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Suicídio entre Jovens Indígenas no Brasil

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ma m aq

Imagem: Pxhere

tiolência autoinligida:
jovens indígenas e os
enigmas do suicídio
Lucia Helena Rangel

27 . número 25 . ano 7 . out-dez 2019 ma m aq


Tema espinhoso, difícil, mas necessário atualmente, visto que os dados apontam
para um aumento dos casos de suicídio entre jovens no mundo, no Brasil e, neste
país, em relação aos povos indígenas. Os dados que serão apresentados neste
artigo estão contidos no Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil,
publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Os registros
mostram a evolução das ocorrências, em âmbito do território brasileiro, porém, não
esgotam plenamente a realidade. Mesmo que parciais, os dados revelam tendências,
provocam dúvidas e muitos questionamentos. Gostaria de poder esclarecer todas as
interpelações, mas temo que isso não será possível, pela própria impossibilidade de se
conhecer o assunto suicídio em toda sua complexidade.

O suicídio é um fato social, assim dizem todos os que estudaram o fenômeno, desde
Émile Durkheim, que o estudou e o classiicou em tipos: suicídio egoísta; suicídio altruísta
e suicídio anômico, acrescentando o tipo fatalista. São tipos referentes ao contexto
social e aos propósitos dos sujeitos que os cometem. Podemos dizer que o suicídio é
um fato social total, complexo, pois ocorre no âmbito do livre arbítrio e envolve muitos
fatores: psíquicos; sociais; familiares; econômicos; políticos; existenciais; escolares;
por adicção ao álcool e outras drogas; exposição a agrotóxicos, enim, todos juntos
ou enfatizados caso a caso. Não se trata de uma relação de causa e efeito, mas de
uma constelação de fatores que permitem estabelecer uma associação entre estes e
as condições que cercam o indivíduo suicida. Certamente existem razões que levam
ao suicídio, no entanto, há sempre um contexto variado em que a ocorrência de casos
pode ser compreendida histórica e socialmente, em que o efeito se torna causa e a
causa se torna efeito.

Entre os povos indígenas que habitam o território brasileiro, há uma recorrência


de situações violentas, pressões sociais e racismos que podem estar associados a
práticas suicidas, envolvendo alguns ou muitos indivíduos de uma mesma localidade
e ao mesmo tempo. Na tabela a seguir, pode-se ver a evolução de casos nos diversos
estados da federação brasileira. O caso mais agudo refere-se ao povo Guarani e Kaiowá
do Mato Grosso do Sul que, no espaço de 19 anos, apresenta uma média aproximada
de 45 ocorrências por ano. Em seguida, há o estado do Amazonas, cujos casos afetam
os povos Ticuna, do Alto Solimões, e os moradores de São Gabriel da Cachoeira, cidade
que abriga 95% de população indígena, envolvendo os povos do Alto Rio Negro. Nota-
se que, ao longo dos anos, há alguns episódios signiicativos, como os casos em ;
no entanto, a incidência de casos a partir de 2014 revela uma situação recrudescente.
Também em Roraima, há casos expressivos a partir de . No Tocantins e no Paraná,
foram registrados casos em anos recentes, e o fenômeno se torna presente no Acre,
no Maranhão, no Ceará, no Mato Grosso, além de registros feitos em Pernambuco,
Minas Gerais e casos pontuais em Alagoas, Bahia, Goiás e Rondônia. A observação que
deve ser feita é a de que, possivelmente, exista uma subnotiicação de ocorrências
tanto por parte dos órgãos de saúde, quanto pelas equipes do CIMI que atuam nas
áreas indígenas.

Além disso, o que foi reunido na tabela a seguir omitiu alguns dados importantes, tais
como a sequência de atos entre os Karajá da Ilha do Bananal, que entre 2010 e 2016

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cometeram 42 suicídios por enforcamento, em um total de 95 tentativas. Em 2010/2011,
há um primeiro enforcamento, de um jovem recém-casado que, ao que tudo indica,
comete o ato por estar infeliz, sentindo-se muito pressionado por ter de cumprir as
obrigações de genro (ir morar na casa da sogra e trabalhar para o sogro). A prescrição
determina que, se o noivo falhar em seu compromisso, será espancado por seus
cunhados e sua família sofrerá muita humilhação. Este jovem noivo recorre ao suicídio
para escapar da situação e, assim, livra sua família da humilhação. Ele inova na técnica
e se enforca. Logo em seguida, seu melhor amigo faz o mesmo e daí se seguem muitos
casos de enforcamento, como em um efeito dominó.

Alguns aspectos gerais nesse caso chamam atenção, pois a maior parte dos atos é
cometida por jovens entre 14 e 29 anos. A maior parte são rapazes solteiros ou recém-
casados, embora nos últimos anos haja um aumento de vítimas do sexo feminino.
Para Otoniel Guarani-Kaiowá, o motivo de tantos jovens cometerem suicídio é a falta
de perspectiva: “não têm futuro, não têm respeito, não têm trabalho e nem terra para
plantar e viver. Escolhem morrer porque, na verdade, já estão mortos por dentro”
(Conselho Indigenista Missionário, 2013, p. 79). Talvez isso possa ser verdade para um
determinado contexto, porém, nem sempre há falta de terras de forma tão brutal
quanto no Mato grosso do Sul, afinal, a opressão atinge as comunidades de diversas
maneiras.

Há uma reserva, uma atitude reticente de muitas lideranças e membros das comunidades
indígenas em falar desse assunto abertamente. Por um lado, há a ponderação de que,
ao falar demais, pode haver risco de disseminação da ideia e inluenciar as pessoas.
Por outro lado, parece haver uma reserva religiosa que não é muito bem explicitada.
Do mesmo modo, a explicação sobre as razões das ocorrências recai principalmente
sobre a feitiçaria, o poder do feitiço que encarna as pessoas e as levam a cometer o
ato extremo.

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rabela: Suicídios entre indígenas no Brasil

Período
UF Total
AC 2 5 2 9
AL/SE 1 1
AM 3 11 5 3 1 56 24 50 54 36 243
AP 1 1 2
BA 2 2
CE 2 3 2 7
GO 1 1
MA 8 1 6 1 16
MG 2 3 5
MT 2 4 1 1 2 2 2 14
MS 44 40 38 53 42 50 40 40 59 42 40 45 56 73 48 45 30 31 44 860
PA 2 1 1 3 7
PE 1 2 2 5
PR 1 1 3 3 4 2 4 18
RO 1 1
RR 4 1 8 10 18 13 5 59
TO 6 3 2 2 7 1 21
Total 55

Fontes: Conselho Indigenista Missionário; Ministério da Saúde; Secretarias Estaduais de Saúde.

As análises a respeito da situação em Mato Grosso do Sul apontam para o cenário de


genocídio que afeta os povos que vivem nessa região: são os Guarani e Kaiowá, os Terena,
os Kinikinao e os Kadiwéu. Entretanto, é sobre o povo Guarani e Kaiowá que recai a maior
tragédia: população coninada em territórios exíguos, cujas consequências maiores
são os conlitos internos, as desavenças familiares, os comportamentos violentos
devido ao alto consumo de bebidas alcoólicas, o envolvimento com o mundo das
drogas, estupros, roubos. Das 31 terras reconhecidas pelo Estado brasileiro, os Guarani-
Kaiowá e Ñhandeva estão em posse de apenas 29,04% delas. Com uma população de
54.658 pessoas, segundo a Funai, as comunidades ocupam 70.370 dos 242.370 hectares
reconhecidos oicialmente como territórios tradicionais. Tem-se, desse modo, que a
ocupação de terras para esse povo representa , hectares por pessoa. Isso signiica
mais do que limites estreitos para viver. Certa vez, em um acampamento de beira de
estrada, o senhor Hamilton Lopes, já falecido, airmou: o que faz um homem sem terra
para plantar? Bebe”.

A falta de terra é a própria impossibilidade de reprodução da vida. Um homem Guarani


(Kaiowá, Ñdeva, Mbya) torna-se adulto quando faz um roçado para oferecer à mulher
com quem vai se casar, como parte inal do ritual de iniciação. A diiculdade em tornar-
se adulto levou os jovens a irem trabalhar no corte de cana; muitos deles falsiicavam
o documento para comprovar que estavam em idade de trabalhar. Assim, tornavam-
se homens: passavam a semana no corte de cana, ganhavam um dinheiro, e antes de
chegar a casa, consumiam o dinheiro em forma de pinga, como faziam todos os adultos.

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Segundo o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Mato Grosso do Sul, nos últimos
13 anos, cerca de 611 indígenas suicidaram-se, isto é, 1 a cada 7,7 dias. O que está em causa
nessa quantidade absurda de enforcamentos e envenenamentos? A falta de acesso aos
territórios tradicionais gera a impossibilidade de vivência plena dos usos e costumes,
conforme garante a Constituição Federal de 1988; gera também números assustadores
de violência física, ataques a comunidades que tentam retomar suas aldeias e um número
muito alto de assassinatos. Em menos de um ano, entre 2015 e 2016, foram registrados
33 ataques de natureza paramilitar contra comunidades Guarani e Kaiowá. Entre 2001
e 2018, foram assassinados 14 líderes indígenas em represália às tentativas de retomar
paciicamente terras já reconhecidas pelo Estado. Esse é o contexto mais violento em
território brasileiro; se acrescentarmos os números da mortalidade na infância (de 0 a
anos), da subnutrição, dos maus-tratos e do racismo, teremos um contexto no qual a
quantidade de suicídios de jovens está ancorada.

De outra feita, o missionário estava em uma aldeia e algumas pessoas saíram para
buscar a cesta básica; uma mulher retorna de mãos vazias, muito brava, xingando,
porque não a deixaram levar a cesta cujo cadastrado era seu marido. Ela explicou que o
marido fora preso e ela deveria levar os mantimentos para os ilhos, que eram crianças
pequenas. Não a deixaram levar a alimentação, e as crianças deveriam esperar até que
o cadastro fosse refeito. A mulher desesperada leva as crianças para a casa de sua mãe.
No dia seguinte, ao amanhecer, o corpo da mulher é encontrado enforcado. Será essa
uma forma de protesto?

Para entender as explicações por parte dos indígenas, é preciso compreender o


xamanismo, pelo menos em parte. A morte por suicídio não é obra do morto, mas de
um feitiço colocado por algum espírito do mal, um morto que perambula ou um inimigo;
cônjuges envolvidos em conlitos amorosos podem atrair o feitiço por envenenamento.
A presença de igrejas explicaria a ideia de possessão que está associada ao feitiço: obra
de satanás. Enfermidades mentais também podem levar ao ato extremo. Isso tudo
conduziria à necessidade de retomar a vida familiar conforme o modo correto de ser –
teko porã.

Estudiosos e pessoas envolvidas com a causa indígena concordam que um conjunto de


fatores devem ser interligados no esforço de compreender essa situação, conforme
já foi dito. Perda de vínculos culturais e históricos, abuso e dependência de drogas e
bebidas alcoólicas, problemas psíquicos, abusos sexuais, separação de familiares,
isolamento na vida social e na família (muitos jovens têm vergonha dos pais alcoolistas),
estresse cultural e enfraquecimento do sistema de crenças e espiritual são fatores
de risco citados no estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do
Grupo Internacional de Trabalho sobre Assuntos Indígenas (IWGIA). Sobre os indígenas,
encontramos a seguinte airmação:

Pode-se resumir que: os jovens indígenas de hoje convivem sem apoio familiar,
com amigos efêmeros, sem saber qual é o seu lugar, vivem o dia a dia sem
quase nunca conjugar o verbo no futuro, o máximo é o futuro muito próximo
do amanhã. Carregam um trauma humanitário de histórias contadas por seus

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parentes, histórias de exploração, violências, mortes, perda da dignidade, enim,
a história recente de muitos povos indígenas. Histórias carregadas de traumas,
presas a um presente de frustrações e impotência. Nessas circunstâncias, esses
jovens são o produto de uma geração que sofre do que se costuma chamar de
transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) (Machado; Alcantara; Trajber,
2014, p. 131).

Já os políticos, sobretudo os do Mato Grosso do Sul, dizem que os suicidas são os


próprios culpados: se há mortes, são eles mesmos que as praticam, e não é possível que
alguém seja culpado por isso. Outro modo de dizer a mesma coisa é afirmar que “é da
cultura deles”.

Os números de assassinatos e de suicídios são apenas a ponta do problema. De fato, são


os indicativos de uma situação que se agrava com o tempo e para a qual há morosidade
na solução, má vontade dos poderes públicos e negação muito forte por parte dos
atores envolvidos na questão. Envolvem fatores complexos e delicados, relativos a
componentes culturais e sociais. Porém, existe um consenso entre todos os analistas
dessa realidade de que a extrema situação de violência a que estão submetidos esses
povos pode ser a principal causa do grande número de suicídios. É provável que esse
número esteja abaixo do que de fato acontece, uma vez que os dados se referem apenas
a casos divulgados; grande parte dos suicídios é ocultada pelas famílias, por razões
culturais, como também por considerá-los uma doença que quanto mais divulgada,
mais se alastra.

Não bastasse o roubo dos territórios tradicionais, as áreas de coninamento estão


praticamente todas atravessadas por rodovias de intenso trânsito. Geram grande
número de mortes por atropelamento, atingindo pessoas que vivem nos acampamentos
à beira da estrada. Entre 2003 e 2010, só no Mato Grosso do Sul, morreram atropelados
o mesmo número de indígenas que no restante do País. Os homicídios, suicídios e
atropelamentos são expressões da violência que é uma das formas de impotência
traduzida em ato, da passagem para a desordem quando a ordem se descobre sem
saídas” (Balandier, 1997, p. 243).

O grito Guarani contra a entropia pode ser representado, por um lado, pelos suicídios,
homicídios e atropelamentos, símbolos da negação de uma situação desesperançosa e,
por outro, pelas retomadas de parcelas de terras que recuperam os tekoha, lugares da
vida social, da esperança, da reprodução e da fertilidade. Embora devamos considerar a
complexidade de fatores que envolvem essa realidade, levando em conta que a maioria
das mortes é resultante de conlitos ocorridos dentro das comunidades, os números
causam indignação e exigem medidas urgentes, amplas e articuladas, começando pela
demarcação dos tekoha, lugares do bem viver.

No mundo indígena, existem experiências de suicídios que revelam maneiras


diferenciadas de lidar com a questão. Quando Bronislaw Malinovski apresentou seus
estudos sobre os Trobriandeses da Polinésia, escreveu um pequeno livro intitulado Crime
e Costume na Sociedade Primitiva, no qual encontramos um relato em que o suicídio é

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uma regra punitiva para o caso de transgressão da regra do incesto. Há primos bons
para casar e há primos que são irmãos; o rapaz e a moça eram primos-irmãos, portanto,
consanguíneos, isto é, cuja relação sexual é considerada incestuosa, mas se apaixonaram
e foram viver maritalmente. O primo para o qual a moça estava prometida resolve
denunciar a transgressão, posta-se em frente à casa onde estava o casal e pronuncia
publicamente a denúncia; a partir desse momento, a punição deve ser cumprida. Assim,
o transgressor sai de casa, paramentado como guerreiro, sobe no coqueiro mais alto e
se atira, cumprindo um rito prescrito.

Darcy Ribeiro coletou, em 1950, a história de Uirá – jovem chefe de família que entrou
em desespero depois que seu ilho e outros parentes faleceram. A história se passou
nos anos de 9 , em pleno Estado Novo, lá no Maranhão, nas conluências dos rios
Pindaré, Gurupi e Turiaçu, onde até hoje vive o povo Kaapor, designado Urubu pelo
Serviço de Proteção ao Índio – SPI. Uirá vivia em ambiente de desengano, provocado
pela mortalidade enorme e pelo enfraquecimento físico ocasionado por doenças levadas
pelos civilizados , além de uma série de outras condições de penúria, e exacerbado
por um conjunto de crenças e práticas mítico-religiosas. Nesse contexto, sirá é tomado
por um estado de profunda irritabilidade, icando iñaron; desde que alguém se declare
iñaron, é imediatamente abandonado por todos, permanecendo na casa com os bichos
e a tralha doméstica. A cura se faz depois que o indivíduo expressa sua ira, quebrando
potes, lechando, ou mesmo cortando os punhos das redes e derrubando a casa.

Depois do ataque de ódio, os parentes retornam como se nada houvesse acontecido. Mas
Uirá não superou seu estado, ficando cada vez mais prostrado, triste e desenganado. Não
estava apenas iñaron, estava apiay. Tentou outros caminhos para superar seu estado,
mas de nada adiantou seus esforços. Continuou apiay, pensando no ilho morto. Mas
teve energia para uma última empreitada, tal como inscrita no mito, a lenda dos heróis
que foram vivos ao encontro de Maíra.

A versão Kaapor da cosmogonia Tupi trata Maíra como mais do que um herói mítico:

A realidade e atualidade de sua existência fazem dele quase uma divindade. Não
é concebido como o demiurgo que operou numa era mítica criando o mundo
e as coisas, mas como um ser vivo e atuante. Ainda agora, as hecatombes, as
tempestades e toda a vida, concebida como uma luta, é explicada pelos índios
srubus através da alegoria de um conlito permanente entre um Maíra pai e um
Maíra ilho em que duplicaram o herói. Embora não esperem qualquer ajuda
de Maíra, nem concebam que se possa apelar para ele ou invocá-lo, sua ação
é necessária e eiciente para manter a ordem cósmica, agora como no tempo
da criação. [...] A terra é lugar de Maíra, o céu é o lugar de seu ilho, desde
que ele foi lá encontrar-se com seu irmão, o ilho de Mikura que morrera. [...]
Desde que o ilho de Maíra subiu ao céu para icar com o seu irmão, ele está
sempre lutando contra o pai: todas essas pedras que se veem aí pelos rios,
pelos outeiros, quebradas, achatadas, foram casas de Maíra que Maíra-mimi
destruiu. [...] Quando havia pajé bom, muita gente ia para a casa de Maíra; o
pajé cantava, fumava cigarros grandes, depressa eles chegavam lá (Ribeiro,
1974, p. 20-24).

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Assim, Uirá decide seguir o caminho de Maíra, pintado com as tintas vermelha e preta
do urucu e do jenipapo, conforme ensinara Maíra aos Kaapor. Paramentou-se com os
adornos plumários, pegou as armas, arco e lechas, tudo como Maíra havia ensinado, e
arrumou um paneiro de farinha para oferecer ao herói, dizendo “eu sou sua gente, a que
come farinha”:

diguremos sirá, magníico em seus adornos, o corpo pintado, à imagem do herói


mítico, armas à mão, a tensão de quem enfrenta a mais terrível provocação
expressa no rosto, nos gestos. Assim deveria parecer à mulher e aos ilhos, aos
olhos de sua gente. [...] Para os sertanejos maranhenses com quem iria deparar,
porém, era tão somente um índio nu e armado, nu e furioso (Ribeiro, 1974, p. 25).

Em seu caminho, eles encontram fazendas onde vivem homens portadores de armas de
fogo, protegendo sua propriedade; cidades nas quais os moradores se apavoram com
aquela família nua. sirá é espancado diversas vezes, escorraçado e, inalmente, preso.
Entregue ao SPI, vai parar em São Luís, onde a imprensa e as autoridades protestam
contra as violências sofridas pela família de sirá. Quando estão de partida, ele e o ilho
veem Maíra no lugar que deveria ser sua morada – pedras e um imenso curso de água do
qual não se podia ver a outra margem. Lá estava Maíra. Mas Uirá não chegou à casa de
Maíra. Cumpriu o destino que traçara, no caminho de casa, ao atravessar o rio Pindaré,
e por lá permaneceu. Não podendo ir vivo ao encontro de Maíra, sempre foi, porque a
morte também é o caminho para encontrar a divindade.

Outro modo de lidar com o suicídio está presente na sociedade Sorowaha/Suruwaha,


povo que vive nos rios Coxodoá e Riozinho, aluentes da margem direita do rio Cuniuá,
tributário da margem esquerda do médio rio Purus, estado do Amazonas. A história
desse povo parece ter sido uma saga contra a desordem instaurada na região, nas
primeiras décadas do século XX, pelas epidemias, que abateram diversas comunidades. A
depopulação, muito provavelmente, fez com que procurassem meios para refazer a vida,
juntando-se e constituindo uma nova sociedade a partir das comunidades depopuladas.
O novo arranjo resultou um povo coeso em língua, formas de reciprocidade e proteção.
Parte dessa coesão parece ter sido a desabilitação das funções da pajelança, distribuídas
entre diferentes pessoas, afetando especialmente os poderes xamânicos de viajar ao
céu e retornar à terra. Os poderes xamânicos concentram o conhecimento especializado
dos cosmos, dos espíritos que curam, que matam e que espalham doenças, podendo
atingir indivíduos infratores, ou mesmo realizando vingança a pessoas ou grupos.

Quando, durante diversos momentos do século XX, ou mesmo em momentos anteriores,


as epidemias atingiram os povos da Amazônia em função da presença violenta de
agentes das sociedades brasileira, peruana, boliviana, colombiana e todos os agentes
civilizatórios do capital, esses povos icaram expostos à exploração da borracha e do
caucho, da sorva, da extração de madeira, de minérios e outros recursos naturais. Essa
conjuntura espalhou terror, medo e traumas: homens e mulheres, crianças e velhos
tornaram-se vulneráveis aos ataques contínuos; mulheres e crianças foram roubadas,
estupradas, homens torturados e assassinados, idosos abandonados. Uma das formas

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mais violentas de usurpação de vidas indígenas foram as epidemias – sarampo, gripe,
varíola, tuberculose e outras – que mataram aos montes, deixando as comunidades sem
recursos, pois não havia mais força para o trabalho, nem para enterrar tantos cadáveres.
E não havia mais controle sobre os poderes dos pajés, que estavam em guerra uns
contra os outros: as doenças eram causadas pelos feitiços colocados pelos xamãs; de
modo geral, simplificando a explicação, é sempre um pajé de outra comunidade que
envia feitiços, mas na sua própria comunidade ele protege e cura.

Aconteceu que a tamanha força das epidemias provocou um clima generalizado de


desconianças e acusações. Assim, muitos pajés foram assassinados, já que era preciso
cortar o mal pela raiz, pois nenhum deles tinha força para conter uma epidemia. Desse
modo, as acusações de feitiçaria recrudesceram em muitas regiões, implicando arranjos
sociais variados: algumas comunidades passaram a ocultar a presença de pajés – eles
estavam presentes, mas não se admitia para os estrangeiros sua existência –; outras
aumentaram a visibilidade da pajelança, realizando rituais de cura no pátio da aldeia, e
outros permaneceram sem pajés. O que signiica que é preciso morrer para ir ao céu, e
que o indivíduo necessita decidir quando e de que forma quer fazer sua viagem.

O povo Suruwaha parece ter optado por não ter pajés, distribuindo seus poderes e
minimizando suas forças. Assim, existem três caminhos possíveis para cruzar a abóboda
celeste: o caminho da morte, que acompanha o percurso do Sol, por onde seguem os
que morrem de velhice; o caminho do timbó kunaha, a trajetória da lua, por onde vão os
suicidas; e o caminho da cobra, o rastro do arco-íris, a rota dos que morrem por picada
de cobra. Sentimentos como afeição, raiva, saudade, vergonha formam a teia que leva
ao suicídio. Um determinado acontecimento provoca irritação ou contrariedade, então,
o indivíduo destrói seus pertences; ele é deixado só para extravasar sua agressividade.
Se isso não for suiciente, o indivíduo emitirá um grito e correrá em direção a uma roça;
arrancará raízes de timbó e se dirigirá a um córrego, onde espremerá e mastigará o
timbó para extrair seu sumo. Em seguida, beberá água para ativar os efeitos tóxicos.
Se até aqui ninguém conseguiu detê-lo, ele correrá de volta à casa; ali, será acudido
por seus parentes ou outras pessoas, provocando vômito, esquentando o corpo com
abanos aquecidos, batendo em seus membros dormentes, gritando em seus ouvidos
para despertá-lo, mantendo-o sempre sentado. O procedimento pode ou não dar certo,
já que depende da quantidade de sumo de timbó que foi ingerida. A eventual morte
espraia uma forte comoção e logo se inicia o choro ritual; isso motiva outras pessoas,
depois de horas ou dias, a realizar novas tentativas de suicídio (Dal Poz, 2017, p. 186-187).

Os atos suicidas fazem parte do cotidiano Suruwaha e envolvem pessoas de todas as


idades, mas a faixa entre e anos é a mais afetada. Nessa faixa, também, encontra-se
um número maior de jovens do sexo masculino. A opção de livrar-se das contrariedades
através do caminho do timbó não pode ser explicada como consequência direta da
atuação das frentes de expansão da sociedade brasileira:

Para os Suruwaha, os mortos por kunaha, capturados pela subjetividade não


humana do espírito do timbó, vivem uma alteração que os transforma em
presas por excelência. Através da prática do envenenamento, os Suruwaha
projetam, neste mundo em transformação, sua constituição como humanos

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em contraste com os mortos não humanos, alterados na nova condição de
presas do veneno (Aparicio, 2017, p. 223).

Peço desculpas por simplificar em demasia a complexidade dessa prática Suruwaha


que tanto preocupou aqueles que os conheceram de perto e contribuíram para
que eles pudessem estabelecer relações pacíficas com as frentes econômicas
depredadoras regionais. Infelizmente, eles não são compreendidos plenamente, e
tornam-se também presas fáceis de ilusões religiosas manipuladoras dos significados
da planta-xamã, o timbó:

Para os Suruwaha a expressão bahi se aplica aos animais caçados, abatidos sob
efeito do curare das lechas: poderíamos traduzir bahi como “presa, vítima”,
uma posição cosmológica oposta à condição de agy, própria dos predadores,
dos caçadores. [...] As vítimas da ira dos xamãs adversários são mazaru bahini,
“presas do feitiço”, e os mortos por envenenamento são kunaha bahi, presas
do timbó. O ponto de vista missionário parece fundar para os Suruwaha uma
nova posição no mundo. Os Suruwaha, que ao longo das últimas gerações
vivem uma metamorfose em presas do veneno, se encontram agora, a partir
da ação dos missionários, em um novo processo de transformação: eles são
Jasiuwa bahi, as presas de Deus (Aparicio, 2017, p. 226).

Esses casos demonstram a variação das ocorrências de suicídios entre os jovens


indígenas no Brasil. Não se trata de invocar modalidades classificatórias, mas parece
que trazem em comum o contexto social e econômico que propicia encontros e
desencontros opressores, violentos e expropriatórios. Roubam-se dos indígenas
suas terras, suas riquezas, suas águas, seus valores e ameaçam sua filosofia do bem
viver. Mas sua religiosidade e sua espiritualidade os apoiam em seu caminho de
resiliência e dignidade.

p ê i Bi i á i

APARICIO, M. “Jesús tomó timbó”: Equívocos missioneros en torno al suicidio Suruwaha.


In: CAMPO ARÁUZ, L.; APARICIO, M. (Org.). Etnografías del suicidio en América del Sur.
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BALANDIER, G. A desordem: Elogio do movimento. Tradução Suzana Martins. Rio de


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RESUMO Este artigo trata do suicídio entre jovens indígenas, a partir de dados contidos no Relatório de
Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista
Missionário – CIMI. Os registros mostram a evolução das ocorrências, em âmbito do território
brasileiro, porém, não esgotam plenamente a realidade. Mesmo que parciais, os dados
revelam tendências, provocam dúvidas e muitos questionamentos. O suicídio é um fato social
total complexo, que ocorre no âmbito do livre arbítrio e envolve uma constelação de fatores
associados às condições socioculturais, ambientais, existenciais etc., que compõem o contexto
de cada povo indígena no qual os episódios relatados acontecem. São relatados alguns episódios
atuais e históricos para demonstrar a variação das ocorrências, isto é, as modalidades dos casos,
sem, no entanto, tipiicá-los. O aumento do número de suicídios entre jovens indígenas tem sido
preocupante e mobiliza as consciências e a necessidade de registrá-los.

nalavras-chave: jovens indígenas, suicídio, povos originários, complexidade.

Self-directed violence: young indigenous population and the enigmas of suicide

ABSTRACT This article discusses suicide among young indigenous people, through the data contained in
the Report of Violence Against Indigenous Populations in Brazil (Relatório de Violência Contra
os Povos Indígenas no Brasil), published anually by the Missionary Indigenous Council (Conselho
Indigenista Missionário – CIMI). The data collected shows an increase in occurrences in brazilian
territory, however, it doesn’t completely cover this reality. Even if partial, the data reveals
tendencies, provokes doubts and several questions. Suicide is a complex social fact, that
occurs in the realm of free will and involves a constellation of factors associated with socio-
cultural, environmental and existential conditions that compose the context of each indigenous
population where said episodes take place. A few present and historical cases are narrated
in order to showcase the variety between individual occurrences, albeit without the intent of
categorization. The increase in the number of suicides among young indigenous people has
been a concern and rallies consciences and the need to document cases.

Keywords: young indigenous people, suicide, native people, complexity.

37 . número 25 . ano 7 . out-dez 2019 ma m aq


b i : 15/07/2019
b v çã : 18/11/2019

Lucia Helena Rangel


Professora doutora do Departamento de
Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), Brasil; pesquisadora no campo
da etnologia indígena; assessora antropológica do
Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Brasil.
c-mail: [email protected]

38 . número 25 . ano 7 . out-dez 2019 ma m aq

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