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Dos quilombos aos quilombos de conhecimentos: espaços de resistência do negro
Josiney da Silva Trindade1
Vilma Aparecida de Pinho2
Resumo
Neste estudo tivemos como objetivo discutir as significações, ressignificações e ideologizações que o termo
“quilombo” adquiriu ao longo do tempo dentro das lutas dos movimentos políticos da população negra e no
processo de criação de um corpus teórico antirracista sólido. Realizamos uma pesquisa bibliográfica e tivemos
como base teórica Fiabani (2005, 2007, 2008), Moura (1993), Munanga (1996), Nascimento (2002), Nascimento
(2006) entre outros. Os resultados apontam que o termo “quilombo” passou por diversas redefinições no Brasil até
se tornar símbolo e categoria interpretativa. Ainda introduzimos os conceitos de Quilombos de conhecimentos e
quilombistas do conhecimento, que foram propostos como meios de pensar como os conhecimentos antirracistas
são pensados, organizados e fortalecidos).
Palavras-chave: Quilombo; Quilombismo; Quilombista; Antirracismo; Conhecimento.
From quilombos to quilombos of knowledge: spaces of black resistance
Abstract
In this study we aimed to discuss the meanings, resignifications and ideologizations that the term “quilombo”
acquired over time within the struggles of political movements of the black population and in the process of
creating a solid anti-racist theoretical corpus. We carried out bibliographic research and had as theoretical basis
Fiabani (2005, 2007, 2008), Moura (1993), Munanga (1996), Nascimento (2002), Nascimento (2006) among others.
The results show that the term “quilombo” has gone through several redefinitions in Brazil until it became a
symbol and an interpretive category. We also introduce the concepts of Knowledge Quilombos and Knowledge
Quilombists, which were proposed as a means of thinking about how anti-racist knowledge is thought, organized
and strengthened.
Keywords: Quilombo; Quilombism; Quilombist; Anti-racism; Knowledge.
Introdução
O sociólogo brasileiro Clóvis Moura (1993) ressalta que a reificação, a privação da
liberdade e outros inúmeros tipos de violência aos quais a população negra foi submetida no
regime escravocrata brasileiro, resultaram nos fenômenos da fuga e da criação de quilombos
por parte desses indivíduos. Neste estudo, teve-se como tema o quilombo, não apenas na
1
Programa de Pós-graduação em Educação e Cultura (PPGEDUC) da Universidade Federal do Pará (UFPA);
Cametá-PA; [email protected].
2
Universidade Federal do Pará (UFPA); Altamira-PA; [email protected].
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qualidade de instituição, mas como categoria conceitual e como símbolo de resistência da
população negra ao racismo e, consequentemente, aos diversos tipos de violências e
desumanização sofridas por ela ao longo da História do Brasil.
Desde os primeiros contatos, o homem branco atentou para o negro com um olhar
inteiramente racista e etnocêntrico, colocando os negros, suas culturas e seus valores dentro de
uma classificação hierárquica na qual ele, o branco, estava no nível mais elevado e o negro,
assim como outros povos não brancos, em um nível inferior. Tal ideologia justificou a
comercialização e escravização dos povos africanos e indígenas, e foi promovida ao longo da
História primeiramente pela religião e posteriormente sistematizada como conhecimento
científico pelas “ciências” ocidentais, entre meados do século XVIII a meados do século XX
(TODOROV, 1993).
Essas “ciências” que pregaram a existência de raças humanas tendo como base
elementos biológicos e culturais, ficaram conhecidas como Teorias Racialistas. Segundo Tzvetan
Todorov (1993), filósofo e linguista búlgaro radicado na França, essas pseudociências difundiam
cinco ideias principais: 1) que existiam raças humanas; 2) que existia uma interdependência
entre o físico e o moral; 3) que o comportamento do indivíduo estava condicionado, em grande
parte, à influência do grupo racial-cultural ao qual ele pertencia; 4) que havia uma hierarquia
universal de valores, na qual a raça branca era naturalmente superior às demais; 5) políticas
baseadas no saber, em que “a submissão das raças inferiores, ou mesmo sua eliminação, pode
ser justificada pelo saber acumulado a respeito das raças” (TODOROV, 1993, p.110-111).
No Brasil, como ressaltado por Pinho (2008), as discussões sobre raça fundamentadas
nas teorias racialistas europeias surgiram com o movimento dos reformistas abolicionistas,
entre os anos 1865 e 1870, e influenciaram incisivamente a elite intelectual brasileira, sendo
articuladas por essa última à outras ideologias, como o eugenismo e o sanitarismo, o que
resultou em políticas públicas de branqueamento e em drásticas consequências para a
população negra brasileira.
Pinho (2008) também enfatiza que por volta de 1930 as teorias racialistas tornaram-se
obsoletas para compreender a formação da sociedade brasileira. Nessa conjuntura, Gilberto
Freyre retoma a temática racial, porém, como ressaltado por Munanga (1999, p.78) “ele desloca
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o eixo da discussão, operando a passagem do conceito de ‘raça’ ao conceito de cultura”. Se
desenvolve agora uma visão positiva sobre a mestiçagem biológica e cultural, sendo essa
mestiçagem incentivada por políticas públicas, e, juntamente com essas políticas, vai se
estruturando também o discurso da “democracia racial” brasileira.
Essas teorias racialistas, sistematizadas por um grupo seleto de teóricos ocidentais, que
foram articuladas pelos teóricos do Brasil ao eugenismo, ao sanitarismo, ao branqueamento e à
mestiçagem, foram assimiladas não apenas pelos acadêmicos e intelectuais brasileiros, mas
pela sociedade civil. Isso refletiu diretamente nas relações sociais subjetivas e, principalmente,
na construção da identidade do negro, pois, além dos prejuízos ditos materiais, “essas
articulações práticas, fundamentadas nas teorias racialistas, tiveram efeitos culturais e
subjetivos, prejudicando sobremaneira a construção da identidade racial negra e as
possibilidades de ascensão social (PINHO, 2008, p.41).
Destaca-se aqui o papel da Ciência moderna na validação e propagação dessas teorias
para o senso comum, visto que ela possui o status de construtora e fonte de conhecimentos
universalmente válidos e são amplamente difundidas nas instituições de ensino. Destaca-se
ainda o papel da literatura (romancistas, científicas e didáticas) na promoção das ideologias
racistas, assim como, na naturalização de relações étnico-raciais desiguais.
Apesar das diversas ideologias racistas amplamente divulgadas como conhecimento
científico e apesar dos diversos mecanismos legais e sociais que por muito tempo negaram ou
reduziram drasticamente o acesso de negros aos espaços de aquisição e produção de
conhecimentos, muitos e muitas negras não só transpassaram essas barreiras, mas se utilizaram
do conhecimento, arma usada pelos dominadores, para contrapor os discursos racistas e criar
saberes e discursos emancipadores.
Nesse contínuo, foi balizado como objetivo geral discutir as significações,
ressignificações e ideologizações que o termo quilombo foi adquirindo ao longo do tempo,
tendo como base as lutas da população negra em resistência ao escravismo e subalternização,
assim como, seus movimentos políticos organizados e de criação de um corpus teórico
antirracista sólido. Para auxiliar no alcance desse objetivo, também foram demarcados três
objetivos específicos: a) discorrer sobre a origem e o uso do termo “quilombo” no Brasil; b)
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ponderar sobre o uso do termo quilombo como princípio ideológico e de organização política
da população negra brasileira; e c) introduzir os conceitos de “Quilombos de conhecimentos” e
“Quilombistas do conhecimento”.
Depois da introdução, o estudo está organizado da seguinte forma: na primeira seção
está descrita a metodologia; na segunda seção é discutida a origem do termo quilombo; na
terceira seção são feitas algumas considerações sobre o uso e as ressignificações que o termo
“quilombo” sofreu no Brasil; na quarta seção é considerado a passagem do sentido de
quilombo como instituição para quilombo como princípio ideológico de resistência política e
cultural, além disso são feitas algumas considerações sobre o Quilombismo; e na quinta, e
última seção, são introduzidos os conceitos de Quilombos de conhecimentos e quilombistas do
conhecimento.
Metodologia
Para alcance dos objetivos elencados nesse estudo, de abordagem qualitativa, foi
realizada uma pesquisa bibliográfica. Como ressaltado por Gil (2017, p.44), “a pesquisa
bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de
livros e artigos científicos”. Quanto à abordagem qualitativa, de acordo com Minayo (2001), ela
tem como proposta responder questões muito específicas, se preocupando com realidades que
não podem ser quantificadas, em outras palavras, trabalha com significados, motivações,
aspirações, crenças etc. e fenômenos que não podem ser operacionalizados por meio de
variáveis.
Os artigos foram buscados nas plataformas online Google Acadêmico e Scientific
Eletronic Library Online (SciELO), a partir dos descritores “quilombo” e “Quilombismo”. Os
critérios para inserção no corpus da pesquisa foram: ter como objeto de investigação o
quilombo e ter como língua de publicação o Português. Já os livros, entendidos como fontes de
dados com maior densidade teórica e de dados, foram elencados pela relevância dos autores
no campo de estudo e para uma melhor fundamentação teórica.
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A origem do termo quilombo
Kabengele Munanga (1996), antropólogo congolês com cidadania brasileira, ressalta que
a palavra Kilombo, que aportuguesada é escrita e pronunciada “quilombo”, é, sem dúvidas,
originária dos povos africanos bantos, sendo justificada sua presença no Brasil a partir da
diáspora dos membros desses povos no período da colonização europeia. O autor, a partir dos
escritos de Miller (1976)3, ainda pontua que, apesar do termo ser originário dos povos bantos, o
quilombo na qualidade de instituição social, política e militar tem origem com o povo africano
jaga, também conhecido como imbangala.
Beatriz Nascimento (2006, p.119), historiadora brasileira, salienta que “o Kilombo
cortava transversalmente as estruturas de linhagem [típicas da organização social da região] e
estabelecia uma nova centralidade de poder frente às outras instituições de Angola”. A autora
ainda ressalta que, nesse contexto histórico e cultural, o Kilombo poderia ser compreendido
como: a) o território ou campo de guerra denominado jaga; b) a instituição em si, ou seja,
correspondia a todo o grupo de indivíduos que incorporados à sociedade Imbangala por meio
da iniciação; c) ao local ou casa sagrada onde ocorriam os rituais de iniciação dos recrutados.
Já no contexto da diáspora, o quilombo tem origem na insurgência contra a dominação
ocidental. Como enfatizado por Trindade, Pinho e Silva (2021), por serem tidos como
não-humanos, coisas ou mercadorias, os negros sofriam diversos tipos de violências, o que
impulsionava a rebelião, a fuga e a criação de quilombos. Esse último foi um fenômeno comum
nas américas e no Caribe, onde, dependendo da região em que estavam localizados, eram
denominados como palenques, cumbes, marrons, cimarrones e mainels (FLORENTINO;
AMANTINO, 2012).
Segundo Munanga (1996), a formação dos Kilombos no continente africano, em
particular na área cultural bantu, deu-se nos séculos XVI e XVII, período em que já havia
registros da presença de quilombos também no Brasil. Nesse contexto histórico, como ressalta
o autor, não há como negar que indivíduos escravizados de origem banto tenham atuado como
lideranças nos movimentos organizados de fuga, em especial indivíduos de origem angolana,
3
MILLER, J. C. King and Kinsmen. Early MbunduStates in Angola. Oxford, Crerand Press, 1976, p.151-75.
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região onde surgiu o quilombo como instituição. Munanga (1996) ainda enfatiza que:
O quilombo brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do quilombo africano
reconstruído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata,
pela implantação de uma outra estrutura política na qual se encontraram todos
os oprimidos. Escravizados, revoltados, organizaram-se para fugir das senzalas
e das plantações e ocuparam partes de territórios brasileiros não-povoados,
geralmente de acesso difícil. Imitando o modelo africano, eles transformaram
esses territórios em espécie de campos de iniciação à resistência, campos
esses abertos a todos os oprimidos da sociedade (negros, índios e brancos),
prefigurando um modelo de democracia plurirracial que o Brasil ainda está a
buscar (MUNANGA, 1996, p.63, grifos nossos).
Não de modo contrário, mas em complemento a Munanga (1996), Nascimento (2006)
faz uma ressalva sobre as dificuldades em serem estabelecidos indícios que impliquem relações
diretas entre os kilombos africanos da Angola e os quilombos brasileiros. Um dos
questionamentos exemplificados pela autora foi a respeito dos indivíduos que compunham os
quilombos brasileiros, se eles “eram descendentes diretos dos envolvidos na África, ou ainda se
haveria relação direta com quilombos combativos aqui e grupos africanos que atuavam na zona
de guerra naquele momento do outro lado do Atlântico” (NASCIMENTO, 2006, p.119).
Compreende-se aqui que no contexto brasileiro, longe de ser apenas um local de fuga
ou um esconderijo, os quilombos se configuraram como um lugar de resistência não apenas
física e bélica, mas principalmente de resistência política e cultural, contra o colonizador.
Somando-se e ampliando esse entendimento, Nascimento (2006, p.111) corrobora que a
criação dos quilombos se deu pela necessidade de continuidade histórica, entendida pela
autora como continuidade da vida “aparentemente sem clivagens, embora achatada pelos
vários processos e formas de dominação, subordinação, dominância e subserviência”.
Na instituição do quilombo há, de um lado, a negação de um modelo de sociedade
baseado na desumanização, subalternização e exploração de seus pares tidos como inferiores e,
de outro lado, a ambição por um modelo de sociedade plurirracial e pluricultural, conceituada
por Munanga (1996) como transcultural.
Na instituição do quilombo e, consequentemente, na negação da sociedade
escravagista/racista nega-se a dualidade cidadão versus escravo, surge então uma terceira
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pessoa, o quilombola. Essa terceira pessoa, classificada por Moura (2001, p.106) como “um
novo ser” era “contraposto ao escravo e que somente enquanto quilombola podia assim pensar
e sobretudo agir”, era na condição de quilombola que o negro construía a sua cidadania.
O uso e ressignificações do termo “quilombo” no Brasil
No Brasil, o termo “quilombo” foi configurado e ressignificado a partir das experiências
sociais, culturais e históricas entre os sujeitos que constituem os quilombos e, principalmente, a
partir das relações de resistência à sociedade externa, relações essas que quase sempre se
deram de maneira violenta ou, no mínimo, conflituosa.
Fiabani (2005) considera que um dos primeiros registros escritos de definição do que é
um quilombo se encontra no Regimento dos Capitães do Mato, documento datado de 1722, no
qual fica definido como quilombo um grupo com mais de quatro negros fugitivos isolados de
povoações, com condições de subsistência no local. Já em 1740 é encontrada outra
conceituação de quilombo, dessa vez dispensada pelo Conselho Ultramarino, o qual o defini
como um agrupamento estabelecido por mais de cinco negros fugitivos isolados de
povoamento, ainda que sem meios de subsistência no local (GOMES, 2015).
Gomes (2015) ainda ressalta que houve outras definições nos séculos XVII e XIX, sendo
que em algumas era considerado como quilombo um grupo com dois ou mais negros fugitivos e
em outras apenas quando houvesse meios de subsistência para o grupo. De modo geral, essas
definições jurídico-formais levavam em consideração a fuga, número de negros fugitivos,
localização geográfica, moradia e subsistência (ALMEIDA, 2011).
Como ressaltado por Trindade, Pinho e Silva (2021), teoricamente, considerando os
critérios dos conceitos acima descritos, os quilombos deixam de existir com a Lei Áurea em
1888, já que os negros deixam de ser escravizados, pelo menos legalmente, e passam e ser
homens e mulheres livres. No entanto, ainda segundo os autores, na prática essas comunidades
não deixaram de existir, mas se recriaram, se reinventaram, se fortaleceram e resistiram até os
dias de hoje contra todos os processos de invisibilização e negação de direitos.
Apesar do fim da escravidão e, consequentemente, da necessidade de fuga para regiões
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distantes, os quilombos ainda continuaram a serem entendidos no imaginário social como
comunidades de escravos fugidos, só a partir de 1988, depois da Constituição Federal, é que o
termo começa a ganhar outra conotação (FIABANI, 2008). Em outro estudo, Fiabani (2007)
ressalta que essa ressignificação se inicia justamente pelas discussões em torno das
contradições interpretativas dos dispositivos que fazem menção aos quilombolas na
Constituição de 1988.
Nesse contexto, no entendimento do autor, havia duas possibilidades para solucionar o
que ele define como discriminação: a primeira seria a mobilização social para criação de uma lei
ampla que contemplasse todas as comunidades rurais negras, em suas diversas origens; e a
segunda seria “pressionar por extensão da interpretação casuística da lei, através da ampliação
arbitrária da categoria quilombo” (FIABANI, 2007, p.7). Optou-se por essa última.
Diante da conjuntura de contradições e conflitos, causado principalmente pela
necessidade de serem contempladas todas as comunidades negras – rurais e urbanas – em suas
demandas, em 1990, dois anos após a promulgação da Constituição Federal, a Fundação
Cultural Palmares define quilombo como: “Sítios historicamente ocupados por negros que
tenham resíduos arqueológicos de sua presença, inclusive as áreas ocupadas ainda hoje por
seus descendentes, com conteúdos etnográficos e culturais (REVISTA ISTO É, 1990 apud
FIABANI, 2008. p.39).
E, a partir do seminário Conceito de Quilombo, realizado em 1994¸ a Fundação Palmares
passou a utilizar o termo “quilombos contemporâneos” para englobar as comunidades negras
que não se originaram de escravizados fugidos. Foi delimitado esse conceito para melhor
compreensão e consenso da questão, de modo que:
[Optou-se] por chamar todas as comunidades rurais negras atuais de
‘quilombos contemporâneos’, o que permite diferenciá-las das comunidades
‘remanescentes de quilombo’, originadas efetivamente em antigos ‘quilombos’.
Assim, preservamos a rica história de resistência dos trabalhadores
escravizados que construíram o ‘quilombo histórico’ (FIABANI, 2007, p.8).
Além disso, como enfatizado por Fiabani (2008) surge outro movimento reivindicatório
por parte dos quilombolas, do Movimento Negro e outras organizações, este é, que a
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identificação venha das próprias comunidades e não de grupos, órgão ou instituições externas.
Reivindicou-se a autoidentificação.
Essa demanda do movimento quilombola foi atendida pelo Decreto nº 4.887, de 20 de
novembro de 2003, que regulamentou o procedimento para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras quilombolas. Nele fica entendido como
remanescentes de quilombos: “Os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (BRASIL, 2003,
p.1).
É válido ressaltar que, o direito à autoidentificação proporcionou maiores possibilidades
para que as comunidades negras localizadas nos centros urbanos também se percebam, se
reconheçam e se autoafirmem como quilombolas, tendo suas identidades respeitadas e suas
demandas históricas atendidas.
Para fim das discussões em torno do termo quilombo, as quais foram propostas nessa
seção, Arruti (2006, p.97) destaca que é preciso que haja o reconhecimento do quilombo para
além das relações étnicas, mas de igual forma no plano dos discursos produzidos sobre tais
relações, de tal maneira que esses discursos sejam “capazes de pautar uma política de
reconhecimento por parte do Estado; e é nesse sentido que deveríamos nos reapropriar
problematicamente desse objeto depois de termos ajudado a construí-lo”.
Não só enquanto instituição, mas principalmente como símbolo de resistência, o
quilombo passa a se constituir como um princípio ideológico e de organização política dos
movimentos antirracistas do Brasil. É isso que será abordado na próxima seção.
O quilombo como princípio ideológico de resistência política e cultural e o Quilombismo
Moura (2001) caracteriza a o quilombo como um modelo de sociedade alternativa,
paralela e resistente à sociedade escravista, sendo o negro seu instituinte e constituinte que,
através da fuga, traduzia sua inconformidade com o modelo de ser sociedade trazido pelo
ocidente, assim como, sua inconformidade com a sua posição dentro dessa organização social
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colonial.
O autor compreende esse processo de negação à submissão e¸ consequentemente, de
fuga como sendo solitário no primeiro momento, mas que no segundo momento, pela
socialização do sentimento de inconformidade e de insubmissão, os negros insurgentes se
organizam em comunidades, nos quilombos. Nas palavras do autor
Era, portanto, a passagem no nível de consciência do negro fugido para o de
quilombola. O seu protesto solitário adquiria um sentido social mais
abrangente e já se expressava em atos de interação coletivos. O quilombola
era, portanto, um ser social com uma visão menos fragmentária da
necessidade de negar coletiva e organizadamente o instituto da escravidão
(MOURA, 2001, p.105).
Caminhando para o que se pretende tratar aqui, Nascimento (2006) ressalta que, já no
fim do Século XIX, o quilombo vai sendo ressignificado como um instrumento ideológico contra
a opressão e dominação. Sendo com essa configuração que o quilombo se instaura no Século
XX, como um símbolo de luta e resistência da população negra, não só quilombola, mas em
geral.
Ainda segundo a autora, essa nova forma de entender o quilombo, não apenas como
uma instituição negra, mas como um símbolo de resistência, novamente o redefine. Pois, a
saída do antigo regime e o momento de definição da nacionalidade impulsionam uma busca
dos intelectuais da época pelos aspectos positivos do fenômeno quilombola, que possivelmente
contribuíram para a construção de uma identidade histórica brasileira.
Nascimento (2006, p.124) entende que o quilombo enquanto prática política “apregoa
ideais de emancipação de cunho liberal que a qualquer momento de crise da nacionalidade
brasileira corrige distorções impostas pelos poderes dominantes”. Isso pode ser verificado no
contexto do Regime Militar de 1970, no qual a retórica do quilombo e sua análise serviu de
fundamento para um movimento negro que discursa sobre a necessidade de uma
autoafirmação e de um resgate de uma identidade cultural afrocentrada. Desse modo, assim
como no regime colonialista, na década de 1970 “o quilombo volta-se como código que reage
ao colonialismo cultural, reafirma a herança africana e busca um modelo brasileiro capaz de
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reforçar a identidade étnica” (NASCIMENTO, 2006, p.124).
Abdias do Nascimento, assim como Beatriz Nascimento, foi um dos principais teóricos
brasileiros que se debruçaram sobre o quilombo. O intelectual entendia o quilombo como um
importante símbolo mobilizador da luta anti-imperialista, da luta contra o colonialismo cultural,
assim como, um elemento de afirmação das heranças africanas e da identidade étnico-racial do
negro. Além disso, o autor via no quilombo um modelo de organização social com aspectos
econômicos, políticos e culturais inspiradores para a construção de uma identidade histórica
brasileira, chegando a propor a criação do Estado Nacional Quilombista.
No conceito ampliado por Nascimento (2002), o quilombo, como território livre, político
e símbolo de resistência, vai além do que é comumente pensado ao se falar sobre ele, ou seja,
uma comunidade quase sempre estrategicamente isolada em algum lugar da floresta. Para ele,
além dos quilombos que nascem da inconformidade e na ilegalidade, há também outros
quilombos que foram e são legalizados pela sociedade dominante, que são classificados por ele
como “organizações permitidas ou toleradas”, como por exemplo, as associações, as
irmandades, os clubes, os grêmios, os terreiros, os afoxés, as escolas de samba, as gafieiras
entre outros.
Nascimento (2002) conceitua esse movimento múltiplo e amplo de resistência, e por
isso de prática da liberdade, de afirmação humana, política, cultural e étnica, como
Quilombismo. Para o autor, o Quilombismo é uma força que se revela “capaz de mobilizar
disciplinadamente o povo afro-brasileiro por causa do profundo apelo psicossocial cujas raízes
estão entranhadas na história, na cultura e na vivência dos afro-brasileiros” (NASCIMENTO,
2002, p.338). O autor se refere e ainda define o Quilombismo como sendo: “Uma luta
antiimperialista, [que] sustenta radical solidariedade com todos os povos em luta contra a
exploração, a opressão, o racismo e as desigualdades motivadas por raça, cor, religião ou
ideologia” (NASCIMENTO, 2002, p.340).
Apesar do autor entender o Quilombismo como um movimento que transpassa toda a
História do povo negro brasileiro, consideramos que é a partir das ressignificações do conceito
de quilombo, o que possibilitou a desconstrução de diversos estereótipos produzidos e
reproduzidos ao longo da História, que o Movimento Negro se apropria (no sentido positivo da
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palavra) desse constructo. De modo que o Quilombismo, emblematizados no quilombo
enquanto símbolo de resistência, não surge necessariamente no interior do Movimento
Quilombola, mas sim do Movimento Negro no qual o primeiro se inclui. Movimento Negro
entendido aqui como:
A luta dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na sociedade
abrangente, em particular os provenientes dos preconceitos e das
discriminações raciais, que os marginalizam no mercado de trabalho, no
sistema educacional, político, social e cultural. Para o movimento negro, a
‘raça’, e, por conseguinte, a identidade racial, é utilizada não só como
elemento de mobilização, mas também de mediação das reivindicações
políticas. Em outras palavras, para o movimento negro, a ‘raça’ é o fator
determinante de organização dos negros em torno de um projeto comum de
ação (DOMINGUES, 2007, p.102).
Diferentemente dos quilombos históricos que foram formados pela inconformidade e
insurgência do negro escravizado contra o regime escravocrata, o quilombo redefinido pelo
Movimento Negro, enquanto conceito e símbolo, tem a raça e a identidade racial como seus
elementos de mobilização, assim como, de mediação para reinvindicações por políticas de
reparação e promoção da igualdade racial.
É importante compreender aqui que os quilombos contemporâneos, seguindo o
posicionamento do Movimento Negro, também se apropriam do constructo sociológico de raça
como elemento de mobilização e reinvindicação. Há que se enfatizar ainda que, para esses
grupos, não só a raça, mas o território e a territorialidade são elementos importantíssimos de
mobilização e reivindicação.
Dando continuidade à discussão, assim como houve com o surgimento do quilombo
enquanto instituição uma “passagem de consciência” – termo usado por Moura (2001) – de
negro fugitivo para quilombola, entende-se aqui que nesse novo contexto, no qual o quilombo
é redefinido pelo Movimento Negro como um conceito e como um símbolo, há então uma nova
“passagem de consciência”, a de quilombola para quilombista.
Nessa nova “passagem de consciência”, de quilombola (contemporâneo) para
quilombista, o primeiro não perde sua identidade, mas assume uma postura política e cultural
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de resgate, de afirmação e de fortalecimento da identidade afro-brasileira, da identidade negra.
Do mesmo modo, assume uma postura de valorização das heranças históricas e culturais
africanas, como sendo elementos importantíssimos e intrínsecos à construção da identidade
negra, em particular da identidade quilombola, assim como, para a construção da identidade
nacional.
Apesar de Nascimento (2002) entender que o quilombista vem desde o Século XV
atuando como ideia-força que está constantemente se reatualizando para se adaptar às
exigências do tempo histórico e das situações do meio geográfico, entende-se aqui que o
quilombista só existe quando o quilombo passa de instituição para símbolo de resistência,
quando ele ressignifica a raça e a usa como elemento de mobilização e, principalmente, quando
esse sujeito tem consciência desse processo. O quilombista, ciente da necessidade de
quilombar-se política e culturalmente enquanto negro, tem todas as suas ações, aspirações e
produções simbólicas e matérias marcadas por esse pensamento.
Quilombos de conhecimentos e quilombistas do conhecimento
Há outro aspecto no Quilombismo que também precisa ser abordado, que é a sua
contribuição e atuação como um movimento de resistência epistêmica que se opõe à suposta
universalidade do conhecimento hegemônico. Conhecimentos esses originados ou
consolidados nas relações de dominação colonial protagonizadas pelo ocidente e que muitas
vezes foram desveladamente racistas, operando para a inferiorização, desumanização e
dominação do negro. Além disso, tais conhecimentos ainda se mostram como importante
instrumento usado pela classe dominante na tentativa de apagar e invisibilizar a História do
negro, assim como, de desvalidar e subvalorizar seus conhecimentos e saberes. Isso como uma
estratégia de manutenção de privilégios e do próprio poder.
Para o negro quilombista, segundo Nascimento (2002), não basta apenas reivindicar e
garantir direitos sociais e civis, é preciso derrotar todos os componentes que sustentam as
estruturas da sociedade racista. Derrocar toda base ideológica racista que se expressa por meio
do conhecimento pseudocientífico que fundamentou e justificou a desumanização dos
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africanos diaspóricos e seus descendentes.
Para o autor, em uma constante negação da falaciosidade de uma ciência que se propõe
universal, o conhecimento científico necessário ao negro é aquele que o permita formular
teórica, sistemática e substancialmente a sua experiência enquanto oprimido e, acrescenta-se
aqui, como um ser diaspórico. Tarefa que, para Nascimento (2002), deve ser feita por
historiadores, sociólogos, antropólogos, pensadores, filósofos e cientistas políticos que se
fizeram como tal a partir da luta, resistência e revolução negra. Desse modo,
A cristalização dos nossos conceitos, definições ou princípios deve exprimir a
vivência de cultura e de praxis da coletividade negra. Incorporar nossa
integridade de ser total, em nosso tempo histórico, enriquecendo e
aumentando nossa capacidade de luta. Precisamos e devemos codificar nossa
experiência por nós mesmos, sistematizá-la, interpretá-la e tirar desse ato
todas as lições teóricas e práticas conforme a perspectiva exclusiva dos
interesses da população negra e de sua respectiva visão de futuro. Esta se
apresenta como a tarefa da atual geração afro-brasileira: edificar a ciência
histórico-humanista do Quilombismo (NASCIMENTO, 2002, p.347-348).
A recuperação e descrição do pensamento quilombista de Nascimento (2002) se
tornaram necessárias nesse estudo, em particular nessa seção, por dois motivos: a) pela
necessidade de se pensar a forma como alguns conceitos externos às discussões das relações
étnico-raciais são apropriados pelo intelectual e pelo acadêmico negro, o que desemborca em
outra demanda, a de buscar e formular conceitos e princípios a partir da experiência histórica,
política e cultural negra. Isso, não em um movimento de negação em bloco de epistemologias,
princípios e conceitos externos à luta antirracista, mas em um movimento de valorização da rica
e consistente produção intelectual negra brasileira, assim como, de promoção, produção e
fortalecimento de um corpus teórico com conceitos e categorias interpretativas que realmente
contribua para a análise da experiência do negro e que realmente solidifique e sedimente a luta
antirracista; b) porque é a partir do resgate da categoria quilombo e do pensamento de
Nascimento (2002) que serão propostos dois outros conceitos, a saber, “Quilombos de
conhecimentos” e “quilombista do conhecimento”.
Os negros e negras, ainda que à margem e ainda sendo marginalizados, resistem não
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apenas física, política e culturalmente, mas também epistemologicamente. Epistemologias
essas marcadas pela diferença colonial e, principalmente, pela luta antirracista.
Quando os negros e negras exigem de volta a humanidade arrancada pelos racistas e,
mais que isso, quando eles tomam de volta para si o direito de contar suas Histórias, de refletir
sobre elas e de produzir conhecimentos a partir dessa reflexão, eles e elas fazem justamente o
movimento de edificar Quilombos de conhecimentos.
Mas o que são esses quilombos de conhecimentos? Importa situar que os quilombos de
conhecimentos nascem da recusa ao processo de dominação que nega à pessoa negra o direito
a ser, existir, falar e saber. Nascem da inconformidade com os discursos racistas que
inferiorizam, desumanizam e estigmatizam o negro. Nascem da insubmissão e da insurgência da
pessoa negra que – ao tomar de volta para si o direito de ser, refletir, falar, escrever, conhecer e
ler o mundo em suas contradições – cria e projeta discursos emancipatórios, discursos próprios
sobre a sua humanidade e, ao mesmo tempo, produz conhecimentos e discursos que
denunciam o opressor.
Esses quilombos surgem porque o negro precisou impor sua existência, sua humanidade
e, principalmente, seus saberes e conhecimentos que por muito tempo foram descaradamente
desrespeitados e violados nos espaços dominados pelo opressor e seus cumplices. É nos
quilombos de conhecimentos que acontecem as insurgências epistemológicas, é onde a (re)
educação das relações étnico-raciais são pensadas, é onde o negro emancipa a si e ao seu
pensamento.
Todo quilombo de conhecimento tem por princípio a emancipação e afirmação do negro
enquanto ser social, político, cultural, histórico e produtor de conhecimentos. Por isso se impõe
veementemente contrário a toda violência fundamentada em marcadores sociais como raça,
cor, gênero, etnia, religião, assim como, na exploração, opressão, expropriação, dominação e
outras ideologias de violência e desumanização.
É proposto aqui o termo Quilombos de conhecimentos no plural porque eles, assim
como os quilombos históricos e contemporâneos, são múltiplos em suas origens, histórias,
constituições, tradições, proposições e em suas produções de saberes e conhecimentos. O que
define um quilombo de conhecimento são seus elementos mobilizadores de produção de
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conhecimentos antirracistas, tais como a raça, o gênero, as relações de classe, a arte, a política,
a cultura, a economia, o mundo do trabalho, a violência, o encarceramento, a religião e outros.
Esses elementos podem se apresentar isoladamente ou, emprestando o conceito de Kimberlé
Crenshaw (1989), de forma interseccionalizada, cruzada. No entanto, todos eles se apresentam
de forma secundarizada, pois todo quilombo conhecimento tem a raça, em seu sentido
sociológico, como elemento mobilizador central da reflexão e da produção de conhecimentos e
discursos. Isso porque marcadores sociais isolados, tais como classe e gênero, não abarcam por
si só experiência histórica da população negra e a complexidade do que é ser negro e negra.
É importante dizer que os quilombos de conhecimentos não podem ser confundidos
com o Movimento Negro, ainda que esse último seja entendido por Gomes (2017) como um
ator político, educador e produtor de conhecimentos. Um quilombo de conhecimento é um
espaço não físico onde os conhecimentos produzidos por intelectuais e acadêmicos negros se
encontram e têm em comum a luta antirracista.
Um quilombo de conhecimento não é unicamente um lugar de reflexão sobre a luta
antirracista ou apenas de reflexão sobre os diversos intemperes que atravessam o corpo negro
ou só de produção de conhecimentos a partir dessas reflexões, mas é também um espaço de
pensar criticamente sobre os conhecimentos produzidos, sobre suas bases e, principalmente,
sobre como esses conhecimentos irão afetar, positiva ou negativamente, a vida do negro
enquanto ser concreto, cultural, político e histórico. Um quilombo de conhecimento é um
espaço de produção e reflexão crítica sobre os discursos antirracistas projetados para a
população negra e para a população branca.
De fato, os quilombos de conhecimentos representam o lugar por excelência em que os
conhecimentos, os saberes, as epistemes, cognições e os discursos dos filhos e das filhas
diaspóricas da Mãe África se encontram, dialogam e traçam os cominhos da resistência e da
luta antirracista.
Todo quilombo de conhecimento é instituído e constituído por quilombistas do
conhecimento, que são produtores e produtoras de conhecimentos e discursos
anti-hegemônicos e, principalmente, antirracistas. Conhecimentos e discursos marcados pela
experiência da diferença colonial, pela experiência de resistência e reexistência do negro, pela
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afirmação da humanidade e pela afirmação étnico-racial e cultural do negro.
O quilombista do conhecimento constrói princípios, conceitos e categorias conceituais e
interpretativas a partir e na experiência do negro enquanto ser racializado, com a única
finalidade de promover a luta antirracista – ampla em suas reivindicações e proposições –,
assim como, a emancipação do negro, do indígena e, também, do branco.
Nesse sentido, o quilombista do conhecimento é um intelectual epistemologicamente
quilombado, isto é, que tem suas reflexões, discursos e conhecimentos centrados no ser negro,
que não negam as epistemologias ocidentais em totalidade, mas fundamentam suas produções
intelectuais a partir das experiências, saberes e conhecimentos sistematizados por outros
intelectuais negros ou por intelectuais não-negros que realmente estejam engajados na luta
antirracista.
Considerações finais
A população negra, que ainda luta contra o racismo, a discriminação racial e violências
correlatas, adotou diversas estratégias de combate e resistência à desumanização,
subalternização e genocídio. Essas estratégias não desembocaram apenas em resistência física,
econômica, política, religiosa e cultural, mas também em resistência epistêmica. Essa última,
marcada pela construção de uma rica e consistente produção intelectual, com um amplo corpus
teórico de conceitos e categorias interpretativas de análise da experiência do negro.
É fato que o conhecimento exerceu e ainda exerce um papel central na produção,
reprodução e manutenção do modelo de sociedade construído tendo como base diversos tipos
de opressão que se utilizam de marcadores sociais como raça, gênero, sexualidade e classe
social. No entanto, como observamos ao longo desse estudo, o conhecimento também é
utilizado em um contramovimento, isto é, como um instrumento de combate a essas opressões,
nesse caso, o racismo.
Nesse contramovimento, o quilombo e o quilombola, enquanto símbolos de resistência,
se tornaram importantes instrumentos de mobilização política e epistêmica para a população
negra. A partir dessas categorias, diversos intelectuais negros e não-negros sistematizaram
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estudos e conceitos importantes para a luta antirracista e para mediação e reinvindicações por
políticas de reparação e promoção da igualdade racial.
Como vimos, o termo “quilombo”, originário da língua bantu, passou por diversas
redefinições conceituais no Brasil, até se tornar símbolo e categoria interpretativa. A partir
desse termo, também introduzimos os conceitos de Quilombos de conhecimentos e
Quilombistas do conhecimento, que são propostos como meios de pensar a forma como os
conhecimentos antirracistas são pensados, organizados e se fortalecem.
A promoção de estudos como este, que tem como objeto o quilombo, é importante para
pensarmos a experiência do negro enquanto ser racializado e, principalmente, para
construirmos conhecimentos e saberes quilombados importantes para a luta antirracista, essa
última entendida aqui como sinônimo de emancipação e de uma real humanização tanto do
negro como do branco.
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