece a repetição do B. Temos uma frase que conecta a
modulação de E Maior para Dó Maior. Além dessa conexão, a frase aponta para a volta a parte
B. Na volta a parte A, temos de diferente uma frase bem característica do choro feita em escala
mista para iniciar a seção. Depois, usamos as mesmas ideias da primeira passagem do A, com
a solução do “surdo” no meio da seção, e a frase conclusiva no penúltimo compasso. Para
finalizar a música, usamos o Coda original que faz parte da composição, somente alterando o
último acorde e a última nota do mesmo. Assim, conseguimos o efeito de surpresa. Pois, ao
invés de chegarmos até a nota Si natural no acorde de Sol Maior (formato original), fechamos
a música na nota Lá sustenido, que por enarmonia é Si bemol. A nota foi harmonizada com o
acorde de C com sétima (C7), finalizando a melodia na sétima menor. O Coda composto por
Jacob tem como função primordial estruturar o final da música.
A direcionalidade está muito presente nos baixos melódicos e rítmicos em Noites
Cariocas. Os baixos foram construídos pensando neste elemento técnico, e, por isso, usamos
de maneira consistente as frases curtas e longas, as inversões e as aproximações cromáticas e
diatônicas. O pensamento foi fortalecer a marcha-harmônica da música e empurrar o grupo para
frente. Em alguns momentos, aproveitamos as antecipações da melodia, como nos compassos
2-3, 6-7, 9-10 (e em muitos outros), para impulsionar a música e manter a ideia de se caminhar
para frente. Em outros momentos, aproveitamos a pausa da melodia, ou momentos menos
rítmicos da mesma, para tocar frases maiores (como nos compassos 15, 16, 20, 22, 31 e muitos
outros). A rítmica do samba com colcheia pontuada e semicolcheia está bastante presente na
linha do baixo. Pensamos em usar esse tipo de condução do baixo por ser um modelo já
estabelecido no instrumento (dentro do samba). Ao mesmo tempo, mesclamos esse tipo de
condução com um pensamento mais do choro (e do violão), em que não há a necessidade de
148

conduzir ritmicamente o tempo inteiro. A união dessas duas ideias foi nosso objetivo nesta linha
de baixo.
Na tipologia das escalas usadas, observamos um grande uso da escala cromática
seguido da escala mista, diatônica, arpejo misto e arpejo (puro). É interessante percebemos duas
coisas. A primeira é que vemos aproximações cromáticas em frases curtas. E o segundo ponto
é o pouco uso de arpejo puro. No baixo acústico, vimos exatamente a mesma situação. Mesmo
em uma linha criada com a total consciência de todos os elementos técnicos, vemos um
pensamento mais horizontal, que vertical. Poderíamos supor muitas coisas. Entre elas, que uma
experiência maior no baixo acústico poderia ter influenciado a maneira de compor e tocar o
baixo elétrico. A resposta para essa percepção não será respondida neste trabalho, pois envolve
muitos elementos subjetivos e objetivos na composição de uma linha de baixo e na história de
um instrumentista. E as escolhas dos tipos de escala na construção de uma linha de baixo no
choro, além dos padrões de recorrência melódicos e rítmicos forjados ao longo da história,
também passarão pelo gosto pessoal do músico, pelos discos ouvidos e suas influências, e pela
vontade estética que se quer obter naquela determinada performance.
Seguimos com as articulações (articulação). O stacatto puro e o acento com
stacatto foram as duas articulações usadas por nós em Noites Cariocas. Como em Seu Chico
Salgado, nós tivemos a ideia do baixo simular uma percussão, ao cortar o som de determinadas
notas pela metade.
149

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O aproveitamento da linguagem do choro para além dos instrumentos tradicionais


é um caminho longo e ainda recente no ambiente acadêmico. Por isso, pelo objetivo proposto
no início deste trabalho, acreditamos ter chegado a um lugar significativo na utilização da
linguagem das baixarias do violão de sete cordas nos contrabaixos e passível de utilização real
na carreira de um contrabaixista.

Iniciamos nosso trajeto, buscando transcrever e analisar, para compreender os


recursos técnicos e interpretativos utilizados com maior frequência, as baixarias gravadas em
fonogramas no século XX. Através da análise de baixarias transcritas, seja de instrumentos de
sopro ou violões, encontramos uma lógica na composição dessas mesmas baixarias que foi
determinante nos capítulos seguintes. Descobrimos que, mesmo baixarias de violonistas
cantores da primeira década de 1900, até o violão de Dino Sete Cordas, na década de 1960, as
linhas de baixo dos fonogramas analisados mantiveram características essenciais como a
direcionalidade, a função estrutural e o uso das baixarias rítmicas e melódicas em conjunto com
as articulações específicas.

Essas características musicais e os chamados elementos técnicos foram usados em


nossa análise comparativa entre as linhas de baixo dos violonistas de sete cordas e as linhas
sugeridas para os dois tipos de contrabaixos (elétrico e acústico); buscando adaptar ou propor
uma nova linha de baixaria para os contrabaixos.

As adaptações das baixarias promoveram discussões positivas para o estudo do


contrabaixo, as quais, para além da parte técnica, dizem respeito também à criatividade e aos
conhecimentos necessários para o uso da linguagem de acompanhamento no choro.

Os pontos em que as baixarias propostas tiveram reservas quanto a seu


aproveitamento nos forçaram a procurar saídas criativas para seu uso, e esbarramos no
conhecimento do idioma choro e em nossa criatividade. No idioma, porque, ao buscar soluções
para as adaptações, estas teriam que soar pertinentes ao gênero. Quanto à criatividade, resultou
que as soluções poderiam ser muitas possíveis. E o importante era conseguir soluções que se
encaixassem em diferentes níveis técnicos e capacidades musicais, suscitando uma discussão –
e em uma oportunidade de aprimoramento- muito interessante para futuros interessados.

Além disso, as adaptações nos levaram a situações complexas, nas quais muitas
variáveis, como tessitura, técnica, sonoridade e conhecimento de linguagem, estão envolvidas,
150

o que dificulta trabalhar com soluções definitivas. Pude vivenciar este ponto de maneira
bastante intensa, quando participei como baixista de um quarteto de choro, que se apresentou
semanalmente, por dois anos, na cena Paulistana.

Por termos conseguido resultados expressivos, nas adaptações por nós propostas,
acreditamos que foi possível chegarmos ao uso de um conceito importante: o da transcriação.
O uso deste conceito em nossa pesquisa foi fundamental como ferramenta de orquestração. Este
conceito, que nomina a recriação, tanto das baixarias, quanto das formações instrumentais e
outros aspectos estruturais do choro, como a forma musical, nos permitiu uma aproximação
estética com outros gêneros musicais (em nosso estudo, com o jazz e o samba). Sendo um
conceito aberto, esse pôde nos ajudar em soluções interessantes do ponto de vista estético,
quando aproximamos o choro de outros gêneros musicais. Oriundo da teoria literária, e utilizado
principalmente na tradução de textos poéticos, a transcriação lida com situações em que ao texto
agregam-se mais e outros significados, e, assim, comporta e dispõe, mais sensações do que
normalmente seria o esperado. Musicalidades próprias de um determinado idioma, imagens e
cheiros culturalmente significativos, gírias, e outras situações, emergem, e se colocam como
variáveis com as quais o tradutor pode/tem que lidar de forma criativa sistematizada, ao mesmo
tempo em que busca preservar ao máximo o sentido do texto original. Como explicitado
anteriormente, nunca foi pretensão dessa pesquisa reescrever a história, e tentar inserir o
contrabaixo na roda de choro. Mas, nesse sentido, a transcriação nos abre uma porta nova rumo
ao que virá. Por isso, analisamos cinco exemplos bastante diferentes entre si, com o intuito de
mostrar algumas possibilidades já testadas e aprovadas por nós, e outras preparadas no final do
percurso desta pesquisa.

Nestes exemplos de transcriações, acreditamos ter chegado a um lugar interessante


no uso das baixarias, nas possibilidades composicionais (aqui, relacionado a forma/conteúdo)
e nas formações musicais. Alguns aspectos ainda ficaram sem respostas, como a capacidade de
audição e entendimento dessas linhas no receptor (ouvinte). Em todo caso, a nosso favor, se
assim podemos dizer, as linhas de violão também apresentam uma enorme dificuldade de
percepção real de suas notas, devido a vários fatores, como o arranjo, a capacidade técnica de
gravação e mixagem e as formações musicais com dois e três violões. Mesmo para ouvidos
treinados, como os nossos, em muitas ocasiões foi preciso a repetição do áudio por muitas vezes
para o entendimento exato de todas as notas tocadas no violão.
151

Porém, usando a dificuldade de escuta do violão para tratar do contrabaixo, tecemos


uma consideração relevante, que gostaríamos de detalhar. A direcionalidade incutida nas
baixarias, é, para nós, o coração pulsante na performance de um instrumentista de choro. E,
neste sentido, o entendimento real de cada nota não importa tanto, ou melhor, não é o foco
principal. O mais importante é a percepção do movimento da linha do baixo, seu caminhar,
mais do que a identificação de cada nota, e mesmo o que essa representa no acorde do momento.
E, aqui, novamente estabelecemos uma comparação com o jazz, no qual, muitas vezes, não
conseguimos compreender com nitidez, numa primeira audição, as notas tocadas pelo
contrabaixista no acompanhamento em walking bass.

Em todo caso, outros fatores, como o arranjo, a capacidade técnica de gravação e a


mixagem, as formações musicais e os músicos participantes da performance, irão interferir na
capacidade de entendimento do ouvinte.

Para fecharmos o raciocínio, mostramos que, independentemente da clareza ou não


de suas linhas, que passará pelos fatores citados acima, a inserção do contrabaixo no choro é
totalmente possível, desde que consiga cumprir as funções básicas a toda linha de baixo, como
indicar a direcionalidade, o suporte harmônico e a condução rítmica para todo o grupo
participante da performance. Acreditamos ter ilustrado isso nas transcriações discutidas neste
trabalho, o que nos aponta um resultado bastante promissor.

Por isso, este trabalho termina com uma sensação muito positiva, sobre o uso das
baixarias do choro no contrabaixo. Com o tempo e com o desenvolvimento de novos estudos
específicos, as baixarias poderão ser uma opção metodológica real para o ensino técnico do
contrabaixo em escolas e universidades do país. Acreditamos e trabalharemos para que este
estudo possa avançar ainda mais e chegar a um maior número de pessoas, e que possamos ter
um aprimoramento do ensino do contrabaixo baseado na cultura e na música popular brasileira.
152

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