Tese Versão Final 1
Tese Versão Final 1
A DIALÉTICA E AS LETRAS
IMAGENS E PARADIGMAS DO PENSAR NO FEDRO DE PLATÃO
A DIALÉTICA E AS LETRAS
IMAGENS E PARADIGMAS DO PENSAR NO FEDRO DE PLATÃO
Orientadora:
Profa. Dra. Míriam Campolina Diniz Peixoto
Linha de Pesquisa:
Filosofia Antiga e Medieval
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iv
v
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Dedico esta tese à filósofa e amiga
Maria Érbia Cássia Carnaúba (1985-2017),
com muito carinho e infinita saudade.
vii
viii
AGRADECIMENTOS
Ao longo deste percurso, foram muitas as pessoas a quem devo agradecer. Um trabalho
acadêmico não se desenvolve sem a colaboração de muitas vozes, pensamentos e mãos. Fica aqui
o registro de apenas alguns que, nos últimos anos, mais diretamente contribuíram para esta tese:
à minha orientadora, professora Míriam Campolina Diniz Peixoto, por ter aceitado me
orientar em momento tão delicado e difícil. Sem seu olhar atento e sua generosidade intelectual,
certamente esta tese não teria chegado a este ponto;
ao meu orientador, professor Marcelo Pimenta Marques (in memoriam), razão pela qual
decidi cursar o Doutorado na UFMG, quem considero ser o meu maior exemplo de pesquisador
e professor, de quem tive a alegria e a honra de receber as primeiras orientações deste trabalho.
Espero que esta tese faça jus ao seu legado;
aos professores Jacyntho Lins Brandão e Maria Cecília Gomes dos Reis, pelas
importantíssimas contribuições oferecidas no Exame de Qualificação, e aos professores
Fernando Rey Puente, Fernando Muniz, Jacyntho Lins Brandão e Maria Cecília Gomes dos
Reis, por terem gentilmente aceitado a participar da Banca de Defesa desta tese;
aos colegas da Linha de Pesquisa em Filosofia Antiga e Medieval da UFMG,
particularmente à Mariana Condé, Patrícia Lucchesi e Gislene Vale dos Santos, pelos valiosos
encontros, discussões, compartilhamentos de leituras e de angústias; aos colegas Deivid Junio
Moraes e Rafael Guimarães Tavares Silva, pelas valiosas contribuições bibliográficas oferecidas;
ao amigo Flávio Loque, pelo estímulo a tentar o Doutorado na UFMG, com “o famoso
professor Marcelo Marques” e pela contínua parceria decorrente deste e de outros encontros
acadêmicos;
aos colegas da UFJF, Carol Rocha, Charlene Miotti, Fernanda Cunha, Gustavo Frade,
pelo apoio e pela compreensão das minhas ausências durante esse tempo do Doutorado, pelo
convívio agradável e pelo estímulo e, particularmente, à Neiva Ferreira Pinto pela leitura de
partes da tese; de igual modo, aos colegas Ana Paula El-Jaick e Rodrigo Brito, pelas discussões e
pelas parcerias de pesquisa na interface linguagem/filosofia; aos colegas da Filosofia da UFJF, ao
Humberto Schubert, pelo diálogo e convívio no PPG Filosofia da UFJF e especialmente à Aline
Fonseca, pela amizade e pelo compartilhamento das angústias, esperanças e utopias;
aos meus queridos alunos participantes do Grupo de Leituras de Platão da UFJF,
Christiano Almeida, Frederico Krepe, Daniela Brinati, Igor Lopes, Rodrigo Alvim, Marina
Tavares, Fernando Freitas, Bruno Patrici e Patrick (Πάτριχος) Silva, por terem topado
compartilhar comigo este caminho na leitura de Platão nos últimos anos;
à minha família, especialmente à minha mãe, Lenice Knop, pelo amor e cuidado
ininterruptos;
ao meu companheiro, Clóvis Melo, por seguir comigo este caminho da vida;
a Deus, τὸ πρῶτον αἴτιον.
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ἀλλὰ πρῶτον μέν σε τοῦτο λανθάνει, ὅτι οὐ παντάπασιν οὕτω
σεμνύνεται τὸ γράμμα, ὥστε ἅπερ σὺ λέγεις διανοηθὲν γραφῆναι, τοὺς
ἀνθρώπους δὲ ἐπικρυπτόμενον ὥς τι μέγα διαπραττόμενον.
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RESUMO
xiii
xiv
ABSTRACT
The debate about writing and dialectics raised in the dialogue Phaedrus,
besides keeping alive a discussion of utmost importance for contemporary
philosophy – the limits and possibilities of the relation between
philosophy and language – is also the object of a reflection that does not
show loss of vitality among Plato's scholars. After all, in the perspective of
Platonic philosophy, would writing be adversary to thinking? Should we
sustain, by reading the criticism that emerges in the first layer of
signification of the myth of Theuth (Phdr. 274b-278b), that there is a strong
contrast between two dimensions of language - the dimension of orality
and writing - and, therefore, the unequivocal election of the former as the
proper mode for dialectical expression? In order to contribute to this
debate, by illuminating particularly the possible convergences and
dissidences between the universe of letters and the dialectics in the
context of Plato's work, especially within the Phaedrus, this doctoral
dissertation aims at contributing, broadly speaking, to the debate on the
limits and the possibilities of written language for the expression of
philosophical thought. Strictly speaking, the objectives are: 1) to re-
evaluate the problem of writing in Plato, based on the reflections
contained especially in the Phaedrus, relating them to the plurality of
subjects with which they have a relationship within the framework of the
dialogue itself (rhetoric , dialectics, memory, psykhé, éros etc.); 2) in relation
to the previous item, we aim at observing at what extent the reflections on
the letters (γράμματα) and writing (γραφή) can be understood from the
notions of image (εἴδωλον) and paradigm (παράδειγμα) and how they
collaborate for the formulation of the notion of dialectic (διαλεκτική). Our
hypothesis is that not only does writing appear in the Phaedrus as a
consequence of the historical debate underway in Athens by the middle
of the fifth century BC, on which Socrates would have presented a veiled
disapproval, but also it does configure for Plato a theme of philosophical
interest. We intend to show that, throughout the dialogue, while trying to
answer the questions: can writing be beautiful? If so, in what conditions?
There is also an answer that would go beyond a “ethics of writing” for the
philosopher. Thus the own resources of the universe of writing – the
letters – are also taken as elements through which the notion of dialectic
associated with division (διαίρεσις) and reunion (συναγωγή) is formulated
and can be understood philosophically, so that letters and writing
becomes in the Platonic text not only images, but also paradigms for the
determination of philosophical thinking.
xv
xvi
ÍNDICE DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES DE AUTORES ANTIGOS CITADOS
Alcidamante Eurípedes
Soph. – Περὶ σοφιστῶν (Sobre os sofistas) Ba. – Bacchae (As bacantes)
Hypp. – Hyppolitus (Hipólito)
Aristófanes
Ra. – Ranae (As rãs) Górgias de Leontini
Thesm. – Thesmophoriazusae (As Hel. – Helena (Elogio de Helena)
tesmoforiantes) Pal. – Palamedes (Em defesa de
Palamedes)
Aristóteles
A. Po. – Analytica Posteriora (Analíticos Hérmias de Alexandria
posteriores) In Phdr. – In Platonis Phaedrum Scholia
A. Pr. – Analytica Priora (Analíticos (Comentários ao Fedro de Platão)
anteriores)
De An. – De Anima (Sobre a alma) Heródoto
Metaph. – Metaphysica (Metafísica) Hist. – Historiae (Histórias)
Ph. – Physica (Física)
Po. – Poetica (Poética) Hesíodo
Pol. – Politica (Política) Th. – Theogonia (Teogonia)
Rh. – Rhetorica (Retórica)
S.E. – Sophistici Elenchi (Refutações Homero
sofísticas) Il. – Ilias (Ilíada)
Od. – Odyssea (Odisseia)
Aristóxeno
Harm. – Elementa Harmonica Isócrates
(Elementos da harmonia) In Sph. – Κατά τῶν σοφιστῶν (Contra
os sofistas)
Diodoro Sículo
B. Hist. – Bibliotheca Historica Luciano
(Biblioteca histórica) D. Deor. – Dialogi Deorum (Diálogos dos
deuses)
Diógenes Laércio
D.L. – Diogenis Laertii de clarorum Platão
philosophorum uitis (Sobre as Alc. 1 – Alcibiades 1 (Primeiro Alcibíades)
vidas dos filósofos ilustres de Alc. 2 – Alcibiades 2 (Segundo Alcibíades)
Diógenes Laércio) Ap. – Apologia (Apologia de Sócrates)
Chrm – Charmides (Cármides)
Dionísio de Halicarnasso Cra. – Cratylus (Crátilo)
Lys. – De Lysia (Sobre Lísias) Cri. – Crito (Críton)
Criti. – Critias (Crítias)
Ésquilo Ep. 7 – Epistula 7 (Carta 7)
Suppl. – Supplices (As suplicantes) Euthd. – Euthydemus (Eutidemo)
S. Th. – Septem contra Thebas (Os sete Euthphr. – Euthyphro (Eutífron)
contra Tebas) Grg. – Gorgias (Górgias)
Pr. – Prometheus Vinctus (Prometeu) Hp. Ma. – Hippias Maior (Hípias Maior)
Hp. Mi. – Hippias Minor (Hípias Menor)
Ion - Ion (Íon)
La. – Laches (Laques)
xvii
Lg. – Leges (Leis) Quintiliano
Ly. – Lysis (Lísis) Ins. Or. – Institutio Oratoria (A
Men. – Meno (Mênon) educação oratória)
Mx. – Menexenus (Menexeno)
Phd. – Phaedo (Fédon) Sêneca
Phdr. – Phaedrus (Fedro) Ep. mor. – Epistulae morales ad Lucilium
Phlb. – Philebus (Filebo) (Epístolas morais a Lucílio)
Plt. – Politicus (Político)
Prm. – Parmenides (Parmênides) Sexto Empírico
Prt. – Protagoras (Protágoras) M. – Aduersus Mathematicos (Contra os
R. – Respublica (República) professores)
Smp. – Symposium (Banquete)
Sph. – Sophista (Sofista) Simplício
Tht. – Theaetetus (Teeteto) In Ph. – In Aristotelis Physica
Ti. – Timaeus (Timeu) Commentaria (Commentários à Física de
Aristóteles)
Plutarco
Q.P. – Quaestiones Platonicae (Questões Xenofonte
platônicas) Mem. – Memorabilia (Memoráveis)
Smp. – Symposium (Banquete)
Proclo
In. R. – In Platonis Rempublicam
commentarii (Comentários à República
de Platão)
Outras abreviações
xviii
SUMÁRIO
Introdução, p. 21
Α´ DIALEKTIKÉ, p. 35
Ι Caminhos da dialética, p. 45
1.1 A formulação de uma terminologia e de um método, p. 47
1.2 O caminho mais curto e o caminho mais longo, p. 72
ΙΙ Divisão e reunião, p. 95
2.1 Retirando as máscaras do texto, p. 97
2.2 O filósofo entre éros e lógos, p. 101
2.3 Aprender a falar e a pensar, p. 126
2.4 Dialética e psykhagogía, p. 144
Β´ EÍDOLON, p. 157
Γ´ PARÁDEIGMA, p. 251
xix
xx
INTRODUÇÃO
I.
Contemporaneamente, a questão da linguagem parece propor uma agenda
específica para a filosofia1; do mesmo modo, pensar a obra de Platão por esse prisma tem
propiciado discussões de grande vivacidade e trazido questões que parecem longe de se
verem conclusivamente resolvidas2. No âmbito dos estudos platônicos, em particular, a
reflexão que se instaura no segmento compreendido entre 274b e 278b do diálogo Fedro
direciona o foco de luz para o lugar da escrita, no âmbito da discussão sobre as afinidades
e conflitos entre conhecimento e linguagem3. Com efeito, a expressão linguística –
codificada em suas modalidades oral ou escrita – está nessa passagem associada a uma
reflexão sobre os modos do pensar filosófico ou, mais especificamente, do “falar e pensar”
(λέγειν τε καὶ φρονεῖν) dialético.
É rica a fortuna crítica dessa passagem: pelo menos desde as formulações
hermenêuticas de F. Schleiermacher (1804), passando pela proposição do “novo
paradigma” dos estudiosos de Tübingen e Milão4 e pela contribuição de J. Derrida, no
século XX, até posições mais contemporâneas, mais ou menos críticas dessas correntes
interpretativas, o problema da escrita, como aparece formulado no Fedro, tem ensejado
um debate não somente sobre o papel histórico que Platão teria concedido a essa nova
tecnologia da linguagem, mas também, consequentemente, sobre a legitimidade do uso
1
“Contemporaneamente, por estarmos inseridos numa cultura em que o paradigma que determina o
horizonte de nossas reflexões é a "linguagem" (por oposição ao paradigma antigo do "ser" e moderno da
"consciência"), somos especialmente sensíveis e atentos a tudo o que concerne à linguagem” (Marques,
Introdução ao Crátilo, 2014, p. 13). Auroux (2009, p. 7): “a questão da linguagem afeta aquilo que constitui a
especificidade da humanidade e a natureza da racionalidade”.
2
Dada a vastidão da bibliografia disponível sobre Platão seria impossível aqui apresentar um elenco de
todos aqueles textos que se relacionam direta ou indiretamente com o tema da linguagem em Platão. Para
se ter uma ideia, a última edição do Plato Bibliography (Luc Brisson, 2017), disponível no site do IPS, revelou
que, somente nos anos de 2016 e 2017, foram publicados mais de 400 novos estudos, 13 novas edições ou
traduções, mais de 20 coletâneas e anais de congressos. Uma pesquisa na JStor, realizada em 07/06/2019,
tomando a ocorrência simultânea das palavras Plato e language, resultou em uma cifra de 93792 ocorrências,
entre artigos, resenhas e livros que têm tais palavras como seus descritores principais. Com os descritores
“Phaedrus” e “language”, encontramos uma cifra de 9181 textos. No Portal Capes, para os descritores
“Platão” e “linguagem”, encontramos o registro de 302 publicações nas bases de dados brasileiras.
3
Utilizamos nesta tese frequentemente o termo “linguagem” como tradução de lógos. Compreendemos,
entretanto, a rica polissemia associada ao termo grego e as relações que são irrecuperáveis, na tradução,
entre pensamento e linguagem, ambas ínsitas à palavra grega e que são exploradas ao longo da tese.
4
A ideia de que a sua interpretação constitua um novo paradigma para a história dos estudos platônicos,
no sentido kuhniano, é tese defendida por Reale (2004 [1991]) e adotada por vários importantes seguidores
dessa escola, entre os quais Szlezák (2005, 2011), Hösle (2008) e Perine (2014).
21
da escrita para a investigação filosófica. Afinal, seria o escrever inimigo do pensar?
Poderíamos dizer, por intermédio da crítica que emerge na primeira camada de
significação do mito, que existe aí uma contraposição forte entre duas dimensões da
linguagem – a dimensão da oralidade e a da escrita – e, por conseguinte, a eleição
inequívoca da primeira, como o modo adequado à expressão dialética?
É claro que nenhuma interpretação moderna dessa passagem está isenta dos
compromissos – explícitos ou implícitos – assumidos pela plurissecular tradição
filosófica de debates em torno da linguagem. Do Órganon de Aristóteles à lógica
contemporânea, a linguagem tem sido discutida em seu papel de ancilar ao pensamento:
o debate sobre ela indaga sobre seu poder de representação e, no mais das vezes, nela
enxerga um instrumento mais ou menos adequado à expressão do conhecimento, da
ciência, ou da verdade (Marcondes, 2016). Em todo caso, essa longa tradição parece
implicar que o pensamento, imbricado com a linguagem, estaria também além da escrita
– essa que seria, no limite, apenas uma técnica secundária, uma representação em
“segundo grau” da linguagem (Lévy, 2010).
Todavia, em que pese a precedência ontológica da oralidade sobre a escrita – e a
relativa independência entre esses dois sistemas5 –, ainda assim perguntamos: seria
possível delinear outra relação entre escrita, linguagem e conhecimento, uma relação
mais dialética?
Conforme esclarece Wise (1988, p. 7), desde a década de 60, inúmeros livros sobre
as consequências do letramento vieram à tona, de forma que mesmo os mais céticos
estudiosos da escrita não puderam mais ignorar as possíveis interrelações entre a escrita
e seus efeitos nas atividades humanas. H. McLuhan, por exemplo, em extensa obra que
vai da década de 50 à década de 80, particularmente em seu livro de 1964, Understanding
media: the extensions of man, atribui ao alfabeto (e às demais tecnologias ligadas à escrita,
como a imprensa de Gutemberg), uma causalidade direta com os modos de pensar da
civilização ocidental, associados à codificação das leis e das religiões, ao desenvolvimento
da lógica e da ciência, ao surgimento do individualismo, da democracia e da educação.
Também a obra de J. Derrida, que se estende da década de 60 até praticamente os dias
atuais, logra consolidar no debate contemporâneo uma talvez irreversível posição de
prestígio conferida à escrita, como uma “causa invisível” na história intelectual do
5
A independência da linguagem oral, somente esta natural, em relação à escrita, que decorre de um
desenvolvimento tecnológico, comprova-se, por exemplo, na existência línguas ágrafas no mundo que, a
despeito de não terem escrita, são, do ponto de vista linguístico, tão complexas e culturalmente sofisticadas
quanto as línguas que desenvolveram sistemas de representação escrita. Uma discussão mais detida sobre
linguagem, língua, escrita e fala pode ser conferida em Dubois et al. (1973) e Trask (2011).
22
ocidente; posição mantida, por exemplo, na obra L’Écriture et la différence, de 1967, com
tradução brasileira em 1971, e no ensaio La pharmacie de Platon, originalmente publicado
em 1972 (edição brasileira de 2005), no qual propõe uma leitura do Fedro.
Na mesma direção, D. Ihde, em sua obra Philosophy of Technology (1993), sugere
que o desenvolvimento de tecnologias e sua difusão na cultura – tecnologias tais como a
escrita, a cartografia ou o relógio – possibilitaram uma gradual mudança nas maneiras
de compreender e conceptualizar os fenômenos naturais medidos, codificados ou
registrados por tais instrumentos. Ou seja: do mesmo modo como o relógio, por exemplo,
não somente marcaria o tempo, mas também alteraria a sua percepção pelos humanos,
permitindo concebê-lo como uma linearidade discreta – segundos, minutos, horas, dias,
meses, anos etc. –, também a escrita poderia alterar nossa forma de perceber a linguagem
e o pensamento, possibilitando, assim, a percepção da coexistência dos discursos e o
confronto do passado com o presente. É também nesse mesmo sentido que Bárbara
Cassin, na sua primeira obra filosófica – o Se Parmênides, a edição e introdução crítica ao
tratado anônimo De Melisso Xenophane Gorgia (1980, edição brasileira em 2015) – já
delineava a diferença entre uma oralidade “sofística” e uma escrita “filosófica”: calcado
na fala, o discurso sofístico, diferente do filosófico, teria natureza atômica; sua intelecção
seria local, não permitindo a acumulação sistemática de informação e não tendo,
portanto, uma memória de longo termo. Somente a escrita, consagrada no discurso
filosófico, permitiria a visualização da linha de progressão dos significantes e, portanto,
a percepção da contradição. Na oralidade sofística, por outro lado, a linha dos
significantes não representaria uma figura estável; não havendo simultaneidade,
também não haveria nela contradição (Cassin, 2015, p. 94-95).
Vista por esse ângulo, a escrita não somente parece reassumir um status de maior
complexidade na sua relação com a cultura, ao facultar, entre outras coisas, a construção
e a preservação de arquivos da memória, mas também poderia ser talvez pensada como
um mecanismo criador de conceitos, inerente ao próprio pensamento, tese defendida por
E. Havelock, em The literate revolution of in Greece and its consequences (1982), pensando
sobre o impacto cognitivo da escrita para civilização grega. Em sua obra de 1986, The muse
learns to write, o estudioso mostra as consequências dessa proposição em relação às
tecnologias de comunicação do presente, na linha da argumentação de McLuhan. Pierre
Lévy, em sua obra de 1990, Les Technologies de l’intelligence, insere a reflexão sobre a escrita
na “Era da Informática”, pensando-a a partir de sua relação com o hipertexto e com a
cultura digital. Também no âmbito das ciências cognitivas contemporâneas, esse tema é
tratado: sem mais subestimar a relação entre as letras e o pensamento, S. Dahaene, na
23
obra Reading in the brain (2009), observa como a capacidade cognitiva que envolve o ato
de decodificar e compreender os signos escritos, e de depois recodificá-los na produção
de um texto, mantém relações estreitas com modos específicos do funcionamento
neurocognitivo humano.
Em suma, todos esses exemplos nos levam a crer que as questões ligadas às
relações entre as letras e o pensamento estão muito longe de estarem superadas na
discussão contemporânea, como comprova a vivacidade das pesquisas nesse âmbito em
diferentes áreas. Do mesmo modo, a atualidade dessa questão igualmente engendra um
movimento de revisão de consensos interpretativos da Filosofia Antiga, em cujo âmbito
a obra de Platão mantém posição central. A passagem aludida do Fedro, de fato, continua
a alimentar um acirrado debate que não dá sinais de perda de vitalidade, reforçado por
posições interpretativas nem sempre fáceis de serem conciliadas e, em certos casos, até
mesmo francamente adversárias entre si.
Lendo a famosa “crítica à escrita”, por exemplo, com Krämmer (1959), Szlezák
(2009 [1985], 2011[2004]), Reale (2007 [1975-80]), Perine (2014), e outros importantes
representantes da chamada “Escola de Tübingen-Milão”, somos inclinados a considerar
a escrita em uma posição secundária (incluindo a escrita dos próprios diálogos de Platão),
em prol de uma releitura da filosofia de Platão à luz de princípios não escritos, as
chamadas “doutrinas não escritas” (ἄγραφα δόγματα), às quais teríamos acesso indireto
através da obra de comentadores e acadêmicos, dentre os quais, especialmente,
Aristóteles. Segundo essa perspectiva, qualquer pretensão filosófica da escrita ver-se-ia
frustrada; a posição platônica quanto às letras reduzir-se-ia a uma cautelosa e distanciada
condescendência.
Por outro lado, se resgatarmos o tratamento histórico do problema, a partir de
Schleiermacher (2008 [1804]), e chegarmos a posições mais contemporâneas, tais como
as de Vlastos (1981), Brisson (1989), Dixsaut (2001) e Trabattoni (1994, 2003), não somente
poderemos oferecer uma interpretação que, em ampla medida, reabilita a importância
do texto escrito para a leitura de Platão, como oferece também um tratamento do
problema da linguagem alternativo à resolução estritamente histórica da questão, tal
como aquela levada a termo pelos partidários da Escola de Tübingen.
Seja na primeira, seja na segunda perspectiva, a abordagem da escrita em Platão
engendra, necessariamente, consequências para a definição e caracterização da
24
atividade do filósofo e da dinâmica de sua pesquisa, a dialética6. Com efeito, se tomarmos
somente como o problema se configura no Fedro, não se pode, por exemplo, ignorar que,
no âmbito desse mesmo diálogo, tão logo o “mito de Theuth” é formulado, Platão
desenvolve uma concisa, porém densa, reflexão em torno da atividade filosófica, cuja
definição, a ser determinada pelo acordo entre os dialogantes, deriva de uma criteriosa
análise do lógos, em suas diferentes modalidades. Ou seja, nesse diálogo, a reflexão em
torno da escrita aflora intrinsecamente associada à tematização do modo de configuração
do pensamento no discurso, isto é, à própria dialética, o que nos leva a sugerir uma
vinculação existente, em sentido mais amplo, entre o tema das letras e o da dialética no
Fedro, relação que configura o tema geral desta tese e que, ao que nos parece, não foi
centralmente considerada nos debates formulados pelos autores supracitados, que
privilegiaram refletir sobre a relevância ou irrelevância da escrita (e dos escritos) em
Platão, e sobre as implicações de ordem hermenêutica disso decorrentes.
Assim, procurando iluminar particularmente a questão filosófica que trata das
relações entre as letras e a dialética no âmbito da obra de Platão, especialmente a partir
do Fedro, esta tese pretende colaborar, lato sensu, para o debate sobre os limites e as
possibilidades da linguagem escrita para a expressão do pensamento filosófico. Stricto
sensu, destacam-se, como objetivos:
1. reavaliar o problema da escrita em Platão, tendo por base as reflexões contidas
especialmente no Fedro, relacionando-as à pluralidade de temas com os quais mantêm
relação no âmbito do próprio diálogo (a retórica, a dialética, a memória, a psykhé, éros
etc.), investigando a possibilidade de se falar em uma “filosofia da escrita” presente neste
diálogo, que caminha pari passu com a formulação de uma definição de dialética e sua
respectiva prática;
2. em relação de contiguidade com o item anterior, observar em que medida as
noções de imagem (εἴδωλον) e paradigma (παράδειγμα), são produtivas para a
compreensão, no Fedro, das relações e tensões entre dialética e escrita.
A nossa hipótese é a de que a escrita não somente assoma no Fedro como um
reflexo do debate histórico em curso em Atenas a partir de meados do século V a.C., em
relação ao qual Sócrates teria apresentado uma velada censura, mas configura também,
6
Não é possível pressupor aqui um conceito unívoco e estável de dialética em Platão, considerando,
sobretudo, como nos ensina Dixsaut (2001), que se trata, antes, de um conceito em permanente
"metamorfose", adequado à natureza do objeto e de cada contexto investigativo. Provisoriamente, contudo,
tomamos aqui como “dialética” o conjunto das reflexões que, centradas na análise do λόγος, de diferentes
maneiras (divisão, separação, utilização de mitos etc.), busca encontrar uma metodologia de pesquisa de
diferentes objetos. Voltaremos a refletir sobre os possíveis sentidos da dialética, como veremos adiante, no
capítulo 1.
25
para Platão, um tema de caráter filosófico. Queremos mostrar que, ao longo do diálogo,
enquanto se busca responder às perguntas: a escrita pode ser bela? Se sim, em que condições?,
vai-se também além de uma resposta que estaria, digamos, no limite de uma “ética do
escrever” para o filósofo. Pretende-se demonstrar que os recursos próprios do universo
da escrita – as letras – são também tomados como elementos através dos quais se formula
e se pode compreender filosoficamente a noção de dialética, que emerge de forma plena
no Fedro, mas tem precedentes em outros diálogos, especialmente na República (V, VI e
VII). Assim, Platão não apenas nos ofereceria no Fedro uma orientação de caráter ético
quanto à utilização da escrita pelo filósofo, mas, ao trazer a atividade filosófica – a
dialética – para o centro do debate, investigaria as relações que ela mantém com a escrita.
As letras, desse modo, parecem ser ressignificadas no texto platônico, servindo de
elemento para a reflexão fundamental sobre o pensar.
Em outras palavras, parece-nos, em suma, pertinente afirmar que a escrita e a
dialética, enquanto temas efetivamente tratados no Fedro, mantêm entre si relações de
caráter epistemológico – transcendendo, portanto, os condicionantes históricos ligados à
difusão da cultura letrada em Atenas, e as consequências de caráter ético que sua
utilização engendraria para a prática do filósofo consagrada pelo método socrático. Para
isso, pretendemos mostrar que tanto as letras (γράμματα), quanto a dialética (διαλεκτική)
podem ser compreendidas através das noções de imagem (εἴδωλον) e de paradigma
(παράδειγμα): configuram, a um tempo, representações e modelos para pensar o pensar.
Visto por esse prisma, nossa discussão tem como consequência reafirmar que
tanto Platão não pode ser visto como um inflexível inimigo da escrita, quanto, pelo
contrário, ele se serve da ambiguidade gerada pela noção de phármakon a ela associada
para elaborar uma reflexão sobre a igualmente ambígua condição da escrita –
imagem/paradigma – e, finalmente, sobre os caminhos do pensamento trilhados pela via
da dialética, desafiando-nos a ponderar mais amplamente sobre o seu poder, eficácia e
riscos.
II.
A tese que desenvolvemos neste trabalho se estrutura em três partes. Visamos
com essa disposição tripartite emular grosso modo os princípios da divisão (διαίρεσις) e
reunião (συναγωγή), conforme a definição de dialética presente no Fedro (266b3-c9).
Assim, os dois eixos temáticos principais estão divididos nas partes α´e β´, e novamente
reunidos na parte γ´. Cada parte também se divide em dois capítulos, sendo que, em cada
uma, o primeiro capítulo tem um caráter mais geral e propedêutico para a discussão
principal, seja a partir da fortuna crítica contemporânea sobre o tema principal
26
desenvolvido naquela parte, seja sobre relações que o tema mantêm em outras obras de
Platão. Por sua vez, os capítulos pares encerram cada parte dando ênfase exclusiva na
leitura do Fedro.
Na parte α´ – Dialektiké – o objetivo é empreender um esforço de compreensão
dos sentidos ligados à dialética no Fedro, mostrando, particularmente, como este diálogo
apresenta uma reflexão que mantém relações com outras formulações presentes no
corpus Platonicum, particularmente na República. Assim, dividimos as reflexões em dois
capítulos: no capítulo Ι, “Caminhos da dialética”, apresentamos um breve exame da
dispersão dos termos relacionados à dialética no corpus Platonicum, com ênfase na
República (V, VI, VII) e em alguns diálogos que lhe estão diretamente associados (Mênon,
Eutidemo, Crátilo), com o objetivo de compreender os contornos iniciais da dialética que
precedem e preparam a reflexão no Fedro; no capítulo II, “Divisão e reunião”, voltamos
ao Fedro, avaliando as repercussões e desdobramentos da noção de dialética nele
textualmente expressa – dialética como operação de diaíresis e synagogé – , considerando
sua dimensão “prática” e “teórica”, com especial atenção para as relações instituídas com
éros, retórica e psykhagogía, aludindo também ao Banquete e ao Górgias, diálogos cujo
exame pareceram enriquecer a discussão sobre o amor e os discursos que vem à tona no
Fedro.
Na parte β´ – Eídolon – a partir da noção de “escrever belamente” (καλῶς γράφειν),
temos como meta determo-nos mais atentamente ao problema da escrita no Fedro. Para
isso, no capítulo III, “Filosofia da escrita”, apresentamos um breve apanhado de caráter
histórico sobre a escrita em Atenas, para descrever o pano de fundo da cultura antiga que
teria permitido a Platão não somente estar sensível à linguagem como um meio de
expressão filosófica, mas talvez tê-la tomado como um elemento dessa mesma
investigação. Em seguida, examinamos o status quaestionis nos estudos platônicos, e a
partir dele, nos perguntamos: é possível pensar em uma “filosofia da escrita”, contida
neste diálogo? Para tentar responder a isso, no capítulo IV, nossa análise se debruça sobre
a mais contundente e direta crítica à escrita presente em todo o corpus Platonicum: a
narrativa da invenção da escrita, o mito de Theuth (274c5-275b2), considerando,
particularmente, as metáforas nucleares associadas à escrita na narrativa de sua
invenção: a noção da escrita associada a uma invenção divina, e a sua caracterização
como phármakon para memória. Nesse sentido, avaliamos as relações entre escrita,
conhecimento, memória, homens e deuses. Por se tratar de fonte também crucial para
compreender a crítica de Platão à escrita – e também porque todos os comentadores que
consultamos não se eximem de analisá-la no conjunto –, examinamos também alguns
27
aspectos do problema que emergem da Carta 7, analisando-os em relação à nossa leitura
do Fedro.
Na parte γ´ da tese – Parádeigma – propomos identificar, no plano filosófico, mais
claramente as congruências entre o tema das letras e o da dialética no Fedro. Para isso,
consideramos a noção de paradigma como central para pensar essa relação. No capítulo
V, buscamos compreender os contornos da noção de paradigma em Platão, buscando
discutir os sentidos dessa expressão particularmente na República e no Político, onde o
termo aparece explicitamente associado às letras. Na sequência, no capítulo VI,
debruçamo-nos sobre a segunda parte da crítica à escrita presente no Fedro (275d-278a),
na qual buscamos mostrar como o conjunto imagético ligado às letras nessa passagem
nos permite associar, por intermédio das noções de imagem e paradigma, o tema da
escrita e da dialética.
Essa breve descrição das partes da tese permite identificar o Fedro como objeto de
análise prioritário em nossa pesquisa. Entretanto, fica nela também patente a nossa
consciente mobilização de outras obras para a discussão – especialmente a República, mas
também, em menor grau, o Banquete, o Górgias, o Político e a Carta 7. Em todo caso,
transcender o escopo de um único diálogo para, em maior ou em menor grau, recolher
elementos em outras obras platônicas que possam iluminar a nossa leitura, requer
alguma justificativa metodológica e uma reflexão teórica preliminar sobre a nossa
apreciação da cronologia atualmente atribuída ao corpus Platonicum e a perspectiva
hermenêutica que decorre dessa visão.
Como é amplamente conhecido, ao menos desde o século XIX, muita discussão
especializada e informada cientificamente se realizou sobre a ordem cronológica dos
diálogos platônicos e suas implicações para a leitura de suas teses filosóficas, como
podemos acompanhar no estudo síntese de L. Brandwood (2009 [1990]). Resultado desses
embates, comentadores como L. Campbell (1867), W. Dittemberger (1881), C. Ritter (1888)
e P. Natorp (1889), entre muitos outros, consagraram a divisão, ainda hoje amplamente
seguida, da obra de Platão em três grupos, que representam, grosso modo, os períodos de
“juventude”, “maturidade” e “velhice”, balizas cronológicas de uma longa e intensa
produção literária7. Ao longo do século XX e nos dias atuais, tal perspectiva perfila uma
longa linhagem de seguidores, dos quais, para darmos alguns exemplos, poderíamos citar
7
Cf. Brandwood (in Kraut, 2006, p. 90): “For a correct understanding of Plato, account needs to be taken of
the fact that his philosophical activity spanned some fifty years, during which time certain doctrines
underwent considerable changes. To trace this development and so be able to identify the final expression
of his thought, it is essential to know in what order the dialogues were written, but there is little help in this
quest either from external sources or from the dialogues themselves”.
28
as obras de G. Vlastos (1983; 1991; 1992, 1994), C. Kahn (1999; 2013), F. Trabattoni (2010), M.
Dixsaut (2012) e F. Ferrari (2018a), entre outros.
Sem que esses três grandes grupos encerrem a vasta produção filosófica de Platão
em fronteiras rígidas – ao contrário, a existência de diálogos que compartilham
características ligadas a mais de um grupo não é assim tão rara8 – essa perspectiva
consagra a assim chamada hipótese “evolucionista” ou “desenvolvimentista” da obra
platônica9, que pressupõe, na longa duração, certo desenvolvimento teórico e filosófico
que vão das preocupações essencialmente éticas e ligadas ao socratismo da fase de
juventude, às especulações matematizantes e metafísicas da fase tardia, passando por um
núcleo central, formado, sobretudo, pelos grandes diálogos de maturidade – Fédon,
República, Banquete e Fedro – que consagram a discussão sobre as teses consideradas mais
canônicas, ligadas à hipótese das Formas e ao lugar da psykhé na economia da pesquisa
filosófica (Trabattoni, 2010). Essa perspectiva implica assumir, com ressalvas, a
possibilidade de análises que contemplem leituras transversais, desde que elas levem em
conta as especificidades de cada contexto dialógico, sem negligenciar a historicidade de
cada diálogo nesse continuum, e justifique a relação possível de ser identificada entre dois
ou mais diálogos, no âmbito do grupo que representam, ou mesmo fora dele.
Dito isso, consideramos que o tema que destacamos – a dialética e a escrita, ou,
em outras palavras, a determinação das relações entre a atividade filosófica e um dos seus
modos de expressão, as letras – parece-nos relevante não somente no Fedro, onde talvez
aflore de forma mais explícita. A preocupação com o pensar filosófico e com seu modo de
estruturação através da forma dialógica escrita parece-nos crucial em diferentes
8
Um exemplo, é a própria República, que, embora considerada uma obra da fase de maturidade, um marco
que divide a produção filosófica de Platão, tem, no seu primeiro livro, um exemplo típico das obras de
juventude. Por razões diversas, também o Crátilo e o Mênon, que podem ambos ser considerados “de
juventude”, são também, pelo aspecto temático, associado aos diálogos de maturidade. Retornamos a essas
questões no capítulo 1.
9
Atribui-se o conceito de “evolução” do pensamento platônico à obra de K. F. Hermann (1839) que
representou, ainda no século XIX, uma nova articulação da cronologia proposta por F. Schleiermacher
(1804). Conforme comenta Reale (2007, p. 36), a tese de Hermann encontrou forte acolhida, tornando-se um
verdadeiro cânon hermenêutico ao longo do século XIX e XX, reforçado ainda pelos desenvolvimentos das
análises estilísticas e linguísticas do corpus Platonicum. Consciente de que uma admissão forte dessa
proposta possa ser questionada por vários argumentos (entre os quais, por exemplo, aqueles apresentados
por Reale, 2007 e por Perine, 2014), descontando-se, ainda, a coloração novecentista do termo e a pretensão
excessivamente dogmatizante que caracteriza a análise de Hermann, parece-nos ainda razoável e
produtivo para uma análise filosófica considerar o pensamento de Platão – embora não encerrado em
marcos rígidos – a partir da ideia de certo desenvolvimento conceitual que se pode perceber ao longo de
sua longa produção bibliográfica, posição que, em linhas gerais, mantemos nessa tese. Estamos também
cientes da existência de outros modelos de leitura que propõem o completo abandono dessa perspectiva,
tal como a obra de H. Benoit (2015), que subverte a noção de temporalidade aplicada à leitura dos diálogos,
em prol de uma apreciação essencialmente estética da obra, uma experiência que, antes de filosófica,
representa uma fruição poética.
29
momentos da obra de Platão, sendo apresentado por diferentes ângulos, ao longo de toda
a sua vasta produção escrita. Portanto, parece-nos que um exame desse tema seja
incompatível com uma análise limitada estritamente ao Fedro, restrita às divisas do
sistema textual desse único diálogo. Ao contrário, em alguma medida, seja em grau mais
evidente, seja enquanto uma resposta mais velada, o problema que destacamos no Fedro
parece responder a questões levantadas em diálogos que lhe precedem e produzir
repercussões em diálogos sucedâneos.
Particularmente, ao situarmos a data de composição do Fedro provavelmente por
volta de 370 a.C., portanto, entre o Banquete, a República e o Fédon, que lhe antecedem, e o
Sofista, o Político e o Timeu, que lhe sucedem, estamos de acordo com L. Brisson (2004, p.
33), o qual também avalia que o Fedro: 1. pressupõe e desenvolve elementos centrais
contidos na República – especialmente a oposição imagem/paradigma consagrada na
hipótese das Formas ali formulada – e; 2. avança uma definição de dialética (a primeira
explicitamente formulada em todo o corpus Platonicum) a qual, por sua vez, se vê melhor
explicada e confirmada em diálogos posteriores – especialmente no Sofista, no Político e
no Filebo, nos quais essa discussão também aparece associada – acrescentaríamos – de
algum modo, às letras (γράμματα). Desse modo, os diálogos auxiliares que tomamos em
nossa análise não somente estão ligados ao Fedro por uma questão cronológica, estando
associados às discussões da fase de maturidade da obra de Platão, quanto estão ligados
também tematicamente em maior ou menor grau. Com efeito, as noções centrais do Fedro
– éros, lógos, psykhé conhecimento, filosofia, Formas – estão refletidos em todos eles,
embora sob perspectivas diversas e voltadas para questões particulares.
III.
Conforme nos ensinam Folscheid & Wunenburger (2013), toda e qualquer
metodologia de uma pesquisa filosófica não se pode abster de “uma relação pessoal,
íntima e constante com os textos” (p. 7). Dito de outro modo, a base metodológica de nossa
pesquisa poderia ser formulada em termos de uma análise estritamente documental10,
mas vai além dela, pelas razões que apresentamos em seguida.
Em primeiro lugar, a obra de Platão acarreta problemas típicos dos documentos
produzidos na Antiguidade, que suscitam diversas questões ligadas à transmissão,
10
Basicamente, uma análise puramente documental requereria a) a seleção de um corpus textual; b) sua
contextualização a partir da pesquisa bibliográfica a seu respeito; c) seleção de categorias analíticas que
possam direcionar sua análise. Em nosso caso, a categoria analítica principal seriam as referências às letras
e à dialética no corpus em questão.
30
edição, aparato crítico, tradução. Nesse sentido, ler Platão significa, em primeiro lugar,
reconhecer a existência de muitas instâncias que se interpõem entre nós e o texto que
temos em mãos. A sua filiação a uma tradição manuscrita, cujos documentos mais antigos
datam certamente de muitos séculos após a sua efetiva redação, ao lado das diferenças de
lições que decorrem das diferentes edições, exigem do analista a consciência de que os
aspectos de caráter filosófico imbricam-se, em certa medida, a condicionantes de
natureza filológica. Assim, ainda que não seja nosso foco produzir uma análise
estritamente filológica, nem mesmo ensaiar qualquer crítica textual de suas edições e/ou
traduções em línguas modernas, não podemos desconsiderar aqueles aspectos que,
ligados a esses domínios, possam interferir em nossa leitura, tais como aqueles relativos
às condições de produção e circulação na própria Antiguidade e aos desdobramentos
textuais envolvidos na sua transmissão, nas suas edições críticas e traduções consultadas.
Portanto, nesta tese, em resposta a tais demandas metodológicas, decorrentes do
trabalho com um texto antigo, consideramos, particularmente: 1. a inserção do diálogo de
Platão em um circuito textual mais amplo e situado historicamente no âmbito de um
sistema cultural – a Atenas do século V-IV a.C.; 2. a sua estrutura global, ligado à sua
construção e organização retórica, que se expressa particularmente através do
vocabulário mobilizado e do conjunto imagético elaborado e a serviço de uma expressão
“conceitual”. Nesse sentido, também não evitamos mostrar, de quando em quando, as
relações entre a obra de Platão e demais textos coetâneos, ainda que de outros autores, e
ligados a gêneros diversos – especialmente os dos sofistas, dos tragediógrafos e dos
demais agentes culturais de relevância na sociedade ateniense antiga, que, em nossa tese,
aparecem como atores coadjuvantes que nos ajudam a compreender o panorama
cultural da época em que a obra platônica foi produzida.
Do mesmo modo, não podemos limitar nossa leitura à exegese de uma passagem
específica: é imperioso considerar a complexidade do gênero diálogo, que desafia o leitor
a ler através de suas ambiguidades, paradoxos, ironias, polissemias ou mesmo afirmações
categóricas de certos personagens (Scolnicov, 2006, p. 184), o que nos impede de fazer
uma análise intrínseca de determinadas passagens isoladas de seu contexto dialógico e
nos exige uma leitura de caráter “global”, por concebermos que o pensamento de Platão
não está aprisionado em determinadas proposições proferidas pelos personagens, mas
emerge como um efeito de interpretação das diferentes vozes do diálogo, nos diferentes
enquadramentos dramáticos e nos diferentes níveis de significação. Em suma,
concebemos Platão como “materialmente ausente do diálogo, mas bem presente do
ponto de vista filosófico, como um invisível manipulador que move suas marionetes na
31
cena” (Trabattoni, 2010, p. 19). Nesse sentido, estamos também de acordo com Hösle
(2008, p. 17), ao sublinhar as limitações de algumas leituras excessivamente analíticas:
“resta para todo hermeneuta sério a obrigação de, em primeiro lugar, intepretar todo o
diálogo específico e com maior razão toda passagem específica de qualquer diálogo no
contexto de toda a obra. Muitas – nem de longe todas – das interpretações de Platão
inspiradas analiticamente já estão de antemão condenadas ao fracasso pelo fato de
formalizarem passagens isoladas sem levar em consideração o seu contexto”.
Finalmente, algumas informações quanto aos textos e traduções consultados.
Para o Fedro e demais diálogos de Platão, seguimos principalmente as edições críticas da
Oxford (Platonis opera, editadas por J. Burnet, 1900-1907), cotejadas eventualmente com as
da Teubner, da Loeb e de Cambridge (Cf. Referências Bibliográficas). Entre as várias
traduções do Fedro em língua portuguesa a que tivemos acesso (Paleikat, 1954; Carlos
Alberto Nunes, 2007 [1975]; Pinharanda Gomes, 2000; José Trindade Santos, 2016; Maria
Cecília Gomes dos Reis, 2016), privilegiamos em nossas citações a tradução de Maria
Cecília Gomes dos Reis (2016), indicando sempre, quando vem ao caso, pequenas
modificações que nos pareceram relevantes para o propósitos desse trabalho, cotejando
também com traduções em língua inglesa (Fowler, 1914; Hackforth, 1997 [1952]; Nehamas
& Woodruff, 1997), em língua francesa (Chambry, 1992; Brisson, 2004 [1989] e em língua
italiana (De Luise, 2002; Velardi, 2006; Pucci, 2014). Para as demais obras de Platão, ora
seguimos as traduções já consagradas em língua portuguesa (cf. Referências
Bibliográficas), ora propusemos traduções de nossa autoria, quando julgamos pertinente.
Em todo caso, para todos os autores citados – antigos e modernos –, quando não
explicitamente expresso em nota, as traduções são nossas. Para as transcrições gregas,
utilizamos o Sistema Benveniste (cf. Brisson, 2003, p. 9-10), mas somente lançamos mão
de transcrições quando as expressões gregas figuravam articuladas à sintaxe do nosso
texto em língua portuguesa. Para citações de textos ou mesmo de expressões entre
parênteses, mantivemos os termos no alfabeto original.
Ainda uma última nota de caráter metodológico: a vastidão da bibliografia
secundária sobre Platão. Para um autor cuja fortuna crítica é oceânica, o problema não é
tanto acessar textos de referência, mas proceder a uma seleção consistente do que há de
relevante e atualizado, sem desconsiderar fontes que, embora mais antigas, consagram-
se como bibliografia secundária “clássica”. Nesse sentido, consideramos algumas poucas
obras referenciais de autores dos séculos XIX e XX, como a obra de Schleiermacher
(1804), privilegiando referências mais recentes, renunciando, entretanto, a qualquer
pretensão de sermos exaustivos nesse quesito. Sempre que possível, fizemos também
32
referências a teses e artigos que resultaram de pesquisas dos centros de Filosofia Antiga
no Brasil, especialmente as defendidas no âmbito da Linha de Pesquisa em Filosofia
Antiga e Medieval da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, em cuja
tradição este trabalho tem a esperança de se inscrever e dar sua contribuição para o
debate filosófico em nosso país.
33
34
α´ DIALEKTIKÉ
Para onde vais, e de onde vens? A dupla interrogação, proferida por Sócrates,
assinala o início do diálogo Fedro. À uma primeira vista, o que poderia apenas soar como
mais uma estrutura formulaica12 empregada por Platão para colocar em cena seus
célebres interlocutores, sugere, na verdade, como já apontado por vários comentadores
(Yunis, 2014; Burnyeat, 1997; Reis, 2016), os principais temas que serão tratados ao longo
desse que é considerado um dos mais complexos e multitemáticos diálogos platônicos13.
Dessas duas perguntas se pode depreender uma espécie de movimento: Fedro – uma das
muitas personagens da cultura ateniense que ganham vida na obra de Platão14 –
responde vir da casa do famoso orador Lísias15, dirigindo-se para fora das muralhas de
11
Tradução de Maura Iglésias (2001), cf. καίτοι μυριάκις γε περὶ ἀρετῆς παμπόλλους λόγους εἴρηκα καὶ πρὸς
πολλούς, καὶ πάνυ εὖ, ὥς γε ἐμαυτῷ ἐδόκουν· νῦν δὲ οὐδ' ὅτι ἐστὶν τὸ παράπαν ἔχω εἰπεῖν. καί μοι δοκεῖς
εὖ βουλεύεσθαι οὐκ ἐκπλέων ἐνθένδε οὐδ' ἀποδημῶν· εἰ γὰρ ξένος ἐν ἄλλῃ πόλει τοιαῦτα ποιοῖς, τάχ' ἂν
ὡς γόης ἀπαχθείης.
12
O caráter formulaico da expressão é acentuado pela forma particularmente concisa da expressão (ποὶ δὴ
καὶ πόθεν;): o verbo de movimento é omitido, recuperável apenas pelo contexto (Cooper & Krüger, 1998,
62.3.1) e a partícula δὴ, que enfatiza a interrogativa, acrescenta um tom de insistência a essa fórmula
(Denniston, 1964, p. 210).
13
O diálogo Fedro está entre os textos mais complexos de Platão. A definição do seu tema apresentou
dificuldades já na Antiguidade – se seria o amor, a beleza, a retórica ou um pouco de tudo isso. Conforme
anota Perine (2014, p. 78), essa multiplicidade temática revela-se na pluralidade de epítetos recebida pelo
diálogo ao longo de sua história: na classificação de Trásilo, o Fedro é chamado de Sobre o amor; na maior
parte dos manuscritos, que remontam ao século IX, é chamado de Sobre o belo; no comentário de Hérmias
de Alexandria, recebe diferentes subtítulos: Sobre o amor, Sobre a retórica, Sobre a alma, Sobre o bem, Sobre o
belo. Para uma discussão mais ampla, De Vries, (1969, p. 22); Brisson (2004 [1989], p. 13).
14
O personagem Fedro aparece também no Protágoras (315b-c) e no Banquete. No Protágoras (ação dramática
entre 433-32 a.C), é retratado como adolescente, na companhia de Erixímaco (um entre os auditores de
Hípias de Élis). No Banquete, ele tem por volta de 34 anos (a ação se passa por volta de 416 a.C.): propõe
colocar o amor como o tema de discussão (177a) e é o primeiro a pronunciar o elogio a Érōs. Características
comuns do personagem no Banquete e no Fedro: a) interesse pela mitologia; b) excelente conhecimento da
arte oratória; c) preocupado com sua saúde (relação com Erixímaco, médico); revela-se conhecedor da
doutrina de Hipócrates. Indícios históricos também associam Fedro a certa personalidade histórica
envolvida na profanação dos Mistérios de Elêusis em 415 a.C., que lhe teria causado a pobreza como
consequência (teria sido condenado a doar suas propriedades como penalidade); o que explicaria a alusão
aos mistérios no referido diálogo (Nails, 2002, p. 232-234).
15
Lísias (c. 458 - 380 a.C.), irmão de Polemarco e Eutidemo, que também são representados como
personagens na obra de Platão, era oriundo de uma rica família de Siracusa. Tornou-se um escritor
professional de discursos (um “logógrafo”), tentou obter a cidadania ateniense, não tendo, entretanto,
conseguido. Escreveu cerca de 200 peças oratórias (sobretudo forenses), das quais sobreviveram cerca de
trinta e cinco (e somente vinte e três completas). Seu estilo era admirado pela simplicidade e naturalidade,
35
Atenas, aonde Sócrates promete lhe acompanhar, contanto que lhe exponha o discurso
aprendido com seu mestre (227c9-d5).
Além do já bem conhecido e detalhado percurso que o diálogo passa então a
descrever – começando em um dos pórticos de Atenas, passando ao longo das bucólicas
margens do Rio Ilisso, até um bosque sombreado, à beira de um regato, onde, finalmente,
Sócrates põe-se a ouvir o discurso que Fedro trazia anotado – é possível também inferir
um outro movimento, no qual é Sócrates quem conduz Fedro: do encantamento pelo
discurso escrito de Lísias, à perplexidade e ao consequente compromisso com outro tipo
de lógos: o dialético. Se, no primeiro plano, é Fedro quem conduz Sócrates, que lhe
acompanha no percurso; no segundo, quem dirige o movimento é o próprio Sócrates, que
insinua também uma condução da alma de seu interlocutor16.
Para onde vais? De onde vens? Essas mesmas questões, a despeito da multissecular
distância que nos separa da atmosfera intelectual da Academia, também nos levam a
refletir sobre esse movimento que a filosofia de Platão engendra17. Assim como o
personagem Fedro, outrora imerso no universo dos mais variados discursos que
mobilizavam a vida cultural de Atenas do século IV a.C.; também nós, a partir desta nossa
longínqua contemporaneidade, inseridos em uma sociedade fortemente assentada no
valor da letra e da palavra escrita, e desafiados pelas aporias da intercomunicação
próprias do nosso tempo, somos convidados a refletir sobre aquela questão antiga, mas
evitando o excesso de ornamentos retóricos e extravagância. Conforme Brisson (2004 [1989], p. 23-27), Lísias
era filho de Céfalo (personagem já velho que aparece na República I, que dá o motivo a Sócrates para iniciar
a discussão sobre justiça – Céfalo é de Siracusa, portanto ele nem seus filhos são atenienses, são metecos –
estrangeiros residentes em Atenas que não tinham todos os direitos políticos); passa período na colônia
grega de Thournorion (cidade grega na Itália), retornando à Atenas por volta de 420 a.C. A ação do Fedro
ter-se-ia desenrolado por volta de 418-16 a.C., tendo Lísias, portanto, entre 26 e 28 anos. Com a derrota de
Atenas em 404, Lísias se refugiou em Mégara, de onde forneceu recursos para os gregos banidos que
tentavam retomar o poder de Atenas. Em contrapartida, Trasíbulo, líder dos democratas a quem Lísias
apoiou, fez votar um decreto que daria direito de cidadania a todos os não-atenienses que tivessem
auxiliado os democratas; contudo, tal intento foi considerado ilegal e Lísias teve que se contentar com a
isotelia, título menor que, não obstante, lhe permitiu posteriormente elaborar, e defender, o famoso
discurso contra Erastótenes. Outros discursos importantes de Lísias: Oração fúnebre (393 a.C.) e Discurso
olímpico (388 a.C.). Lísias teria morrido em 379 a.C. (antes, portanto, da escrita do Fedro, que Platão teria
escrito por volta de 370 a.C.) (Nails, 2002, p. 190-194; Howatson, 2005, p. 337).
16
Peixoto (2011, p. 173) defende que Platão realiza no Fedro um exercício de psicagogia: “Socrate, svolgendo
il ruolo dell'"auriga", conduce Fedro e i lettori ad un renversement della rhetorike techne sotto il segno della
dialettica”. A tese é também defendida por Kélessidou (1992, p. 265). Voltaremos a esse tema mais à frente.
17
Não nos parece descabido, conforme sustenta Cotton (2014, p. 4), que Platão, por meio do diálogo como
manifestação da sua filosofia, também nos conduza no seu movimento dialético, ensinando-nos como
devemos (e como não devemos) filosofar e, ao mesmo tempo, que seus diálogos nos mobilizem a nos
engajar no debate dialético: “they encourage us to engage in it for ourselves, pointing towards further active
philosophizing beyond the confines of the text (...). Specifically, I will suggest that it makes sense to see our
activity in reading as similar in nature and in value that of interlocutors - that is, as constituting a kind of
learning - and that engaging the reader ina process of learning is a central function of dialogues”.
36
de uma atualidade imprescindível18: os limites e potencialidades do discurso (ou da
linguagem) para o pensar. Parece-nos vir ao caso, portanto, engajarmo-nos também a
compreender as distinções e congruências apresentadas por Platão entre, por um lado, o
lógos retórico, formalmente elaborado segundo os preceitos da arte antiga, materializado
nos discursos proferidos na primeira e mais longa seção do Fedro (230e-257b) e o lógos
dialético, que, mais que uma expressão da linguagem, nos sentidos que a palavra assume
nas línguas modernas, configura sobretudo o método proposto para a investigação
filosófica – e que não se deixa, em tese, apreender seja nos esquemas formais da retórica,
seja nas convenções da escrita, embora ele próprio tenha seu modo de organização e não
se especifique sem qualquer relação com a linguagem, com a retórica ou a escrita (257c-
279c).
Portanto, para além dos vários temas que atravessam as páginas do Fedro,
consagra-se uma reflexão em torno do lógos19. O termo, de longa história na filosofia
grega, não nos exime de reconhecer de antemão inúmeros problemas quando o
pensamos face aos múltiplos significados que a ele se podem associar nas línguas
modernas. Derivado do verbo grego légein, que poderia ser encontrado em Homero nos
sentidos de “colher, recolher, juntar”, depois também “enumerar, contar, narrar, falar”;
no período clássico, a palavra lógos podia abarcar significados em duas matrizes
semânticas principais: 1. “palavra, discurso, argumento, explicação” e 2. “raciocínio,
pensamento, razão, cálculo” (Bailly, 2000 [1894]; Liddell & Scott, 1996 [1843]; Chantraine,
1968). Des Places (2003 [1964], p. 310-312) oferece-nos um catálogo das diferentes nuances
em torno desses dois significados principais que o termo possui na obra de Platão:
I. “Palavra”: 1. discurso, proposição; 2. prosa; 3. argumento; 4. pesquisa,
discussão; 5. palavra, teoria (opondo-se a ação); 6. palavra no ar, verbo; 7.
definição; 8. tradição, lenda;
18
São tantas as questões “atuais” da obra de Platão que, como afirmam Nunes & Pinheiro (2011, p. 13), listá-
las seria, de certo modo, inventariar o percurso do pensamento contemporâneo. O protagonismo de Platão
para pensar questões de nosso tempo podem ser conferidos nas obras de Dixsaut (1995), Zuckert (1996),
Lane (2001), Trabattoni (2009), Vegetti (2010).
19
Conforme levantamento de Brandwood (1976), o termo lógos (em todas as suas flexões de número e caso)
aparecem 147 vezes no texto do Fedro (com apenas duas omissões em 234c1 nos manuscritos BW, e em 242b1,
em T): 227b6, c4, d2; 228a7, b5, b6, c1, d7; 229d2, 230a7, d8; 231c2; 234c1, c3, d3, e6; 235b2; 236d9, e2; 237a5, e3;
238a7, b8, d2, d7; 240c1, d7; 241d3, e5, e7; 242a7, b1, b3, b4; 242c8, d4, d11, e3; 243a8, c2, d4, e1; 244a1, a3; 245e3;
246c6; 253e1; 254d6; 255b3; 256a6; 257b1, b2, b3, b6; c1, d6, e4; 258d2; 259d6, e1; 260b7, d4, e2, e4; 261a1, a8, b7;
262c1, c5, d1, d2, d8; 263d3, d6, e2; 264a6, b2, b4, c2, c7, e3, e7, e8; 265c6,b8, d7, e3; 266a3, c3, d6, d8; 267a8, b1,
b4, b10, c8, d3, d7, e3; 269c5; 270a6, b7, c1, c7, e3, e4; 271c10; 272a1, a3, b8, c7, d4; 273a1, a3; 274a4, b3, b9, e3; 275b4,
b6, c8, d7, e1; 276a1, a8, c8, c9, e2, e7; 277a10, b1, c2, c3 (2 ocorrências), c5, d1, e5, e7; 278a5, b7, b9, c1, c3, e1; 279a4,
a6, a7.
37
II. “Pensamento, razão”: 1. diálogo interior; 2. asserção mental, raciocínio; 3.
princípio, lei; 4. motivo, causa, prova; 5. julgamento (verdadeiro/falso); 6.
faculdade racional; 7. cálculo, conta; 8. proporção.
Assim, como nos dá testemunho o estudo lexical supracitado, o termo lógos parece
evidenciar na obra de Platão noções associadas tanto à expressão propriamente
linguístico-discursiva, isto é, ligada à palavra, quanto à dimensão cognitiva, ligada ao
pensamento e à racionalidade. Dito de outro modo, significa que, de forma ampla, o lógos
de Platão parece ao mesmo tempo referir-se a modos de expressão próprios da fala
humana (o perguntar e o responder, o afirmar e o negar, o discursar em público, o
defender uma tese mediante artifícios técnicos etc.), e ao exercício racional que tem como
parâmetro a adoção de um método de investigação para o conhecimento da realidade20.
Além disso, de forma ampla, os significados de lógos na obra de Platão parecem
representar uma espécie de réplica tanto a questões previamente colocadas no campo do
conhecimento e da realidade desenvolvidas por filósofos anteriores, especialmente a
partir da obra de Parmênides, quanto às posições sobre o discurso consagradas, por
exemplo, no pensamento de rétores e sofistas, como Górgias21.
20
Os sentidos do lógos ligados a pensamento e fala sugerida mostram-se evidentes, por exemplo, na
discussão apresentada por Platão no Teeteto (189e4-a2), no qual o pensar (τὸ δὲ διανοεῖσθαι) é definido como
um lógos que a alma mantém consigo mesma (Λόγον ὃν αὐτὴ πρὸς αὑτὴν ἡ ψυχὴ), e que consiste em
perguntar e responder, afirmar e negar (ἑαυτὴν ἐρωτῶσα καὶ ἀποκρινομένη, καὶ φάσκουσα καὶ οὐ
φάσκουσα). Mais à frente, lógos é determinado como o que torna o pensamento visível através de nomes e
de verbos (206d1-2: Τὸ μὲν πρῶτον εἴη ἂν τὸ τὴν αὑτοῦ διάνοιαν ἐμφανῆ ποιεῖν διὰ φωνῆς μετὰ ῥημάτων
τε καὶ ὀνομάτων). Concepção semelhante de lógos está também no Sofista (263e1-12). Nesse diálogo, o
Estrangeiro de Eleia afirma a identidade entre pensamento e lógos (263e1: διάνοια μὲν καὶ λόγος ταὐτόν), na
sequência define pensamento (διάνοια) como o “diálogo da alma consigo mesma, que nasce sem voz” (263e4:
τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτὴν διάλογος ἄνευ φωνῆς γιγνόμενος), o lógos é definido como a materialização
linguística desse pensamento, “um fluxo que decorre da alma, através da boca, com som” (263e7-8: Τὸ δέ γ'
ἀπ' ἐκείνης ῥεῦμα διὰ τοῦ στόματος ἰὸν μετὰ φθόγγου κέκληται λόγος), pelo qual se pode afirmar e negar
(263e12: Φάσιν τε καὶ ἀπόφασιν).
21
Representando uma pesquisa na interface entre pensamento e discurso, o lógos de Platão parece
representar uma resposta a dois encaminhamos previamente colocados na tradição anterior: 1) ao problema
da identidade entre ser e pensar, inaugurada por Parmênides, mas, em certa medida, respondida também
por Zenão e Górgias – do qual decorria o problema do falso e do não-ser; 2) ao problema da relação entre
realidade e o devir, já patente no pensamento de Heráclito, mas também, de certo modo, refletida na obra
de sofistas como Protágoras. Conforme comenta Schäfer (2012, p. 196): “O pano de fundo objetivo da filosofia
da linguagem de Platão é formado por reflexões críticas na filosofia da natureza (Empédocles, Anaxágoras)
e na atomística (Leucipo, Demócrito) no final do século V, que desembocavam em dúvidas quanto à
naturalidade da relação entre nome e coisa e à aptidão da linguagem de reproduzir adequadamente a
realidade. Ao mesmo tempo florescia a retórica, que pretendia alcançar o efeito erístico e estético
especialmente no campo da sofística, muitas vezes de modo independente daquela relação nome-coisa. A
filosofia da linguagem de Platão acolhe esses pressupostos implícita ou explicitamente e gira em torno de
um esclarecimento da referência da linguagem à realidade, de uma determinação de sua função
epistemológica, de uma análise de expressões linguísticas como portadoras de significado e de verdade,
assim como de uma análise das condições da comunicação linguística”.
38
Portanto, muito embora não haja em Platão uma única palavra relacionada ao que
contemporaneamente poderíamos chamar de linguagem22, a investigação sobre o lógos
talvez possa ser admitida, de forma ampla, como uma incursão nesse domínio, uma vez
que, tomada genericamente, a palavra permite compreender a abrangência semântica
contida no vocábulo grego, sem homogeneizar seus sentidos particulares. Assim,
“linguagem” – não obstante represente palavra substitutiva imperfeita, como, ademais,
toda tradução, que representa sempre um recorte dentro de uma temporalidade
específica, tanto mais problemática quando falamos de culturas muito distantes no
tempo – permite simultaneamente abarcar manifestações propriamente da ordem do
discurso e da língua, ligadas à articulação de signos orais ou gráficos, e corresponder ao
processo do pensamento pelo qual é possível aprender23.
Particularmente, no Fedro, embora o lógos possa ser, na maior parte das vezes,
tomado como “discurso”, ligado, portanto, à expressão retórica da linguagem, é possível
também nele entrever esta dupla conotação ao longo do diálogo: dizendo respeito
inicialmente aos discursos retóricos – quando lógos faz referência a formulações próprias
de um modo específico de uso da língua oral ou escrita –, no final do diálogo, essa palavra
está também fortemente ancorada à definição de um método para o pensar e, portanto,
para o aprender – a dialética. Com efeito, o tema é inicialmente abordado no Fedro no
âmbito de uma reflexão de viés retórico-discursivo, que se inicia com uma discussão
sobre os efeitos de um discurso retoricamente elaborado, e se desdobra em demorada
análise desse lógos, com referências frequentes aos procedimentos técnicos da própria
arte retórica (266d1-269c5). É nesse sentido, por exemplo, que Sócrates se refere à retórica
como a “arte dos discursos” (260d4: τὴν τῶν λόγων τέχνην, grifo nosso). Entretanto, se,
por um lado, tal análise do lógos se inicia no horizonte de uma concepção estritamente
retórico-discursiva, ela culmina, por outro, em uma reflexão que mantém fortes
22
Cf. Schäfer (2012, p. 195): “No centro das primeiras reflexões gregas sobre a linguagem está a palavra lógos,
que nesse contexto se refere ao pensamento e à fala humanos e sua relação. Um significado terminológico
limítrofe se encontra nas palavras glossa (em ático: glotta; linguagem, eloquência, língua, fluência, expressão,
dialeto), léxis (palavra, fala, modo de falar, expressão linguística), phoné (fonema, linguagem, dialeto), stóma
(boca, linguagem, fala) e dialéktos (conversa, modo de falar)”.
23
Não há a superposição exata dos sentidos atribuíveis à palavra “linguagem” àqueles relacionados ao termo
lógos. Em que pese isso, as demais alternativas (“argumento”, “discurso”, “razão” etc.), embora
eventualmente mais precisas nos contextos específicos, enfatizam sentidos parciais do termo grego. Por
outro lado, embora com o risco do anacronismo (“linguagem” se trata, com efeito, de vocábulo registrado
na língua portuguesa somente após o século XIII, como nos ensina Houaiss, 2009), o hiperônimo permite
apreender, entre outros, sentidos ligados à estruturação do pensamento por meio de signos (orais ou
escritos), à aprendizagem e à comunicação por meio do discurso, como se pode compreender nas seguintes
definições constantes na entrada do Dicionário: 1. qualquer meio sistemático de comunicar ideias,
pensamentos ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc.; 2. meio de
comunicação por meio de signos orais articulados, próprio da espécie humana; 3. capacidade da espécie
humana de aprender e se comunicar por meio de uma língua.
39
compromissos com fundamentos de ordem epistemológica e ontológica que são
desenvolvidos na “palinódia socrática” (243e9-257b6) e ao longo da segunda parte do
diálogo (259e1-279c8). Após o segundo discurso de Sócrates e as reflexões que lhe seguem
em torno do conhecimento (259e1-262c4), da dialética (264e4-266c9), da alma (269c6-
274b6) e, finalmente, da escrita (274b6-278b6), não nos parece possível conceber lógos
apenas como uma formulação discursiva, isto é, a articulação de signos segundo o aparato
técnico da retórica, sem lhe associar também aquelas nuances relacionadas ao processo
de conhecer e pensar. É o que vemos, por exemplo, na ocorrência do termo em 265d7,
quando se trata de explicitar certa concordância (ὁμολογεῖν) entre a estrutura do lógos e
as divisões da realidade, concordância possível mediante o processo de divisão e reunião,
ou em 275e1, quando lógos parece remeter à expressão do pensamento, quando capturado
pela escrita24.
Assim sendo, respeitando os sentidos específicos de lógos nos contextos em que
aparecem nos diferentes diálogos de Platão – no Fedro, no mais das vezes, “discurso”
parece uma boa tradução –, ao nos referirmos de forma geral ao termo, para uma visão
de conjunto, se não o fizermos com a simples transliteração do termo grego, optaremos
por fazê-lo com a palavra “linguagem” – termo, conforme vimos, propositalmente vago e
24
Embora o termo seja o mesmo, motivo pelo qual os tradutores mantenham a tradução de lógos como
“discurso”, remetendo, portanto, também aos discursos retóricos proferidos, em 265d7 a palavra é
empregada no âmbito de uma definição dos procedimentos da dialética, estando, por isso, também
relacionada à dimensão epistemológica e ontológica (para além da sua expressão discursiva). O sentido,
portanto, parece ir um pouco além do de simples “peça oratória” ou “discurso escrito”, como aparecera
antes:
SÓCRATES: Reunir em uma única ideia coisas dispersas aqui e ali, abarcando-as numa visão de
conjunto, a fim de tornar evidente, definindo cada coisa, aquilo em que cada caso pretende-se
ensinar. Tal como agora mesmo a respeito de Eros – quando definido o que é – esteja bem ou mal
enunciado, o lógos teve como dizer graças a isso algo ao menos claro e coerente consigo mesmo.
(265d3-7, tradução de Reis, 2016, com adaptação, cf. {ΣΩ.} Εἰς μίαν τε ἰδέαν συνορῶντα ἄγειν τὰ
πολλαχῇ διεσπαρμένα, ἵνα ἕκαστον ὁριζόμενος δῆλον ποιῇ περὶ οὗ ἂν ἀεὶ διδάσκειν ἐθέλῃ. ὥσπερ
τὰ νυνδὴ περὶ Ἔρωτος – ὃ ἔστιν ὁρισθέν – εἴτ' εὖ εἴτε κακῶς ἐλέχθη, τὸ γοῦν σαφὲς καὶ τὸ αὐτὸ αὑτῷ
ὁμολογούμενον διὰ ταῦτα ἔσχεν εἰπεῖν ὁ λόγος.).
Mais à frente, em 275d4-e3, quando associado à crítica que Sócrates faz à escrita, na sua relação com o
aprender/rememorar, lógos – mais que “discurso” –, parece ter sentidos ligados a “pensamento”: o
“pensamento”, quando escrito, se comporta como a pintura, incapaz de produzir modulações quando
questionado:
SÓCRATES: Pois há algo de terrível na escrita, Fedro, e que se assemelha realmente à pintura. Pois os
produtos desta são postos como seres vivos, mas, ao interrogá-los sobre algo, mantêm-se em silêncio
solene. O mesmo se dá com os lógoi: parecerá a ti que falam algo [τι λέγειν] pensando por si mesmos
[φρονοῦντας αὐτοὺς], mas se interrogá-los, querendo aprender o que tenham dito, indicam sempre
uma única e mesma coisa. E uma vez escrito, todo lógos roda por toda a parte do mesmo modo – entre
os que o compreendem bem como entre aqueles aos quais não convém.
(275d4-e3, tradução de Reis, 2016, com adaptação, cf. {ΣΩ.} Δεινὸν γάρ που, ὦ Φαῖδρε, τοῦτ' ἔχει
γραφή, καὶ ὡς ἀληθῶς ὅμοιον ζωγραφίᾳ. καὶ γὰρ τὰ ἐκείνης ἔκγονα ἕστηκε μὲν ὡς ζῶντα, ἐὰν δ'
ἀνέρῃ τι, σεμνῶς πάνυ σιγᾷ. ταὐτὸν δὲ καὶ οἱ λόγοι· δόξαις μὲν ἂν ὥς τι φρονοῦντας αὐτοὺς λέγειν,
ἐὰν δέ τι ἔρῃ τῶν λεγομένων βουλόμενος μαθεῖν, ἕν τι σημαίνει μόνον ταὐτὸν ἀεί. ὅταν δὲ ἅπαξ
γραφῇ, κυλινδεῖται μὲν πανταχοῦ πᾶς λόγος ὁμοίως παρὰ τοῖς ἐπαΐουσιν, ὡς δ' αὕτως παρ' οἷς οὐδὲν
προσήκει, καὶ οὐκ ἐπίσταται λέγειν οἷς δεῖ γε καὶ μή.).
40
que permite abarcar o entrelugar entre discurso e pensamento, entre o “falar e o pensar”
(266b4-5: ὦ λέγειν τε καὶ φρονεῖν) que configura a relação entre o discurso elaborado em
palavras (ditas ou escritas) e o processo dialético (que envolve certa articulação
discursiva, mas se refere sobretudo à modalidade do conhecer/aprender)25. Além disso,
porque “linguagem” – diferentemente de “discurso”, “argumento”, “palavra” ou “razão”
– constitui um hiperônimo, tal como a expressão grega, é possível empregá-la em
referência a sentidos distintos, em cada contexto, tornando ainda possível evidenciar, no
Fedro, o exercício de divisão entre, por um lado, o lógos retórico, no limite de uma
tecnicalidade associada a usos específicos da língua grega, e o lógos dialético, que mantém
relações com o processo de conhecer e com as articulações do real.
A reflexão sobre essas duas modalidades do lógos no âmbito do Fedro, ao mesmo
tempo em que permite estabelecer uma macrodivisão desse texto de Platão, também
parece unificá-lo. Por um lado, se podem reconhecer duas partes formal e tematicamente
distintas no mesmo diálogo: uma longa introdução “retórica”, com as reflexões em torno
do tema do éros26, contidas na declamação de três discursos oratórios – parte em que
sobressaem os longos discursos, a ausência de diálogos curtos e a linguagem
retoricamente ornamentada, especialmente rica em imagens – e uma segunda parte, um
condensado, porém significativo desfecho “dialético” – “dialético” tanto na forma como
se apresenta, o progressivo desenvolvimento das ideias a partir do élenkhos socrático,
quanto no próprio tema, que culmina com uma consagrada crítica à retórica e à escrita
(266a-275d) e com uma espécie de definição avançada da dialética (276a-279c). Vale notar
também a rica variedade de expedientes literários que caracteriza o diálogo, no qual se
testemunham a descrição cênica, a narrativa mítica, as alegorias, as analogias, os
discursos retóricos, o diálogo socrático, entre outros. Não obstante, essa divisão não
escapa ao fato de ser meramente esquemática, haja vista que é preciso também atentar,
25
Trindade (2018, p. 153 e seguintes) também opta pelo vocábulo português “linguagem” para se referir ao
problema do lógos nas diferentes fases da obra platônica. O comentador observa, por exemplo, que, nos
chamados diálogos elênticos, há a formulação inicial de uma “teoria do lógos”, no qual a linguagem é
tomada como instrumento de pesquisa e como prova de saber, ao lado da estratégia da refutação (élenkhos);
nos diálogos de maturidade e nos diálogos de velhice, haveria, então, respectivamente, o desenvolvimento
das categorias ontológicas e epistemológicas que permitem a compreensão da linguagem como método que
permite a passagem do ‘entendimento’ para o ‘saber’ (como na República); e a ampliação do lógos
compreendido como “enunciado explicativo” (como no Teeteto) e, mais à frente, como “enunciado
predicativo” (como no Sofista).
26
O tema de éros, presente na primeira parte do diálogo, não é indiferente ao assunto tratado nessa seção,
tampouco se explica por razões de ordem contingencial ou histórica, tal qual aquela oferecida por Jaeger,
segundo o qual derivaria da mera “frequência do tema em exercícios escolásticos do tipo” (apud Trabattoni,
2003). Em vez disso, como sustentam vários comentadores (Reale, 1998; Trabattoni, 2003; Peixoto, 2011; Reis,
2016) há um nexo necessário entre éros, retórica e dialética, conforme avaliaremos na sequência.
41
como chave de leitura, para o que nos informa Reis (2016), na introdução de sua tradução
do Fedro:
27
Conforme também sublinhamos na introdução, de um ponto de vista metodológico, não julgamos
procedente uma abordagem que procure esclarecer os significados de um tema tratado no diálogo,
prescindindo de uma atenta observação da sua estrutura global. Ademais, como observa Trabattoni (2003,
p. 103): “o método que consiste em interpretar o texto platônico, isolando algumas passagens de seus
contextos, nunca deu bons frutos, e hoje tende-se a abandoná-lo”.
28
Conforme Werner (2007, p. 91), isso pode ser visto na discussão do tema realizada, por exemplo, por
Hermeias (comentador neoplatônico), assim como na pluralidade de subtítulos que o diálogo recebeu ao
longo da Antiguidade, que puseram em evidência o debate sobre o tema principal do diálogo: Éros, a alma,
o Bem, a Beleza.
29
Nichols (2016, p. 58): “Quando nos debruçamos sobre Fedro, é ainda mais problemático determinar o tema
central. De fato, a própria existência desse diálogo como texto escrito talvez seja a mais contundente ironia
nas obras de Platão. Deparamos com Sócrates, que não deixou nada escrito, denegrindo o valor da escrita
enquanto tal e defendendo que um homem sério só pode considerar seus escritos como uma ocupação
paralela e divertida – lemos isso escrito por Platão, em que todo e qualquer leitor reconhece um escritor
dos mais cuidadosos e esmerados. Somos informados que uma obra escrita deve ter uma unidade
semelhante à de um ser vivo, com todas as suas partes adaptadas de forma adequada ao todo; e, ainda assim,
a unidade do Fedro é difícil de articular, como a de qualquer diálogo do corpus platônico”. Uma discussão
sobre o intenso debate sobre a unidade temática do Fedro pode ser verificado em De Luise (2002, p. 20-27).
30
O encanto que o lógos engendra é, de partida, insinuado de diversas maneiras no Fedro. Em 228b6,
Sócrates admite ser “doente por discursos” (νοσῶν περὶ λόγων). O discurso é, em seguida, qualificado como
o phármakon (230d5: “remédio”, “encanto”, “poção”, “veneno”), capaz de levar Sócrates às ações mais
inesperadas (como empreender uma longa caminhada pela Ática), somente para ouvi-lo. Após a audição
do discurso de Lísias, o discurso é qualificado como “divino” (234d1: δαιμονίως). Conforme apontaremos
mais detidamente na Parte β´, não somente o tópos da linguagem como ambígua, poderosa e – portanto,
42
da filosofia, a “verdadeira retórica” (266c-270d); logo, amor (ἔρως) e linguagem (λόγος) já
estão, assim, imbricados de antemão. Poderíamos, com isso, talvez inferir que todo o
diálogo representa uma espécie de conversão amorosa à filosofia, esta que se opera
somente pela dialética enquanto um caminho para o pensar?31 Mais que isso, seria
possível entrelaçarmos, por um lado, os discursos em torno do amor e, por outro, a
reflexão sobre a dialética, para a compreensão do grande tema que unificaria o Fedro,
qual seja, o delineamento do filósofo e de sua atividade?32
Essas duas perguntas são norteadoras da discussão que pretendemos empreender
nesta parte da tese. Antes de retornarmos diretamente a elas, uma observação
metodológica: por entendermos que as balizas conceituais da dialética estabelecidas
nesse diálogo têm como referência a reflexão sobre esse tema apresentada na República
(Kahn, 2013; Dixsaut; 2001; Destopoulos, 1992), julgamos apropriado examinar,
preliminarmente, como a noção de dialética e os termos que a designam emergem na
República, para, então, tentarmos avaliá-lo a partir dos sentidos de sua repercussão no
Fedro.
Desse modo, nossas reflexões aqui contidas serão divididas em dois capítulos: no
primeiro, para compreender os contornos iniciais do tema, apresentamos um breve
exame da dispersão dos termos relacionados à dialética na República (V, VI, VII) e em
alguns diálogos que lhe estão diretamente associados (Mênon, Eutidemo, Crátilo); no
segundo, retornamos ao Fedro, avaliando as repercussões e desdobramentos do conceito
talvez – perigosa, terrível (δεινόν) é bastante explorado por Platão em sua crítica à escrita, como também
não é uma ideia propriamente nova na cultura grega. Como lemos no Elogio de Helena (14), Górgias já
alertava quanto ao ambíguo estatuto da linguagem: “A mesma relação tem também a potência do discurso
para com a boa ordem da alma e a potência dos medicamentos com relação ao estado natural dos corpos,
pois, do mesmo modo que certos medicamentos expulsam do corpo certos humores, e uns suprimem a
doença, outros, a vida, do mesmo modo também, entre as palavras, umas afligem, outras encantam, outras
amedrontam, outras estabelecem confiança nos ouvintes, outras, através de sórdida persuasão, envenenam
e enganam a alma” ( Tradução de Aldo Dinucci, 2009, cf. (14) τὸν αὐτὸν δὲ λόγον ἔχει ἥ τε τοῦ λόγου
δύναμις πρὸς τὴν τῆς ψυχῆς τάξιν ἥ τε τῶν φαρμάκων τάξις πρὸς τὴν τῶν σωμάτων φύσιν. ὥσπερ γὰρ
τῶν φαρμάκων ἄλλους ἄλλα χυμοὺς ἐκ τοῦ σώματος ἐξάγει, καὶ τὰ μὲν νόσου τὰ δὲ βίου παύει, οὕτω καὶ
τῶν λόγων οἱ μὲν ἐλύπησαν, οἱ δὲ ἔτερψαν, οἱ δὲ ἐφόβησαν, οἱ δὲ εἰς θάρσος κατέστησαν τοὺς ἀκούοντας,
οἱ δὲ πειθοῖ τινι κακῆι τὴν ψυχὴν ἐφαρμάκευσαν καὶ ἐξεγοήτευσαν). Uma reflexão sobre a posição
gorgiânica quanto ao lógos, que traduz em outro paradigma a questão parmenídica do ser, numa chave
diversa da posição socrático-platônica pode ser conferida em El-Jaick (2016) e Salles (2018).
31
Tal é a posição de Reis (2016, p. 21): “Se esse é o caso, o problema central de Sócrates no diálogo pode ser
colocado nestes termos: de que maneira levar Fedro, meu atual interlocutor cuja psykhé bem conheço, a
abandonar seu entusiasmo por Lísias e adotar uma rota voltada para a filosofia e movida pela dialética? Os
seus dois discursos, à luz dessa perspectiva, podem ser interpretados como composições em que tudo foi
deliberado e estabelecido justamente para contribuir com a finalidade de demover Fedro de sua sedução
inicial pela oratória – bem como da tese defendida ali – e persuadi-lo a seguir os valores filosóficos por
meio de uma arte que captura e expressa o mais real e o mais inteligível”.
32
Hülsz-Piccone (1992, p. 261) sugere que a unidade do Fedro é de fato o tema da dialética, que, embora em
diferentes tratamentos, perpassa todas as partes do diálogo. Voltaremos a esse tópico no capítulo II.
43
platônico, considerando sua dimensão “prática” e “teórica”, com especial atenção para as
relações instituídas entre érōs, dialética, retórica e psicagogia.
44
I.
CAMINHOS DA DIALÉTICA
ὁδός, f.: «rota, caminho, viagem, jornada», por metáfora, «via, meio,
método» etc. O termo abrange um campo semântico mais amplo que
κέλευθος, significa o caminho, a direção que o leva a um objetivo, lat.
Via. Μέθοδος: originalmente significa «busca», mas assume o
significado de «pesquisa, investigação, método de pesquisa, ciência,
doutrina»33.
(Chantraine, 1968, Tomo III, p. 774)
podemos justificar a abordagem segundo a qual, por um lado, não é possível prescindir
de uma análise imanente de cada diálogo, considerando suas relações internas e seu
projeto global, mas, por outro, também não se inviabiliza uma leitura que considere
transversalmente outras obras, quando nos interessa a compreensão de determinado
conceito no âmbito do “quadro geral” da filosofia platônica.
De fato, como exprimir a verdade em palavras e, se possível, como escrevê-la?, são
perguntas que se colocam a partir do Fedro, tendo como corolário a seção final desse
diálogo, onde se verifica uma investigação particular sobre a dialética (276a-279c). No
entanto, tais perguntas trazem à tona um dos mais antigos problemas que acompanham
a história da filosofia: a questão do lógos, que se materializa na complexa relação que se
pode compreender entre realidade, pensamento e discurso, e que, embora tenha nesse
33
Cf. ὁδός, f. : « route, chemin, voyage, marche », par métaphore, « voie, moyen, méthode », etc. Le terme
couvre un plus large champ sémanthique que κέλευθος, il signifie le chemin, la direction que vous mène
au but, distingué de κέλευθος, lat. via. μέθοδος : signifie originellement « poursuite », mais prend le sens de
« recherche, investigation, méthode de recherche, science, doctrine » .
45
diálogo um lugar privilegiado de reflexão, não se inicia, nem se conclui nessa obra34.
Mesmo no corpus Platonicum, o tema não se restringe a um único diálogo, mas é
significado e ressignificado em diferentes contextos dialógicos, diante de problemas
filosóficos específicos, emergindo como um mosaico, como um efeito de interpretação
que obtemos a partir da leitura de uma pluralidade de elementos.
Com isso em mente, neste capítulo apresentaremos um levantamento, seguido de
breve análise, daquelas passagens que contêm termos relacionados ao campo lexical da
dialética nos diálogos que precedem o Fedro, especialmente na República, mas também
em alguns outros diálogos que a ela estão associados (o Mênon, o Eutidemo e o Crátilo).
Trazendo à tona as reflexões que emergem desses diálogos em torno do dialético e da
dialética, tivemos como critério de análise a efetiva ocorrência de expressões nominais e
adverbiais cognatas do campo lexical da dialética, motivo pelo qual, neste momento,
deixamos de lado deliberadamente diálogos que, quanto ao tema, seriam igualmente
importantes para o Fedro, como o Fédon; bem como abdicamos das expressões verbais,
que, muito mais prevalentes no corpus Platonicum, na maior parte têm sentido mais
coloquial e cotidiano, o que implicaria uma análise de, praticamente, todos os diálogos,
tornando, por isso, esse esforço inócuo. Com efeito, nossa meta é apenas apresentar um
esboço daquilo que talvez possamos considerar como as primeiras reflexões em torno de
um método da dialética, para então confrontá-las com os sentidos a ela associados no
Fedro. Portanto, nossa análise, reconhecidamente parcial, não tem a preocupação de
exaurir o tema tal qual se afigura particularmente em cada diálogo, menos ainda de
examiná-lo no pensamento de Platão como um todo – tarefa já em parte empreendida
por vários comentadores de cujas análises nos servimos parcialmente (Müri, 1944;
Trabattoni, 1993; Kahn, 1999; Dixsaut, 2001; Benson, 2006; Fink, 2012) – tarefa que, aliás,
34
Já Heráclito (séc. VI-V a.C.) apontava para a complexa relação entre coisas/ações (ἔργα) e lógos, como
lemos no fragmento citado por Sexto Empírico (M. 7.132.3-10): “desse lógos, sendo sempre, são os homens
ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas vêm a ser segundo esse lógos, e
ainda assim parecem inexperientes nestas palavras e ações, tais quais eu exponho, distinguindo cada coisa
segundo a natureza e enunciando como se comporta. Aos outros homens, encobre-se tanto o que fazem
acordados como esquecem o que fazem dormindo” (Tradução de Alexandre Costa, 2012, cf. “λόγου τοῦδε
ἐόντος ἀξύνετοι γίνονται ἄνθρωποι, καὶ πρόσθεν ἢ ἀκοῦσαι, καὶ ἀκούσαντες τὸ πρῶτον· γινομένων γὰρ
κατὰ τὸν λόγον τόνδε ἀπείροισιν ἐοίκασι, πειρώμενοι ἐπέων καὶ ἔργων τοιούτων, ὁκοίων ἐγὼ διηγεῦμαι,
κατὰ φύσιν διαιρέων ἕκαστον καὶ φράζων ὅκως ἔχει. τοὺς δὲ ἄλλους ἀνθρώπους λανθάνει ὁκόσα
ἐγερθέντες ποιοῦσιν, ὅκωσπερ ὁκόσα εὕδοντες ἐπιλανθάνονται.”). As observações de Heráclito apontam
para uma reflexão de caráter epistemológico que, ao nosso ver, seria retomada no tratamento que Platão
faz da dialética: há uma organização do lógos caracterizada por um movimento de “distinção de acordo com
a natureza de cada coisa”, que se opõe a uma “indistinção” que é uma espécie de
encobrimento/esquecimento. Voltaremos a essa questão nos próximos capítulos.
46
parecer-nos-ia tanto impossível pela abrangência do tema, quanto pela fecundidade do
pensamento de Platão, que não se confina a esquemas fechados35.
35
Cf. Schäfer (2012, p. 15): “Em contrapartida, para que nos asseguremos dos pensamentos de Platão de
modo que possamos nos apropriar deles, precisaremos de um dispêndio muito maior, a saber, de um
intenso trabalho de apropriação, que não consiste apenas em ler o que o autor escreve e em tê-lo entendido
suficientemente. Trata-se, antes, de detectar o decisivo no dito e não dito e deixá-lo atuar em nós num
processo de pensamento contínuo. Isso é possibilitado pelo diálogo platônico, em cuja forma singular de
processamento também se refletem, por causa da crítica à escrita, certas peculiaridades identificáveis: nada
aí parece deixar-se encerrar em conceitos rígidos, nem em teses; até mesmo termos pretensamente
‘tipicamente platônicos’ como ideia são usados nos diálogos de maneira conscientemente não
terminológica, tendo ora um sentido específico, ora outro, e muitas vezes apenas um sentido bastante geral
e próprio da linguagem cotidiana”.
36
Não há consenso sobre a posição do Crátilo na cronologia dos diálogos de Platão. Como veremos à frente,
do ponto de vista temático, o Crátilo se aproxima dos diálogos de maturidade e velhice, embora, do ponto
de vista formal, se aproxime dos diálogos da primeira fase (especialmente ligados ao método socrático, em
que se destaca o papel de Sócrates como mediador de uma discussão que, como é o caso, frequentemente
termina em aporia). Por isso, muitos comentadores atuais sustentam que esse diálogo esteja no rol das
obras de maturidade, o lado da República, do Banquete, do Fedro e do Fédon (como, por exemplo, o fazem
Trabattoni, 2003; Schäfer, 2012; Dixsaut, 2012), mas há quem o sustente pertencer à fase de juventude,
provavelmente em transição para a fase de maturidade, ao lado do Górgias e do Mênon (Reale, 2007).
Seddley (2003, p. 7), defende, contudo, que a cronologia tradicional não se pode aplicar ao Crátilo. Conforme
sustenta em seu comentário especializado, a versão que nos teria chegado desse diálogo poderia ter
resultado de duas ou mais redações ao longo da vida de Platão, de modo que o texto final mantivesse um
núcleo central que espelhasse as considerações próprias de uma discussão de juventude, mas modificado
por alterações promovidas no texto em etapa mais tardia do desenvolvimento filosófico.
37
Conforme observa Trabattoni (2003, p. 119), nos diálogos que precedem a República, por meio da figura de
Sócrates, Platão vinha delineando um modelo de filósofo/educador destinado a superar os pretensos
47
Mesmo a presença do Mênon, do Eutidemo e do Crátilo nessa amostra, diálogos que
vários estudiosos, como Trabattoni (2003), Schäfer (2012) e Dixsaut (2012), admitem
precederem a República, também não surpreenderia. Com efeito, conforme ensina Kraut
(2006, p. 9), não se poderia considerar o Mênon inequivocamente um diálogo de
juventude, pois nele já se pode conceber uma ampliação de interesses filosóficos: pela
primeira vez, o personagem Sócrates devota sua atenção a um assunto fora do domínio
da ética, embora esteja motivado por uma pergunta do tipo socrática (“o que é a virtude?”-
Mênon, 71b1-838): dela decorrem questões sobre a legitimidade da pesquisa, o
conhecimento e o papel da reminiscência39. O Eutidemo, por sua vez, representa uma
primeira tentativa de opor diferentes métodos de investigação: o socrático, ligado à
prática do dialético, e o sofístico, associado à erística. Dessa discussão decorre, como é
típico dos diálogos avançados, uma preocupação com o modo de filosofar e com a
natureza do conhecimento. Por sua vez, o Crátilo, que, conforme vimos, quanto à forma
se assemelha aos diálogos que precedem a República, pelo critério temático faria parte do
conjunto de diálogos de velhice. De fato, como comenta M. Marques na introdução à
tradução de Celso Vieira (2014, p. 15), esse diálogo possui um caráter “teorético e lógico,
tal como os diálogos nos quais a condução da discussão passa a ser feita pelo Estrangeiro
de Eleia, como o Sofista e o Político”.
Sendo assim, a ocorrência dos termos ligados à dialética nesse conjunto de
diálogos não nos parece ser circunstancial, mas parece revelar que, não obstante a
variada performance da dialética em diferentes diálogos, ela se torna um procedimento
mais distintamente tematizado a partir de um momento específico da obra de Platão, que
educadores que dominavam a cena em Atenas – os poetas, os sacerdotes, os sofistas, os rétores. Para isso,
Platão alimentaria uma polêmica contra esses sábios em diferentes diálogos – o Górgias, o Protágoras e o
Hípias, por exemplo, entre outros, trazem no próprio título o nome de figuras históricas cuja arte se põe em
debate –, e culminaria com o modelo perfeito do filósofo, educador e político que está na República (V e VI).
Nos diálogos subsequentes, haveria, então, uma tentativa de determinar a natureza, o conteúdo e o método
do saber que caracteriza esse filósofo, para além do modelo ideal e celeste apresentado na República (592a-
b). É nesse sentido que emerge, vigorosamente, a dialética enquanto tema de discussão – para além da sua
materialização, digamos, “prática”, presente desde os primeiros escritos. De fato, é na República que a
dialética é primeiramente colocada diretamente em discussão (Kahn, 2013, p. 132).
38
A tradução da palavra grega areté como ‘virtude’ nesse contexto, embora seja abonada pela tradição
tradutória – assim traduzem, por exemplo, Carlos Alberto Nunes (1973) e Maura Iglésias (2001) – merece,
entretanto, ser problematizada, por restringir o sentido da acepção mais ampla que sugere o vocábulo
grego. O Lexicon Platonicum (Places, 1964 [2003]), sugere, entre as primeira acepções para o termo, os
seguintes: “qualidade”, “perfeição”, “mérito”, “coragem”. Schäfer (2012, p. 320) observa ainda que:
“habitualmente traduzido por ‘virtude’, o termo grego aretē tem um campo semântico essencialmente
maior, estendendo-se não somente a fatos éticos, mas também à ontologia, à psicologia, ou à epistemologia,
motivo pelo qual pode ser traduzido também por excelência, aptidão ou eficiência”.
39
Segundo Kraut, o tema da reminiscência é o marco do período médio da obra de Platão, motivo pelo qual
o Mênon pode ser considerado um diálogo de transição entre o período de juventude e maturidade, em que
se pode perceber a transformação de “Sócrates” em Platão (Kraut, 2006, p. 6).
48
tem por referenciais, por um lado, a prática socrática do perguntar, responder, refutar,
postular e examinar hipóteses; e, por outro, a ideia de filósofo consagrada na República,
com suas implicações epistemológicas e metafísicas – o que também poderia explicar que
o termo, em sua forma abstrata substantiva (ἡ διαλεκτική), ocorra pela pela primeira vez
somente neste diálogo. Afora tais referenciais, esse elenco de ocorrências lexicais parece
ainda sugerir que o procedimento dialético tende a adquirir maior centralidade nos
diálogos mais avançados, entre os quais se inscreve certamente o Fedro (mas também o
Sofista, o Político e o Filebo).
Concordamos com a asserção de M. Dixsaut (2001, p. 8) de que não há uma
ruptura, mas sim uma transmutação, entre as diferentes práticas dialéticas na obra de
Platão, que partiriam do estilo dialógico, presente nos primeiros diálogos (no Hípias
menor e no Protágoras, por ex.) até as análises avançadas sobre o um e o múltiplo, a divisão
e reunião que caracterizam o método de pesquisa nos diálogos mais tardios (no Sofista,
no Político e no Filebo, por ex.). Além disso, parece-nos também correta a avaliação de H.
Benson (2006, p. 87), de que o “método dialético”, se tomado de forma ampla, incluiria ao
menos três diferentes formas de realização: o método do élenkhos, que Platão
recomendaria e poria em prática nos diálogos de juventude; o método de hipóteses, que
aparece mais explicitamente aplicado no Mênon e no Fédon, sendo também empregado
na República; e o método dialético propriamente dito, que aparece na República e é
explicitado como o método de divisão e reunião no Fedro (e seguido, não sem alteração,
no Sofista, Político e Filebo). Assim, antes de avançarmos, talvez valha a pena indicar alguns
sentidos relacionados a essas diferentes práticas da dialética, considerando o que se pode
depreender desse conjunto de textos. Para isso, examinaremos algumas questões lexicais
(Schäfer, 2012; Brisson & Pradeau, 2010) e analíticas (Müri, 1944; Dixsaut, 2001; Benson,
2006; Fink, 2012; Kahn, 1999, 2013) relacionadas aos contextos em que tais termos
efetivamente aparecem nesses diálogos.
O adjetivo dialektikós preexiste, no corpus Platonicum, ao substantivo dialektiké,
cujas primeiras ocorrências estão na República (7.532b4, 533c7, 534e3, 536d6, 537c6). Trata-
se, como sustenta C. Schäfer (2012, p. 93), de neologismo criado por Platão derivado de
dialégesthai, verbo de voz média que tem, entre acepções possíveis, as de “conversar”,
“dialogar”40. Conforme avalia W. Müri (1944), Platão, que normalmente evita fixações
40
Conforme aponta Kahn (1999, p.301), o termo “dialética” (διαλεκτική), derivado de dialégesthai, foi
provavelmente cunhado por Platão, por causa do papel paradigmático da conversação socrática no âmbito
de sua filosofia, não havendo razão consistente para reconhecer uma existência da dialética prévia a
Sócrates. Diógenes Laércio (D.L. 7.57; 9.25), entretanto, afirma que Aristóteles teria considerado Zenão de
Eleia o inventor da dialética (tal posição também pode ser encontrada na Metafísica N, 3.1078b23-30).
49
terminológicas, teria empregado um neologismo para caracterizar e especificar o
dialégesthai como um método de investigação filosófica, caracterizado, por um lado, pela
necessária relação dialógica, e, por outro, por incontornável necessidade de justificação
e fundamentação (λόγον διδόναι), consistindo em uma espécie de exame da linguagem
com vistas à coerência, que se alcança com o assentimento ou a refutação (ἔλεγχος)41.
No mesmo sentido, Dixsaut (2001, p. 8) identifica, pelo menos, duas dimensões
associadas à noção de dialética na obra de Platão: a configuração inicial do dialégesthai,
que aponta para a natureza dialógica e maiêutica da discussão que se trava entre Sócrates
e seus interlocutores, e um desenvolvimento metodológico mais específico, presente nos
diálogos tardios, que envolve análises sutis da linguagem, abarcando reflexões em torno
do uno e do múltiplo, da divisão e reunião. Conforme argumenta, “da maiêutica à divisão,
não existe nem uma ruptura, nem uma evolução contínua”, mas “mutações sem ruptura,
retomadas de um pensamento que pesquisa sempre na mesma direção, e, entretanto,
sempre de forma diversa” (Dixsaut 2001, p. 8)42.
Isso explica a metáfora empregada pela estudiosa de que a dialética constitua uma
“metamorfose” no âmbito do corpus Platonicum: por tal motivo, não se poderia esperar a
superposição exata dos sentidos que essa palavra traduz em dois diálogos diferentes;
tampouco uma incompatibilidade entre elas; não por pressupormos, necessariamente,
uma “evolução” que teria levado Platão a fazer retificações ou revisões sucessivas do
conceito, mas principalmente porque a dialética se metamorfoseia segundo exigências
próprias de cada problema colocado (Dixsaut, 2001, p. 12). Nesse sentido, J. Fink (2012, p.
11) também observa que a dialética produz diferentes efeitos, de acordo com o caráter dos
personagens envolvidos; basta lembrar-nos, por exemplo, de sua limitada eficácia diante
de interlocutores pouco propensos à colaboração, como ocorre com Trasímaco, da
República (1.336b-337a), ou mesmo com Cálicles, do Górgias (506b4-c4).
41
A refutação (ἔλεγχος), termo oriundo da retórica antiga, é ressignificada na obra de Platão, associada à
prática da pesquisa filosófica socrática. A busca pela refutação é, assim, em ampla medida, o modus
principal das discussões em Platão, conforme fica claro na passagem do Górgias (458a2-7):
SÓC.: (…) Mas que tipo de homem sou eu? Aquele que se compraz em ser refutado quando não digo
a verdade, e se compraz em refutar quando alguém não diz a verdade, e deveras aquele que não
menos se compraz em ser refutado do que refutar; pois considero ser refutado precisamente um
bem maior, tanto quanto se livrar do maior mal é um bem maior do que livrar alguém dele.
(Tradução de Daniel R. N. Lopes, 2011, Cf. ἡδέως ἄν σε διερωτῴην· εἰ δὲ μή, ἐῴην ἄν. ἐγὼ δὲ τίνων εἰμί; τῶν
ἡδέως μὲν ἂν ἐλεγχθέντων εἴ τι μὴ ἀληθὲς λέγω, ἡδέως δ' ἂν ἐλεγξάντων εἴ τίς τι μὴ ἀληθὲς λέγοι,
οὐκ ἀηδέστερον μεντἂν ἐλεγχθέντων ἢ ἐλεγξάντων· μεῖζον γὰρ αὐτὸ ἀγαθὸν ἡγοῦμαι, ὅσῳπερ
μεῖζον ἀγαθόν ἐστιν αὐτὸν ἀπαλλαγῆναι κακοῦ τοῦ μεγίστου ἢ ἄλλον ἀπαλλάξαι.).
42
Cf. “De la maïeutique à la division, il n’y a ni rupture, ni évolution continue (…) des mutations sans
rupture, les reprises d’une pensée qui cherche toujours dans la même direction, et cependant toujours
autrement”.
50
Examinando os contextos, é possível observar que os termos são empregados por
Platão para se opor, por um de seus sentidos, à forma de linguagem não-dialógica,
consagrada nos discursos retóricos43. Nesse sentido, conforme aponta Kahn (2013, p. 132),
o dialégesthai se opõe, quanto à forma, à retórica propriamente dita (ῥητορική), mas, a
partir da reflexão presente no Mênon (75c8-e1), quanto à finalidade, ele faz oposição
também à erística (ἐριστική) e à agonística (ἀγωνιστική)44, isto é, diferente dessas técnicas
sofísticas, a dialética não se limita a uma busca pela refutação em si mesma. Teríamos
aqui, portanto, um primeiro sentido associado à dialética quanto à sua expressão formal
(o diálogo vs. o discurso retórico) e à sua inclinação ética (o diálogo vs. a refutação erística):
43
É assim que o verbo dialégesthai aparece, por exemplo, no Hípias menor (373a6-7). Essa oposição é também
explorada no Górgias (447b-e), no qual se opõe ao discurso de demonstração (ἐπίδειξις). Neste texto, há
ainda a oposição entre o “diálogo” e a “retórica” (448d7-10 – tradução de Daniel R. N. Lopes, 2011):
“SÓCRATES: Não; se tu mesmo quiseres responder, será mais aprazível interrogar-te. Pois é evidente que
Polo, pelo que acabou de dizer, tem praticado antes a retórica do que o diálogo”. (Cf. {ΣΩ.} Οὔκ, εἰ αὐτῷ γε
σοὶ βουλομένῳ ἐστὶν ἀποκρίνεσθαι, ἀλλὰ πολὺ ἂν ἥδιον σέ. δῆλος γάρ μοι Πῶλος καὶ ἐξ ὧν εἴρηκεν ὅτι τὴν
καλουμένην ῥητορικὴν μᾶλλον μεμελέτηκεν ἢ διαλέγεσθαι). Conforme comenta Lopes (2011, p. 174), este é
“um dos modos de Platão figurar, do ponto de vista da construção das personagens no Górgias, a oposição
entre dois modos de discurso diferentes, o filosófico e o retórico: Polo, devido à sua inexperiência no
domínio discursivo dialógico (pelo menos segundo as expectativas de Sócrates), é incapaz de dar uma
resposta breve e simples conforme o argumento indutivo de Querofonte, recorrendo, em contrapartida, ao
discurso extenso e ornamentado do modelo retórico”.
44
Termos derivados de Éris (divindade que personifica o conflito, a discórdia) e ágon (a arena de debates, a
batalha, a luta), fazem menção à técnica de disputa sofística, em que os contendentes tinham como meta
derrubar o argumento do rival, usando, frequentemente, perguntas e respostas (Places, 1964 [2003]). O
termo, associado aos praticantes de disputas verbais já aparece em Isócrates (em Contra os sofistas, 1.8: οἱ
περὶ τὰς ἔριδας διατρίβοντες). Diógenes Laércio (9.55) abre a lista das obras de Protágoras então exstentes
com o título Τέχνη ἐριστικῶν). Na obra de Platão, o discurso “dialético”, opondo-se ao “erístico”, revela
que o dialégesthai socrático-platônico pretendia diferir-se de outras práticas de perguntas e respostas que
revelavam a maestria verbal de certos sofistas. A partir do Mênon, na passagem aludida, esse lugar-comum
será também explorado nos diálogos mais tardios: República (5.454a-b, 7.537e-539c); Filebo (17a4); Sofista
(231e1-5).
45
Tradução de Iglésias (2001), cf. {ΣΩ.} Τἀληθῆ ἔγωγε· καὶ εἰ μέν γε τῶν σοφῶν τις εἴη καὶ ἐριστικῶν τε καὶ
ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος, εἴποιμ' ἂν αὐτῷ ὅτι “Ἐμοὶ μὲν εἴρηται· εἰ δὲ μὴ ὀρθῶς λέγω, σὸν ἔργον λαμβάνειν
λόγον καὶ ἐλέγχειν.” εἰ δὲ ὥσπερ ἐγώ τε καὶ σὺ νυνὶ φίλοι ὄντες βούλοιντο ἀλλήλοις διαλέγεσθαι, δεῖ δὴ
πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον ἀποκρίνεσθαι. ἔστι δὲ ἴσως τὸ διαλεκτικώτερον μὴ μόνον τἀληθῆ
ἀποκρίνεσθαι, ἀλλὰ καὶ δι' ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος.
51
Nessa passagem, Platão contrasta, por meio da observação de Sócrates, o método
erístico e agonístico, o qual consiste em se tomar o argumento (λαμβάνειν λόγον) e
refutá-lo (ἐλέγχειν), com vistas a ganhar um debate46, a um modo de responder “mais
suave e dialético” (πρᾳότερόν καὶ διαλεκτικώτερον), que resulta de um compromisso
entre amigos (φίλοι) que desejam conversar entre si (βούλοιντο ἀλλήλοις διαλέγεσθαι).
Nesse contexto, mais do que a busca da refutação (ἔλεγχος), entra em jogo a amizade
(φιλία), de modo que a dimensão propriamente técnica, competitiva e bélica dos artifícios
de persuasão e refutação são deixados de lado em prol de uma conversa franca e
amigável, que não prescinde, portanto, das relações éticas entre os dialogantes,
consubstanciadas pela noção de philía.
Está claro, como comenta Kahn (1999, p. 306), que neste contexto específico
Sócrates trata de estabelecer com Mênon uma espécie de pacto: o jovem precisa
concordar com os termos que serão usados por Sócrates em sua nova definição de figura
(Men. 75d7-76a3). Sócrates recorre, assim, a argumentos do tipo matemático menos
conhecidos, de modo que é preciso que o aprendiz os aceite até que se complete o
processo de reminiscência (ἀνάμνησις)47. Nesse sentido, a dialética, enquanto “conversa
amistosa” seria a condição sine qua non para uma espécie de prática discursiva por meio
da qual necessariamente não se diz, ou se ouve, a verdade em si mesma (até mesmo
porque não se a possui como um dado de partida). Contudo, porquanto essa prática
configura uma interrelação mediada pelo lógos, pode engendrar a emergência de um
saber previamente conhecido, mediante o processo de anámnesis.
Todavia, nesse diálogo, além do aspecto ético implicado na contraposição entre o
dialégesthai e os expedientes da erística e da agonística, decorrem também implicações de
ordem propriamente metodológica, que se observam, por exemplo, na aporia a que chega
a investigação preliminar sobre a definição de virtude (71b1-80d4) e na demonstração que
Sócrates faz da tese da reminiscência, a partir da conversa que mantém com o escravo
(82a7-85d8).
Na primeira parte do diálogo, Mênon havia fracassado em definir a virtude
(ἀρετή) em três ocasiões. Suas tentativas de definição não resistiram à refutação socrática:
para cada uma delas Sócrates apontou consequências inaceitáveis que o levaram a
46
Com efeito, tais habilidades são abordadas pelo próprio Platão em um conjunto de diálogos da primeira
fase: Hípias menor (363c-d), Górgias (447c5-8; 447d6-448a, 449c7-8), Protágoras (334e4-335a3).
47
Essa é a posição de Kahn (1999, p. 306), na leitura da passagem: “This leads to Meno’s paradox about
looking for what you do not know, and the response to Meno’s paradox is recollection. Recollection
explains how the search for an unknown definition is possible in principle”.
52
rejeitá-las48. A conclusão desse processo havia sido, portanto, negativa: Mênon constatara
não ser capaz de definir virtude, suas crenças iniciais mostraram-se, se não incorretas, ao
menos insuficientes para abarcar o objeto investigado (79e7-80a8). Assim, embora
anteriormente Mênon se considerasse até mesmo capaz de proferir discursos sobre a
virtude diante de multidões (80b2-3), após submeter-se ao dialégesthai socrático, já não
era capaz de dizer nem mesmo o que seria a virtude (80b4).
Esse primeiro ciclo investigativo, além de exemplificar aquela cooperação “mais
suave e dialética” (75d4: πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον), pôs em cena também o
assim chamado “método da hipótese” que, conforme explica Benson (2006, p. 87), reside
em avaliar proposições que visem a responder a uma questão colocada, examinando se
suas consequências são aceitáveis (o que indicaria a validade da hipótese) ou inaceitáveis
(o que indicaria sua refutação). Nesse sentido, a pesquisa passaria por três etapas: 1.
acapresentação de hipóteses, isto é, de proposições que busquem responder a uma
questão colocada; 2. o exame de suas consequências, o que pode levar à refutação da
hipótese ou à sua confirmação; 3. se refutada, a constatação do não-saber e a aporia, o
que, por sua vez, recomendaria um retorno à questão inicial. O percurso investigativo
trilhado pelos personagens, partindo da postulação das hipóteses que Mênon julgava
corretas, passou, assim, pelo seu exame e refutação, até levá-lo à aporia, demonstrando,
em suma, que o método mais dialético não corresponderia a “somente responder a
verdade” (75d5: μόνον τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι), mas consistiria em examinar “aquilo que
48
As três tentativas de definição e suas respectivas refutações, simplificadamente, foram: 1) ἀρετή é variada
(e relativa): depende da ação, do trabalho, do sexo, da idade das pessoas. Virtudes da mulher são de um
tipo e dos homens de outro; de crianças, de um; de velhos, de outro; assim também são os vícios (κακία).
Sócrates rebate usando a metáfora de um enxame de abelhas: afirma que, mesmo sendo diferentes, as
abelhas não diferem quanto a serem abelhas. Do mesmo modo, o todo das virtudes (ἅπασαι), embora possa
abrigar variedades, tem uma mesma forma (εἴδος). Compara com a força, a coragem, a saúde. Contudo,
Mênon não concorda que isso valha para a virtude (que seria diferente no homem e na mulher). Sócrates
tenta convencê-lo mostrando que “bem administrar a casa” e “bem administrar a cidade” (virtudes
comumente associadas a mulheres e homens, respectivamente), requerem o mesmo tipo de virtude (71e-
73c); 2) ἀρετή é a capacidade de liderar os homens (ἡ ἀρχεῖν). Sócrates mostra que, ao contrário da sua
primeira tentativa, agora essa definição não respeita a multiplicidade (não seria a mesma para o Senhor e
para o escravo) e oferece uma definição que confunde com uma parte dela, como definir forma como “o
redondo” (73b-74b); 3) ἀρετή é desejar as coisas belas e ser capaz de consegui-las. Crítica de Sócrates:
αssociação entre o belo (καλὀν) e o bom (ἀγαθόν): I) Sócrates tenta convencer Mênon que todos desejam
coisas boas (Mênon, discorda, dizendo que há aqueles que desejam as coisas más; Sócrates, para convencê-
lo, diz que os que desejam as coisas más acreditam serem proveitosas, portanto boas, e que ninguém quer
ser alvo de um dano ou prejuízo advindo de uma coisa má). Sendo assim, a definição não faz jus a virtuosos
e não-virtuosos, já que se aplica a todos (todos querem as coisas boas), sendo assim, só resta a segunda parte
da definição: poder alcançar as coisas boas. II) Sócrates mostra que além de conseguir as coisas boas (como
ouro e prata) é preciso consegui-lo com justiça; do mesmo modo não seria virtude conseguir tais coisas sem
justiça. Logo, a segunda parte dessa definição também está descartada (77a-79a).
53
quem responde poderia admitir saber” (75d6: ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ
ἐρωτώμενος)49.
Na sequência, a aporia a que Mênon é conduzido, e que o leva a formular o célebre
paradoxo do conhecimento (80d5-8: Como se pode procurar saber algo que não se
conhece?), induz Sócrates a expor a tese de que conhecer é rememorar (81a10-82a3:
ἀναμνήσθηναι). Para demonstrá-la, Sócrates propõe um experimento cognitivo
envolvendo um escravo: através de perguntas e respostas, Sócrates pretende mostrar
como alguém sem prévia instrução pode se revelar conhecedor de um princípio
matemático. Além da questão da anámnesis envolvida na passagem, tema ao qual
retornaremos no capítulo IV, observemos que o processo descrito replica também aquele
método hipotético mencionado acima. Conforme apontam Sedley & Long (2010, p. xix),
o escravo passa pelos mesmos estágios que Mênon: 1. apresenta hipóteses que julga
corretas; 2. vê suas hipóteses refutadas; 3. reconhece estar em aporia. Porém, nesse
momento, o processo não resulta negativo como da primeira vez; o escravo vai além: 4.
retoma a pesquisa e 5. chega à resposta correta50.
49
Uma formulação explícita desse método, conforme nos indica Benson (2006, p. 88), está, por exemplo,
no próprio Mênon (86e1-87b2), grifos nossos:
Sócrates: […] Se mais não <fizeres>, então, pelo menos relaxa um pouco o comando sobre mim e
consente que se examine a partir de uma hipótese se ela [a virtude] é coisa que se ensina ou se <é>
como quer que seja. Por “a partir de uma hipótese” quero dizer a maneira como os geômetras
frequentemente conduzem suas investigações. Quando alguém lhes pergunta, por exemplo sobre
uma superfície, se é possível esta superfície aqui ser inscrita como triângulo neste círculo aqui, um
geômetra diria: “Ainda não sei se isso é assim, mas creio ter para essa questão como que uma hipótese
útil, qual seja: se esta superfície for tal que, aplicando-a alguém sobre uma dada linha do círculo, ela
fique em falta de uma superfície tal como for aquela que foi aplicada, parece-se resultar uma certa
consequência, e, por outro lado, outra <consequência>, se é impossível que <a superfície> seja
passível disso. Fazendo então uma hipótese, estou disposto a dizer-te o que resulta a propósito de
sua inscrição no círculo: se é impossível ou não”.
(Tradução de Iglésias, 2001, cf. εἰ μή τι οὖν ἀλλὰ σμικρόν γέ μοι τῆς ἀρχῆς χάλασον, καὶ συγχώρησον ἐξ
ὑποθέσεως αὐτὸ σκοπεῖσθαι, εἴτε διδακτόν ἐστιν εἴτε ὁπωσοῦν. λέγω δὲ τὸ ἐξ ὑποθέσεως ὧδε, ὥσπερ
οἱ γεωμέτραι πολλάκις σκοποῦνται, ἐπειδάν τις ἔρηται αὐτούς, οἷον περὶ χωρίου, εἰ οἷόν τε ἐς τόνδε
τὸν κύκλον τόδε τὸ χωρίον τρίγωνον ἐνταθῆναι, εἴποι ἄν τις ὅτι “Οὔπω οἶδα εἰ ἔστιν τοῦτο τοιοῦτον,
ἀλλ' ὥσπερ μέν τινα ὑπόθεσιν προὔργου οἶμαι ἔχειν πρὸς τὸ πρᾶγμα τοιάνδε· εἰ μέν ἐστιν τοῦτο τὸ
χωρίον τοιοῦτον οἷον παρὰ τὴν δοθεῖσαν αὐτοῦ γραμμὴν παρατείναντα ἐλλείπειν τοιούτῳ χωρίῳ
οἷον ἂν αὐτὸ τὸ παρατεταμένον ᾖ, ἄλλο τι συμβαίνειν μοι δοκεῖ, καὶ ἄλλο αὖ, εἰ ἀδύνατόν ἐστιν
ταῦτα παθεῖν. ὑποθέμενος οὖν ἐθέλω εἰπεῖν σοι τὸ συμβαῖνον περὶ τῆς ἐντάσεως αὐτοῦ εἰς τὸν
κύκλον, εἴτε ἀδύνατον εἴτε μή.”).
Outra formulação explícita do método de hipóteses, bastante semelhante a essa, pode ser encontrada no
Fédon (99e4-100a7; 101d3-e3). Entretanto, porque nosso recorte aqui foi o das ocorrência dos termos cognatos
de dialética, não examinaremos a passagem contida no Fédon, onde o termo, de fato, não está presente.
50
Cf. Sedley & Long (2010, p. xix): “Here the quintessentially Socratic stages (1) to (3) pointedly mirror the
stages through which Meno has already passed, and in particular the slave’s reduction from confident false
belief to a state of numbed puzzlement (82b–84c) is designed to mimic in detail Meno’s deflation in the first
part of the dialogue (71e–80d). Yet when the slave has been thus humbled, Socrates asks ‘So when we made
him puzzled and numb, . . . we didn’t do him any harm, did we?’ (84b). The point is that the slave had to go
through this stage, by being disabused of his previous confident misconceptions, before he would be ready
to find out the truth. By analogy, Meno too has not been harmed, but benefited, by his reduction to
puzzlement, and for precisely the same reason”.
54
Essas duas passagens brevemente comentadas têm em comum o fato de que as
respostas oferecidas por Mênon e o escravo, em cada contexto, são tomadas pelo
interlocutor, Sócrates, não como verdades desde o início, mas como hipóteses (dentro,
digamos, de um enquadre do tipo: “Se é verdade que... então...”). Embora a estrutura
condicional não esteja explícita nos turnos de fala dos personagens, é como se Sócrates,
ao examinar a posição dos seus interlocutores, a avaliasse no âmbito de uma estrutura
linguística hipotética. Vejamos um exemplo: a primeira resposta de Mênon à questão
colocada (“O que é a virtude?”) poderia ser resumida na seguinte postulação: a virtude é
múltipla e variável (diversa para homens e mulheres, crianças e velhos, homens livres e
escravos – 71e1-72a5). Tal proposição é tomada por Sócrates, no discurso, como uma
hipótese: H. “Se é verdade que a virtude é múltipla e variável...”, inferindo-se dela a seguinte
consequência: C1. “... então ela não teria um caráter único [εἴδος], não sendo a mesma para
homens, mulheres, crianças, velhos, homens livres e escravos”. Entretanto, essa
consequência não parece aceitável a nenhum dos interlocutores, porquanto é
confrontada com os seguintes argumentos apresentados por Sócrates:
1. um enxame representa também uma multiplicidade, i.e. dentro dele as abelhas
possuem diferentes funções, tamanhos, comportamentos etc., mas, quanto ao fato de
serem abelhas, elas são iguais entre si; assim também ocorre com as virtudes: embora
possam manifestar uma variedade, quanto ao fato de serem virtudes, devem possuir uma
forma única (72c7: εἴδος);
2. a virtude é como os atributos da força, do tamanho e da saúde: embora variáveis
entre homens, mulheres, crianças, velhos etc., quanto ao fato de serem força, tamanho e
saúde, tais atributos são o mesmo (72e6: τῇ αὐτῇ);
3. o bem administrar uma casa ou uma cidade requerem também o mesmo, isto é,
que sejam feitos com prudência [73e9: σωφρόνως] e justiça [73e9: δικαίως].
É interessante notar, ainda, que os argumentos acima, constituintes da refutação
socrática, se controem, por sua vez, também a partir da admissão de hipóteses: para cada
um dos argumentos listados, Sócrates apresenta uma hipótese, com a qual é preciso que
seu interlocutor concorde (e, de fato, ele o faz): H1. A multiplicidade de virtudes é como
uma multiplicidade de abelhas; H2. A virtude é como outros atributos humanos, tais
como força, tamanho e saúde; H3. Agir com prudência e justiça são atributos do agir bem
(do bem administrar uma cidade ou casa, por exemplo)51. Desses três argumentos
51
Embora sustentemos que o método de hipóteses esteja, de certo modo, presente desde o início do diálogo,
já presente, conforme apontamos, nas refutações das tentativas de Mênon para definir a virtude, vários
comentadores – entre os quais Benson 2006; Kahn, 1999 – reconhecem, e com eles concordamos, que a
55
apresentados, infere-se, na sequência, a seguinte conclusão: C2. “...então a virtude, apesar
de parecer múltipla e variável, pode ser reduzida a uma forma única, quando interessa
conhecer o que é”. Assim, o exame do lógos que resulta da análise das premissas
colocadas, de acordo com o método formulado e aplicado no Mênon, faz ver a contradição
que decorre quando se analisam consequências de hipóteses falsas (neste exemplo em
particular, C1 parece-nos claramente estar em contradição com C2, logo, H deve ser
rejeitada). Sabemos não haver, na obra de Platão, a explicitação teórica de algo como um
“Princípio da Não-Contradição”, nem mesmo a proposição de um sistema lógico
formalizado, matéria cujos princípios foram formulados apenas por Aristóteles;
entretanto, sem a pretensão de avançar uma resposta, poderíamos nos perguntar: seria
passagem em que a estrutura hipotética do argumento é mais explícita é aquela que vem na sequência da
formulação “teórica do método” que apresentamos em nota acima (86e6-87b2). Naquela ocasião, Sócrates
propunha, explicitamente, investigar se a virtude pode ser ensinada por meio de uma hipótese. Assim, na
sequência, a partir da primeira hipótese (H1: A virtude é coisa que se ensina), examinavam-se duas outras
hipóteses: H2: A virtude é uma ciência [ἐπιστήμη], H3: A virtude é um bem [ἀγαθόν]. Vale a pena lermos a
passagem entre 87b2-d4, grifos nossos:
SÓCRATES: […] Assim, também, sobre a virtude, já que não sabemos nós o que é nem como é, façamos
uma hipótese [ὑποθέμενοι] e examinemos se é coisa que se ensina ou que não se ensina, dizendo o
seguinte: se for que tipo de coisa, entre as que se referem à alma, será virtude coisa que se ensina, ou
coisa que não se ensina? Em primeiro lugar, se ela é um tipo de coisa diferente do tipo de coisa que
é a ciência, é, ou não, coisa que se ensina, ou, como dizíamos há pouco, coisa que pode ser
rememorada? Que não nos importe absolutamente que nome utilizemos, mas sim: é coisa que se
ensina? Ou melhor: não é evidente para todo mundo que nada se ensina ao homem a não ser a
ciência?
MÊNON: Parece-me que sim.
SÓC.: E se é uma ciência, a virtude, é evidente que pode ser ensinada.
MÊN.: Como não seria?
SÓC.: Dessa questão, vejo, desvencilhamo-nos depressa: se for uma coisa desse tipo, é coisa que se
ensina, se for de outro tipo, não.
MÊN.: Perfeitamente.
SÓC.: Depois disso, segundo me parece, é preciso examinar se a virtude é ciência ou algo de tipo
diferente de ciência.
MÊN.: Parece-me, a mim, que esta é a questão a examinar depois daquela.
SÓC.: E então? Não dizemos que ela, a virtude, é um bem, e não nos fica esta hipótese, que ela é um
bem?
MÊN.: Perfeitamente.
(Tradução de Iglésias, 2001, cf. οὕτω δὴ καὶ περὶ ἀρετῆς ἡμεῖς, ἐπειδὴ οὐκ ἴσμεν οὔθ' ὅτι ἐστὶν οὔθ' ὁποῖόν
τι, ὑποθέμενοι αὐτὸ σκοπῶμεν εἴτε διδακτὸν εἴτε οὐ διδακτόν ἐστιν, ὧδε λέγοντες· Εἰ ποῖόν τί ἐστιν
τῶν περὶ τὴν ψυχὴν ὄντων ἀρετή, διδακτὸν ἂν εἴη ἢ οὐ διδακτόν; πρῶτον μὲν δὴ εἰ ἔστιν ἀλλοῖον ἢ
οἷον ἐπιστήμη, ἆρα διδακτὸν ἢ οὔ, ἢ ὃ νυνδὴ ἐλέγομεν, ἀναμνηστόν – διαφερέτω δὲ μηδὲν ἡμῖν
ὁποτέρῳ ἂν τῷ ὀνόματι χρώμεθα – ἀλλ' ἆρα διδακτόν; ἢ τοῦτό γε παντὶ δῆλον, ὅτι οὐδὲν ἄλλο
διδάσκεται ἄνθρωπος ἢ ἐπιστήμην;
{ΜΕΝ.} Ἔμοιγε δοκεῖ.
{ΣΩ.} Εἰ δέ γ' ἐστὶν ἐπιστήμη τις ἡ ἀρετή, δῆλον ὅτι διδακτὸν ἂν εἴη.
{ΜΕΝ.} Πῶς γὰρ οὔ;
{ΣΩ.} Τούτου μὲν ἄρα ταχὺ ἀπηλλάγμεθα, ὅτι τοιοῦδε μὲν ὄντος διδακτόν, τοιοῦδε δ' οὔ.
{ΜΕΝ.} Πάνυ γε.
{ΣΩ.} Τὸ δὴ μετὰ τοῦτο, ὡς ἔοικε, δεῖ σκέψασθαι πότερόν ἐστιν ἐπιστήμη ἡ ἀρετὴ ἢ ἀλλοῖον
ἐπιστήμης.
{ΜΕΝ.} Ἔμοιγε δοκεῖ τοῦτο μετὰ τοῦτο σκεπτέον εἶναι.
{ΣΩ.} Τί δὲ δή; ἄλλο τι ἢ ἀγαθὸν αὐτό φαμεν εἶναι τὴν ἀρετήν, καὶ αὕτη ἡ ὑπόθεσις μένει ἡμῖν,
ἀγαθὸν αὐτὸ εἶναι;
{ΜΕΝ.} Πάνυ μὲν οὖν.
56
possível aproximar esse exame do lógos, tal qual preconizado no método platônico,
daquela experiência da aporia gerada pela contradição de enunciados (que revela, como
mostra Aristóteles, não somente uma impossibilidade ontológica, mas igualmente
doxológica e semântica)?52
Em todo caso, tal método de pesquisa – o método de hipóteses ou, nas palavras
de Benson (2006, p. 86), a “dialética com ‘d’ minúsculo”53 – consiste, no Mênon, em aplicar
ao exame de uma questão filosófica (a saber, a definição e o atributo da virtude, de ela ser
ou não ensinável) aquele procedimento adotado pelos geômetras (para calcular, por
exemplo, a área de um triângulo de modo a estar inscrito em um dado círculo – 86e1-
87b2). O próprio experimento cognitivo realizado com o escravo, afora o seu caráter
demonstrativo da tese da reminiscência associada ao aprender, não fazia a distinção entre
formas diferentes de conhecimento a que tal método se poderia aplicar. Com efeito, não
é possível inferir da passagem, apesar do fato de que tal experimento levasse à dedução
de um princípio estritamente matemático, que tal procedimento não pudesse igualmente
ser empregado para a busca de outra forma de conhecimento. Queremos dizer com isso
52
Conforme explica Gotlieb (2015), o Princípio da Não-Contradição, cuja formulação mais explícita se pode
ser na Metafísica (Γ, 3-6) se apresenta em três versões: ontológica (considerada a principal delas), doxástica
e semântica:
1. a versão ontológica: “É impossível que o mesmo seja atribuído e não seja atribuído ao mesmo tempo a
um mesmo subjacente e conforme ao mesmo aspecto (considere-se delimitado, em acréscimo, tudo
aquilo que acrescentaríamos contra as contendas argumentativas); ora, este é o mais firme de todos
os princípios, pois ele comporta a definição mencionada. Com efeito, é impossível que quem quer
que seja considere que um mesmo fato é e não é” (Metaph. Γ, 3, 1005b19-24, tradução de Angioni,
2007: τὸ γὰρ αὐτὸ ἅμα ὑπάρχειν τε καὶ μὴ ὑπάρχειν ἀδύνατον τῷ αὐτῷ καὶ κατὰ τὸ αὐτό (καὶ ὅσα
ἄλλα προσδιορισαίμεθ' ἄν, ἔστω προσδιωρισμένα πρὸς τὰς λογικὰς δυσχερείας)· αὕτη δὴ πασῶν ἐστὶ
βεβαιοτάτη τῶν ἀρχῶν· ἔχει γὰρ τὸν εἰρημένον διορισμόν. ἀδύνατον γὰρ ὁντινοῦν ταὐτὸν
ὑπολαμβάνειν εἶναι καὶ μὴ εἶναι).
2. a versão doxológica, ligada à impossibilidade de sustentar opiniões contrárias: “E, dado que não é
possível que os contrários ao mesmo tempo pertençam a uma mesma coisa (considerem-se
acrescentados por nós, nesta premissa, todos os acréscimos de costume), e dado que são contrárias
entre si as opiniões contraditórias, evidentemente é impossível que um mesmo homem, ao mesmo
tempo, conceba que o mesmo fato é e não é. Pois aquele que erra a respeito disso teria ao mesmo
tempo as opiniões contrárias” (Metaph. Γ, 3, 1005b26-32, tradução de Angioni, 2007: εἰ δὲ μὴ ἐνδέχεται
ἅμα ὑπάρχειν τῷ αὐτῷ τἀναντία (προσδιωρίσθω δ'ἡμῖν καὶ ταύτῃ τῇ προτάσει τὰ εἰωθότα), ἐναντία
δ' ἐστὶ δόξα δόξῃ ἡ τῆς ἀντιφάσεως, φανερὸν ὅτι ἀδύνατον ἅμα ὑπολαμβάνειν τὸν αὐτὸν εἶναι καὶ
μὴ εἶναι τὸ αὐτό· ἅμα γὰρ ἂν ἔχοι τὰς ἐναντίας δόξας ὁ διεψευσμένος περὶ τούτου.)
3. a versão semântica, ligada à impossibilidade de duas asserções contraditórias serem ao mesmo tempo
verdadeira: “Assim, neste tanto, considere-se dito que a mais firme de todas as opiniões é não serem
verdadeiras ao mesmo tempo as enunciações opostas, e o que decorre para os que se pronunciam daquele
modo, e por que assim se pronunciam. Dado que é impossível que a contraditória diga a verdade ao
mesmo tempo a respeito da mesma coisa, evidentemente tampouco é possível que os contrários ao
mesmo tempo estejam presentes na mesma coisa” (Metaph. Γ, 6, 1011b13-18: Ὅτι μὲν οὖν βεβαιοτάτη
δόξα πασῶν τὸ μὴ εἶναι ἀληθεῖς ἅμα τὰς ἀντικειμένας φάσεις, καὶ τί συμβαίνει τοῖς οὕτω λέγουσι,
καὶ διὰ τί οὕτω λέγουσι, τοσαῦτα εἰρήσθω· ἐπεὶ δ' ἀδύνατον τὴν ἀντίφασιν ἅμα ἀληθεύεσθαι κατὰ
τοῦ αὐτοῦ, φανερὸν ὅτι οὐδὲ τἀναντία ἅμα ὑπάρχειν ἐνδέχεται τῷ αὐτῷ·).
53
Em seu ensaio, Benson (2006) defende que aquilo que aparecerá somente na República como “a dialética
com “d” maiúsculo”; em sentido estrito) tem como precedentes o método da refutação e o método das
hipóteses, com os quais não mantém uma relação de oposição, mas de desenvolvimento. Voltaremos a esse
aspecto no próximo item, ao analisarmos as ocorrências do termo na República.
57
que, no Mênon, a postulação de um método parece indiferente à natureza do objeto (se se
trata de um objeto matemático ou de um objeto filosófico), não havendo, nesse diálogo,
nem uma reflexão sobre os limites e diferenças entre os objetos pertinentes aos dois
domínios, nem mesmo sobre uma possível adequação do método a ser aplicado a cada
um deles. Uma diferenciação nesse sentido somente apareceria explícita, como veremos
à frente, nos livros centrais da República, com a noção de dialética (em seu sentido forte,
com “d” maiúsculo). Em todo caso, antes mesmo dessa formulação, no Eutidemo, no
contexto em que, pela primeira vez, o substantivo dialektikós é empregado, uma distinção
entre a ciência do dialético e outras formas de pesquisa já vem, de certo modo, anunciada.
Vejamos.
Assim como o Mênon, o Eutidemo também traz à tona uma reflexão em torno do
conhecimento, embora o faça de outro ângulo. Conforme vimos, naquele diálogo, Mênon
propusera as perguntas motivadoras da investigação (70a1-4: A virtude é algo que se
ensina ou se adquire pelo exercício? Decorre da natureza ou de outro artifício?),
perguntas que exigiram o exame de questão ainda mais fundamental (71b1-8: O que é a
virtude?). Embora o prólogo daquele diálogo aludisse ao sofista Górgias, como o grande
exemplo de um sábio, alguém que poderia responder não somente a tais questões, mas
também a quaisquer outras que se lhe apresentassem (70b2-c3); não houve ali uma
demonstração de como seria o tratamento que o sofista daria àquele problema: Sócrates
limitou-se a afirmar que, já não estando Górgias entre os gregos, restaria a ele e a Mênon,
ainda que ignorantes, levarem adiante a investigação (71d4-8). Ora, no Eutidemo, a questão
sobre o ensino da virtude não é jamais formulada explicitamente, tampouco examinada,
como no Mênon, a partir de um método hipotético. O diálogo encena, no primeiro plano,
a conversa entre Críton54 e Sócrates. Críton pede ao amigo que lhe relate a discussão em
que havia tomado parte com os sofistas no Liceu55. O núcleo central e mais longo do
54
Críton era proveniente do mesmo demo de Sócrates, Alópece, sendo provavelmente da sua mesma idade
e seu amigo. Aparece também no Fédon, na Apologia e no diálogo homônimo, Críton. Seu papel nos diálogos
revelam familiaridade e proximidade com Sócrates: na Apologia (33b, 38d), Críton é identificado como um
dos presentes ao julgamento, o que se oferecera a pagar a multa de trinta minas para a liberação de Sócrates;
no Críton, ele se coloca como porta-voz dos gregos que vieram persuadir Sócrates a abandonar a prisão,
após o seu julgamento; no Fédon (118a), Sócrates lhe atribui a tarefa de cuidar do seu cadáver e de sacrificar
um galo a Asclépio. Nos Memoráveis de Xenofonte (1.2.48), Críton é também identificado como alguém
pertencente o círculo íntimo de amigos de Sócrates (Nails, 2002, p. 114-115).
55
Liceu: o termo se refere ao bosque onde se encontrava um templo de Apolo (Λυκείος é um dos epítetos da
divindade). Nessa localidade havia, entre outras construções, um ginásio que passou a receber o mesmo
nome e onde se encontraram os personagens do diálogo. Embora o nome tenha se consagrado pela Escola
de Aristóteles, que seria aí também localizada, tratava-se de lugar muito frequentado pelos sofistas e por
Sócrates (Iglésias, 2011, p. 21).
58
diálogo consiste, então, no relato das discussões que Sócrates mantivera com Clínias56,
Eutidemo57, Dionisodoro58 e Ctesipo59, relato que parece demonstrar a errância dos
expedientes erísticos adotados pelos sofistas60. Mais que isso: uma vez que os maiores
responsáveis pela educação naquele contexto, os irmãos Eutidemo e Dionisodoro,
tenham-se declarado, de antemão, plenamente capazes de ensinar a virtude (273d8-9),
sendo sábios – reputação que Sócrates parece inicialmente subscrever de forma irônica
e exagerada, assim como o faz a respeito de Górgias no Mênon61 –, a revelação do caráter
56
Clínias, de Scambonides, filho de Axíoco. No diálogo, provavelmente um jovem de, aproximadamente, 14
anos de idade, discípulo dos sofistas Eutidemo e Dionisodoro. No Eutidemo, há a sugestão de que Clínias,
pela sua beleza e vigor físico, seja amante do também jovem Ctesipo; sugestão que é explicitada por
Xenofonte, no Banquete (4.12-16), que representa os dois jovens como amantes (Nails, 2002, p. 100).
57
Eutidemo, de Quios ou Túrio, representado como irmão de Dionisodoro, com quem veio de Quios para
Túrio e então, exilados, vieram para Atenas. Dos dois irmãos, é o único que obteve a reputação de sofista.
Embora haja debate sobre a existência histórica de Eutidemo, a favor de sua historicidade há menção ao
sofista também no Crátilo (386d) e em Aristóteles (Rh. 2.24; SE 20), além de serem mencionados também por
Xenofonte nos Memoráveis (3.1.1-11) (Nails, 2002, p. 152).
58
Dionisodoro, de Quios ou Túrio, irmão de Eutidemo. Nos Memoráveis (3.1), Xenofonte o representa ainda
jovem, chegando a Atenas, oferecendo-se para ensinar generalidades (Nails, 2002, p. 136).
59
Ctesipo, de Peânia, jovem interlocutor dos sofistas no Eutidemo, onde sugere-se nutrir uma paixão pelo
jovem Clínias, é também personagem do Lísis (306d), onde é identificado como irmão de Menexeno. É
também representado no Fédon, como um daqueles que presenciaram o ultimo dia de Sócrates, o que sugere
que, como Platão, de quem provavelmente foi conhecido, frequentara o círculo íntimo de amigos de
Sócrates. Não há evidências históricas do personagem em fontes externas à obra de Platão. (Nails, 2002, p.
120)
60
Tal é o que se pode depreender, por exemplo, já na primeira demonstração (ἐπίδειξις) que Eutidemo e
Dionisodoro realizam quanto à sua habilidade de “transmitir melhor e mais rapidamente a virtude” (273d8-
9: ἀρετήν … παραδοῦναι κάλλιστ' … καὶ τάχιστα). Entre 275c5 e 277d2, Platão figura a cena de um jovem
Clínias acuado pelos dois experientes sofistas, constrangido pela habilidade que demonstram de refutá-lo
e pela audiência que se comporta como uma torcida de um espetáculo oferecido pelos sofistas. A questão é
de natureza filosófica (275d3-4): quem são os que conhecem/aprendem (μανθάνοντες): os que sabem/são
inteligentes (σοφοί) ou os que não aprendem/são ignorantes (ἀμαθείς)? O que se segue à pergunta é o mero
exercício de refutação, independente da resposta. O próprio Dionisodoro, de partida, jocosamente declara
a Sócrates: “de qualquer das duas maneiras que responda o menino, será refutado” (Tradução de Maura
Iglésias, 2011, 275e6-7: ὁπότερ' ἂν ἀποκρίνηται τὸ μειράκιον, ἐξελεγχθήσεται). Com efeito, diante da
primeira resposta de Clínias, quando responde que quem aprende (μανθάνουσιν) são os inteligentes
(σοφοί), Eutidemo o refuta, levando-o a concordar que os que aprendem (μανθάνουσιν) são os ignorantes
(ἀμαθείς) (276b4-5). Na sequência, Dionisodoro refuta essa tese, levando-o novamente a concluir que são os
sábios (σοφοί), que compreendem (μανθάνουσι). Na sequência, cada um dos sofistas refuta a tese um do
outro novamente. O que a passagem evidencia? Certamente não que Dionisodoro e Eutidemo, mediante os
expedientes de sua arte, consigam ensinar a virtude (de fato, sustentam teses contrárias, sem jamais
demonstrar compreender a questão). Além disso, revela o caráter burlesco da competição em que se
engajam, diante de uma plateia eufórica. Em terceiro lugar, revela ainda que Eutidemo e Dionisodoro
apenas conseguem refutar as opiniões de Clínias porque sustentam seus argumentos em um artifício da
linguagem: a ambiguidade do verbo manthánein (que pode significar “aprender”, mas também
“compreender”) e sophós (que tanto pode significar “sábio”, quanto “inteligente, perspicaz”). Assim,
empregando-se os termos ora em um sentido, ora em outro, é possível defender teses que, na verdade, não
são incompatíveis entre si: “São os inteligentes (σοφοί) que compreendem (μανθάνουσι)”, posição de
Dionisodoro; e “São os ignorantes (ἀμαθείς) que aprendem, não os sábios (σοφοί)”, posição de Eutidemo.
61
Lugar-comum na obra de Platão, tanto no Mênon, quanto no Eutidemo, a sabedoria dos sofistas é exaltada
por Sócrates. No Mênon, a referência enfaticamente – e talvez ironicamente – laudatória se dirige a Górgias:
Men. 70b2-c3: “O responsável por isso entre vós é Górgias. Pois, tendo chegado a vossa cidade, fez
apaixonados, por conta de sua sabedoria, os principais tanto dos alêuades, entre os quais está o teu
apaixonado Aristipo, quanto dos outros tessálios. E, em especial, infundiu-vos esse costume de, e alguém
fizer uma pergunta, responder sem temor e de maneira magnificamente altiva, como é natural
<responderem> aqueles que sabem, visto que afinal ele próprio se oferecia para ser interrogado, entre os
59
farsesco e artificial de suas habilidades, como se torna patente na sequência das suas
demonstrações62, logra o mesmo efeito daquele alcançado no Mênon: colocar em aporia
aqueles que julgam ser capazes de ensinar a virtude63; além disso, sublinha também a
diferença que haveria de ser feita entre métodos tais quais os empregados por Eutidemo
e Dionisodoro e aquele, que, por outro lado, caberia ao dialético.
A marca dessa diferença é logo demonstrada quando Sócrates retoma a fala. Logo
após elucidar a armadilha de linguagem pela qual Eutidemo e Dionisodoro colocara
Clínias em apuros (277d2-278c8), e mostrar como aquela primeira exibição só poderia ser
concebida como uma brincadeira (παιδιά), tendo, ademais, falhado no objetivo de
demonstrar a habilidade de efetivamente ensinarem; Sócrates, então, inicia a sua
demonstração, adotando procedimento análogo quanto à forma (o perguntar e o
responder, o dialégesthai), mas diverso quanto ao efeito pretendido. Partindo da premissa
geral, “os homens querem ser bem-sucedidos/felizes” (εὖ πράττειν), Sócrates, nesse
diálogo, deduz duas consequências particulares: “ser feliz não é somente possuir bens,
gregos, por quem quisesse, sobre o que quisesse, não havendo ninguém a quem não respondesse”.
(Tradução de Iglésias, 2001, cf. τούτου δὲ ὑμῖν αἴτιός ἐστι Γοργίας· ἀφικόμενος γὰρ εἰς τὴν πόλιν ἐραστὰς
ἐπὶ σοφίᾳ εἴληφεν Ἀλευαδῶν τε τοὺς πρώτους, ὧν ὁ σὸς ἐραστής ἐστιν Ἀρίστιππος, καὶ τῶν ἄλλων
Θετταλῶν. καὶ δὴ καὶ τοῦτο τὸ ἔθος ὑμᾶς εἴθικεν, ἀφόβως τε καὶ μεγαλοπρεπῶς ἀποκρίνεσθαι ἐάν τίς τι
ἔρηται, ὥσπερ εἰκὸς τοὺς εἰδότας, ἅτε καὶ αὐτὸς παρέχων αὑτὸν ἐρωτᾶν τῶν Ἑλλήνων τῷ βουλομένῳ ὅτι
ἄν τις βούληται, καὶ οὐδενὶ ὅτῳ οὐκ ἀποκρινόμενος.). No Eutidemo, o alvo desse exagerado enaltecimento é
Dionisodoro e Eutidemo: Euthd. 273c1-9: “Cumprimentei-os, então, pois fazia tempo desde que os tinha visto.
Depois disso, disse a Clínias: Clínias, estes dois homens aqui, Eutidemo e Dionisodoro, são, seguramente,
sábios, não em coisas pequenas, mas nas grandes. Com efeito, conhecem tudo a respeito da guerra, todas as
coisas que, a quem vai ser um bom general, é preciso <conhecer>: táticas e comando dos exércitos, bem
como lutar com armas. Mas também são capazes de torná-lo apto a prestar assistência a si mesmo nos
tribunais, se alguém cometer uma injustiça contra ele”.
62
As teses sustentadas por Eutidemo e Dionisodoro são uma a uma desmascaradas como falácias por
Sócrates, que revela serem baseadas em um jogo de linguagem (277d2-278c8), ou desembocarem em absurdo
que os leva à contradição (287e3-a7). Em todo caso, Sócrates insiste em que os sofistas sejam sábios,
exortando a que os discípulos esperem até que eles deixem seus truques e brincadeiras de lado e levem a
sério a discussão. Os próprios discípulos, como Ctesipo (288a8-b2), já parecem não confiar na alegação de
sabedoria de tais mestres. O caráter cômico das performances de Dionisodoro e Eutidemo parece ser
acentuado pela própria organização do diálogo. Conforme sustentam Taylor (1926), Post (1926), Méridier
(1970) e Iglésias (2011), Platão, no Eutidemo, parece mobilizar recursos próprios da comédia aristofânica,
ridicularizando, pelo seu fracasso, a figura dos diferentes sofistas. Méridier (1970) defende que a própria
estrutura do diálogo pode ser reduzida a cinco atos de uma comédia, que teria Sócrates como personagem
e diretor. Iglésias (2011) observa ainda, em consonância com isso, o paralelo entre o Eutidemo e As nuvens: em
ambos há confrontos entre métodos de educação, colocando no centro a educação dos sofistas, embora em
Platão o argumento dramático coloque Sócrates em posição honrosa, de modo que se trata, além disso, de
uma espécie de defesa contra a ridicularização imposta a Sócrates na comédia de Aristófanes.
63
É interessante observar que o mesmo paradoxo do conhecimento apresentado no Mênon (80d5-8), emerge,
de outro modo, também no Eutidemo, a partir da primeira demonstração dos sofistas (275c5 e 277d2). A
diferença é que, enquanto aquela aporia motiva no Mênon a investigação, que se realiza mediante a
postulação da hipótese de que “o que chamamos conhecer é recordar” (81e4: ἣν καλοῦμεν μάθησιν
ἀνάμνησις ἐστίν), e a avaliação de suas consequências; no Eutidemo ela é tratada apenas como um exercício
erístico, que, no final, chega a nenhuma conclusão. O Eutidemo parece, portanto, representar o método
sofístico como uma espécie de caricatura do dialético, mostrando, na prática, o alerta que Sócrates fizera no
Mênon: “Vês quão erístico é esse argumento que estás urdindo: que pelo visto não é possível ao homem
procurar nem o que conhece, nem o que não conhece?” (80e1-3, tradução de Maura Iglésias, 2001, cf. ὁρᾷς
τοῦτον ὡς ἐριστικὸν λόγον κατάγεις, ὡς οὐκ ἄρα ἔστιν ζητεῖν ἀνθρώπῳ οὔτε ὃ οἶδε οὔτε ὃ μὴ οἶδε;).
60
mas saber usá-los” (280d5-6) e “usar corretamente [um bem] é possuir uma ciência
(ἐπιστήμη)” (281a3-4). Dessas duas asserções, chega-se à seguinte conclusão: “ser feliz é
dominar a ciência que produz a correção no uso dos bens” (281a8-b1), o que significa que
nenhum bem em si seria gerador de felicidade, sem que seu uso não revele inteligência e
ciência (281d8: φρόνησις τε καὶ σοφία). Enquanto a demonstração de Eutidemo e
Dionisodoro teve como meta a refutação de Clínias, com ela produzindo o vexame
público do jovem e o deslumbramento de uma audiência afeita a tais práticas, a partir do
uso de argumentos que se sustentavam em um jogo de palavras; a intervenção de
Sócrates pretendia-se colocar como paradigma (παράδειγμα) de outra abordagem, que
consistiria, em vez disso, no exame atento do lógos, tendo em vista: o caráter hipotético
das postulações, o exame de suas consequências, a exigência de justificação e, finalmente,
o assentimento.
A sequência da performance socrática somente ocorre após o entrevero entre
Eutidemo, Dionisodoro e Ctesipo (283b4-288d4), no qual se evidencia uma vez mais a
fragilidade da argumentação desenvolvida pelos dois irmãos. Levados ao absurdo em
seus argumentos64, falham novamente em oferecer uma resposta para o desafio proposto:
“É preciso que Clínias adquira todas as ciências ou apenas uma ciência, suficiente para
que ele se torne um homem bom e feliz?” (282e2-4). É no âmbito dessa segunda
intervenção que vem à tona a passagem que mais nos interessa, aquela em que Clínias
atribui aos dialéticos (290c5: τοῖς διαλεκτικοῖς) o domínio de uma “ciência do uso”, ciência
que, conforme sustenta Schäfer (2012, p. 94), os colocaria numa posição capital, no âmbito
de uma hierarquia de disciplinas. Não nos parece desproposital que a postulação de tal
ciência, ainda que não desenvolvida no Eutidemo, venha precisamente após o insucesso
dos sofistas em duas demonstrações, e se apresente não desacompanhada de sua efetiva
performance através das intervenções de Sócrates: o contraste entre o modus socraticus e o
atabalhoado desempenho dos sofistas parece reforçar e tornar ainda mais persuasiva a
necessidade de abandono daqueles métodos estrangeiros então vigentes e apreciados.
64
O sentido da argumentação dos sofistas consistira em demonstrar que era impossível tornar alguém sábio
(ou bom, ou feliz), já que “tornar-se” (γένεσθαι) implicaria levá-lo a ser o que não é, portanto, a deixar de
ser o que é, isto é, a desaparecer/perecer (283d6: ἀπολωλέναι). O argumento parece tão frágil, que não
somente provoca a irritação de Ctesipo (283e1-6), quanto levam os dois irmãos a postular outra tese: a
impossibilidade do não-ser (ou do falso), do que decorreria a impossibilidade do falar falso, do contradizer,
do errar e, portanto, também do ensinar (não havendo o erro, não haveria a necessidade da instrução).
Dessa contradição – ambos alegaram, precisamente, serem capazes de ensinar a virtude –, Eutidemo e
Dionisodoro não conseguem sair senão atacando Sócrates (287b3: “És um velho idiota…”, εἶ Κρόνος…) e
tentando mudar de assunto.
61
Assim, na sequência, Sócrates recapitula o argumento anterior: a busca pela
sabedoria (φιλοσοφία) consiste na aquisição de uma ciência (ἐπιστήμη) que, por sua vez,
significa “saber usar” (289a1-2: ἐπίστασθαι χρῆσθαι). Por isso, seria necessário um saber
que fizesse coincidir o produzir (ποιεῖν) e o “saber usar aquilo que ele produz” (289b6:
ἐπίστασθαι χρῆσθαι τούτῳ ὃν ἂν ποιῇ). Como as artes produtivas são distintas das que
consistem na ciência do uso – a arte de quem produz a lira, por exemplo, é diversa
daquela de quem sabe tocá-la –, dominar a arte de produzir discursos (289c7: λογοποιικήν
τέχνην μανθάνειν) seria também diferente da arte de usá-los, de modo que não raros são
aqueles que, apesar aparentarem ser sábios (289e3) sendo produtores de discursos
(λογοποιοί), não são capazes de usá-los corretamente (289d2-7). Torna-se patente,
portanto, uma diferença valorativa entre o “saber produzir” e o “saber usar” quando
ligados ao domínio do lógos, o que parece sublinhar a distinção entre os sofistas – capazes
de produzir discursos sendo aparentemente sábios –, e os dialéticos – os que dominam a
“arte do uso” do lógos. Mas os dialéticos se distinguem não somente por isso: como Clínias
considera na sequência, o dialético é também aquele que faz o uso correto de todas as
descobertas ligadas ao conhecimento das demais ciências:
Nenhuma espécie da arte da caça propriamente dita, disse ele, vai além
de caçar e capturar. Depois que capturarem aquilo que tiverem caçado,
essas artes não são capazes de fazer uso disso; ao invés, caçadores e
pescadores, por um lado, entregam aos cozinheiros o que tiverem
caçado, enquanto, por outro lado, os geômetras, os astrônomos e os
calculadores – com efeito, são caçadores estes também, pois não
produzem, cada um deles, as figuras, mas descobrem as que são – não
sabendo, eles mesmos, usá-las, como é o caso, mas apenas dar-lhes caça,
entregam, presumivelmente, aos dialéticos suas descobertas, para que
façam uso delas, pelo menos aqueles dentre eles que não são
completamente insensatos.65
(Euthd. 290b7-c6)
Como comenta Iglésias (2011, p. 144), a se aceitar a cronologia mais ortodoxa dos
diálogos de Platão, tratar-se-ia da primeira ocorrência da palavra “dialético”. Nesse passo,
a expressão conota aquele que possuiria um tipo de saber “arquitetônico”, “superior”,
antecipando, por assim dizer, a reflexão que viria à tona com o modelo educacional
65
Tradução Maura Iglésias (2011), Cf. Οὐδεμία, ἔφη, τῆς θηρευτικῆς αὐτῆς ἐπὶ πλέον ἐστὶν ἢ ὅσον θηρεῦσαι
καὶ χειρώσασθαι· ἐπειδὰν δὲ χειρώσωνται τοῦτο ὃ ἂν θηρεύωνται, οὐ δύνανται τούτῳ χρῆσθαι, ἀλλ' οἱ μὲν
κυνηγέται καὶ οἱ ἁλιῆς τοῖς ὀψοποιοῖς παραδιδόασιν, οἱ δ' αὖ γεωμέτραι καὶ οἱ ἀστρονόμοι καὶ οἱ λογιστικοί
– θηρευτικοὶ γάρ εἰσι καὶ οὗτοι· οὐ γὰρ ποιοῦσι τὰ διαγράμματα ἕκαστοι τούτων, ἀλλὰ τὰ ὄντα
ἀνευρίσκουσιν – ἅτε οὖν χρῆσθαι αὐτοὶ αὐτοῖς οὐκ ἐπιστάμενοι, ἀλλὰ θηρεῦσαι μόνον, παραδιδόασι δήπου
τοῖς διαλεκτικοῖς καταχρῆσθαι αὐτῶν τοῖς εὑρήμασιν, ὅσοι γε αὐτῶν μὴ παντάπασιν ἀνόητοί εἰσιν.
62
proposto na República. Além disso, o fato de que o dialético seja apresentado como aquele
que vai saber usar (χρῆσθαι) os conhecimentos produzidos pelos matemáticos66 remete-
nos igualmente, como um espécie de antecipação, àquela dupla divisão dos saberes
inteligíveis que se depreende da metáfora da linha dividida da República (7.533e7-534a11);
por esse motivo, Kahn (1999, p. 308) argumenta que o Eutidemo, tendo sido escrito antes
da República, tratar-se-ia do caso mais notório de evidência protréptica de um diálogo em
relação a outro, haja vista que a menção aos dialéticos, nesse contexto, poderia ser
entendida como alusão à relação entre matemáticos e dialéticos na República (VI e VII).
Em todo caso, se nos ativermos ao diálogo, observamos que a arte dos dialéticos
se postula como a que representa a ciência do uso das descobertas de geômetras,
astrônomos, calculadores etc. Parece significar, logo de partida, haver algo mais do que
aquela distinção entre dois modos de expressão do lógos, o dialético e o erístico; distinção
que, como vimos, estava evidente no Mênon, mas que não deixava de estar sugerida
também no Eutidemo. Nessa passagem, porém, vai-se além disso: trata-se de discernir a
ciência dos dialéticos daquela ligada às demais disciplinas. Para isso, dois aspectos são
então explicitados: 1. os matemáticos descobrem (ἀνευρίσκουσιν) as figuras (τὰ
διαγράμματα), não sabendo fazer uso delas; 2. os dialéticos recebem o produto dessas
descobertas e fazem uso delas. Estaria aqui sugerido, como propõe Dixsaut (2001, p. 45),
que, enquanto os matemáticos lançam mão de imagens sensíveis (τὰ διαγράμματα)67, os
66
Estamos aqui nos valendo do sentido etimológico ligado à palavra: matemático como o especialista de
diferentes disciplinas (μαθήματα), que compreende astrônomos, geômetras, lógicos etc. É ainda de se notar
que as suas artes – a dos geômetras (γεωμέτραι) astrônomos (ἀστρονόμοι) e calculadores (λογιστικοί) – se
valem do lógos como matéria própria de expressão. Essa posição é também notada em outros diálogos de
Platão, no Górgias (449d8-451a2), por exemplo. Górgias define a retórica como a arte dos discursos (449e1).
Na sequência, Sócrates demonstra que não somente a retórica, mas muitas outras artes concernem ao
discurso (a medicina, a ginástica, a aritmética, o cálculo, a geometria), como fica patente em 450d4-e2:
SÓC.: Há, porém, outras artes que tudo cumprem mediante o discurso, e que requerem, por assim
dizer, ou nenhum, ou um ínfimo exercício prático, como a aritmética, o cálculo, a geometria, os jogos
de peças e tantas outras. Para algumas, os discursos quase se equivalem às ações; para a maioria, eles
as excedem, e toda sua ação e realização se fazem inteiramente mediante o discurso. Parece-me que
tu incluis a retórica dentre essas últimas”.
(Tradução Daniel R. N. Lopes, cf. {ΣΩ.} Ἕτεραι δέ γέ εἰσι τῶν τεχνῶν αἳ διὰ λόγου πᾶν περαίνουσι, καὶ
ἔργου ὡς ἔπος εἰπεῖν ἢ οὐδενὸς προσδέονται ἢ βραχέος πάνυ, οἷον ἡ ἀριθμητικὴ καὶ λογιστικὴ καὶ
γεωμετρικὴ καὶ πεττευτική γε καὶ ἄλλαι πολλαὶ τέχναι, ὧν ἔνιαι σχεδόν τι ἴσους τοὺς λόγους ἔχουσι
ταῖς πράξεσιν, αἱ δὲ πολλαὶ πλείους, καὶ τὸ παράπαν πᾶσα ἡ πρᾶξις καὶ τὸ κῦρος αὐταῖς διὰ λόγων
ἐστίν. τῶν τοιούτων τινά μοι δοκεῖς λέγειν τὴν ῥητορικήν.)
67
Compreender o sentido da expressão diagrámmata nessa passagem, do que depende a interpretação
sugerida por Dixsaut (2001, p.45), não é questão pacífica. Trata-se meramente de uma figura geométrica?
Sendo assim, deve ser concebida em abstrato ou a partir de uma imagem? Poderia ser concebida em sentido
menos literal, para dar a entender todo o conjunto de princípios matemáticos? Tais são as questões
levantadas por Hawtrey (1978, p. 14), sem cuja compreensão é difícil desenvolver um argumento definitivo
quanto ao seu papel na diferença entre saberes matemáticos e dialéticos: “First of all, what are
διαγράμματα? "Diagrams" seems the obvious translation, meaning graphic representations of geometrical
figures. That the word can mean this (and even usually does so) is clear. That it must is at least doubtful; it
has also the sense of a geometrical figure, whether actually drawn or not. Here it is explicitly stated by Plato
that the διαγράμματα are not made by the men in question but already exist; we may take it that they are
63
dialéticos não se serviriam delas? Em outras palavras: o termo dialektikós poderia nessa
passagem ter implicação mais metafísica, para além de sua conotação propriamente
metodológica? Com isso parecem concordar diferentes comentadores do Eutidemo
(Hawtrey, 1978; Gifford, 1973 [1905]; Méridier, 1931). Entretanto, parece-nos arriscado ir
além das perguntas, e defender uma interpretação definitiva, até porque o final aporético
do diálogo recomenda cautela68.
Os dialogantes não chegam a apreender a substância da ciência dos dialéticos,
limitando-se a concluir apenas que ela deveria “transmitir nenhuma outra ciência a não
ser ela própria” (292d3-4: ἐπιστήμην δὲ παραδιδόναι μηδεμίαν ἄλλην ἢ αὐτὴν ἑαυτήν).
Por isso, Críton e Sócrates falham ao tentar associá-la a outra arte conhecida (como à arte
política ou à medicina por exemplo). Muito foi discutido sobre o significado dessa aporia
no Eutidemo (291b1-c2). Erler (1991, p. 380) afirma, por exemplo, que a passagem tornaria
evidente para o conhecedor que se trataria da dialética platônica. A interpretação dessa
passagem nesses termos não somente pressupõe uma concepção unitarista da noção de
dialética, como também de todo o pensamento filosófico contido na obra de Platão. Além
disso, parece implicar que o objetivo do diálogo seria, tão somente, deixar transparecer
algumas pistas, ocultando deliberadamente o essencial, de modo que somente um leitor
iniciado fosse capaz de decifrar o enigma, evocando um conteúdo doutrinal previamente
adquirido por outros meios que não o do diálogo escrito. Uma leitura que tenha tais
pressupostos, como observa Brisson (2003, p. 88) tem a desvantagem de esvaziar o
conteúdo filosófico dos diálogos aporéticos e de praticamente anular toda a inserção
social da prática socrática neles contida. Estaríamos, por outro lado, muito mais
inclinados a concordar com M. Marques (2003, p. 21) com o fato de que a função
pedagógica do Eutidemo não seria a de explicitar a diferença entre dialética e erística,
pressupondo um conhecimento esotérico, mas apenas encenar tais diferenças,
figures. Are these figures, as Robinson assumes, conclusions as distinct from premisses? I suspect not:
geometry is more likely to start from a figure than to end with one, and the word ἀνευρίσκουσα suggests
that Plato is thinking rather of the discovery of certain figures with their particular properties than of the
drawing from them of conclusions. Or, more probably, he may be referring generally to the subject matter
rather than to either end of a process, and διαγράμματα may be a loose para- phrase of those postulates of
mathematics more precisely described at Republic 510c as τό τε περιττὸν καὶ τὸ ἄρτιον καὶ τὰ σχήματα καὶ
γωνιῶν τριττὰ εἴδη καὶ ἄλλα τούτων ἀδελφὰ καθ' ἑκάστην μέθοδον; at the very least it is the equivalent of
σχήματα in that passage”.
68
Cf. Iglésias (2011, p. 11): “Esse fato é devido ao insucesso de Sócrates que não atinge nenhuma coisa de
positivo em sua pesquisa sobre a natureza da ciência que conduz à eudaimonia – a felicidade, a plena
realização da vida –, objetivo que se tinha proposto em suas conversações com Clínias. Em outras palavras:
a busca por essa ciência revela-se aporética. A razão da aporia, seja dito de passagem, é o fracasso em
encontrar o objeto próprio dessa ciência, que parece mostrar-se como ciência de si mesma, isto é, uma
ciência cujo objeto, ou produto, é ela mesma, o que parece absurdo”.
64
convidando Críton (e os leitores) a entrarem no jogo dialético69. Isso significa que a
aporia, mais que um enigma cuja solução se encontraria alhures, representaria um
levantamento do problema, a exigir mais demorada reflexão.
Assim, ao se contraporem as pretensões educativas e os métodos erísticos dos
sofistas a um modo de conhecer ligado aos dialéticos, mais que evocar um conteúdo
doutrinário do que seria a dialética – conteúdo ausente no Eutidemo, porém mais
desenvolvido em outros diálogos, especialmente na República –; tudo que a “encenação”
platônica nos ofereceria seria prenunciar, por exigir reflexão mais cuidadosa, um
conhecimento ainda de fato não disponível. Nesse sentido, conforme argumenta Iglésias
(2011, p. 11), se objetivo fosse deslindar de forma positiva a questão pesquisada, teria sido
preciso, antes, que Platão resolvesse a “aporia ontológica” do Eutidemo, isto é,
determinasse qual é o objeto próprio da ciência pesquisada. De fato, algumas propostas
para a resolução desse problema não tardariam a se apresentar na obra de Platão: uma
delas é, seguramente, a postulação da hipótese das Formas70. Inteiramente alheia ao
Eutidemo, ela já aparece todavia sugerida no Crátilo e, na República, se apresenta
fortemente associada à dialética, conforme veremos.
O termo dialektikós aparece também duas vezes no Crátilo (como substantivo em
390c11 e adjetivo em 390d5, ligados ao mesmo contexto). O diálogo coloca em disputa
69
Cf. Marques (2003, p. 21): “A meu ver, o objetivo do diálogo não é, simplesmente, tornar clara a diferença
entre a dialética filosófica e erística, através da solução de falácias lógicas, mas encenar as suas diferenças,
de modo a mobilizar o discernimento tanto de Críton, quanto do leitor, e não simplesmente oferecer de
modo não crítico, uma série de conteúdos positivos totalmente explicitados e inequívocos. O modo de fazê-
lo é decisivo. O fato de Platão resolver encenar a diferença significa, por si, que não é equivalente fazê-lo de
modo puramente expositivo; para ele, a relação é mais complexa porque envolve também semelhanças,
porque a diferença só emerge no detalhe do enfrentamento, porque a identidade da dialética só se
estabelece e se reconhece no confronto com a sua alteridade determinada que é a dialética sofística ou
erística. (...) A função pedagógica do diálogo consiste em lançar tanto Críton quanto o leitor no processo
dialético; é justamente ao entrar no jogo instaurado pela composição labiríntica do diálogo que
sensibilidade, a inteligência e o discernimento são convidados a se exercerem”.
70
Conforme veremos no capítulo 5, a noção de Formas (ou Ideias) é raramente tratada diretamente ao longo
da obra de Platão, sendo, no mais das vezes, apenas apresentada indiretamente (com exceção do Fédon, 78d-
79a ; e do Parmênides, 128e-134e). Grosso modo, as Formas representam princípios ontológicos, metafísicos e
epistemológicos que, embora sobre eles não haja consenso entre os comentadores – de fato, já
representavam objeto de vívida discussão ainda na Academia – representam, entretanto, um dos pilares
fundamentais do pensamento de maturidade de Platão. Embora não se possa concebê-los como um
“sistema”, uma “doutrina” ou uma “teoria” (é sempre imprecisa a alusão, entretanto comum, de uma “Teoria
das Formas” em Platão), Ferrari (2018b, p. 226) elenca algumas das características transversais a respeito das
Formas que se depreendem ao longo dos diálogos: 1) são entidades metafísicas, externas ao espaço e ao
tempo; 2) são eternas (não geradas e incorruptíveis), sempre idênticas; 3) cada uma corresponde de modo
absoluto e inqualificado ao predicado que exprimem (as ideias são o ser); 4) são a causa das coisas
particulares; 5) a participação dos particulares nas Formas é um evento obscuro, mas consubstancia uma
espécie de relação entre dois modos de ser (sensível e inteligível), irredutíveis um ao outro; 6) constituem
uma ordem entre si que se configura como uma relação complexa de inclusão e exclusão recíproca.
65
Hermógenes71 e Crátilo72, que defendem teses que se contrapõem acerca da relação entre
os nomes (ὀνόματα) e as coisas (πράγματα). Enquanto Hermógenes expõe e argumenta
a favor da tese segundo a qual os nomes são dados pela lei e pelo costume (384d7-8: νόμῳ
καὶ ἔθει), do que decorreria que sua justeza (ὀρθότης) e se instituiriam por convenção e
acordo (384d1: συνθήκη καὶ ὁμολογία); Crátilo, por sua vez, defende que a
correspondência entre nomes e referentes seja estabelecida pela natureza (383a5: φύσει),
o que implicaria haver uma justeza inerente aos próprios nomes na designação das coisas
(383a7-b2). O papel de Sócrates é o do mediador que conduz a investigação (384c2-c4).
Uma vez que a prevalência de uma tese sobre a outra determinaria o lugar dos nomes no
processo de investigação filosófica, a questão de fundo na disputa entre elas diz respeito
ao conhecimento; desse modo, a mesma preocupação de base contida no Mênon e no
Eutidemo também se manifesta no Crátilo73.
O diálogo se estrutura no exame das consequências das duas posições
conflitantes, sem chegar, ao final, a um consenso. Um primeiro movimento da discussão
(385a-391b) consiste em tensionar a opinião de Hermógenes: Sócrates mostra como a
hipótese convencionalista, se levada ao seu extremo, não seria admissível. De fato,
embora Hermógenes tivesse admitido que o grau de convencionalidade na relação entre
nomes e coisas pudesse chegar ao nível do indivíduo (385d7-e3); isto é, qualquer usuário
da linguagem, em particular, teria o poder de designar qualquer coisa pelo nome que
71
Hermógenes, de Alópece, é meio-irmão de Cálias, também filho de Hipônico, “o homem mais rico da
Grécia”. No Crátilo é representado ainda jovem, como um dócil interlocutor de Sócrates. Nesse diálogo, há
também a menção à sua carência de recursos, já que ainda não dispunha dos bens paternos (391c1-2),
diferentemente do seu irmão Cálias. Em Xenofonte, onde aparece em diferentes passagens dos Memoráveis,
das Helênicas, da Apologia e do Banquete, sua extrema pobreza, ao lado de sua personalidade supersticiosa
(traço ausente na obra de Platão), torna-o um personagem mais caricato. Platão também o cita entre os
personagens que assistiram o último dia de Sócrates, no Fédon (59b7). (Nails, 2002, p. 162).
72
Crátilo, possivelmente de Atenas, filho de Esmicrio. É representado ainda jovem no diálogo homônimo,
onde já se revela inclinado à filosofia de Heráclito (440d7-e2). É identificado por Aristóteles (Metaph. A,
987a32-b1) como o filósofo heraclítico, com quem Platão, ainda jovem, teria tido contato antes de se tornar
discípulo de Sócrates, o que impõe que Crátilo tivesse uma idade intermediária entre Sócrates e Platão. Há
também um testemunho sobre Crátilo na obra de Diels-Kranz (DK 65).
73
Particularmente interessante, na relação entre os diálogos aqui examinados, é observar que, tendo como
questão de base comum a determinação de possíveis métodos para o conhecer/aprender, nos três o papel
dos sofistas é trazido à baila: enquanto o Eutidemo encena explicitamente o contraste entre as
demonstrações erísticas e a performance socrática; o Mênon sugere tal contraste através da breve alusão a
Górgias (70a5-d2) e da proposição e prática de um método dialético; do mesmo modo, o Crátilo, antes que
Sócrates se proponha a examinar a questão, faz menção a Pródico (384b2-c2), com quem alega que poderia
ter aprendido, caso tivesse a condição de pagar por suas aulas. Essa contraposição, explícita ou insinuada,
entre um modo sofístico de lidar com o saber – o modo de quem pretensamente “ensina”, ainda que
mediante um pagamento – e o modo socrático parece-nos central para a compreensão dos contornos do
“dialético” nesses três diálogos, onde o termo, portanto não casualmente, é empregado. Em todo caso, essa
contraposição recupera também de um lugar-comum na obra de Platão (que pode ser visto, por exemplo,
no Protágoras e no Górgias).
66
melhor lhe aprouvesse74; ele não pode aceitar as consequências advindas dessa posição,
a saber, um relativismo de tal ordem que levaria à absoluta indiferença quanto ao
emprego dos nomes e, por isso, a uma indistinção entre as coisas, que passariam a ser,
então, significadas a partir de cada indivíduo, em consonância com a máxima de
Protágoras (385e6-386a1: “o homem é a medida de todas as coisas” – πάντων χρημάτων
μέτρον ἄνθρωπον). Por isso, Hermógenes é levado a admitir, na sequência, que 1. porque
as coisas e ações não são indistintas ou relativas a cada pessoa, elas possuem uma essência
(386d8-e4: οὐσίαν); 2. o nomear (τὸ ὀνομάζειν), que é parte do ato de falar (λέγειν),
possuindo então uma essência, não pode ser relativo aos indivíduos, mas deve se realizar
de acordo com a própria natureza (387b11-d2: ἰδίαν φύσιν).
O acordo quanto a essas conclusões preliminares, que parecem inicialmente dar
ganho de causa à posição do Crátilo, não é, entretanto, mantido até o fim do diálogo.
Quando Sócrates avalia, na sequência, as consequências da proposta naturalista, ela se
torna também inadmissível. Sem avançarmos nessa discussão, que nos afastaria da
passagem que nos interessa imediatamente, vale acrescentar nesse sentido apenas uma
nota: se a justeza dos nomes decorresse da sua própria natureza, bastaria investigá-los
para se chegar ao conhecimento das coisas; o que significa que toda pesquisa filosófica
deveria coincidir com uma espécie de exame da linguagem, uma investigação dos nomes
de natureza etimológica75. Porém, quando Sócrates propõe a simulação dessa prática
(396d-421c), ele fracassa em seu intento: a pesquisa etimológica remete à noção de
movimento (como, por exemplo, tal como se verifica na palavra theós, “deus”, associada a
theîn, “correr”), o que sugere a incômoda tese heraclítica do fluxo (411b-c), a qual precisa,
74
A posição de Hermógenes não é de todo destituída de sentido: explicaria, por exemplo, fenômenos de
paronímia e sinonímia no âmbito de uma língua, bem como a diferença de designação entre duas línguas
(385d9-e3). Com o perdão do anacronismo, Hermógenes poderia ter-se livrado da aporia a que é levado, se
tivesse levado em consideração que a língua é um fato social, no qual a justeza entre nomes e coisas somente
se dá mediante acordos coletivos; se tivesse, em outras palavras, argumentado a favor da arbitrariedade do
signo linguístico, tal qual F. de Saussure (1857-1913) o faz na obra póstuma que lhe concederia o título de “pai
da Linguística moderna”, o Curso de Linguística Geral (1916). A noção de sentido como o resultado de um jogo
de linguagem – perspectiva de L. Wittgenstein (1889-1951), após a sua virada pragmática, nas Investigações
Filosóficas, §7 (1953) – também teria sido favorável a Hermógenes. É claro que tais concepções de linguagem
estão ainda longe do horizonte do pensamento grego, bem como a reflexão do Crátilo, é importante frisar,
não se limita a uma questão de linguagem.
75
Embora modernamente a etimologia se refira ao estudo das relações históricas entre palavras, tendo por
base a sua morfologia; isto é, o ramo dos estudos linguísticos que se dedica ao estudo de como palavras do
passado se fazem derivar morfologicamente em palavras usadas no presente (por exemplo, da palavra latina
medieval tripalium decorre “trabalho” no português moderno), uma forma de reconstituição da história de
uma palavra, a partir da reconstrução hipotética de formas antigas (no Indo-Europeu, por exemplo) ou da
relação com palavras documentalmente atestadas; no mundo antigo a prática de etimologia era
compreendida de forma bastante diversa. No contexto grego e romano, tratava-se de uma pesquisa que
tinha por fundamento a busca do sentido verdadeiro ou fundamental de uma palavra, a relação entre dois
termos era, portanto, não somente formal, mas de natureza ontológica e a pesquisa tenha por base não
somente semelhanças formais, mas relações semânticas. (Dubois et al., 1973, p. 251-252).
67
então, ser discutida na sequência, haja vista que parece vir a contrapelo daquele primeiro
assentimento, o da estabilidade da linguagem, argumento que, aliás, servira em primeiro
lugar para refutar a tese de Hermógenes76.
Seja como for, decorrente daquelas primeiras conclusões, postulou-se que a
produção dos nomes se devesse realizar não de forma fortuita, mas tendo em vista um
paradigma (παράδειγμα), isto é, a Forma (εἶδος) de cada nome (389b8-390a2). Se o nome
pode ser concebido como o instrumento do ato de nomear (388a4: ὄργανον), através do
qual seus usuários podem se informar (388b10: διδάσκομέν) e distinguir as coisas (388b11:
τὰ πράγματα διακρίνομεν), aquele que informa (διδασκάλικος), valendo-se desse
instrumento, não pode prescindir da arte de quem o produz, do mesmo modo que um
tecelão que se serve de uma lançadeira depende da arte do seu produtor, o carpinteiro
(388c3-13).
Se os nomes são dados pelo nómos (conforme a hipótese examinada), é forçoso
então supor a figura hipotética de um nomothétes77, como o seu artífice (388e1-6), o único
capaz de produzir os nomes de acordo com tal paradigma, de modo a que os nomes
revelem justeza na sua relação com as coisas78. Restaria, então, apenas determinar quem
76
De fato, como comenta Schäfer (2012, p. 198): “as duas posições básicas observadas revelam-se deficitárias:
a convencionalista (com exceção de sua radicalização, que permite a linguagem privada isolada) faz mais
justiça aos aspectos comunicativos da linguagem, mas renuncia à fundamentação ontológica, enquanto
para a posição naturalista a relação nome-coisa (sob problemática concentração na relação de
correspondência entre linguagem verbal e mundo em fluxo no sentido heraclitiano) encontra-se em
primeiro plano, mas a função comunicativa é desconsiderada. A solução platônica que se vislumbra para o
problema é encontrada na doutrina das ideias, segundo a qual as palavras não se referem a coisas sensíveis,
mas primariamente às ideias que lhe são subjacentes como modelo e o verdadeiro ser, que garante a
referência das palavras à realidade”. Apesar de que nos parece correto o sentido geral do comentário acima
na análise das aporias do Crátilo, apenas faríamos uma ressalva quanto à existência, em seu sentido forte,
de um “doutrina das ideias” nesse diálogo. Tendemos a concordar com Dixsaut (2003, p. 100-106),
relativizando essa posição, que as expressões ousía e eídos que aparecem no Crátilo não podem ainda ser
tomadas em seu sentido metafísico forte, que assumirão não antes do Fédon, como realidades
ontologicamente superiores e transcendentes à dimensão sensível da realidade. No Crátilo não é possível
assumir que tenham uma existência separada, embora já implique uma imutabilidade e uma estabilidade
que lhes confere, ao menos, um estatuto “diferente” dos sensíveis (no caso, dos nomes), voltaremos a essa
questão adiante.
77
O termo nomothétes, formado pelos radicais de nómos (“lei”, “costume”, “uso”) e raiz the-, do verbo títhemi
(“pôr”, “impôr”, “determinar”), deve ser entendido menos no sentido técnico-jurídico que poderia evocar
tanto em grego quanto na tradução mais comum (“legislador”), e mais no sentido geral que se depreende a
partir do contexto em que aparece pela primeira vez no diálogo (388d12-e2): uma vez que os nomes são
fornecidos e transmitidos pela “lei”, é possível que haja um “legislador” responsável por essa ação. Vale
observar que o termo não é propriamente um neologismo em Platão (aparece, por exemplo, em
Demóstenes, 706, 22, cf. Bailly et al., 2000 [1963]). Parecendo manter a semelhança formal entre nómos (“lei”)
e ónoma (“nome”), Vieira (2014) traduz como “normatizador”. Quando o traduzimos, optamos por manter,
contudo, a tradição mais consagrada.
78
O “legislador”, que domina a arte de produção dos nomes, precisa fabricá-los não de acordo com o que
gostaria (389c5-6: οὐχ οἷον ἂν αὐτὸς βουληθῇ), mas como exige a natureza do instrumento (389c6: ἀλλ' οἷον
ἐπεφύκει). No seu processo produtivo, é preciso, assim, olhar para o que o nome é (389d6-7: βλέποντα πρὸς
αὐτὸ ἐκεῖνο ὃ στιν ὄνομα), de modo a reproduzir a Forma do nome (390a5-6: τὸ τοῦ ὀνόματος εἶδος).
Concordamos com Dixsaut (2003, p. 105) que, no Crátilo, a proposição de uma Forma dos nomes (τὸ τοῦ
ὀνόματος εἶδος) decorre não de uma necessidade ontológica ou metafísica, como na República, mas de uma
68
é o especialista79 que domina a arte do uso dos nomes e que, tal como o artista que domina
o uso de outro instrumento qualquer (como um tecelão, no uso da lançadeira), seria o
mais apto a avaliar a justeza daquele instrumento:
necessidade lógica e epistemológica. Isso quer dizer que, no Crátilo, não seria possível conceber eídos como
uma realidade separada das coisas às quais elas conferem suas qualidades (promovendo uma cisão, por
exemplo, entre o inteligível e o sensível), mas como uma exigência de distinguir (os nomes e as coisas entre
si), uma exigência, portanto, afeita à ordem da relação uno/múltiplo; mesmo/outro.
79
Porque se postula um especialista para a produção dos nomes e outro para seu uso, parece estar também
em evidência um argumento que é lugar-comum nos diálogos, a autoridade do especialista, tópico que
também aparece na República. De fato, como comenta Vieira (2014, p. 33), “quem é melhor para julgar
alguma coisa é quem sabe utilizá-la (o especialista), não quem produz ou qualquer ser humano. Um
citarista, e não um marceneiro, é quem sabe quando uma cítara é boa ou não. O fato de, no caso dos nomes,
o especialista ser o dialético é importante para o desenvolvimento do diálogo. Nesse quadro, a busca do
dialético pelo conhecimento das coisas lhe daria condições de julgar a correção dos nomes. Ou seja, o
objeto dessa busca pela verdade das coisas é que legitimaria o funcionamento de um nome, não o
contrário”. A ideia de que a excelência (ἀρετή) consista em que cada um desenvolva a função para qual é
talhado se encontra também em diferentes momentos dos livros I e II da República. Ainda no livro I, postula-
se a relação entre a excelência e a função específica para a qual cada coisa é destinada (352d-c: os olhos têm
a virtude de ver; os ouvidos, a de ouvir; cada coisa realiza bem a função que está de acordo com a sua
natureza). No livro II, no exercício de idealização de uma cidade justa, consigna-se, explicitamente, que
cada um deveria nela exercer apenas uma única função, aquela para a qual teria sido talhado por natureza
(370c3-5).
80
Cf. {ΣΩ.} Τίς δὲ τῷ τοῦ νομοθέτου ἔργῳ ἐπιστατήσειέ τ' ἂν κάλλιστα καὶ εἰργασμένον κρίνειε καὶ ἐνθάδε
καὶ ἐν τοῖς βαρβάροις; ἆρ' οὐχ ὅσπερ χρήσεται;
{ΕΡΜ.} Ναί.
{ΣΩ.} Ἆρ' οὖν οὐχ ὁ ἐρωτᾶν ἐπιστάμενος οὗτός ἐστιν;
{ΕΡΜ.} Πάνυ γε.
{ΣΩ.} Ὁ δὲ αὐτὸς καὶ ἀποκρίνεσθαι;
{ΕΡΜ.} Ναί.
{ΣΩ.} Τὸν δὲ ἐρωτᾶν καὶ ἀποκρίνεσθαι ἐπιστάμενον ἄλλο τι σὺ καλεῖς ἢ διαλεκτικόν;
{ΕΡΜ.} Οὔκ, ἀλλὰ τοῦτο.
{ΣΩ.} Τέκτονος μὲν ἄρα ἔργον ἐστὶν ποιῆσαι πηδάλιον ἐπιστατοῦντος κυβερνήτου, εἰ μέλλει καλὸν
εἶναι τὸ πηδάλιον.
{ΕΡΜ.} Φαίνεται.
{ΣΩ.} Νομοθέτου δέ γε, ὡς ἔοικεν, ὄνομα, ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα, εἰ μέλλει καλῶς
ὀνόματα θήσεσθαι.
69
(Cra. 390c2-d6)
70
ao dialético da função de produzir a distinção das coisas (388b10-11: τὰ πράγματα
διακρίνομεν), condição para aprendê-las/ensiná-las (388b10: διδάσκομέν). Ora, o verbo
diakrínein, que decorre do substantivo krísis (“separação”, “determinação”, “seleção”, cf.
lat. cerno, LSJ), pode, então, assumir na língua grega os seguintes sentidos: 1. separar uma
coisa de outra; 2. decompor em partes elementares; 3. distinguir, tornando nítidas as
diferenças entre as partes (cf. LSJ). Nesse sentido, o uso do lógos do dialético parece
produzir um duplo efeito, a nosso ver indissociável: o de dividir e diferenciar, noções que
estão intrínsecas, como mostraremos no próximo capítulo, à definição e prática da
dialética no Fedro (266b3-c9).
Em suma, examinando as passagens em torno do dialético tal como se dispõem
no Mênon, no Eutidemo e no Crátilo, não se pode ainda afirmar que haja a explicitação de
algo como uma “teoria da dialética”, disciplina cujo nome, ainda indisponível na língua
grega, seria cunhado somente na República. Entretanto, isso não nos impede de neles
reconhecer um esforço de diferenciação da prática do dialético em relação à de outros
usuários do lógos, ainda que, nesse primeiro momento da obra de Platão, sua prática não
seja claramente distinta do estilo e do método particular de Sócrates84. Em que pese isso,
dessa primeira aproximação resulta ao menos um ponto fundamental: operando no
campo do lógos, a prática do dialético pretende se distinguir de outras abordagens ligadas
à pretensão de ensinar e aprender – a abordagem erística, cf. Mênon e Eutidemo; a
abordagem dos matemáticos, cf. Eutidemo; a abordagem etimológica, cf. Crátilo. Desse
modo, tornando distinta uma diferença inicialmente formal (o “perguntar” e o
“responder”, como essência do método de Sócrates, por oposição à retórica e à erística,
cf. Mênon e Eutidemo), a reflexão sobre o dialético enseja também uma reflexão sobre o
conhecimento: seja porque ele domina o método de hipóteses e o aplica ao exame das
questões (cf. Mênon); seja porque, sendo mais geral, sua ciência é distinta da geometria e
de outras artes matemáticas (cf. Eutidemo); seja, finalmente, porque ele representa um
crítico da linguagem que torna possível produzir divisões e aferir distinções da realidade
(cf. Crátilo).
Desse modo, ainda que as caracterizações do dialético que emergem desses três
diálogos não possam inteiramente se sobrepor, e não correspondam ainda àquela do
84
Cf. Dixsaut (2001, p. 54): “Ce que nous appelons « la dialectique » ne commence donc pas par désigner
une science particulière, ella est d’abord incarnée dans un personage, Socrate, qui ne peut que
« dialectiquement » discuter. C’est lui qui affronte les savants, rhéteurs et éristiques, et fait éclater sa
différence, évidente en soi, visible à tous (sinon compréhensible par tous), sauf précisément aux savants.
Sa manière de dialoguer met la pensée en mouvement, en rappelle les exigences, et soit l’oppose à des
formes de non-pensée – la rhétorique, la éristique –, soit la distingue de ce qui pourrait apparaître comme
son exercice le plus rigoreux, les mathématiques”.
71
filósofo da República, faltando-se-lhes talvez fundamentação ontológica e metafísica; o
modo como ele é pensado em cada contexto parece estimular um interesse pela pesquisa
de seu método, preparando talvez o leitor, como argumenta Kahn (1999), para o que
poderia, de outro modo, soar como um relato bastante inusitado da dialética na República
VI85. Assim, com o avanço dessa reflexão, resta-nos perguntar: em que medida a dialética,
a se tornar um conceito autenticamente “platônico” na República, deixaria de lado – ou
não – sua dimensão essencialmente “socrática”, patente na dinâmica própria do
“perguntar e responder” (διαλέγεσθαι)? Nesse ponto, estamos preparados para seguir
para o segundo porto dessa viagem: o que estamos chamando de “a formulação canônica
da dialética”, a que se testemunha nas reflexões da República (VI e VII, sobretudo), à qual
passaremos no próximo item.
85
Cf. Kahn (1999, p. 294): “One function of these elaborate exercises in hypothetical method in the two
earlier dialogues must be, by stimulating an interest in philosophical method, to prepare the reader for an
understanding of what might otherwise be quite unexpected account of dialectic in the Divided Line in
Republic VI”.
72
pensamento (λόγος) sobre o papel das mulheres na cidade pareça ser uma opinião vaga,
que reflita uma “aspiração vazia”, aquilo a que talvez poderíamos chamar, para nos
valermos da expressão em língua inglesa, de um wishful thinking (μὴ εὐχὴ δοκῇ εἶναι ὁ
λόγος). De fato, na sequência da passagem, Sócrates argumenta a favor da posição
segundo a qual caberia às mulheres o acesso à mesma educação e o desempenho das
mesmas funções dos homens na pólis (451e1-6)86. Tal postulação, todavia, parece ser
refutada na objeção levantada pelo próprio Sócrates em seguida: se mulheres e homens
devem ter a mesma formação e ocuparem as mesmas posições na cidade, não estaria isso
em contradição com o princípio da especialização, segundo o qual seres de naturezas
diversas deveriam ter tarefas igualmente diversas (370c3-5)?
Essa possível contradição, que é explicitada em 453e1-454a2, decorre, sem dúvida,
de um primeiro assentimento de que o homem e a mulher deveriam ocupar as mesmas
funções e ter acesso à mesma formação educacional (451e5-7), mas também da
concordância de que ambos possuam “naturezas diversas” (453b7-9). Em outras palavras,
parte-se aqui de duas hipóteses principais: H1) a de que a cada um será atribuído um
trabalho de acordo com sua natureza específica, respeitando-se as diferenças e H2) a de
que exista uma diferença, quanto à natureza, entre homens e mulheres. Dessas hipóteses
iniciais deduz-se a seguinte conclusão: C1) se deveriam atribuir funções diferentes na
cidade a homens e a mulheres (tal conclusão, contudo, como se constata, contradiz a
posição inicial de Sócrates: a de que a mulheres e a homens se devem atribuir as mesmas
funções na cidade e, por isso, lhes conceder a mesma educação).
O que essa passagem parece mostrar é que o método que então se vinha aplicando
na República ao longo dos livros II, III, e IV – o método de hipóteses87 – parece, então, pela
primeira vez, resultar em aporia. É nesse contexto que Platão oferece, então, através de
Sócrates, uma relevante inflexão metodológica, já preparando terreno para sua
86
Platão sustenta o seu ponto de vista – de resto controverso à sua época, em uma sociedade fortemente
baseada no primado patriarcal, que fomenta a exclusão da mulher da vida pública – a partir de uma
analogia com os demais animais (459a-b), para provar que as qualidades naturais foram igualmente
distribuídas entre homens e mulheres (455d8-e2). Conforme anotam Emlyn-Jones & Preddy (2013, p. 454),
o argumento de Sócrates, contudo, teve uma eficácia limitada, haja vista que os animais, diferente dos
homens, não desenvolvem uma cultura social. Essa fragilidade é percebida por Aristóteles (Pol. 1264b4-6),
e parece também suscitar dúvida no próprio âmbito da República, com a objeção ao argumento levantada
pelo próprio Sócrates (453e1-454a2), conforme veremos.
87
Nesse contexto específico toda a argumentação foi construída a partir do exame de hipóteses de das
consequências a partir delas. As duas hipóteses apresentadas foram: H1: Ninguém é autossuficiente, mas
todos precisam de muitas coisas (369b6-7); H2: Cada um se difere dos outros quanto à natureza, sendo afeitos,
cada qual, a uma tarefa especializada (370a8-b2). Dessas duas hipóteses, se chegou às duas conclusões
preliminares: C1: A cidade precisa ter, ao menos três classes (a dos artesãos, a dos soldados e a dos
governantes) e cada cidadão deve realizar a tarefa para a qual é mais afeito (433e-434c); C2: a alma também
consiste também nessas três partes, de modo que cada uma deve realizar a tarefa para a qual é talhada.
Conforme apontamos atrás, tal é, de forma geral, o mesmo método praticado no Eutidemo e no Mênon.
73
reformulação posterior. Com efeito, para sair desse impasse, Sócrates apresenta a
seguinte reflexão: é preciso saber “dividir por espécies” o que se está discutindo, a fim de
não restringir o argumento a uma mera disputa de posições contrárias (ἀντιλογία)88:
Nessa passagem, Sócrates apresenta uma distinção entre aqueles que, por um
lado, estão interessados em vencer batalhas verbais (ἔρις), que são seduzidos, ainda que
sem querer, pela “arte da disputa” (τῆς ἀντιλογικῆς τέχνη) e aqueles que, por outro,
optam por uma conversa mais prosaica (διάλεκτος)90. Enquanto aqueles limitam-se a
rivalizar entre si (ἐρίζειν), esses, de fato, dialogam (διαλέγεσθαι). Além disso, afirma,
muitos sucumbem ao perigo do discurso antilógico91. E assim o fazem porque,
prendendo-se ao nome92, negligenciam o exercício de identidade e diferença que decorre
da análise dos argumentos, em suas múltiplas relações. Para além da diferença aparente
88
Insistindo nesse ponto, Sócrates examina, na sequência, em que sentidos homem e mulher são diferentes
quanto à sua natureza, concluindo que não o são, necessariamente, quanto às habilidades e competências
a serem desempenhadas na cidade, ou para seu governo (456a11-13).
89
Cf. Ἦ γενναία, ἦν δ' ἐγώ, ὦ Γλαύκων, ἡ δύναμις τῆς ἀντιλογικῆς τέχνης.
Τί δή;
Ὅτι, εἶπον, δοκοῦσί μοι εἰς αὐτὴν καὶ ἄκοντες πολλοὶ ἐμπίπτειν καὶ οἴεσθαι οὐκ ἐρίζειν ἀλλὰ
διαλέγεσθαι, διὰ τὸ μὴ δύνασθαι κατ' εἴδη διαιρούμενοι τὸ λεγόμενον ἐπισκοπεῖν, ἀλλὰ κατ' αὐτὸ τὸ
ὄνομα διώκειν τοῦ λεχθέντος τὴν ἐναντίωσιν, ἔριδι, οὐ διαλέκτῳ πρὸς ἀλλήλους χρώμενοι.
90
Müri (1944, p. 161) esclarece que a palavra diálektos, no sentido de “debate, discussão, argumento” aparece
neste texto, no Banquete (203a3) e no Teeteto (146b3). No Banquete (203a3) parece ter o sentido mais usual de
“conversação” (entre homens e deuses). No Teeteto (186b6) tem, por sua vez, o sentido de “modo de
expressar”, “dialeto”. Nessa passagem da República, por oposição ao discurso da disputa, o termo parece
conotar uma discussão mais amena, mais afim à conversação corrente. Essas são as quatro e únicas
ocorrências do termo na obra de Platão.
91
Como anota Dixsaut (2001, p. 64): “Il y a comme une pente naturelle du logos qui fait que toute discussion
d’un problème risque de tourner en querelle de mots. L’art de l’antilogie n’est pas une création purement
artificielle, sa puissance est enracinée dans le logos même quand il prend la forme d’un dialogue”.
92
No contexto, a expressão κατ' αὐτὸ τὸ ὄνομα (na frase: κατ' αὐτὸ τὸ ὄνομα διώκειν τοῦ λεχθέντος τὴν
ἐναντίωσιν – 454a7-8) parece de difícil tradução, haja vista não apresentar nenhuma forma verbal explícita.
Emlyn-Jones & Preddy (2013), optam por transformá-la em advérbio: “[they] pursue literally contradiction
in what has been stated”. Rocha Pereira (1976 [2014]), traduz, por sua vez, através de um adjetivo: “seu alvo
é a mera contradição verbal do que se afirmou”. Teixeira (2009) opta por tradução semelhante à nossa,
inserindo uma forma verbal, para compreensão da expressão em seu sentido substantivo: “firmando-se no
nome em si, parece buscar a contradição do que foi dito”. Optamos por esse recurso considerando a
oposição que se parece fazer entre o tipo de discussão somente baseada no nome, na linguagem, no
significante (κατ' αὐτὸ τὸ ὄνομα) e aquela outra, que consiste na análise dos diferentes lados do argumento,
através da divisão (διαιρούμενοι).
74
(no caso, entre homens e mulheres), esse tipo de exercício pode demonstrar a existência
de identidades e diferenças em outro nível, não aparente, que permitem, com efeito, que
seres diferentes quanto ao critério do gênero, sejam, entretanto, iguais quando o critério
em jogo é a capacidade de aprender ou governar uma cidade. Temos nessa passagem,
como nos ensina Dixsaut (2001), um primeiro exemplo de exercício de divisão elaborada.
Conforme a estudiosa argumenta,
93
Cf. “Il est remarquable en ce qu’il est éminemment paradoxal : il va contre une opinion qui semble
indiscutable (il existe une différence naturelle entre les hommes et les femmes), fondée sur la naturalité la
plus évidente de la nature et profondément ancrée dans la culture et dans la tradition. La division a donc
le pouvoir de récuser les différences les plus manifestes pour atteindre les véritables et de découvrir
l’identité là où tous ne voient que différence (ou l’inverse)”.
94
Cf. “This passage is all the more interesting in that it is not thematically connected with the central
account of dialectic in the Republic, but it looks both backwards and fowards: backwards to the contrast
between dialectic and eristic that we will find in Meno, Euthydemus and Phaedo, and foward to the
conception of dialectic as Division (dihairesis), according to kinds that is conspicuous in the Phaedrus and
later dialogues but otherwise scarcely noticed in the Republic”.
75
A nosso ver, essa passagem representa não apenas uma proposição antecipada do
método de divisão, a ser apresentado nos diálogos tardios, mas também, para além disso,
parece desvelar os limites do método anterior, isto é, daquele que se desenvolvia a partir
de hipóteses com vistas a elaboração de princípios. Se tal metodologia funcionou bem até
certo ponto, resultando inclusive na estipulação de princípios gerais para a cidade95, essa
passagem testemunha o seu limite, isto é, que ele não se mostrou adequado para
identificar uma distinção além das diferenças aparentes (aquelas entre homens e
mulheres) ou além das contradições meramente verbais (os discursos antilógicos ou
erísticos). Assim, para aferir distinções nesse outro nível, o método hipotético teria
falhado, sendo preciso, portanto, descortinar um novo caminho, um novo método, ainda
que mais longo e mais difícil; um caminho, em suma, que, como veremos à frente, não
mais tenha hipóteses como pontos de partida, mas se mova através de princípios não-
hipotéticos. Aliás, mesmo antes dessa passagem, Sócrates já alertava para as limitações
do método então utilizado:
Se, a partir dessa passagem, é razoável pensar que Platão orienta a discussão, pelo
menos desde o livro IV, para a revelação de um “caminho mais longo e mais completo”
(435d3: ἄλλη γὰρ μακροτέρα καὶ πλείων ὁδὸς), a ser revelado nos livros seguintes da
República, seria possível inferir com isso, conforme comenta Benson (2006, p. 96), que o
filósofo talvez considerasse a prática do método de hipóteses uma versão mais fraca ou
ainda incompleta do método dialético? A questão parece ficar um pouco mais clara
somente mais adiante, já no livro VI (504a4-d3), quando a distinção entre dois “caminhos”
novamente vem à tona:
95
Como resultado do método de hipóteses, Sócrates e seus interlocutores chegam a admitir vários
princípios, nos livros iniciais da República, para a cidade que propõem imaginar como exercício
paradigmático para a compreensão da justiça, como por exemplo: cada um deve se dedicar a uma apenas
atividade, de acordo com sua natureza (R. 2.370c3-5); seus cidadãos devem ser educados, e sua educação
consistirá de ginástica e música (R. 2.376e2-4); a poesia, especialmente homérica, não fará parte da educação
das crianças (R. 3.387b1-6); a cidade não deverá ter riqueza nem pobreza (R. 4.422a1-3) etc.
96
Cf. (...) καὶ εὖ γ' ἴσθι, ὦ Γλαύκων, ὡς ἡ ἐμὴ δόξα, ἀκριβῶς μὲν τοῦτο ἐκ τοιούτων μεθόδων, οἵαις νῦν ἐν
τοῖς λόγοις χρώμεθα, οὐ μή ποτε λάβωμεν – ἄλλη γὰρ μακροτέρα καὶ πλείων ὁδὸς ἡ ἐπὶ τοῦτο ἄγουσα –
ἴσως μέντοι τῶν γε προειρημένων τε καὶ προεσκεμμένων ἀξίως.
76
- Mas te lembras que tendo dividido a alma em três gêneros, inferimos,
a respeito da temperança, da coragem e da sabedoria, o que cada uma
delas poderia ser.
- Se não me lembrasse, seria justo não ouvir o restante.
- E o que foi dito antes disso?
- O quê?
- Falávamos naquela ocasião que, para ser possível examinar as coisas
mais belas, deveria existir outra volta, mais longa, a qual, tendo sido
contornada, tornaria tais coisas mais claras, embora fora possível
também oferecer demonstrações seguindo-se o que fora dito antes. E
vós falastes que isso era o suficiente, e assim foram ditas aquelas coisas
que, no que diz respeito a precisão, a mim me pareceram deixar algo
escapar, mas se vos for de bom grado, talvez pudésseis dizê-las agora.
- Mas a mim aquilo me parecera de bom tamanho; e também assim
parecera aos demais.
- Mas, meu caro, uma medida de tais coisas, que de tal modo omita algo
da realidade (τοῦ ὄντος), não pode, de forma alguma, ser de bom
tamanho, pois nada que seja imperfeito (ἀτελὲς) pode ser a medida de
coisa alguma. Porém, por vezes, alguns já tomam isso como o suficiente,
e não julgam necessário buscar um pouco mais além.
- Com certeza, muitos se conformam com isso por indiferença.
- Mas tal conformismo é o de que menos precisa o guardião da cidade e
das leis.
- Faz sentido, ele disse.
- Então, meu companheiro, ele deverá tomar o caminho mais longo,
devendo-se aplicar não menos nos estudos que na ginástica; ou então,
como falamos agora, jamais chegará até o ponto mais alto daquele
aprendizado mais avançado e mais importante.97
(R. 6.504a4-d3)
97
Cf. - Μνημονεύεις μέν που, ἦν δ' ἐγώ, ὅτι τριττὰ εἴδη ψυχῆς διαστησάμενοι συνεβιβάζομεν δικαιοσύνης
τε πέρι καὶ σωφροσύνης καὶ ἀνδρείας καὶ σοφίας ὃ ἕκαστον εἴη.
- Μὴ γὰρ μνημονεύων, ἔφη, τὰ λοιπὰ ἂν εἴην δίκαιος μὴ ἀκούειν.
- Ἦ καὶ τὸ προρρηθὲν αὐτῶν;
- Τὸ ποῖον δή;
- Ἐλέγομέν που ὅτι ὡς μὲν δυνατὸν ἦν κάλλιστα αὐτὰ κατιδεῖν ἄλλη μακροτέρα εἴη περίοδος, ἣν
περιελθόντι καταφανῆ γίγνοιτο, τῶν μέντοι ἔμπροσθεν προειρημένων ἑπομένας ἀποδείξεις οἷόν τ'
εἴη προσάψαι. καὶ ὑμεῖς ἐξαρκεῖν ἔφατε, καὶ οὕτω δὴ ἐρρήθη τὰ τότε τῆς μὲν ἀκριβείας, ὡς ἐμοὶ
ἐφαίνετο, ἐλλιπῆ, εἰ δὲ ὑμῖν ἀρεσκόντως, ὑμεῖς ἂν τοῦτο εἴποιτε.
- Ἀλλ' ἔμοιγε, ἔφη, μετρίως· ἐφαίνετο μὴν καὶ τοῖς ἄλλοις.
- Ἀλλ', ὦ φίλε, ἦν δ' ἐγώ, μέτρον τῶν τοιούτων ἀπολεῖπον καὶ ὁτιοῦν τοῦ ὄντος οὐ πάνυ μετρίως
γίγνεται· ἀτελὲς γὰρ οὐδὲν οὐδενὸς μέτρον. δοκεῖ δ' ἐνίοτέ τισιν ἱκανῶς ἤδη ἔχειν καὶ οὐδὲν δεῖν
περαιτέρω ζητεῖν.
- Καὶ μάλ', ἔφη, συχνοὶ πάσχουσιν αὐτὸ διὰ ῥᾳθυμίαν.
- Τούτου δέ γε, ἦν δ' ἐγώ, τοῦ παθήματος ἥκιστα προσδεῖ φύλακι πόλεώς τε καὶ νόμων.
- Εἰκός, ἦ δ' ὅς.
- Τὴν μακροτέραν τοίνυν, ὦ ἑταῖρε, ἔφην, περιιτέον τῷ τοιούτῳ, καὶ οὐχ ἧττον μανθάνοντι πονητέον
ἢ γυμναζομένῳ· ἤ, ὃ νυνδὴ ἐλέγομεν, τοῦ μεγίστου τε καὶ μάλιστα προσήκοντος μαθήματος ἐπὶ τέλος
οὔποτε ἥξει.
77
Nessa passagem, Platão parece tornar mais evidente que o método até então
seguido era, de certo modo, provisório, tendo em vista que, embora tivesse lhes parecido
inicialmente suficiente para a pesquisa (ἱκανῶς), essa via mostrou-se afinal incompleta
(ἀτελές), quando a discussão exigiu que se fosse além das demonstrações iniciais
(ἀποδείξεις). Nesse caso, o método até então seguido omitia, isto é, falhava em deixar ver
(examinar, perscrutar, κατιδέσθαι), aspectos relevantes da realidade (τοῦ ὄντος). Ora,
uma crítica nesse sentido somente pôde vir à tona por exigência filosófica, como uma
decorrência das investigações precedentes, que haviam conduzido, nas páginas
imediatamente anteriores, à noção das Formas como elementos da realidade, noção que
se mostrou fundamental para a compreensão das distinções entre uno vs. o múltiplo e
conhecimento vs. opiniões98.
Isso nos leva a pensar que, quando a discussão filosófica ultrapassa certos limites,
enveredando-se a refletir sobre a natureza da alma (como é o caso da primeira passagem
citada, R. 4.435c9-d5), ou das Formas, na compreensão das contraposições uno vs.
múltiplo; conhecimento vs. opinião (como é o caso da passagem imediatamente acima),
Platão parece-nos convidar a refletir sobre a necessidade de aderirmos a novo método,
um que seja próprio para o exame desses novos objetos. Assim, os interlocutores de
Sócrates (e também nós, em interlocução com Platão), já se poderiam perguntar: qual
seria, então, a natureza desse caminho mais longo e qual seria, afinal, o ponto mais alto
desses tópicos mais importantes a serem aprendidos (504d2-3: τοῦ μεγίστου τε καὶ
μάλιστα προσήκοντος μαθήματος...τέλος)? Com essa questão, fica também claro que a
reflexão sobre o método não se dissocia de uma reflexão também sobre o objeto, de modo
98
Vejamos alguns marcos dessa reflexão que precedem a passagem em questão, nas quais as Formas são
postuladas para a compreensão da distinção entre o múltiplo e o uno; entre o conhecimento e a opinião:
1) R. 5.476a4-7: “E também a respeito do justo e do injusto, do bem e do mal e de todas as Formas
[εἰδῶν], o pensamento é o mesmo: que cada uma, em si mesma, é una, mas cada qual aparece, em toda parte,
como múltipla, aparecendo em comunhão [κοινωνίᾳ] com ações, corpos e entre elas mesmas”. (Cf. Καὶ περὶ
δὴ δικαίου καὶ ἀδίκου καὶ ἀγαθοῦ καὶ κακοῦ καὶ πάντων τῶν εἰδῶν πέρι ὁ αὐτὸς λόγος, αὐτὸ μὲν ἓν ἕκαστον
εἶναι, τῇ δὲ τῶν πράξεων καὶ σωμάτων καὶ ἀλλήλων κοινωνίᾳ πανταχοῦ φανταζόμενα πολλὰ φαίνεσθαι
ἕκαστον.);
2) R. 5.479e1-5: “Portanto, os que contemplam a multiplicidade de coisas belas, e não veem o belo em
si [αὐτὸ δὲ τὸ καλὸν], não conseguindo também seguir aqueles que conduzem a ele, que [contemplam] a
multiplicidade do justo, mas não o justo em si [αὐτὸ δὲ τὸ δίκαιον], e, desse modo, todos os demais, diremos
que têm opinião sobre todas as coisas, mas conhecem nada daquilo sobre o que opinam”. (Cf. Τοὺς ἄρα
πολλὰ καλὰ θεωμένους, αὐτὸ δὲ τὸ καλὸν μὴ ὁρῶντας μηδ' ἄλλῳ ἐπ' αὐτὸ ἄγοντι δυναμένους ἕπεσθαι, καὶ
πολλὰ δίκαια, αὐτὸ δὲ τὸ δίκαιον μή, καὶ πάντα οὕτω, δοξάζειν φήσομεν ἅπαντα, γιγνώσκειν δὲ ὧν
δοξάζουσιν οὐδέν.)
3) R. 6.485a10-b3: “Então concordemos acerca da natureza dos filósofos, que estão sempre
apaixonados [ἀεὶ ἐρῶσιν] pelo aprendizado daquilo que lhes poderia revelar aquela essência [ἐκείνης τῆς
οὐσίας], que sempre existe e não é suscetível à geração e corrupção. (Cf. Τοῦτο μὲν δὴ τῶν φιλοσόφων
φύσεων πέρι ὡμολογήσθω ἡμῖν ὅτι μαθήματός γε ἀεὶ ἐρῶσιν ὃ ἂν αὐτοῖς δηλοῖ ἐκείνης τῆς οὐσίας τῆς ἀεὶ
οὔσης καὶ μὴ πλανωμένης ὑπὸ γενέσεως καὶ φθορᾶς.)
78
que, a dialética, como veremos na sequência, não poderá ser definida senão como,
simultaneamente, “ciência” (ἐπιστήμη) e “caminho” (ὁδός), como uma das conclusões
que emergem das reflexões que se desenvolvem ao longo dos livros VI e VII. Não é nosso
objetivo, aqui, fazer uma exegese ou propor uma interpretação abrangente para essas
passagens que representam o “coração” da República99, mas apenas situar e contextualizar
nessas passagens como o problema do método dialético nelas se apresenta, privilegiando,
como dissemos atrás, aqueles sentidos que nos parecem não somente definidores da
dialética em sua formulação mais canônica, quanto também relevantes para a
compreensão de seus contornos no Fedro.
Antes de mais nada, convém frisar, com Dixsaut (2001, p. 59), que o delineamento
da dialética e do dialético, conforme se observa nesses livros, representa uma longa
justificativa para a proposição, manifesta em R. 5.473d, de que, a menos que os filósofos
se tornassem reis ou que os reis se tornassem filósofos, não haveria a cidade justa sobre a
qual se discute ao longo da obra. Ora, se as cidades devem ser governadas por filósofos,
seria preciso, portanto, determinar qual é o seu saber (474b3-c4). É dessa investigação que
decorrem as seguintes características atribuídas ao filósofo: 1) deseja a totalidade do
saber (475b8-9) e se empenha em adquiri-lo, com prazer e sem se considerar jamais
satisfeito (475c7-10); 2) ama a verdade, e não a aparência dela (475e3-5), sendo capaz de
subir ao Belo em si e contemplar sua essência (476b10-11); 3) é capaz de distinguir o uno e
o invariável, não se perdendo no múltiplo e variável (484b4-8); 4) é apaixonado pela
essência das coisas (485a10-b3), tendo aversão à mentira e à falsidade (485c4-6); 5) possui
um espírito superior, não tendo baixeza e mesquinhez (486a4-7) e sendo agradável e justo
no trato (486b10-13); 6) é dotado de memória e de facilidade de aprender, é amigo da
verdade, da justiça, da temperança e da coragem (487a2-6).
Por um lado, a caracterização do filósofo, nas passagens aludidas acima, apresenta
material para a formulação da hipótese das Formas100, por outro, conduz,
inevitavelmente, à discussão sobre o método que caracteriza a sua ação, engendrando a
99
Com efeito, esse tipo de abordagem iria muito além do escopo deste capítulo, além de ser tarefa quase
impossível. Há muita bibliografia especializada sobre o tema e também bons manuais de apresentação
geral (cf. Annas, 1981, p. 242 et seq.; Cairns, Herrmann & Penner, 2007; Denyer, 2007; Fine, 2004; Seddley,
2007, p. 256 et seq.; Dixsaut, 2012, cap. IV, V e conclusão; Ferrari, 2018a, p. 75 et seq.; entre outros).
100
Haja vista, por exemplo, vocabulário que se começa a empregar, em sentido mais técnico: “o que é em
si” (τὸ κατ' αὐτὸ), que correspondem ao Ser (τὸ ὄν), à verdade (ἀληθεία), por oposição ao que parece ser
(φαίνει εἴναι) e ao falso (τὸ ψεῦδος). Conforme nos aponta Kahn (1999, p. 329), embora seja difícil precisar
a importância do conceito para a obra de Platão, as Formas desempenham papel central na epistemologia
da República, distinguindo os filósofos dos não-filósofos. Quanto a esse conceito, remetemos a discussão ao
excelente (e já clássico) artigo de Cherniss (1936) e aos estudos mais recentes de Penner (2006), Fine (2003)
e Seddley (2007). Sobre a relação entre o ser e a aparência na República, remetemos aos trabalhos de
Marques (2006, 2009, 2010).
79
reflexão sobre o lógos. Nesse sentido, a hipótese da Formas e a reflexão sobre a dialética
emergem como conceitos associados na República (cf. Trabattoni, 2010, p. 113, 203).
Conforme ainda destaca Kahn (1999):
101
Cf. “The task of philosophy, then, is to lead us to knowledge of the good. But, according to Plato, genuine
enlightenment in this domain can come only from an intellectual grasp of fundamental realities, and this
in turn requires an arduous training. The training and method of approach is what Plato calls dialectic”.
102
R. 5.476b10-11: “Aqueles que forem capazes de atingir o belo em si e de olhá-lo em si mesmo, por acaso
não seriam raros? (Cf.Οἱ δὲ δὴ ἐπ' αὐτὸ τὸ καλὸν δυνατοὶ ἰέναι τε καὶ ὁρᾶν καθ' αὑτὸ ἆρα οὐ σπάνιοι ἂν
εἶεν;)
80
consideramos como múltiplas, contrariamente [dizemos haver] para
cada uma, uma ideia, considerando-a única, e a chamamos “o que é”.103
(R. 6.507b2-7)
103
Cf. - Πολλὰ καλά, ἦν δ' ἐγώ, καὶ πολλὰ ἀγαθὰ καὶ ἕκαστα οὕτως εἶναί φαμέν τε καὶ διορίζομεν τῷ λόγῳ.
- Φαμὲν γάρ.
- Καὶ αὐτὸ δὴ καλὸν καὶ αὐτὸ ἀγαθόν, καὶ οὕτω περὶ πάντων ἃ τότε ὡς πολλὰ ἐτίθεμεν, πάλιν αὖ
κατ' - ἰδέαν μίαν ἑκάστου ὡς μιᾶς οὔσης τιθέντες, “ὃ ἔστιν” ἕκαστον προσαγορεύομεν.
104
Cf. “Platon n’a cessé de réfléchir sur le logos, le plus grec des termes grec, en lequel s’allient langage,
pensée, rationalité, nombre. Or la dialectique est le seul bon usage du logos”.
105
Cf. Καὶ τὰ μὲν δὴ ὁρᾶσθαί φαμεν, νοεῖσθαι δ' οὔ, τὰς δ' αὖ ἰδέας νοεῖσθαι μέν, ὁρᾶσθαι δ' οὔ.
81
Na primeira imagem, Platão faz a analogia entre o sol e o Bem (τὸ ἀγαθόν): assim
como o sol é a causa da visão (508b9-10), o Bem é o que enseja visibilidade (portanto,
cognoscibilidade106) aos objetos ideais (6.508b12-c3). A ideia do Bem (6.508e1: ἡ τοῦ
ἀγαθοῦ ἰδέα) é o conceito mais elevado, sendo causa do conhecimento e da verdade
(6.508e3-4: αἰτίαν δ’ ἐπιστήμης οὖσαν καὶ ἀληθείας), conquanto, embora semelhante a
ambos, deles também se distinga, possuindo um estatuto de maior valor (6.509a4-5:
μειζόνως τιμητέον τὴν τοῦ ἀγαθοῦ ἕξιν). Ora, por que, embora semelhantes, Platão
sublinha a distinção entre o Bem (τὸ ἀγαθόν) e conhecimento (ἐπιστήμη)? Poderíamos
talvez aventar o fato de que, mesmo a epistéme não logra configurar um inteligível puro,
haja vista que, resultante de uma atividade da psykhé humana, não subsiste alheia ao
lógos: não há saber sem linguagem107.
Na metáfora seguinte, Platão propõe a imagem de uma linha segmentada em duas
partes, cada uma, por sua vez, também dividida em dois níveis, o segmento inferior
representando os saberes relacionados à realidade sensível ou ao saber ligado à opinião
(δόξα); o segmento superior representando os inteligíveis e o saber ligado à ciência
(ἐπιστήμη)108. No segmento inferior, o nível mais baixo representa as imagens (sombras
ou reflexos), a forma de saber da imaginação (εἰκασία); o nível imediatamente superior
desse segmento representa os seres vivos, as plantas e os artefatos, a forma de saber da
crença (πίστις). Na seção superior, temos, então, respectivamente, também dois níveis: no
mais baixo, o conhecimento dianoético (διάνοια), que se realiza a partir do sensível – nesse
nível se alojam, por exemplo, as ciências propriamente ditas, a geometria e os entes
106
De fato a noção de ver e saber são ligadas em grego até mesmo etimologicamente. οἴδα, verbo que
significa “saber”, “conhecer”, é formado pela raiz –ιδ, que é a mesma do aoristo de “ver”, isto é, “ter visto”
(ἰδεῖν) (Chantraine, 1968). Por estar ligada à luz, que representa um vínculo de maior valor [508a1: τιμιωτέρῳ
ζυγῷ], Platão também confere proeminência à visão, entre os demais sentidos, associando-a ao conhecer
(6.507c-508a).
107
O conteúdo do Bem (τὸ ἀγαθόν) é, entretanto, difícil de ser precisado na República. A discussão emerge,
de outro modo, por exemplo, no Filebo, onde se põe em discussão se o Bem é a vida de prazer ou de
conhecimento (11b4-c3). Denyer (2007, p. 286), sugere, entretanto, que essa vagueza com que o conceito
aparece na República não necessariamente precisa ser desfeita, haja vista que o Bem seria uma espécie de
padrão de referência para o conhecimento das Formas, assim como o Sol, que é causa da visão, permite
indiretamente, sem ser visto, tornar as coisas visíveis: “In thinking about ideal artifacts, and understanding
them in the light of the Good that makes them be as they are, we are not thinking directly about the Good,
any more than we look at the sun when, by its light, we see the plants that its light causes to grow. Indeed,
much as we would bedazzle our eyes in attempting to look directly at the Sun, we are likely to befuddle our
minds in attempting to think directly about the Good”. Em todo caso, conforme também anota o
comentador (p. 286), não pareceria válida uma leitura que associasse o Bem a qualquer um dos valores dos
bens humanos: saúde, riqueza ou força (cf. R. 6.505b-d).
108
A desigualdade de tamanhos na partição dos segmentos da linha pode gerar a percepção de que o
segmento do conhecimento (ἐπιστήμη) é proporcionalmente maior que o da opinião (δόξα), ou vice-versa.
Diferentes interpretações nesse sentido foram suscitadas desde os antigos, como Proclo (In R. 1.289.6-18) e
Plutarco (Q.P. 1001d-e). Uma discussão do problema se encontra em Denyer (2007, p. 287).
82
matemático-geométricos. No nível superior, está o conhecimento noético (νόησις), cujo
caminho se faz somente por intermédio das Formas (6.510b8-9).
Embora tenhamos descrito a imagem de uma maneira bastante esquemática, é
importante salientar que a interpretação dessa figura apresenta problemas não fáceis de
se resolver, sobretudo no que diz respeito à maneira de compreender o segmento
superior da linha. Em primeiro lugar, a própria imagem de uma linha (portanto, de um
continuum) sugere que essas quatro seções compreendem partes relacionadas entre si,
diferentes faces da mesma atividade do pensar (διανοείσθαι), de modo que, no que diz
respeito ao estatuto do conhecimento, não se pode descartar a priori qualquer uma dessas
etapas109. Em segundo lugar, não é unânime a maneira de compreender a distinção entre
as duas dimensões do conhecimento inteligível (διάνοια e νοήσις). É possível, com efeito,
distinguir, assim tão claramente, dois gêneros de realidades inteligíveis?
As interpretações mais tradicionais sustentam que nessa passagem haja uma
diferença entre um pensamento mediado (διάνοια), ligado ao conhecimento dos entes
matemáticos, e um pensamento absoluto (νόησις), ligado ao conhecimento das Formas.
Nessa direção, P. Natorp (2012 [1921]) mostrava, por exemplo, que se poderia ler a
passagem tendo em mente uma diferença entre um “pensar por” (dia-), também chamado
de “pensamento-procedimento” ou “pensamento discursivo”, que partiria de
pressuposições a partir das experiências sensíveis, que seriam tomadas como imagens; e
um “pensar absoluto”, que operaria apenas por intermédio da dialética, sem recorrer a
imagens110.
Mais contemporaneamente, a distinção entre diánoia e nóesis tende a ser limitada
à dimensão metodológica: ambas seriam caminhos alternativos do pensamento, com
vistas à apreensão de objetos de mesma natureza. F. Trabattoni (2010, p. 114), por
exemplo, sugere que a distinção a ser considerada não diz respeito à natureza dos objetos
investigados (o objeto dos modos de pensar é sempre o inteligível), mas meramente ao
método da investigação: enquanto o pensamento dianoético seria mais geral, o
109
Cf. Dixsaut (2012, p. 76): “C’est bien une seule et même Ligne qui fait l’object de découpages successifs,
sinon rien ne fonderait les rapports précis d’analogie établis entre les quatre états (R. 7.533e-534a). Ceux-ci
ne peuvent être que les figures différentes d’une même activité : l’acte de penser (dianoeisthai)”.
110
Cf. Natorp (2004 [1921], p. 373): “Uma forma de pensar deve ser chamada de dianoia, i.e., pensar por ou
pensar-procedimento (“pensar discursivo”), mas não nous, i.e., pensar absoluto ou puro pensamento. Seus
pontos de partida são pressuposições (meramente relativas); eles são, é verdade, reconhecidos através do
pensamento (discursivo), mas porque não retornamos ao princípio, ficando satisfeitos com pressuposições
(não primárias), não temos percepção pura (nous) deles”. Conforme comenta Trabattoni (2010, p. 113),
considerar a diánoia como o “pensamento discursivo” não parece convincente: justamente o conhecimento
noético é aquele no qual entra em jogo justamente a dialética, que, conforme apontamos, decorre de um
tratamento específico do discurso (é exatamente o que se pode ler em 511b).
83
pensamento noético seria mais específico, diferindo do primeiro por não se desenvolver
por intermédio de hipóteses a partir do sensível, mas por um processo alternado de
sínteses dialéticas, inteiramente inserido no campo das Formas111 (Trabattoni, 2010, p.
114). No mesmo sentido, Dixsaut (2012) também propõe que não haja uma diferença de
objetos entre diánoia e nóesis, mas apenas de procedimento. Enquanto o conhecimento
dianoético toma os objetos sensíveis do segundo segmento da linha não como objetos
autossuficientes, mas como imagens de uma realidade inteligível, e considera suas
hipóteses como princípios, o conhecimento noético não se serve de imagens e não toma
hipóteses como princípios. Nesse sentido, embora não se distinga do conhecimento
noético quanto ao seu objeto, as Formas – não havendo, portanto, Formas puras (ligadas
à nóesis) e Formas intermediárias (ligadas aos entes matemáticos, ou às ciências, por
exemplo) – o pensamento dianoético configura-se análogo a uma conjectura; Por
depender de imagens e hipóteses (tomadas como princípios), representaria, em suma, um
grau imperfeito de apreensão112.
Sem a pretensão de fecharmos essa questão113, vejamos como, no diálogo, o
problema se coloca na seguinte passagem:
111
Cf. Trabattoni (2010, p.114): “Dianoia, antes de tudo, significa pensamento em geral. O termo noesis é
introduzido por Sócrates para distinguir, dentro do pensamento que não se move a partir de hipóteses (de
natureza sensível) em direção ao baixo, isto é, para o mundo da experiência, mas se move em direção ao
alto, à procura do princípio não hipotético, e depois se desenvolve como processo alternado de sínteses (do
múltiplo ao uno), inteiramente inserido no âmbito das ideias. (…) Existe um método que estabelece seus
princípios como puras hipóteses e, depois, fazendo uso de figuras e imagens, deduz as propriedades das
hipóteses que estabeleceu. Mas esse não é o pensamento em seu grau mais elevado”.
112
Cf. Dixsaut (2012, p. 77): “Cependant la position de réalités intelligibles inférieures, intermédiaires entre
les réalités sensibles et les Formes, n’a aucun fondement textuel. Le Pair, l’Impair, tout comme le Deux ou
le Trois, sont dans le Phédon des exemples de ces Formes qui confèrent leur nom ou leur propriété aux
choses qui en participant. Il est donc bien plus probable que la différence entre les deux segments de
l’intelligible ne tienne pas à la nature des objects mais à la façon de les connaître. Tout effort pour
considérer le sensible non pas comme se suffisant à lui-même mais comme l’image d’un rapport ou d’une
réalité intelligible relève de cette manière de connaître que Platon nomme simplement « pensée » (dianoia).
Elle ne se limite pas aux objects mathématiques, mais elle ne connaît ses objects que mathématiquement.
La pensée dianoétique peut s’appliquer à tout l’intelligible, en donner des définitions et en déduire, selon
des règles, des propriétés ou des conséquences. La troisième section de la Ligne ne renvoie pas à une espèce
particulière de réalités intelligibles, plutôt à un état particulier de l’âme à l’égard de l’intelligible, celui où
elle est forcée d’utiliser pour le saisir hypothèses et images. C’est pourquoi la pensée dianoétique est
l’analogue de la conjecture : elles représentent toutes deux un degrée imparfait d’apréhension de leurs
objects ; l’une manque de la fermeté de la perception directe, l’autre de celle de l’intelligence”.
113
Há muitas outras interpretações dessa passagem, como, por exemplo, Tenner (1970), Annas (1981), Denyer
(2007), Seddley (2007); Dixsaut (2012); Ferrari (2018a), entre outros.
84
elemento sensível, mas das próprias Formas, através delas e para elas,
até terminar na Forma.
- Compreendo, ele disse, mas não o suficiente – pois me parece que
esteja falando de uma coisa grandiosa – querendo determinar que o
conhecimento do ser e do inteligível, obtido através da ciência do
dialogar114, é mais claro do aquele das chamadas técnicas, cujos
princípios são hipóteses.115
(R. 6.511b3-c7)
114
Em nossa tradução, optamos por manter a distinção entre διαλέγεσθαι, que traduzimos por “dialogar”
ou “diálogo”, e διαλεκτική, que traduzimos como “dialética”. Embora compreendemos que sejam termos
associados, nossa escolha contraria as traduções em língua portuguesa a que tivemos a acesso – a de Maria
Helena da Rocha Pereira (2014 [1949]), de Carlos Alberto Nunes (2016 [1976]) e de Eleazar Magalhães
Teixeira (2009) – que sempre traduzem, nessa passagem, διαλέγεσθαι como “dialética”. Entretanto, é nosso
interesse marcar, com a distinção que propomos, a primeira ocorrência de διαλεκτική, em passagem mais
à frente da República, a que faremos menção adiante.
115
Cf. - Τὸ τοίνυν ἕτερον μάνθανε τμῆμα τοῦ νοητοῦ λέγοντά με τοῦτο οὗ αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ
διαλέγεσθαι δυνάμει, τὰς ὑποθέσεις ποιούμενος οὐκ ἀρχὰς ἀλλὰ τῷ ὄντι ὑποθέσεις, οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ
ὁρμάς, ἵνα μέχρι τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ τὴν τοῦ παντὸς ἀρχὴν ἰών, ἁψάμενος αὐτῆς, πάλιν αὖ ἐχόμενος τῶν
ἐκείνης χομένων, οὕτως ἐπὶ τελευτὴν καταβαίνῃ, αἰσθητῷ παντάπασιν οὐδενὶ προσχρώμενος, ἀλλ' εἴδεσιν
αὐτοῖς δι' αὐτῶν εἰς αὐτά, καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη.
- Μανθάνω, ἔφη, ἱκανῶς μὲν οὔ – δοκεῖς γάρ μοι συχνὸν ἔργον λέγειν – ὅτι μέντοι βούλει διορίζειν
σαφέστερον εἶναι τὸ ὑπὸ τῆς τοῦ διαλέγεσθαι ἐπιστήμης τοῦ ὄντος τε καὶ νοητοῦ θεωρούμενον ἢ τὸ ὑπὸ
τῶν τεχνῶν καλουμένων, αἷς αἱ ὑποθέσεις ἀρχαὶ.
85
encontra em nível inferior à nóesis, por tratar-se, como vem na sequência, de uma forma
de pensamento intermediária entre a opinião e a intelecção pura (511d4: μεταξύ τι δόξης
τε καὶ νοῦ)?
Além disso, é possível também salientar, a partir dessa passagem, que o lógos que
interessa à incursão nesses níveis do conhecimento é aquele que se obtém através do
“dialogar” (διαλέγεσθαι). Considerado aqui uma “ciência” (ἐπιστήμη), o dialogar assoma,
nesse contexto, já com um sentido que nos parece especializado, transcendendo aquela
noção mais “socrática” de dialégesthai como o mero perguntar e responder116. Faltaria, assim,
somente cunhar um termo próprio para designar essa nova ciência, providência que,
entretanto, não tardaria a ser tomada: seguindo o movimento dialógico, na próxima
ocorrência desse tema, Sócrates declinará, com todas as letras, a palavra “dialética” (ἡ
διαλεκτική).
No início do livro VII, Platão então expõe sua famosa alegoria da caverna117. A
distinção entre a dimensão sensível e a inteligível da realidade é agora sinalizada através
da imagem de dentro e de fora da caverna. No interior, todo conhecimento é possibilitado
somente por intermédio das imagens que aparecem sob a forma sombras na parede,
mediante uma projeção precária, causada por uma fogueira acesa atrás dos habitantes.
Tais projeções são imagens de objetos reais que existem fora da caverna, onde podem
efetivamente ser vistos mais nítidos e melhor iluminados pelo sol. Enquanto no interior
os seres estão assim propensos a incorrer em erros inevitáveis, julgando as sombras como
reais (515c1-2), o filósofo empreende um esforço para se emancipar da semiobscuridade
da caverna, esforço que causa desconforto quando ele se depara com os objetos reais e
com a luz do dia, devendo se empenhar também em um exercício de adaptação (7.516a-
b). Quando regressa, se depara com a incompreensão e se torna alvo de ridicularização
por parte daqueles que se habituaram ao universo das sombras (517a). Ao longo do
116
Não queremos aqui assumir uma distinção entre uma fase “socrática” e “platônica” na história do
conceito de dialégesthai, como poderia dar a entender. Usamos o termo apenas para frisar a diferença, que
nos parece relevante, entre o desenvolvimento mais teórico do conceito, relacionado à epistemologia da
República, e aquela formulação inicial que vimos acima (Cf. Górgias, Mênon etc.), da linguagem dialética
opondo-se à retórica, por se caracterizar pela troca de breves turnos discursivos. Também nesse sentido,
aliás, poder-se-ia defender que mesmo naquela ocasião já se tratava de abordagem “platônica”. De fato,
como afirma Kahn (1999, p. 304): “One aspect of this contrast between dialegesthai and oratory is to
distinguish Plato's conception of philosophical discourse from that of Isocrates, who was fond of using the
term philosophia for his own type of training”.
117
Interessante observar que em 514a1, Sócrates, ao introduzir o trecho, propõe a Gláucon uma
“experiência” (πάθος). Na sequência, pede a Gláucon que “visualize” a imagem a ser descrita. Lendo a
passagem com Annas (1981, p. 253), concordamos que: “The Cave is Plato’s most optimistic and beautiful
picture of the power of philosophy to free and enlighten. Abstract thinking, which leads to philosophical
insight is boldly portrayed as something liberating. The person who starts to think is shown as someone
who breaks the bonds of conformity to ordinary experience and received opinion, and the progress of
enlightenment is portrayed as a journey from darkness into light”.
86
processo de emancipação da caverna assinalado nessa alegoria, o filósofo se depara com
quatro níveis: logo de partida, com as sombras projetadas pelo fogo no interior da caverna
(515a7-8: τὰς σκιὰς τὰς ὑπὸ τοῦ πυρὸς εἰς τὸ καταντικρὺ αὐτῶν τοῦ σπηλαίου
προσπιπτούσας), em seguida, já fora da caverna, com as sombras dos objetos reais e dos
homens (516a6-7: τὰς σκιὰς...τῶν ἀνθρώπων καὶ τὰ τῶν ἄλλων); somente então com as
imagens das próprias coisas refletidas nas águas (7.516a7: ἐν τοῖς ὕδασι...εἴδωλα) e,
finalmente, com os objetos reais iluminados pelo Sol (αὐτά).
É importante notar que a passagem por essas etapas representa uma espécie de
adaptação necessária, inerente ao processo filosófico: na hipótese contrária, a de alguém
ser retirado à força da caverna (515e6: ἐντεῦθεν ἕλκοι τις αὐτὸν βίᾳ) e, uma vez arrastado,
não ser liberado até que olhe diretamente para a luz do sol (515e6-7: καὶ μὴ ἀνείη πρὶν
ἐξελκύσειεν εἰς τὸ τοῦ ἡλίου φῶς), não somente seria impossível enxergar algo daquilo
que se considera como os objetos verdadeiros (516a2-3: ὁρᾶν οὐδ’ ἂν ἓν δύνασθαι τῶν νῦν
λεγομένων ἀληθῶν), como também seria um processo penoso, que engendraria dor e
desconforto (515e8-a1: ὀδυνᾶσθαί τε ἂν καὶ ἀγανακτεῖν ἑλκόμενον). Essa perspectiva, que
faz compreender a distinção entre sensíveis e inteligíveis através de quatro etapas, e que
parece consignar importância também para os estágios preliminares e intermediários
(das diferentes sombras, passando pelas imagens, até chegar a visão dos objetos), parece-
nos indicar que, se a ontologia aqui proposta por Platão tem, como ponto de partida, uma
dualidade (sensível vs. inteligível), o ponto de chegada, que é a sua forma de apreensão (o
método, o caminho de saída da caverna), não se pode mais caracterizar por um dualismo,
porque não pode prescindir das instâncias intermédias, nelas incluindo as sombras e as
imagens.
Isso significa, em outras palavras, que, para se aferir as verdadeiras distinções,
aquelas que se tornam somente possíveis mediante um esforço de visão das próprias
coisas, é preciso, antes de mais nada, transitar de uma situação de obscuridade, passando
por uma semiobscuridade (os objetos à noite, por exemplo, 516a8-b1), até que se atinjam
os objetos iluminados pela luz do sol e, finalmente, o próprio sol (516b2-7). Ora, o que essa
imagem implica? Implica talvez que o processo de intelecção proposto por Platão, como
tão bem se exprimiu Marcelo Marques (2016, p. 14), não é meramente um processo de
abstração que nos arroja imediatamente ao inteligível, mas é um caminho de pesquisa,
um caminho mediado por instâncias imperfeitas e intermediárias:
87
horizonte de (in)visibilidade. Pensar através das formas não significa
substituir objetos ou eventos por sucessivas abstrações, mas exige que,
mediante o precário e o imperfeito, postulemos um rumo (paradigma) e
construamos argumentativamente o caminho naquela direção. Esta é a
filosofia que encontramos nos diálogos: a percepção das coisas como
problemas exige que busquemos cada vez mais inteligibilidade, mais
clareza, através de novas mediações, o que acaba por conferir ao objeto
da inteligência o máximo de dignidade. Pensar é inserir o que quer que
seja na dinâmica do perguntar e do responder, que acaba por constituir
um ritmo, um modo de compreender e também propor patamares de
compreensão dos quais se podem vislubrar objetos e eventos, coisas e
processos, poderes e ações visados no modo de ser que são os seus,
quaisquer que sejam. É a complexidade do dialogar que restitui cada
coisa ao seu âmbito devido e justo (inclusive esta folha, na sua
tangibilidade), atravessando aparições e impasses.
(Marques, 2016, p. 14-15)
A poderosa imagem da caverna de Platão pode ser lida como espécie de síntese
ontológica e epistemológica das duas primeiras imagens118. A imagem da luz (e da visão),
permite-nos associar a alegoria da caverna àquela imagem do Sol e do Bem (508b9-10).
Nas duas passagens, diferentes fontes de iluminação (a fogueira, o sol e o Bem)
representam causas de diferentes modos de ver, que, por sua vez, acessam diferentes
dimensões da realidade. As fontes de iluminação, embora em instâncias diferentes, são,
portanto, causadoras de formas de visibilidade: da mais precária delas, no caso da
fogueira, a visibilidade das sombras projetadas no interior da caverna; passando pelas
intermediárias, no caso do sol, a visibilidade das sombras projetadas fora da caverna e a
visibilidade dos próprios objetos; até a mais completa e avançada forma de ver, no caso
do Bem, a visibilidade, ou inteligibilidade, das Formas. Além disso, o interior e o exterior
da caverna demarcam fronteiras semelhantes às dos segmentos da linha dividida: ao
mesmo tempo que contrapõem o conhecimento sensível ao inteligível; a ciência às
118
Nada mais alheio ao nosso objetivo aqui do que oferecer uma nova proposta de interpretação para essa
passagem. Determinar as limitações e a precisão da correspondência das três imagens de Platão é tarefa
ainda longe de qualquer unanimidade entre os muitos comentadores da República. Entretanto, em 517a
Sócrates afirma que essa imagem (a da caverna) deva ser aplicada, como um todo, ao que se disse antes, o
que sugere que, de algum modo, o próprio Platão tenha considerado a alegoria da caverna como uma
espécie de síntese. Em 533e-534a, Platão também retoma essas imagens, oferecendo uma chave de leitura
que, de forma ampla, é a que sustenta nossa interpretação aqui. Contudo, é preciso ainda assinalar,
conforme observa Annas (1981, p. 256), que: “Sun, Line and Cave are philosophically frustrating; they point
us in to many directions at once. Their power has always lain in their appeal to the imagination, and the
harsh forceful contrast they draw between the life content with appearance and superficiality, and the
richly rewarding life dedicated to finding out the truth. Their appeal is so strong that interpreters are
perennially tempted to try to harmonize them in a consistent philosophical interpretation, despite Plato's
own warnings on the limits of the kind of thinking that is guided by images and illustrations”.
88
técnicas; a opinião às imagens; também afiguram, como a linha, um continuum, sugerindo
um processo intermediado por etapas.
Embora, a partir dessas imagens, sejamos tentados a fazer corresponderem o ver
e o conhecer, conforme comenta G. Lebrun (1988, p. 399), a imagem da visão associada ao
conhecimento não implica que haja uma forma de visão plena o bastante em Platão para
excluir a dúvida (ou a incerteza) da pesquisa filosófica (como o é, por outro lado, em
Descartes). De fato, como observa o estudioso, se Platão nos oferece um crivo de verdade,
ele não é alheio à linguagem, ao lógos. A pesquisa filosófica não se vê satisfeita
simplesmente pela força de uma visão (seja de uma evidência, de um insight ou de uma
intuição), mas somente mediante o paciente exercício de submissão de uma tese (ou uma
dóxa) ao escrutínio do diálogo, a fim de que ela se veja (ou não) refutada119. Em outras
palavras, isso significa que, do mesmo modo que os objetos sensíveis são apreendidos
senão por intermédio dos sentidos humanos, os objetos do intelecto não podem também
ser acessados sem intermédio do lógos (529d5).
É nesse momento, então, que as distinções anteriormente feitas no campo da
ontologia (sensíveis vs. inteligíveis; uno vs. múltiplo) e da epistemologia (opinião vs.
conhecimento), que se foram elaborando nas discussões precedentes, culminam também
na distinção metodológica (contrapondo do método das tékhnai à dialética). Com efeito,
aqueles saberes cujas conclusões decorrem, em alguma medida, de uma referência aos
sentidos, e estão limitados pelo método hipotético (tais como a astronomia, a geometria,
a música etc.), estão sujeitas a imprecisões inerentes a cada observador ou a cada
instrumento (529e-531a), de modo que todos essas ciências representam, por isso mesmo,
apenas o “prelúdio de uma ária” ou o “prólogo de uma lei” que restaria ainda ser
aprendida120, a dialética:
119
No último livro da República, uma breve observação prévia a um argumento revela a permanência
daquela fórmula que, a meu ver, desde os diálogos de juventude, jamais deixou de ser seguida, pressupondo
a filosofia como um exercício de refutação do que se diz:
- Portanto, ou refutemos isso, [mostrando que] não falamos bem, ou, até que isso não seja refutado, não
falemos que... (R. 10.610a10-b1, cf. Ἢ τοίνυν ταῦτα ἐξελέγξωμεν ὅτι οὐ καλῶς λέγομεν, ἢ ἕως ἂν ᾖ
ἀνέλεγκτα, μή ποτε φῶμεν).
120
A expressão grega, empregada em 531d8 (προοίμια νόμου), parece, mesmo em Platão, suscitar
ambiguidade, tratando-se, provavelmente, de jogo de palavras. Conforme comentam Emlyn-Jones &
Preddy (2013, p. 169), nómos pode conotar tanto “poesia”, “canção”, “ária”, quanto “lei”. Esse jogo de palavras
é bastante comum em Platão, como, por exemplo, pode ainda ser visto na R. 7.532d6-7 e em várias passagens
das Leis (como, por exemplo, em Lg. 722-23).
89
finalmente o próprio sol. Assim, sempre que alguém, por meio do
dialogar, sem usar qualquer um dos sentidos, mas apenas por meio do
lógos, tenta alcançar cada coisa que é em si mesma, e não desiste até
abarcar o que é o Bem em si com a própria inteligência, ele atinge, então,
o fim do inteligível, do mesmo modo que aquele atinge o fim do visível.
- Certamente, de fato, disse ele.
- E então? Você não chama esse caminho de dialética?
- Como não?121
(R. 7.532a1-b5)
121
Cf. – Οὐκοῦν, εἶπον, ὦ Γλαύκων, οὗτος ἤδη αὐτός ἐστιν ὁ νόμος ὃν τὸ διαλέγεσθαι περαίνει; ὃν καὶ ὄντα
νοητὸν μιμοῖτ' ἂν ἡ τῆς ὄψεως δύναμις, ἣν ἐλέγομεν πρὸς αὐτὰ ἤδη τὰ ζῷα ἐπιχειρεῖν ἀποβλέπειν καὶ
πρὸς αὐτὰ <τὰ> ἄστρα τε καὶ τελευταῖον δὴ πρὸς αὐτὸν τὸν ἥλιον. οὕτω καὶ ὅταν τις τῷ διαλέγεσθαι
ἐπιχειρῇ ἄνευ πασῶν τῶν αἰσθήσεων διὰ τοῦ λόγου ἐπ' αὐτὸ ὃ ἔστιν ἕκαστον ὁρμᾶν, καὶ μὴ ἀποστῇ πρὶν
ἂν αὐτὸ ὃ ἔστιν ἀγαθὸν αὐτῇ νοήσει λάβῃ, ἐπ' αὐτῷ γίγνεται τῷ τοῦ νοητοῦ τέλει, ὥσπερ ἐκεῖνος τότε ἐπὶ
τῷ τοῦ ὁρατοῦ.
– Παντάπασι μὲν οὖν, ἔφη.
– Τί οὖν; οὐ διαλεκτικὴν ταύτην τὴν πορείαν καλεῖς;
– Τί μήν;
122
Conforme veremos na Parte γ´, a noção de movimento é também central na caracterização da dialética
no Fedro, em sua relação com as letras.
90
Logo na sequência (em 533c7), a dialética será referida também como um méthodos,
ou seja, um percurso sistemático, um “método”. A palavra grega, derivada de hodós,
“caminho”, “via”, também contribui para conceptualizar a pesquisa dialética no âmbito
daquela metáfora espacial a que aludimos acima, em cujo âmbito a dialética assoma
como uma mediação, não como alvo do processo. Em todo caso, é importante assinalar
que o méthodos não pode ser compreendido, em Platão, em seu sentido epistemológico
moderno, enquanto espécie de instrumento ou conjunto de práticas de referência, das
quais resultariam as ciências. Conforme comenta Dixsaut (2001, p. 93), a dialética é
definida tanto como ciência (ἐπιστήμη), quanto como “método” (μέθοδος), de forma que
os dois conceitos são na verdade duas faces associadas na definição de dialética na
República. Entretanto, enquanto uma epistéme, a dialética difere-se aquelas ciências que,
conforme analisado antes, se limitam às hipóteses, sem chegar aos princípios, como
vemos na passagem:
123
Cf. Οὐκοῦν, ἦν δ' ἐγώ, ἡ διαλεκτικὴ μέθοδος μόνη ταύτῃ πορεύεται, τὰς ὑποθέσεις ἀναιροῦσα, ἐπ' αὐτὴν
τὴν ἀρχὴν ἵνα βεβαιώσηται, καὶ τῷ ὄντι ἐν βορβόρῳ βαρβαρικῷ τινι τὸ τῆς ψυχῆς ὄμμα κατορωρυγμένον
ἠρέμα ἕλκει καὶ ἀνάγει ἄνω, συνερίθοις καὶ συμπεριαγωγοῖς χρωμένη αἷς διήλθομεν τέχναις· ἃς ἐπιστήμας
μὲν πολλάκις προσείπομεν διὰ τὸ ἔθος, δέονται δὲ ὀνόματος ἄλλου, ἐναργεστέρου μὲν ἢ δόξης,
ἀμυδροτέρου δὲ ἢ ἐπιστήμης.
91
fim de chegar a princípios não hipotéticos (511b6: ἀνυποθέτου), saberes, portanto,
puramente inteligíveis.
Configurando-se, portanto, como um méthodos, seria a dialética talvez um
caminho para o pensamento superior àquela pesquisa que se move por hipóteses,
pesquisa que, conforme afirmava Dixsaut (2012, p. 78), embora buscando também objetos
inteligíveis, os aborda somente matematicamente? Em outras palavras: sendo a diánoia e
a nóesis ambas instâncias do pensamento que diz respeito ao inteligível, haveria entre elas
qualquer hierarquia?
Novamente, não querendo dar a última palavra, arriscaríamos dizer que sim, e o
poderíamos fazer tendo em vista o comentário terminológico de Platão, na sequência:
aquelas artes (τέχναι) cujo desenvolvimento se restringe ao método de hipóteses, e que
consagravam o tipo reflexão dianoética (διάνοια), eram, pelo costume, frequentemente
referidas como “ciências” (ἐπιστήμαι). Platão observa, entretanto, a necessidade de
oferecer a elas uma outra designação, algo que estivesse entre “ciência” (ἐπιστήμη) e
“opinião” (δόξα)124, o que lhes sugere, portanto, um estatuto menor. Contudo, há ainda
um outro argumento acerca da proeminência da dialética, o qual apresentaremos na
sequência.
Conforme vimos na análise das passagens supracitadas, a noção de dialética
emergiu de uma longa reflexão que se desenvolveu em extensa passagem da República
(V, VI, VII). Nesse diálogo, o dialégesthai aflorou não somente como uma modalidade
específica do lógos – conforme vimos também nos diálogos precedentes à República, nos
quais distinguia-se, por exemplo, do discurso retórico e erístico –, mas emergiu associado
aos princípios epistemológicos (e, diríamos, também ontológicos e metafísicos) que são
objeto de reflexão sobretudo nos livros V, VI e VII, enquanto um método intrínseco ao
conhecimento noético, relacionado à Forma do Bem, como também podemos concluir
da passagem:
- Então, ocorre do mesmo modo a respeito do Bem. Quem não for capaz
de determiná-lo por meio do lógos, separando Forma do Bem de todas
as outras coisas, e, como se estivesse em uma batalha, atravessar todas
as refutações, buscando refutar não por meio da opinião, mas do ser,
124
Essa observação revela-nos também que a questão terminológica em Platão não pode ser tomada de
forma rígida. Conforme comenta Adam (1921, p. 141), “Plato constantly reminds us that he has no fixed
terminology, and the ancients were well aware of this fact, though modern interpreters of Plato too often
forget it”.
92
passando através de tudo isso por meio de um lógos infalível – dirás que
pessoa assim não conhece o Bem em si, e nenhum outro bem.125
(R. 7.534b8-c5)
Assim, se a apreensão da Forma do Bem (τοῦ ἀγαθοῦ ἰδέα) aflora como o auge das
aspirações de um filósofo, conceito associado ao Sol que brilha fora da caverna e confere
visibilidade e cognoscibilidade a todos os outros entes intelectuais126; e, ainda, se esse
“caminho” ou “método” representa um esforço de “separação” (ἀφαίρεσις) e
“determinação” (διόρισις) do Bem, operações realizadas por intermédio do lógos; então,
se conclui que a dialética só pode ser mesmo considerada o corolário de todas as formas
de estudo (μαθήματα):
125
Cf. – Οὐκοῦν καὶ περὶ τοῦ ἀγαθοῦ ὡσαύτως· ὃς ἂν μὴ ἔχῃ διορίσασθαι τῷ λόγῳ ἀπὸ τῶν ἄλλων πάντων
τὴν τοῦ ἀγαθοῦ ἰδέαν, καὶ ὥσπερ ἐν μάχῃ διὰ πάντων ἐλέγχων διεξιών, μὴ κατὰ δόξαν ἀλλὰ κατ' οὐσίαν
προθυμούμενος ἐλέγχειν, ἐν πᾶσι τούτοις ἀπτῶτι τῷ λόγῳ διαπορεύηται, οὔτε αὐτὸ τὸ ἀγαθὸν φήσεις
εἰδέναι τὸν οὕτως ἔχοντα οὔτε ἄλλο ἀγαθὸν οὐδέν.
126
Concordamos ainda com Dixsaut (2001, p. 97-99), na análise da passagem, que estando além da
“essência”, o Bem é uma causa universal de toda inteligibilidade, do que decorre a importante
consequência de admitir que, por seu intermédio, todas as formas são cognoscíveis.
127
Cf. – Ἆρ' οὖν δοκεῖ σοι, ἔφην ἐγώ, ὥσπερ θριγκὸς τοῖς μαθήμασιν ἡ διαλεκτικὴ ἡμῖν ἐπάνω κεῖσθαι, καὶ
οὐκέτ' ἄλλο τούτου μάθημα ἀνωτέρω ὀρθῶς ἂν ἐπιτίθεσθαι, ἀλλ' ἔχειν ἤδη τέλος τὰ τῶν μαθημάτων;
– Ἔμοιγ', ἔφη.
128
É importante observar, nesse sentido, que mesmo no contexto em que a dialética, já nomeada, se
apresenta como o auge de todas as demais formas do saber, também aí ela não se dissocia inteiramente da
forma do διαλέγεσθαι – do método socrático de perguntas e respostas. Segundo Dixsaut (2001, p. 72), a
República não opera, portanto, uma ruptura, mas um deslocamento.
93
dialética é postulada como superior às demais formas de investigação, por se revelar não
como um conhecimento propriamente político, mas por ser aquele que é o único capaz
de conduzir à apreensão do objeto de estudo mais elevado, a Forma do Bem (505a2).
Em síntese:
Situado no topo de uma linha que hierarquiza as diferentes maneiras
que a alma possui de se relacionar com as coisas que lhe são
apresentadas, como a última etapa de um currículo educacional, a
dialética só pode ser considerada na República na perspectiva de sua
superioridade sobre as outras ciências – superioridade que explica por
que ela é reservada ao pequeno número de filósofos verdadeiros (esse é
o único meio de preservá-la do perigo que a ameaça), e por que ela
fundamenta a sua aptidão para governar.129
(Dixsaut, 2001, p. 60)
129
Cf. “Située au sommet d’une Ligne qui hiérarchise les différentes manières qu’a l’âme de se rapporter
aux choses qui se présentent à elle, dernière étape d’un cursus éducatif, la dialectique n’est envisagée dans
la République que dans la perspective de sa supériorité sur les autres sciences – supériorité qui explique
qu’elle soit reservée au petit nombre des vrais philosophes (c’est le seul moyen de la préserver du mal que
la menace), et qui fonde leur aptitude à governer”.
94
II.
DIVISÃO E REUNIÃO
130
Cf. λέγω : le sens originel est « rassembler, cueillir, choisir », d’òu « compter, dénombrer ». Cette valeur
originelle est bien conservée dans des thèmes à préverbes : δια- « trier, choisir », ἐκ « trier, choisir », dit
notamment de soldats, etc., ἐπι- « choisir », κατα- « compter, énumérer », συλ- « rassembler ». Avec le
vocalisme –o : 1. λόγος : forme un type ancien de très grande importance, « propos, paroles » en ion.-att.
sens divers « récit, compte, considération, explication, raisonnement, raison, parole, par opposition à
réalité, ἔργον.
95
pesquisa daqueles novos objetos, as Formas, de modo que, a sua estipulação marca
também certa consciência da limitação intrínseca aos primeiros métodos (o élenkhos e o
método de hipóteses, por exemplo). Contudo, na República, não houve uma delimitação
das fronteiras da dialética em relação a outras práticas do lógos, bem como nada se
postulou, objetivamente, acerca de como se caracterizava a sua dýnamis.
Conforme parece ser unânime entre diferentes comentadores de Platão (citamos,
como exemplo, Dixsaut, 2001, p. 101; Robin, 2002, p. CLXXIX; Hackforth, 2001, p. 134;
Cornford 2007, p. 217; Müller, 2012, p. 60, entre outros), é no Fedro que testemunhamos
uma tentativa mais explícita de delineamento dos contornos da dialética por oposição a
outras dinâmicas do lógos131. É nossa meta, então, mostrar neste capítulo quais os sentidos
da dialética que despontam neste diálogo, considerando a controversa questão da
unidade do Fedro, e mostrando as relações que, ao longo desse diálogo, se podem
reconhecer entre a dialética e o tema do amor (ἔρως), entre dialética e retórica, e entre
dialética e psicagogia, deslindando, ainda, o quanto possível, as relações dessa
formulação com aquela reflexão prévia que descrevemos a partir da República, no
primeiro capítulo.
Para isso, nosso percurso neste capítulo será o seguinte: retornaremos ao diálogo,
propondo uma breve contextualização do problema a partir do seu prólogo (Phdr. 227a-
230e), para apresentarmos em seguida algumas observações analíticas a partir de dois
contextos dramáticos: 1. no âmbito dos discursos sobre o amor – especialmente a partir
do segundo discurso proferido por Sócrates – a assim chamada “palinódia” ou
“retratação” (Phdr. 243e-257b) – ocasião em que trataremos de abordar a relação entre
dialética e éros; e 2. nas críticas aos discursos e à retórica em geral (Phdr. 259d-274b),
quando nosso foco será iluminar as relações entre dialética, retórica e psicagogia.
Segundo esse recorte analítico, omitimos propositalmente neste capítulo o exame das
relações entre dialética e escrita (incluindo nelas a questão da memória), tópico ao qual
retornaremos, com mais atenção, na Parte β’ da tese. É importante também ressalvar que
a divisão de nossa análise nesses tópicos é meramente metodológica e tampouco tem
pretensão de ser exaustiva.
131
Os comentadores supracitados sublinham a tese de que o Fedro representaria uma espécie de
complemento da República, quanto ao tema da dialética. Por isso, é considerado um diálogo “metadialético”
(Reis, 2014), que inicia a sequência de diálogos particularmente interessados nesse tema (tais como o Sofista,
o Político e o Filebo, sobretudo), cujos desdobramentos, contudo, não nos interessam para demarcar o ponto
de partida da reflexão do Fedro e, por essa razão, não serão aqui explorados. Para discussões avançadas
quanto à dialética nesses outros diálogos, remeto aos estudos de Dixsaut (2001), Mié (2004), Marques (2006)
e Kahn (2013).
96
2.1 Retirando as máscaras do texto
132
A eleição desse cenário campesino para esse diálogo que, de resto, tocará em assuntos tão fundamentais
para a filosofia platônica como ο amor, a alma, a retórica, a dialética, a escrita, entre outros, é, para dizer o
mínimo, sui generis. Como nos atesta Luc Brisson (2004 [1989], p. 23), em nenhuma outra parte do corpus
Platonicum a ação dramática se desenrola fora de Atenas. Em que pese isso, não menos correta é a percepção
de que, em paradoxo com a sua preferência pela cidade, Sócrates revela inusitada familiaridade e singular
apreço pela paisagem do campo.
97
dizer, análogo ao que Platão, esse “personagem invisível”, opera sobre os leitores, quando
se deixam levar pelo aparente entretenimento de sua arte133, até que se vejam
confrontados com questões filosóficas que deslocam antigas crenças que trazem consigo.
O prólogo evidencia a antiga técnica literária do foreshadowing, de emprego
sistemático na épica antiga134. De fato, nesse primeiro ato dramático, é possível identificar
elementos que antecipam os tópicos fundamentais que serão tratados bem mais adiante,
tais como a relação entre escrita, memória e o falar bem (228a3-4; 228b1); o status da
retórica, do texto escrito e do autor por trás dele (228e1); a relação entre éros e o discurso
(227c3-8); e, ainda, o irracional fascínio que o discurso opera – de fato, não passa
despercebido o fato de que Sócrates admite ser “doente por discursos” (228b5) e o fato de
que esses sejam aqui caracterizados como um phármakon (230d6) – essa mesma palavra,
diga-se de passagem, que será usada bem mais à frente, no âmbito do mito de Theuth,
para caracterizar o ambíguo estatuto da escrita (275a5).
É ainda digno de nota a aparente indiferença que Sócrates manifesta em relação
às narrativas míticas (229c5-230a7), quando Fedro lhe pergunta sobre o mito do rapto de
Orítia135, cuja tradição rezava ter-se dado às margens do rio Ilisso (229b4-c5). O tratamento
que confere a esse mito, de velado ceticismo intelectual, parece propor, de antemão,
análoga atitude a ser tomada diante desse tipo de narrativa, como um lembrete avançado
ao leitor para o que viria pela frente: um diálogo em que diferentes narrativas de
tonalidades mitológicas assomam como parte central dos argumentos (Reis, 2016, p. 158),
às quais se deveria aderir não dogmaticamente, mas sempre de forma mediada pela
dúvida. Além disso, a resposta de Sócrates revela, ademais, também um exercício em que
se pode notar uma sofisticada diferenciação de argumentos em três partes, estilo que, por
sua vez, emula os três atos discursivos que se seguem na primeira parte do diálogo, as
133
Com efeito, parece-nos correta a avaliação de Trabattoni (2010, p. 19), de que sob a superfície do texto,
“transparece a presença do autor que constrói e sustenta com sabedoria o jogo do diálogo, fazendo explodir
contradições, lançando sinais muitas vezes obscuros, sugerindo implicitamente ao leitor alguns percursos,
contentando-se, por vezes, somente em confundi-lo, para provocar nele determinadas reações. O autor, em
outras palavras, é materialmente ausente do diálogo, mas bem presente do ponto de vista filosófico, como
um invisível manipulador que move suas marionetes na cena para atingir determinados objetivos”.
134
A técnica dramática do foreshadowing, que consiste no artifício literário segundo o qual um autor insinua,
a partir de elementos dramáticos aleatórios, fragmentos da história que ainda está por vir, não parece alheia
à literatura antiga. Conforme já atestava Duckworth (1933), a técnica era amplamente empregada por
Homero, Apolônio de Rodes e Virgílio, em seus textos épicos. Não nos parece inusitado que também Platão
se apropriasse desse recurso na composição de seus diálogos.
135
Segundo mito conhecido, Bóreas, deus do vento norte, raptou Orítia, filha de Erecteu, rei de Atenas e
progenitor da linha real ateniense, levando-a para seu palácio na Trácia. Um culto a Bóreas havia sido
instituído pelos atenienses após a batalha final dos gregos contra os persas, com a derrota da frota persa no
Cabo Sepias, em 480 a.C. (Howatson, 2005, p. 93). Não nos parece casual que o mito aqui evocado trate,
justamente, de uma abdução por razões sexuais, sugerindo e antecipando o tema do amor (ἔρως), mais um
exemplo da técnica de foreshadowing que parece caracterizar todo o prólogo.
98
declamações do discurso de Lísias (lido por Fedro), do primeiro discurso de Sócrates e,
finalmente, da palinódia. Vejamos no detalhe.
Quando Fedro lhe pergunta, com todas as letras, se acredita ser verdadeiro aquele
136
mito , Sócrates desenvolve sua longa resposta em três partes (229c6-230a7):
1. inicialmente, apresenta a explicação racionalista, a dos “sábios” (σοφοί), que
retira a cobertura sobrenatural e mítica da narrativa, atribuindo-lhe causas naturais e
especulativas. Conforme aponta Morgan (2000, p. 62-67), essa abordagem dos mitos era
uma tendência entre os filósofos naturalistas, os sofistas e os demais homens letrados de
Atenas, nos séculos V e IV;
2. na sequência, Sócrates explicita as razões pelas quais, embora considere tais
explicações “elegantes” (χαρίεντα), prefere não se dedicar a elas. De fato, o trabalho seria
ingente: haveria sempre um imenso universo de seres sobrenaturais a serem explicados
(Hipocentauros, Quimeras, Pegasos, Górgonas etc.), o que demandaria dele, um homem
com sabedoria rudimentar (ἀγροίκῳ τινὶ σοφίᾳ), muito tempo livre, quando, na verdade,
ele não o teria (229e4: οὐδαμῶς ἐστι σχολή). Conforme sugere Yunis (2014, p. 93), essa
observação de Sócrates soa como uma ironia: com efeito, Sócrates parece ter
disponibilidade e possuir muito tempo livre para acompanhar Fedro e ouvir o discurso
de Lísias (227b9-10), mas claramente se revela desinteressado em qualquer análise
“científica” dos mitos;
3. finalmente, Sócrates argumenta que a razão pelo desinteresse reside, antes, na
necessidade de atender à inscrição de Delfos, a do “conhece-te a ti mesmo” (229e5). A
alusão à sabedoria délfica, procedimento tipicamente socrático137, revela a preocupação
de Sócrates em relação à natureza da investigação filosófica; aponta para os limites do
humano, em contraste com a sabedoria ilimitada dos deuses, o que acentua o caráter
cético com que Sócrates parece enfrentar o caráter dogmático das explicações
naturalistas em voga. É importante salientar, nesse sentido, como nos lembram os
136
Cf. 229c4: “Mas por Zeus, Sócrates, tu acreditas que esse mito seja verdadeiro?” (Cf. ἀλλ᾽εἰπὲ πρὸς Διὸς,
ὦ Σώκρατες, σὺ τοῦτο τὸ μυθολόγημα πείθῃ ἀληθὲς εἶναι;).
137
A alusão às inscrições délficas aparecem também em vários outros contextos dialógicos (Alcibíades I, 128e;
Laques, 187a; Apologia, 20d; Cármides, 164d-165b). No Protágoras (343a6-b3), Sócrates remonta aos chamados
“sete sábios”, cuja sabedoria, ao estilo espartano, foram grafados em máximas no pátio do Templo de
Delfos:
Todos esses eram admiradores, amantes e discípulos da cultura espartana. Observa-se que a
sabedoria deles consiste em máximas breves, memoráveis, proferidas por cada um deles. Eles as
reuniram e as ofereceram a Apolo como as primícias da sua sabedoria no santuário de Delfos, tendo-
as inscrito, [em máximas] que todos repetem: conhece-te a ti mesmo e nada em excesso.
(Cf. οὗτοι πάντες ζηλωταὶ καὶ ἐρασταὶ καὶ μαθηταὶ ἦσαν τῆς Λακεδαιμονίων παιδείας, καὶ καταμάθοι ἄν
τις αὐτῶν τὴν σοφίαν τοιαύτην οὖσαν, ῥήματα βραχέα ἀξιομνημόνευτα ἑκάστῳ εἰρημένα· οὗτοι καὶ
κοινῇ συνελθόντες ἀπαρχὴν τῆς σοφίας ἀνέθεσαν τῷ Ἀπόλλωνι εἰς τὸν νεὼν τὸν ἐν Δελφοῖς,
γράψαντες ταῦτα ἃ δὴ πάντες ὑμνοῦσιν, <Γνῶθι σαυτόν> καὶ <Μηδὲν ἄγαν>).
99
comentadores (Yunis, 2014, p. 94; Reis, 2016, p. 159), que a máxima délfica não preconiza
o autoconhecimento na dimensão subjetiva e intrapessoal, mas coloca em relevo a
necessidade de reconhecimento dos limites dos mortais (que não devem ultrapassá-los),
antecipando, portanto, também as noções de excesso (ὕβρις) e temperança (σωφροσύνη)
que aparecerão associadas ao amor no segundo discurso de Sócrates (244d4).
Quando Sócrates anuncia, finalmente, que sua preocupação é examinar a si
mesmo e não aquelas coisas (230a3: σκοπῶ οὐ ταῦτα ἀλλ’ ἐμαυτόν), anúncio que,
provisoriamente, encerra a discussão em torno do mito, em prol de uma atividade mais
objetiva, a saber, a audição dos discursos, Platão parece ainda chamar atenção para dois
aspectos. Primeiro, delimita a investigação do filósofo ao âmbito da alma – e não, como
poderia ser, ao campo das explicações naturalistas, domínio de atuação dos “sábios” –,
antecipando, por assim dizer, o tópico fundamental que virá à tona na extensa alegoria
que Sócrates desenvolve no seu segundo discurso: a alma e sua relação com a verdade,
com os deuses e o próprio estatuto da filosofia como uma busca de saberes inteligíveis,
não como um domínio de fatos científicos ou naturais (245c-257c).
Em segundo lugar, o “conhece-te a ti mesmo” parece diminuir a importância de
uma reflexão em torno do mito em si mesmo – reflexão que consistiria em responder à
pergunta que lhe fora formulada: o mito é ou não verdadeiro? Entretanto, essa aparente
indiferença em relação ao mito parece soar como uma provocação: como explicar que,
na sequência, o próprio Sócrates lance mão de tais narrativas em seu argumento, através
da exposição, por exemplo, dos mitos do “canto das cigarras” (258e6-259d8) e o da
“invenção da escrita” (274c1-275b2)?
Como argumenta Reis (2016, p. 158), o comentário só pode ser lido como uma
espécie de preparação para o longo mito que o próprio Sócrates apresentará em sua
“palinódia”. Se por um lado, quanto aos mitos, Sócrates declare, sem dar maior
importância, “estar convencido da opinião comum acerca deles” (230a2: πειθόμενος δὲ
τῷ νομιζομένῳ περὶ αὐτῶν) – o que revela, como indica Yunis (2014, p. 94), conformar-se
às práticas convencionais (e não, necessariamente, subscrever seu valor de verdade),
Platão, por outro lado, o nosso “personagem invisível”, alça o mito a patamar mais
elevado, fazendo com que, como notou Reis:
100
Com essas observações, abre-se um espaço franco para que Fedro (e os leitores)
embarquem nesse difícil caminho dialético que descortina, paradoxalmente, um palco
onde os atores ostentarão de partida suas habilidades retóricas138. Em todo caso, as pistas
já alertam que é preciso estar atento para retirar as máscaras do texto, olhando os
personagens além de seus gestos cênicos: exibindo um sumário do que viria pela frente,
o prólogo revela, sobretudo, que é preciso estar preparado para lidar com os grandes
temas que não escapam quando o objetivo é compreender o estatuto do filósofo e de sua
atividade. O primeiro deles, como se verá, é o tema do amor (ἔρως).
Amor, éros139, é o tópico que domina toda a primeira parte do Fedro. De fato, os três
discursos proferidos – o discurso de autoria de Lísias/Fedro140 (259e-262c) e os dois
subsequentes proferidos por Sócrates (237a-241d; 257b-259d) – são variações desse mesmo
tema. A tese inicial a ser defendida é clara: é preferível um jovem entregar-se a um
amante não apaixonado, a entregar-se a quem ama. O discurso de Lísias se desdobra
138
Se por um lado, de fato, os três discursos que perfazem a seção “retórica” do Fedro possam ser lidos, à
uma primeira vista, como uma paródia da epídeixis oratória (Wesoly, 1992, p. 225), o paradoxo que isso
instaura, para um diálogo no qual a dialética emerge como um de seus pilares é apenas aparente. Por trás
dos artifícios oratórios dos discursos proferidos (especialmente o de Lísias e o primeiro de Sócrates),
mantém-se o interesse dialético em confrontá-los pelo discurso. Não é casual que, após cada um deles, haja
interlúdios críticos, dos quais decorrem os pontos fundamentais que alçam a discussão à segunda parte
“dialética” da obra. Além disso, várias características estéticas e formais dos discursos de Sócrates (a cabeça
coberta/descoberta; o enquadramento cênico; o uso de imagens e mito etc.) já também matizam seu caráter
meramente “técnico”, “virtuosístico”, em prol de uma abordagem psicagógica e dialética. Voltaremos a
essas questões na sequência.
139
Os gregos conheceram diferentes palavras para o que, em geral, conceptualizamos através da palavra
“amor”: agápe, philía e éros. O primeiro dos termos, conforme nos informam Bailly et al. (2000 [1963]),
designa o amor fraternal e divino, sua ocorrência é atestada sobretudo nos textos cristãos; o segundo
(φιλία), designa sobretudo “amizade”, “afeição”, sem exprimir, contudo, matiz sexual, sendo atestada em
vários autores clássicos, inclusive em Platão; o terceiro (ἔρως), é o “amor sensual”, “paixão”, “desejo”. É
importante também frisar que érōs designa um princípio cosmogônico, uma divindade. Segundo Howatson
(2005), Éros não figura em Homero, mas é representado por Hesíodo e pelos poetas líricos (Safo,
Anacreonte). No contexto da poesia, é um companheiro, frequentemente filho, de Afrodite, personificando
tanto o desejo fisico, implacável e imprevisível, quanto também o amor inspirado e belo. A acepção mítica
de Éros, em sua ambiguidade de sentidos, é, a nosso ver, significativa para o contexto dialógico do Fedro,
permitindo que Sócrates saliente tanto sua dimensão irracional e corporal (o primeiro discurso), quanto
sua dimensão divina e racional (o segundo), conforme veremos à frente.
140
Deu margem a muita discussão avaliar se o discurso que Platão estampa no seu diálogo seria a
reprodução de um discurso de Lísias, uma paródia ou uma atribuição fictícia. Sem uma palavra final sobre
o assunto, Reis (2016) considera que se trata da representação de um provável lógos erotikós de Lísias, uma
oportunidade única que Platão teria aproveitado para discorrer sobre sua concepção de filosofia.
Analisando essa questão, Yunis (2014, p. 98) também considera que Lísias não pode ser descartado
enquanto autor, quando se consideram os traços estilísticos. Contudo, segundo o comentador, parece que
se trata de uma imitação, arte na qual Platão era mestre. O efeito de autenticidade é criado através do
artifício que Platão se vale de apresentar o discurso não reportado, isto é, ele é acessado a partir de um texto
“escrito”, em posse de Fedro. Esse elemento é essencial para que se instaure, na sequência, uma discussão
sobre o estatuto da retórica e da escrita.
101
como o cortejo amoroso de um homem maduro a um jovem, tentando convencê-lo de
que seria mais vantajoso ao jovem oferecer favores sexuais a ele, que alega ser um homem
não-apaixonado, do que a alguém tomado pelo amor erótico141.
Comenta Hackforth (2001 [1972]) que o discurso limita-se a aduzir uma série de
considerações de prudência ao jovem. Em um cálculo de vantagens e desvantagens, a
amizade com alguém não apaixonado traria como benefícios: uma maior garantia e
segurança para o jovem (231a2-6); uma melhor relação custo-benefício (já que o jovem
envidaria menos esforço para obtenção de maiores prazeres – 231a6-b7); uma maior
estabilidade (isto é, ao recobrar a razão, o apaixonado pode se arrepender de seus atos –
231b7-d6); uma maior possibilidade de aprimoramento moral (visto que, diferente dos
amantes, o não-apaixonado não valoriza apenas o corpo do amado – 233a5-c6). Em suma,
apesar de as pessoas invejarem os amantes, o amor seria, assim, uma espécie de doença
do juízo (231d2-3). Em geral, os amantes se arrependem do bem devotado ao amado
quando deixam de amá-lo e, enquanto estão amando, são ciosos, inseguros e possessivos,
afastando-o de seus amigos (232d1-2). Além disso, a companhia de um homem não
apaixonado não seria digna de censura ou vexame público (232b1-5).
Os comentários de Sócrates na sequência da leitura são bastante irônicos. Sem a
pretensão de analisar o contexto e o efeito dessas ironias, que certamente mereceriam
um capítulo à parte142, é útil ao menos destacar que, enquanto Sócrates afirma ter
acompanhado o amigo nessa espécie de “delírio báquico” (234d5: συνεβάκχευσα μετὰ
141
O tema do amor de orientação homossexual era integrado às práticas culturais da Grécia Antiga, como
se pode atestar na vasta representação em artefatos, obras literárias e filosóficas (inclusive em várias
passagens do corpus Platonicum). No Fedro, a orientação do amor não é problematizada (Platão parece aqui
passar por isso sem qualquer distinção). O tema, entretanto, causou desconforto em alguns críticos
modernos, de modo que é possível destacar algumas formulações francamente contaminadas com os
preconceitos de uma moral bastante extemporânea ao contexto grego. É o caso, por exemplo, da nota do
tradutor brasileiro Jorge Paleikat (1954, p. 198): “Causa-nos estranheza a importância e escandaliza-nos a
displicência com que os gregos tratam do amor entre indivíduos do mesmo sexo. A pederastia na Grécia
não escandalizava, ao que parece. Não era, tampouco, fomentada... (cf. o próprio texto). Esse desvio
lamentável que a nossa natureza repudia, parece ter sido um fruto da vida nômade dos dórias. Foi
sobretudo a educação espartana, a educação de caserna, como referem os historiadores, que deu origem a
que esse asqueroso desvio da natureza tomasse raízes na Grécia” (grifos nossos). Como a vantagem é
sempre dos pósteros, como já alertava Sêneca (Ep. mor. 79.06), os quais, encontrando as palavras prontas,
podem reconstruí-las de outra maneira, como se fossem públicas, o que esse comentário demonstra, em
que pese sua datação – década de 50 – é como uma interpretação moderna busca suavizar ou domesticar
um conceito antigo, adequando-o a nossos precários padrões morais. Uma reflexão mais fina e consistente
sobre a homossexualidade no mundo antigo pode ser referida em Dover (2007).
142
Reis (2016, p. 165) observa que: “nota-se a ironia de Sócrates de várias maneiras. Primeiro, em sua
humildade exagerada – alega insignificância (oudenias - 235a1), apela ao famoso “só sei que nada sei”,
dizendo-se consciente da própria ignorância (suneidôs emautôi amathian - c8-9) e reconhece que é lerdo e
por isso mesmo esquecido (hypo nôtheias kai epilelêsmai - d2), e, depois, no tom de admiração de Fedro, diz
que o discurso de Lísias é, de fato, inspirador (daimoniôs - 234d1), confessa ter sido afetado (epathon - d2) e
ainda sentir-se aturdido (ecplagênai - d1), fazendo lembrar atitude idêntica logo após ouvir Agaton, em O
Banquete”.
102
σοῦ), tendo caracterizado o discurso de Lísias como “divino” (234d1: δαιμονίως), Sócrates
ainda enaltece sua elocução, seu estilo claro, conciso e preciso (234e7-8)143. Entretanto,
logo na sequência, Sócrates o qualifica como repetitivo e raso, por recapitular o mesmo
argumento duas ou três vezes (235a3-5), refutando, assim, a opinião inicial de Fedro de
que ninguém seria capaz de rivalizar com Lísias, falando mais e melhor144, a menos que o
próprio Sócrates o fizesse145.
Parece-nos que os comentários que Sócrates faz do discurso de Lísias já se
revelam, de certo modo, como uma prática dialética em sentido amplo, um primeiro
exame do que é dito, e o faz por meio de uma divisão, haja vista que exploram,
dicotomicamente, as qualidades e defeitos do discurso146. O intuito parece não ser o de
depreciar a eloquência de Lísias, ou de apenas refutar a opinião que Fedro possui acerca
desse discurso, mas, mediante um exame criterioso de sua forma e conteúdo, dividi-lo
para contrapor os seus elementos válidos e inválidos. Assim, os comentários de Sócrates
são tampouco antilógicos, mas podem ser aqui também tomados como dialéticos nos
termos da República147.
Logo na sequência, podemos vislumbrar um procedimento semelhante no
primeiro discurso de Sócrates (237a-241d). Defendendo a mesma tese que Lísias, Sócrates
143
Sócrates qualifica o emprego de cada um dos nomes no discurso de Lísias como “claro” (σαφόν), conciso
(στρογγύλον) e preciso (ἀκριβές). De acordo com Yunis (2014, p. 106), embora seja possível reconhecer
alguma ironia no comentário, é preciso também observar que tais qualidades eram associadas ao estilo de
Lísias por autores coetâneos (como Alcidamante, Soph. 16, 25 e Isócrates, Ep. 5.4). Críticos tardios, como
Dionísio de Halicarnasso também reconheceram as mesmas virtudes no estilo lisiânico (Dionísio de
Halicarnasso, Lys. 4,6,13).
144
Sócrates aponta aqui, sem ter a memória precisa, que muitos sábios e poetas já falaram ou escreveram
de forma mais completa e melhor sobre o tema, entre os quais Safo e Anacreonte (235b5-d1). É curioso notar
que Sócrates evoca o argumento dos “escritos antigos” a favor do seu ponto, embora revele ter-se esquecido
do que leu ou ouviu. Essa passagem parece-nos antecipar a estreita relação entre memória e escrita que
aparecerá mais à frente do diálogo, sobre a qual teceremos mais comentários na Parte β´ da tese.
145
O desafio a Sócrates parece se apresentar como uma resposta à ofensa que Fedro entende que a crítica
de seu amigo significa para Lísias, fato que não passa despercebido a Sócrates: Cf. 236b5-6: SÓCRATES: Estás
seriamente ofendido, Fedro, porque brincando contigo critiquei teu favorito (Cf. {ΣΩ.} Ἐσπούδακας, ὦ
Φαῖδρε, ὅτι σου τῶν παιδικῶν ἐπελαβόμην ἐρεσχηλῶν σε).
146
Conforme veremos adiante, o método tal como será definido no Fedro, como divisão (διαίρεσις) e reunião
(συναγωγή) não se limita meramente a um exercício de diferenciação no discurso (como, à primeira vista,
parece ser o caso, nesse primeiro momento), mas tampouco pode ser entendido estritamente uma proposta
de rigoroso mapeamento ontológico (expectativa que se poderia entrever, por exemplo, na crítica
aristotélica à diaíresis de Platão, cf. Cherniss, 1980). Assim, a operação dialética da divisão se trata, em Platão,
de “procedimento heurístico de busca e exploração, que, mesmo que seja feito tendo-se em vista
articulações reais, nem sempre alcança coisas reais ou vai além dos nomes” (Marques, 2006, p. 70)
147
Cf. R. 5.454a4-9: – Porque muitos me parecem sucumbir a ela, mesmo sem querer, e achar que não estão
rivalizando, mas dialogando, porque não conseguem examinar o que está sendo dito, dividindo-o por
espécies, mas prendendo-se ao nome em si, parecem perseguir as contradições do que foi dito, usando
entre si da contenda, não da discussão.
(Cf.Ὅτι, εἶπον, δοκοῦσί μοι εἰς αὐτὴν καὶ ἄκοντες πολλοὶ ἐμπίπτειν καὶ οἴεσθαι οὐκ ἐρίζειν ἀλλὰ
διαλέγεσθαι, διὰ τὸ μὴ δύνασθαι κατ' εἴδη διαιρούμενοι τὸ λεγόμενον ἐπισκοπεῖν, ἀλλὰ κατ' αὐτὸ τὸ
ὄνομα διώκειν τοῦ λεχθέντος τὴν ἐναντίωσιν, ἔριδι, οὐ διαλέκτῳ πρὸς ἀλλήλους χρώμενοι.)
103
retoma parcialmente os seus argumentos. Ao deixar de lado as vantagens que Lísias
elencava como resultantes de uma hipotética união desprovida de éros, e retomar
somente as desvantagens atribuídas a uma relação erótica, Sócrates, de certo modo,
também opera uma divisão, contrapondo dois tipos de argumentos, o que se manifesta
na indagação, talvez um tanto irônica, que Sócrates faz a respeito dos argumentos
apresentados no discurso de Lísias: quem poderia deixar de elogiar o bom senso (τὸ
φρόνιμον) deste e condenar a insensatez (τὸ ἄφρον) daquele?148
Em linhas bastante gerais, a réplica de Sócrates se apresenta como a narrativa de
um mito (μῦθος), dentro do qual se reporta o discurso de um amante dissimulado (porém
apaixonado) que, desejando persuadir um jovem a se entregar a ele, alegava não estar
tomado de amor e que, por isso, mantinha o pleno domínio da razão que o tornava o
partido mais vantajoso dentre os vários pretendentes do belo jovem. O discurso é
preambulado por uma invocação às musas, no qual se explicita que a finalidade do
discurso seria fazer Lísias, que parecia ser sábio, o parecer ainda mais (237b1: δοκῶν
τούτῳ σοφὸς εἶναι, νῦν ἔτι μᾶλλον δόξῃ). O argumento do discurso do amante consiste,
então, em ponderar sobre as desvantagens que decorrem do amor. Para isso, há uma
definição prévia, que é construída com base nos seguintes argumentos de Sócrates:
1. há dois princípios que governam e motivam o ser humano: um desejo inato por
prazeres (ἔμφυτος…ἐπιθυμία ἡδονῶν) e uma opinião adquirida que aspira ao melhor
(ἐπίκτητος δόξα ἐφιεμένη τοῦ ἀρίστου);
2. tais princípios ora convivem em harmonia (ὁμονοεῖτον), ora estão em disputa
(στασιάζετον) pela sua preponderância sobre as ações humanas;
3. quando predomina a opinião racional (λόγος) que guia os homens em direção
ao melhor, temos então a temperança (σωφροσύνη);
4. quando, por outro lado, há o domínio do desejo, que arrasta os homens
irracionalmente (ἀλόγως) para os prazeres, temos a desmedida (ὕβρις);
5. a desmedida tem vários nomes, pois é múltipla, e a sua parte mais notável
148
Cf. 235e2-236a2:
SÓC.: vales ouro, estimadíssimo Fedro, se supões me dizer que Lísias está totalmente equivocado e
que sou de fato capaz de proferir coisas diferentes de todas essas. Creio que tal acusação nem o mais
reles escritor haveria de sofrer. Para começar por aquilo de que trata o discurso: ao dizer que é
preciso agraciar ao que não ama antes que aquele que ama, quem supões tu que deixaria de elogiar
o bom senso de um e condenar a insensatez do outro – tópicos por certo necessários – e teria ainda
outros a dizer?
(Cf. {ΣΩ.} Φίλτατος εἶ καὶ ὡς ἀληθῶς χρυσοῦς, ὦ Φαῖδρε, εἴ με οἴει λέγειν ὡς Λυσίας τοῦ παντὸς
ἡμάρτηκεν, καὶ οἷόν τε δὴ παρὰ πάντα ταῦτα ἄλλα εἰπεῖν· τοῦτο δὲ οἶμαι οὐδ'ἂν τὸν φαυλότατον
παθεῖν συγγραφέα. αὐτίκα περὶ οὗ ὁ λόγος, τίνα οἴει λέγοντα ὡς χρὴ μὴ ἐρῶντι μᾶλλον ἢ ἐρῶντι
χαρίζεσθαι, παρέντα τοῦ μὲν τὸ φρόνιμον ἐγκωμιάζειν, τοῦ δὲ τὸ ἄφρον ψέγειν, ἀναγκαῖα γοῦν
ὄντα, εἶτ' ἄλλ' ἄττα ἕξειν λέγειν;).
104
recebe o nome de amor, que não é belo nem digno de ser adquirido.
Assim, éros pode ser definido como um desejo desprovido de razão (238b8:
ἐπιθυμία ἄνευ λόγου), dominando uma opinião que se move em direção ao certo (238b8:
δόξα ἐπὶ τὸ ὀρθὸν ὁρμώσα)149.
É digno de nota que, embora Sócrates tenha identificado seu discurso como uma
narrativa mítica, essa prévia definição do objeto decorre de uma exigência filosófica
tipicamente socrática: muitas investigações fracassam porque as pessoas não sabem “o
que é cada coisa realmente” (237c1-2: οὐκ ἴσασι τὴν οὐσίαν ἑκάστου), e, portanto, não estão
de acordo desde o início da investigação (237c3-4: ὐ διομολογοῦνται ἐν ἀρχῇ τῆς σκέψεως).
Assim, Sócrates acaba reconfigurando o discurso como uma “investigação” (σκέψις),
buscando, desde o início, uma concordância (ὁμολογία) entre os dialogantes. Tal é o que
ele, de fato, obtém logo na sequência: uma vez formulada a definição de amor, o discurso
é interrompido para que Fedro possa expressar seu consentimento quanto a essa primeira
postulação: “Dizes absolutamente a verdade” (238d4: Ἀληθέστατα λέγεις).
Ora, não parece que temos aqui uma réplica daquele método de hipóteses sobre o
qual discorremos no último capítulo? Com efeito, aparentemente temos uma investigação
que parte de hipóteses (os argumentos citados acima) e chega a uma definição que obtém
a concordância entre os dialogantes; tal definição é novamente admitida como uma
hipótese e dela se extraem consequências a serem avaliadas150. Contudo, não
afirmaríamos que o primeiro discurso de Sócrates consista simplesmente na aplicação do
149
No discurso de Lísias e no primeiro discurso de Sócrates, põe-se ênfase na dimensão irracional de éros.
Contudo, é importante assinalar que, na tradição mítica, a divindade é amiúde representada por uma
ambiguidade de caráter. Na Teogonia, de Hesíodo, talvez a mais antiga obra da literatura grega que
representa Éros, é possível reconhecer essas duas dimensões da personalidade de Éros: por um lado, sendo
o mais belo entre os deuses imortais (Th. 120: Ἔρος, ὃς κάλλιστος ἐν ἀθανάτοισι θεοῖσι), por outro,
transtornando o juízo e o pensamento prudente no coração de todos os deuses e homens (Th. 121-122:
πάντων τε θεῶν πάντων τ' ἀνθρώπων δάμναται ἐν στήθεσσι νόον καὶ ἐπίφρονα βουλήν). Em Safo, a
contradição de Éros é expressa no “doce-amargo” (fr. 130). O seu sentido arrebatador, invencível, aparece,
por sua vez, no fragmento 47, onde é qualificado como “uma tempestade”. Esse último sentido, irracional,
arrebatador da razão e da prudência, parece corresponder ao conceito de amor que o discurso de Lísias e a
primeira réplica de Sócrates põem em evidência. Contudo, é também característica dessa divindade o papel
unificador e coordenador dos elementos do cosmos, uma força, portanto, construtiva e sábia, que
constribui para a passagem do caos para o cosmos (cf. Th.). Talvez seja essa a segunda potência de Éros que
se deve considerar na palinódia de Sócrates e que corresponderia, finalmente, ao conceito platônico. Essa
divisão antagônica é também expressa no Banquete (180a-c). Outras referências literárias a Éros, conferir
Cancik & Schneider (2004).
150
Com efeito, todo o restante do texto consiste em se apresentarem as consequências que se depreendem
dessa primeira hipótese. Se éros é um desejo irracional, então o amante, alguém escravizado pelo prazer,
não medirá esforços para satisfazê-lo, buscando realizar todos os expedientes para manter o amado em sua
posse, o amante seria, então, alguém que tem satisfação nos próprios defeitos (239a2-6), possuindo inveja do
amado (239a7), querendo privá-lo de seus bens, de seus amigos e até de seus familiares (239a7-b6; 239d8-
240a8). Além disso, é desagradável ao amado, visto preferir sempre alguém muito mais novo (240c1-2) e,
quando se reconhece livre da paixão, o apaixonado recobra a lucidez, deixa o amado desiludido e
abandonado (240e8-241b6).
105
método hipotético (tal como testemunhamos no Mênon, no Eutidemo e também
parcialmente na República, conforme avaliamos no último capítulo); como veremos à
frente, nele se incluem elementos de outros gêneros, de modo que a composição, em sua
totalidade, parece configurar-se como uma espécie de pastiche, um compósito híbrido,
cuja interpretação é bastante desafiadora. Assim sendo, como compreendê-lo no Fedro? É
possível concebê-lo como parte de um movimento de determinação da dialética nesse
diálogo? Tentaremos responder a essas perguntas seguindo dois caminhos: 1. a via aberta
pelo argumento de M. Wesoly (1992), que considera o primeiro discurso de Sócrates como
uma paródia de um texto sofístico; 2. considerando-o como produto de uma elaboração
ainda mais sofisticada, que traz elementos de uma investigação (σκέψις) e de uma
brincadeira (παιδιά). Vejamos.
M. Wesoly (1992, p. 223) considera que o primeiro discurso de Sócrates é uma
paródia do estilo de Górgias151, e que, portanto, ecoa o estilo grandiloquente e entusiástico
atribuído ao célebre sofista. Além disso, observa que o discurso de Sócrates não altera
substancialmente a orientação retórica daquele primeiro discurso. Assim, tal discurso
mantém a tese de que éros seja uma espécie de privação da racionalidade, fato que só pode
colocar sob suspeição a nobreza e a vantagem de todos os atos que dele decorrem em favor
do amado. Por esse motivo, Sócrates estaria também aqui fazendo uma paródia sofística
– o mérito do seu discurso não residiria, por assim dizer, no conteúdo de sua proposição,
mas tão somente na melhor, mais clara e mais persuasiva disposição dos argumentos.
Aliás, isso era o que se parecia insinuar na observação que o próprio Sócrates fizera
quanto ao discurso de Lísias, quando lhe enaltecia o argumento e chamava atenção para
a importância da disposição (διάθεσις – 235e3-236a6)152.
A favor dessa interpretação poderíamos aludir ao fato de que Sócrates tenha
proferido seu discurso de “cabeça coberta” (237a4: ἐγκαλυψάμενος). A razão alegada para
esse estranho procedimento seria chegar o mais breve possível ao final do discurso
(237a4-5: τάχιστα διαδράμω τὸν λόγον), sem se embaraçar pela vergonha ou desonra
(237a5: ὑπ᾽αἰσχύνης διαπορῶμαι). Por que Sócrates ocultaria seu rosto, a não ser para,
como os atores o faziam, participar de uma espécie de encenação, encarnando um
151
Conforme destaca o comentador (Wesoly, 1992, p. 233), depreende-se também uma referência a Górgias
em 235d e 236b, onde se alude à construção de estátuas de ouro em Delfos e Olímpia, uma possível alusão
a eventos que cercam a vida daquele sofista. Aristóteles (Rh. 1408b17-20) também reconhece o intertexto
entre Górgias e Platão nesse passo, destacando o estilo entusiástico como tipicamente gorgiano.
152
Nesse passo, vale a pena observar que Sócrates faz uma típica avaliação do discurso de Lísias, do ponto
de vista estritamente técnico e retórico, ao enaltecer o argumento que sustentava a tese daquele discurso
(o amor desequilibrado e irracional como danoso ao amado) e verificar a necessidade de se avaliar a forma,
isto é a “disposição dos argumentos” (διάθεσις) e não a “invenção” (εὕρεσις). Tanto “invenção”, como
“disposição” representa vocabulário técnico da retórica antiga.
106
personagem com cujo discurso ele, o ator, não se poderia necessariamente comprometer?
De resto, que desonra seria maior para Sócrates, senão encarnar a pele daqueles cujas
práticas e métodos sempre desafiou, e cujas incoerências sempre apontou, os sofistas?
Com esse expediente, Sócrates estaria, portanto, assumindo uma máscara, simulando (e
dissimulando) um ato retórico e sofístico.
Assim, se o primeiro discurso de Sócrates pode ser entendido como uma espécie
de encenação, e se tal performance se realiza como uma dissimulação – expediente de que
também o amante lança mão, movido por um desejo irracional e irrefreável –, então
parece haver certa correspondência entre a visão de amor nele representada (ἔρως) e o
próprio discurso (λόγος). Desse modo, assim como a dimensão irracional e arrebatadora
de éros consagrada nesse discurso seria responsável pela desonra dos amantes, também
esse lógos representaria o sequestro da razão socrática, o que representaria uma desonra
(αἰσχύνη), motivo pelo qual Sócrates – o melhor, o mais sábio e o mais justo de Atenas
(Fédon, 118a16-17) – apenas se atrevesse a pronunciá-lo, se o fizesse, ao menos, de cabeça
coberta.
Mas haveria também uma outra explicação. Para isso, precisaríamos considerar
que o primeiro discurso de Sócrates não se limita a ser uma paródia sofística, tal como
propõe M. Wesoly, mas representa, ao mesmo tempo, um simulacro de investigação
(σκέψις) e uma brincadeira de Sócrates (παιδιά), no qual entram elementos próprios do
gênero dialógico, ditirâmbico e épico. Conforme assinalamos acima, a argumentação de
Sócrates atendeu a alguns requisitos metodológicos que a poderiam aproximar de uma
pesquisa filosófica, tais como a exigência de uma definição, a proposição de hipóteses
para elaborá-la, a obtenção de assentimento do interlocutor e a dedução de
consequências dessa primeira definição. Contudo, ao longo desse processo, não houve
propriamente um exame das hipóteses colocadas preliminarmente, tampouco uma
avaliação das consequências que poderiam decorrer da conclusão inicial; além disso,
embora o discurso fosse interrompido por breve diálogo, os elementos dialógicos
presentes foram mínimos e a conclusão final também não admitiu espaço para a
refutação. Portanto, não se tratou propriamente de uma investigação com base em
hipóteses, senão de uma espécie de simulacro de investigação.
Além disso, tal proposta inclui vários elementos que nos permitem caracterizá-la
como uma espécie de jogo literário, uma brincadeira ou um gracejo que Sócrates teria
feito a partir do discurso proferido por Fedro, talvez motivado pela ingênua inclinação
que o amigo tinha para acreditar nos discursos. O fino humor, a ironia e alguma
ridicularização levaria Fedro a uma espécie de aporia diante dos lógoi, perplexidade que
107
abriria campo para uma mais séria e aprofundada reflexão subsequente. Com efeito, o
discurso se apresentou como uma dupla dissimulação – uma perpetrada pelo próprio
Sócrates, que a enunciou como um mito, mas a desenvolveu de forma diversa; outra,
praticada pelo próprio personagem a quem se atribuiu tal discurso, um amante que fingia
não estar apaixonado para lograr benefícios eróticos de um jovem. O discurso constrói,
portanto, na sua forma e no seu conteúdo, uma espécie de ilusão, um efeito do fluxo
verbal (εὔροια), constitui-se, portanto, como um ato dramático, uma ficção, uma imagem
ou, ainda, um falseamento da realidade (por exemplo, de Éros, como uma divindade) –
características que, no segundo interlúdio crítico (241d-243e), farão o daímon socrático
manifestar-se (242b8-d2), demandando uma reparação daquela falta (ἁμαρτία).
A performance do discurso também apresenta elementos que nos permitem
caracterizá-lo como a prática da ironia de Sócrates, envolta em um sutil humor: a
começar pelo tom elevado que Sócrates lhe pretende dar, iniciando-se com a efetivação
do gesto tradicional e poético de invocação às musas153. A invocação de divindades
oferece um enquadre épico para o discurso, o que parece significar um tanto de exagero
(e, por isso, talvez, de desmedida?) e presunção: a grandiloquência seria causada por uma
paixão divina (238c6: θεῖον πάθος), por um arrebatamento das ninfas, que o teria levado
a produzir ditirambos (238c9-d3), ou, ainda mais que isso, a proferir palavras épicas (241e1:
ἔπη φθέγγομαι).
Desejaria Sócrates, em seu primeiro discurso, rivalizar com Homero e Hesíodo? A
favor disso, poderíamos citar a última frase proferida por Sócrates, que se apresenta como
um perfeito verso heroico, um hexâmetro dactílico, nele inscrevendo um símile – não
somente uma figura de construção típica do texto de Homero, quanto mesmo, de fato,
um de seus lugares comuns: “tal como lobos têm amor por cordeiros, assim também
amantes tem amor por meninos” (cf. 241d ὡς λύκοι ἄρνας ἀγαπῶσιν, ὣς παῖδα φιλοῦσιν
ἐρασταί.)154. Por outro lado, o trocadilho etimológico que Sócrates apresenta na
invocação entre o epíteto das musas “de cristalina voz” (λίγειαι) e o povo Lígure (Λιγύων)
acaba rebaixando o tom. Com efeito, como comenta Yunis (2014, p. 112), à época de Platão,
os lígures representavam um povo distante e exótico que habitava o noroeste da Itália,
153
Esse gesto pode encontrar paralelo, por exemplo, na tradição épica, como testemunhamos, por exemplo,
em Homero (Il. 1.484) e em Hesíodo (Th. 104-115).
154
Em um exercício de tradução poética, João Victor de Leite Melo, caro ex-aluno de Clássicas da UFJF, a
quem agradeço, mostrou como o símile presente no texto de Platão poderia ser vertido poeticamente,
resultando em um dístico de versos alexandrinos:
Tal como um lobo tem amor pelos cordeiros,
Assim também amantes amam os meninos.
108
sem qualquer conexão reconhecida com as musas ou a música. A associação mítica desse
povo com as musas parece ter sido elaboração posterior, tendo como fonte
provavelemente essa passagem do Fedro – como observamos em comentários mais
tardios, como o de Hérmias, do século V d.C155.
Além disso, o fato de Socrates declarar “produzir ditirambos” como consequência
de um arrebatamento (238c9-d3) soaria também ambígua e irônica: se, por um lado, os
ditirambos já fossem reconhecidos como forma de um canto coral em honra a Dioniso,
tendo sido produzido por Píndaro, Simônides e Baquílides, poetas do século VI a.C. –
uma forma poética, portanto, aparentemente adequada a uma atmosfera de inspiração
divina –; por outro lado, na segunda metade do século V a.C., esse gênero começara a
declinar na cultura grega, assumindo um caráter artificial e rebuscado, tendo como
representantes Melanípides de Melos e Filóxeno de Citera, poetas contemporâneos de
Sócrates (Zimmermann, 1992; Howatson, 2005, p. 194), sendo objeto de riso na comédia,
por exemplo, por Aristófanes (A paz, 829). Desse modo, as observações de Sócrates
poderiam muito bem ser vistas como uma ironia, ainda que não imediatamente
percebida por Fedro.
Há também na passagem outros elementos que não permitem admiti-la como
uma peça propriamente de tom sério e elevado, tal como o artificialismo do uso de
expressões, como em 237a9, onde o imperativo que se dirige às musas na invocação –
“tomai-me convosco” (ξύμ μοι λάβεσθε) – exemplifica um arcaísmo que destoa do
restante do texto – o emprego de ξ e não σ – e também apresenta uma timese do verbo
συλλαμβάνω, figura de linguagem incompatível com a prosa de Platão, que é também
causa da mudança no último segmento fônico da preposição συν-, que muda para συμ-
por eufonia. Em suma, como comenta Brisson (2004, p. 201), o efeito irônico de toda essa
passagem também não teria passado despercebido por Aristóteles, que sobre ela
comentou na Retórica (3.7.1408b12 et seq.). Por todas essas razões, também se explicaria que
Sócrates tivesse, desde o início, preservado a sua face, ao cobri-la antes de declamar tal
discurso.
Portanto, se, mais que uma mera paródia, compreendemos o primeiro discurso de
Sócrates como um compósito literário híbrido, um ato dramático que põe em cena, ao
mesmo tempo, simulacros de mito épico e de investigação filosófica, o discurso
subsequente, que o próprio Sócrates chamaria de palinódia, em alusão ao discurso de
retratação de Estesícoro (243e9-257b6), e se apresenta como um ato de “purificação” da
155
Hérmias, In Phdr. 48.27-49.2.
109
impiedade causada pelo primeiro, sobreviria como uma espécie de correção,
contraposição ou complementação das teses até aqui expressas?
As indicações para ler esse segundo discurso como uma reparação, que retifica as
teses do primeiro, são textuais. Sócrates anuncia ter ouvido uma voz profética da sua
alma – um daímon –, que lhe alertara quanto à impiedade do seu primeiro discurso, o qual
ele passa a qualificar como impiedoso e terrível, visto que, pretendendo grangear honra
entre os mortais, gerara a desonra de um deus (242b7-d10). Na sequência, ele menciona o
caso de Estesícoro, que compôs uma palinódia, um discurso de retratação pelas calúnias
proferidas contra Helena, que lhe custaram a visão (243a2-10). Assim, o proferimento
daquele discurso funcionava como uma espécie de “purificação” (καθαρμός), visando a
produzir uma antítese daquele de injúria aos deuses: “receando o próprio Éros, com água
doce de um discurso desejo lavar este – salgado – que acabas de ouvir” (243d4-5: ἐπιθυμῶ
ποτίμῳ λόγῳ οἷον ἁλμυρὰν ἀκοὴν ἀποκλύσασθαι)156. Conforme comenta Kahn (2013), a
justaposição dos dois discursos antitéticos de Sócrates materializa novamente o
procedimento socrático de divisão – mostram-se visões opostas de éros, que sugerem, por
sua vez, concepções opostas de lógos.
Conforme vimos, no primeiro discurso, todos os argumentos sustentaram-se a
partir da definição de éros como o resultado de uma desmedida (ὑβρις), decorrente do
domínio do desejo (ἐπιθυμία), uma força inata e irracional, sobre a opinião que conduz
ao melhor (δόξα ἐφιεμένη τοῦ ἀρίστου), uma força adquirida e dirigida pela razão
humana. A consequência, então, era que uma vida governada por éros representasse uma
espécie de loucura (μανία); amor e loucura, então, se opunham a temperança e
inteligência (241a3-4 νοῦν καὶ σωφροσύνην ἀντ’ ἔρωτος καὶ μανίας). Para se contrapor a
essa tese, no segundo discurso, Sócrates precisa estabelecer uma relação diversa entre
loucura (μανία), temperança (σωφροσύνη) e amor (ἔρως), e o começa a fazer através da
proposição de um outro gênero de loucura. Se os apaixonados têm uma espécie de
loucura, coisas boas derivam dela, sendo ela semelhante à das sibilas e à das musas,
causando a cura em ritos iniciáticos e prestando belos serviços à Grécia (244a5-245a8).
Assim, haveria uma espécie de loucura divina, que, conforme testemunham os antigos157,
é ainda mais bela que a temperança dos homens (244d3-5).
156
Calvo (1992), sustenta, contudo, interpretação alternativa para a passagem, tentando mostrar que o
primeiro discurso de Sócrates era mais que uma variação formal do discurso de Lísias. Um aspecto que
sustenta o ponto do comentador é o fato de que a voz que Sócrates ouve, que lhe deveria previnir de agir
de forma equivocada (242c), apenas aparece quando ele já produziu o discurso. Em nossa análise, contudo,
mantemos a interpretação mais consagrada e usual (Hackforth, 2001 [1972]; Rowe, 1986; Reis, 2016).
157
O argumento emerge após a menção a varias práticas antigas: advinhação do futuro, observação dos
pássaros para obter compreensão, profecias relacionadas a doenças, guerras e maldições que recaíram
110
Assim, enquanto o primeiro discurso de Sócrates endereça o tema do amor (e da
loucura), tendo como ponto de partida a singularidade da experiência humana; a
palinódia socrática, como se vê já no seu exórdio, propõe que seu interlocutor olhe para
mais além, para o patamar divino, somente a partir do qual se podem reformular
completamente a noções de amor e loucura. Contudo, as formas de existência, de ação e
de compreensão dos deuses escapam aos parcos limites da condição humana, assim
sendo, como se dirigir a questões de natureza divina? Platão coloca-nos, novamente,
diante de outro tipo de objeto, a requerer, por isso, modo diverso de enfrentamento, e
que, conforme veremos à frente, logo culmina na proposição de um novo método, a
dialética, mas que exige de antemão a reflexão sobre os princípios que o sustentam – a
começar pela alma (ψυχή)158.
Inicia-se, então, uma extensa passagem (245c3-253c2), na qual se desenvolve uma
psicologia – onde se busca refletir sobre a natureza da psykhé, suas funções e suas afecções
– e sua relação com uma teoria geral do conhecimento, a qual, conforme voltaremos à
frente, mantém estreitas relações com a epistemologia da República, nos termos que
examinamos no capítulo 1. Primeiramente, desenvolve-se um argumento que consiste
em defender a imortalidade da alma: sendo ela móvel em si mesma, não é suscetível à
geração e à corrupção (245c4-246a2)159. Na sequência, compara-se a alma à imagem de
uma biga alada, através de uma longa narrativa mítica (246a3-249d3). Enquanto a alma
dos deuses é semelhante a uma biga cujos cavalos e condutor são sempre bons, possuindo
boa origem (246a7-8), as almas dos mortais são misturadas (μέμεικται), o que torna difícil
sobre famílias. Como observa Yunis (2014, p. 133), a passagem inteira sugere o imaginário arcaico grego,
com especial relação com o espírito trágico da poesia, embora não seja, nesse passo, evocada nenhuma
peça em particular.
158
Notamos aqui que o diálogo se desenvolve de modo análogo ao que comentamos acerca da República, no
capítulo anterior. Assim como naquele diálogo, em que uma prévia reflexão conduziu os interlocutores a
uma espécie de aporia, exigindo que ponderassem sobre um novo e mais longo caminho, mais adequado
aos novos objetos – como a psykhé – também aqui no Fedro temos um movimento análogo, a palinódia
representa, portanto, não somente um ponto de inflexão teórica, mas também metodológica em relação à
discussão precedente.
159
De acordo com Reis (2016, p. 190) este é o sexto argumento a respeito da imortalidade da alma em Platão,
dos outros cinco, quatro se apresentam no Fédon e um na República X. A comentadora assinala o paralelo
entre o argumento expresso no Fedro e a prova final apresentada no Fédon (104e-106b), segundo a qual
sendo a alma (ψυχή) associada à vida, ela jamais poderia ser oposto dela mesma, isto é, da morte. No Fedro,
entretanto, uma outra qualidade lhe é associada, para sustentar seu estatuto de imortal – o movimento. A
ideia de movimento (κίνησις) associada à imortalidade da alma, entretanto, não era nova. Conforme aponta
Aristóteles (De An., 405a29-b1), pode-se encontrar essa ideia em Alcméon de Crotona (= DK 24A12).
Conforme Yunis (2014, p. 136), o argumento da alma movente em si é também apropriado ao contexto
dialógico, haja vista que Platão, na sequência, vai enfatizar o movimento da alma ascendente em direção
ao Ser (engendrada por éros e lógos). Retomaremos a ideia de movimento para a compreensão da dialética
na Parte γ´ desta tese.
111
e penosa a ação do condutor160. No caso dos imortais, porém, a alma adeja nas alturas,
administrando o cosmos, sem perder suas asas (246b7-c2); já as humanas, imperfeitas,
perdem suas asas, e, decaídas, precisam fazer morada nos corpos materiais (246c2-6).
Porque as asas, por participarem da natureza divina (246d6-8), tinham a função de elevar
os homens à altura dos deuses; aqueles, sendo delas privados, teriam então perdido o
acesso direto à contemplação da região supraceleste (247c3: ὑπερουράνιον), onde se
encontram a essência (οὐσία) sem cor (ἀχρώματος), sem forma (ἀσχημάτιστος),
intangível (ἀναφής) e contemplável apenas pelo intelecto (μόνῳ θεατὴ νῷ). É esse o nível
da realidade onde reside a própria justiça (247d6: αὐτὴ δικαιοσύνη), a temperança
(σωφροσύνη) e a ciência que não é sujeita à geração (247d7: ἐπιστήμην, οὐχ ᾗ γένεσις
πρόσεστιν), e, por isso, corresponde ao ser que realmente é e que realmente é ciência
(247e2: ὅ ἐστιν ὂν ὄντως ἐπιστήμην οὖσαν).
Dito de outro modo, em linhas bastante gerais, isso significaria que as almas dos
mortais se caracterizam por terem perdido a capacidade de acessar diretamente os
objetos inteligíveis, os únicos e verdadeiros objetos do conhecimento, restando-lhes
apenas o desejo de alcançá-los, mediante um esforço de reminiscência (248a6-b1) e, por
isso, na melhor das hipóteses, podem se tornar amigas da sabedoria, do belo, das musas,
ou do amor (248d3-4: φιλοσόφου ἢ φιλοκάλου ἢ μουσικοῦ τινος καὶ ἐρωτικου) e, na pior
das hipóteses, nos menores graus da escala das almas161, encerrar-se no corpo de um
sofista ou demagogo (248e3: σοφιστικὸς ἢ δημοκοπικός), ou um tirano (248e3:
τυραννικός).
É nesse momento que, através dessa imagem, Platão inicia uma espécie de
descrição do filósofo e de sua atividade: uma alma sem asas, que, entretanto, anseia
160
Brisson (2004 [1989], p. 42), assinala a clara relação entre o conceito de alma que emerge no Fedro e aquele
da República (IV). A imagem de uma biga puxada por dois cavalos, um bom e um irascível (253d-e1) evoca a
imagem da alma tripartida da República: o cocheiro é o intelecto, o cavalo bom é a opinião verdadeira e o
cavalo mau é o desejo. O leitor familiarizado com a República há de notar, entretanto, que parece que essa
nova divisão não corresponde inteiramente à tripartição célebre da alma entre lógos, thymós e epithymía,
como se lê nos livros IX e X, divisão segundo a qual, para cada parte, corresponderia um tipo próprio de
desejo e comando (a capacidade de raciocinar e se instruir; os impulsos e os desejos de honra; e a os desejos
sensuais, respectivamente). Em que pese isso, como argumenta Reis (2016, p. 175): “é possível que não haja
um grande problema na coordenação das doutrinas da alma expostas em A República e Fedro. A psicologia
tripartite parece um modelo justamente para dar conta da diversidade das motivações humanas e dos
conflitos daí decorridos – e por isso mesmo estaria perfeitamente alinhado ao espírito da definição de érôs
apresentada. Além disso, a menção a apenas dois fatores atende por enquanto aos interesses de análise de
Sócrates”.
161
Em 248c2-e3, Platão descreve uma espécie de escala correspondente aos níveis das almas que, tendo
decaído, tomada pelo esquecimento, vão habitar diferentes gêneros humanos, em nove níveis: 1) os que
amam o saber (o filósofo), o belo, os cultores das musas (os poetas inspirados, o vate) e do amor; 2) reis
(legítimos), guerreiros, comandantes; 3) políticos, administradores, comerciantes; 4) ginastas e médicos; 5)
profetas e iniciados nos mistérior; 6) poetas e imitadores; 7) artesãos e lavradores; 8) sofistas e demagogos;
9) tiranos.
112
reaproximar-se das coisas do alto (248a6-7: γλιχόμεναι μὲν ἅπασαι τοῦ ἄνω ἕπονται), as
quais só podem novamente ser vistas pelo pensamento (διάνοια). Isso significa que ele
poderia alcançar aquilo que um dia vislumbrou enquanto uma alma alada, o que se daria
por meio de um esforço intelectual. Essa imagem sugere, ainda, que seria próprio da
psykhé uma pré-visão das Formas, visão que, uma vez perdida aquando da sua habitação
em corpos humanos, somente lhe seria possível de ser recuperada mediante um processo
cognitivo, como observamos na passagem:
162
Cf. δεῖ γὰρ ἄνθρωπον συνιέναι κατ' εἶδος λεγόμενον, ἐκ πολλῶν ἰὸν αἰσθήσεων εἰς ἓν λογισμῷ
συναιρούμενον· τοῦτο δ' ἐστὶν ἀνάμνησις ἐκείνων ἅ ποτ' εἶδεν ἡμῶν ἡ ψυχὴ συμπορευθεῖσα θεῷ καὶ
ὑπεριδοῦσα ἃ νῦν εἶναί φαμεν, καὶ ἀνακύψασα εἰς τὸ ὂν ὄντως. διὸ δὴ δικαίως μόνη πτεροῦται ἡ τοῦ
φιλοσόφου διάνοια· πρὸς γὰρ ἐκείνοις ἀεί ἐστιν μνήμῃ κατὰ δύναμιν, πρὸς οἷσπερ θεὸς ὢν θεῖός ἐστιν. τοῖς
δὲ δὴ τοιούτοις ἀνὴρ ὑπομνήμασιν ὀρθῶς χρώμενος, τελέους ἀεὶ τελετὰς τελούμενος, τέλεος ὄντως μόνος
γίγνεται· ἐξιστάμενος δὲ τῶν ἀνθρωπίνων σπουδασμάτων καὶ πρὸς τῷ θείῳ γιγνόμενος, νουθετεῖται μὲν
ὑπὸ τῶν πολλῶν ὡς παρακινῶν, ἐνθουσιάζων δὲ λέληθεν τοὺς πολλούς.
113
do movimento filosófico é a multiplicidade das percepções (ἐκ πολλῶν ἰὸν αἰσθήσεων),
portanto, a pluralidade de imagens radicadas no sensível e registradas pelo aparelho
sensitivo da alma humana163.
Não se pode, todavia, fazer coincidir conhecimento (ἐπιστήμη) e percepções
(αἰσθήσεις); o primeiro dependeria, ainda, de um exercício do lógos (λογισμός), que
consiste em reunir a pluralidade de estímulos perceptuais em uma unidade inteligível
(249c1: εἰς ἓν λογισμῷ συναιρούμενον). Note-se que, na passagem, o próprio verbo que
está traduzido como “compreender” (249b7: συνιέναι), significa, antes, em grego, “reunir”,
“juntar”, “agregar”, isto é, “compreender” no seu sentido etimológico, do latim com-
prehendere, “tomar em conjunto”.
163
A palavra grega aísthesis tem um campo semântico mais amplo do que simplesmente “percepção
sensorial”, participando também da apreensão da realidade, a partir de uma dinâmica que tem a psykhé
como diretora. Tal é o que podemos observar, por exemplo, no Teeteto. Entre 184c5-d5, fica explícito que o
sujeito da aísthesis não são os olhos ou os ouvidos que facultam a visão ou a audição, mas a alma, sendo os
órgãos sensoriais apenas instrumentos. Além disso, o aparelho psíquico opera uma espécie de
convergência dos estímulos sensoriais captados (Tht. 184d3-4: “seja a alma, seja o que quiser chamar, reúne
todas [as percepções]” - εἴτε ψυχὴν εἴτε ὅτι δεῖ καλεῖν, πάντα ταῦτα συντείνει). Mais à frente, no mesmo
diálogo (Tht. 186b6-d5), a noção de verdade (ἀληθεία) e conhecimento (ἐπιστήμη) estão relacionadas ao que
é em si mesmo, à “essência” (οὐσία), que é produto de um discernimento (κρίνειν) da alma. As afecções são
captadas pelo corpo (Tht. 186c1-2: διὰ τοῦ σώματος παθήματα), mas atingem a alma (Tht. 186c2: ἐπὶ τὴν
ψυχὴν τείνει). Entretanto, embora tais afecções (παθήματα) não coincidam com a verdade ou a ciência, é
por intermédio delas, mediante um exercício do lógos a elas aplicado (Tht. 186d3: τῷ περὶ ἐκείνων
συλλογισμῷ), é possível chegar à ciência e à verdade:
Sóc.: E a essência e dualidade desses fatos, sua oposição recíproca, a essência dessa mesma oposição,
não é a nossa alma que, voltando a considerá-las e a confrontá-las, procura discernir?
Teet.: Perfeitamente.
Sóc.: Logo, desde o nascimento, tanto os homens, como os animais têm o poder de captar as
impressões que atingem a alma por intermédio do corpo. Porém, relacioná-las com a essência e
considerar a sua utilidade, é o que, só com o tempo, trabalho e estudo conseguem os raros a quem é
dada semelhante faculdade.
Teet.: Perfeitamente
Sóc.: Poderá atingir a verdade de alguma coisa, quem não alcançar a sua essência?
Teet.: Nunca!
Sóc.: E do que não se alcança a verdade, poder-se-á ter conhecimento?
Teet.: De que jeito, Sócrates?
Sóc.: Naquelas impressões, por conseguinte, não é que reside o conhecimento, mas no raciocínio a
ser respeito; é o único caminho, ao que parece, para atingir a essência e a verdade; de outra forma é
impossível.
(Cf. Tradução de Carlos Alberto Nunes (1988), {ΣΩ.} Τὴν δέ γε οὐσίαν καὶ ὅτι ἐστὸν καὶ τὴν ἐναντιότητα
πρὸς ἀλλήλω καὶ τὴν οὐσίαν αὖ τῆς ἐναντιότητος αὐτὴ ἡ ψυχὴ ἐπανιοῦσα καὶ συμβάλλουσα πρὸς
ἄλληλα κρίνειν πειρᾶται ἡμῖν.
{ΘΕΑΙ.} Πάνυ μὲν οὖν.
{ΣΩ.} Οὐκοῦν τὰ μὲν εὐθὺς γενομένοις πάρεστι φύσει αἰσθάνεσθαι ἀνθρώποις τε καὶ θηρίοις, ὅσα
διὰ τοῦ σώματος παθήματα ἐπὶ τὴν ψυχὴν τείνει· τὰ δὲ περὶ τούτων ἀναλογίσματα πρός τε οὐσίαν
καὶ ὠφέλειαν μόγις καὶ ἐν χρόνῳ διὰ πολλῶν πραγμάτων καὶ παιδείας παραγίγνεται οἷς ἂν καὶ
παραγίγνηται;
{ΘΕΑΙ.} Παντάπασι μὲν οὖν.
{ΣΩ.} Οἷόν τε οὖν ἀληθείας τυχεῖν, ᾧ μηδὲ οὐσίας;
{ΘΕΑΙ.} Ἀδύνατον.
{ΣΩ.} Οὗ δὲ ἀληθείας τις ἀτυχήσει, ποτὲ τούτου ἐπιστήμων ἔσται;
{ΘΕΑΙ.} Καὶ πῶς ἄν, ὦ Σώκρατες;
{ΣΩ.} Ἐν μὲν ἄρα τοῖς παθήμασιν οὐκ ἔνι ἐπιστήμη, ἐν δὲ τῷ περὶ ἐκείνων συλλογισμῷ· οὐσίας γὰρ
καὶ ἀληθείας ἐνταῦθα μέν, ὡς ἔοικε, δυνατὸν ἅψασθαι, ἐκεῖ δὲ ἀδύνατον).
114
Ora, isso quer dizer que o processo do conhecimento, conquanto não alheio à
multiplicidade de estímulos sensíveis – isto é, a multiplicidade das imagens, dos sons, dos
sinais, das palavras etc., que, por intermédio do corpo, é registrada pela psykhé – decorre,
todavia, de uma atividade do lógos, tendo, por isso, a alma como sujeito; e consistindo,
justamente, na compreensão das relações entre a multiplicidade de percepções
(αἴσθησις) e a unidade que se constrói pelo intelecto, tendo como referência a Forma
(249b7: κατ’ εἶδος). Destaque-se, finalmente, que o resultado desse processo configura
uma espécie de movimento de afastamento ou separação das preocupações humanas
(249c8: ἐξιστάμενος δὲ τῶν ἀνθρωπίνων σπουδασμάτων), em direção a uma condição
semelhante à divina (249d1: πρὸς τῷ θείῳ γιγνόμενος).
Ora, se entendemos que “aquilo que é dito” (249b7: λεγόμενον) também tem
natureza análoga à das afecções captadas pela aísthesis (ou seja, tanto a linguagem oral,
quanto a linguagem escrita são primeiramente apreendidas via órgãos sensoriais),
poderíamos também pensar que os signos que perfazem o que é dito são da ordem dessa
multiplicidade de estímulos sensíveis, que, conforme vimos na passagem, consiste no
ponto de partida do processo de conhecimento? Se assim o for, poderíamos ainda pensar
que também ela não se confundiria com o conhecimento – isto é, com a “compreensão
de acordo com a Forma” (249b6: συνιέναι κατ’ εἶδος) ou o “levantar a cabeça para o que
realmente é” (249c3-4: ἀνακύψασα εἰς τὸ ὂν ὄντως) – e, por isso, não escaparia também
de ser o objeto desse exercício de reunião (249b7: συνιέναι). Assim sendo, também o “o
que é dito” precisaria ser submetido a uma rigorosa crítica – a linguagem, escrita ou
falada, como veremos na Parte β´, não escaparia, portanto, dessa reflexão.
Por ora, parece-nos ser possível também indicar algumas convergências entre essa
passagem do Fedro e aquela caracterização do filósofo e de sua atividade anteriormente
expressa na República, nos termos que apresentamos no último capítulo164. Na República,
também se postulava o papel fundamental do lógos para engendrar distinções (R. 5.454a1-
9), o filósofo era ali também caracterizado como aquele que se engaja em um movimento
de acesso ao Belo em si e por si (R. 5.476b10-11: τὸ καλὸν...καθ’ αὑτὸ), e era capaz de
distinguir o uno do múltiplo (R. 6.484b4-8), optando pelo primeiro, como traço distintivo
da verdadeira ciência (R. 5.477b11-13). Assim, o lógos era pensado como elemento
164
A imagem descrita no Fedro não suscita somente convergências com a República. Com efeito, como
explica Santas (1992, p. 305), sob a roupagem mítica da palinódia de Sócrates, é possível depreender ao
menos quatro teses platônicas, que foram formuladas nos diálogos médios: 1) A imortalidade da alma (cf.
Fédon); 2) A divisão da alma (cf. República); 3) uma teoria do conhecimento das Formas (cf. República); 4) a
ideia de reminiscência das Formas (cf. Mênon). Como o objeto desta tese é a relação desse tema com o da
dialética, justificamos nossa atenção particular ao paralelo Fedro/República.
115
operacional para o movimento de diferenciação e determinação do uno e do múltiplo, e,
por extensão, de distinção entre o elemento inteligível (“a Forma”, a “ideia”) e a
multiplicidade dos sensíveis.
Além disso, a imagem da biga alada do Fedro permite delinear um paralelo com a
alegoria da caverna, da República VII. Conforme avaliamos antes, por meio daquela
imagem, Platão figurava o movimento ascendente de um indivíduo, limitado de partida
pelas imagens captadas pelas percepções no âmbito de uma caverna, em direção à
contemplação das coisas que são em si mesmas, iluminadas pelo sol, imagem que,
naquele contexto, traduzia a ideia do Bem – condição de visibilidade/cognoscibilidade
das Formas (517b-c). No Fedro, somos também convidados a visualizar um movimento de
natureza semelhante, através da imagem da biga alada. Embora não mais se represente
propriamente uma ascensão – mas uma queda – a ideia que subjaz é a mesma: no nível da
realidade em que estão as almas encarnadas – os mortais – tem-se apenas um acesso à
realidade em si intermediado pelos sensíveis, cabendo a um tipo particular, o filósofo,
mediante um esforço de elevação pelo intelecto, a busca da apreensão dessa verdadeira
realidade – as Formas –, que correspondem, por sua vez, à única e verdadeira ciência,
havendo, portanto, uma homologia entre o real epistêmico e o real ontológico, tal qual
vimos desenhada na República. Além disso, assim como na República postulava-se a
dialética, então considerada uma ciência e um método, como o corolário desse processo;
também no Fedro essa reflexão culmina com a apresentação e exame desse conceito,
como veremos à frente (Phdr. 265d-266b).
Nesse ínterim, é importante ainda notar no âmbito dessa imagem a distinção que
se realiza entre o filósofo (e também o amante da beleza, o cultor das musas e do amor) –
situado no polo mais elevado da escala humana, segundo o “decreto de Adrasteia”165 – e
o sofista, demagogo e tirano – situados no nível ínfimo dessa mesma escala. Sem
analisarmos aqui a gradual distinção que se desenha em nove níveis (incluindo, reis,
guerreiros, ginastas, políticos, sacerdotes etc.), vale atentar que aqueles que estão
diretamente associados ao lógos – o filósofo e o poeta inspirado, por um lado; os sofistas,
demagogos e tiranos, por outro – ocupam espaços radicalmente opostos.
Se poetas, filósofos, sofistas e tiranos são, por assim dizer, gêneros humanos cujo
traço comum é um domínio do uso do lógos (ainda que para diferentes finalidades),
165
Novamente, aqui vemos a apropriação de um elemento mitológico na organização do argumento de
Platão, por intermédio de seu personagem Sócrates. Conforme comenta Yunis (2014, p. 143), Adrasteía (que
significa “aquela da qual não se corre) é identificada em fontes mais antigas, com a Anánkhē (em uma
teogonia órfica – DK1B13), também é o epíteto de Nêmesis. É citada por Platão também na R. 5.451a.
116
colocá-los em extremidades opostas dessa escala poderia antecipar uma análoga
oposição entre os diferentes lógoi que os representam, oposição que virá novamente à
tona na diferenciação entre retórica e dialética na sequência do diálogo? E mais: o
filósofo, ou amante do saber (φιλόσοφος), está colocado no mesmo nível do amante da
beleza (φιλόκαλος), do cultor das musas (μουσικοῦ τις), e do amor (ἐρωτικοῦ). Os quatro
termos se sucedem, nesse nível, precisamente nessa ordem: o filósofo (A); o amante da
beleza (B); o poeta, ou cultor das musas (C); e o cultor do amor (D)166. Se o o cultivo do
belo (B) está relacionado ao cultor das musas (C), podemos ler essa passagem como uma
equação em quiasmo, segundo a qual, por sua vez, ao filósofo (A) corresponderia uma
relação com o amor (D)? Se esse caminho de leitura estiver correto, poderíamos pensar
em uma homologia entre éros e lógos? Se, conforme apontamos, os lógoi são opostos na
escala dos gêneros humanos, o que representa uma distinção (uma diaíresis), poderíamos
assim dizer que Platão logra fazer o mesmo acerca do conceito de éros 167?
Em suma, visto em perspectiva, o primeiro discurso de Sócrates, quando posto
diante do segundo discurso, permite, com efeito, reconhecer uma divisão, por assim
dizer, entre dois gêneros de lógos e dois gêneros de éros: os dois primeiros discursos
evidenciam um lógos e um éros efusivos, arrebatadores, irracionais, humanos versus o
terceiro discurso, a palinódia, que pavimenta caminho para outra concepção de éros e de
lógos equilibrados, racionais, divinos. Enquanto a palinódia se constitui envolta em uma
linguagem francamente mítica, rica em imagens e recorrências a elementos da cultura
religiosa grega, o primeiro discurso de Sócrates, quanto ao fato de se colocar como um
mito, revelou-se, como vimos, como não muito mais que apenas um pretensioso projeto.
Embora exuberante quanto à riqueza de imagens e complexidade dos argumentos, do
ponto de vista de sua formulação, a palinódia se organiza de forma bem menos
arrebatada e pretensiosa (não se coloca como um épico, por exemplo), tendo, afinal, um
apelo bem mais psicagógico e bem menos patético que o primeiro discurso de Sócrates.
Por esse motivo, enquanto o primeiro discurso poderia ser tomado como um gracejo de
166
Cf. 248d3-4: φιλοσόφου (A) ἢ φιλοκάλου (B) ἢ μουσικοῦ τινος (C) καὶ ἐρωτικου (D).
167
Conforme Sócrates salienta (Phdr. 252d5-e5): “Portanto, cada um elege o amor dentre os belos jovens à
sua maneira, modela-o e adorna-o feito um ídolo, como sendo para si o próprio deus que honra e cujos
mistérios celebra. Os que seguem Zeus, procuram que o amado por eles tenha a alma como de Zeus,
examinam ainda se a sua alma é de filósofo e comandante e, quando o encontram, são tomados de amor,
tudo fazendo para que venha a ser bem assim”. (Cf. τόν τε οὖν Ἔρωτα τῶν καλῶν πρὸς τρόπου ἐκλέγεται
ἕκαστος, καὶ ὡς θεὸν αὐτὸν ἐκεῖνον ὄντα ἑαυτῷ οἷον ἄγαλμα τεκταίνεταί τε καὶ κατακοσμεῖ, ὡς τιμήσων
τε καὶ ὀργιάσων. οἱ μὲν δὴ οὖν Διὸς δῖόν τινα εἶναι ζητοῦσι τὴν ψυχὴν τὸν ὑφ' αὑτῶν ἐρώμενον· σκοποῦσιν
οὖν εἰ φιλόσοφός τε καὶ ἡγεμονικὸς τὴν φύσιν, καὶ ὅταν αὐτὸν εὑρόντες ἐρασθῶσι, πᾶν ποιοῦσιν ὅπως
τοιοῦτος ἔσται.)
117
Sócrates, apresentando uma irônica aparência de reflexão elevada; o segundo representa
uma reflexão mais séria e filosófica168.
Mas as contraposições não acabam por aí: ao passo que os conceitos de éros e
manía do primeiro discurso eram essencialmente humanos, causados por um instinto
irrefreável, uma desmedida (ὕβρις) ligada a um desejo (ἐπιθυμία); no segundo discurso
eles se situam em uma dimensão divina. Nesse discurso, éros e manía são causados por
uma inspiração divina (ἐνθουσιασμός) e estão ligados a um processo de reconhecimento
da realidade. Dessa forma, os dois discursos de Sócrates permitem-nos reconhecer uma
prática da dialética como divisão e reunião (conforme será definida adiante): as antíteses
que se evidenciam quando contrapostos tornam visível o procedimento da diaíresis, ao
passo que as diferentes dimensões de éros, manía e lógos apresentadas, se submetidas a
esforço de entendimento, nos permitem também compreender uma visão de conjunto, e,
assim, alcançarmos uma unidade inteligível na multiplicidade de sensíveis; portanto,
uma synagogé. A operação dialética se realiza, assim, na relação entre os dois discursos,
que evoca outras relações pertinentes ao diálogo: sensíveis vs. inteligíveis, humanos vs.
divinos, aparentes vs. reais169.
No terceiro discurso, temos também uma imagem do filósofo, um mortal que é
movido pelo segundo tipo de éros, que o impulsiona à busca de uma visão perdida da
realidade, que lhe teria escapado pela perda de suas asas170. Haveria, assim, uma relação
estreita entre éros e philosophía, que estariam ambos ligados a uma mesma destinação171.
168
Em favor disso, citaria, por exemplo, a posição de H. Yunis (2014). Em seu comentário, afirma que Platão
teria abandonado o gênero epidítico que caracterizava o segundo discurso, em favor de um gênero
deliberativo, no segundo, além disso, “Phaedrus is Socrates’ auditor in a different sense. Socrates treats
Phaedrus no longer as the epideictic connoisseur he wished to be at the outset, but a serious student of
serious discourse (243c1-d6; 245c1-2) i.e. one who genuinely wants to understand how discourse can be used
to affect its audience. Socrates’ task with regard to Phaedrus is not only to provide him with an effective
display of psychagogic discourse, but to use that display to move Phaedrus towards philosophy” (Yunis,
2014, p. 126).
169
Devo bastante dessa leitura aos comentários oferecidos pela Professora Maria Cecília Gomes dos Reis,
por ocasião do Exame de Qualificação deste trabalho. Sou bastante grato por suas explicações, cujo alcance,
contudo, certamente não consegui explorar em sua totalidade e profundidade.
170
Cf. Phdr. 250b5-c6: “O belo, por sua vez, era então possível de ver, visão e espetáculos beatíficos quando
unidos a um coro feliz – nós, no séquito de Zeus e outros no de outros deuses –, víamos e nos iniciávamos
naquilo que é lícito chamar de a mais beatífica das iniciações. E o celebrávamos de modo orgiástico na
plenitude de sermos nós mesmos e isendo ainda de quantos males nos aguardavam no porvir; plenas,
simples e inabaláveis eram as bem-aventuradas visões que tínhamos, iniciados em brilho puro, purificados
também nós e sem o sinal desse cárcere que agora chamamos corpo e que nos envolve à maneira de ostra
em sua casca” (Cf. θεῶνται τὸ τοῦ εἰκασθέντος γένος· κάλλος δὲ τότ' ἦν ἰδεῖν λαμπρόν, ὅτε σὺν εὐδαίμονι
χορῷ μακαρίαν ὄψιν τε καὶ θέαν, ἑπόμενοι μετὰ μὲν Διὸς ἡμεῖς, ἄλλοι δὲ μετ' ἄλλου θεῶν, εἶδόν τε καὶ
ἐτελοῦντο τῶν τελετῶν ἣν θέμις λέγειν μακαριωτάτην, ἣν ὠργιάζομεν ὁλόκληροι μὲν αὐτοὶ ὄντες καὶ
ἀπαθεῖς κακῶν ὅσα ἡμᾶς ἐν ὑστέρῳ χρόνῳ ὑπέμενεν, ὁλόκληρα δὲ καὶ ἁπλᾶ καὶ ἀτρεμῆ καὶ εὐδαίμονα
φάσματα μυούμενοί τε καὶ ἐποπτεύοντες ἐν αὐγῇ καθαρᾷ, καθαροὶ ὄντες καὶ ἀσήμαντοι τούτου ὃ νῦν δὴ
σῶμα περιφέροντες ὀνομάζομεν, ὀστρέου τρόπον δεδεσμευμένοι).
171
Impara (1992, p. 301): “In questa unità di intelligenza e desiderio viene collocato il filosofo nel Fedro. Eros
e filosofi vengono così legati ad uno stesso destino. Non c’è vera filosofia senza amore della verità, della
118
Nesse sentido, o Fedro parece recuperar, reconfigurando-a, a reflexão sobre éros do
Banquete.
De fato, para compreendermos a noção de éros no Fedro, as muitas convergências
entre esse diálogo e o Banquete parecem mesmo exigir uma certa aproximação entre os
dois. Os dois se assemelham em vários aspectos:
1. do ponto de vista dos elementos dramáticos: a presença comum do personagem
Fedro (embora em diferentes idades, há notáveis traços comuns, cf. Nails, 2002, p. 232;
Brisson, 2004, p. 21);
2. do ponto de vista da construção literária: a apresentação em sequência de
discursos e comentários críticos sobre eles, o caráter polifônico do texto, a riqueza de
imagens e de narrativas de caráter mítico (cf. Chambry, 1992, p. 105; Corrigan & Glazov-
Corrigan, 2004);
3. do ponto de vista do tema filosófico: a discussão sobre éros e sua relação com o
processo de conhecimento presidido pela alma, tendo como referência a noção de
Formas (Cf. Dixsaut, 2002, p. 106; Trabattoni, 2010, p. 146);
4. do ponto de vista da cronologia da obra de Platão: ambos os diálogos pertencem
à mesma fase, formando, provavelmente, uma sequência, começando pelo Banquete,
passando pela República e terminando no Fedro (Cf. Chambry, 1992, p. 32).
Sem a pretensão de fazermos uma abordagem sistemática desse diálogo, ou de
mapearmos os principais sentidos que emergem de seu contexto dialético, ou, ainda, de
apontarmos de forma metódica as confluências e divergências entre os sentidos de éros
no Banquete e no Fedro, observemos apenas de que maneira as distinções de éros que
parecem se configurar neste diálogo, conforme apontamos acima, podem também ser
explicadas quando as consideramos tendo como perspectiva alguns elementos da
discussão sobre o tema, nos discursos apresentados no Banquete, que perfazem, talvez, a
mais longa reflexão sobre o éros na obra de Platão.
bontà e della belleza; non c’è vero amore senza filosofia e desiderio di tutto della verità; che non è la verità
du tutto, né la verità su tutto. È la intelligenza che desidera e affida a questa funzione il libero corso del
dialegesthai mostrandosi come eros liberato”. Trabattoni (2010, p. 148): “para Platão, éros se liga
intimamente à filosofia, porque o desejo que acomete a todos, de viver uma vida boa, nunca poderá ser
realizado se pelo menos tentarmos conhecer o bem: em outras palavras, não poderá ser realizado se não
dispusermos nossa vida em direção ao conhecimento”.
119
Um banquete de discursos
172
A ideia de um symposion ou banquete era ligado, inicialmente às honras de guerreiros, no âmbito da visão
homérica da cultura grega. A prática, porém, se estende consistentemente até o período clássico. O
momento de beberem juntos (daí a palavra, formada por συν-, “junto” e pelo radical formado da raiz de
πίνω, “beber”), provavelmente ocorria somente após a refeição principal (δεῖπνον), e consistia na reunião
de homens, que provavelmente permaneciam reclinados em almofadas ou próximos a mesas baixas, onde
se serviam de vinho (ou da mistura de água e vinho), que servido por garotos. Tratava-se de uma atividade
aristocrática, de importância social e cultural: em tais banquetes se recitavam poemas ou se declamavam
discursos (Roberts, 2007)
173
Agatão de Atenas, provavelmente nascido por volta de 447 a.C., é representado como um jovem belo e
bem nascido no Protágoras, no Banquete, tinha idade próxima a 30 anos, é representado como o campeão de
um concurso de tragédias. Aristófanes o representa como tendo aparência jovem, sendo delicado e
efeminado (em Thesm. 31-33; 33-35) (Nails, 2002, p. 10).
174
Alcibíades Escambônidas, personagem emblemático da cultura grega, descendente de duas das famílias
nobres mais poderosas de Atenas, tendo sido legalmente órfão aos seis anos, foi criado por Péricles.
Xenofonte (Mem., 1.2.12-28) o retrata, aos dezenove anos, vencendo um debate com péricles sobre leis,
persuasão e força e o retrata não como um verdadeiro discípulo de Sócrates, mas como alguém que se
aproximou de Sócrates movido por ambição. Na obra de Platão aparece em várias ocasiões: no Protágoras,
como jovem amado por Sócrates, e também é citado ou tem participação no Banquete (212d et seq.); Górgias
(481d, 519b); Eutidemo (275a-b). Sua relação com Atenas é bastante conflituosa, ora a cidade o tem como
heroi, ora o condena por traição (Nails, 2002, p. 11-13). Goldstein (2017, p. 259 et seq.) o representa como
grande representante do cultura do “extraordinário” em Atenas, a que Platão, através da relação que figura
entre Alcibíades e Sócrates em seus diálogos, pretende fazer uma forte contraposição.
120
2. os discursos de Pausânias (180c-185c)175 e Erixímaco (186a-188e)176 apresentam
concepções dualistas de Éros. Pausânias apresenta o argumento de Éros como duas
divindades, Afrodite urânia, isto é, “celeste” (180d8: Οὐρανίαν) e Afrodite pandêmia, isto
é, “popular”, “vulgar” (180e2: Πάνδημον). O Éros que decorre da Afrodite pandêmia
manifesta-se no amor dos homens inferiores (181b2: οἱ φαῦλοι τῶν ἀνθρώπων ἐρῶσιν),
que se atraem por meninos não menos que por mulheres (181b3: μὲν οὐχ ἧττον γυναικῶν
ἢ παίδων), estando, ainda, mais ligado ao corpo que à alma (181b4: τῶν σωμάτων μᾶλλον
ἢ τῶν ψυχῶν). Mirando tão somente a satisfação, é indiferente ao agir belamente (181b5-
6: πρὸς τὸ διαπράξασθαι μόνον βλέποντες, ἀμελοῦντες δὲ τοῦ καλῶς ἢ μή), sendo ainda
incapaz de distinguir o bem do seu contrário (181b7-8: ὁμοίως μὲν ἀγαθόν, ὁμοίως δὲ
τοὐναντίον), participando, enfim, de homens e mulheres (181c1-2: μετεχούσης καὶ θήλεος
καὶ ἄρρενος). Por outro lado, a Afrodite urânia participa somente dos homens, não das
mulheres (181c2-3: οὐ μετεχούσης θήλεος ἀλλ’ ἄρρενος μόνον), é mais velha, isenta de
excesso (181c4: πρεσβυτέρας, ὕβρεως ἀμοίρου), permite o desenvolvimento de uma
relação mútua que dura toda a vida (181d4-5: τὸν βίον ἅπαντα συνεσόμενοι καὶ κοινῇ
συμβιωσόμενοι). Na sequência, Erixímaco mostra que seu poder não reside apenas na
alma humana, atraída pelos belos homens, mas estende-se a todas as demais criaturas
(186a3-5: οὐ μόνον ἐστὶν ἐπὶ ταῖς ψυχαῖς τῶν ἀνθρώπων πρὸς τοὺς καλοὺς ἀλλὰ καὶ πρὸς
ἄλλα πολλὰ καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις), caracteriza-se como uma harmonia de contrários, um
equilíbrio de forças, que produz prosperidade e saúde nos mortais (188a5: εὐετηρίαν τε
καὶ ὑγίειαν ἀνθρώποις); promovendo o bem, a justiça e a temperança (188d5-6: ὁ δὲ περὶ
τἀγαθὰ μετὰ σωφροσύνης καὶ δικαιοσύνης ἀποτελούμενος), possuindo o poder supremo
de produzir felicidade (188d7-8: τὴν μεγίστην δύναμιν ἔχει καὶ πᾶσαν ἡμῖν εὐδαιμονίαν
παρασκευάζει) e tornar os homens amigos dos deuses (188d9: φίλους εἶναι καὶ τοῖς
κρείττοσιν ἡμῶν θεοῖς).
3. Aristófanes (189c-193d)177 apresenta, então, uma narrativa mítica sobre os seres
humanos, que, nas origens, formavam um composto duplo, possuindo três sexos, o
masculino, o feminino e o andrógino, que reunia ambos os sexos. Por terem desafiado os
175
Pausânias de Cerâmicos, representado como amigo de Agatão no Protágoras (315d) e no Banquete. Em
Xenofonte (Smp. 8.32) é criticado por defender uma concepção de amor homossexual (Nails, 2002, p. 222).
176
Erixímaco de Atenas, filho de Acúmeno, personagem histórico, médico, nascido provavelmente por
volta de 448 a.C. Citado no Protágoras (315c), Banquete e Fedro (268a). (Nails, 2002, p. 143).
177
Aristófanes de Cythadenaeum, célebre comediógrafo grego, nascido em data incerta em meados do
século V a.C. Suas comédias representam críticas sociais acerca das instituições atenienses da virada do
século V para o IV, a partir de uma ótica conservadora. São lhe atribuídas, na Antiguidade, 44 comédias,
das quais sobrevivem apenas sete e cerca 950 fragmentos das demais. É representado por Platão no
Banquete, onde apresenta um discurso, sendo também explicitamente citado na Apologia (19c) (Nails, 2002,
p. 54).
121
deuses, Zeus os teria, como castigo, dividido em duas metades, que, por isso, seguem
saudosas, desejantes de se fundir uma com a outra (191a6: ποθοῦν ἕκαστον τὸ ἥμισυ τὸ
αὑτοῦ συνῄει). Éros seria, então, o único deus que poderia curar a natureza humana
(191d3: ἰάσασθαι τὴν φύσιν τὴν ἀνθρωπίνην), fazendo de duas pessoas uma só (191d2:
ποιῆσαι ἓν ἐκ δυοῖν). Éros é, portanto, o nome do desejo e da busca de totalidade (192e10-
193a1: τοῦ ὅλου οὖν τῇ ἐπιθυμίᾳ καὶ διώξει ἔρως ὄνομα). Finalmente, Sócrates reporta o
discurso de Diotima (201d-212b)178, no qual Éros é apresentado não como sábio, mas como
um intermediário entre o conhecimento e a ignorância (202a3: τι μεταξὺ σοφίας καὶ
ἀμαθίας), e não é um deus, mas um daímon, um ser intermediário entre um deus e um
mortal (202e1: μεταξύ ἐστι θεοῦ τε καὶ θνητοῦ). Deuses e mortais não se misturam (202e9-
203a1: θεὸς δὲ ἀνθρώπῳ οὐ μείγνυται), mas, através de Éros, seria possível um contato e
um diálogo entre homens e deuses (203a2-3: διὰ τούτου πᾶσά ἐστιν ἡ ὁμιλία καὶ ἡ
διάλεκτος θεοῖς πρὸς ἀνθρώπους). Filho da Penúria (Πενία) e do Recurso (Πόρος), Éros
teria herdado da mãe a escassez de beleza e suavidade (203c6-7: πένης ἀεί ἐστι, καὶ πολλοῦ
ἁπαλός τε καὶ καλός), e, do pai, o ardor pelas coisas belas e boas (203d4-5: ἐπίβουλός ἐστι
τοῖς καλοῖς καὶ τοῖς ἀγαθοῖς), por isso filosofa a vida toda (203d7: φιλοσοφῶν διὰ παντὸς
τοῦ βίου); os demais deuses, sendo sábios, não filosofam (204a1-2: θεῶν οὐδεὶς φιλοσοφεῖ
οὐδ’ ἐπιθυμεῖ σοφὸς γενέσθαι), tampouco filosofam os ignorantes, que não desejam ser
sábios (204a3-4: οὐδ’ αὖ οἱ ἀμαθεῖς φιλοσοφοῦσιν οὐδ’ ἐπιθυμοῦσι σοφοὶ γενέσθαι).
Logo de partida, consideremos o prólogo do Banquete (172a-173e). O texto começa
com o discurso de Apolodoro a interlocutores não identificados, narrando o que se
passara na véspera. Descreve-se, então, o encontro ocorrido entre Apolodoro e Gláucon,
que se revela interessado em ouvir de Apolodoro o que fora discutido sobre Éros no
encontro promovido na casa de Agatão. Apolodoro informa, então, que se trata de um
evento acontecido havia muitos anos, quando Agatão era ainda vivo e ele próprio,
Apolodoro, era ainda uma criança, dizendo que soube dos detalhes acontecidos não
através de Sócrates, com quem convivia havia três anos, mas de Aristodemo, tendo
apenas consultado Sócrates sobre detalhes do que ouvira. Na sequência, Apolodoro
dispõe-se a narrar a Gláucon os acontecidos, enquanto caminham em direção a Atenas.
Percebemos, portanto, que o enquadramento dramático do Banquete se processa
em quatro camadas de significação: em seu núcleo central estão os sete discursos
proferidos na casa de Agatão (e os diálogos entre os personagens naquela cena); em um
178
Diotima de Mantineia, sacerdotisa dos Mistérios de Elêusis, personagem no Banquete de Platão.
Atualmente acredita-se ser personagem inventado (Nails, 2002, p. 137).
122
segundo nível, está o relato desses discursos realizado por Aristodemo, testemunha
ocular daquele encontro; em um terceiro nível, temos a narrativa que Apolodoro faz a
Gláucon, sobre o que ouvira de Aristodemo enquanto caminhavam para Atenas; no
último nível, o discurso do próprio Apolodoro para seus interlocutores, a respeito do
encontro entre ele e Gláucon. Há, portanto, uma complexa polifonia, que decorre tanto
dos diferentes discursos proferidos na ocasião, quanto de seus diferentes relatos em cada
um dos níveis de enquadramento dramático, o que certamente implica problemas
quanto à plurivocidade dos discursos vs. a univocidade dos relatos; a performance da
apresentação dos discursos vs. sua mímesis nas palavras de Aristodemo e Apolodoro,
entre tantos outros problemas que envolvem uma adequada hermenêutica do Banquete,
que, entretanto, escapam ao nosso objetivo. Em todo caso, ressaltamos que essa
complexidade não somente parece justificar, de algum modo, o caráter particularmente
artístico desse diálogo, do ponto de vista da sua composição (Brisson, 2012, p. 720), quanto
também gera uma certa obscuridade, provocada pelas várias mediações discursivas,
quando o objetivo é aferir os sentidos filosóficos do texto, o que desafia o leitor a se
engajar no processo filosófico (Cotton, 2014, p. 18), e nos permite conceber esse diálogo
como uma performance dialética (Corrigan & Glazov-Corrigan, 2004).
Dito isso, alertamos que nossas considerações representam apenas ligeiras
aproximações, com o intuito específico de ver a relação entre ambos no que diz respeito
às dimensões de éros. Para além do caráter polifônico do texto e da variedade de recursos
literários em sua composição – recursos tais como o uso de imagens, de discursos, de
narrativas míticas, de diálogos –, elementos que aproximam, quanto à estrutura, o
Banquete ao Fedro, destacamos a primeira cena narrada por Apolodoro. Apolodoro e
Gláucon se encontram fortuitamente e começam a caminhar juntos, enquanto o primeiro
lhe reporta os discursos ouvidos. Essa cena parece descrever um movimento análogo
àquele que lemos no prólogo do Fedro. É verdade que, naquele diálogo, Sócrates e Fedro
caminhavam para fora da cidade, ao passo que no Banquete o percurso orienta-se em
direção a Atenas; em ambos, contudo, parece se configurar uma outra forma de mover-
se, aquela que parte de uma forma de perplexidade (no Banquete, por exemplo, em
relação à natureza mítica de Éros e seu apelo diante dos mortais; e, no Fedro, em relação
ao arrebatamento produzido pelo discurso retórico), em direção a uma via que pode
aproximar os mortais dos deuses (Éros como o intermediário entre ignorância e o
conhecimento, que aproxima os mortais do Belo e do Bem). Desse modo, de forma ampla,
tanto o Banquete, quanto o Fedro, sugerem um movimento filosófico, que tem como uma
de suas causas o desejo. Éros é, portanto, central em ambos os diálogos; o movimento por
123
ele causado conduz também uma nova forma de lógos – aquela que é representada nos
dois diálogos pelo discurso proferido por Sócrates, ambos também portadores de uma
narrativa de natureza mítica.
Particularmente, o modo como o tema do amor é apresentado nos discursos do
Banquete suscita também aproximações com o Fedro. Conforme vimos, a contraposição
de discursos no Fedro levou-nos a perceber uma espécie de diaíresis entre dois gêneros de
éros. A ideia de que éros, como o lógos, possa assumir um caráter ambivalente – ora
voltando-se para sua dimensão sensível, irracional, e afeita aos apetites humanos; ora
voltando-se para sua natureza inteligível, amiga da sabedoria, e afeita aos conhecimentos
– parece ecoar, de certo modo, as diferentes maneiras de refletir o éros em sua dualidade,
como vemos retratado também no Banquete.
O discurso de Pausânias, por exemplo, ao propor Éros como duas divindades – a
Afrodite pandêmia e a Afrodite urânia –, pode ser concebido como uma primeira
tentativa de enfrentar a natureza aparentemente dual da ação de Éros sobre os mortais,
ao ser associado, de modo diferente, aos apelos do corpo ou da alma – uma natureza,
portanto, ora associada aos homens de menor valor, indiferentes se sua ação é bela ou
não (181b6: ἀμελοῦντες δὲ τοῦ καλῶς ἢ μή), que tratam o bem e o seu contrário como
semelhantes (181b7-8: ὁμοίως μὲν ἀγαθόν, ὁμοίως δὲ τοὐναντίον); ora associada a uma
comunhão plena, duradoura (181d4-5: τὸν βίον ἅπαντα συνεσόμενοι καὶ κοινῇ
συμβιωσόμενοι) e sem excessos (181c4: ὕβρεως ἀμοίρου). O discurso de Erixímaco, por
sua vez, contribui ao mostrar que essa ambiguidade associada a Éros convive como uma
reunião de contrários, ambos intrínsecas ao próprio desejo. Se as forças contrárias se
equilibram, Éros é causa do bem, da justiça e da temperança (188d5-6: ὁ δὲ περὶ τἀγαθὰ
μετὰ σωφροσύνης καὶ δικαιοσύνης) e pode tornar os mortais amigos dos deuses (188d9:
φίλους εἶναι καὶ τοῖς κρείττοσιν ἡμῶν θεοῖς). No discurso de Aristófanes, ressalta-se a
potência curativa de Éros, que é capaz de curar a natureza humana, fazendo de duas
pessoas uma só (191d2: ποιῆσαι ἓν ἐκ δυοῖν), Éros é, assim, o elã que unifica as pessoas, é o
nome do desejo que busca uma completude (192e10-193a1: τοῦ ὅλου οὖν τῇ ἐπιθυμίᾳ καὶ
διώξει ἔρως ὄνομα). Finalmente, no discurso de Diotima, a dualidade de Éros se manifesta
na sua condição de intermediário (μεταξύ) entre ignorância e sabedoria, entre homens e
mortais: esse estatuto permite que éros viabilize, também, a busca do conhecimento, a
philosophía.
No seu conjunto, as ideias que esses quatro discursos engendram, muito embora
bastante diversos entre si quanto à forma e quanto ao conteúdo, reforçam algumas das
matrizes de sentido que emergem também na caracterização de éros no Fedro: a sua
124
ambivalência, que o orienta tanto para as coisas humanas (e sensíveis), quanto para as
coisas divinas (e inteligíveis); o seu papel de elã para uma busca que consiste em resgatar
uma completude perdida (no Fedro, decorrente da perda das “asas”; no Banquete, da
separação da sua outra “metade”: afora a diferença de imagem, resta em comum o desejo
como o causador desse movimento); e, finalmente, a sua forte associação com a própria
filosofia; tratando-se de um intermediário (μεταξύ) entre a ignorância e a sabedoria, o
que o torna, em virtude dessa busca, também uma forma de os homens se aproximarem
novamente dos deuses. Enfim, a caracterização de éros é complexa o bastante para
configurar as contradições, os limites e o desejo dos mortais quando buscam a sabedoria:
não sendo insensíveis aos apetites humanos, partem de um não saber; mas movem-se em
direção à sabedoria (σοφία), motivados pelo desejo do belo (ἔρως περὶ τὸ καλόν):
179
Tradução de Donaldo Schüler (2010), Cf.
- Τίνες οὖν, ἔφην ἐγώ, ὦ Διοτίμα, οἱ φιλοσοφοῦντες, εἰ μήτε οἱ σοφοὶ μήτε οἱ ἀμαθεῖς;
- Δῆλον δή, ἔφη, τοῦτό γε ἤδη καὶ παιδί, ὅτι οἱ μεταξὺ τούτων ἀμφοτέρων, ὧν ἂν εἴη καὶ ὁ Ἔρως.
ἔστιν γὰρ δὴ τῶν καλλίστων ἡ σοφία, Ἔρως δ' ἐστὶν ἔρως περὶ τὸ καλόν, ὥστε ἀναγκαῖον Ἔρωτα
φιλόσοφον εἶναι, φιλόσοφον δὲ ὄντα μεταξὺ εἶναι σοφοῦ καὶ ἀμαθοῦς.
180
Conforme anotamos antes, há vários indícios textuais pelos quais a imagem de Platão parece também
evocar a famosa alegoria que Parmênides desenvolve em seu poema. Levado pelas mãos de uma deusa, o
filósofo tem a oportunidade de conhecer, momentaneamente, o “ser”, que entretanto, lhe pode escapar
quando se vê entre diferentes caminhos (o do não-ser e o da dóxa). A própria imagem da biga alada, puxada
por corcéis, remete à proposição do Poema.
181
Cf. ἐκείνων ἅ ποτ' εἶδεν ἡμῶν ἡ ψυχὴ συμπορευθεῖσα θεῷ καὶ ὑπεριδοῦσα ἃ νῦν εἶναί φαμεν.
125
como a força motriz de um processo de reaproximação de mortais e imortais, de busca
do belo e de recuperação de um estado de completude perdida.
Parece emergir dessa discussão uma visão filosófica de éros, que, a partir da
palinódia de Sócrates, será alçada à condição de paradigma para o pensamento de Platão:
a filosofia é um desejo, e portanto, uma busca pelo saber, que se viabiliza, como veremos
no próximo capítulo, como um esforço de rememoração. Como comenta Brisson (2004
[1989], p. 48-49), aquilo que Sócrates descreve como a relação entre o amante e o amado
estabelece uma analogia entre a relação erótica entre o ser que aspira ao conhecimento e
aquele do qual ele se torna discípulo (relação erótica do saber). O amor não é uma loucura
sensível (como no primeiro discurso), mas divina (como no segundo), que permite
libertar-se do sensível em direção ao inteligível.
Desse modo, como argumenta Reis (2014; 2016), a filosofia se coloca como uma
espécie de “pacto entre amantes”, a verdadeira dádiva será a daquele jovem que travar
amizade com homem inspirado por éros divino, força que o pode reconduzir ao Belo
inteligível. Tais relações entre amante e amado se revelam intrinsecamente como uma
relação entre almas. Se, conforme vimos, a alma é compreendida como uma biga
conduzida por dois cavalos (Phdr. 253d3-254b7), um bom, amante da honra e da
moderação (τιμῆς ἐραστὴς μετὰ σωφροσύνης), companheiro da opinião verdadeira e da
sobriedade (τε καὶ αἰδοῦς, καὶ ἀληθινῆς δόξης ἑταῖρος), sendo, ainda, dirigido apenas por
palavras (μόνον καὶ λόγῳ ἡνιοχεῖται), e um mau, companheiro da desmedida e da
arrogância (ὕβρεως καὶ ἀλαζονείας ἑταῖρος), que se deleita com os apelos sensoriais, não
intelectuais, e só se curva mediante o infligir da dor (254a-b); parece-nos, nesse ponto,
ficar claro que será principalmente com a colaboração do primeiro que o auriga será bem
sucedido em conduzir essa alma à memória do Belo (e das demais Formas). Se aquele, o
bom cavalo, é suscetível somente às palavras (lógoi), são elas, portanto, que precisam ser
melhor avaliadas na sequência. Estamos, assim, prontos para a segunda parte do Fedro:
examinar os diferentes tipos do lógos e determinar aquele que interessa aos amantes do
saber – o lógos dialético – o único talvez capaz de conduzir corretamente os cavalos da
alma.
126
contraposições entre os domínios dos sensíveis vs. inteligíveis, os múltiplos vs. uno;
aparências vs. Formas etc.), também uma consequência de caráter epistemológico (a
filosofia como movimento ligado à reminiscência, como éros etc.) e metodológico (a
crucial diferença entre os lógoi quanto à sua forma e efeitos). A segunda parte do diálogo
se inicia recolocando a questão metodológica: investigar a maneira bela e a não-bela de
proferir e escrever discursos (259e1-2: καλῶς ἔχει λέγειν τε καὶ γράφειν καὶ ὅπῃ μή).
Sócrates indaga se a condição fundamental para dizer o belo é o conhecimento da
verdade do que será tratado (259e4-5: τὸ ἀληθὲς ὧν ἂν ἐρεῖν πέρι μέλλῃ). Fedro replica
dizendo que, conforme se ouve dizer (259e7: ἀκήκοα), para se tornar um orador não seria
necessário aprender (μανθάνειν) as coisas realmente justas (260a1: τὰ τῷ ὄντι δίκαια),
nem as realmente belas e boas (260a3: οὐδὲ τὰ ὄντως ἀγαθὰ ἢ καλὰ), mas somente assim
o parecer (δόξει). Como se diz, a persuasão (τὸ πείθειν) não decorreria da verdade (260a4:
οὐκ ἐκ τῆς ἀληθείας). O problema, então, está traçado: o belo discurso depende ou não
da verdade, do belo e do bom? E o discurso persuasivo, ele é também belo, ou lhe basta
parecer belo? 182
182
A ideia de que o discurso persuasivo é da natureza do aparente parece ser lugar-comum na crítica que
Platão oferece à retórica em diálogos que precedem o Fedro. Ele é dialeticamente demonstrado no Górgias,
onde essa posição é desdobrada em pelo menos dois momentos no diálogo entre Sócrates e Górgias:
1) para afirmar que a persuasão retórica está no nível do “crer” (πιστεύειν) e não do “saber”
(εἰδέναι):
SÓCRATES: Qual é, então, a persuasão que a retórica produz nos tribunais e nas demais
aglomerações, a respeito do justo e do injusto? A que gera crença sem o saber, ou a que gera
o saber?
GÓRGIAS: É deveras evidente, Sócrates, que aquela geradora de crença.
SÓCRATES: Portanto, a retórica, como parece, é artífice da persuasão que infunde crença, mas
não ensina nada a respeito do justo e do injusto.
GÓRGIAS: Sim.
(Grg. 454e3-455a2, Tradução de Daniel R. N. Lopes, 2011, cf. { – ΣΩ.} Ποτέραν οὖν ἡ ῥητορικὴ πειθὼ ποιεῖ ἐν
δικαστηρίοις τε καὶ τοῖς ἄλλοις ὄχλοις περὶ τῶν δικαίων τε καὶ ἀδίκων; ἐξ ἧς πιστεύειν γίγνεται ἄνευ τοῦ
εἰδέναι ἢ ἐξ ἧς τὸ εἰδέναι; { – ΓΟΡ.} Δῆλον δήπου, ὦ Σώκρατες, ὅτι ἐξ ἧς τὸ πιστεύειν. { – ΣΩ.} Ἡ ῥητορικὴ
ἄρα, ὡς ἔοικεν, πειθοῦς δημιουργός ἐστιν πιστευτικῆς ἀλλ' οὐ διδασκαλικῆς περὶ τὸ δίκαιόν τε καὶ ἄδικον.
{ – ΓΟΡ.} Ναί.)
2) para mostrar que se trata de uma arte que produz um conhecimento aparente, visto que não
decorre de real conhecimento de causa:
SÓCRATES: Se o rétor é ou não inferior aos outros porque se encontra nessa condição, em
breve investigaremos, no caso de ser pertinente para nossa discussão; mas, por ora,
examinemos primeiro o seguinte: o rétor porventura encontra-se, a respeito do justo e do
injusto, do vergonhoso e do belo, do bem e do mal, na mesma condição em que se encontra
a respeito da saúde e das demais coisas relativas às outras artes? Ignorando as próprias coisas,
o que é o bem e o que é o mal, o que é belo e o que é vergonhoso, o que é o justo e o que é
injusto, mas tramando a persuasão a respeito delas de modo a parecer conhecer, mesmo
ignorando, em meio a quem é ignorante, mais do que aquele que conhece?
(Grg., 459d1-e1, Tradução de Daniel R. N. Lopes, 2011, cf. {ΣΩ.} Εἰ μὲν ἐλαττοῦται ἢ μὴ ἐλαττοῦται ὁ ῥήτωρ
τῶν ἄλλων διὰ τὸ οὕτως ἔχειν, αὐτίκα ἐπισκεψόμεθα, ἐάν τι ἡμῖν πρὸς λόγου ᾖ· νῦν δὲ τόδε πρότερον
σκεψώμεθα, ἆρα τυγχάνει περὶ τὸ δίκαιον καὶ τὸ ἄδικον καὶ τὸ αἰσχρὸν καὶ τὸ κλὸν καὶ ἀγαθὸν καὶ κακὸν
οὕτως ἔχων ὁ ῥητορικὸς ὡς περὶ τὸ ὑγιεινὸν καὶ περὶ τὰ ἄλλα ὧν αἱ ἄλλαι τέχναι, αὐτὰ μὲν οὐκ εἰδώς, τί
ἀγαθὸν ἢ τί κακόν ἐστιν ἢ τί καλὸν ἢ τί αἰσχρὸν ἢ δίκαιον ἢ ἄδικον, πειθὼ δὲ περὶ αὐτῶν με μηχανημένος
ὥστε δοκεῖν εἰδέναι οὐκ εἰδὼς ἐν οὐκ εἰδόσιν μᾶλλον τοῦ εἰδότος;)
127
Para demonstrar a inconveniência da opinião do Fedro (para a persuasão é preciso
parecer, não ser ou conhecer o justo), Sócrates propõe uma analogia com alguém que,
através da persuasão oratória, poderia levá-lo a comprar um asno para lutar contra um
inimigo – convencendo-o de se tratar de um belo cavalo, com várias utilidades no serviço
militar e doméstico (260b1-c5). A persuasão, nesse sentido, sem exprimir o verdadeiro,
seria tanto prejudicial ao indivíduo, que seria persuadido pela “sombra de um asno”183
(260c7), quanto à cidade como um todo, por levar as pessoas a fazerem o oposto do bem
(260c10: ἀντ’ ἀγαθῶν). Embora a retórica pudesse replicar184 dizendo que tampouco os
conhecedores da verdade, sem retórica, teriam vantagem na arte da persuasão (260d8-9),
como se a técnica da retórica pudesse, em alguma medida, representar um saber
“neutro”, “imparcial” e, portanto, independente da questão da verdade, Sócrates afirma
que ela estaria mentindo, pois sequer poderia ser chamada de “arte” (260e4)185.
Nesse sentido, a persuasão não existiria enquanto produto de uma técnica neutra,
mas estaria imbricada a uma forma de condução psíquica, isto é, a uma psykhagogía: o
lógos verdadeiramente persuasivo é aquele que conduz quem o ouve a agir de
determinado modo (comprando um asno, por ex., mas também, diríamos, celebrando um
tratado de paz, se filiando a um partido político, iniciando uma nova atividade física,
aceitando uma proposta de casamento etc). Em suma, o persuadir engendra
consequências que dizem respeito não somente ao indivíduo, mas também à cidade como
um todo, visto que leva a determinada ação; exemplifica, portanto, aquilo que Sócrates,
na sequência, chama de “condução de almas” (261a8: ψυχαγωγία):
SÓC.: Ora, não seria a retórica como um todo uma espécie de arte na
condução de almas por meio de discursos – por meio de tribunais e
muitos outros colegiados públicos, mas também nos privados –, e a
mesma, tanto a respeito de assuntos pequenos como grandes? E nada
183
Conforme assinala Reis (2016, p. 213), a expressão “sombra de um asno” (260c7) refere-se a uma fórmula
proverbial para se referir algo desprovido de qualquer valor. O termo também aparece em Aristófanes, nas
Vespas (191).
184
Nessa passagem, temos um exemplo da figura de personificação ou prosopopeia: Sócrates trata a retórica
alegoricamente, como se ela pudesse defender-se das acusações. Destacamos que esse procedimento (de
resto comum na antiga retórica, ligada à noção de ékphrasis, cf. Rodolpho, 2010; Fowler, 1991), representa,
ironicamente, expediente retórico em passagem na qual Sócrates refutará a própria retórica,
compreendida como uma tékhne logõn.
185
Ao introduzir essa seção, Platão traz à tona um conceito disseminado de retórica: o de que a persuasão,
independente da verdade, tem a ver com o que se acredita, não com a verdade propriamente dita. Toda a
passagem parece ecoar a extensiva reflexão que se desenvolve no Górgias, quanto às pretensões da retórica
(454e-459c; 463c-465e; 502d-520b): os sofistas infundem crença, não conhecimento; são hábeis na
manipulação das massas (ignorantes), e sua prática, além de inútil à própria persuasão, é maléfica à cidade,
por ser incapaz de discernir o justo do injusto. No diálogo entre Polo e Sócrates (463b-465a), o estatuto
técnico da retórica é também negado: ela não se trata de uma arte, não articula um método, é apenas um
saber conjectural, uma atividade de adulação (463b1: κολακεία), visando a agradar, sem ter em vista o bem.
128
torna-se mais honrado do que o uso correto quando trata do que é sério
ou do trivial?186
(Phdr. 261a7-b2)
186
Cf. {ΣΩ.} Ἆρ' οὖν οὐ τὸ μὲν ὅλον ἡ ῥητορικὴ ἂν εἴη τέχνη ψυχαγωγία τις διὰ λόγων, οὐ μόνον ἐν
δικαστηρίοις καὶ ὅσοι ἄλλοι δημόσιοι σύλλογοι, ἀλλὰ καὶ ἐν ἰδίοις, ἡ αὐτὴ σμικρῶν τε καὶ μεγάλων
πέρι, καὶ οὐδὲν ἐντιμότερον τό γε ὀρθὸν περὶ σπουδαῖα ἢ περὶ φαῦλα γιγνόμενον;
129
Não é em vão que sejam evocados, logo em seguida, os exemplos de Nestor187,
Odisseu188 e Palamedes189, ao lado dos de Górgias190, Trasímaco191 e Teodoro192: são,
respectivamente, figuras míticas e históricas que se notabilizaram pelo uso de seus
discursos, influenciando e conduzindo a opinião helênica ou trazendo inovações na arte
retórica. A associação das práticas discursivas de personagens homéricos (Nestor,
Odisseu e Palamedes), às dos mestres de sofística e retórica contemporâneos a Sócrates
(Górgias de Leontini, Trasímaco da Calcedônia e Teodoro de Bizâncio) só pode ser lida
como uma manifesta ironia, ainda que não imediatamente reconhecida por Fedro193, o
seu principal efeito é semelhante àquele que se vai atribuir, na sequência, à arte retórica:
o de assemelhar tudo a tudo (261e3: πᾶν παντὶ ὁμοιοῦν) e de, em suma, confundir e anular
diferenças, levando um interlocutor ingênuo, como Fedro, uma audiência perplexa, ou
um leitor incauto, a assumir o que é pelo que parece ser (nesse processo, o orador bem
instruído na arte das palavras teria o poder de condução da alma do ouvinte, de
semelhança em semelhança, até o ponto que se quer demonstrar, ainda que este fosse o
contrário da crença inicial).
187
Nestor, filho de Neleu, rei da ilha de Pylos, é representado na tradição mítica (especialmente na Ilíada),
como um ancião de considerável vigor mental e físico, cujas palavras eram ouvidas pelos combatentes da
Guerra de Troia (cf. Howatson, 2005, p. 383).
188
Odisseu, ou Ulisses, filho de Laertes, rei de Ítaca, na mitologia foi um dos pretendentes de Helena,
embora sem chance de conseguir seu intento, por ser pobre. Casou-se com Penélope e esteve entre os
combatentes gregos da Guerra de Troia, cuja motivação mítica teria sido o rapto de Helena, esposa de
Menelau, pelos troianos. Odisseu é representado proeminentemente na Ilíada e na Odisseia, de Homero. Na
Ilíada (livros IX e X), suas habilidades oratórias se revelam quando persuade a armada de Aquiles a lutar
ao lado dos gregos (cf. Howatson, 2005, p. 388).
189
Na tradição mítica, Palamedes é lembrado como o inventor das letras e do alfabeto. Quando Odisseu
tentou se furtar de sua obrigação de entrar na luta contra os troianos, fingindo-se louco, Palamedes expôs
o seu ardil. Como consequência da vingança de Odisseu, que forjou uma carta na qual ele teria o intento
de trair os gregos por ouro, Palamedes foi condenado à morte. A mais célebre defesa de Palamedes é aquela
escrita por Górgias (cf. Howatson, 2005, p. 405).
190
Górgias de Leontini (c. 483-c. 385 a.C.) sofista e mestre de retórica em Atenas. Teve influência nas práticas
de oratória em Atenas – muitos oradores são reconhecidos por se utilizarem da “linguagem” gorgiânica:
com o predomínio das figuras da antítese, hipérbato, repetições, apóstrofes e metáforas. Na obra de Platão,
Górgias é representado como mestre de retórica, não como sofista. Suas obras remanescentes mais
importantes são: O tratado do não-ser, O elogio de Helena e Defesa de Palamedes (cf. Howatson, 2005, p. 253;
Nails, 2002, p. 157).
191
Trasímaco da Calcedônia (c. 455-.), sofista e mestre de retórica em Atenas. Seus ensinamentos parecem
ter influenciado o estilo oratório e consagrado certa escola em sua época, tendo se tornado conhecido por
defender o ritmo na prosa e a estrutura ornamentada da sentença. Aparentemente, foi amigo de Lísias. (cf.
Nails, 2002, p. 288; Howatson, 2005, p. 569).
192
Teodoro de Bizâncio é conhecido por ter sido o orador e mestre de retórica responsável por ter
introduzido importantes alterações na retórica forense. Além da menção no Fedro, é lembrado também por
Aristóteles (Rh. 1414b11-18), como um inovador da arte retórica grega (Nails, 2002, p. 280).
193
Ao se defrontar com essa estranha associação de personalidades tão distintas, Fedro se admira, dizendo
nada de semelhante ter ouvido a respeito (261c): “Por Zeus! Tampouco [ouvi dizer as artes] de Nestor, a
menos que faças Górgias um Nestor, ou de Trasímaco e Teodoro um Odisseu.” (Cf. Καὶ ναὶ μὰ Δί' ἔγωγε
τῶν Νέστορος, εἰ μὴ Γοργίαν Νέστορά τινα κατασκευάζεις, ἤ τινα Θρασύμαχόν τε καὶ Θεόδωρον
Ὀδυσσέα.).
130
Além disso, Sócrates parece pontuar, ao declinar tantos nomes, que os discursos
a que deram voz não constituiriam propriamente artes distintas (se de fato fossem artes),
com características diversas no passado e no presente, na épica e na sofística; tampouco
estariam limitados a tribunais e assembleias (como no caso dos sofistas e logógrafos da
época); mas, vistos no conjunto, poderiam manifestar um lógos indefinido, ou, como
Sócrates vai afirmar, “uma única e mesma arte a respeito de tudo o que é dito” (261e1-2:
περὶ πάντα τὰ λεγόμενα μία τις τέχνη). Assim, seja nas argumentações de um Odisseu
nos acampamentos de Guerra de Troia, seja nas demonstrações sofísticas de um Górgias,
o que se faz tanto em um caso como em outro é um uso indistinto e amorfo da linguagem,
cujo efeito é capturar a atenção e a opinião grega, levando-a a assumir algum
comportamento mediante uma persuasão fundada naquilo que “parece”, sem dar conta
das necessárias distinções.
Diga-se, de antemão, parecer estar pressuposto aqui o fato de que se podem
engendrar no discurso, e por meio dele, diferenças e semelhanças, procedimentos dos quais
podem decorrer tanto uma investigação compromissada com a busca da verdade – tópico
a ser examinado na sequência –, quanto um jogo de palavras que, incapaz de definir e
discernir, ludibria e engana aquelas almas que, de semelhança em semelhança, são
levadas não raro a assumir opinião contrária ao real: “quem mantém opiniões contrárias
à realidade e é enganado, é claro que desliza para tal condição por meio de alguma
semelhança” (Phdr 262b2-3)194. Ou seja, são “iludidos”, “enganados”, “ludibriados”
(ἀπατωμένοις) aqueles que mantêm opiniões contrárias ao real (παρὰ τὰ ὄντα
δοξάζουσι). Ora, é partindo das semelhanças (ὁμοιοτήτων) entre o que “parece ser”
(produto de um dokeîn – 262b3) e o que “é” (produto de um diagignóskein – 262a11), que
alguém é conduzido ao engano, pelo discurso de um hábil orador; em outras palavras, é
a semelhança que faria alguém levar um asno, e não um cavalo, para o campo de
batalha195. Conforme vimos, era pela aparência de se tratar de um discurso elevado e
inspirado por deuses que levara Fedro a se impressionar tanto com o primeiro discurso
de Sócrates. Se, como Sócrates e Fedro concordam, para quem ignora a verdade (262a9:
ἀλήθειαν ἀγνοῶν) é impossível discernir, distinguir, diferenciar (262a11: διαγιγνώσκειν),
194
Cf. Οὐκοῦν τοῖς παρὰ τὰ ὄντα δοξάζουσι καὶ ἀπατωμένοις δῆλον ὡς τὸ πάθος τοῦτο δι' ὁμοιοτήτων
τινῶν εἰσερρύη.
195
A associação entre o discurso e a batalha se faz a partir de diferentes ângulos nesse diálogo. Inicialmente,
é sugerida pela mera aproximação dos herois da guerra de Troia (Odisseu, Palamedes e Nestor) aos
representantes mais célebres da retórica grega (Górgias, Trasímaco, Teodoro). A ideia da batalha, ou do
combate, evoca também as três primeiras palavras na abertura do Górgias: “guerra e batalha” (447a1:
πολέμου καὶ μάχης). Ora, o efeito dessa associação entre o tema da guerra e dos discursos é aludir à
natureza agonística da retórica: a finalidade do orador é derrotar o discurso do seu oponente, obtendo
vitória através das palavras – não é, portanto, propiciar uma investigação em torno da verdade.
131
o contrário também pode ser válido: o diagignóskein (que significa “conhecer
diferenciando, analisando, divindindo”) é a condição de possibilidade para o
conhecimento da verdade.
A gravidade desse ponto, a de que essa tradição discursiva dos oradores, sofistas,
figuras míticas e históricas, se articule enquanto um lógos indefinido, que logra apenas
deslizar entre semelhanças e, assim, ser capaz de fazer alguém persuadido ser ludibriado,
levando-o a tomar o não-ser pelo ser, é que, no encalço da determinação de um antídoto
para esse phármakon, a separação da linguagem retórica de uma outra linguagem,
comprometida com a verdade, e tendo o diagignóskein como condição, é um problema
incontornável para Platão nessa passagem.
O caminho está aberto, portanto, para que se possa eleger precisamente a
diferença, como a marca fundamental do falar e pensar correto para Platão, ou seja, um
traço distintivo do lógos filosófico. Esse argumento, que é também defendido por
Marques (2006) a respeito do Sofista, mostra-se, portanto, confirmar no Fedro. Como
observa o comentador, a associação entre dialética e diferença tampouco se limita ao
diálogo estudado, no caso O sofista, mas também ocorre em “digressões” que aparecem
no Teeteto e no Político, diálogos aos quais poderíamos acrescentar o Fedro, ao qual o
comentário abaixo parece também se aplicar:
132
isso também ineficaz quanto a uma real persuasão – fato que foi comprovado na prática,
quando Sócrates lhe opôs outros discursos que se mostraram mais convincentes a Fedro.
Para isso, Sócrates e Fedro desenvolvem o raciocínio sintetizado nos pontos abaixo, que
gera uma primeira conclusão preliminar quanto à retórica em geral (3), e uma conclusão
final, quanto ao discurso de Lísias em particular (7):
1. há palavras que oferecem consenso quanto ao seu significado, tal como “ferro”
e “prata”, ao passo que há outras cujos valores não são consensuais, representando
objetos de desacordo, tal como “justo” (τὸ δίκαιον) e “bom” (τὸ ἀγαθόν) (263a);
2. a respeito daquilo sobre o que haja mais desacordo, é que os homens costumam
ser mais enganados; precisamente nesses assuntos é que a retórica tem mais poder de
atuação (263b);
3. por isso, a retórica precisa empreender um exercício de divisão das coisas
metodicamente, separando aquelas para as quais haja certeza daquelas nas quais os
homens estejam incertos, para, em seguida, falar com agudeza acerca daquilo que quer
falar, de acordo com a sua classe; em suma, um texto retórico eficiente seria aquele em
que houvesse organização metódica e reconhecimento das diferenças das propriedades
dos assuntos (263c);
4. o “amor” (ἔρως) é um dos termos em relação aos quais há desacordo, e isto se
prova pelo fato mesmo de se terem produzido discursos com teses opostas sobre ele
(263c);
5. quanto a esses discursos, enquanto no de Sócrates se apresentou uma definição
de éros, distinguindo-o e delimitando-o, Lísias, sem defini-lo, forçou os ouvintes a
pressuporem (e aceitarem) o seu conceito (de acordo com o que queria), iniciando o
discurso com o seu argumento conclusivo, o arrependimento de quem se deixaria levar
por um apaixonado (264a-b);
6. assim, as partes do discurso de Lísias apresentam-se confusas, de forma a ser
difícil de gerar discernimento, não oferecem distinções claras do que caracteriza o seu
tema, não revelam tampouco qualquer organização metódica (264b);
7. porquanto um discurso, como um organismo, deve ter pé e cabeça, partes
médias e finais claramente entrelaçadas, resta ao discurso de Lísias ser como a inscrição
para o túmulo de Midas, cujos versos se poderiam ler em qualquer ordem, embora
efetivamente diga muito pouco (264c)196.
196
A inscrição que Platão atribui, por intermédio de uma opinião comum, ao túmulo de Midas (264d3-6)
carece de uma ordem fixa, de um “início”, “meio” e “fim”, suas partes, portanto, são indiferentes:
“Virgem de bronze no túmulo de Midas fundada
133
A conclusão geral desse exercício analítico é identificar como traço de uma
retórica que seria realmente eficaz um exercício de divisão metódica, condição para que
o orador distinga aquilo quanto a que as pessoas estão certas, daquilo quanto a que se
pode haver uma disputa e, consequentemente, persuasão:
Ora, o que busca a arte retórica primeiro então precisa ter dividido essas
coisas metodicamente e captado a característica de cada uma das duas
classes: aquela em que a maioria está necessariamente incerta e aquela
em que não está.197
(Phdr. 263b6-9)
134
agudeza aquilo do que se vai falar (263c4: ὀξέως αἰσθάνεσθαι περὶ οὗ ἂν μέλλῃ ἐρεῖν). Por
que não produzia, portanto, tais distinções, o discurso de Lísias não logrou sequer ser
verdadeiramente convincente e persuasivo, o que se comprova pelo fato de ter
sucumbido tão logo Sócrates se lhe fez deparar outros discursos. A convicção de Fedro
não se demorou a mudar de partido, quando Sócrates defende outra tese sobre o assunto
(na palinódia) ou mesmo reformula a mesma tese (no segundo discurso do diálogo).
É digno de nota que, nesse passo, Sócrates e Fedro parecem se ater ao exame do
discurso de Lísias quanto à sua eficácia retórica, independente do valor de verdade da
tese que ele sustenta. Isso poderia sugerir que, não importando que posição seja
defendida, uma peça oratória poderia ainda assim ser persuasiva, se ela se elaborasse de
acordo com o método que Sócrates aqui salienta. Entretanto, esse não parece ser o caso.
Diferente dos elementos técnicos da retórica – objetos de ensino e aprendizagem nas
escolas dos sofistas, tema que será também posto em evidência à frente (266d-267d) –, a
característica de uma possível boa retórica, pautada nesses termos, não é atinente somente
à dimensão sensível do lógos, isto é, à léxis, a linguagem articulada em palavras faladas ou
escritas, mas diz respeito à sua dimensão inteligível, haja vista que uma boa retórica
pressupõe, conforme vimos, o conhecimento do verdadeiro, que se manifesta mediante
distinções entre o que é, o que parece ser e o que não é. A diferença, portanto, decorre de
um entrelaçamento indissociável entre ser e linguagem. Em outras palavras, não seria
possível separar forma e conteúdo de uma hipotética boa retórica. Permaneceria, assim,
válida a observação feita anteriormente por Sócrates (259e4-5): para se falar bem e de
forma bela (εὖ γε καὶ καλῶς ῥηθησομένοις), deve-se pressupor no pensamento do orador
um conhecimento do que é verdadeiro (εἰδυῖαν τὸ ἀληθὲς), fato que ficará ainda mais
claro na sequência, com o exame dos dois outros discursos remanescentes.
A primeira qualificação que Sócrates oferece em sua crítica aos dois discursos
restantes é de que se trata de um par de opostos (265a2: ἐναντίω). A contraposição que
eles apresentam – a mais evidente talvez seja aquela que se manifesta nas teses que
sustentam, um contra e outro a favor de éros – não pode ser lida, entretanto, como mera
demonstração da técnica sofística da antilogia198. Aliás, a favor desse argumento, parece
sintomático que Platão tenha citado brevemente o “Palamedes de Eleia” (261d6), como
um exemplo de orador que discursava através de opostos – os iguais e os desiguais (261d7-
198
Conforme apontamos antes, o perigo de tornar o movimento dialético como antilógico já era pautado
na República (5.454a1-9), exatamente na mesma passagem em que o dialégesthai aparecia associado, pela
primeira vez, ao movimento de divisão (diaíresis). Não me parece em vão que o tema seja novamente aqui
trazido à tona; parece-me, antes, mais um indício de uma relação conceitual consistente entre a República e
o Fedro, conforme já assinalamos muitas vezes.
135
8: ὅμοια καὶ ἀνόμοια), o uno e o múltiplo (ἓν καὶ πολλά), o repouso e o movimento (261d8:
μένοντά τε αὖ καὶ φερόμενα).
Embora, a partir de uma indicação de Quintiliano (Inst. Or. 3.1.10-11, séc. I d.C.),
haja quem sustente que a passagem faça uma alusão a Alcidamante (Dušanić, 1992; Salles,
2018), para vários comentadores (Yunis, 2014; Brisson, 2004; Velardi, 2006), o Palamedes
de Eleia citado no texto seria uma menção velada a Zenão de Eleia (séc. V a.C.). Esses
últimos se baseam não somente em duas fontes tardo-antigas – o comentário ao Fedro, do
escoliasta Hérmias (séc. V d.C.) e a obra doxográfica de Diógenes Laércio (D.L. 9.25.9-13,
séc. III d.C.) – como também, principalmente, no fato de que a prática discursiva que
Platão descreve nessa passagem pode, com efeito, ser reconduzida ao pensamento de
Zenão, a partir do conjunto de testemunhos e fragmentos disponíveis. Se consideramos,
a título de exemplo, a longa reflexão sobre o pensamento do eleata a partir do testemunho
presente em outro diálogo, o Parmênides (128c6-d2 = DK29a12)199, observamos não somente
uma homologia entre o que está exposto nas duas passagens, como somos também
levados a crer que as antinomias de Zenão (os iguais e os desiguais, o uno e o múltiplo, o
grande e o pequeno etc.) engendrariam o efeito de produzir uma apologia ao pensamento
de Parmênides, para cujo objetivo ele teria lançado mão de argumentos contrários,
demonstrando, assim, a invalidade da premissa oposta ao monismo (da pluralidade do ser
ou de seu movimento), por uma espécie de reductio ad absurdum200.
199
Cf. Tradução de Maura Iglésias & Fernando Rodrigues (2013):
[...] na verdade esses escritos prestam uma assistência ao argumento de Parmênides contra os que
tentam caricaturá-lo, [dizendo que], se um é, resulta para o argumento ser afetadopor coisas
múltiplas e ridículas, e mesmo contrárias a ele próprio. Assim sendo, esse escrito contesta os que
dizem [haver] o múltiplo, e lhes devolve na mesma moeda, com juros, ao querer demonstrar que a
hipótese deles, de que há múltiplas coisas, seria afetada por coisas ainda mais ridículas do que [a
hipótese] de que um é, se elas fossem desenvolvidas suficientemente. Foi devido a um tal espírito de
controvérsia que foi escrito por mim, quando jovem [...].
(Cf. ἔστι δὲ τό γε ἀληθὲς βοήθειά τις ταῦτα [τὰ γράμματα] τῷ Παρμενίδου λόγῳ πρὸς τοὺς ἐπιχειροῦντας
αὐτὸν κωμῳδεῖν ὡς εἰ ἕν ἐστι, πολλὰ καὶ γελοῖα συμβαίνει πάσχειν τῷ λόγῳ καὶ ἐναντία αὑτῷ.
ἀντιλέγει δὴ οὖν τοῦτο τὸ γράμμα πρὸς τοὺς τὰ πολλὰ λέγοντας, καὶ ἀνταποδίδωσι ταὐτὰ καὶ
πλείω, τοῦτο βουλόμενον δηλοῦν, ὡς ἔτι γελοιότερα πάσχοι ἂν αὐτῶν ἡ ὑπόθεσις, εἰ πολλά ἐστιν, ἢ
ἡ τοῦ ἓν εἶναι, εἴ τις ἱκανῶς ἐπεξίοι. διὰ τοιαύτην δὴ φιλονικίαν ὑπὸ νέου ὄντος ἐμοῦ ἐγράφη).
200
Comentando a passagem, Iglésias & Rodrigues (2013, p. 132) afirmam: “Para muitos comentadores, Zenão
teria dirigido seus argumentos especificamente contra os pitagóricos, para quem o número não era
concebido como um inteligível, e para quem a unidade matemática seria o constituinte último das coisas
sensíveis. Os paradoxos de Zenão, tanto aqueles sobre a multiplicidade, quanto aqueles sobre o
movimento, revelariam assim a inconsistência da concepção pitagórica, mostrando a impossibilidade de
serem as coisas sensíveis, bem como o próprio espaço e o próprio tempo, constituídas de uma
multiplicidade de unidades. (…). Essa interpretação, porém, não é aceita pela maioria dos intérpretes. De
fato, os argumentos de Zenão podem muito bem ser compreendidos como dirigidos à concepção intuitiva
do homem comum, que distingue no mundo uma pluralidade de coisas (…). Que Zenão fala das coisas
sensíveis parece claro, uma vez que, na crítica que lhe vai dirigir, Sócrates introduz a teoria das ideias
inteligíveis como solução das aporias que ele aparentemente vê como aplicando-se, nos argumentos de
Zenão, somente a coisas sensíveis”. Como explicam Kirk, Raven & Schofield (2013 [1983], p 290), “É verdade
que alguns dos argumentos de Zenão abalam, de fato, tanto as posições parmenidianas, quanto o senso
136
A partir desses testemunhos, se a técnica de Zenão parece sofística quanto à forma,
tendo por base o desenvolvimento de antilogias; compartilhando, nesse sentido, da
dýnamis de uma tékhne antilogiké (cf. R. 5.454a1), ou, como teria afirmado Zenão, produzido
uma obra movida por um espírito de competição, pelo gosto da vitória – philonikía (Prm.
128e2); por outro lado, quanto ao seu efeito, ela seria dialética, na medida em que
contribuiria, pela contradição, para distinguir o que parece ser (a pluralidade de sensíveis)
do que realmente é (a unidade inteligível)201. Assim, estaria aqui Platão reivindicando para
Sócrates o status de um “novo Zenão”?
Talvez a aproximação entre os dois filósofos represente um tour de force que nos
exija uma análise mais aprofundada, que, entretanto, não está no horizonte desta tese. Em
todo caso, parece-nos que, assim como para Zenão, a explicitação dos opostos em Platão
não tem o objetivo de confundir e enganar, de assemelhar dessemelhantes, de dissimular
o interlocutor, de produzir a mera contradição, ou mesmo de alçar os contrários à
condição de verdades relativas, ou contingentes, mais ou menos sujeitas ao poder
persuasivo do lógos com o qual se materializam. Sócrates, como o eleata, não teria também
o fito de suspender o juízo diante de teses mutuamente excludentes ou potencialmente
verdadeiras ou falsas. Sócrates, como Zenão, talvez pretenda rebater uma opinião
compartilhada pelos homens comuns e que assoma no discurso de Lísias e nas
considerações de seu amigo Fedro. Ao produzir os dois discursos, mais do que aproximar
contrários, com o objetivo de gerar perplexidade ou absurdo, Sócrates quer propiciar um
exercício dialético. Os dois discursos proferidos, bastante diversos na forma e no
conteúdo, promovem uma divisão no conceito de éros, mostrando-o duplo, para que,
depois, contrapostos e posicionados lado a lado, se possa obter uma compreensão mais
abrangente – e unificada – da realidade: isso significa que éros é e não é desmedida e
loucura humanas e irracionais; é e não é inspiração e loucura divinas e movidas pela
comum pluralístico. Com base nesta ideia, não devemos concluir que Zenão não fosse um parmenidiano,
mas talvez que ele o era mais no método do que na doutrina”.
201
É claro que os testemunhos de Platão no Fedro e no Parmênides não podem ser tomados isoladamente
para a compreensão do pensamento de Zenão, sem ser cotejada, por exemplo, com os testemunhos de
Aristóteles (Fís. 250a19 e ss. = DK29a29; Fís. 210b22 e ss.; 209a23 e ss. = DK29a24) e de outros autores antigos.
Em todo caso, como nosso interesse nessa breve análise é examinar o que representa a alusão a Zenão (“o
Palamedes de Eleia”) no Fedro, mencionar o testemunho do Parmênides pode contribuir, se não para
depreender o pensamento do eleata, ao menos para interpretá-lo na obra de Platão (já com a camada da
leitura platônica). Em todo caso, o fato de que Diógenes Laércio (VIII, 57, 1-2 = DK 29a10), citando
Aristóteles, atribua a Zenão a invenção da dialética, parece-nos bastante significativo, por também
colaborar para a nossa interpretação aqui:
“Aristóteles, no Sofista, afirma que, enquanto Empédocles foi quem primeiro descobriu a retórica,
Zenão foi quem [inventou] a dialética.”
(Cf. Ἀριστοτέλης δ' ἐν τῷ Σοφιστῇ (Rose 65) φησι πρῶτον Ἐμπεδοκλέα ῥητορικὴν εὑρεῖν, Ζήνωνα δὲ
διαλεκτικήν.)
137
razão, visando à aproximação das realidades inteligíveis; do mesmo modo como o ser
humano é e não é corporalidade corruptível em busca dos prazeres, é e não é alma imortal
que aspira ao Belo. Os dois discursos são, portanto, os dois membros do movimento da
divisão, a exigir, na sequência, um esforço de reunião.
Ao anunciar que seu terceiro discurso se tratava de uma “palinódia”, ou seja, de
uma retratação, a princípio Sócrates não simplesmente abandona ou renuncia à
definição de amor anteriormente formulada, mas amplia-a com uma nova definição,
talvez mais definitiva, porque em grau mais avançado de inteligibilidade, fato que se faz
observar não somente pelas considerações em torno do tema – a representação moderada
e piedosa de éros202 e sua elaborada articulação com a noção de psykhé, das Formas e do
Belo (o que acaba por também situar esse discurso na esteira dos desdobramentos
ontológicos, metafísicos e epistemológicos da República) –, como também pela maior
eficácia discursiva que resulta de sua organização formal – uma organização metódica,
clara, preocupada em oferecer definições a priori, que permite a identificação de
diferenças e o torna, por isso, filosófico, e também não inteiramente incapaz de
persuadir:
202
É importante assinalar que essa distinção também aparece, en passant, na República (III, 403a7-12). Nessa
passagem, aparece ligeiramente a distinção entre um amor sensato (σωφρόνως) e um amor licencioso, ou
intemperante. Diferente do Fedro, a loucura (μανία) está associada na República somente a essa segunda
forma de éros (do mesmo modo como é colocado no primeiro discurso de Sócrates):
- Então, o amor verdadeiro é inclinado a amar de forma sensata e harmoniosa a ordem e a beleza?
- Com certeza, afirmou ele.
- Portanto, nada de louco ou semelhante a licenciosidade deve se ligar ao amor verdadeiro?
- Nada disso.
(Cf. Ὁ δὲ ὀρθὸς ἔρως πέφυκε κοσμίου τε καὶ καλοῦ σωφρόνως τε καὶ μουσικῶς ἐρᾶν;
Καὶ μάλα, ἦ δ' ὅς.
Οὐδὲν ἄρα προσοιστέον μανικὸν οὐδὲ συγγενὲς ἀκολασίας τῷ ὀρθῷ ἔρωτι;
Οὐ προσοιστέον.)
203
Cf. καὶ οὐκ οἶδ' ὅπῃ τὸ ἐρωτικὸν πάθος ἀπεικάζοντες, ἴσως μὲν ἀληθοῦς τινος ἐφαπτόμενοι, τάχα δ' ἂν
καὶ ἄλλοσε παραφερόμενοι, κεράσαντες οὐ παντάπασιν ἀπίθανον λόγον, μυθικόν τινα ὕμνον
προσεπαίσαμεν μετρίως τε καὶ εὐφήμως τὸν ἐμόν τε καὶ σὸν δεσπότην Ἔρωτα, ὦ Φαῖδρε, καλῶν παίδων
ἔφορον.
138
Se o discurso de Sócrates, além de não desagradável de ser ouvido (265c4: οὐκ
ἀηδῶς ἀκοῦσαι), também foi persuasivo, por tocar a verdade, isso ocorreu porque ele
materializa uma “arte”, que Sócrates, na sequência explicita:
O que nos parece é que Sócrates, por meio dessas duas observações quanto aos
seus discursos, não somente explicita a diferença entre eles, mas também mostra na
prática uma decorrência teórica dessa diferença. É dialética a contraposição entre os dois
discursos (teria Sócrates, desde o início planejado discorrer sobre éros nesses dois atos?),
porque, na prática, possibilitou reunir coisas dispersas (265d3-4: τὰ πολλαχῇ
διεσπαρμένα) em uma visão de conjunto (265d3: εἰς μίαν τε ἰδέαν συνορῶντα ἄγειν),
definindo e delimitando o que é (265d4-5: ὃ ἔστιν ὁριζεῖν), dizendo, com isso, ao menos
algo claro e coerente (265d6-7: τὸ γοῦν σαφὲς καὶ τὸ αὐτὸ αὑτῷ ὁμολογούμενον). A
clareza (σαφεία) e a coerência, isto é, “o concordar consigo mesmo” (αὑτῷ ὁμολόγεσθαι),
seriam, portanto, frutos de um esforço de definir, distinguir e reorganizar, um esforço
que, somente ele, pode “tocar em algo do verdadeiro” (265b7: ἀληθοῦς τινος ἐφάπτεσθαι).
Desse modo, parece ficar assentada aqui a relação entre o verdadeiro, que seria o
objeto de uma retórica efetivamente persuasiva, e a diferença, que se manifesta somente
a partir de uma metodologia dialética, nos termos acima explicitados. Se extrapolarmos
os exemplos analisados e transpormos, por metonímia, esses princípios a uma “arte geral
dos discursos”, talvez já possamos admitir que está em jogo distinguir as fronteiras entre
um lógos que se manifesta no limite da linguagem técnica da retórica – como o discurso
de Lísias – e um lógos que transcende a sua dimensão técnica (ou sensível, se assim o
considerarmos seu arranjo de palavras) e pode se tornar filosófico, por representar uma
busca pelo inteligível, ou pela verdade. Trata-se este, então, de um lógos dialético.
Segundo essa nova metodologia, é característica da proposição manifesta através
de um lógos dialético participar da verdade em alguma medida. Entretanto, determinar
204
Cf. Εἰς μίαν τε ἰδέαν συνορῶντα ἄγειν τὰ πολλαχῇ διεσπαρμένα, ἵνα ἕκαστον ὁριζόμενος δῆλον ποιῇ
περὶ οὗ ἂν ἀεὶ διδάσκειν ἐθέλῃ. ὥσπερ τὰ νυνδὴ περὶ Ἔρωτος – ὃ ἔστιν ὁρισθέν – εἴτ' εὖ εἴτε κακῶς ἐλέχθη,
τὸ γοῦν σαφὲς καὶ τὸ αὐτὸ αὑτῷ ὁμολογούμενον διὰ ταῦτα ἔσχεν εἰπεῖν ὁ λόγος.
139
em cuja extensão se opera essa participação não parece possível nos horizontes do Fedro;
essa impossibilidade se traduz através do uso de recursos linguísticos com que se formula
o problema, tal como o emprego do advérbio de dúvida (265b5: ἴσως, “provavelmente”,
“talvez”), quanto a construção participial com genitivo partitivo, indefinida pelo emprego
de pronome (265b6: ἀληθοῦς τινος ἐφαπτόμενοι, “tocando em algo da verdade”).
Vale dizer que o lógos organizado de acordo com esse método – a dialética –
embora tenha em seu horizonte a compreensão da verdade, não a atinge senão mediante
uma incerteza a ele próprio inerente. Diferente do que parecerá mais tarde a Aristóteles,
do que decorre inclusive sua crítica a Platão205, a dialética não visa a produzir um perfeito
mapeamento ontológico da realidade hierarquicamente estruturado; trata-se, antes, de
método heurístico, instrumento de busca e distinção entre ideias, uma ajuda para a
reminiscência, garantindo o direcionamento correto da busca, sem, no entanto,
determinar uma conclusão unívoca (Marques, 2006, p. 64 et seq.). Volta à tona aqui,
portanto, aquela imagem do filósofo consagrada no “Decreto de Adrasteia” (249b-250a):
não é um sábio, mas um “amante do saber”, ele apenas pode apreender a verdade
mediante um processo de reconstituição de suas asas via pensamento, processo que pode
levá-lo a rememorar a visão do Belo. Vimos, no Banquete, como éros, sendo filósofo, não
era um sábio, mas um intermediário entre a ignorância e a sabedoria (Smp. 202a3: τι
μεταξὺ σοφίας καὶ ἀμαθίας). A filosofia, enquanto método, não oferece garantias, o
filósofo é movido por um desejo, tem à sua disposição um caminho (ὁδός), mas é filho da
penúria (πενία). Devassamos, portanto, terreno marcado por incertezas, no qual,
motivados por éros, engajamo-nos em uma luta constante e talvez interminável entre um
processo de recordação do inteligível e o esquecimento que se opera no sensível, entre o
amor ao saber que decorre da visão dos belos jovens206, e o amor irracional que move o
corcel irascível da alma.
205
Segundo Marques (2006, p. 63-64), o viés aristotélico para a compreensão da divisão em Platão supõe
para ela um alcance e uma função que Platão não parece lhe atribuir: a de representar espécie de
mapeamento lógico e ontológico totalizante. A base da crítica aristotélica a Platão reside no modo como
Aristóteles concebe a relação entre gênero e espécie (o mais universal se divide no menos universal; e o
resultado de tais divisões deveria representar um arranjo real das relações entre gêneros e espécies, que, em
Platão, são pensados como ideias separadas). Para Platão, contudo, não há uma hierarquia entre as ideias,
de modo que as formas de participação não seguem as mesmas regras do modo de participação entre um
particular e um universal aristotélicos. Assim, Platão não parece ter a mesma pretensão que Aristóteles tem
com seu o método, de propor uma estrutura ontológica. As críticas de Aristóteles ao método de divisão de
Platão podem ser colhidas principalmente em: A. Pr. 46a31-46b22; A. Po. 84a11; 91b11 et seq.; 83a1-92b20; 96b;
96a20-b35.
206
A ideia de que a rememoração da dimensão inteligível (aqui no caso, do Belo em si) tenha no sensível
(aqui no caso, a visão dos belos jovens) um ponto de partida através de uma semelhança não é nova em
Platão. A ideia já aparece, de certo modo, explicitada no Fédon, quando se postula, com alguma nitidez, que
é por intermédio da visão dos sensíveis que se chega ao inteligível (Phd. 74a9-b6):
140
Dois outros elementos também se precisam levar em conta para caracterização
dos discursos de Sócrates como a manifestação de um lógos dialético: primeiro, Sócrates
não é o sujeito exclusivo desse lógos, ele, na verdade, muda a orientação de seu discurso
mediante uma advertência divina, uma voz interior207. Em segundo lugar, esse discurso
se constitui como uma mistura, nele coexistindo uma dimensão divina (associada à
advinhação – 242c4 – e relacionada à visão das Formas, que se podem recuperar via
rememoração), e uma dimensão puramente sensível (revelada na primeira
caracterização de éros, que, embora refutada enquanto à sua vantagem para os amantes,
não é jamais negada quanto à sua existência e modo de afecção nos mortais208). Como
vimos na passagem supracitada (265b6-11), é dessa mistura que decorre a persuasão
verdadeira, por isso Sócrates – como exemplo prototípico do filósofo – também
representa e precisa conviver com a mistura intrínseca aos mortais – enquanto almas que
- Considera, então, se tudo não se passa desse modo. Afirmamos que há alguma coisa a que
damos o nome de igual; não imagino a hipótese de um pedaço de pau ser igual a outro, nem
uma pedra a outra pedra, nem nada parecido; refiro-me ao que se acha acima de tudo isso; a
igualdade em si. Diremos que existe ou que não existe?
- Existe, por Zeus, exclamou Símias, à maravilha.
- E que também saberemos o que seja?
- Sem dúvida, respondeu.
- E onde fomos buscar esse conhecimento? Não foi naquilo a que nos referimos há pouco, à
vista de um pau ou de uma pedra e de outras coisas iguais, que nos surgiu a ideia de
igualdade, que difere delas?
(Tradução de Carlos Alberto Nunes, cf. - Σκόπει δή, ἦ δ' ὅς, εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει. φαμέν πού τι εἶναι ἴσον,
οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ' ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν, ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι,
αὐτὸ τὸ ἴσον· φῶμέν τι εἶναι ἢ μηδέν;
- Φῶμεν μέντοι νὴ Δί', ἔφη ὁ Σιμμίας, θαυμαστῶς γε.
- Ἦ καὶ ἐπιστάμεθα αὐτὸ ὃ ἔστιν;
- Πάνυ γε, ἦ δ' ὅς.
- Πόθεν λαβόντες αὐτοῦ τὴν ἐπιστήμην; ἆρ' οὐκ ἐξ ὧν νυνδὴ ἐλέγομεν, ἢ ξύλα ἢ λίθους ἢ ἄλλα ἄττα
ἰδόντες ἴσα, ἐκ τούτων ἐκεῖνο ἐνενοήσαμεν, ἕτερον ὂν τούτων;)
207
Cf. Phdr. 242b-c “No momento em que eu estava para atravessar o rio, meu bom amigo, veio-me o sinal
divino que costuma-se manifestar-se em mim – e sempre para deter-me naquilo que estou prestes a fazer.
E, vinda dele, pareceu-me ouvir uma voz, que não me permitia partir antes que me purificasse, em razão
de alguma falta que eu tivesse cometido contra a divindade” (cf. Ἡνίκ' ἔμελλον, ὠγαθέ, τὸν ποταμὸν
διαβαίνειν, τὸ δαιμόνιόν τε καὶ τὸ εἰωθὸς σημεῖόν μοι γίγνεσθαι ἐγένετο – ἀεὶ δέ με ἐπίσχει ὃ ἂν μέλλω
πράττειν – καί τινα φωνὴν ἔδοξα αὐτόθεν ἀκοῦσαι, ἥ με οὐκ ἐᾷ ἀπιέναι πρὶν ἂν ἀφοσιώσωμαι, ὡς δή τι
ἡμαρτηκότα εἰς τὸ θεῖον).
208
Em suma, a dimensão dual de éros, que emerge como efeito dos diferentes discursos apresentados no
Banquete, conforme vimos, não é refutada no Fedro: o amor é e não é resultado de uma experiência sensível.
Parece-nos, portanto, que pensar o amor requer lidar com essa forma de raciocínio antilógico. Vem ao caso,
nesse sentido, o ensaio “Amor platônico?”, do Professor Marcelo Marques (2010, publicado no dossiê da
edição 146 da Revista Cult). Falando para um público mais amplo, Marques desmitificava as noções comuns
de idealização e afastamento da experiência humana que uma longa tradição crítica insiste em atribuir ao
pensamento platônico, abordando o clássico tema do amor em Platão, sob o signo de uma ambiguidade,
como deixa patente a interrogação contida no título de seu ensaio. Compartilhando com os leitores (não
especialistas) os caminhos de uma bem frequentada leitura do Banquete, Marques aborda o amor (dito)
platônico através de duas antilogias e uma consideração final: o amor é/não é um deus; o amor é/não é um
sentimento e, finalmente, o amor é loucura e filosofia.
141
perdem as asas, comandadas por cavalos opostos, restando apenas um vislumbre, um
esforço de reconquistar a visão do ser; uma visão, portanto, imperfeita, tentativa e incerta.
Ademais, a incerteza quanto à apreensão de uma verdade definitiva pelo lógos,
além de inafastável do método que se propõe – a dialética – e condigna do “não saber
socrático”, também torna manifesta a diferença desse saber em relação à presunção de
sabedoria dos que então eram considerados “sábios” em Atenas, entre eles Lísias, é claro,
mas também todos aqueles acima alinhados: Górgias, Teodoro, Trasímaco, entre tantos
outros. Diante dos discursos daqueles, a metodologia por Sócrates exemplificada só pode
ser mesmo radicalmente diferente – se ela não pode assegurar a apreensão plena e certa
da verdade, cuja presunção pode, na melhor das hipóteses, gerar apenas um efeito de
persuasão temporária, tal qual aquele que o discurso de Lísias havia produzido sobre
alma de Fedro; em sua incerteza, ela pode, entretanto, viabilizar um caminho, uma busca,
um método que potencialmente tangencia a verdade, dentro dos limites humanos.
Desse modo, assim como na República, a dialética, não podendo ser tomada em
abstrato, desvinculada do objeto sobre o qual incide, emerge como o corolário de uma
longa reflexão que a associa às visões platônicas da alma, de éros e do conhecimento. No
Fedro, conforme vimos até aqui, além desses compromissos, ela decorre também de um
processo de diferenciação – seja nas relações que ela estabelece com éros, seja no
contraste entre ela e outras formas do lógos. Em suma:
209
Tradução de Maria Cecília Gomes dos Reis, com adaptações.
Cf. {ΣΩ.} Τούτων δὴ ἔγωγε αὐτός τε ἐραστής, ὦ Φαῖδρε, τῶν διαιρέσεων καὶ συναγωγῶν, ἵνα οἷός τε ὦ
λέγειν τε καὶ φρονεῖν· ἐάν τέ τιν' ἄλλον ἡγήσωμαι δυνατὸν εἰς ἓν καὶ ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ' ὁρᾶν,
τοῦτον διώκω “κατόπισθε μετ' ἴχνιον ὥστε θεοῖο.” καὶ μέντοι καὶ τοὺς δυναμένους αὐτὸ δρᾶν εἰ μὲν
ὀρθῶς ἢ μὴ προσαγορεύω, θεὸς οἶδε, καλῶ δὲ οὖν μέχρι τοῦδε διαλεκτικούς. τὰ δὲ νῦν παρὰ σοῦ τε
καὶ Λυσίου μαθόντας εἰπὲ τί χρὴ καλεῖν· ἢ τοῦτο ἐκεῖνό ἐστιν ἡ λόγων τέχνη, ᾗ Θρασύμαχός τε καὶ
142
É possível chamar de “dialéticos” (διαλεκτικούς) aqueles que podem (δυνατὸν)
“olhar para o uno e para o múltiplo” (266b5-6: εἰς ἓν καὶ ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ’ ὁρᾶν). Ora,
se o uno está para o inteligível, assim como o múltiplo está para o sensível, o dialético tem
a faculdade (a dýnamis) de olhar nas duas direções, o que não significa que ele conviva com,
ou detenha a priori, os inteligíveis. Ademais, através da alegoria da biga alada,
aprendemos que a visão das Formas ocorrera para os mortais senão precariamente,
mediante um esforço de ascensão que consistia em domar forças psíquicas divergentes,
em uma luta penosa e difícil para a alma (247b5: δὴ πόνος τε καὶ ἀγὼν ἔσχατος ψυχῇ).
Depois disso, restou ao filósofo apenas agir como um pássaro sem asas, olhando para o
céu, desejando-o (249d-e).
O filósofo, portanto, mergulhado na dimensão sensível, que lhe afeta diretamente,
busca o inteligível; transita entre a pluralidade das percepções que lhe atravessam a alma
e o desejo de contemplação da unidade inteligível. Sendo assim, o filósofo não é da estirpe
dos deuses – não detém as visões puras da região supraceleste (246e-247c) – mas pode ser
como um deus (ὥστε θεοῖο). A dialética, portanto, é também como éros, presta a ser o liame
entre mortais e imortais, que, por seu intermédio, agem como que “inspirados por um
deus” (249d2-3: ἐνθουσιάζων). Assim, ela é a via que pode verdadeiramente conduzir a
alma – é ela, não a retórica, que é verdadeiramente psicagógica. E como ela o faz?
Mediante o processo de investigação capaz de reunir (συναγωγή) e separar (διαίρεσις),
que são movimentos impreteríveis para o pensar (φρονεῖν) e o falar (λέγειν), do qual
Sócrates testemunha ser um amante (ἐραστής)210. Sem perder de vista, contudo, que tais
divisões e reuniões se devem realizar segundo “articulações naturais [κατ’ εἴδη] e tentar
não despedaçar as partes, à maneira de um mau açougueiro”211, concordarmos com Reis
(2016), quanto ao fato de que:
οἱ ἄλλοι ρώμενοι σοφοὶ μὲν αὐτοὶ λέγειν γεγόνασιν, ἄλλους τε ποιοῦσιν, οἳ ἂν δωροφορεῖν αὐτοῖς
ὡς βασιλεῦσιν ἐθέλωσιν;
{ΦΑΙ.} Βασιλικοὶ μὲν ἇνδρες, οὐ μὲν δὴ ἐπιστήμονές γε ὧν ἐρωτᾷς. ἀλλὰ τοῦτο μὲν τὸ εἶδος ὀρθῶς
ἔμοιγε δοκεῖς καλεῖν, διαλεκτικὸν καλῶν· τὸ δὲ ῥητορικὸν δοκεῖ μοι διαφεύγειν ἔθ' ἡμᾶς.
210
O fato de Sócrates se qualificar como “amante” (ἐραστής) também unifica essa discussão àquela
precedente sobre éros. É digno de nota que, também no Filebo (16b-17b), passagem onde há nova tentativa
de definir dialética, Sócrates se qualifica como “amante” do “caminho mais belo”, que é a dialética, um
caminho, entretanto, que tem deixado Sócrates em “aporia”.
211
Cf. 265e1-3: Τὸ πάλιν κατ' εἴδη δύνασθαι διατέμνειν κατ' ἄρθρα ᾗ πέφυκεν, καὶ μὴ ἐπιχειρεῖν
καταγνύναι μέρος μηδέν, κακοῦ μαγείρου τρόπῳ χρώμενον.
143
da organização dos particulares e, inversamente, descer ao particular
sem perder de vista a ordem do todo – ou seja, a capacidade de
discriminação da unidade na multiplicidade e da multiplicidade na
unidade (“olhar para o uno e para o múltiplo como entidades naturais”
[266b5-6] – constitui para Sócrates uma condição essencial do pensar e
do dizer, ao menos no que concerne a uma verdadeira arte do discurso.
(Reis, 2016, p. 222)
212
Cf. δὲ ῥητορικὸν δοκεῖ μοι διαφεύγειν ἔθ'ἡμᾶς.
144
dialética – e, com isso, veríamos frustrada, cabalmente, qualquer pretensão filosófica da
retórica em si – ou se trata, ainda, de uma terceira via? Vejamos.
Sócrates e Fedro relembram, juntos, de alguns dos elementos técnicos da arte dos
discursos (περὶ λόγων τέχνης: 266d-267d), o que revela não ignorância, mas notável
familiaridade com tais conceitos (Yunis, 2014, p. 200): 1. as partes de um discurso: o
proêmio (προοίμιον), a exposição (διήγησις), a refutação (ἔλεγχος) e a recapitulação
(ἐπάνοδος); 2. as suas subpartes: a apresentação de testemunhos (μαρτυρία), de indícios
(τεκμήρια), de probabilidades (εἰκότα) e a confirmação (πίστωσις), partes associadas à
exposição; 3. outros artifícios técnicos ligados à expressão: a alusão (ὑποδήλωσις), o elogio
(παρέπαινος), a censura (παράψογος); 4. e ainda algumas figuras e virtudes discursivas
citadas pelos rétores: a diplasiologia (διπλασιολογία), a gnomologia (γνωμολογία), a
iconologia (εἰκονολογία) e a ortodicção (ὀρθοέπεια). Os interlocutores delineiam,
portanto, uma microteoria da retórica, fazendo menção aos seus postulados técnicos mais
importantes e aos seus representantes mais notáveis213, uma breve demonstração de um
corpo de conhecimentos técnicos que, conforme afirma Fedro, seria capaz de encher
muitos livros sobre uma arte dos discursos (Phdr. 266d5-6). O fato de que eles não
definam, expliquem ou exemplifiquem o significado desses conceitos retóricos reforça,
ainda, a familiariadade que provavelmente possuíam acerca deles.
Embora o inventário desses elementos postule tratar-se de uma arte de grande
poder sobre a multidão reunida (268a3-4: μάλα ἐρρωμένην...ἔν γε δὴ πλήθους συνόδοις)
– opinião que Fedro mantém inicialmente –, elas engendrariam, no parecer de Sócrates,
apenas um saber superficial sobre coisas diversas – um conhecimento incidente sobre
questões particulares, essencialmente livresco, a respeito de conhecimentos relacionados
a diferentes artes, como a medicina, a tragediografia, a música etc. – e que, articulado no
discurso, seria capaz de gerar algum efeito somente em pessoas ignorantes na verdadeira
arte: ninguém seria levado a sério se alegasse ser médico por ter somente lido livros sobre
a técnica da medicina (288c3-5); tampouco Péricles reconheceria a retórica como sendo o
domínio daquelas técnicas que estão nos livros (269b4-c5):
213
Trasímaco da Calcedônia, Teodoro de Bizâncio, Pródico de Élis, Eveno de Páros e Górgias de Leontini
perfazem a galeria de oradores de grande renome citados nessa parte. Para além dos demais oradores
citados desde o início do diálogo, a começar por Lísias, essas citações são prova do diálogo que Platão faz
com figuras importantes da cultura letrada de sua época, dos quais não se pode dissociar seu projeto
filosófico.
145
fazê-lo vomitar, se assim me parecer, ou, pelo contrário, evacuar, e
inúmeros outros efeitos desse tipo. E, sabendo todas essas coisas,
pleiteio ser médico e fazer que outros também o sejam ao transmitir-
lhes tal conhecimento”. Ouvindo-o, que te parece que eles diriam?
FEDRO: O que mais senão perguntar-lhe se, além disso, ele sabe a quem,
quando e por quanto tempo proceder em cada caso?
SÓCRATES: E se a resposta fosse: “Não, de modo algum. Porém creio que
quem aprender essas coisas comigo será capaz de fazer isso que me
perguntas”. E então?
FEDRO: Diriam, suponho eu, que o homem está louco por pretender ter-
se tornado um médico tendo lido em um outro livro algures e tendo-lhe
caído nas mãos alguns remédios ao acaso, nada entendendo da arte.214
(Phdr. 268a8-c4)
214
Cf. {ΣΩ.} Εἰπὲ δή μοι· εἴ τις προσελθὼν τῷ ἑταίρῳ σου Ἐρυξιμάχῳ ἢ τῷ πατρὶ αὐτοῦ Ἀκουμενῷ εἴποι ὅτι
“Ἐγὼ ἐπίσταμαι τοιαῦτ' ἄττα σώμασι προσφέρειν, ὥστε θερμαίνειν τ' ἐὰν βούλωμαι καὶ ψύχειν, καὶ
ἐὰν μὲν δόξῃ μοι, ἐμεῖν ποιεῖν, ἐὰν δ' αὖ, κάτω διαχωρεῖν, καὶ ἄλλα πάμπολλα τοιαῦτα· καὶ
ἐπιστάμενος αὐτὰ ἀξιῶ ἰατρικὸς εἶναι καὶ ἄλλον ποιεῖν ᾧ ἂν τὴν τούτων ἐπιστήμην παραδῶ,” τί ἂν
οἴει ἀκούσαντας εἰπεῖν;
{ΦΑΙ.} Τί δ' ἄλλο γε ἢ ἐρέσθαι εἰ προσεπίσταται καὶ οὕστινας δεῖ καὶ ὁπότε ἕκαστα τούτων ποιεῖν,
καὶ μέχρι ὁπόσου;
{ΣΩ.} Εἰ οὖν εἴποι ὅτι “Οὐδαμῶς· ἀλλ' ἀξιῶ τὸν ταῦτα παρ' ἐμοῦ μαθόντα αὐτὸν οἷόν τ' εἶναι [ποιεῖν]
ἃ ἐρωτᾷς;”
{ΦΑΙ.} Εἰπεῖν ἂν οἶμαι ὅτι μαίνεται ἅνθρωπος, καὶ ἐκ βιβλίου ποθὲν ἀκούσας ἢ περιτυχὼν
φαρμακίοις ἰατρὸς οἴεται γεγονέναι, οὐδὲν ἐπαΐων τῆς τέχνης.
215
Conforme analisa Vegetti (2012, p. 65), uma primeira e importante inflexão teórica do pensamento
médico hipocrático teria ocorrido a partir do século III a.C., durante o período helenístico; com a fundação
do Museu e da Biblioteca de Alexandria (séc. III a.C.), médicos como Herófilo (335-280 a.C.) e Erasístrato
(310-250 a.C.) puderam realizar, com base nas obras de zoologia aristotélicas – Sobre as partes dos animais,
Da geração dos animais, História dos animais –, pesquisas no campo da anatomia humana que permitiram
um avanço do conhecimento científico, abrindo caminho para que Galeno (c. 129-217 d.C.), já no período
romano, elaborasse uma robusta sistematização do conhecimento médico, cujos princípios, atravessando
todo o período medieval, ainda se podem em parte reconhecer na medicina moderna (cf. Vegetti &
Gastaldi, 1996; Rebollo, 2006; Peixoto, 2009; Singer, 2016).
146
médica e seus debates no âmbito da filosofia antiga – dos quais, certamente, o diálogo
Fedro representa um testemunho –, queremos chamar atenção para o fato de que a
hipótese levantada por Sócrates poderia ser reformulada em duas perguntas:
1. alguém que se apresente como médico, convenceria outro a se submeter ao seu
tratamento, caso admitisse não ter toda a ciência ligada ao ofício?;
2. torna-se médico quem baseia seu saber na leitura de livros?
Deixando a segunda questão para a próxima parte da tese, quando proporemos
discussão sobre o lugar da escrita, analisemos as consequências da primeira. A cena
criada por Sócrates retrata, com efeito, alguém que pretende ser médico e transmitir esse
saber a outros (268b3-5). De partida, anuncia dominar um repertório de conhecimentos
(que substâncias aplicar ao corpo para aquecê-lo ou esfriá-lo, fazê-lo vomitar, evacuar etc.
– 268a9-b3), mas não é capaz de avaliar a quem, quando e por quanto tempo aplicar tais
técnicas (268b6-9). Isso parece mostrar que o pretenso médico, mesmo dispondo de um
conjunto de informações teóricas e de prescrições técnicas tomadas em abstrato, não
domina a adequação e a métrica de emprego dessas técnicas, habilidades que, por outro
lado, decorrem não somente de um estudo teórico, livresco, mas de uma prática efetiva
da medicina. Nesse sentido, embora alegue “conhecer tais coisas” (268b3: ἐπιστάμενος
αὐτὰ), e se “julgue digno de ser um médico” (268b3: ἀξιῶ ἰατρικὸς εἶναι), na verdade,
como afirma Fedro, ele nada conhece dessa arte (268c4: οὐδὲν ἐπαΐων τῆς τέχνης). O
verbo axíoo, aqui empregado por Platão, que significa “considerar-se digno”, tem sentido
mais ligado a dokéo (“achar, pensar, ter a opinião de”) e a pisteúo (“por a fé em algo,
acreditar, crer”), do que a oída (“saber”, “conhecer”) ou epístamai (“saber fazer algo, ser
capaz de, compreender, conhecer”).
Desse modo, quando o pretenso médico se revela como quem, de fato, não
domina o conhecimento necessário à prática médica, o seu discurso deixa de ser
persuasivo ou psicagógico, ou seja, não convence a Fedro, nem é suficiente para levá-lo a
qualquer ação no campo de uma terapia (ao contrário, é o homem que, na opinião de
Fedro, precisaria de tratamento, estando louco – 268c2: μαίνεται ἅνθρωπος). Queremos
dizer com isso que o lógos persuasivo e psicagógico – como deve ser o caso de um discurso
médico – não prescinde da verdadeira ciência, não pode abrir mão do saber. A relação
entre crer saber, saber e persuadir permite, como já mencionamos em nota, um paralelo
com o Górgias, no qual Platão, no diálogo entre Sócrates e Górgias, nos leva a concluir
que a retórica é da ordem do “crer” (454e7: πιστεύειν) e não do “saber” (454e7: εἰδέναι).
Também naquele diálogo, Górgias anunciava, a favor da retórica, pretensão
análoga à que observamos nessa cena do Fedro (456a-457c). Górgias narra que, certa vez,
147
estando em companhia de seu irmão Heródico, diante de um doente recalcitrante em se
submeter a um tratamento doloroso, teria sido ele, Górgias – um rétor – e não Heródico
– seu irmão médico –, que o persuadira a aderir à terapia. Disso decorreria que o rétor
poderia ser mais persuasivo que o próprio médico, mesmo no âmbito de seus assuntos,
sem, contudo, que isso legitimasse um emprego de tal habilidade de forma injusta,
furtando ao médico, por exemplo, a sua arte. Como diz também Górgias: a retórica é
como a luta, devendo ser usada de forma justa (Grg. 457b4-5: ἀλλὰ δικαίως καὶ τῇ ῥητορικῇ
χρῆσθαι, ὥσπερ καὶ τῇ ἀγωνίᾳ). Entretanto, Sócrates rebate que um rétor, sendo um
ignorante da arte médica, não seria capaz de persuadir também a quem conhece a arte.
Assim sendo, aquele que não sabe (459b3: ὁ οὐκ εἰδὼς) somente é mais persuasivo que o
que sabe (459b3-4: τοῦ εἰδότος…πιθανώτερος), em meio aos que não sabem (459b4: ἐν
οὐκ εἰδόσι). Conclui-se, então, que “parecendo conhecer” (459d6: δοκεῖν εἰδέναι), a
retórica seria também apenas aparentemente persuasiva, somente o sendo diante de
ignorantes.
Esses comentários sobre o Górgias recolocam e respondem em parte ao problema
que destacamos na passagem do Fedro (alguém que se apresente como médico,
convenceria outro a se submeter ao seu tratamento, caso admitisse não ter toda a ciência
ligada ao ofício?). A situação hipotética descrita por Sócrates, de fato, é a confirmação do
élenkhos apresentado no Górgias, mostrando que o crer, sem o saber, não é suficiente para
tornar um discurso persuasivo – e, portanto, psicagógico. Somos também reconduzidos
à questão que deixamos aberta, no início da última seção, antes de termos examinado a
primeira ocorrência do termo psykhagogía (261a8): o discurso persuasivo é também belo,
ou lhe basta parecer belo?.
Vimos que, naquela ocasião, a pretensão da retórica de gerar persuasão à revelia
da verdade pressupunha uma psykhagogía no sentido de impor a outro uma crença,
levando-o a uma ação, sem compromisso com o bem – tal como aquela, na ocasião
comentada, de comprar um asno no lugar de um cavalo, “de levar gato por lebre”. Porém,
tendo percorrido o texto, chegamos não somente a uma segunda ocorrência do termo
psykhagogía no Fedro (271c10), mas somos testemunhas também de um completo
renversement do seu sentido: não sendo persuasivo o lógos sem conhecimento, tampouco
ele pode ser condutor de almas. A psykhagogía, portanto, nessa segunda passagem, tem
como condição a investigação da verdade, tem compromisso com a ciência e com o belo,
trata-se, portanto, de um efeito da dialética. Em suma, do mesmo modo que o movimento
dialógico levou-nos a diferenciar dois gêneros distintos de éros e de lógos, também
148
estamos diante de gêneros distintos de psykhagogía no Fedro. Consideremos a observação
de Sócrates:
216
Cf. {ΣΩ.} Ἐπειδὴ λόγου δύναμις τυγχάνει ψυχαγωγία οὖσα, τὸν μέλλοντα ῥητορικὸν ἔσεσθαι ἀνάγκη
εἰδέναι ψυχὴ ὅσα εἴδη ἔχει. ἔστιν οὖν τόσα καὶ τόσα, καὶ τοῖα καὶ τοῖα, ὅθεν οἱ μὲν τοιοίδε, οἱ δὲ τοιοίδε
γίγνονται· τούτων δὲ δὴ οὕτω διῃρημένων, λόγων αὖ τόσα καὶ τόσα ἔστιν εἴδη, τοιόνδε ἕκαστον. οἱ μὲν
οὖν τοιοίδε ὑπὸ τῶν τοιῶνδε λόγων διὰ τήνδε τὴν αἰτίαν ἐς τὰ τοιάδε εὐπειθεῖς, οἱ δὲ τοιοίδε διὰ τάδε
δυσπειθεῖς· δεῖ δὴ ταῦτα ἱκανῶς νοήσαντα, μετὰ ταῦτα θεώμενον αὐτὰ ἐν ταῖς πράξεσιν ὄντα τε καὶ
πραττόμενα, ὀξέως τῇ αἰσθήσει δύνασθαι ἐπακολουθεῖν, ἢ μηδὲν εἶναί πω πλέον αὐτῷ ὧν τότε ἤκουεν
λόγων συνών.
217
Cf. Peixoto (2011, p. 174): “È allora nella scena della dialettica platonica, costituente allo stesso tempo la
direzione verso la quale e il cammino per il quale noi ci lasciamo condurre nella lettura del Fedro, che ogni
passo di questo intricato intinerario trova la sua ragion d’essere e la sua forza nell’economia del dialogo,
assicurandogli efficacia dimostrativa. È come se lo stesso Platone, così comme l’auriga del mythos, ci
149
É no que diz respeito à sua característica psicagógica e dialética que o discurso de
Sócrates, na sua palinódia, podia se distanciar daqueles “discursos que se ouviram”
(271e2: τότε ἤκουεν λόγων συνών). De fato, o lógos socrático se enveredou por uma
pesquisa da alma, para depois compreender o seu próprio estatuto, com a noção de
dialética. Quanto ao método, configurava, portanto, uma prática dialética; quanto ao
efeito, uma psicagogia – estando uma e outro associados à busca de compreensão das
coisas (271d7: ταῦτα ἱκανῶς νοήσαντα), a uma observação de como elas subsistem na
prática (271d8-e1: ταῦτα θεώμενον αὐτὰ ἐν ταῖς πράξεσιν ὄντα τε καὶ πραττόμενα),
resultando em uma percepção aguda (271e1: ὀξέως τῇ αἰσθήσει δύνασθαι ἐπακολουθεῖν).
Assim, buscando-se compreender o discurso “daquele que busca a retórica” (271d1: τὸν
μέλλοντα ῥητορικὸν ἔσεσθαι), chegamos à palinódia de Sócrates, cuja natureza, dialética
e psicagógica, é bastante diversa dos demais discursos retóricos. Ou seja, buscando-se
determinar o lógos retórico, o máximo que se pode dizer dele é negativamente: ele não é
dialético, tampouco psicagógico.
Assim, tendo percorrido outro caminho, ficou patente, mais uma vez, a
dificuldade de apreender a retórica como uma tékhne. Se, no primeiro movimento, a
crítica aos discursos consagrara a ineficácia do discurso de Lísias e, isoladamente, do
primeiro discurso de Sócrates, em prol de uma abordagem então denominada dialética,
que teria como efeito uma verdadeira condução de almas; perguntamos: essa segunda
pesquisa, que parte do campo das técnicas retóricas, para chegar ao esvaziamento do seu
objetivo persuasivo e psicagógico, decide, afinal, a desvantagem da retórica em relação à
dialética? Ou, em que pese isso, restaria ainda uma alternativa para a retórica, uma
terceira via entre a retórica de Lísias e a dialética de Sócrates? A hipótese pode ser
formulada no seguinte comentário de Sócrates:
conducesse in um viaggio attraverso i meandri del logos, presentandoci un’esperienza delle sue pratiche
nell’Atene del suo tempo. Lungo questo periplo, come quando camminiamo per una strada, ci
allontaniamo dalla prospettiva tradizionale e ci avvinciniamo alla quale vuole accennare Platone. I limiti e
le possibilità dei differenti logoi appaiono gradualmente e irrevocabilmente e, una volta dialetticamente
confrontati, lasciano aperto il cammino per il renversement della retorica in dialettica – expressione per
eccelenza del logos filosofico, aspirazione di ogni aner philologos. Per quanto riguarda la psychagogia, non
sarà minore l’impegno di riqualificarla (...)”.
150
SÓCRATES: É provável, ó valoroso, que seja Péricles o mais perfeito de
todos no que diz respeito à retórica.218
(Phdr. 269d2-e2)
Nessa passagem, Sócrates parece indicar dois caminhos para uma arte da retórica:
1. aquele de que são representantes Lísias e Trasímaco, sobre os quais Sócrates informa
não representarem o caminho (μέθοδος) para quem quer se tornar um “orador
eloquente” (269d4-5: ῥήτωρ ἐλλόγιμος); e 2. aquele outro, o caminho de Péricles, o “mais
perfeito de todos” (269e1: πάντων τελεώτατος) quanto à arte da retórica. Em primeiro
lugar, há que se observar o caráter particularmente hipotético e conjectural da
observação de Sócrates, o que se nota pelo emprego dos verbos que exprimem
modalidade epistêmica: dýnasthai (“é provável”, “é possível” – 269d2), kindyneúei (“corre-
se o risco de”, “é provável” – 269e1) e dokeî (“parece a mim”, “considero” – 269d7). Isso
apenas permite evidenciar uma hipótese a ser examinada, não uma posição a ser
defendida. E a hipótese é a seguinte: para além da dialética, seria concebível uma forma
de retórica também psicagógica, tal com talvez teria sido a de Péricles, e que tivesse como
ingredientes “conhecimento e prática” (269d5: ἐπιστήμην τε καὶ μελέτην)?
No exame dessa questão, que é desenvolvida entre 269c-274b, há uma divergência
entre os comentadores, que ensaiam alguns caminhos interpretativos. Tentarei agrupá-
los em duas linhas que colocam em perspectivas diferentes esse confronto entre dialética
e retórica:
1. seguindo a leitura com Hülsz-Piccone (1992); Cassin (1997), Trindade (2011) e
Trabattoni (2003), poder-se-ia afirmar que a “verdadeira retórica”, aquela que se institui
na prática do discurso à moda de Péricles, seria uma espécie de “complemento” ou
“aplicação” para a dialética, um ramo da retórica que, embora devidamente diferenciado
daquela modalidade mais vulgar, sobressairia como espécie de ancilar para a própria
filosofia. Nesse caso, haveria algo como uma “retórica filosófica”, diferente da retórica
livresca e escolar, por um lado; mas igualmente distinta da dialética, por outro;
2. lendo a passagem com Brisson (1992), Centrone (2011) e Reis (2014) e Perine
(2014), essa “verdadeira retórica” seria não mais que uma técnica subordinada à própria
dialética, ou uma parte dela, não podendo, portanto, ser vista como um saber autônomo,
218
Cf. {ΣΩ.} Τὸ μὲν δύνασθαι, ὦ Φαῖδρε, ὥστε ἀγωνιστὴν τέλεον γενέσθαι, εἰκός – ἴσως δὲ καὶ ἀναγκαῖον
– ἔχειν ὥσπερ τἆλλα· εἰ μέν σοι ὑπάρχει φύσει ῥητορικῷ εἶναι, ἔσῃ ῥήτωρ ἐλλόγιμος, προσλαβὼν
ἐπιστήμην τε καὶ μελέτην, ὅτου δ' ἂν ἐλλείπῃς τούτων, ταύτῃ ἀτελὴς ἔσῃ. ὅσον δὲ αὐτοῦ τέχνη, οὐχ
ᾗ Λυσίας τε καὶ Θρασύμαχος πορεύεται δοκεῖ μοι φαίνεσθαι ἡ μέθοδος.
{ΦΑΙ.} Ἀλλὰ πῇ δή;
{ΣΩ.} Κινδυνεύει, ὦ ἄριστε, εἰκότως ὁ Περικλῆς πάντων
τελεώτατος εἰς τὴν ῥητορικὴν γενέσθαι.
151
uma terceira via. Nesse caso, a “verdadeira retórica” seria senão outra forma da própria
dialética; não haveria, portanto, uma dimensão filosófica da retórica em si, apenas a
dialética.
Na primeira linha, seria preciso conceber que a dissociação drástica entre filosofia
e retórica presente no Górgias, teria, no Fedro, dado lugar a uma relação menos tensa, o
que representaria uma espécie de “concessão pragmática” do filósofo a uma forma de
discurso não necessariamente dialético, mas uma nova modalidade de retórica, também
não desprovida de arte ou de utilidade para a cidade e para o filósofo. Nesse sentido,
conforme argumenta Trabattoni (2003, p. 114-115), a antiga ruptura entre filosofia e
retórica teria sofrido uma atenuação no Fedro: o filósofo poderia lançar mão de uma
forma de persuasão que, embora diferente daquela dos logógrafos e sofistas, não deixaria
de ser essencialmente retórica, ainda que fundada em procedimentos dialéticos. No
mesmo sentido, Hülsz-Piccone (1992, p. 262) argumenta que essas reflexões fariam
emergir uma espécie de “retórica científica”, que, assemelhando-se a uma forma de
ontologia especializada e complexa, por pressupor um conhecimento do verdadeiro, não
poderia ser concebida ainda como a própria dialética, mas como uma aplicação dela. Está
implícito em seu argumento o pressuposto de que um método investigativo que se
delineia dialeticamente requisitaria, de algum modo, uma linguagem retórica para sua
exposição. Cassin (1997, p. 830), mostra que no Fedro haveria uma reconsideração da
retórica, por comparação com o Górgias: o movimento que vai de uma primeira retórica
(sofística) para uma segunda retórica (filosófica) reconhece nessa segunda “saberes
necessários” (269b8: ἀναγκαῖα μαθήματα) que a elevam como caminho para se alcançar
a dialética. Trindade (2011, p. 309), na mesma direção, assinala que a condenação
veemente da retórica, tal qual se assiste no Górgias, cede lugar não somente a uma
reavaliação, quanto também a uma defesa no Fedro, no qual ela pode ser entendida como
um genuíno complemento para a filosofia. O que há de comum nessas leituras é a
concepção de uma modalidade de linguagem retórica que, embora diferente em muitos
sentidos daquela que exemplificavam os discursos dos sofistas e oradores, poderia,
entretanto, ser legitimada filosoficamente. Para além disso, há também o pressuposto de
que teria havido uma atenuação da crítica à retórica como formulada no Górgias: outro
indício disso seria o elogio final a Isócrates, no Fedro (279a1-b3), que não é interpretado
como uma ironia.
Sustentado pela análise que propusemos nesta seção, e pelas leituras de Brisson
(1992), Reis (2014) e Centrone (2011), parece-nos estranha essa espécie de “concessão
pragmática” de Platão à retórica no Fedro – não tanto pela relativização, talvez admissível,
152
daquela preliminar condenação dessa arte, tal qual havia sido expressa, por exemplo, no
Górgias; mas sobretudo pela construção do diálogo que se sustenta sobre um jogo de
oposições binárias, sem deixar, como seria o caso, espaço para uma espécie de “terceira
via” da pesquisa e da linguagem filosófica. De fato, como vimos, temos no Fedro uma
primeira oposição entre duas formas de éros; e uma segunda oposição entre duas formas
de lógos – o retórico e o dialético (para além de outras oposições binárias, como as duas
forma de psykhagogía). Esse jogo de oposições, que tem entrelaçamentos intrínsecos,
conforme esperamos ter mostrado, é também uma exemplificação da definição avançada
de dialética como divisão e reunião (266b3-c9). Sendo assim, do mesmo modo como
restaria somente à segunda concepção de éros a pretensão de aspirar a uma posição divina
e filosófica, seria digna do filósofo tão somente a segunda forma de lógos. Prova disso é
que, como apontamos, todas as tentativas de se chegar a uma retórica verdadeira
culminaram com a definição da própria dialética: buscando uma nova retórica,
compromissada com a verdade, Sócrates e Fedro conseguem alcançar não mais que a
própria filosofia.
Nesse sentido, estou inclinado a concordar com Brisson (1992, p. 75 et seq.), que a
alusão a Péricles – justificada pelos saberes que representa219 – delineia, no máximo, um
quadro que inclui, no bojo dessa “retórica”, implicações fundamentais do campo de uma
psicologia e metafísica platônicas, o que resulta por torná-la, em outras palavras, uma
arte essencialmente dialética. Assim, essa “nova retórica”, por ostentar uma espécie de
lastro com o verdadeiro, não é diferente do modo de ação do filósofo, não faria sentido,
portanto, concebê-la como uma arte ou linguagem autônoma, uma terceira via,
intermediária, entre retórica e dialética. Quando importa a investigação da verdade – e
portanto, uma forma de persuasão verdadeira e psicagógica – a dialética e a “verdadeira
retórica” parecem não mais que formas de dizer o mesmo; se há uma retórica verdadeira,
essa não é outra coisa que a própria dialética.
219
No Fedro (270a), com efeito, quando Péricles é alçado a grande exemplo de uma “excepcional retórica”, a
posição de Sócrates se justifica pelo domínio de uma eloquência (ἀδολεσχίας), elevadas especulações sobre
a natureza (μετεωρολογίας φύσεως πέρι), elevação do pensamento (ὑψηλόνοος) e dotes naturais.
153
CONCLUSÃO DA PARTE α´
Nos dois capítulos que compuseram a primeira parte desta tese, tentamos abordar
diferentes caminhos que se podem percorrer para a compreensão da dialética enquanto
um método e uma ciência estreitamente ligados ao fazer filosófico em Platão. Sem a
pretensão de exaurir o debate, ensejamos principalmente oferecer a análise a partir do
Fedro – diálogo no qual se explicita de forma particular não somente uma prática, mas
também, de certo modo, uma teoria da dialética, através de sua definição e contraposição
a outras modalidades do lógos. Para isso, consideramos, particularmente:
1. a dialética como a proposição de um método de pesquisa, que é definida como
divisão (διαίρεσις) e reunião (συναγωγή) no Fedro, mas mantém relações com a reflexão
precedente sobre o método na República e com pressupostos de ordem metafísica,
ontológica e epistemológica, formulados canonicamente naquela obra (especialmente
entre os livros V-VII), mas também retomados no Fedro, particularmente na palinódia
socrática (Phdr. 243e-257b);
2. as relações entre a dialética, enquanto modalidade do lógos, e os demais temas
que perpassam o próprio Fedro, anotando particularmente as contraposições dialéticas
de éros, lógos e psykhagogía. No exame dessas noções, o Fedro não somente mostrou conter
uma reflexão sobre a noção de dialética – oferecendo, ademais, aquela que é considerada
a primeira definição do termo no corpus Platonicum (Phdr. 266b3-c9) –, mas também
revelou-se ele próprio uma performance do método de divisão e reunião.
Quanto ao primeiro ponto, observamos que, no Fedro, assim como na República, a
proposição de um novo método – a dialética – resultou de uma exigência ligada a
formulação de um novo objeto – a psykhé e as Formas. Na República a proposição da
dialética como o “caminho mais longo” – tanto enquanto um método de pesquisa, quanto
uma ciência dos inteligíveis – decorreu de um impasse ligado ao método de hipóteses
previamente empregado, que se revelou insuficiente para a pesquisa desses objetos – a
psykhé e as Formas de justiça, temperança, coragem etc. No Fedro, a dialética já parecia
pressuposta desde o início, quando verificamos, com efeito, sua performance, através da
reflexão sobre éros. Ao mesmo tempo que a distinguia do discurso retórico –
exemplificado pelo discurso de Lísias –, o Fedro tornou também evidente a prática
dialética como movimento de divisão e reunião – portanto, de esforço de contraposição,
distinção, diferença e compreensão conjunta. Tal foi realizado mediante as
contraposições existentes entre os dois discursos proferidos por Sócrates, que ensejaram
154
a compreensão de outras contraposições – de éros, de manía, de psykhagogía, tendo como
base a distinção sensível vs. inteligível, que é pressuposta no Fedro.
Resultado dessas oposições dialéticas, chegou-se não somente à distinção entre o
lógos retórico e dialético, como também à noção de filósofo – o “amante do saber”, sujeito
de um movimento psíquico de reaproximação do real para além dos sensíveis e do
múltiplo, mas que, por outro lado, tem precisamente neles seu ponto de partida (a visão
dos belos jovens, por exemplo, evoca uma lembrança do Belo em si). Nesse sentido,
mostramos como um paralelo entre o Fedro e a República mostra como o Fedro pressupõe
questões já apresentadas na República, mas vai além delas, ao retornar a antigos
problemas ausentes naquela obra – tais como a concepção de aprendizado associado à
reminiscência e a crítica à retórica – ou avançar em outras questões – como a própria
determinação da dialética como divisão e reunião e o problema da escrita.
Quanto ao segundo ponto, tentamos descortinar a estreita relação entre éros e a
atividade do filósofo, mostrando como Platão, no Fedro, por meio da apresentação e
análise crítica de discursos que opunham noções antagônicas do amor, logrou fazer uma
divisão: de um lado, um éros motivado por, e restrito a, um apelo sensual, gerador de
intemperança e impiedade. Por outro lado, um éros divino, racional e equilibrado, que
emerge como condição fundamental para a filosofia, pois permite ao filósofo mover-se
pelo desejo de reconquistar as “asas” que lhe podem alçar à visão perdida das Formas. A
contraposição entre definições antagônicas de éros recolocava, de outro modo, a
contraposição sensível vs. inteligível e sua compreensão decorria precisamente dessa
divisão metodológica que, entretanto, permite também uma reunião – i.e. o filósofo é e
não é tomado por um éros humano e irracional, por uma hýbris; é e não é compelido ao
conhecimento das Formas por um éros divino e racional, por um enthousiasmós. O filósofo,
portanto, está no entrelugar: assim como vimos no Banquete, descende da Penúria e do
Recurso, é um intermediário (μεταξύ) entre mortais e deuses; não é um deus, portanto
não é um sábio, mas, uma vez tomado por éros divino, aspira a tornar-se cada vez mais
“semelhante aos deuses” – e, portanto, diverso dos demais mortais.
Vimos também que, do mesmo modo como Platão logra operar uma distinção
entre gêneros distintos de éros; na segunda parte do diálogo, também há uma distinção
entre gêneros distintos de lógos. De um lado, há o discurso de Lísias, que representa um
exemplo de um texto elaborado de acordo com as técnicas da retórica, que informavam
boa parte das referências intelectuais dos gregos (Lísias, Górgias, Trasímaco etc.). Sem o
compromisso com a verdade, o discurso de Lísias não se revelou verdadeiramente
psicagógico, haja vista que seu efeito de persuasão resultou temporário e limitado à
155
ignorância daquele que os recebeu, no caso, Fedro, que não lhe percebia os variados
defeitos que Sócrates lhe fez ver. Por outro lado, o binômio dos discursos proferidos por
Sócrates, que se apresenta no centro do diálogo, pôde ser concebido como exemplo de
uma prática do lógos comprometido com exercício metódico de definição, divisão e
reunião e, por esse motivo, ao fim do diálogo, não somente se mostrou verdadeiramente
psicagógico – responsável mesmo por uma “conversão” de Fedro à filosofia, ou à dialética
–, como também não carente de persuasão.
Todos esses elementos, que apresentamos aqui em síntese, permitem-nos,
portanto, assumir que a dialética, tal como emerge das reflexões do Fedro, não pode ser
pensada como um problema isolado da matéria que a precede no diálogo – o tratamento
conferido aos discursos e a seu conteúdo, o tema de éros –, nem da relação que estabelece
com o pensamento platônico – especialmente com as imbricações teóricas que mantém
com a epistemologia, psicologia e ontologia e metafísica platônicas, a partir da República.
De resto, como afirma Dixsaut (2001, p. 9), a dialética não se limita a uma reflexão
metodológica isolada, mas emerge, na obra de Platão, como um modo de regular o
pensamento intrinsecamente ligado à visão do real e à sua busca, o que representa a
própria filosofia220: “a dialética é a forma natural do lógos, do pensamento e do saber; lógos,
pensamento e saber possuem uma destinação dialética221”.
Entre todas essas reflexões, ficou em aberto, no exame das relações entre dialética
e retórica, avaliar o tema da escrita, que é especialmente importante nesse debate. Por
aparecer no Fedro fortemente associada à escrita, também não examinamos o lugar da
memória e da reminiscência, que estão também estreitamente ligadas à concepção de
filosofia, como aparece no Fedro. Pretendemos, nos próximos capítulos, dirigirmo-nos
particularmente a esses aspectos. Em suma: participando dos diferentes lógoi, a escrita
representa ou não um problema filosófico em Platão? Se sim, de que maneira as letras
escritas se relacionam com o conhecimento, com a memória e com a dialética?
220
Por esse motivo, parece-nos bastante inusitada e insustentável a tese segundo a qual 1) não haveria uma
unidade no Fedro, mas um tratamento isolado e prioritariamente “literário” de diferentes temáticas
culturais; 2) o Fedro não acrescentaria nada a uma concepção platônica da filosofia. Essas ideias são
defendidas por Destopoulos (1992, p. 242).
221
Cf. La dialectique est la forme naturelle du logos, de la pensée et du savoir, logos, pensée et savoir ont une
destination dialectique.
156
β´ EÍDOLON
222
Cf. {ΦΑΙ.} Τί σοι φαίνεται, ὦ Σώκρατες, ὁ λόγος; οὐχ ὑπερφυῶς τά τε ἄλλα καὶ τοῖς ὀνόμασιν εἰρῆσθαι;
{ΣΩ.} Δαιμονίως μὲν οὖν, ὦ ἑταῖρε, ὥστε με ἐκπλαγῆναι. καὶ τοῦτο ἐγὼ ἔπαθον διὰ σέ, ὦ Φαῖδρε,
πρὸς σὲ ἀποβλέπων, ὅτι ἐμοὶ ἐδόκεις γάνυσθαι ὑπὸ τοῦ λόγου μεταξὺ ἀναγιγνώσκων· ἡγούμενος
γὰρ σὲ μᾶλλον ἢ ἐμὲ ἐπαΐειν περὶ τῶν τοιούτων σοὶ εἱπόμην, καὶ ἑπόμενος συνεβάκχευσα μετὰ σοῦ
τῆς θείας κεφαλῆς.
{ΦΑΙ.} Εἶεν· οὕτω δὴ δοκεῖ παίζειν;
{ΣΩ.} Δοκῶ γάρ σοι παίζειν καὶ οὐχὶ ἐσπουδακέναι;
223
Conforme já apontado no capítulo II, Sócrates desenvolve seus comentários a partir de uma espécie de
antítese, enaltecendo, por um lado, a elocução, o estilo claro, conciso e preciso do discurso (234e7-8) e, por
outro, estimando-o como repetitivo e raso, por recapitular o mesmo argumento duas ou três vezes (235a3-
5), como apontamos naquela ocasião, essa contraposição antitética também evidencia a estruturação
dialética do lógos no diálogo.
224
234d8: SÓC.: Pareço brincar e não falar sério? (Cf. {ΣΩ.} Δοκῶ γάρ σοι παίζειν καὶ οὐχὶ ἐσπουδακέναι;)
157
com seus comentários?
Quando se dirige a Sócrates, Fedro destaca o caráter extraordinário das palavras
(ὀνόματα), no modo de apresentação do discurso (εἰρῆσθαι). Essa alusão discreta à
expressão linguística, em que se inclui a seleção vocabular, parece ser a senha com que
Platão chama atenção do leitor para um exame mais atento das palavras que se seguem,
do modo como elas próprias são escolhidas e empregadas na sequência da réplica de
Sócrates e que tipo de sentidos elas evocam.
Com efeito, ao descrever sua experiência de ouvinte do discurso proferido por
Fedro, Sócrates vale-se de palavras e expressões que dão margem a interpretações
divergentes: afirma “estar divinamente (δαιμονίως) estupefato (ἐκπλαγῆναι)”. Ora, o
verbo aqui traduzido por “estar estupefato” não necessariamente possui um matiz
semântico elogioso, antes se refere a uma espécie de arrebatamento dos sentidos – seja
pela admiração, seja pelo medo, seja pelo terror225. Do mesmo modo, o advérbio
empregado (δαιμονίως), traduzido por “divinamente”, ao mesmo tempo que permite ser
associado ao caráter superior, maravilhoso, extraordinário da divindade (δαίμων)226,
também encontra na língua grega acepções negativas, denotando expressão de desdém,
compaixão, ironia ou má sorte227. O mesmo ocorre com o verbo com o qual Sócrates
225
Conforme indica Bailly (2000), o verbo ekplésso ou ekplétto, tem como acepções possíveis as de “ser
derrubado por um golpe”; “estar atordoado, admirado, tomado de medo”. De acordo com o verbete de LSJ
destacamos, entre os sentidos dessa palavra: “perder os sentidos por um choque, surpresa ou pânico”; “ser
dominado por uma paixão dominante e repentina”.
226
Conforme comentam Cancik & Schneider (2004, p. 283), a palavra daímon deriva de daío (“dividir”;
“distribuir”), por estar vinculado à noção de distribuir os destinos entre os humanos. Frequentemente, se
lhe é atribuído um caráter divino, sendo chamado também de “deus” (θεός), por exemplo, em Homero (Il.
I, 222) e em Eurípedes (Ba. 42). Em Platão, refere-se a entidade intermediária entre seres humanos e divinos.
Tal é o que está manifesto, por exemplo, no Banquete (202d8-e1), passagem em que Éros é definido como
um daímon, entidade que ocupa uma posição intermediária entre mortais e imortais:
– Nesse caso, o que seria Eros, um mortal?
– Já tratamos disso, Éros está entre o mortal e o imortal.
– Ele é então o quê, Diotima?
– Ele é um grande dáimon. Todo demônico está entre um deus e um mortal.
(Tradução de Donaldo Schüler, 2010, Cf.
Τί οὖν ἄν, ἔφην, εἴη ὁ Ἔρως; θνητός; Ἥκιστά γε. Ἀλλὰ τί μήν; Ὥσπερ τὰ πρότερα, ἔφη, μεταξὺ
θνητοῦ καὶ ἀθανάτου. Τί οὖν, ὦ Διοτίμα; Δαίμων μέγας, ὦ Σώκρατες· καὶ γὰρ πᾶν τὸ δαιμόνιον
μεταξύ ἐστι θεοῦ τε καὶ θνητοῦ).
227
Conforme anota Bailly (2000), a expressão é encontrada em sentidos negativos ou ambíguos na obra de
Platão. Tal é o que ocorre na passagem do Górgias (489d1), na referência que Sócrates faz de Cálicles,
bastante exagerada e irônica: “SÓC.: Extraordinário [δαιμόνιε] homem, mas eu também supunha há tempos
que tu dizias que o superior é algo deste tipo, e volto a perguntar por desejo de entender claramente o teu
argumento” (Tradução de Daniel R. N. Lopes, 2011, cf. {ΣΩ.} Ἀλλ' ἐγὼ μέν, ὦ δαιμόνιε, καὶ αὐτὸς πάλαι
τοπάζω τοιοῦτόν τί σε λέγειν τὸ κρεῖττον, καὶ ἀνερωτῶ γλιχόμενος σαφῶς εἰδέναι ὅτι λέγεις). No Teeteto
(180b8-c1), o termo também aparece associado a expressão de desdém: “TEO.: Que discípulos, homem
[δαιμόνιε]? Entre eles, ninguém é discípulo de ninguém” (Tradução de Carlos Alberto Nunes, 1988, Cf.
{ΘΕΟ.} Ποίοις μαθηταῖς, ὦ δαιμόνιε; οὐδὲ γίγνεται τῶν τοιούτων ἕτερος ἑτέρου μαθητής). Esse uso da
expressão na obra de Platão reflete, possivelmente, certa ambiguidade com que o termo é também usado
na tradição grega precedente. Como afirmam Cancik & Schneider (2004, p. 283): “In Greek and Roman
158
qualifica sua experiência: “compartilhar de um delírio báquico” (συνεβάκχευσα). O
vocábulo, que parte de acepções relacionadas ao culto do deus Dioniso228, também
permite ser compreendido como “agir desmedidamente”, como que “tomado por um
frenesi”, “descontrolado”.
Assim, a réplica de Sócrates, que corresponde ao primeiro momento de reflexão
sobre o lógos no Fedro, insinua uma crítica à linguagem que se apresenta de forma
ambígua, a partir do emprego das próprias palavras com que ela é formulada nos
comentários de Sócrates. Afinal, poderíamos considerar a posição socrática claramente
contrária ou a favor daquela primeira opinião de Fedro, que considerava a expressão
linguística do discurso de Lísias “extraordinária” (ὑπερφυῶς)?
Sem pretensão de oferecermos por ora uma resposta para essa questão, queremos
apenas apontar, de antemão, que essa passagem é bastante ilustrativa do modo como a
crítica ao lógos, em geral, e à escrita, em particular, desenvolve-se ao longo do diálogo.
Diferente do que se passa com outros temas filosóficos que são discutidos por Platão a
partir de uma tradição até certo ponto consagrada, cujas teses e princípios são debatidos
e eventualmente corroborados ou refutados dialeticamente, a questão da linguagem
limita-se a ser formulada como uma interrogação, e emerge sob o signo de uma dúvida,
para a qual a ironia é um dos recursos estilísticos platônicos bastante adequados229.
Com efeito, ao longo da obra de Platão, poderíamos assinalar alguns temas que,
embora já discutidos na tradição filosófica precedente, são novamente examinados e
debatidos. Tal é o caso, por exemplo, das questões do ser e do não-ser, do uno e do
múltiplo e da alma, que são tratadas, respectivamente, entre outros diálogos, no Sofista,
no Filebo e no Fédon e recuperam os debates de Parmênides, Heráclito, Górgias, entre
outros, e são por isso mesmo considerados questões filosóficas de partida. O tema da
linguagem, por outro lado, diferente desses temas, é formulado filosoficamente sob o
signo da dúvida. A linguagem (e a escrita, em particular), seria ou não um problema
filosófico em Platão? Como veremos na próxima seção, nem todos os comentadores
Antiquity, demons could be beings with good or bad intentions but already in Homer, especially in the
Odyssey, demons were more commonly associated with disagreeable events”.
228
Bakkheúo, faz menção ao culto do deus Baco, segundo nome de Dioniso (cf. aparece em Heródoto, nas
Hist. 4, 79). Conforme assinalam Cancik & Schneider (2004, p. 498), a primeira menção a Dioniso na
literatura grega (em Homero, Il. VI, 132), faz alusão a ele através do epíteto mainómenos (o deus extático), o
que sugere que o êxtase era parte do culto de Dioniso. Bákkhe é o termo técnico do culto de Dioniso. Ligado
ao êxtase, ao vinho, ao entusiasmo (enthousiasmós), a éros e às mulheres.
229
Além da passagem do Fedro aqui examinada, essa característica ambígua com que o tema da linguagem
é tratado fica patente também no Crátilo, texto que, após demorada apresentação das possibilidades da
prática da etimologia (396d-421c), encerra com uma afirmação bastante ambígua de Sócrates, no seu
epílogo: “Pois é, talvez, Crátilo, seja dessa forma, talvez não” (Crátilo, 440d2-3, Cf. ἴσως μὲν οὖν δή, ὦ
Κρατύλε, οὕτως ἔχει, ἴσως δὲ καὶ οὔ).
159
concedem à questão o estatuto de uma legítima questão filosófica. No Fedro, em
particular, o caráter aberto desse tema é reforçado pela sombra de incerteza com que ele
é apresentado nessa primeira posição de Sócrates, fato que desafia o leitor de Platão a
interpretações complexas e das quais resultam, nem sempre, posições definitivas, como
veremos à frente, com o exame do status quaestionis, no capítulo III230.
Outra passagem do Fedro que demonstra a formulação aberta e dúbia do tema da
linguagem é aquela em que assoma, pela primeira vez, a reflexão sobre um dos gêneros
da linguagem escrita praticados em Atenas, a logografia. No terceiro interlúdio do
diálogo (Phdr. 257b-259d), o ponto é tratado por meio do confronto de opiniões que Fedro
e Sócrates exibem quanto à arte dos logógrafos231. Fedro traz à tona a opinião comum,
que considerava desonrosa a posição desses profissionais, cuja atividade, trazendo
vergonha aos homens influentes e veneráveis da cidade (257d5-6), ainda os poderia
associar à vergonhosa figura dos sofistas (257d7-8)232. Sócrates intenta desfazer esse pré-
julgamento, considerando que:
230
Entre os diferentes comentadores, avaliaremos as diferentes interpretações que se podem encontrar em
Schleiermacher (2008 [1804]), Krämer (1959), Szlezák (2009 [1985], 2011 [2004]), Reale (2007 [1980], 2004
[1991]), Hösle (2008), Perine (2014), Burger (1980), Vlastos (1981), Ferrari (1990), Trabattoni (2003), Brisson
(2003), Derrida (2004 [1972]).
231
O logógrafo (isto é, o escritor de discursos) ocupava uma posição bastante importante na sociedade
ateniense (Centrone, 2014, p. XIX; Cancik & Schneider, 2004, p. 792). Em geral, produzia discursos forenses
a serem apresentados pelos litigantes em causa própria. O termo era usado pejorativamente para
caracterizar oponentes políticos (como aparece em Demóstenes, 19, 250). No contexto do Fedro, contudo,
não faz sentido considerar a opinião do personagem contra os logógrafos como uma crítica velada a Lísias.
Embora Lísias fosse, de fato, um logógrafo, sua condição de meteco (estrangeiro residente em Atenas), não
o habilitava a se posicionar no debate político corrente (Yunis, 2014, p. 170).
232
A atividade do sofista como vergonhosa é lugar comum na obra de Platão. Como exemplo, no Protágoras,
embora o sofista seja apresentado como o “homem mais sábio” (309d2), a possibilidade de vir a se tornar
um sofista traz vergonha para Hipócrates (311e1-312a7):
- Que outro nome aplicamos a Protágoras, como dizemos de Fídias, que é escultor, e de Homero,
que é poeta? Qual é a designação peculiar a Protágoras?
- Sofista, Sócrates, respondeu; é assim que lhe chamam.
- É na qualidade de sofista, por conseguinte, que lhe vamos dar dinheiro?
- Perfeitamente.
- E se a mesma pessoa insistisse em perguntar-te: E que pretendes ser com os ensinamentos de
Protágoras?
Ao responder-me, enrubesceu – pois já estava suficientemente claro para que eu pudesse ver-lhe o
rosto:
- Por coerência com o que dissemos antes, é claro que para ser sofista.
- Pelos deuses!, lhe disse; e não te envergonhas de te apresentares aos helenos na qualidade de
sofista?
- Muito, Sócrates, por Zeus, se tiver de dizer o que penso.
(Tradução de Carlos Alberto Nunes, 2002, cf. τί ὄνομα ἄλλο γε λεγόμενον περὶ Πρωταγόρου ἀκούομεν;
ὥσπερ περὶ Φειδίου ἀγαλματοποιὸν καὶ περὶ Ὁμήρου ποιητήν, τί τοιοῦτον περὶ Πρωταγόρου
ἀκούομεν; { – } Σοφιστὴν δή τοι ὀνομάζουσί γε, ὦ Σώκρατες, τὸν ἄνδρα εἶναι, ἔφη. { – } Ὡς σοφιστῇ
ἄρα ἐρχόμεθα τελοῦντες τὰ χρήματα; { – } Μάλιστα. { – } Εἰ οὖν καὶ τοῦτό τίς σε προσέροιτο· “Αὐτὸς
δὲ δὴ ὡς τίς γενησόμενος ἔρχῃ παρὰ τὸν Πρωταγόραν;” { – } Καὶ ὃς εἶπεν ἐρυθριάσας – ἤδη γὰρ
ὑπέφαινέν τι ἡμέρας, ὥστε καταφανῆ αὐτὸν γενέσθαι – Εἰ μέν τι τοῖς ἔμπροσθεν ἔοικεν, δῆλον ὅτι
σοφιστὴς γενησόμενος. { – } Σὺ δέ, ἦν δ' ἐγώ, πρὸς θεῶν, οὐκ ἂν αἰσχύνοιο εἰς τοὺς Ἕλληνας σαυτὸν
σοφιστὴν παρέχων; { – } Νὴ τὸν Δία, ὦ Σώκρατες, εἴπερ γε ἃ διανοοῦμαι χρὴ λέγειν.)
160
1. até os mais presunçosos dos políticos valorizam a logografia, que se revela um
instrumento pelo qual eles podem enaltecer seus admiradores e, por conseguinte, a si
próprios (257d9-258b5);
2. a escrita confere imortalidade aos oradores e aos políticos poderosos (tais como
a Licurgo, Sólon ou Dario233), aos quais se imputa, por causa das letras, semelhança com
os deuses (258b10-c6).
Nesse sentido, Sócrates parece desenvolver o seu raciocínio na direção de uma
aparente absolvição in dubio pro reo da escrita de discursos, ou, ao menos, no sentido de
atenuar uma talvez mais incisiva crítica à escrita a ser apresentada adiante – de fato,
como ele argumenta, não seria vergonhoso em si mesmo escrever discursos (258d1-2: οὐκ
αἰσχρὸν αὐτό γε τὸ γράφειν λόγους), mas falar ou escrever não de forma bela, mas feia e
desonrosa (258d4-5: μὴ καλῶς λέγειν τε καὶ γράφειν ἀλλ’ αἰσχρῶς τε καὶ κακῶς).
Entretanto, se a escrita seria absolvida, desde que acompanhada de beleza, restaria ainda
compreender, precisamente, em que consistiria a “bela escrita”, isto é, “qual seria a
maneira bela e não bela de escrever?”234.
Essa questão de fundo, que parece motivar a reflexão sobre a logografia nessa
passagem, volta à tona na reflexão sobre a invenção da escrita (274b-278b) e ilustra esse
caráter ambíguo com que o problema é formulado em Platão. O problema da linguagem,
do lógos – do escrever (γραφεῖν), em particular – suscita uma indagação: seria a escrita
amiga, inimiga ou indiferente à prática da filosofia, prática que, afinal, interessa de perto
a Sócrates e que se cumpre determinar como dialética? Qual seria o modo do “escrever
belamente” (καλῶς γράφειν)? A partir dessas questões, seria possível sustentar que há
uma “filosofia da escrita” no Fedro?
Nos capítulos III e IV, que compõem esta segunda parte da tese, temos como meta
examinar a formulação desse problema, avaliando, particularmente, algumas propostas
de interpretação já consagradas em torno do tema. Considerando que as duas passagens
supracitadas se apresentam como espécie de antessala da mais contundente e direta
crítica à escrita presente em todo o corpus Platonicum, isto é, a narrativa da invenção da
233
Licurgo: legislador lendário de Esparta, considerado pelos gregos como o fundador da Constituição
espartana e do sistema militar, que teria vivido entre os séculos VIII e VII a.C. (Howatson, 2005, p. 335).
Sólon (c. 640-540 a.C.): legislador e poeta ateniense é reputado por ter dado conselhos que culminaram na
vitória grega da batalha de Salamina e por ter revogado as leis de Draco em prol de um código legal mais
humano e moderado (Howatson, 2005, p. 530). Dario (c. V a.C.): rei persa que restaurou a ordem política do
Império Persa, revisando as fronteiras e criando instituições na sociedade persa (Howatson, 2005, p. 169). É
interessante notar aqui que os exemplos citados por Platão são de lideranças políticas de Esparta, Atenas e
da Pérsia, portanto, de três diferentes localidades, o que significa que o poder das letras não era algo
exclusivo de Atenas, tampouco dava notoriedade somente a políticos atenienses.
234
258d7: {ΣΩ.} Τίς οὖν ὁ τρόπος τοῦ καλῶς τε καὶ μὴ γράφειν;
161
escrita235 – o mito de Theuth (274c5-275b2) – e a posição socrática que decorre da
apresentação desse mito (275c5-278b6), nossas reflexões a seguir terão como roteiro
norteador o enfrentamento do problema em duas etapas principais:
1. o exame da fortuna crítica do mito de Theuth (274c5-275b2), no qual
apresentamos um retrospecto das principais correntes interpretativas da passagem e
analisamos, em particular, a pertinência ou não da dicotomia escrita vs. oralidade como
princípio para a análise desse problema em Platão a partir de diferentes posições
analíticas que descrevem o status quaestionis;
2. uma reflexão em torno da linguagem – escrita e oral – concebida como um
problema filosófico no Fedro; para isso, consideramos, em nossa leitura, (i) a dimensão
mítica da narrativa da invenção da escrita; (ii) a relação entre escrita, memória e
conhecimento; (iii) a noção de phármakon associada à escrita.
235
Entre os chamados “autotestemunhos” de Platão sobre a escrita, além da passagem do Fedro que
examinaremos aqui, a maior parte dos comentadores (Reale, 1992; Trabattoni, 2003; Dixsaut, 2012) citam
também a Carta 7 (341c; 344b-c). Conforme delimitamos na introdução, em nossa análise consideraremos
prioritariamente como a discussão se desenvolve no Fedro, avaliando somente pontualmente a Carta 7,
limitado ao que diz respeito ao tema. A ela retornamos na Parte γ´ da tese.
162
III.
FILOSOFIA DA ESCRITA
236
Cf. γράφω : « érafler, tracer, dessiner, écrire », d’où « rédiger un decret » etc. Nombreuses formes
nominales : 1. un premier groupe essentiel est constitué autour du nom d’action γραφή : « dessin, peinture,
écrit, catalogue ; 2. il existe un nom verbal en –μα de première importance : γράμμα, -ατος : généralement
au pluriel « dessin, lettre, écrit, lettre addressée a quelqu’un, document écrit, ouvrage, lois écrites.
237
Abordar questões culturais ligadas à escrita “na Grécia Antiga” seria tarefa tão imprecisa, quanto talvez
impossível de realizar. Ativemo-nos a avaliar algumas questões ligadas à repercussão da escrita para a
cultura de Atenas no período clássico (séc. V e IV a.C.), por reconhecer que a adoção, o desenvolvimento e
o efetivo uso das práticas de linguagem escrita variaram de cidade em cidade na Hélade. Se em Atenas,
conforme veremos, pode-se reconhecer uma importante adesão à escrita no seu período clássico – sempre
em paralelo com a manutenção das práticas de linguagem oral – Esparta, por outro lado, teria dado costas
à filosofia e desprezado a literatura escrita (Cartledge, 1978, p. 25-37).
163
3.1 Notas sobre a leitura e a escrita em Atenas
Provavelmente por volta de 431 a.C., ano que marcava o início da Guerra do
Peloponeso (431-404 a.C.) e em que Eurípedes estreava sua Medeia em Atenas, também
um certo dramaturgo chamado Cálias238 punha em cena uma inusitada peça: a
Grammatiké Tragoidía (Tragédia das Letras239). Conforme comenta Wise (1998, p. 15),
tratava-se de uma peça que tinha as letras do alfabeto como personagens: seu prólogo
consistia na recitação cantada de cada uma das letras, e seu coro dividia-se em dois, cada
parte ensinando determinadas combinações silábicas do dialeto ático. Poucos
fragmentos remanescentes mostram, ainda, trechos de diálogos entre personagens, que
encenam uma relação semelhante à de professor-aluno no aprendizado da gramática240.
É bem verdade que, a partir de meados do século V a.C, há referências à escrita
em inúmeras obras dramáticas gregas241. O registro histórico de uma peça como a de
238
Cálias, filho de Lisímaco, teria escrito comédias. Segundo Edmonds (1957, p. 170), teria escrito as seguintes
peças: O egípcio, Atalanta, O ciclope, Impertinentes, Rãs, Folgados.
239
Em alguns manuscritos, o título da peça é também referido como Grammatiké Theoría (“Teoria das
Letras”). A palavra grega theoría (θεωρία) contida nessa versão do título da peça de Cálias é bastante
provocativa. Ligada etimologicamente ao verbo grego theáomai – que significa “ser expectador”, “ver” e,
metaforicamente, “ver com a mente”, “contemplar” – theoría não é palavra estranha à arte do teatro
(théatron: “lugar onde se vê”). Além disso, evoca sentidos mais afins com as acepções modernas da palavra
(“teoria”, “conjunto de princípios ou conhecimento”) que estão, de certo modo, também implicados na peça
de Cálias. As traduções dos fragmentos, disponíveis em língua inglesa (Storey, 2011), traduzem como The
tragedy of Letters.
240
O fragmento da peça de Cálias que se encontra em Ateneu (454a), conforme comenta Barbosa (2011, p.
125), apresenta uma mulher, no lugar de corifeu, que nomeia, sozinha, letra a letra.
241
De acordo com Wise (1998, p. 16), há uma profusão de referências à escrita nas tragédias e comédias áticas
do século V a.C. A pesquisadora assinala que o tema aparece de algum modo aludido nas tragédias: Os sete
contra Tebas (c. 467 a.C.), de Ésquilo; nas Traquínias (c. 450 a.C.) e na Antígona (c. 442 a.C) de Sófocles; na
Ifigênia entre os Tauros (c. 413 a.C.) e na Ifigênia em Aulis (c. 407 a.C.), de Eurípedes; bem como nas comédias
As rãs (c. 405 a.C.), As nuvens (c. 420 a.C.) e As aves (c. 414 a.C.), de Aristófanes. Salvador (2014), cita as
seguintes passagens como evidências de referência à escrita no teatro grego:
a) na tragédia As suplicantes (v. 946-7), de Ésquilo (463 a.C.):
“Tais coisas não estão registradas em tabuinhas
nem confinadas as rolos de papiro”
(Tradução de Salvador, 2014, cf. ταῦτ' οὐ πίναξίν ἐστιν ἐγγεγραμμένα
οὐδ' ἐν πτυχαῖς βίβλων κατεσφραγισμένα);
b) na tragédia Hipólito (v. 856-9), de Eurípedes (428 a.C.):
“O que significa esta tabuleta que na mão querida
está aparecendo? Algo novo quer sinalizar?
Mas será que sobre o nosso casamento e sobre os filhos
A infeliz, implorando, registrou uma mensagem?”
(Tradução de Salvador, 2014, cf. τί δή ποθ' ἥδε δέλτος ἐκ φίλης χερὸς
ἠρτημένη; θέλει τι σημῆναι νέον;
ἀλλ' ἦ λέχους μοι καὶ τέκνων ἐπιστολὰς
ἔγραψεν ἡ δύστηνος, ἐξαιτουμένη;);
c) na comédia As rãs (v. 52-3), de Aristófanes:
“E então, sobre a nau, enquanto estava lendo
A Andrômeda para mim mesmo”
(Tradução de Salvador, 2014, cf. Καὶ δῆτ' ἐπὶ τῆς νεὼς ἀναγιγνώσκοντί μοι
τὴν Ἀνδρομέδαν πρὸς ἐμαυτὸν (...)).
164
Cálias, contudo, que trazia para o palco o próprio alfabeto, além de patentear uma
indissociável relação entre encenação teatral e educação em Atenas242, poderia ser visto
também como um indício daquilo a que Eric Havelock (1982) chamaria de “revolução
silenciosa” que a escrita teria operado na mentalidade grega?
A partir de Preface to Plato (1963), Havelock submeteu um vasto corpus de textos
literários e filosóficos gregos a uma análise cuja direção era demonstrar que, entre o
período de florescimento de um gênero acentuadamente marcado pela dicção oral, a
poesia épica, e os diálogos de Platão, teria ocorrido em Atenas uma verdadeira revolução
cultural possibilitada pela escrita alfabética, o que teria resultado em modificar intensa e
irreversivelmente a cultura grega. Essa posição é formulada explicitamente na obra de
1982, cujo título, The literate revolution in Greece, and its cultural consequences, consigna com
clareza a tese do autor243.
A cultura oral, que ainda teria reflexos nas obras de Homero e Hesíodo, haveria
de ser em cerca de três séculos ultrapassada – e, em grande medida, substituída – tendo
como causa o desenvolvimento de um pensamento lógico-analítico da linguagem, cada
vez mais abstrato, por sua vez possibilitado pelo surgimento e dispersão da cultura escrita
alfabética. Um marco de referência dessa transição seria, na análise de Havelock (1963), a
própria República: nela, como sustenta o autor, haveria uma vigorosa contraposição ao
aparato educacional vigente em Atenas, em ampla medida assentado na sabedoria
tradicional tal como vinha estruturada nos poemas de Homero. Nessa modalidade da
educação tradicional, ênfase particular se dava à dimensão da performance do poeta, à
atualização oral da linguagem.
Apesar de certos aspectos da obra de Havelock, como apontaremos em seguida,
Essas três passagens ilustram que, no século V a.C., a escrita e a leitura já eram representadas como uma
prática mais ou menos consolidada. Na passagem de Aristófanes, mostra-se, ainda, já uma prática de leitura
privada.
242
As encenações dramáticas gregas, especialmente as tragédias, inseriam-se em um contexto cívico-
religioso. Conforme comenta Rocha Pereira (2012, p. 394), “não é divertimento e distração para o espírito
cansado pelas tarefas quotidianas. O cuidado em que tais atos se efectuem anualmente com toda a
regularidade era uma das grandes preocupações dos atenienses, que até encerravam os tribunais durante
esse período”. Citando Janko (1987, p. X), a estudiosa portuguesa continua: “Em Atenas, havia um só lugar
onde era possível falar aos cidadãos em grupo sobre qualquer questão que não fosse de relevância política
imediata: o teatro. Muitos poetas consideravam parte de sua tarefa reafirmar ou rever os padrões morais,
sociais ou religiosos do seu tempo”.
243
Cf. Havelock (1996 [1982], p. 14): “O alfabeto grego, por contraste, é apresentado aqui, ao irromper no
cenário da Grécia, como uma peça de tecnologia explosiva, revolucionária por seus efeitos na cultura
humana, de uma maneira que nada tem de exatamente comum com qualquer outra invenção. Funda-se a
alegação dessa singularidade no fato de que, tendo emergido de um processo de experimentação, o qual se
desdobrou, quiçá, pelos três precedentes milênios, ele todavia representou o termo desse processo. Uma
vez inventado, o alfabeto forneceu a resposta integral a um problema, e nunca mais houve necessidade de
reinventá-lo. As variantes romana e cirílica são apenas isso – variantes – e nada mais”.
165
restarem abertos a discussão e à crítica244, sua pesquisa lançava a diretriz de uma análise
que não mais permitiria ignorar as diferenças existentes entre o modo de expressão
poética/épica– em larga medida calcada na performance oral – e a modalidade de uso da
linguagem “filosófica” – em grande medida produtora de uma metalinguagem a ser
crescentemente trazida à consciência nas reflexões em torno do lógos245 e, em grande
parte, bastante afinizada com a escrita.
Mais que isso, Havelock, ainda em 1963, estabelecia um contraste entre Homero e
Platão, dois pilares da cultura helênica que, no que diz respeito ao processo histórico do
progressivo desenvolvimento e dispersão da escrita na Grécia Antiga, deveriam ser
colocados em posições diferentes: o poeta que se valeu da escrita pioneiramente,
limitando-a a espécie de registro de uma tradição épica muito mais antiga e francamente
oral246; ao lado do filósofo que viveu na cidade e no período de maior uso da escrita na
Grécia – a Atenas do século IV a.C.247 – e, a partir daquele contexto, pôde não somente
fazer experimentos literários, mas também tomar a escrita como alvo de crítica e reflexão,
mediante os princípios da sua filosofia.
Entretanto, poderíamos nos perguntar: seria possível, com Havelock, sustentar a
tese de que teria havido algo como uma transição de um mundo “oral” para um mundo
“letrado” na Grécia Antiga e, se assim o for, que tal transição tenha se dado como uma
244
O próprio pesquisador revela ter consciência do caráter polêmico de algumas de suas proposições. Em
sua obra de 1982, que compila o resultado de publicações dispersas ao longo das duas décadas anteriores,
o autor afirma que “o que aqui se reimprime provou-se bem mais polêmico do que e de costume, e entre
meus colegas de profissão alguns há, certamente, que prefeririam não o ver reimpresso” (Havelock, 1996
[1982], p. 12).
245
A tese de Havelock de que a tecnologia alfabética teria permitido separar a língua grega falada de seu
locutor e torná-la uma ‘linguagem’, um objeto disponível para inspeção, reflexão e análise, é corroborado
por outros estudos acerca do surgimento das metalinguagens. Tal é a posição, por exemplo, de Auroux
(1992, p. 18): “Para a história das representações linguísticas, o limiar da escrita é fundamental. Qualquer que
seja a cultura, reencontramos sempre os elementos de uma passagem do epilinguístico ao metalinguístico,
quer se trate do aparecimento de palavras metalinguísticas (dizer, cantar etc.), de certas práticas de
linguagem, ou sobre a identidade e diferenciação linguísticas, como o demonstra o exemplo dos índios da
América. Mas pelo que sabemos, não encontramos em nenhuma civilização oral um corpo ou doutrina
elaborado em relação com as artes da linguagem”.
246
Cf. Havelock (1996 [1982], p. 12): “Com algum desconforto, ainda podemos digerir a conclusão de que os
poemas homéricos, apesar da sua sofisticação, seguem regras formulares, característicos da composição
oral – com tudo o que isso implica de improviso. (…) A composição oral, tal como era praticada pelos
mestres gregos, por certo não deve ser pensada como matéria de improviso, à maneira do que fazem os
cantadores iuguslavos; nem deve entender-se o seu caráter em termos estritamente estilísticos. Era, por
definição, uma composição rítmica, logo ‘poética’, pode-se dizer – embora quiçá fosse mais apropriado,
mesmo se mais rude, dizê-la ‘poetizada’. Os termos “poético” e “poesia”, tal como nós os pensamos,
equivalem a ‘letrado’ e a ‘arte da escrita’”.
247
Cf. Robb (1994, p. 21): “The history of Greek literacy commences with some scraps of alphabetic writing
that are securely dated to no earlier than the eighth century before Christ. It culminates, or at least reaches
a significant plateau, in mid-fourth-century Athen, when the city’s major cultural institutions, notably the
courts and formal education, have grown dependent of alphabetic literacy for their daily functioning. At
either end of the long chronological spectrum – a span of 400 years – the facts have now emerged at a
reasonably clear light”.
166
“revolução”, dividindo o mundo grego entre um passado mais remoto, pré-letrado,
marcado pela repetição de protótipos orais da poesia épica, e um momento posterior,
caracterizado pelo advento e consolidação da escrita e, por seu intermédio, dos gêneros
“literários”, entre os quais, especialmente, a filosofia? Ou seja, é possível ainda pensar a
obra dos poetas arcaicos como um “prefácio” a Platão?
É fato que da época de Homero (c. VIII a.C.) à de Platão (IV a.C.) a sociedade
ateniense sofreu profundas mudanças: transformou-se de uma aristocracia assentada nos
valores “heroicos” em uma pujante e poderosa democracia mercantil (Vernant, 1984, p.
32-34; Rocha Pereira, 2012, p. 180-190); mudanças sociais que, em parte, também podem
ser tributadas à crescente importância da palavra escrita nos processos sociais248.
Consequência disso é o fato de que os gregos do período clássico (século V e IV
a.C.) foram capazes de deixar para a posteridade um montante substancial de textos
escritos – que vão das obras literárias e filosóficas, aos documentos oficiais, inscrições e
até mesmo arquivos de atividades governamentais. Por esse motivo, quando se pensa em
Atenas do período clássico, temos a impressão de que ela se constituía como uma
sociedade “letrada” – e o termo vem entre aspas, justamente, porque quando falamos em
“letramento” relacionado a uma cidade antiga, incorremos frequentemente no equívoco
de tomarmos tal noção como se fosse uma habilidade monolítica, o que é francamente
uma falácia moderna249.
Todavia, mesmo no período clássico, o valor da palavra oral jamais deixou de
subsistir, como nos esclarece R. Thomas (2005, p. 4)250. Ora, o que a autora nos ensina é
que, diferente do que uma leitura estrita de tese de Havelock (1963, 1982, 1986) possa
248
Goody & Watt (1968) argumentam que a escrita produziu na Grécia a democracia, o pensamento racional
e a filosofia. Com o desenvolvimento da tecnologia alfabética, os gregos evitaram a “leitura de escriba” do
oriente. Mais fácil de ser dominado, o conhecimento alfabético se tornou mais abrangente e democrático.
Em parte, a tese de Goody & Watt (1968) corresponde à de Havelock (1963, 1982, 1986): o alfabeto, que
fragmenta a linguagem em partes constituintes, teria tido o mérito de favorecer o desenvolvimento do
pensamento analítico, como veremos à frente.
249
Conforme esclarece Thomas (2005, p. 12), é comum que autores modernos e contemporâneos, buscando
compreender o letramento na Antiguidade, tenha aplicado àquele tempo a noção própria do nosso tempo,
qual seja: a de que o letramento decorre do domínio de leitura e escrita de textos desconhecidos. Ora, a
leitura na Antiguidade e na Idade Média, por outro lado, em grande parte consistia em se ler textos já
familiares – como Homero ou mesmo os livros da Bíblia.
250
Cf. “Por certo havia uma gama extraordinariamente sofisticada de atividade literária e intelectual nos
séculos do período clássico. A maior parte da literatura grega, porém, tinha por finalidade ser ouvida ou
cantada – transmitida oralmente, portanto – e havia uma forte corrente de aversão pela palavra escrita,
mesmo entre os altamente letrados: os documentos escritos não eram considerados, por si mesmos, provas
adequadas em contextos legais até a segunda metade do século IV. A política era conduzida oralmente. Os
cidadãos da Atenas democrática ouviam pessoalmente os debates na Assembleia e votavam ali mesmo.
Muito pouco era escrito e a palavra mais próxima para político era “orador” (rhetor). A tragédia era assistida
no teatro, e a retórica – ou arte de falar – era uma parte importante da educação grega. Um homem
civilizado na Grécia (e também em Roma) tinha de ser capaz, acima de tudo, de falar bem em público”.
167
implicar, a escrita – muito embora tenha crescido em importância e abrangência – jamais
substituiu ou superou em importância ou em difusão as práticas de linguagem assentadas
na oralidade em Atenas. Desse ponto de vista, a passagem da escrita para a oralidade não
deveria ser vista como um processo “revolucionário”, como propôs Havelock, mas as
novas formas de expressão da linguagem, organizadas em códigos cada vez mais
autenticamente ligados à escrita, coexistiram e dependeram de velhas formas de
expressão literária ditas “orais”.
M. Cabron-Goulet (2012, p. 202), defende que a transição entre uma tradição oral
e uma sociedade letrada não deveria ser compreendida em termos de uma oposição ou
polaridade, mas de uma “continuidade cultural”. A estudiosa observou que, embora se
possa reconhecer nos filósofos antigos um certo discurso de defesa da oralidade sobre a
escrita, eles igualmente reconhecem as desvantagens da transmissão exclusivamente
oral, no que diz respeito à passagem do tempo (Cabron-Goulet, 2012, p. 210). Além disso,
testemunhos como o de Diógenes Laércio (D.L. 1.54) atribuem a redação de livros como
um dos atributos do filósofo, assim como inúmeras passagens em Platão atestam a prática
da leitura como inerentemente constitutiva da prática filosófica (como é o caso de Zenão,
no Parmênides, 127c-d).
Além disso, quando se fala em “oralidade” ou em “escrita”, cumpre diferenciar ao
menos duas instâncias nas quais nem sempre o nível de proficiência de uma população é
o mesmo: a recepção e a produção linguística. Como esclarece R. Thomas (2005, p. 14), é
possível pensar que em Atenas, mesmo no período clássico, provavelmente havia muito
mais pessoas aptas a ler do que a escrever251. Mesmo entre aquelas aptas a ler, será que
todas eram capazes de ler um “livro”, isto é, de manusear e exaurir o conteúdo de um rolo
de papiro que, em certos casos, chegava a dez metros e exigia um treinamento técnico
bastante específico?252
251
Cf. Thomas (2005, p. 16): “Dada a complexidade do letramento e a escassez de indícios antigos detalhados,
tudo o que podemos dizer com alguma plausibilidade é que provavelmente mais pessoas podiam ler do
que escrever; a capacidade de ler e escrever mensagens muito simples, geralmente em maiúsculas,
provavelmente não era rara; e em cidades como Atenas, onde havia uma profusão de documentos
democráticos, a maioria dos cidadãos tinha alguma capacidade básica, e talvez a “alfabetização fonética”
fosse bem disseminada; mas os textos escritos de poesia e prosa literária certamente tinham um público
leitor restrito à elite altamente educada e seus escreventes”.
252
Cf. Reynolds & Wilson (1991, p. 2): “The form of the book was a roll, on one side of which the text was
written in a series of columns. The reader would unroll it gradually, using one hand to hold the part that
he had already seen, which was rolled up; but the result of this process was to reverse the coil, so that the
whole book had to be unrolled again before the next reader could use it. The inconvenience of this book-
form is obvious, especially when it is remembered that some rolls were more than ten metres long. Another
disadvantage was that the material of which it was composed was by no means strong, and damage easily
ensued. It is not difficult to imagine that an ancient reader faced with the need to verify a quotation or
check a reference would rely if possible on his memory of the passage rather than go to the trouble of
unwinding the roll”.
168
A resposta para essa pergunta, provavelmente, seria “não”. Se aquilo a que
chamamos de literatura grega, lato sensu, especialmente aquela produzida no período
clássico, corresponde a um volume extensivo de obras, sobre temas os mais variados
possíveis, e de complexidade literária bastante diversa; se, por outro lado, a maior parte
dos leitores de Atenas não dominavam sequer as técnicas de manuseio imprescindíveis
para a leitura dessas obras; o que, afinal, era lido e escrito pelo grande público? Além
disso, a que se destinavam tais obras escritas, se não para as grandes massas? Não
teremos, provavelmente, uma resposta unificada para essas questões, mas aproximações,
mais ou menos conjecturais, a depender do contexto histórico da implantação da técnica
da escrita alfabética no mundo grego. Vejamos.
A primeira forma de escrita de que se tem notícia na cultura helênica é ainda pré-
alfabética: o Linear B, desenvolvido ainda no bojo da cultura micênica (c. 1500-1100
a.C.)253. As evidências arqueológicas demonstram que essa forma de escrita, realizada
sobre tabuinhas de argila encontradas na região do Palácio de Knossos (atual Heráklion,
capital da Ilha de Creta); em Pilos, no extremo ocidental da Península do Peloponeso; e
também em Micenas (Woodard, 1997, p. 25; Karuzu, 1999, p. 36; Rocha Pereira, 2012, p. 17),
destinava-se a uma forma de registro burocrático palaciano, provavelmente dominado
apenas por especialistas.
Somente no primeiro milênio antes de Cristo a tecnologia do alfabeto – invenção
fenícia254 – teria sido introduzida na Grécia. Os gregos teriam, então, ajuntado, a partir
desse contexto, os símbolos gráficos representativos das vogais aos símbolos fenícios, os
phoinikéia (Bottéro, 1987). Segundo Woodard (1997, p. 133) e Higounet (2003, p. 87), os
gregos atribuíam a invenção do alfabeto a Cadmo, o legendário fundador de Tebas, que
253
Recebe o nome de Linear B a escrita silábica encontrada em tábuas de argila datadas do período
Micênico, que é considerada a primeira forma atestada de grego antigo. Datações sugerem que essa forma
de escrita é anterior à introdução do alfabeto em muitos séculos (a mais antiga é datada de 1450 a.C.), sendo,
provavelmente, derivada do Linear A, com a qual mantêm muitas homografias, embora aquela não tenha
ainda sido decifrada e que registraria a língua do período minoico. Essa forma de escrita, cujas evidências
foram encontradas em Knossos, Pylos, Tebas e Micenas, provavelmente desapareceu por volta do fim da
civilização micênica, e só foram recentemente interpretadas por M. Ventris, em 1952. (Ventris & Chadwick,
1973; Karuzu, 1999; Haarman, 2008). Higounet (2003, p. 46), comenta que a escrita Linear (A e B),
encontradas não somente em Creta, mas também nas ilhas cicládicas e na Grécia continental, representam
três ou quatro estágios de evolução da escrita, sendo que seus sinais foram sendo reduzidos com o tempo.
254
Cf. Higounet (2003, p. 65): “As descobertas de Ras Shamra e de Biblos confirmam a atribuição do alfabeto
aos fenícios, que o escritor Luciano cantava desde o século II d.C. Os semitas do Norte sem dúvida se
inspiraram em um princípio egípcio e sua língua os favoreceu. Mas o cruzamento das civilizações e as
necessidades do comércio na costa da Síria, onde os entroncamentos de Biblos e de Ugarit eram os
entroncamentos do comércio mundial, certamente os impulsionaram a pesquisar uma nova e prática
forma de escrita”. Havelock (1996 [1982], p. 66), entretanto, relativiza a tese de que o alfabeto seja uma
invenção semítica: “A escrita semítica simplesmente reduziu de forma drástica o número de signos a vinte
e dois, ao custo de ligar um signo a vários sons linguísticos e deixar ao leitor a responsabilidade da escolha
correta. Como veremos, foi somente o sistema grego que resolveu o problema crucial da ambiguidade”.
169
teria importado as dezesseis letras fenícias; depois dele, Palamedes teria acrescido a elas
quatro letras durante a guerra de Troia; finalmente, o poeta Simônides de Céos teria a
elas ajuntado mais quatro letras.
As mais antigas inscrições alfabéticas em grego datam do século VIII a.C., e estão
presentes em artefatos, como o Vaso de Dípilo, peça do período geométrico, encontrada
em 1871 em Atenas (cf. figura abaixo).
255
Contra Apionem, I, 8-12: ὀψὲ δὲ καὶ μόλις ἔγνωσαν φύσιν γραμμάτων. “Depois de um longo tempo e com
dificuldade, [os gregos] conheceram as letras”.
170
somente de que a cultura escrita era ainda escassamente conhecida – a ponto de pouco
afetar os modos de apresentação da linguagem, consolidados em séculos de exclusiva
oralidade –, quanto do fato de que tais textos representavam a documentação de uma
tradição antes muito bem conhecida via discurso oral.
Para além disso, o uso da escrita no período arcaico (700-500 a.C.), como acentua
Thomas (2005, p. 18), limitava-se sobretudo a uma prática de registros de inscrições
ligadas a ofícios – tais como o comércio – ou o registro das primeiras leis escritas e regras
de determinados rituais religiosos. A partir do século VI a.C., registra-se o aparecimento
da prosa e o hábito de escrever livros, o que teria ocorrido com a obra do filósofo
Anaximandro ou Ferécides de Ciro (Rocha Pereira, 2012, p. 18; Riedweg, 1999, p. 81)256.
Somente no século V a.C., a escrita parece dominar outras práticas, como a de ser o
suporte para a oratória257. Conforme informa Rocha Pereira (2012, p. 19), no século V a.C.
já se pode documentar a existência de bibliotecas e livrarias258. Finalmente, no século IV
a.C. – especialmente em Atenas –, a escrita teria finalmente se tornado mais amplamente
reconhecida socialmente259.
256
Diógenes Laércio (9.6) informa que Heráclito (c. 540-480 a.C.) teria deposto seu livro no templo de
Ártemis em Éfeso, sua terra natal, para evitar que se perdesse. A se considerar algum lastro de verdade na
informação trazida pelo doxógrafo, a atitude atribuída a Heráclito não somente atesta a escrita de livros
como uma prática tão remota quanto o século VI a.C., quanto também põe em relevo uma primeira
aproximação entre escrita e memória – o lugar dos livros como arquivo de informações para o futuro.
257
A famosa contenda entre Alcidamante (séc. IV a.C) e Isócrates (séc. IV a.C.), por exemplo, é um indício
do lugar que a escrita passou ocupar para a oratória e para a sofística. No Sobre os sofistas, de Alcidamante
(também conhecido como Contra aqueles que escrevem discursos escritos - περὶ τῶν τοὺς γραπτοὺς λόγους
γραφόντων), o discípulo de Górgias parece reproduzir a mesma crítica à logografia que Platão atribui ao
personagem Fedro no diálogo homônimo, posicionando-se contrariamente a Isócrates. Os termos dessa
contenda não deixam de ser um um importante testemunho externo à obra de Platão da abrangência da
escrita no século IV a.C., mesmo em domínios outrora exclusivamente orais, como era o caso da oratória.
Além disso, mostra que a escrita passa a ser um tópico de debate na cultura ateniense. O fato de Platão citar
explicitamente Isócrates no Fedro (278e8, 278e10) e talvez implicitamente Alcidamante (Salles, 2017, p, 201)
não deixa também de ser sinal de que Platão, de algum modo, se inseria nesse mesmo debate (para uma
análise mais minuciosa dessa questão, cf. Castello, 2009; Quirim, 2016; Salles, 2017). Voltaremos a esse
tópico no capítulo VI.
258
Platão, na Apologia, faz menção à existência de uma livraria junto a uma “orquestra” – provavelmente a
área do teatro ocasionalmente utilizada para o comércio. Nessa região, os jovens poderiam comprar livros
por uma dracma:
“SÓC.: Você pensa que está acusando Anaxágoras, caro Meleto e despreza assim estes aqui (e aponta
para o júri), pensando que são tão sem recursos nas letras, a ponto de não saberem que os livros de
Anaxágoras de Clazómena estão cheios desses discursos? Além do mais, é comigo que os jovens
aprendem essas coisas – eles que podem, comprando-as de vez em quando não por muito (por uma
dracma!), na orquestra, rir de Sócrates caso venha a fingir que são suas, sobretudo sendo elas tão
estranhas?”
(26d6-e2, Tradução de André Malta, 2014, Cf. Ἀναξαγόρου οἴει κατηγορεῖν, ὦ φίλε Μέλητε; καὶ οὕτω
καταφρονεῖς τῶνδε καὶ οἴει αὐτοὺς ἀπείρους γραμμάτων εἶναι ὥστε οὐκ εἰδέναι ὅτι τὰ Ἀναξαγόρου
βιβλία τοῦ Κλαζομενίου γέμει τούτων τῶν λόγων; καὶ δὴ καὶ οἱ νέοι ταῦτα παρ'ἐμοῦ μανθάνουσιν,
ἃ ἔξεστιν ἐνίοτε εἰ πάνυ πολλοῦ δραχμῆς ἐκ τῆς ὀρχήστρας πριαμένοις Σωκράτους καταγελᾶν, ἐὰν
προσποιῆται ἑαυτοῦ εἶναι, ἄλλως τε καὶ οὕτως ἄτοπα ὄντα;).
259
Cf. Thomas (2005, p. 19): “Mas, no século IV, um novo espírito de profissionalismo insinuou-se
gradativamente e a palavra escrita parece ter recebido maior respeito. As restrições de Platão contra a
escrita como meio de educação devem ser compreendidas como restrições contra uma proliferação de
171
Considerar Atenas do século IV a.C. uma sociedade de “mentalidade
documentalmente orientada”, como afirma R. Thomas (2005), e não pura e
simplesmente uma cidade “letrada”, tem o mérito de desfazer algumas armadilhas. A
primeira delas, conforme apontamos acima, é a de considerar as noções de letramento –
tais como as conhecemos nas sociedades modernas – aplicáveis, sem mais, ao mundo
antigo. A segunda delas, e talvez a mais importante, é reconhecer que o espaço
crescentemente prestigioso da escrita nas práticas sociais gregas jamais deixou de manter
estreita relação com as práticas calcadas na oralidade260, o que, em tese, nos leva a
nuançar – se não a revogar inteiramente – a aplicação da moderna dicotomia oralidade vs.
escrita ao mundo grego, ao menos a partir de uma perspectiva histórica.
Assim, parece-nos que, de um ponto de vista histórico-cultural, a oposição
Homero/Platão como extremos de uma “revolução” da escrita precisa ser revista à luz dos
elementos históricos a que aludimos acima. Dito de outro modo, de forma bastante cética
quanto a essa tese, Thomas levanta os seguintes questionamentos:
livros e manuais escritos. O documento escrito tornou-se mais comum em outras esferas, e passou a ser
usado pela primeira vez por historiadores gregos como prova de uma maneira que reconheceríamos como
adequada. Atenas tornara-se, no fim do século IV, o que denominei um lugar de ‘mentalidade
documentalmente orientada’ (emprestando uma expressão do medievalista Michael Clanchy)”.
260
Cf. Thomas (2005, p. 6): “Não apenas filósofos discutiam problemas extremamente difíceis sem o auxílio
da escrita, como também o público podia ouvir regularmente (em vez de ler) uma literatura densa e
complexa. A palavra escrita era mais frequentemente usada a serviço da fala. Desde o início, portanto,
letramento e oralidade devem ser examinados juntos na Grécia Antiga, como, na verdade, em todo o
mundo antigo”.
172
por ora, consideremos apenas alguns aspectos que nos ajudam a formular esse problema.
Poder-se-ia observar que a passagem dos ideogramas aos hieróglifos, e destes ao
alfabeto silábico e, depois, fonético, representaria, em última análise, um processo de
abstração: o triunfo da “consoante abstrata” (Gaudin, 1990). Com efeito, enquanto nas
primeiras formas de escrita hieroglíficas e ideogramáticas as formas de representação
trazem, nelas próprias, indícios, traços e elementos dos significados dos referentes, as
letras representam elementos gráficos desprovidos de sentido em si mesmos, que
remetem, por sua vez, a elementos sonoros igualmente isentos de sentido261. A intelecção
engendrada através da comunicação escrita decorre de uma sofisticada operação
cognitiva: formas visíveis são associadas a formas audíveis, que, por sua vez, são
elementos suscetíveis a múltiplas combinações ordenadas, que permitem a formação de
palavras e a consequente elaboração de sentido na mente humana. A difusão do uso
desses símbolos abstratos da escrita teria, portanto, resultado no desenvolvimento de
uma habilidade psíquica, que consistiria na articulação de uma competência natural – a
faculdade da linguagem, oral em si mesma – a uma cultural – a aquisição da escrita pela
educação262.
Conforme comenta Gaudin (1990, p. 25), o ensino das letras daria proeminência ao
aspecto fonológico (daí a importância da voz para a escrita), mas não prescindia de um
exercício de decomposição e combinação para o reconhecimento das formas grafadas.
Desse modo, o exercício pedagógico de composição e decomposição ligado à
aprendizagem da leitura e da escrita poderia, de certo modo, ser tomado como modelo
para outras formas de aprendizagem. Vale dizer que a possibilidade de definir conceitos
261
O termo grego grámma (comumente traduzido por “letra”, “caractere”) é, contudo, bastante rico de
conotações na língua grega. Seus significados mais antigos remetem a “raspar, riscar, esfolar”,
h h
engendrando a partir de seus possíveis radicais indo-europeus *gerb -, *grºb os cognatos modernos, por
exemplo, de “gravar”, em português, carve, em inglês ou kerben, em alemão. Por extensão, assume outros
significados visuais: “marcar com ferro”, “desenhar”, “pintar”, “descrever um gráfico ou figura
matemática”, “inscrever”. Os sentidos de “escrever” e, por extensão, “elaborar um texto judiciário”,
“processar”, decorrem dessas nuances de sentido relacionadas ao sentido da visão. Quando o termo é
apropriado pela gramática, para fazer referência aos elementos mínimos sonoros da língua, passa também
a ter acepções ligadas ao sentido auditivo/sonoro. Nesse sentido – o da gramática – grámmata significa
tanto as figuras/desenhos das letras (sinais gráficos), quanto os sons que elas representam. Conforme
assinalam Gaudin (1990, p. 74) e Havelock (1996 [1982], p. 52), sua ocorrência em Platão possui a ambiguidade
sinal gráfico/sonoro, haja vista que o exercício de leitura implica uma prática visual (reconhecimento das
formas gráficas) e sonora (pronúncia em voz alta).
262
É sempre bom frisar que a escrita está para a fala como uma tecnologia está para uma habilidade natural.
Não se poderia pensar, como o próprio Havelock demonstra ter consciência, que (i) o desenvolvimento da
escrita seja um progresso “natural” de determinada civilização – ao contrário, ao que tudo indica, o homem
leitor teria sido um “acidente histórico” (Havelock, 1996 [1982], p. 54) ou que (ii) a sofisticação cultural de
uma civilização decorra do desenvolvimento da escrita (id, ib., p. 49). O segundo item rebate a crítica
recebida por Havelock de que teria colocado a escrita como condição necessária a espécie de “milagre
grego”.
173
implicaria também sua decomposição e recomposição em uma fórmula sintética263.
Nesse sentido, a análise das palavras em suas letras (γράμματα) revelar-se-ia como um
modelo para esse procedimento: em outras palavras, a língua tornar-se-ia, portanto, não
somente um instrumento “didascálico” (que informa), mas também “diacrítico” (que
distingue, separa).
No mesmo sentido, conforme pensa Gaudin (1990, p. 32), o sistema alfabético
consonantal teria colocado em evidência não o elemento linguístico concreto, os “sons
naturais”, aquilo a que a moderna Linguística chamaria de “fones” (Trask, 2011, p. 114),
mas um elemento abstrato, o “fonema” (ademais, os fones, isto é os “sons” propriamente
ditos, só seriam possíveis no nível silábico). As consoantes, que representam por
excelência os fonemas da língua grega, seriam, portanto, uma abstração apenas
compreensível intelectualmente, perspectiva que não passou despercebida a Platão264. O
alfabeto poderia configurar, portanto, uma totalidade limitada de elementos que,
virtualmente, permitem representar uma pluralidade ilimitada de fenômenos acústicos
da língua. Com efeito, cada elemento gráfico, representativo de um elemento sonoro,
remeteria à memória de um único ente abstrato – o fonema. Essa passagem dos sons
efetivos da língua para sua abstração fonológica seria o exemplo, por assim dizer, de uma
passagem da multiplicidade plural e indeterminada do fluxo audível da linguagem para
uma pluralidade ordenada, representada por elementos visíveis (as letras) que, por sua
vez, remetem a uma unidade apenas inteligível (o fonema). Ora, tal não parece ser um
modelo bastante útil para o pensamento filosófico, especialmente o de Platão?
263
Com efeito, conforme examinamos no capítulo II, sem se dissociar das noções de alma e de Formas, no
Fedro (266b3-c9), a dialética é definida como processo de investigação capaz de realizar operações de
reunião (συναγωγή) e divisão (διαίρεσις); um processo, portanto, crítico – no sentido etimológico mesmo,
krísis, “separação, distinção”. Tais operações, no contexto em questão, revelaram-se indissociáveis do
“falar” (λέγειν) e do “pensar” (φρονεῖν), isto é, da expressão do significante (λἐγειν, verbo ligado a λέξις,
palavra ou discurso pronunciado) e do significado (φρονεῖν, ligado a φρόνησις, que, entre outras acepções,
tem a de “sentido”, “pensamento”, entendido como conteúdo mental, φρόνημα). Dialética, portanto, tal
como a escrita, emergia como a ponte entre o sensível (a percepção sensorial do discurso) e o inteligível (a
compreensão do conteúdo do pensamento).
264
No Crátilo (424c5-8), Platão faz interessante comentário sobre vogais e consoantes:
SÓC.: Por acaso, também nós não devemos, assim, primeiramente, separar as vogais [τὰ φωνήεντα]
e depois, de acordo com as espécie das demais, as [letras] desvozeadas e surdas [τά τε ἄφωνα καὶ
ἄφθογγα] – pois desse modo falam os que entendem disso (…)
(Cf. {ΣΩ.} Ἆρ' οὖν καὶ ἡμᾶς οὕτω δεῖ πρῶτον μὲν τὰ φωνήεντα
διελέσθαι, ἔπειτα τῶν ἑτέρων κατὰ εἴδη τά τε ἄφωνα καὶ
ἄφθογγα – οὑτωσὶ γάρ που λέγουσιν οἱ δεινοὶ περὶ τούτων.
Conforme essa passagem parece deixar claro, Platão parece diferenciar as letras entre aquelas que possuem
som, voz (τὰ φωνήεντα), as vogais, das outras que são desvozeadas e requerem soar conjuntamente
(consoantes - ἄφωνα καὶ ἄφθογγα). Ao evocar os “entendidos no assunto” (οἱ δεινοὶ), parece estar
pressuposto aqui um saber técnico. Desse modo, conforme argumentamos, as consoantes já eram
percebidas como uma espécie de abstração – um som inexistente – uma ideia. O sistema alfabético grego
lhe permitiu ter uma identidade conceptual própria, sob a forma do que chamamos de “consoante”.
174
Para Platão, um filósofo particularmente atento à textura da língua grega, os
potenciais filosóficos que emergiriam da escrita, essa nova tecnologia a ela associada, não
poderiam passar despercebidos de sua lente investigativa. Nesse sentido, valeria a pena
tensionar também a escrita quanto à sua possibilidade de vir a se tornar um elemento
dialético – seja distinguindo suas espécies, seja consagrando-a como meio de expressão
artística ou filosófica, seja demonstrando seus limites, como o próprio Sócrates
encaminha o problema, tratando da conveniência (εὐπρέπεια) ou da inconveniência
(ἀπρέπεια) da escrita (274b7-8). É nessa direção, portanto, que o mito de Theuth (274c5-
275d2) parece fazer sentido no âmbito do Fedro, a cuja pluralidade de interpretações
atuais dedicamos nossa atenção no próximo item deste capítulo.
265
Diógenes Laércio (3.38, 1-3) reporta o argumento de que o Fedro seria o primeiro diálogo de Platão,
comportando “algo de juvenil” (μειρακιῶδές τι). Schleiermacher, na introdução ao Fedro, corrobora a lenda,
baseado, igualmente, em um argumento pouco razoável: o Platão de maturidade jamais teria condenado a
escrita como ele parece fazer no Fedro.
266
Na contramão da posição schleiermacheriana, mas motivado por razão análoga, Raeder (1920) classifica
o Fedro entre os últimos diálogos de Platão, não pela virtude de seus méritos estéticos ou filosóficos, mas
pelas suas imperfeições, somente tributáveis a uma personalidade “senil”.
267
Conforme comentamos no capítulo II, ainda no prólogo do diálogo, Platão já antecipava os tópicos
fundamentais que seriam tratados ao longo do diálogo. A relação entre escrita, memória e o bem dizer
estava, por exemplo, pressuposta na seguinte passagem:
SÓC.: Ó Fedro, se Fedro eu não conhecesse, é que de mim mesmo estaria esquecido. E nem uma
coisa, nem outra: bem sei que de Lísias o discurso ouvindo, ele não o ouviu apenas uma, mas incitou-
o a falar retomando muitas vezes, no que foi avidamente obedecido. Porém, nem isso para ele era
suficiente e tomando-lhe o manuscrito, ei-lo por fim a repassar os olhos pelas partes mais desejadas,
e, fazendo isso sentado desde cedo, cansado ia já para uma caminhada, conhecendo já perfeitamente
o discurso – como suponho e juro, pelo cão, se não for um longo demais.
(Phdr. 228a5-b5, cf.
{ΣΩ.} Ὦ Φαῖδρε, εἰ ἐγὼ Φαῖδρον ἀγνοῶ, καὶ ἐμαυτοῦ ἐπιλέλησμαι. ἀλλὰ γὰρ οὐδέτερά ἐστι τούτων·
εὖ οἶδα ὅτι Λυσίου λόγον ἀκούων ἐκεῖνος οὐ μόνον ἅπαξ ἤκουσεν, ἀλλὰ πολλάκις ἐπαναλαμβάνων
ἐκέλευέν οἱ λέγειν, ὁ δὲ ἐπείθετο προθύμως. τῷ δὲ οὐδὲ ταῦτα ἦν ἱκανά, ἀλλὰ τελευτῶν παραλαβὼν
τὸ βιβλίον ἃ μάλιστα ἐπεθύμει ἐπεσκόπει, καὶ τοῦτο δρῶν ἐξ ἑωθινοῦ καθήμενος ἀπειπὼν εἰς
περίπατον ᾔει, ὡς μὲν ἐγὼ οἶμαι, νὴ τὸν κύνα, ἐξεπιστάμενος τὸν λόγον, εἰ μὴ πάνυ τι ἦν μακρός.
175
De fato, poderíamos afirmar que a questão decorre do paradoxo em que Fedro se
viu envolvido: porta-voz de um discurso escrito por Lísias, pelo qual demonstrou
imediato entusiasmo, a ponto de considerá-lo incomparável a qualquer outra
composição grega (Phdr. 234c6-e4), Fedro é também quem primeiramente condenou a
logografia, qualificando-a como atividade vergonhosa e indigna dos cidadãos atenienses;
atividade, entretanto, associada à figura de Lísias (257c2-d8).
Destacamos aqui a importante atitude psicológica do personagem: em ambos os
casos, Fedro exibe uma opinião bastante peremptória – diríamos que em parte reflexo da
opinião geral que a pólis mantinha sobre tais assuntos – ponto de vista carente de reflexão
que serve, por isso mesmo, de matéria prima para a refutação de Sócrates. Fedro,
contudo, não se revela obstinado em suas ideias, ao contrário: é interlocutor dócil à
abordagem socrática, pela qual se deixa facilmente conduzir, atitude que se mantém até
o final do diálogo e não seria diferente no que tange à reflexão sobre a escrita268.
Com efeito, no primeiro contexto, diante do entusiasmo em relação ao manuscrito
lisiânico, Sócrates consegue levá-lo a assentir, se não com as imperfeições daquele, ao
menos com o fato de que muitos outros discursos sobre éros lhe teriam sido superiores
(235d4-e1); no segundo, Sócrates também relativiza sua opinião veementemente contrária
à logografia (257d8-258d6). Esse traço da personalidade de Fedro, dócil à psicagogia
implementada por Sócrates, parece-nos pertinente para compreendermos, também, sua
atitude sempre concordante a respeito dos escrúpulos que Sócrates parece exibir sobre a
escrita na sequência do diálogo (275d3-e6)269.
Na passagem que nos interessa particularmente aqui, Sócrates narra a história da
divindade egípcia conhecida como Theuth, que teria sido o inventor da geometria, da
astronomia, do jogo de dados e da escrita (274c8-d2)270. A antiga divindade apresentou
268
Conforme nos indica Burger (1980, p. 10), deixar-se levar pela opinião alheia e seguir docilmente o que
lhe indicam representam traços psicológicos compatíveis com aqueles demonstrados também por Fedro
no Banquete, cujo interesse por éros decorre, sem perceber, da opinião dos especialistas que ele reverencia,
como Erixímaco, cujas teses ele demonstra dócil aceitação e obediência (Smp. 176c-177c).
269
Essa contudo, não é a atitude típica dos interlocutores de Sócrates. Bem diferente de Fedro, Platão em
outros diálogos apresenta interlocutores que oscilam de uma posição criticamente colaborativa (como no
Phd. 85b10-d10, quando Símias, apesar de inclinado a concordar com a argumentação socrática a respeito
da imortalidade da alma, julga ser oportuno apresentar outras contra-argumentações que parecem
fragilizar o ponto de Sócrates), a uma posição mais ou menos cética quanto às posições socráticas (como no
Cra. 440d7-e2, quando o personagem homônimo, aberto a refletir sobre a questão, mantém-se, no final, fiel
à posição de Heráclito, contrária a que Sócrates parece defender), até posições bastante adversas à
abordagem dialética, contextos em que os personagens se mostram muito mais recalcitrantes (como no
Grg. 481b6-505d10, com a atitude francamente adversa à filosofia e ao método socrático do personagem
Cálicles; ou na R. 1, com atitude semelhante de Trasímaco).
270
O mito de Theuth é provavelmente uma invenção de Platão, que se vale do mundo egípcio para conferir
ao que será dito uma aura de sabedoria arcaica, ligada a um tempo imemorial. Alguns comentadores (De
Luise, 2002; Reis, 2016; Centrone, 2014) associam Theuth ao deus egípcio Thoth, correspondente a
Prometeu, responsável, na tradição grega, por ter transferido aos homens o domínio das artes (alude-se a
176
seus inventos ao rei Thamos, que também pode ser relacionado a uma divindade, o deus
Ámon271, para serem ensinadas aos egípcios. Ao ofertar a escrita, Theuth defendia sua
utilidade, afirmando que essa arte teria o poder de tornar os homens mais sábios
(σοφώτερος) e com melhor memória (μνημονικώτερος), sendo ela um remédio
(φάρμακον) para a memória (μνήμη) e para a sabedoria (σοφία) (274e5-7).
O rei Thamos, entretanto, observou que a escrita produziria exatamente o efeito
inverso daquele pretendido por seu inventor (274e6-b2): porquanto não mais obrigaria os
homens ao exercício da memória (μνήμης ἀμελετησία), produziria esquecimento nas
almas dos que aprendem (275a2-3: τῶν μαθόντων λήθην μὲν ἐν ψυχαῖς παρέξει). Por
acreditarem na escrita (διὰ πίστιν γραφῆς), não mais despertariam reminiscências
mediante um exercício em si e por si mesmos, mas mediante caracteres estranhos (ὑπ’
ἀλλοτρίων τύπων). Por isso, a tékhne grammatiké presenteada aos egípcios seria não mais
que um remédio para a recordação (ὑπόμνησις), nunca para a verdadeira memória
(μνήμη).
Na sequência, Fedro parece assentir facilmente com a argumentação do rei
Thamos: “quanto aos textos escritos, parece-me que se dá precisamente [ᾗπερ] o que diz
o tebano” (275c3-4 – grifo nosso)272. A partícula indeclinável cuja tradução grifamos
acentua aquele caráter da personalidade de Fedro a que fizemos alusão há pouco: é
facilmente convencido da orientação socrática, sem qualquer sombra de dúvida, crítica,
ou mesmo mais demorada reflexão. Isso nos permite pensar que esse primeiro
assentimento – evidentemente contrário à pretensão filosófica da escrita – será também
alvo de problematização pelo próprio Sócrates, mediante um exercício dialético,
conforme examinaremos mais à frente.
Para o momento, vale observar que o último comentário de Sócrates nessa seção
reforça a primeira impressão de Fedro, ao consentir com a opinião do rei: acreditar que
o que for registrado por escrito represente algo seguro e sábio (275c6: τι σαφὲς καὶ
βέβαιον) representa ingenuidade (εὐήθεια)273 e ignorância da profecia de Ámon (275c7-8:
esse mito também no Prt. 321d3 e no Phlb. 16c6). Velardi (2006, p. 296), por sua vez, baseado em fontes
antigas, associa essa divindade a Hermes. Yunis (2014, p. 227) observa, ainda, que na maior parte dos relatos
antigos, a escrita e as demais tékhnai que se atribuem a Theuth são atribuídas a Palamedes (Estesícoro,
PMGF 213; Górgias Pal. 30; Alcidamente Odysseus 22; Pl. R. 7.522d; Sóf. TrGF 479, Eur. TrGF 578).
271
O diálogo entre Theuth e Thamos assume o caráter da discussão entre duas divindades. É possível
associar o rei Thamos ao deus Ámon: conforme comenta De Luise (2002, p. 225), o nome Θάμοῦς é
provavelmente uma variação de Ἀμοῦς, divindade que poderia também ser associada a Zeus (a partir do
comentário de Heródoto, Hist. II, 42). A divindade Ámon também vem citada no contexto (275c8). Essa
associação é também sustentada por Centrone (2014, p. 169) e Reis (2016, p. 236).
272
Cf. δοκεῖ περὶ γραμμάτων ἔχειν ᾗπερ ὁ Θηβαῖος λέγει.
273
Conforme comentam Centrone (2014, p. 170) e Yunis (2014, p. 230), o termo euétheia, “ingenuidade” (ou
“simplicidade de costumes”, palavra formada a partir do radical de éthos) é ligada aos homens primordiais
177
τὴν Ἄμμωνος μαντείαν ἀγνοοῖ)274, uma pretensão equivocada de que os discursos
escritos poderiam ser mais do que um meio para recordar aquilo que está escrito àqueles
que já o sabem (275c5-d2).
Temos, portanto, nessa passagem, duas posições contraditórias. Na posição de
Theuth, a escrita é um phármakon para a memória, tornando as pessoas mais sábias.
Talvez enganado pela sua condição de inventor275, seu discurso é frontalmente contradito
pela opinião do rei, ele próprio, todavia, não um usuário comum da linguagem276: a
escrita levaria, pelo contrário, as pessoas ao esquecimento. Nesse sentido, a escrita
poderia ser candidata, no máximo, a ser um remédio para a recordação (ὑπόμνησις), não
para a memória (μνήμη) – isto é, seria eficaz para fazer lembrar daquilo que já se sabe,
não sendo, portanto, eficaz para a aquisição de novos conhecimentos.
A passagem parece associar, assim, três temas fundamentais: linguagem (λόγος),
memória (μνήμη) e sabedoria (σοφία), ainda que os termos em que essa relação se opera
mudem de direção, conforme damos ouvidos ao rei, ou se cedemos a palavra ao inventor
da escrita. Ainda que a posição socrática, na sequência, pareça, à uma primeira instância,
fazer pender a balança para o lado do rei, temos, todavia, uma contradição jamais desfeita
no primeiro plano do texto: a tese da bondade da escrita vs. sua antítese na opinião real277.
Por essas razões, o trecho tem sido objeto de intensa controvérsia analítica, tendo
possibilitado interpretações por vezes bastante conflitantes da obra de Platão278. Como
(fazendo sentido dentro do contexto mítico). Os comentadores afirmam que, apesar de poder ser tomado
em um tom pejorativo na passagem, não é de todo irônico, se consideramos, por ex., o uso do termo na R.
3.400e2.
274
Temos aqui, aparentemente, a correlação entre Ámon e o deus Thamos – a profecia sendo aquela de que
a escrita levaria os homens ao esquecimento, não à sabedoria.
275
A ideia de que cabe a quem usa – e não a quem inventa – oferecer um juízo crítico da utilidade e/ou
pertinência da invenção parece ser lugar-comum em Platão. No Crátilo (388e1-390d7), por exemplo, essa
posição é colocada em termos claros: é mais capacitado a ajuizar sobre a justeza de uma lira, um navio ou
dos nomes não seus inventores – o criador de liras, navios ou nomes – mas os usuários. Conforme comenta
Centrone (2014, p. 169), as palavras do rei Thamos parecem ecoar a ideia platônica da necessidade de uma
“ciência” superior aos demais saberes, capaz de juízo crítico sobre eles. Tal ideia aparece, por exemplo, no
Chrm. 173a-d, 174d, com a proposição de uma “ciência das ciências”, no Euthd. 288d-291d, com a noção de
“ciência régia” e explicitamente na R. 7.533d-535a, com a proposição da dialética.
276
Com efeito, Theuth presenteia ao rei com as invenções que devem ser ensinadas aos “egípcios”. A
autoridade real, contudo, não está no nível dos cidadãos comuns. Conforme comenta Derrida (2004 [1972],
p. 272), o rei não precisa, com efeito, da escrita: sua palavra dita é o suficiente. Nesse sentido, para ele, em
particular – e não para os demais egípcios – é que se deve entender a escrita como espécie de ameaça.
277
Essa ambiguidade quanto ao estatuto da escrita – a nosso juízo, jamais desfeita por Platão – acentua-se
pela ambiguidade da própria posição socrática. Se os comentários que seguem à narrativa de Theuth
parecem situar a escrita em zona cinzenta e suspeita, Sócrates, por outro lado, argumentara alhures a favor
de uma espécie de absolvição in dubio pro reo da escrita (258d1-4).
278
A essa crítica à escrita que emerge da passagem – um aparente paradoxo para um autor cuja obra escrita
é, de fato, monumental –, acrescem-se o estilo indireto do gênero diálogo – cujas formulações filosóficas
decorrem de afirmativas atribuídas a terceiros, apresentando, não raro, formulações provisórias,
contraditórias e aporéticas –, que permitiram interpretações antigas e modernas que levaram, por exemplo,
ora a interpretarem Platão como uma espécie de filósofo “cético” (cujo objetivo teria sido não
necessariamente apresentar formulações positivas sobre a verdade, mas apenas estimular a investigação),
178
veremos na sequência, entre as diferentes interpretações da passagem, é possível
encontrar posições que reforçam a ideia de que Platão teria sido um filósofo sistemático,
dogmático, porém adverso à linguagem escrita, propenso, em contrapartida, aos
ensinamentos intra muros, jamais escritos – e outras que, entretanto, possibilitam a
compreensão do texto de Platão como um construto mais ou menos suficiente para a
compreensão de seu pensamento, embora esse seja inacabado e caracterizado por uma
abertura dialética279. Em ambos os casos, a leitura desse mito afirma algo sobre o lugar da
escrita para Platão: seja como uma experiência efetivamente realizada pelo filósofo, seja
como um possível locus teórico de que o filósofo teria se servido, nenhuma interpretação
da passagem pode se furtar de avaliar em que medida os diálogos, efetivamente escritos,
poderiam também ser pensados como elementos fundamentais ou complementares para
compreensão do pensamento de Platão.
É claro que essas diferentes posições interpretam a narrativa da invenção da
escrita de forma bastante diversa e, por conseguinte, oferecem respostas em certos casos
bastante discordantes para o tópico levantado por Sócrates – a conveniência ou
inconveniência da escrita. Ou seja, essas leituras respondem de forma diferente à
possibilidade ou viabilidade (ou não) de uma bela escrita, i.e. uma escrita que, se não
correspondente à dialética, com ela ao menos mantenha alguma relação.
Assim, antes de oferecermos as linhas que sustentam a nossa interpretação dessa
passagem, o que o faremos no capítulo IV, veremos, nos próximos subitens, algumas das
perspectivas hermenêuticas que se consolidaram na erudita tradição crítica dessa
passagem, e que delineiam um Platão que se orienta da mais radical recusa histórica à
escrita, ao filósofo que a elege como linha nevrálgica para seu pensamento.
Evidentemente, não temos a pretensão de oferecer um apanhado exaustivo280.
ora, ao contrário, o apontaram como um filósofo “doutrinal” ou “dogmático”, que teria construído um
pensamento complexo a partir de sua obra (Rowe, 2006, p. 14). F. J. Gonzales (1995) propõe uma concepção
não extremista para a oposição entre ceticismo e dogmatismo, posição que tomamos como referência.
279
Não se sobrepõem, necessariamente, a concepção mais dogmática da filosofia platônica à perspectiva
que oferece primazia às doutrinas não-escritas (em detrimento do valor da escrita e dos diálogos escritos);
nem a concepção menos dogmática à perspectiva que propõe a suficiência dos diálogos como fonte para o
pensamento de Platão. Entre as correntes que propugnam, entretanto, a primazia das doutrinas não-
escritas sobre os diálogos escritos, conforme veremos à frente, sobressaem-se aquelas que oferecem uma
leitura mais dogmática do pensamento platônico. É preciso, contudo, anotar, que, além dessas duas
perspectivas hermenêuticas, poderíamos indicar outras possibilidades interpretativas, que, embora não
sendo “céticas”, têm questionado também a interpretação tradicional “dogmática” da obra de Platão. Como
nos recorda Rowe (2006), assumindo a impossibilidade de uma interpretação unívoca do texto escrito, que,
ao contrário, tratar-se-ia de uma matriz de vozes e intertextos, uma terceira via interpretativa seria aquela
a que o autor se refere como a interpretação literária pós-moderna, sobre a qual, no entanto, por limitação
do escopo dessa seção, não nos deteremos aqui.
280
Essa tarefa já foi, de fato, parcialmente realizada por diversos comentadores, filiados às diferentes
perspectivas, como por exemplo, Trabattoni (2003), que concede toda sua obra ao exame da questão e, na
perspectiva inversa, Hösle (2008). Filiados à perspectiva da chamada “Escola de Tübingen-Milão”,
179
Organizaremos a reflexão a seguir examinando três correntes principais: 1. a posição
moderna tradicional (segundo Schleiermacher, 2008 [1804]); 2. a contraposição a essa
perspectiva, a assim chamada Escola de Tübingen-Milão (Krämer, 1959; Szlezák, 2009
[1985], 2011 [2004], Reale, 2007 [1980], 2004 [1991]; Hösle, 2008; Perine, 2014); e 3. algumas
das perspectivas críticas a essa escola (Burger, 1980; Vlastos, 1981; Ferrari, 1990;
Trabattoni, 2003; Brisson, 2003). Finalmente, faremos também uma breve menção à
perspectiva derrideana de leitura dessa passagem (Derrida, 2004 [1972]).
A posição schleiermacheriana
capítulos de referência para a reconstituição dessa história estão em Krämer (1990, capítulos 1-5, onde
delineia o histórico de “ascensão e queda” do “schleiermacherianismo”) e Reale (2004 [1991], capítulos 1-3,
onde defende a aplicação da noção de paradigma kuhniano à história da hermenêutica de Platão).
281
Friedrich Schleiermacher (1769-1834) é o grande nome da filologia alemã dos oitocentos. Empenhou-se
a traduzir, a convite de Schlegel (1777-1829) a obra completa de Platão entre 1804 e 1828; sua publicação final
sai a lume quase que simultaneamente às edições de Immanuel Bekker (1818), Friedrich Ast (1827) e
Gottfried Stallbaum (1825). Embora o projeto de tradução prevesse inicialmente uma parceria entre
Schleiermacher e Schlegel, não somente Schleiermacher assumiu, com a desistência de Schlegel, toda a
responsabilidade pelo trabalho, como também, nesse percurso, se observou importante divergência teórica
entre os dois pensadores. Conforme comenta Rey Puente (2008, p. 12), se, por um lado, Schlegel, em seu
texto Charakteristik des Plato, datado de 1803/1804, mostrasse uma leitura aberta da obra de Platão – para ele,
com efeito, a filosofia de Platão seria incompleta, o filósofo estaria quase sempre buscando novas respostas,
sem jamais chegar a conclusões – Schleiermacher, por outro, através da defesa das teses da autonomia do
texto e da necessidade de conciliar forma e conteúdo na exegese, sugeria ser possível chegar ao fundamento
do pensamento de Platão por intermédio da correta hermenêutica dos diálogos escritos (Trabattoni, 2003,
p. 41).
282
Conforme assinala Trabattoni (2003, p. 38), o interesse pela retomada dos textos de Platão na Alemanha
refere-se ao florescimento do idealismo, ao lado da consolidação de uma filosofia religiosa conciliável com
a religião (em reação ao materialismo e mundanismo do século XVIII).
180
Auslegung), que consistia no estudo e na compreensão do discurso em si (decorrendo
especificamente de atenta reflexão sobre o universo linguístico e suas relações
históricas); e o método psicológico (die psychologische Auslegung), que consistia em se
reconstituir a mentalidade do autor, considerando, entre outros aspectos, indícios
aferidos a partir de seu próprio texto. Nesse sentido, a hermenêutica de Schleiermacher
afastava-se de uma perspectiva puramente idealista283, ao conferir grande destaque à
compreensão do texto e da linguagem284. Era na interrelação, portanto, entre linguagem
e história que se revelava o filólogo: embora reconhecendo a precariedade das
informações biográficas disponíveis sobre Platão285, acentuava a necessidade de
investigar algo como um “contexto histórico” atrelado à própria forma em que o texto
vinha escrito286.
A reflexão em torno do diálogo advinha, assim, da proposição de uma
inseparabilidade entre texto/contexto e conteúdo. Com efeito, a argumentação de
Schleiermacher parece, inicialmente, contradizer os intérpretes de Platão que buscavam
ler o pensamento do filósofo apesar das dificuldades engendradas pelo gênero de
composição287. Ao contrário: para o filólogo, a forma textual contribuiria para o conteúdo
283
Com efeito, conforme esclarece Guimarães (2017, p. 158), embora a apreensão da unidade autoral,
psicológica, se efetue mediante a intuição – algo “divino” –, por outro lado, contudo, para essa apreensão
“podem ser apontados outros fatores, como: a peculiaridade da composição, o tratamento dado à língua
para a descoberta da individualidade a fim da compreensão geral do Todo”. A defesa da primazia da
interpretação dos textos – em detrimento de especulações sobre um possível conteúdo esotérico, ligado a
uma tradição de cunho oral tributável ao ensino da Academia, ao médio-platonismo e ao neoplatonismo –
parece refletir, como comenta Trabattoni (2003, p. 39), a relevante influência do princípio da Sola Scriptura
condigna à teologia luterana por ele professada, da qual foi também importante teólogo e exegeta. Se, por
um lado, como comenta Rey Puente (2008, p. 12), Schlegel acreditasse que a filosofia de Platão fosse
necessariamente incompleta, isto é “ele está sempre buscando novas soluções para seus problemas, sem,
contudo, jamais chegar ao Absoluto, mas apenas aludindo indiretamente”, Schleiermacher se lançava,
justamente, contra aqueles que “formaram a opinião de que nos escritos de Platão não esteja contida sua
doutrina verdadeira e própria, ou que esteja contida apenas por alusões dificilmente atingíveis”
(Trabattoni, 2003, p. 40).
284
Conforme afirma: “o que se pressupõe e o que se afirma em hermenêutica é apenas linguagem”
(Schleiermacher, 1999 [1819], p. 19).
285
Cf. Schleiermacher (2008 [1804], p. 28): “Mesmo sobre os acontecimentos mais conhecidos de sua vida, a
saber, suas viagens notáveis, tão pouca coisa pode ser averiguada com certeza, que há pouco ganho nisso a
fim de determinar a data e a sequência de seus escritos e que, na melhor das hipóteses, pode-se definir o
lugar provável, onde eles interrompem a série destes.”
286
“Contudo, seria mais pertinente para essa finalidade apresentar algo, se for possível, dentro dos limites
preestabelecidos, sobre o estado das ciências dos gregos na época em que Platão iniciou sua carreira, sobre
o progresso da língua grega em relação à designação das ideias filosóficas, sobre os escritos existentes na
época e sobre o presumível motivo da sua divulgação” (Idem, ib., p. 29).
287
A isso, o filólogo qualifica como realizar investigações “não platônicas”: “quem, todavia, observa quão
superficialmente e com qual sentimento de insegurança mal escondida até os melhores intérpretes falam
sobre as intenções de determinadas obras platônicas ou quão levianamente tratam a relação do conteúdo
com a forma”. Mais adiante, o Schleiermacher complementa: “Essa satisfação engana-se ao menos pela
metade, a saber, por tudo aquilo que só poderá ser compreendido na filosofia platônica quando se
reconhece adequadamente a grande intencionalidade pertencente à composição de seus escritos” (Idem,
ib., p. 31).
181
do pensamento; ambos os domínios se entrelaçariam, sendo dimensões inafastáveis para
uma correta interpretação288. Por essa mesma razão, o diálogo seria uma construção
igualmente filosófica – não somente artística289 – e toda iniciativa que julgasse a
expressão formal dos diálogos causa de contradição, inconclusão ou obscuridade e, por
conseguinte, buscasse encontrar respostas externas a eles, só poderiam, de fato, resultar
de incompreensões relativas ao próprio diálogo como uma forma filosófica e gerar
interpretações francamente adversas ao espírito da filosofia platônica.
Nesse sentido, a perspectiva schleiermacheriana também propunha uma recusa
enfática da tradição interpretativa que aplicava à obra de Platão as categorias esotérico
vs. exotérico, isto é, que defendia a existência de uma doutrina indetectável a partir dos
textos, ou de algum modo “secreta”. Para Schleiermacher, a distinção não se aplicaria à
obra de Platão nem no sentido em que se poderia, talvez, aplicar aos pitagóricos – a
distinção entre temas privados, esotéricos e públicos, exotéricos – nem, tampouco, no
sentido em que se poderia, mais tarde, aplicar a Aristóteles – a distinção entre uma
modalidade de discurso popular, exotérica, e uma modalidade de discurso para iniciados,
esotérica (Schleiermacher, 2008 [1804], p. 37).
Para Schleiermacher, tanto não haveria evidências históricas que corroborassem
a existência de círculos internos e externos à Academia, quanto, sobretudo, seria
impossível, do ponto de vista textual, determinar, com objetividade, que diálogos seriam
“introdutórios” ou “iniciáticos”. Contra tal tradição, Schleiermacher (ib., p. 38) mostrava
como argumentações desse tipo decorriam, no mais das vezes, de tentativa de “salvar”
anacronicamente o pensamento platônico, imputando a uma presumida doutrina
esotérica outros conhecimentos filosóficos; conhecimentos, efetivamente, em muitos
casos alheios e extemporâneos à sua obra escrita290. No mesmo sentido, o tradutor
288
Conforme comenta Hösle (2008, p. 61), na perspectiva de Schleiermacher, “somente uma reflexão sobre
ela [a forma do diálogo] poderia nos preservar de dois erros, a saber: ou crer que Platão não havia tido uma
doutrina própria (uma visão que revela uma total incompreensão que só pode ser atribuída ao intérprete),
ou aceitar a distinção entre dimensão exotérica e dimensão esotérica”.
289
Como comenta Trabattoni (2003, p. 40): “Schleiermacher quer dizer que quem considera os textos
platônicos como se fossem tratados, descuidando totalmente de sua forma, não é capaz de compreender o
seu significado filosófico, podendo, consequentemente, ser levado a julgá-los contraditórios e inconclusos
e, por isso, buscar a “verdadeira filosofia” em um suposto saber secreto. Se, ao contrário, leva-se em devida
conta a forma na qual Platão expõe o seu pensamento, então, consegue-se compreender que tal forma não
é um inútil obstáculo à compreensão, mas deve ser considerada parte integrante da imagem que Platão
tinha da filosofia”.
290
Com efeito, na perspectiva de Schleiermacher, embora a tentativa dos neoplatônicos mereça louvor, o
seu resultado – juntamente com os dos demais – resulta inócuo para o pensamento de Platão, se dessas
interpretações se descontam os princípios anacrônicos e alheios ao pensamento do filósofo: “fazendo
abstração do conteúdo teosófico e não querendo atribuir a Platão conhecimentos das ciências naturais que
ele não podia ter e que estariam até em contradição com seus escritos, eles [os que propõem leituras
esotéricas] certamente não encontrariam nada nesses escritos na área de filosofia sobre o que não houvesse
um juízo reto e nítido ou pelo menos bem fundamentado”.
182
apontava como evidência contrária à tese das doutrinas esotéricas de Platão o fato de
Aristóteles jamais se reportar a elas e se basear sistematicamente nos textos escritos (ib.,
p. 39).
O legado da posição de Schleiermacher para a interpretação contemporânea de
Platão é incontestável291. Além disso, a grande importância dada ao diálogo e à própria
linguagem parecem responder, indiretamente, ao problema da escrita apresentado no
Fedro. Quanto à parte final do Fedro, em particular, o filólogo percebe uma relação do tipo
imagem-paradigma entre a escrita e a oralidade, o que significa render-se à certa vantagem
do discurso oral como forma de expressão filosófica292. Entretanto, disso não decorreria
o fato de que a escrita teria sido evitada ou relegada histórica ou filosoficamente por
Platão. Historicamente, parecia evidente que não – haja vista o volume monumental da
obra efetivamente escrita pelo filósofo –; filosoficamente, também não: da escrita Platão
teria forjado a forma dialógica, essencialmente dialética e fundamental para o
pensamento filosófico293.
É por essa razão, aliás, que o filólogo situa o Fedro como a obra inaugural do
programa de Platão. Com efeito, o crivo pelo qual o filólogo situa esse diálogo, ao lado do
Protágoras e o Parmênides, entre as primeiras obras seria justamente o fato de neles se
desenvolverem “as noções daquilo que está na base de tudo que se segue, da dialética
como técnica da filosofia” (Schleiermacher, 2008 [1804], p. 73)294, em cujo bojo se situa –
291
A sua proposta de cronologia da obra de Platão, que decorre da tese da sistematicidade e organicidade
dos diálogos, muito embora atualmente discutível, tornou-se, entretanto, referência para os estudos
estilométricos que renderam infindáveis discussões de meados do século XIX até, pelo menos, metade do
século XX (Mais detalhes dessa discussão podem ser conferidos em Brandwood, 2009 [1990]). Além disso,
a partir de Schleiermacher, a compreensão crítica do gênero diálogo se torna problema incontornável em
qualquer interpretação contemporânea (como atestam os estudos de Hösle, 2008; Szlézak, 2005; Dixsaut,
2012; Cotton, 2014).
292
Cf. Schleiermacher (2008 [1804], p. 42): “Ora, quem quiser refletir sobre essa tão evidente vantagem do
ensino oral e em que ela residiria, não encontrará outra a não ser esta, a saber, que o professor, nesse caso,
estando numa interação viva e presente com o aluno, poderia saber, a qualquer momento, o que este
entendeu e o que este não entendeu, ajudando, assim, na atividade do seu entendimento onde fosse
preciso; o fato dessa vantagem realmente ser alcançada baseia-se, como todo mundo sabe, na forma
conversacional que o ensino vivo realmente tem que ter. É a isso que Platão está se referindo quando diz
que o pai do discurso oral sempre poderia ajudar a este e defendê-lo, não apenas contra objeções daqueles
que têm uma opinião diferente, mas também contra a teimosia daquele que ainda não sabe, sendo que o
discurso escrito não tem nenhuma resposta a qualquer outra pergunta (…)”.
293
Cf. Schleiermacher (ibidem, p. 43-44): “Uma vez que Platão, não obstante essas queixas, escreveu tanto
desde o início da idade madura até a mais avançada, fica evidente que procurou tornar também o
ensinamento escrito o mais semelhante possível àquele ensinamento melhor, e foi bem sucedido nessa
tentativa. Mesmo pensando naquela intenção imediata de que a escrita seja, para ele e para os seus, uma
lembrança dos pensamentos já habituais, Platão considera o pensar em tal medida uma atividade
autônoma na qual a lembrança do assim adquirido também deve necessariamente ser uma lembrança da
maneira primária e original da aquisição. De modo que, apenas por isso, a forma dialógica, necessária para
a imitação daquela comunicação mútua original, tornou-se tão indispensável e natural para os seus escritos
quanto para seu ensino oral”.
294
Se por um lado, como comenta Hösle (2008, p. 63), faltavam a Schleiermacher ferramentas filológicas –
tais como as que seriam desenvolvidas, posteriormente, pelos estudos estilométricos – que possibilitariam
183
não por acaso – uma reflexão sobre a escrita e a linguagem filosófica. Além disso, uma
tão veemente recusa ao texto escrito parecia soar como ideia de um filósofo ainda não
amadurecido295.
Por conseguinte, ao defender a integração entre o quê e o como Platão escreve, isto
é, entre conteúdo e forma, Schleiermacher parece ainda apontar para uma implícita
relação entre a escrita e a dialética: o conteúdo da filosofia decorre de uma igualmente
relevante forma do filosofar. O pensamento platônico não estaria, por si mesmo,
encerrado em nenhuma fórmula linguística, mas paradoxalmente restaria ao leitor o
desafio da forma linguística para se atingir o pensamento do filósofo296.
Nesse sentido, a contribuição de Schleiermacher também neutralizava a
perspectiva tradicional que, em detrimento da obra escrita, buscava situar além dos
textos uma “verdadeira doutrina platônica”. Assim, no início do século XIX, o filólogo já
recusava a ideia de que os diálogos pudessem se limitar a ter apenas uma função
protréptica ou propedêutica – e, portanto, de que se deveriam buscar, além dos textos,
evidências não-escritas. A consequência dessa posição, conforme comentam Vaz (1990,
p. 104) e Reale (2004 [1991], p. 27), era o de relegar a posição secundária e “inexpressiva”
toda a tradição indireta das “doutrinas não-escritas”. Além disso, a primazia conferida ao
texto dos diálogos, além de ter motivado as grandes questões da hermenêutica platônica
do século XIX – a questão da autenticidade, da unidade e da cronologia dos diálogos –
teria ainda deixado em aberto dois problemas: como interpretar os passos de crítica à
escrita contidos em sua obra, nos termos de Vaz, uma verdadeira crux interpretum? Que
tratamento oferecer aos inegáveis testemunhos indiretos sobre a obra de Platão?
Tais problemas colocaram diante dos intérpretes “schleiermacherianos” o
chamado “enigma da primeira Academia”. A expressão, cunhada por Harold Cherniss,
em sua obra de 1945 – The riddle of early Academy –, decorre da importância que os
sua proposta ser mais convincente – embora, a bem dizer, fosse já, àquela altura, um considerável avanço
em relação à cronologia alexandrina –, não se pode deixar de nela reconhecer uma grande originalidade.
Nela, Schleiermacher divide as obras entre as “elementares” (que, além de nos introduzir aos princípios da
dialética, apresentariam uma primeira reflexão em torno das Formas), as “indiretas” (que tratam da
aplicação do saber filosófico à ética e à física) e as “diretas” ou “construtivas” (que representam uma espécie
de síntese das duas primeiras perspectivas).
295
Na introdução particular ao Fedro, Schleiermacher reforça a tese de que o Fedro seria a primeira obra na
cronologia platônica, justamente por causa da posição (que teria sido posteriormente revogada, entretanto)
enfaticamente contrária à escrita. Segundo o filólogo alemão, aquela posição só representaria o esforço
juvenil de Platão para justificar a não-escrita socrática.
296
Como comenta Rey Puente (2008, p. 17): “A alma deste [do leitor] deveria ser dirigida por meio do diálogo
a experimentar diferentes estados anímicos, tais como: a constatação da sua própria ignorância, a busca
autônoma de uma solução apenas esboçada, a atenção à grande coerência interna que passa desapercebida
ao leitor desatento, ou, por fim, a complementação de uma exposição, apresentada apenas
fragmentariamente, a partir de noções ínsitas à sua própria alma”. Nesse sentido, poderíamos dizer que,
para Schleiermacher, o diálogo é tanto psicagógico, quanto dialético.
184
testemunhos indiretos parecem conferir a um suposto ensinamento intra muros, e que,
ademais, teriam um caráter provavelmente oral. Cherniss, certamente um dos maiores
defensores da perspectiva schleiermacheriana e veemente adversário da interpretação
esotérica de Platão, se empenhou em demonstrar a fragilidade dos testemunhos
aristotélicos297, mas sua posição, embora ainda relevante no debate contemporâneo298,
não impediu que se desenvolvessem outras vozes que, no século XX, buscassem a
reabilitação da tradição indireta, colocando em xeque o núcleo central da hermenêutica
de Schleiermacher – como é o caso, conforme veremos, dos diferentes estudiosos ligados
à chamada “Escola de Tübingen-Milão”.
A Escola de Tübingen-Milão
297
Conforme comenta Trabattoni (2003, p. 48): “As doutrinas transmitidas pela tradição indireta não seriam
nada mais, para Cherniss, do que interpretações errôneas da obra escrita, proveniente de uma pluralidade
de mediações, bem como de fusões devidas a Aristóteles – propenso a uma polêmica e, portanto, não
inocente – de doutrinas platônicas com doutrinas de Espêusipo e Xenócrates”.
298
A estudiosa italiana Margherita Isnardi-Parente, pelos seus numerosos trabalhos em torno dessa
questão (Isnardi-Parente, 1970, 1979, 1986, 1991, 1992, 1995, 1998), pode ser considerada, de certo modo, a
herdeira intelectual da posição de Schleiermacher/Cherniss, e colabora ativamente para a crítica à
interpretação esotérica de Platão. Outro nome importante nesse sentido é do pesquisador sueco Tigerstedt
(1977).
299
Conforme comenta Hösle (2008, p. 18): “Elevá-las [as exigências de estudo de testemunhos indiretos],
como fez a assim chamada Escola de Tübingen, fundada por Hans Krämer e Konrad Gaiser, à condição de
programa para uma história da filosofia, pareceria, portanto, uma obviedade”. Como veremos à frente, a
centralidade dos testemunhos indiretos para a apreciação da filosofia platônica, contudo, parece-nos um
movimento, na verdade, nada óbvio, mas decorre de uma série de compromissos e pressuposições nem
sempre inteiramente inquestionáveis.
300
Os seguidores dessa perspectiva consideram-na “um novo paradigma” para a interpretação da obra de
Platão, que superaria todas as perspectivas “schleiermacherianas”. A ideia de paradigma, associada à
formulação de Thomas Kuhn (2011 [1962]), é formulada por Reale (2004 [1991]) e referendada por outros
comentadores filiados a essa perspectiva, entre os quais, por exemplo, Hösle (2008) e Perine (2014).
Historicamente, a escola tem como referência inicial mais importante a dissertação de Konrad Gaiser
(publicada em 1959): Protreptik und Paränese bei Platon. Untersuchungen zur Form des platonischen Dialogs, na
qual se defende que os diálogos representariam uma formulação preparatória para um ensinamento mais
elevado de Platão. À obra de Gaiser, associa-se também o estudo de Hans Krämer intitulado Arete bei Platon
und Aristoteles. Zum Wesen und zur Geschichte der platonischen Ontologie, que desenvolve a Doutrina dos
Princípios como elo entre a ética platônica e aristotélica. Esses dois pensadores de Tübingen tiveram ampla
recepção e divulgação junto à Universidade Católica de Milão, onde Giovanni Reale, a partir do início da
década de 80, além de publicar, de Krämer, a obra Platone e i fondamenti della metafisica (1982, traduzido para
o inglês em 1990), obra na qual se apresenta uma espécie de síntese da perspectiva teórico-hermenêutica
defendida, desenvolve uma extensa e robusta pesquisa em torno da filosofia grega e de Platão
especialmente. Outras publicações importantes de Reale incluem Per una nuova interpretazione de Platone
(1991, traduzida para o português em 2004) e os volumes dedicados à História da Filosofia (1975-1980), além
de vários outros estudos e comentários da obra de Platão. Ao grupo se associa também Thomas Szlezák,
que publicou, entre as mais importantes obras para essa perspectiva: Platon und die Schriftlichkeit der
Philosophie. Interpretationem zu den frühen und mittleren Dialogen (1985, publicado em português em 2009);
185
teóricos mais importantes, faria o contraponto à perspectiva de Schleiermacher301 e
estaria inclinada a relegar a uma posição subalterna a escrita (incluindo aí a dos próprios
diálogos), em prol de uma releitura da filosofia de Platão à luz de princípios não escritos,
as chamadas “doutrinas não-escritas” (ἄγραφα δόγματα), às quais teríamos acesso
indireto através da obra de comentadores e acadêmicos, dentre os quais, especialmente,
de Aristóteles302.
A interpretação dos estudiosos da Universidade de Tübingen consiste em dois
passos argumentativos não necessariamente óbvios: em ligar a tradição indireta que faz
referência aos ensinamentos de Platão a um ensinamento exclusivamente oral, ao qual
Aristóteles teria feito menção na Física (209b14-15)303; e, por consequência, em defender
que tal ensinamento fosse o núcleo forte da filosofia de Platão, ao passo que os elementos
doutrinais contidos na obra escrita devessem ser compreendidos no limite de suas
funções propedêuticas ou ligadas à recordação304. Além dos chamados
Das Bild des Dialektikers in Platons späten Dialogen (2004, publicado em português em 2011); e a obra de
divulgação Platon lesen (1993, publicado em português em 2005). No Brasil, a perspectiva se consolidou, em
primeiro lugar, com a massiva divulgação da História da Filosofia de Giovanni Reale e as traduções de suas
obras em português, ao lado das pesquisas de Vaz (1987, 1993, 1996, 1997a, 1997b) e Perine (2009, 2014).
301
Schleiermacher, segundo Krämer (1990, p. 16), teria sido excessivamente seduzido pelo princípio
luterano da Sola Scriptura e teria aplicado essa avaliação ao pensamento platônico. Além disso, sua
insistência na defesa da unidade do pensamento de Platão contida nos diálogos, bem como na integração
entre forma e conteúdo, seria derivada de sua proximidade com o pensamento idealista, com Schelling, em
particular. Assim, a sua hermenêutica não seria historicamente exata. Além disso, o estudioso contesta a
relação que Schleiermacher faz entre a crítica à escrita contida no Fedro e a proposição de uma escrita
dialética –o diálogo. Para Krämer (1990, p. 5), Schleiermacher não teria compreendido o irrevogável hiato
metodológico entre a dialética escrita e oral (a escrita, qualquer que seja, não seria uma forma adequada
de comunicação filosófica).
302
Os principais testemunhos considerados como fontes para as doutrinas não-escritas estão em Aristóteles
(Ph. 209B11; Metaph. A6, entre outras) e em acadêmicos a ele coetâneos, tais como Hermodoro (ap. Simpl.
Ph. 247, 30ff, citando Porfírio), além de em discípulos e comentadores, especialmente Teofrasto (Metaph.
6A24ff; 11A27ff), Aristóxeno (Harm. 30,16-31,34 Meibom), Alexandre de Afrodísias e Simplício (In Ph.
453,30ff). O filósofo cético Sexto Empírico (M. 10.248-309), também é fonte relevante para esses estudiosos.
É importante notar que essas fontes indiretas, conforme destaca Perine (2014, p. 24), não constituem apenas
uma linha de transmissão, mas se desenvolvem em, pelo menos, três ramos independentes um do outro
(um, mais importante, que vai de Aristóteles-Teofrasto-Aristoxeno, chegando a Alexandre e a Simplício; o
segundo, que vai de Hermodoro a Simplício; e um terceiro que remonta obscuramente à Academia Antiga
e teria chegado a Sexto Empírico. Uma breve coletânea desses testemunhos se encontra em Krämer (1990).
Uma coletânea mais completa é a de Gaiser (organizada por Reale, 1998).
303
Conforme esclarece Trabattoni (2003, p. 25), a tradição indireta da filosofia de Platão não é destituída de
importância. As citações e alusões a obras escritas de Platão pelos seus discípulos e pelos filósofos
posteriores, assim como os importantes testemunhos de Aristóteles – especialmente contidos da Metafísica
– conduzem a uma espécie de ensinamento interno à academia – embora não necessariamente
identificável com as ágrapha dógmata, citada por Aristóteles na Física (209b14-15).
304
Szlezák (2005 [1993], p. 74), a partir da leitura do Fedro, defende, como veremos à frente, que a escrita
deve-se confinar às suas funções rememorativas, embora válida do ponto de vista artístico, ela seria inócua
do ponto de vista filosófico: “A escrita, para Platão, também é necessariamente infrutífera, improdutiva; o
conhecimento e o entusiasmo transmitidos pela escrita podem ser comparados ao breve e ilusório rebento
no jardim de Adônis, seguido de rápido fenecimento”. Uma posição mais moderada, conciliadora é de
Hösle, que defende que os diálogos escritos poderiam ser algo mais que um “jogo”: “Daí que ele [Platão]
precisa ter esperado que seus diálogos fossem não apenas um convite a se associarem à Academia, onde se
seguiria uma instrução oral expressa, mas também uma espécie de mensagem postada em uma garrafa,
186
“autotestemunhos” (as passagens dos diálogos em que há reservas contra a escrita,
especialmente a Carta 7 e a passagem do Fedro em questão), esses estudiosos sustentam
tal posição nos “passos de omissão” dos diálogos, isto é, naquelas passagens em que o
condutor do diálogo se mostra reticente, recusando-se a dar respostas – omissões que,
segundo eles, não derivam de dificuldades filosóficas, mas de uma recusa histórica à
escrita, um deliberado silenciamento em prol da primazia dos ensinamentos orais
internos à Academia305. Nesse sentido, contrariamente à posição defendida por
Schleiermacher, os diálogos platônicos não sintetizariam, neles próprios, a filosofia de
Platão: a partir deles se deve aceder a conhecimentos além dos textos escritos306.
Essas posições engendram uma interpretação da filosofia platônica bastante
particular. Ao colocar em primeiro plano a interpretação dos testemunhos indiretos, o
intérprete se vê diante de um conjunto de princípios teóricos não suficientemente
desenvolvidos na obra escrita, e cujo lugar precisa ser avaliado no pensamento do filósofo
– especialmente a chamada Doutrina dos Princípios que precisaria ser compreendida no
âmbito da metafísica platônica307. Essa interpretação, conforme comenta Trabattoni
que, talvez muitos séculos mais tarde, seria decifrada por espíritos semelhantes”. No entanto, este autor,
que também concede lugar central à Teoria dos Princípios (não escrita), precisa, entretanto, afirmar que os
diálogos não mostrariam todo ou o mais atual pensamento de Platão (p. 79).
305
Os comentadores vinculados à Escola de Tübingen-Milão, para dissipar certa confusão que emerge da
utilização dos binômios exotérico/esotérico ou doutrinas diretas (ou primárias)/indiretas (ou secundárias),
preferem doutrinas intra-acadêmicas (innerakademische), por oposição às doutrinas efetivamente
registradas nos diálogos. Conforme comenta Perine (2014, p. 16), também seria impreciso falar-se em
tradição doxográfica (pois parte da tradição indireta ou doxográfica replica elementos dos próprios
diálogos). Desse modo, na perspectiva em questão, entende-se por “doutrinas não-escritas” somente o
conteúdo intra-acadêmico que está ausente dos textos escritos, isto é, os elementos que perfazem a doutrina
platônica dos Princípios. É nesse sentido que usamos o termos também aqui neste capítulo.
306
Szlézak (2009 [1985], p. 10), nesse sentido, afirma que: “a assunção básica de Schleiermacher de que os
escritos platônicos são unidades autárquicas a ser interpretadas a partir de si mesmas é refutada pelos
próprios textos. Os diálogos não são pensados pelo autor como produtos autárquicos, e são os próprios
diálogos que confirmam isso claramente. Platão faz seus diálogos apontarem para além de si próprios
mediante três meios criativos: pela estrutura dramática de suas ações, pelas passagens de retenção de
conhecimento e pela imagem do dialético, que, como condutor do diálogo, sempre dispõe de mais e tem
prontas coisas mais valiosas (timiotera) do que ele, de fato, traz à conversação”.
307
Krämer (1990, p. 77), sobre a Teoria dos Princípios, afirma que: “Platonic philosophy transmitted by the
indirect tradition is presented as an etiology in the Presocratic sense, viz., as an inquiry into the ultimate
causes, principles, and elements. In this kind of research the law dominates by which reality must be
explained through principles that are the simplest and fewest in number as possible. The real pluralism of
the theory of Ideas as a result was theoretically reoriented and methodologically surpassed on a higher
level of reflection. The most important of Aristotelian reports on the unwritten doctrines of Plato,
contained in Metaphysics A6 clearly presents a twofold level of research of the foundations: as the Ideas
are causes of all the remaining things, so the principles (ἀρχαί) are causes (αἰτία) and elements (στοιχεῖα)
of the Ideas themselves. The Theory of the Principles, consequently, serves as the ultimate foundation of
what is beyond the Theory of Ideas and includes them and guarantees a higher degree of unity to Platonic
philosophy as a result”. Conforme comenta Vaz (1990, p. 108): “A análise cuidadosa do texto do Fédon e das
claras alusões que Platão nele dispersou permite afirmar que a navegação para o inteligível se faz em duas
jornadas: na primeira, se alcança o mundo das Ideias, na segunda, a Teoria dos Princípios (que Reale
propõe denominar Protologia). A primeira tem seu caminho traçado nos diálogos. A exposição da segunda
era reservada ao ensino oral de Platão e dela nos ficaram somente indicações fragmentárias na tradição
indireta”. Conforme sintetiza Trabattoni (2003, p. 25): “Tais doutrinas [não-escritas] apresentam um sistema
187
(2003, p. 60), ao fazer frente à perspectiva schleiermacheriana, que, a bem dizer, silenciara
por mais de um século as chamadas interpretações esotéricas, teria representado uma
reação talvez motivada por razões político-religiosas, interessadas na retomada de Platão
como um filósofo dualista e essencialmente metafísico308. Sobretudo, o que nos interessa
aqui comentar, dela derivaria uma leitura particular do autotestemunho de Platão
contido na passagem aludida do Fedro que culminaria com uma posição radicalmente
contrária a qualquer pretensão filosófica da escrita. Vejamos.
Para Krämer (1990), decorreria de um erro de compreensão o postulado
schleiermacheriano de que Platão teria forjado, a partir da crítica à escrita no Fedro, as
bases para uma teoria do diálogo como forma de salvaguardar uma escrita filosófica.
Teria escapado a Schleiermacher a diferença inequívoca e essencial entre o discurso
escrito como tal e o discurso oral como tal309. Não somente a crítica à escrita é explícita e
não deveria ser relativizada mediante uma teoria – de todo modo implícita – sobre uma
forma qualquer de escrita filosófica310, quanto também, sobretudo, a decisiva tese do
Fedro seria no sentido de uma irrevogável condenação histórica do poder comunicativo de
qualquer texto escrito, ou seja, para Platão, a escrita só poderia se confinar aos limites de
hipotético-dedutivo no qual, a partir de uma dualidade de princípios semelhante àquela dos pitagóricos,
se desenvolve, em primeiro lugar, um cosmo noético complexo (com a presença maciça de entes
matemáticos), e depois todo o resto da realidade até a matéria sensível”. Uma boa exposição da metafísica
platônica elaborada a partir da articulação entre a “Doutrina das Ideias” e a “Teoria dos Princípios” pode
ser vista em Krämer (1990, capítulo 6) e Reale (2004 [1991], capítulos 6 e 7). Szlezák (2009 [1985]), por sua vez,
demonstra, com base nos diálogos escritos, que tal teoria já se encontra neles indiretamente aludida.
Isnardi-Parente (1979) refuta a centralidade da Teoria dos Princípios, defendendo que ela seja apenas
indício de um repensamento ou aprofundamento, ainda em estado embrionário e pouco desenvolvido, que
pode ser detectado nas obras tardias (e que teria, por essa razão, algum reflexo na obra dos escolarcas).
308
Reale (2004 [1991], p. xxv), na introdução da sua obra, concorda com o caráter especialmente metafísico
da intepretação da Escola de Tübingen: “o Platon-Bild da Escola de Tübingen é, sem dúvida, uma das mais
metafísicas interpretações dentre as que foram apresentadas na época moderna”. Trabattoni (2003, p. 53 e
seq.) argumenta no sentido de que a proposta da Escola de Tübingen-Milão não tem a suposta neutralidade
de uma teoria científica mais embasada historicamente (como propõem-na), mas supõe, com efeito,
restaurar uma imagem de Platão mais válida do ponto de vista teórico, a de um Platão aliado do
espiritualismo cristão/católico. De fato, a consequência da leitura ínsita aos diálogos – cuja direção os
postulantes da Escola de Tübingen-Milão discordam – é um certo enfraquecimento das teses metafísicas
(estas, em grande parte, originárias das especulações presentes na tradição indireta, especialmente
neoplatônica), o que teria deslocado o eixo do pensamento platônico para uma perspectiva ético-
epistêmico-política, e culminado com um Platão excessivamente “mundano”. Assim, a integração da
doutrina das ideias a uma teoria dos princípios teria a virtude de ressituar a leitura de Platão a partir de
uma matriz absolutamente transcendente e metafísica e salvar a leitura religiosa historicamente construída
de Platão. É importante ainda anotar que essas diferenças parecem também refletir o contraste entre uma
leitura Protestante e Católica.
309
Também Szlezák (2009 [1985], p. 26) reforça essa tese, embora não apresente razões para sustentá-la: “A
oposição diz respeito a dois discursos, ao escrito e ao falado, não a dois discursos escritos, um mais animado
e um mais sem vida (por exemplo, o diálogo e o tratado). Além disso, o objeto da crítica é a “escrita” (γραφή,
275d4) como tal, não uma forma determinada de sua aplicação”.
310
Cf. Krämer (1990, p. 6): “Therefore a theory of the literary dialogue, which in any case would be only
implicit, cannot in any manner advance or overcome the explicit criticism in the Phaedrus or attempt to
avoid its clearly stated strictures, and thus it cannot in any way compensate for them”.
188
sua tradicional função de auxiliar servil da memória311.
Para além de qualquer construção escrita, aquele que faz jus ao título de filósofo
deveria, necessariamente, possuir algo de maior valor (278d8: τιμιώτερα). Para Krämer, o
conteúdo dessas coisas teria, por precaução do filósofo, sido reservado exclusivamente
aos ensinamentos orais, como cautela contra a má compreensão que a escrita poderia
engendrar para as pessoas inaptas à filosofia. Além disso, a passagem, se lida em conjunto
com as críticas ontológicas aos poetas, da República, a crítica à retórica do Fedro e com
tópicos presentes no excursus filosófico da Carta 7, levaria a pensar que o conteúdo de
maior valor (τιμιώτερα) que caracteriza o filósofo apontaria para um nível mais avançado
dos inteligíveis, a Teoria (não-escrita) dos Princípios, de fato aludida na Carta 7 (344d), o
que significa que Platão estaria nesse passo aludindo a uma hierarquia dos diferentes
níveis da realidade312.
Na mesma direção, em obra que pretende, a partir dos diálogos escritos,
demonstrar como é impossível uma correta compreensão do pensamento platônico sem
recorrer às indicações, neles presentes, de doutrinas externas e orais, Szlezák (2009 [1985],
p. 24) observa que a passagem crítica do Fedro estabelece uma oposição entre ensinamento
(275a7: διδακή) e escrita (275a3: γραφή): o verdadeiro ensinamento “só pode significar o
diálogo oral do receptor com um διδάσκων mais perito, que deve entrar no lugar do
livro”. O conhecimento, como apanágio de um filósofo que modera sua revelação por
escrito, avulta como o produto, o resultado de um ensinamento possível somente pela
oralidade, da qual a escrita toma parte muito limitada313. Comentando a sequência da
passagem, Szlezák (ibidem, p. 26) ainda reforça a tese de que somente o discurso falado,
de “quem sabe”, é capaz de operar a verdadeira inscrição na alma de “quem aprende”,
havendo, ainda, pessoas diante das quais seria mais conveniente “calar-se”. A escrita,
portanto, só poderia ser compreendida como uma “imagem” (εἴδωλον) de um protótipo
311
Cf. Krämer (1990, p. 6): “Plato, in this regard, can be pushed even up to the point of not giving the written
word the function of communication, for he gives it only function of arousing the memory of things
grasped in other ways (the mnemonic function of written word)”.
312
Cf. Krämer (1990, p. 8): “The criticism of written discourse in the Phaedrus is linked by means of numerous
topics to the ontological criticism of the poetic and figurative arts in the Republic X, thus as, also in the first
part, the Phaedrus is tied again to the fundamental concepts of the Republic, and develops them. At the
base of the distinction between dead written work and living dialectical discourse, between poetry,
rhetoric, and philosophy is, hence, in the final analysis, a hierarchy of the diverse levels of being. (…) The
unwritten “thing of greater value” to which Plato alludes in Phaedrus 278 is linked by a series of topics with
the central philosophical part of Seventh Letter 340-345d, which refers to the unwritten Platonic doctrine
of the principles (…)”.
313
Cf. Szlezák (2009 [1985], p. 25): “A história de Thoth quer mostrar que o despertar primário do verdadeiro
conhecimento está ligado ao ensinamento, enquanto a escrita se presta, quando muito, à reativação
secundária do conhecimento já existente”.
189
oral314.
Para Perine (2014, p. 75 et seq.), importante divulgador das teses da Escola de
Tübingen-Milão no Brasil, o comentário do Fedro reforça as bases de um divórcio entre a
oralidade (dialética e didascálica) e a escrita (retórica e psicagógica). Para o pesquisador, a
discussão travada no diálogo consistiu em demonstrar que a retórica limita-se à
condução das almas, à psykhagogía, ao passo que dialética, mais que condução de almas,
tem o objetivo de esclarecer, de ensinar (διδασκεῖν)315. É precisamente porque a dialética
é didascálica, isto é, pressupõe um conhecimento prévio, que ela poderia vir em socorro
dos discursos escritos; Por essa mesma razão, ela seria superior à retórica316.
Note-se aqui, como um parêntese, que as imagens do filósofo e de sua atividade
que sobressaem dessas interpretações vão na contramão daquela que apresentamos na
primeira parte desta tese. Precavido contra uma possível deturpação que seus
ensinamentos sofreriam se acessados erroneamente através das obras escritas, o dialético
da Escola de Tübingen-Milão soa bastante aristocrático, ao reservar seu saber a poucos e
competentes iniciados. Nesse sentido, Platão – consoante essa imagem do dialético –
enfatizaria a exclusividade do acesso à dialética para poucos, em decorrência da
inadequação da maioria (aqueles que, de fato, se poderiam beneficiar de sua obra escrita).
Nessa perspectiva, o filósofo confunde-se com a figura do sábio (σοφός) e a
negação desse estatuto – a ignorância socrática, por exemplo – só poderia decorrer de
sofisticada ironia de Platão317. “Caracterizado pelo conhecimento superior que possui”,
314
Cf. Szlezák (2009 [1985], p. 27): “Não se deve pensar aqui na reprodução realista de conversas reais, nem
numa exatidão protocolar na anotação, mas principalmente – em concordância com o desprezo mostrado
à escrita na seção anterior e na atual (275d5-e5) – na forte desvalorização que sempre acompanha essa
palavra em Platão: a cópia é, por princípio, de categoria inferior em relação ao “protótipo”, não possui a
mesma “realidade” e a mesma “força””.
315
Cf. Perine (2014, p. 93): “Dito de outro modo, a diferença fundamental entre o discurso de Lísias e o de
Sócrates no Fedro é a diferença entre psykhagogia e didaskalia. O discurso de Lísias seduz Fedro, mas não lhe
ensina nada, nem mesmo sobre aspectos formais, isto é, técnicos, da arte de fazer discursos. O discurso de
Sócrates não só fascina o jovem Fedro, mas também lhe ensina coisas de maior valor do que o simples
domínio de uma técnica”.
316
Cf. Perine (2014, p. 90): “Platão quis mostrar que a retórica, na medida em que é uma tekhne, subordina-
se à dialética, porque só esta é capaz de responder à tríplice exigência que se apresenta para a retórica na
medida em que ela é reconhecida como tekhne: a exigência de conhecer quantas e quais são as formas de
discurso e, finalmente, a exigência de pôr na justa relação os diferentes tipos de alma com os diversos tipos
de discursos (270d-271b e 271c-272b)”.
317
Essa ironia que se lê em numerosas passagens do corpus Platonicum estaria presente, por exemplo, no
Eutidemo, quando Sócrates atribui aos irmãos Dionisodoro e Eutidemo – que de fato eram ignorantes – o
poder de ocultar um saber que não possuíam, ao passo que ele próprio, Sócrates, sabendo de coisas mais
avançadas, ocultava-as sob a máscara de um pretenso “não saber”. Tal é a leitura de Szlezák (2009 [1985], p.
20), vale a pena ler a sua argumentação: “Quem é, então, ‘o que mantém segredo’ no Eutidemo? Para o
escárnio irônico de Sócrates, são os irmãos Dionisodoro e Eutidemo, cuja pobreza e cujo vazio espirituais
mostraram, passo a passo, que eles não têm nada que pudessem manter em segredo. E quem é o φιλόσοφος
desse diálogo? Para ele, que tem coisas significativas em segundo plano, para o ‘não sabedor’ Sócrates
insuspeito de reter alguma coisa, são os dois mestres da erística. A sarcástica comicidade do diálogo consiste
no fato de que o φιλόσοφος equipado de um saber que leva mais adiante, o filósofo que poderia, recorrendo
190
como afirma Krämer (1990, p. 8), o filósofo deteria, de antemão, o conhecimento do justo,
do belo e do bem318 e é por isso que poderia sempre socorrer seus escritos por meio da
demonstração oral, quando entram em exame e refutação (Szlezák, 2005 [1993], p. 83). Em
vários aspectos, essa descrição do filósofo e da dialética conflita com o que defendemos
antes, quando mostramos que o caráter dúbio, incerto e tentativo da pesquisa filosófica
coadunava-se com a imagem do filósofo não como um sábio, mas como apenas um amigo
da sabedoria, alguém inevitavelmente suscetível à dúvida e à incerteza inerentes à sua
humanidade. Colocado em relação de horizontalidade com os discípulos e não alçado à
condição magistral de um didáskon (ou um eídos), o dialético, tal como o delineamos nos
capítulos anteriores, parece contrastar bastante com a figura daquele que reteria
intencionalmente um conhecimento superior e o poderia seletivamente ensinar aos
ignorantes319.
Em síntese, a posição da Escola de Tübingen-Milão quanto à crítica à escrita que
se apresenta no mito de Theuth (274c5-275d2), posição em torno da qual se reúnem
Krämer (1990), Szlezák (2005 [1993], 2009 [1985]), Reale (2004 [1991]) e, em certa medida,
Perine (2014), poderia ser reformulada a partir dos seguintes princípios:
1. a escrita não aumenta nem a sabedoria, nem a memória dos homens, e essa
crítica se refere a toda e qualquer modalidade escrita, não somente a algum subtipo
dela320;
2. quando usada pelo filósofo, a escrita requer um socorro (βοήθεια) de seu autor,
via oralidade, por ser incapaz de se defender sozinha, e por isso, se trata de uma “imagem”
a coisas melhores no sentido do Fedro, ‘vir em socorro’ da tagarelice superficialmente absurda dessa
conversa não o faz; ao contrário, pede aos adversários que o façam (…). Esse dado modifica radicalmente a
situação do tema platônico do ‘ocultamento’: quem até aqui acreditou poder pôr sarcasticamente de lado a
concepção de uma limitação intencional da comunicação terá agora que reconhecer que não foi capaz de
ler a ironia de Sócrates de modo suficientemente irônico”.
318
Cf. Szlezák (2005 [1993], p. 82): “O philosophos deve essa maior proximidade com Deus a seu “saber” (...)
não é outro, senão o dialético, que detém o saber do justo, do belo e do bem (276c3) e faz uso da arte da
dialética, isto é, o pensador que reconhece a verdade das coisas no sentido da doutrina das Ideias”. Vejamos
quão avessa é essa ideia do filósofo daquela que, por exemplo, defende Hadot (2014 [1995], cap. 3) e com a
qual concordamos em ampla medida.
319
Szlezák (2009 [1985], p. 10) mostra que a “intencional retenção de ensinamentos superiores” por Platão
explica, entre outras coisas, a “contundente superioridade filosófica” dos condutores dos diálogos. O autor,
entretanto, sustenta a posição ao dizer que essa atitude filosófica (por contrária que seja ao sentimento e à
práxis moderna), decorre de uma sofisticada ironia de Platão, de resto não contrária ao debate entre cultura
tradicional, arcaica vs. cultura democrática em Atenas. Em que pese isso, tendemos a concordar com o
Professor Marcelo Marques (2012), em resenha à obra de Szlezák, na qual observa que a interpretação da
filosofia nesses termos “não leva em conta a abertura intrínseca de toda e qualquer modalidade de
comunicação humana, ou tampouco a fraqueza e a falibilidade dos discursos (orais e escritos),
perfeitamente constatáveis nos textos platônicos”.
320
Cf. Reale (2004 [1991], p. 56): “O escrito corre o risco de produzir não sábios, ou seja, autênticos portadores
de ciência, mas simples doxósofos, isto é, puros portadores de opiniões, privados de verdadeiros
conhecimentos”.
191
(εἴδωλον) do verdadeiro discurso, oral321;
3. ela representa uma espécie de jogo literário (opondo-se, por isso, à “seriedade
da dialética”), jogo que, malgrado a sofisticação artística de Platão, do ponto de vista
filosófico, é mais fraca e mais dependente, haja vista que o filósofo reservaria as coisas
mais nobres ou valiosas (τιμιώτερα) somente à interlocução oral322.
É compreensível que as posições críticas da Escola de Tübingen-Milão tenham
suscitado intensa polêmica entre os estudiosos, e que indícios dessa querela
transpareçam por vezes nas obras de seus defensores323. Szlezák (2005, p. 72), por
exemplo, chega a atribuir aos adversários da Escola de Tübingen o epíteto de “partidários
modernos de Thoth, o deus com fé na virtude dos livros”, e de qualificar suas
argumentações como tentativas de “reverter o juízo de Platão”. Ora, tanto não nos parece
possível nesse debate a presunção – de uma parte ou de outra – de possuir o “juízo”
correto de Platão (condição para que a posição contrária pudesse ser, tão
categoricamente, qualificada como uma reversão desse mesmo juízo), quanto, sobretudo,
por mais bem elaborada que seja o edifício teórico e hermenêutico da escola, restariam
sempre em aberto problemas não resolvidos (a não ser que se adote um extremo
dogmatismo, aliás, avesso ao “espírito científico” que os tubingueses pretendem atribuir
à sua perspectiva324).
Nesse sentido, as reservas que se poderiam manifestar contra a interpretação da
Escola de Tübingen-Milão podem ir desde ressalvas quanto à metodologia de
321
Cf. Szlezák (2009 [1985], p. 37): “As ‘cópias’ dramaticamente formadas, em que Platão nos apresenta a
estrutura-de-βοήθεια, são elas mesmas, todas, λόγοι γεγραμμένοι e necessitam, portanto, de ‘socorro’, que
não pode estar contido nelas próprias”
322
Szlezák (2009 [1985], p. 30): “Jogo e seriedade, escrita ‘mitologizante’ e conversação dialética são
claramente separados. Por mais que desejemos ver jogo e seriedade entrelaçados por causa dos diálogos
platônicos, a parábola não nos faz o favor de confirmar essa concepção”. Em outra obra (Szlezák, 2005
[1993], p. 79): “Platão desfrutou a composição dramática e psicagógica de conversas filosóficas como um
jogo espirituoso que lhe dava prazer. Os diálogos devem a sua existência, e em não pouco grau, ao instinto
artístico para o jogo que esse genial escritor possuía”.
323
Como exemplos dessa polêmica, citamos os debates entre Krämer e Vlastos, acerca da obra de Krämer
(e reproduzidos em Vlastos, 1981), bem como entre Reale, Wieland e Figal (reproduzidos nas últimas
edições da obra de Reale, 2004 [1991], apêndices III e IV). Citamos, particularmente, a obra-síntese de
Trabattoni (Oralidade e escrita em Platão, 2003), na qual as falhas teóricas e limites do modelo milano-
tubinguês estão claramente expostos. Duas réplicas à posição de Trabattoni podem ser encontradas em
Hösle (2008) e Perine (2014). Isso significa que, atualmente, mesmo após o recente desaparecimento de seus
brilhantes fundadores e pilares intelectuais (Gaiser, falecido em 1988; Reale, falecido em 2014 e Krämer,
falecido em 2015), a Escola ainda gera relevante repercussão, suscitando argumentações contrárias e
favoráveis na comunidade de platonistas.
324
Conforme vimos, Reale (2004 [1985]) lê toda a tradição de interpretações de Platão a partir da lente da
moderna epistemologia kuhniana. Para além das divergências de caráter “político” que poderiam estar
implicadas nas diferenças teóricas entre as diferentes perspectivas (ponto sustentado por Trabattoni, 2003),
para Reale, a questão reduz-se a uma diferença meramente científica (tese subscrita por Krämer e Szlezák).
Em suas perspectivas, o método mais acurado e a adesão a um novo paradigma, além de reordenar o status
de todas as questões postas – o que explicaria ipso facto a forte reação a ele contrária – teria permitido
também responder às aporias causadas pela perda de nitidez do antigo paradigma (schleiermacheriano).
192
recolhimento e interpretação dos dados textuais da tradição indireta325, até aquelas
ligadas à admissão de todas as consequências teóricas que decorrem, precisamente, da
interpretação de tais fontes326. No que tange especificamente à questão que nos interessa
– a validade ou invalidade filosófica da escrita –, as posições sintetizadas acima não nos
parecem inteiramente consistentes na medida em que, entre vários aspectos, decorrem
de uma interpretação que aceita, sem mais, a condenação à escrita apresentada pelo rei
Thamos (e, em certa medida, por Sócrates), como equivalente ao posicionamento do
próprio Platão327.
Além disso, a leitura que Krämer, Reale e Szlézak oferecem para a passagem em
questão não leva em conta a ambiguidade estrutural que decorre não somente da
emergência de dois discursos contrários sobre a escrita (a do rei e a do inventor, esta
tacitamente ignorada), mas também da dúbia posição socrática, que ora apresentava
argumentos favoráveis à escrita, ora parecia subscrever a crítica que a ela dirigia o rei
egípcio, conforme comentamos na introdução desta parte. Tal ambiguidade, a nosso ver,
é indício de que a questão da escrita, como aliás as demais questões tratadas no Fedro –
éros, manía, psykhagogía etc. – deva ser tratada dialeticamente, i.e. mediante um esforço
intelectual de divisão e reunião; perspectiva que passa absolutamente ao largo das
posições críticas da Escola de Tübingen-Milão. Tratar tal questão por esse prisma traria
também a vantagem, também não percebida por esses estudiosos, de propor uma leitura
mais global do diálogo, conforme veremos à frente.
Assim, tomando como um dado inequívoco somente a condenação da escrita (e
não sua exaltação), essa leitura ignora a rica polifonia que é inerente à passagem, como
325
Nesse sentido, a obra de Isnardi-Parente é exemplar. Em sua coletânea dos Testimonia platonica (1997,
1998), a pesquisadora sustenta que a recolha dos testemunhos indiretos não permite a reconstrução
orgânica de um pensamento sistemático, a menos que se realize uma harmonia que, de resto, seria sempre
conjectural. Nesse sentido, a síntese que os tubingueses realizam – e a consequente recuperação de um
sistema filosófico completo, a Teoria do Princípios – não apenas oblitera as tensões internas dos próprios
fragmentos, quanto, no máximo, deveria ser considerada hipotética e não factual, como dão a entender em
suas obras.
326
Não somente a Teoria dos Princípios pode ser vista em reserva quando postulada em sua totalidade e
em sua centralidade no âmbito da filosofia platônica, quanto também, como comenta Trabattoni (2003, p.
80), muitos de seus detalhes deveriam ser colocados sob suspeita, tal como a postulação do segundo
princípio que seria a causa metafísica do mal, “que não apenas não encontra claros paralelos nos diálogos,
mas parece mesmo opor-se à característica geral da metafísica platônica”.
327
Perine (2014, p. 12) afirma categoricamente considerar Sócrates a drammatis persona de Platão. Nesse
sentido, faria sentido corresponder, sem crítica, a opinião de Sócrates quanto à escrita (parte dela, nesse
contexto, manifestamente desfavorável a essa modalidade) à posição platônica. A nosso ver, a
correspondência do discurso de Sócrates (ou de qualquer outro condutor do diálogo) à de Platão, muito
embora sustentada tradicionalmente (por entre outros, Kraut, 2006, p. 26), merece ser repensada.
Compartilhamos da posição de Trabattoni (2010, p. 19), para o qual Platão é o grande personagem ausente
de sua obra, “um invisível manipulador que move suas marionetes em cena para atingir determinados
objetivos”. Nesse sentido, para compreender seu pensamento, não basta seguir as afirmações de Sócrates,
mas é mister analisar toda a estrutura dialógica.
193
também, ao silenciar a posição do inventor da escrita, deixa à sombra o que nos parece
um exercício dialético (de produção de compreensão mediante contraposições; de
distinções e aproximações). Ora, desconsiderar um dos lados desse embate no Fedro –
diálogo em que, conforme vimos, a dialética é exposta sistematicamente como o método
de operar divisões e reuniões, portanto, de reconhecer diferenças e identidades – não
parece ser, nos termos platônicos, uma análise propriamente dialética.
Assim, na contramão dessa perspectiva, poderíamos aqui elencar uma miríade de
interpretações alternativas para a passagem do Fedro. Diferentes entre si, elas se oferecem
como contraponto crítico à perspectiva de Tübingen-Milão e têm como consequência, ao
mesmo tempo, oferecer uma leitura menos peremptória e definitiva quanto à possível
condenação platônica da escrita, reconhecendo menor descontinuidade entre as
doutrinas escritas e não escritas. Vejamos.
Talvez a primeira réplica à proposta de Tübingen tenha sido a resenha crítica que
Gregory Vlastos, ainda em 1963, publicou sobre a obra de Krämer (Arete bei Platon und
Aristoteles, 1959), resenha que foi posteriormente republicada em coletânea de estudos
na década de 80 (Platonic studies, 1981). Embora Vlastos ali reconhecesse que o tratado de
Krämer tratava-se de uma das mais importantes contribuições aos estudos platônicos de
sua época, a sua recensão identificava possíveis vulnerabilidades nas teses defendidas
pelo estudioso. Seu argumento era desenvolvido no sentido de demonstrar a frágil crítica
de fontes (Quellenkritik) que embasava o estudo, do que pareciam decorrer conclusões
teóricas não inteiramente válidas. Tal seria o caso, por exemplo, para nos atermos a
apenas dois aspectos:
1. da validade de Sexto Empírico como fonte exclusiva para a reconstrução de
parte relevante da tese – de fato, Krämer tanto não rebatia a posição defendida desde
Wilpert (1941), de que a passagem de Sexto Empírico (M. 10.248-80) teria uma procedência
aristotélica, e não acadêmica, quanto não levava em conta o contexto sextiano e a
alegação ali explícita de que os conteúdos apresentados na passagem seriam
ensinamentos pitagóricos; em vez disso, confiava ingenuamente em uma transmissão
que teria seu ponto de partida na própria Academia328;
328
Cf. Vlastos (1981, p. 386): “Thus everything for which Sx. Is the sole authority for supposed Platonic
teaching is doubly suspect: first, because of the possibilities within the Academy itself of confusion with
non-Platonic academic doctrine or of deformation through inventive interpretation or careless reporting;
194
2. uma possível incoerência do que considerava aceitável ou não nas fontes
aristotélicas, embora as tivesse analisado mais criticamente (especialmente o De An.
404b18-27 e Metaph. A6). De fato, Krämer, concordando com Cherniss (1944), assumia que
as fontes aristotélicas não estavam acima de suspeita, e, portanto, admitia que certos
princípios nelas contidos não fossem provenientes de Platão, tais como os “números
intermediários”. Entretanto, o autor considerava válidas outras doutrinas a partir dos
mesmos contextos. O que valeria para que determinado postulado teórico fosse
possivelmente considerado uma “fabricação peripatética”, não valeria também para
outro, que decorria das mesmas passagens?329.
Acerca da passagem do Fedro em questão, Vlastos também rebatia a tese
sustentada por Krämer de que o filósofo, conforme vimos acima, opondo-se ao escritor
(seja de discursos, de poemas ou tratados), seria o único capaz de sair em socorro de seus
escritos através do discurso (276c9: λόγῳ βοηθεῖν), por possuir o saber das coisas mais
valiosas (τιμιώτερα), e o faria apenas oralmente. Em primeiro lugar, da premissa de que
o filósofo poderia ir em socorro de composições escritas (isto é, dirimir possíveis
interpretações equivocadas e refutar objeções sofísticas contra elas colocadas), parecia
decorrer o fato de que tais composições escritas deveriam ser dignas de possuir a verdade
– do contrário, não faria sentido o filósofo, que possuiria o saber, vir em sua defesa (p.
395). Decorreria disso, talvez, que o discurso escrito pudesse ser até inferior (φαῦλα), mas
não desprovido de verdade, como sugere a argumentação de Krämer (para isso
propondo, inusitadamente, compreender φαῦλα como o oposto de ἀληθές, o que parecia
filologicamente insustentável e pouco convincente na análise de Krämer)330.
Em segundo lugar, a tese de Krämer implicava que o filósofo reservaria à
oralidade assuntos de maior elevação – afins a uma discussão metafísica – ao passo que a
escrita seria reservada, como se depreenderia dos diálogos, a questões mais chãs, ligadas
à ética e à política. Vlastos observou, entretanto, que as passagens que sustentavam a
second, because of the further possibilities of infiltration of alien matter of distortion of authentic matter
in passing through the hands of Sextus’ immediate, non-academic source. When we take all this into
account, what confidence can we repose in Sx?”.
329
Cf. Vlastos (ib., p. 389): “What would we then make of Aristotle’s emphatic ascription of it [the
mathematical intermediates] to Plato, made upon occasion (e.g. Met. A6) in the same context in which
credits Plato with other doctrines whose authenticity, according to K., is beyond suspicion?”.
330
Cf. Krämer (1963, p. 365): “Die Begriffe ἀληθὲς und φαῦλα sind hier sinngemäß aufeinander bezogen wie
nachher das Gegensatzpaar ἐκεῖνα-τάδε. Alle vier Glieder betreffen den inhaltlichen Gegensatz zwischen
Schrift und Ungeschriebenem: "das Wahre" liegt ebenso wenig in der Methode des dialektischen
Unterrichts wie die Mängel des Geschriebenen in seinem literarischen Charakter - dann bedürfte es keiner
besonderen ἀπόδειξις - , und der Philosoph trägt seinen Namen...weil er durch diejenigen Gegenstände,
"mit denen es ihm eigentlich Ernst ist" und die er deshalb ungeschrieben läßt (ἐκεῖνα), all das, worin er
allenfalls mit anderen Schriftstellen thematisch übereinstimmt (τάδε: 276e2f), wesenhaft übertrifft”.
195
interpretação de Krämer não confirmavam essa leitura. Bem ao contrário: o que se podia
ler na passagem entre 278c5-7 revelaria que o discurso oral prestaria socorro
precisamente no âmbito do discurso escrito (περὶ ὧν ἔγραψε), não em outra matéria.
Nesse sentido, Vlastos conclui que seria possível conceber uma doutrina não
escrita de Platão sem creditá-la a um saber secreto ou superior aos diálogos escritos. Para
Vlastos, seria possível que, no âmbito da Academia, Platão tivesse discutido efetivamente
acerca de um conjunto de teses que, por razão qualquer, não teriam sido registrados por
escrito (por serem talvez ainda não aprofundadas, ou não suficientemente desenvolvidas,
ou por não merecerem ser escritas etc.). Isso poderia, sem a elaboração de Krämer,
explicar as diferenças entre a doutrina efetivamente encontrada nos diálogos e
elementos, em Aristóteles, que apontavam para princípios a eles alheios (Vlastos, 1981, p.
397).
Luc Brisson, em artigo publicado em 1993 e posteriormente coligido em livro (de
2000, edição brasileira de 2003), na via traçada pelas argumentações de Vlastos, propôs-
se a analisar os pressupostos e os encadeamentos teóricos da interpretação proposta
pelos estudiosos da Escola de Tübingen-Milão. O corolário de sua discussão são os seis
apêndices em que Brisson oferece as linhas gerais para uma apreciação das passagens do
Fedro (278b-e); da República (6.509a9-c10); da Carta 7 (341a-e, 344d-345a); do De anima (I
2.404b16-30) e da Física (6.2.209a31-210a13), de Aristóteles; e do testemunho de Aristóxeno
(Harm. 2.39-40 Rios), sem recorrer em qualquer medida à hipótese esoterista (Brisson,
2003, p. 55).
A discussão é bastante erudita e detalhada: em inventário que Brisson (2003)
supõe provisório e não exaustivo, o comentador destaca um conjunto de premissas que
dizem respeito à existência de uma doutrina esotérica ligada a Platão, a maneiras de
reconstituir tais doutrinas e ao próprio conteúdo dessas doutrinas; em seguida analisa as
consequências dessas premissas, apresentando seu contraponto crítico. Observemos
mais atentamente a leitura que Brisson oferece para a passagem do Fedro, que culmina
em posição diversa quanto ao lugar e à potencialidade filosófica da escrita, sem nos
196
determos especificamente em tais premissas331 e consequências332,
Para Brisson (2003, p. 68), a passagem entre 274b e 279b do Fedro não instituiria
uma condenação categórica da escrita, mas configuraria apenas o reconhecimento de sua
inferioridade em relação à transmissão do saber através do diálogo oral: enquanto a
escrita seria uma instância elaborada inteiramente no sensível, o diálogo vivo
representaria uma mediação entre o sensível e o inteligível. Assim, quando em contraste
com a gravidade da contemplação do inteligível, que caracteriza o objetivo da atividade
filosófica, a escrita poderia ser considerada um mero “jogo”333.
Logo, a posição não é tanto de recusa à escrita enquanto uma prática – à qual, de
fato, Platão não teria como deixar de aderir, do que testemunha, aliás, a vasta bibliografia
– mas do reconhecimento de suas limitações quando em contraste com a dimensão
inteligível do saber, ele próprio, em si mesmo, talvez inatingível ou excepcional para o
ser humano334. Por essa razão, antes de representar uma oposição radical entre discurso
falado e escrito, o problema que emerge do mito de Theuth e de seus desdobramentos,
consistiria em fazer a distinção clara entre informação (esta, sim, que se beneficiaria da
331
Tais premissas são: 1) Platão ensinava e escrevia na Academia; 2) o seu ensinamento não coincide com os
diálogos; 3) a diferença entre os diálogos e o ensinamento coincide com a diferença escrita/oralidade; 4a)
essa diferença consiste no desejo de preservar para um grupo interno um conhecimento mais avançado, e
de não divulgá-lo pela escrita; 4b) o esoterismo não tem a ver com a manutenção de uma doutrina “secreta”,
mas intra-acadêmica, para assegurar que ela seja transmitida na plenitude de seu sentido; 5) uma doutrina
dos princípios é o coração da filosofia de Platão (e condição sine qua non para qualquer filosofia); por não
estar exposta nos diálogos, Platão teria reservado sua exposição a um contexto de comunicação controlada
e oral; 6) a diferença entre o testemunho de Aristóteles e o que se lê efetivamente nos diálogos é
consequência da diferença entre um ensino esotérico, interno, ligado aos discípulos e os textos escritos,
abertos para qualquer público; 7) as dúvidas de Platão quanto à escrita não é fruto de uma reflexão tardia,
mas se reconhece desde os primeiros diálogos; 8) é possível reconstituir a Doutrina dos Princípios por
intermédio dos testemunhos; 9) a Doutrina dos Princípios compreende o momento de redução
(estabelecimento de princípios) e de dedução (desses princípios do real); 10) a participação dos sensíveis
nas Formas é análogo à participação das Formas entre elas.
332
Para Brisson (2003), as principais consequências teóricas dos pressupostos acima delineados são: 1) a
filosofia de Platão torna-se equivalente à de um pré-socrático (tanto teoricamente quanto
metodologicamente); 2) Platão se torna um neoplatônico avant la lettre (cuja filosofia repousa sob a
reconstituição do real a partir dos princípios do Uno e da Díade indefinida); 3) Desaparecimento da
inserção social da prática socrática e esvaziamento do sentido dramático dos diálogos (especialmente os de
juventude); 4) recusa da centralidade da dimensão política da obra de Platão (que implica transformação
do comportamento individual e social).
333
Cf. Brisson (ib., p. 68): “Platão não pronuncia uma condenação inapelável da escrita: ele se contenta em
lembrar a inferioridade de seu estatuto, que é o de uma coisa sensível, em relação ao da pesquisa e da
transmissão oral do saber pela alma, que é uma realidade intermediária entre o sensível e o inteligível. (...)
Ele aceita qualificar ‘filósofo’ quem – aí incluído ele mesmo, evidentemente – reconhece que, compara ao
que ele leva a sério – a contemplação do inteligível – a escrita não é nada mais que um jogo”.
334
Nesse sentido, a perspectiva de Brisson questiona presunção de sistematicidade e resolutividade
inerente à leitura de Platão pelos teóricos de Tübingen e Milão. Em seu lugar, o estudioso francês destaca
a passagem 278d para enfatizar o caráter aberto, não necessariamente resolutivo e definitivo do filosofar
platônico: “se nos referirmos à oposição desenvolvida no fim do Fedro (278d) entre o deus, que é o único a
ter acesso ao saber, e o ser humano, que deve contentar-se em ser filósofo, isto é, em tender em direção a
esse saber, devemos admitir que, se Platão acreditava na existência de verdades definitivas, ele estava
todavia convencido de que essas verdades não estavam ao alcance do ser humano e que atingi-las seria
uma exceção” (Brisson, 2003, p.91).
197
escrita, enquanto rememoração, arquivo etc.) e conhecimento (o saber que se defende a si
mesmo, sem necessidade da tutela de terceiros), diferença que, segundo Brisson, hoje não
nos interessaria tanto mais, por nos parecer demasiado óbvia335.
Na mesma direção, a leitura de G. R. F. Ferrari (1990, p. 204 et seq.) propõe que a
mensagem de Platão quanto à escrita não deveria ser inequivocamente tomada como
uma acusação, mas ser reconhecida como um alerta para um perigo potencial: a escrita
não representaria um material “radioativo”, mas apenas “volátil”, devendo-se manusear
com cuidado336. Para o estudioso, mais importante que o estatuto em si da escrita, seria a
atitude do filósofo diante dela – tanto a partir da posição de quem efetivamente escreve,
digamos, Platão, quanto da posição de quem a interpreta, digamos, nós, leitores dos
diálogos. A consequência disso é que nenhuma prática de escrita – por mais elaborada e
sofisticada que o fosse – seria necessária (e menos ainda suficiente) para produzir
filosofia, do mesmo modo que a escolha do suporte linguístico – oralidade ou escrita –
seria de importância secundária337.
Nesse argumento, portanto, parece claramente nuançada aquela oposição radical
entre escrita e oralidade, tal qual proposta pelos estudiosos da Escola de Tübingen-Milão.
A verdadeira oposição seria, entretanto, entre um modo de expressão caracterizado por
um discurso vivo (nesse sentido, talvez, aí se pudessem enquadrar também os diálogos
platônicos) e um modo de expressão estéril, que ofereceria apenas a aparência de uma
inteligência viva, limitando-se a repetir uma mensagem e não tendo, ademais, autonomia
quanto a sua audiência (no qual se poderia inclusive enquadrar o primeiro discurso de
Fedro, ainda que apresentado oralmente).
O alerta de Platão consignado na passagem do Fedro deveria, então, ser
compreendido não como um veto à escrita, mas como uma recomendação para que o
filósofo se aproximasse dela consciente de seus limites, servindo-se dela como um jogo,
uma paidiá, essencialmente diferente do formato em que se exprimem assuntos
verdadeiramente dignos de seriedade (278a5: ἄξιον σπουδῆς). A interpretação de Ferrari
(1990), embora se distinga daquela dos estudiosos de Tübingen na medida em que não
335
Com efeito, como lembra Brisson (2003, p. 94), ninguém negaria à escrita seu relevante papel na
transmissão e conservação de informação, contudo ela não assegura nada quanto ao efetivo conhecimento.
Quem tivesse uma estante repleta de livros de física não necessariamente saberia física. Dito de outro
modo, possuir informações não significa conhecer. Esse também é o ponto que defende Trabattoni (2003,
p. 139): ler não é o mesmo que assimilar e compreender.
336
Cf. Ferrari (1990, p. 204): “What Socrates says about writing is less clearly an indictment than a warning
of potential danger; he stamps its packing-case not ‘radioactive’ but ‘volatile’ – to be handled with care”.
337
Cf. Ferrari (1990, p. 214): “What matters most is that we do philosophy rather than merely go for its effects,
follow Socrates rather than Phaedrus, and that it is of secondary importance (which it is not at all to say: of
no importance) which tool of discourse – speech or writing – we employ)”.
198
faz remissão a um saber esotérico338, não subscrevendo, portanto, uma alegada objeção
que Platão teria expresso quanto à escrita; mantém todavia a dicotomia estabelecida
entre, por um lado, escrita e jogo e, por outro, oralidade e assunto sério. Nesse sentido,
embora se furte à uma condenação absoluta da escrita, coloca também em dúvida a
possibilidade de ela vir a se tornar verdadeiramente filosófica339. Em que pese isso, o
filósofo, para merecer o título, poderia se aproximar da escrita sabendo dos perigos que
ela encerra, muito embora de tais perigos também não estaria imune qualquer linguagem
oral, do mesmo modo que nem toda escrita seria necessariamente perigosa340.
Franco Trabattoni (1993, 2003), associando os temas de éros e philosophía, para cuja
determinação importaria a compreensão do lugar da escrita, defende que a crítica
manifesta no diálogo não pode ser interpretada como o indício da existência de uma
ciência e um saber conclusivos, ensináveis apenas oralmente e, portanto, omitidos no
Fedro (ou em outras obras escritas). Com efeito, F. Trabattoni sustenta que a descrição do
filósofo que se depreende em 278d não condiz com a de um sábio (um sophós), de modo
que o tema da philosophía e de éros, que predominam em partes distintas do diálogo,
convergem, no final, para sublinhar o caráter desiderativo, tensivo e incompleto da
filosofia. O que estaria em jogo, portanto, no mito de Theuth, seria a expressão dessa
tensão entre uma escrita filosoficamente eficaz – que é capaz de manter vivo o caráter
erótico, aberto e necessariamente incompleto da pesquisa – e uma escrita não filosófica
– que oferece apenas uma aparência de conclusividade àquilo que deveria permanecer
como provisório341.
338
Ferrari não apresenta em seu comentário qualquer alusão à uma suposta Doutrina dos Princípios
externa aos diálogos. De fato, o projeto da autora consistia, de todo modo, em apresentar uma leitura
restrita ao Fedro, sem considerar possíveis relações nem mesmo com outros diálogos escritos: “I shall not –
or not often – be concerned in this book to map the position of the Phaedrus against the landmarks
provided by other dialogues, nor to consider its place in Plato’s philosophical development. I am out to
achieve something different: to live for a while within the environment of a single dialogue (…)” (Ferrari,
1990, p. ix).
339
De todo modo, se escrita e oralidade são instrumentos de expressão, não se poderia ignorar o fato de que
há instrumentos melhores e piores e, nessa escala, a escrita estaria em pior posição, conforme comenta
Ferrari (1990, p. 220): “Some tools are better adapted for certain goals or results than others; and writing,
with its capacity to capture words in a permanent form external to and potentially independent of their
user, is especially prone to encourage that fetishing of words which Phaedrus exemplifies and which is the
antithesis of genuine communicative art”.
340
Com efeito, conforme Ferrari (1990, p. 209-10) argumenta: “The dangers which Socrates attributes to
writing are not mechanically confined to the context of written word. Yet it also shows that writing does at
least promote these dangers; for what encourages Phaedrus to attempt to re-create in extemporised speech
the magic of a lost moment is the illusion that the written text has frozen this moment for those whose
enthusiasm carries enough heat to thaw it out. Conversely, the very text which as it were infects Phaedrus’
orality with its writtenness also helps liberate the Platonic text in which it figures from some at least of the
disadvantages of the written word”.
341
Cf. Trabattoni (2003, p. 110): “a crítica à escrita não é o meio para promover um saber oral último,
contraposto àquele que pode ser escrito, mas sim garantir à filosofia uma indefinida capacidade persuasiva,
posta em dúvida pela escrita, que fixa a doutrina e confere uma aparência de conclusividade àquilo que, o
199
Dito de outro modo, isso significa dizer, em primeiro lugar, que seria possível
conceber uma forma de linguagem (seja ela oral ou escrita), que poderia engendrar
compreensão (isto é, um saber interno, ligado à alma, ainda que necessariamente
incompleto), ao lado de outra que se limitaria à expressão de caracteres exteriores (sendo,
por isso, restrita à técnica da escrita, ou da oratória, respondendo “sempre o mesmo”, se
interrogada). A verdadeira oposição, portanto, como sustenta Trabattoni (2003, p. 139),
não seria escrita vs. oralidade, mas discurso interno vs. externo342. Em suma, sendo o
conhecimento e a capacidade de aprender atributos da alma, uma ressalva que se poderia
fazer contra a escrita seria a de ela desviar a atenção desse fato, fazendo crer que poderia,
ela própria, ser equivalente ao conhecimento.
Em segundo lugar, a diversa valoração da escrita e da oralidade não responderia
à demanda de isolar um conjunto de princípios filosóficos exprimíveis somente pelo
discurso oral, de outra doutrina mais superficial que poderia estar contida nos discursos
escritos – leitura que a Trabattoni (2003, p. 144) parece “bizarra”343. A verdeira questão,
como sustenta o comentador, residiria na exigência de persuasão do discurso filosófico,
não da restrição a sua difusão mais ampla: o texto oral, sendo capaz de se adaptar mais
flexivelmente às diferentes condições de recepção (às diferenças entre as almas dos
ouvintes), pareceria, à primeira vista, mais suscetível a se tornar veículo da verdade344.
Como o conhecimento, a bem da verdade, é originário de e tem lugar na psykhé, não nas
palavras, a contraposição instituída no Fedro, no limite, seria a de um saber não
discursivo, de um lado, e de um saber discursivo, de outro. O problema é que os filósofos,
uma vez privados da visão das Formas, precisam desse instrumento imperfeito, a
linguagem, para mover-se em direção de uma forma de conhecimento que, entretanto,
contrário, deve necessariamente permanecer provisório. O que significa, dito noutras palavras, manter a
eficácia da filosofia, consciente, contudo, de que filosofia é como éros, que nunca se torna sophía e nunca
pode traduzir-se numa ciência plena e definitiva”.
342
Cf. Trabattoni (ib., p. 139): “Pode-se formular a hipótese de que a importância de Thamos está em
considerar a escrita como um verdadeiro sucedâneo do verdadeiro saber, como um meio que dá a quem o
usa a ilusão de possuir conhecimentos, mas, na realidade, fornece somente noções lábeis e superficiais,
visto que a certeza da posse perpétua, falsamente deduzida do fato de ter escrito sempre à disposição, induz
a cancelá-las logo da memória. O verdadeiro saber, ao contrário, é fundado no consentimento espontâneo
e na compreensão, enraizados na alma, e é muito mais difícil de esquecer”.
343
Cf. Trabattoni (ib., p. 144): “não se fala de uma contraposição entre discursos orais e discursos escritos,
ou, pior, entre doutrinas que possam estar contidas nos discursos orais e doutrinas que possam estar
contidas nos discursos escritos. Tal distinção, de resto, é em, si, no mínimo bizarra, porque um discurso
oral pode reproduzir fielmente um escrito e vice-versa, sem que a diferença de meio altere de algum modo
a natureza do discurso ou de seu conteúdo”.
344
Cf. Trabattoni (ib., p. 145): “Uma comunicação oral é mais verdadeira, em geral, do que uma escrita, não
porque possa dizer coisas mais verdadeiras, mas porque pode mostrar, promover e reproduzir a verdade nas
almas (isto é, no único lugar onde a verdade se encontra) muito melhor do que tudo que possa fazer o
escrito”.
200
está bem além dela345. É por essa mesma razão que Trabattoni também compreende a
expressão timiótera (278c) em sentido bem diverso daquele defendido pelos estudiosos da
Escola de Tübingen-Milão: as “coisas de maior valor” não corresponderiam a corpo
doutrinário metafísico e externo ao texto escrito, mas fazem referência ao verdadeiro
saber, aquele contido na psykhé, por oposição a qualquer outro que se reveste da
roupagem necessariamente imperfeita e provisória da linguagem – oral ou escrita346.
Pelo que, em linhas gerais, apresentamos até aqui, poderíamos afirmar que as
perspectivas críticas que emergem das leituras de Vlastos (1981), Ferrari (1990), Brisson
(2003) e Trabattoni (2003), embora diferentes entre si no detalhe, têm como característica
comum reler a passagem do Fedro em termos diversos daqueles propostos pelos
estudiosos de Tübingen e Milão. Em síntese, elas enfraquecem a oposição sobre a qual se
sustentava o edifício teórico dos tubingueses, aquela entre a escrita – essencialmente
protréptica e voltada a uma popularização de uma etapa preliminar da doutrina
platônica, inelutavelmente insuficiente e dependente de um auxílio externo – e um saber
oral mais avançado apresentado seletivamente a iniciados em condição de compreendê-
lo.
Assim, elas concordam, no geral, quanto ao fato de que parecia preferível a Platão
o discurso oral ao escrito – mas não por razões ligadas à difusão mais ou menos restrita
do saber, ou à qualidade do ensinamento veiculada em uma ou em outra modalidade de
expressão, razão, em todo caso, explicada por uma contingência histórica – mas por
razões que dizem respeito, antes, ao próprio estatuto do conhecimento, que decorre de
um processo radicado em um nível de inteligibilidade superior à escrita, ela mesma, um
sensível (cf. Brisson), ou pelo fato de o conhecimento estar além de qualquer forma de
expressão discursiva (cf. Trabattoni). A escrita seria, portanto, apenas “potencialmente
perigosa” (cf. Ferrari) e não essencialmente inadequada a um conhecimento filosófico
“de maior valor”.
Com o intuito de oferecermos uma descrição mais completa do campo, não
poderíamos deixar de fazer menção, ainda que brevemente, a duas outras leituras um
pouco destoantes dessas que apresentamos até aqui, porque não somente consignam à
345
Cf. Trabattoni (ib., p. 154): “Este saber originário é a intuição intelectual das ideias ou dos princípios de
que a alma pôde desfrutar antes de encarnar, mas que, depois do nascimento, está irremediavelmente
perdida. O instrumento mais potente que permaneceu nas mãos do homem é o lógos, isto é, palavra e
discurso (a “segunda navegação” do Fédon). Mas é um instrumento vicário, imperfeito e débil, em
comparação com o saber originário de que depende”.
346
Cf. Trabattoni (ib., p. 158): “O saber mais precioso de que o homem dispõe é aquele que permanece na
alma, muito ou pouco que seja, da visão das ideias, advinda antes de nascer; nenhum lógos, nenhuma
tradução em palavras pode resultar senão imperfeita e de menor valor em relação a ela”.
201
condenação da escrita um caráter parcial e não definitivo, mas também defendem que a
posição platônica seria francamente favorável à escrita como veículo filosófico (no caso
da tese sustentada por R. Burger, 1980), ou preconizam que Platão, embora almejando
condenar a escrita, teria sido ludibriado pela linguagem, e, fracassado no seu intento,
teria enfim colaborado para colocar a linguagem escrita como o centro de sua filosofia
(posição de J. Derrida, 1972).
Burger, na obra de 1980, Plato’s Phaedrus: a defense of a philosophic art of writing,
propunha uma leitura rigorosamente irônica da passagem do Fedro, segundo a qual
Platão estaria sublinhando exatamente o contrário da posição socrática: o diálogo e a
escrita seriam não objetos de menor valor filosófico, mas o corolário da dialética, o ponto
mais alto da expressão filosófica. O Fedro, nesse particular, consagraria a defesa de uma
“arte filosófica da escrita”. Theuth havia oferecido a escrita enquanto um poder divino
capaz de mitigar as restrições da memória humana e a limitação do conhecimento. Por
seu intermédio, os homens não mais precisariam reiniciar a pesquisa sempre do mesmo
ponto de partida, e a tão veementemente adversa posição do rei configuraria não menos
que a confirmação desse poderoso efeito da escrita347.
Para fundamentar sua perspectiva, Burger (1980, p. 2) argumenta no sentido de
que do mesmo modo que a distância entre o que poderíamos considerar como método
filosófico de Sócrates e o pensamento de Platão emerge sutilmente na estratégia
platônica de deliberadamente se tornar invisível nas imitações dramáticas dos diálogos,
também no diálogo entre Theuth e Thamos, o contraste entre Sócrates – o filósofo que,
de fato, nada escreveu – e Platão – quem levou o gênero diálogo a complexidade antes
não conhecida – seria exatamente representado na contraposição entre a aparente
condenação da escrita por Sócrates e a sutil defesa de seu potencial filosófico por Platão.
Assim, do mesmo modo como Sócrates é o personagem que está no primeiro plano da
maior parte das obras de Platão, incluindo o Fedro, e Platão, por outro lado, só pode ser
vislumbrado, como “personagem invisível”; assim deveríamos também ler a questão da
escrita: embora a sua condenação, ligada a Sócrates, apareça em primeiro plano no Fedro,
a posição de Platão seria a sua defesa enquanto possibilidade de expressão filosófica, que
se depreende sutilmente no subtexto.
A ironia contida na passagem não somente se detecta no fato de Platão registrar
347
Cf. Burger (1980, p. 1): “The art of writing presents itself as the necessary condition for continuity or
development in the quest for wisdom: the illusion of beginning the journey of thought as if it had never
been pursued before can be useful only if recognized as an illusion. The transmission of knowledge
through the art of writing, which makes it unecessary for every thinker to begin with a tabula rasa promises
to free human memory (…)”.
202
por escrito a crítica a essa própria modalidade de registro, como também pelo fato de o
filósofo, como uma espécie de memorial para o seu mestre, ter produzido extensa obra
escrita, que configura precisamente a imitação do estilo oral de Sócrates348. Na esteira da
perspectiva de Schleiermacher, Burger defende, assim, o primado do diálogo como obra
de arte: o diálogo é a materialização da ironia de Platão, haja vista que ilustra
precisamente a superação das limitações aventadas pelos personagens, na medida em
que suas palavras escritas, aparentemente “mortas”, são ressuscitadas mediante o
pensamento daqueles que nelas se engajam, “o cadáver escrito do diálogo torna-se, então,
um ser vivo, sabendo quando falar e quando permanecer em silêncio, capaz de se
defender contra qualquer acusação injusta” (idem, ib., p. 3)349.
Derrida, por sua vez, no seu comentário ao Fedro de 1972, La pharmacie de Platon,
defende a tese segundo a qual Platão teria ensejado uma tentativa de sublinhar a
superioridade da oralidade sobre a escrita, intento no qual, entretanto, teria falhado,
tornando-a, paradoxalmente, o centro da sua filosofia. Em primeiro lugar, isso se daria
porque a caracterização da escrita como um phármakon introduziria, desde o princípio,
uma ambiguidade intrínseca: o encantamento que ela produz – ao mesmo tempo um
“remédio” e um “veneno” – deixaria em aberto a possibilidade de engendrar
consequências tanto benéficas quanto maléficas350. Além disso, para Derrida, o
enquadramento da crítica à escrita no âmbito de uma narrativa mítica, colaboraria
também para enfraquecê-la, basta ver o comentário que o próprio Sócrates faz antes de
narrá-lo: algo que se ouviu dos antigos, mas cuja verdade somente eles conhecem (274c1-
2). Desse modo, a crítica contida no mito poderia também se aplicar ao próprio mito,
ainda que este fosse uma narrativa oral: Sócrates, ao afirmar que os antigos sabiam a
verdade, estaria, portanto, duplicando uma história sem conhecê-la, crítica que faz pesar
contra a escrita351. Revela-se, portanto, uma semelhança entre mito e escrita, o que gera
348
Cf. Burger (1980, p. 3): “The Platonic dialogues commemorate the death of Socrates by replacing the
living and breathing word of the speaker with a written imitation. But the condemnation of this monument
of living thought conceals the ambiguity of its twofold nature, for the imitation which deceives when taken
as an original may fulfill an indispensable function when recognized as an imitation: only the written word
which points to its illusory appearance as a replacemente of memory is able to uncover its own potential
as reminder to the knower. The very condemnation of the written word betrays that recognition of the
playfulness of writing which is identified in the dialogue as a sign of the true lover of wisdom”.
349
Cf. “The written corpse of the dialogue becomes a living being, knowing when to speak and when to
remain silent, able to defend itself against all unjust abuse”.
350
Cf. Derrida (2004 [1972], p. 264): “A peine plus loin, Socrate compare à une drogue (phármakon) les textes
écrits que Phèdre a apportés avec lui. Ce phármakon, cette « médecine », ce philtre, à la fois remède et poison,
s’introduit déjà dans le corps du discours avec toute son ambivalence. Ce charme, cette vertu de fascination,
cette puissance d’envoûtement peuvent être – tour à tour ou simultanément – bénéfiques et maléfiques”.
351
Cf. Derrida (ib., p. 270): “On remarquera surtout que ce dont l’écriture sera plus accusée – de répéter sans
savoir – definit ici la démarche qui conduit à l’enoncé et à la détermination de son statut. On commence
par répeter sans savoir – par un mythe – la définition de l’écriture : répeter sans savoir”.
203
um paradoxo incontornável do ponto de vista da filosofia platônica, tendo em vista que
Platão precisa recorrer tanto ao mito, quanto à escrita, para determinar o lógos e a
dialética. Consequentemente, se o modo de discurso escolhido por Sócrates para fazer a
distinção entre escrita e oralidade, ele próprio, padece das limitações nele expressas,
então nem Sócrates, nem os leitores de Platão poderiam ter certeza do seu valor de
verdade352.
Nesse sentido, uma eventual desaprovação da escrita aflora de uma formulação
irreversivelmente ambígua. Em que pese isso, seria precisamente da ambivalência
inerente ao lógos, que o phármakon hauriria seu potencial filosófico. Como sustenta
Derrida, é na dubiedade da escrita que se possibilita o jogo de oposições e polarizações
que é a condição para o exercício da diferença: bem/mal, alma/corpo, invisível/visível353.
Assim, embora em franca contradição com a acusação que lhe é impingida, é a escrita
que, no final, possibilita o movimento – ou o jogo – no qual, contrastando os opostos,
seria possível determinar a diferença, ou la différance, condição fundamental da
dialética354. Por esse motivo, nem mesmo Platão, segundo Derrida, teria escapado do
encantamento produzido por esse phármakon. Para dele tirarmos o melhor benefício e
também para nos precavermos quanto aos riscos que representa, cumpre-nos conhecer
a sua dinâmica, os seus efeitos e o seu potencial, o que pretendemos fazer no próximo
capítulo, avaliando as relações entre escrita, memória e conhecimento no Fedro.
352
Cf. Derrida (ib., p. 270): “La vérité de l’écriture, c’est-à-dire, nous allons le voir, la non-vérité, nous ne
pouvons la découvrir en nous-mêmes par nous mêmes. Et elle n’est pas l’objet d’une science, seulement
d’une histoire récitée, d’une fable répétée”.
353
Cf. Derrida (ib., p. 335): “C’est qu’il y a surtout le jeu dans un tel mouvement et ce chiasme est autorisé,
voir prescrit, par l’ambivalence du pharmakon. Non seulement par la polarité bien/mal, mais par la double
participation aux régions distinctes de l’âme e du corps, de l’invisible et du visible”.
354
Cf. Derrida (ib., p. 335): “Si le pharmakon est « ambivalent », c’est donc bien pour constituer le milieu dans
lequel s’opposent les opposés, le mouvement et le jeu qui les rapportent l’un à l’autre, les renverse et les
fait passer l’un dans l’autre (…). C’est à partir de ce jeu ou de ce mouvement que les opposés ou les différents
sont arrêtés par Platon. Le pharmakon est le mouvement, le lieu et le jeu (la production de) la différence. Il
est la différance de la différence)”.
204
IV.
REFRAÇÕES DA LINGUAGEM
355
Cf. μιμνήσκω, -ομαι : le moyen signifie « avoir en tête, penser à, se souvenir, mentionner », l’active « faire
se souvenir, fair penser à ». Noms d’action: 1. μνήμη : dor. μνάμα, « souvenir » qui a une réalité
psychologique, distinct de μνῆμα, « souvenir objectif et matériel », mais aussi « mémoire », en tant que
faculté (dor., ion.-att.). 2. avec les suffixes de noms d’action : *μνήσις n’existe pas, mais avec préverb :
ἀνάμνησις : « souvenir, réminiscence ».
205
Concebemos, portanto, a linguagem – e particularmente a escrita – como a lente
que se interpõe ao conhecimento; a sua notória capacidade de amplificar e gerar
percepção – características que lhe aportam notáveis vantagens, certamente não
ignoradas pelos gregos antigos – convive, contudo, com as diferentes refrações que ela
própria produz, quando a luz lhe atravessa. Assim, se é possível pensar que a escrita nos
aproxima do objeto do conhecimento, o resultado dessa aproximação configura sempre
uma nova imagem desse objeto, um objeto refratado, em alguma medida deformado –
daí a necessidade do efetivo engajamento dialético para aferir as devidas distinções e
conexões no imenso volume de imagens que essa lente refrata.
Propomos, portanto, em nossa leitura, que a escrita tem um estatuto ambíguo, que
é característica dos elementos da ordem do humano, dos “intermediários”: assim como
éros é concebido senão na sua dualidade intrínseca no Fedro; ou na sua condição de
μεταξύ filosófico no Banquete; de tal ordem é também a linguagem e a escrita: uma
dualidade que a caracteriza como um phármakon no Fedro. A escrita assoma, portanto,
como um elemento intermediário entre os estranhos e inertes sinais sensíveis e a
possibilidade de engendrar reminiscência e reconhecimento das elevadas Formas
inteligíveis.
Porquanto a escrita representa uma dimensão do lógos, ela seria tão inafastável da
dialética quanto o é a linguagem356. Embora não se pretenda substitutiva em si mesma da
filosofia, do engajamento erótico que mobiliza as psykhaí ao saber, a linguagem toma
também parte nesse engajamento. Pretendemos, assim, mostrar como uma leitura das
metáforas da escrita como uma invenção divina e da escrita como um phármakon para a
memória, imagens que emergem da passagem em questão, nos permitem compreender
356
Em estudo sobre o Crátilo, Montenegro (2007) rebate a tese de que as aporias finais do Crátilo
convergiriam para um desmembramento entre linguagem e conhecimento, dissociação motivada 1) pela
contradição entre a instabilidade dos nomes, que permite gerar a significação de uma realidade que não é
nunca a mesma (437c) e a sua potência de realizar a mímesis de uma realidade primordial, estabelecida pelo
nomoteta (438b), o que geraria um efeito de epokhé sobre a hipótese de o lógos representar critério de aferição
da verdade e 2) pela hipótese aventada por Sócrates da existência de realidades externas ao lógos, o que
sugeriria que a busca pelo conhecimento pudesse representar um processo “místico”, alheio aos nomes e à
linguagem. Ora, essa posição parece não subsistir na obra de Platão, não somente pelas razões aventadas
por Montenegro em seu estudo, mas também pelo desenvolvimento de postulados que, em diálogos de
maturidade, ligam o conhecimento a um processo presidido pela alma – portanto intermediado pelo lógos
– em busca de apreensão das Formas (tal como lemos no Fédon e na República), posição, por exemplo,
sustentada por Dixsaut (2003). Mas não somente por isso: conforme vimos no capítulo anterior, a noção de
dialética, que emerge estreitamente associada ao núcleo forte da epistemologia platônica – como
depreendemos dos livros centrais da República – é igualmente dependente de um uso próprio da
linguagem. Ademais, se o conhecimento fosse viabilizado por uma espécie de acesso direto às coisas
mesmas, independentemente da linguagem, “a filosofia, em sua dimensão dialógica e pedagógica, tão
amplamente ressaltada em outros diálogos de Platão, ficaria totalmente inviabilizada, devendo ser pensada
como uma atividade de natureza inenarrável, de cunho eminentemente privado” (Montenegro, 2007, p.
370).
206
o problema neste sentido: elas nos possibilitam ver que a escrita e a oralidade, embora
instâncias sobre as quais parece, sim, existir certa diferença no âmbito da discussão
travada no Fedro, não logram representar, contudo, dimensões da linguagem
contraditórias ou inteiramente inconciliáveis – seja por uma razão histórica, seja,
sobretudo, por razões filosóficas. Sobretudo, essa leitura permite-nos visualizar a escrita
não somente como uma questão filosófica, mas como uma possibilidade mesmo para a
filosofia.
357
Platão não se vale aqui do termo μῦθος ou μυθολογεῖν para se referir à narrativa que apresenta na
sequência. Em vez disso, faz referência a ela como um “relato egípcio” (275b3-4: Αἰγύπτιος λόγος). Contudo,
conforme comenta Centrone (2014, p. 169), o que se lê na sequência trata-se, provavelmente, de uma
invenção platônica, que se serve do pano de fundo egípcio para conferir ao relato uma aura de antiguidade
e sabedoria. Embora não se trate propriamente de um mito, entram nele incontestáveis elementos míticos
– as divindades egípcias e o paralelo possível com o mito de Prometeu.
358
Conforme vimos no capítulo II, ao ser perguntado por Fedro quanto ao mito do rapto de Orítia, à beira
do rio Ilissos, Sócrates manifesta patente indiferença pelas narrativas míticas (229c5-230a7). Essa
indiferença – que se traduz em não conceder a elas maior importância – parece-nos atitude intelectual a
ser mantida na leitura do Fedro, um lembrete avançado ao leitor do que viria pela frente: um diálogo em
que diferentes narrativas de tonalidades mitológicas assomam como parte central dos argumentos, como
é justamente o caso da narrativa da invenção da escrita em questão.
359
274e4-7: “Theuth disse: ‘Esta é uma instrução, ó rei, que fará os egípcios mais sábios e de melhor memória.
Pois foi descoberta como uma droga para a memória e a sabedoria” (Cf. “Τοῦτο δέ, ὦ βασιλεῦ, τὸ μάθημα,”
ἔφη ὁ Θεύθ, “σοφωτέρους Αἰγυπτίους καὶ μνημονικωτέρους παρέξει· μνήμης τε γὰρ καὶ σοφίας φάρμακον
ηὑρέθη.”)
207
aparentemente benfazeja360. O problema reside em compreender o peso a ser conferido
a uma ou outra opinião. Conforme vimos no último capítulo, a condenação que emerge
da fala do rei Thamos, que é, embora não inequivocamente, ratificada nos comentários
de Sócrates na sequência (Phdr. 275d4-e5), tem suscitado interpretações que não somente
têm colocado a escrita no banco dos réus, como também têm servido para condená-la (cf.
Krämer, 1959; Szlézak, 2009 [1985], 2011 [2004]; Reale, 2004 [1991], 2007 [1980]; Hösle, 2008;
Perine, 2014). Por que o rei Thamos se posiciona contrariamente à escrita? E por que a
escrita não seria benéfica em sua perspectiva?
Nesse contexto, estamos diante da opinião do inventor das letras, o deus Theuth,
mas não temos, de fato, uma avaliação crítica que decorre dos utentes dessa nova arte:
apenas a do rei Thamos e a de Sócrates, que, como sabemos, não são reais usuários da
escrita. Sendo assim, aqui não parece aplicar-se aquele princípio estabelecido na própria
obra de Platão, segundo o qual, o mais apto a fazer um juízo crítico de um invento seria
aquele que dele faz uso361. Vale dizer que, se o seu inventor, como acusa Thamos, não tem
nitidez para avaliar corretamente o valor de sua arte, por ser o “pai da escrita” (274e7-
275a2), tampouco o rei Thamos, ou Sócrates, poderiam reivindicar estarem em melhores
condições para fazê-lo. Ademais, conforme acrescenta R. Burger (1980, p. 90), a
qualificação da escrita como um mal advém da voz de um ser imortal e supremo – o rei
Thamos, também associado a Ámon, o supremo deus dos Egípcios –, portanto, seu
discurso não é semelhante ao dos simples mortais, mas representa a opinião de alguém
que desconhece as limitações dos homens – para os quais, talvez, a escrita pudesse ser
útil ou necessária. Do mesmo modo, Sócrates, que na obra de Platão assoma
frequentemente idealizado como o modelo de filósofo, “o melhor, o mais sábio e o mais
justo” (Phd. 118a16-17); também ele parece representar um mortal que está em um plano
acima dos demais, não tendo deixado, ademais, também nada escrito; por esse motivo,
360
274e7-275a5: “Engenhoso Theuth, um é aquele capaz de engendrar as artes, mas outro o que julga qual o
lote de dano e utilidade trará a quem delas se servir. E tu, sendo o pai da escrita e por querer-lhe bem, dizes
agora o contrário do poder que ela tem. Pois, por descuidar da memória, a escrita produzirá esquecimento
nas almas dos que se instruírem, posto que, por uma persuasão exterior e pela ação de sinais estranhos, e
não mais do interior e por si mesmos, recordarão” (Cf. “Ὦ τεχνικώτατε Θεύθ, ἄλλος μὲν τεκεῖν δυνατὸς τὰ
τέχνης, ἄλλος δὲ κρῖναι τίν' ἔχει μοῖραν βλάβης τε καὶ ὠφελίας τοῖς μέλλουσι χρῆσθαι· καὶ νῦν σύ, πατὴρ
ὢν γραμμάτων, δι' εὔνοιαν τοὐναντίον εἶπες ἢ δύναται. τοῦτο γὰρ τῶν μαθόντων λήθην μὲν ἐν ψυχαῖς
παρέξει μνήμης ἀμελετησίᾳ, ἅτε διὰ πίστιν γραφῆς ἔξωθεν ὑπ' ἀλλοτρίων τύπων, οὐκ ἔνδοθεν αὐτοὺς ὑφ'
αὑτῶν ἀναμιμνῃσκομένους·)
361
Quem é melhor indicado para avaliar a bondade ou a virtude de um instrumento – digamos, de um
violão – não é quem o constrói, mas o violonista, que o utiliza. Quem melhor avaliar a correção de uma
lançadeira, de uma harpa ou dos nomes não é o artesão ou o criador das palavras, mas o dialético, que delas
faz uso. Essa é a orientação que vemos consagrada no Crátilo, no trecho já citado no capítulo I (390c2-d6), a
qual, todavia, embora sugerida nas palavras do rei Thamos, parece não se aplicar ao caso: o rei não é um
usuário da escrita.
208
ele tampouco se qualifica como um usuário da escrita que poderia melhor avaliar os seus
benefícios e desvantagens.
Nesse sentido, queremos dizer que o mito de Theuth situa a questão em um
horizonte de compreensão certamente acima das expectativas humanas, em um plano
“divino”. De fato, o próprio Sócrates motiva a narrativa com uma indagação sobre as
condições do agir, do falar e dos discursos que poderiam “agradar à divindade” (274b9-
10): “Sabes então em que condições agrada-se mais a deus, quer no agir, quer no falar, no
que respeita a discursos?”362 e a resposta, através do mito, atribui às letras origem divina.
Além disso, também pergunta: “Se pudéssemos descobri-la [a verdade] por nós mesmos,
haveríamos nós de ter algum cuidado com a opinião humana (τῶν ἀνθρωπίνων
δοξασμάτων)?”(274c2-3)363. Embora tal interrogação seja considerada “ridícula” por Fedro
(γελοῖον), trata-se de um preâmbulo do mito a ser narrado, e parece indicar-nos um
caminho para sua interpretação. Afinal, de onde surge essa pergunta e por que Sócrates
não oferece uma resposta objetiva para ela, assim como também não refuta a apreciação
de Fedro, de que se tratava de uma questão “ridícula”?
O emprego do termo geloîon por Fedro parece apontar para uma inversão entre o
seu lógos e o de Sócrates. Em outra ocasião, no prólogo do diálogo, fora Sócrates quem
julgara “ridícula” uma pergunta sobre os mitos: “E a razão, meu caro, é simplesmente
esta: ainda não fui capaz de conhecer a mim mesmo, como recomenda a inscrição de
Delfos. E disso, ainda um ignorante, parece-me ridículo (γελοῖον) investigar aquilo que
me é alheio” (229e4-230a1)364. O termo, o mesmo empregado ali (229e6) e aqui (274c4)
representam, respectivamente, a aporia de Sócrates e Fedro diante da narrativa mítica.
Além disso, Sócrates, no prólogo do diálogo, relegara a uma posição menor as narrativas
míticas, alegando ser um ignorante (ἀγνοοῦντα) e desconhecedor das coisas que dizem
respeito a si mesmo, mas nessa passagem é ele quem apresenta o mito que sustenta sua
ulterior posição quanto ao assunto (275d-278b). Em contrapartida, Fedro, o aprendiz de
retórica, instruído pelas letras de Lísias, nas quais acreditava residir todo o conhecimento
possível sobre o tema365, é quem agora se revela um ignorante, afirmando desconhecer
absolutamente (οὐδαμῶς). Sócrates é quem oferece, na sequência, a “narrativa dos
362
Cf. {ΣΩ.} Οἶσθ' οὖν ὅπῃ μάλιστα θεῷ χαριῇ λόγων πέρι πράττων ἢ λέγων;
363
Cf. εἰ δὲ τοῦτο εὕροιμεν αὐτοί, ἆρά γ' ἂν ἔθ'ἡμῖν μέλοι τι τῶν ἀνθρωπίνων δοξασμάτων;
364
Cf. τὸ δὲ αἴτιον, ὦ φίλε, τούτου τόδε.οὐ δύναμαί πω κατὰ τὸ Δελφικὸν γράμμα γνῶναι ἐμαυτόν· γελοῖον
δή μοι φαίνεται τοῦτο ἔτι ἀγνοοῦντα τὰ ἀλλότρια σκοπεῖν.
365
235b1-3: “Que nada, Sócrates! Pois isto mesmo é o que há de melhor no discurso: nada do que é inerente
ao tema e merecedor de ser tratado foi omitido” (Cf. Οὐδὲν λέγεις, ὦ Σώκρατες· αὐτὸ γὰρ τοῦτο καὶ μάλιστα
ὁ λόγος ἔχει. τῶν γὰρ ἐνόντων ἀξίως ῥηθῆναι ἐν τῷ πράγματι οὐδὲν παραλέλοιπεν).
209
antigos”, uma pretensa representação da verdade, que, entretanto, não residiria no
próprio mito, mas no saber de sujeitos de outra época (274c1-2: δ᾽ἀληθὲς αὐτοὶ ἴσασιν).
A questão de Sócrates (“Se pudéssemos descobrir isso [i.e. a verdade] por nós
mesmos, haveríamos nós de ter algum cuidado com a opinião humana?”) é formulada
gramaticalmente como um período hipotético potencial (prótase com o verbo no optativo
– εἰ τοῦτο εὕροιμεν, “se fôssemos capazes de descobrir isso” – e apódose com forma
verbal igualmente no modo optativo – ἂν μέλοι τι, “haveríamos de ter algum cuidado”),
e orienta nossa leitura para conceber a descoberta desse isso (274c2: τοῦτο) como a
retomada de uma verdade (274c1: τὸ ἀληθὲς) que, embora vinculada a um saber ligado
um tempo imemorial – os “antigos” a conhecem (274c1: τῶν προτέρων) –, permanece no
presente enquanto uma possibilidade, não uma certeza, como dão a entender as formas
verbais no modo optativo. Em outras palavras, a verdade se situa numa temporalidade
inacessível objetivamente, quando dela se se aproxima com os recursos disponíveis no
agora366. Para trazê-la ao presente, para rememorá-la, é preciso outra abordagem,
viabilizada, conforme veremos à frente, pela dialética. Está aqui, portanto, esboçada a
distinção entre a verdade (radicada em uma temporalidade indefinida e cujo
desvelamento é apenas uma possibilidade, um modo optativo) e as conjecturas ou
opiniões humanas, disponíveis desde já, no presente (274c3: τὰ ἀνθρώπινα δόξασμα).
Ora, mas essa pergunta pareceu “ridícula” a Fedro, e Sócrates parecia assentir com
essa opinião, ao não refutá-la. A justificativa filosófica para isso estava assentada na
palinódia apresentada por Sócrates: enquanto aos deuses caberia a contemplação
permanente do ser e da verdade que se pode chamar de ciência (ἐπιστήμη), aos mortais
restaria apenas o desejo dessa contemplação, desejo que pode franquear a alguns até uma
visão parcial da verdade, mas que à maioria se frustra nas imperfeitas tentativas
condignas à precária condição dos humanos, aos quais, alijados dessa verdade, restaria,
então, somente contentar-se com o nutrir-se de opiniões (τροφὴ δοξαστή), como fica
claro na passagem abaixo:
366
O agora vs. em outro tempo/outrora configura importante dicotomia que nos ajuda a pensar a passagem.
A alma que busca a verdade, o filósofo, parte de um agora, de um presente em que se debate, como veremos
na sequência, com as sedições da dimensão sensível, do devir, buscando a reminiscência de uma prévia
visão do ser que tivera em outro tempo. Essas ideias, que nos parecem ser o substrato filosófico que nos
permite compreender a passagem, estão formuladas na extensa digressão mítica presente na palinódia de
Sócrates (248c-252b), também formulado na dicotomia aqui/lá.
210
supraceleste]. E, posto que o pensamento de um deus é nutrido por
inteligência e ciência puras – bem como o de toda alma preocupada em
receber o que lhe convém –, quando depois de um certo tempo ela vê o
ser regozija-se, bem como nutre-se e deleita-se contemplando o
verdadeiro, até que a revolução circular a reconduza ao mesmo ponto.
Ora, nesse circuito contempla a justiça em si, contempla a moderação,
contempla a ciência (…). E assim é a vida dos deuses (…). As demais
seguem desejando todas elas com ardor o alto, mas, impotentes,
submergem e são levadas juntas na circunvolução, pisando em atropelo
umas nas outras, tentando uma estar à frente das outra. Tumulto,
combate e suor tornam-se extremos e, devido à imperícia dos aurigas,
muitas se machucam, muitas têm as asas quebradas; e todas tendo
muitas aflições se afastam, sem ter alcançado a contemplação dos seres,
367
e uma vez alijadas procuram alimento na opinião.
(Phdr. 247c6-d7, 248a1, 248a6-b5)
Parece ficar patente, portanto, a distância que separa os deuses – que podem
habitar as regiões “para além do céu” e de lá contemplarem indefinidamente o ser e a
verdade – dos mortais, estes que, se forem filósofos, poderão no máximo, mediante um
exercício dialético, recuperar pelo pensamento a reminiscência daquilo que um dia sua
alma vislumbrou. O filósofo pode recuperar suas “asas” somente pelo pensamento e é
pelo pensamento que ele pode se aproximar da condição divina, sem, contudo, jamais
igualar-se a um deus368.
Em suma: está implícita no diálogo entre Fedro e Sócrates a contraposição entre,
por um lado, uma ciência verdadeira (ἀληθὴς ἐπιστήμη), que é apanágio dos deuses e que
se afina com a contemplação dos inteligíveis – a justiça em si (δικαιοσύνη), a moderação
(σωφροσύνη) – e, por outro lado, as conjecturas humanas, ou opinião (δόξασμα), que, por
sua vez, decorrem no limite das percepções que as almas têm no e do devir – ainda que as
chamem de “ciência”369. Entre uma forma de saber e outra, insinua-se, entretanto, uma
367
Cf. ἡ γὰρ ἀχρώματός τε καὶ ἀσχημάτιστος καὶ ἀναφὴς οὐσία ὄντως οὖσα, ψυχῆς κυβερνήτῃ μόνῳ θεατὴ
νῷ, περὶ ἣν τὸ τῆς ἀληθοῦς ἐπιστήμης γένος, τοῦτον ἔχει τὸν τόπον. ἅτ' οὖν θεοῦ διάνοια νῷ τε καὶ
ἐπιστήμῃ ἀκηράτῳ τρεφομένη, καὶ ἁπάσης ψυχῆς ὅσῃ ἂν μέλῃ τὸ προσῆκον δέξασθαι, ἰδοῦσα διὰ χρόνου
τὸ ὂν ἀγαπᾷ τε καὶ θεωροῦσα τἀληθῆ τρέφεται καὶ εὐπαθεῖ, ἕως ἂν κύκλῳ ἡ περιφορὰ εἰς ταὐτὸν
περιενέγκῃ. ἐν δὲ τῇ περιόδῳ καθορᾷ μὲν αὐτὴν δικαιοσύνην, καθορᾷ δὲ σωφροσύνην, καθορᾷ δὲ
ἐπιστήμην (…) Καὶ οὗτος μὲν θεῶν βίος· (…)αἱ δὲ ἄλλαι ψυχαί, ἡ μὲν ἄριστα θεῷ ἑπομένη καὶ εἰκασμένη
ὑπερῆρεν εἰς τὸν ἔξω τόπον τὴν τοῦ ἡνιόχου κεφαλήν, καὶ συμπεριηνέχθη τὴν περιφοράν, θορυβουμένη
ὑπὸ τῶν ἵππων καὶ μόγις καθορῶσα τὰ ὄντα· ἡ δὲ τοτὲ μὲν ἦρεν, τοτὲ δ' ἔδυ, βιαζομένων δὲ τῶν ἵππων τὰ
μὲν εἶδεν, τὰ δ' οὔ.
368
249c4-c6: “Por isso, com justiça de fato, somente o pensamento do filósofo tem asas; pois, segundo sua
capacidade, está sempre próximo pela memória àquilo cuja proximidade o deus deve sua divindade” (διὸ
δὴ δικαίως μόνη πτεροῦται ἡ τοῦ φιλοσόφου διάνοια· πρὸς γὰρ ἐκείνοις ἀεί ἐστιν μνήμῃ κατὰ δύναμιν,
πρὸς οἷσπερ θεὸς ὢν θεῖός ἐστιν.)
369
Trata-se, portanto, de uma verdadeira ciência, pois radicada no inteligível, ligada ao ser em si, diferente
de uma outra ciência, precária, transitória e imperfeita, radicada no sensível. Essa distinção aparece
bastante clara na passagem: “Ora, nesse circuito [a alma divina] contempla a moderação, contempla a
211
terceira via, que parece ser a alternativa do filósofo: a dialética.
Assim, na mediana entre a contemplação direta dos inteligíveis e a opinião erigida
sobre as percepções do vir-a-ser (247d7: γένεσις), caberia ao filósofo o conhecimento
dialético, que nasce no devir, de onde parte – visto que o filósofo é um mortal – e ascende
em um movimento direcionado ao inteligível. O saber filosófico precisa partir das
percepções múltiplas para atingir cada vez mais inteligibilidade, vislumbrando, pelo
pensamento, o real. Conforme vimos no capítulo II, essa imagem do filósofo estaria, de
resto, de acordo com o “Decreto de Adastreia” (249b-250a): o filósofo é um amante do
saber, não um sábio; seu percurso rumo ao conhecimento materializa a tensão jamais
resolvida entre um esforço de reminiscência do inteligível e o esquecimento que se opera
no sensível:
ciência – não aquela vinculada à geração, nem a que varia do modo como varia o ser por ora chamado de
real, mas aquela que concerne ao ser que realmente é e que realmente é ciência” (247d5-e2, Cf. ἐν δὲ τῇ
περιόδῳ καθορᾷ μὲν αὐτὴν δικαιοσύνην, καθορᾷ δὲ σωφροσύνην, καθορᾷ δὲ ἐπιστήμην, οὐχ ᾗ γένεσις
πρόσεστιν, οὐδ' ἥ ἐστίν που ἑτέρα ἐν ἑτέρῳ οὖσα ὧν ἡμεῖς νῦν ὄντων καλοῦμεν, ἀλλὰ τὴν ἐν τῷ ὅ ἐστιν ὂν
ὄντως ἐπιστήμην οὖσαν).
370
Cf. δεῖ γὰρ ἄνθρωπον συνιέναι κατ' εἶδος λεγόμενον, ἐκ πολλῶν ἰὸν αἰσθήσεων εἰς ἓν λογισμῷ
συναιρούμενον· τοῦτο δ' ἐστὶν ἀνάμνησις ἐκείνων ἅ ποτ' εἶδεν ἡμῶν ἡ ψυχὴ συμπορευθεῖσα θεῷ καὶ
ὑπεριδοῦσα ἃ νῦν εἶναί φαμεν, καὶ ἀνακύψασα εἰς τὸ ὂν ὄντως.
212
primeiras, representa um movimento: tal é a dialética (ou filosofia), compreendida como
éros, isto é, como desejo e como consciência de uma ausência, aquele saber que sabe não
saber e que é condição de superação da aporia, um estado entre homens e deuses371.
Dito isso, aqui reside a dificuldade, a nosso ver, de transpor simplesmente o
embate entre Theuth e Thamos para a experiência da pesquisa filosófica, indagando se a
escrita é ou não é pertinente a ela, e interpretando a passagem fora das fronteiras do mito.
Compreender esse debate meramente como uma disputa sobre a vantagem ou malefício
da escrita para o filósofo; ou, o que nos parece pior, assumir sem mais somente um dos
lados dessa discussão, aquele que preconiza a condenação da escrita, deixa à sombra o
fato de que se trata, em primeiro lugar, de um mito, no qual a discussão é tratada numa
dimensão extrínseca à condição humana, trata-se de uma querela entre duas divindades
(Theuth/Ámon). Em segundo lugar, essa leitura ignora que uma primeira distinção a ser
aqui sublinhada não transparece na superfície do texto, mas assoma sob a primeira
camada da significação: aquela entre uma forma de saber “divina” – que, de fato,
prescinde de toda relação com os sensíveis, entre os quais a linguagem e,
particularmente, a escrita – e uma forma de saber “humana” – que, mesmo direcionada
ao verdadeiro saber, tem no sensível o ponto de partida e um auxílio.
Assumindo, portanto, a moldura mítica da passagem, abre-se a possibilidade para
compreendermos que o verdadeiro problema não reside em condenar ou absolver a
escrita, mas em demarcar as fronteiras entre a verdadeira ciência, puramente inteligível
– um conhecimento cuja plenitude se vislumbra somente em um patamar divino – e o
precário saber humano, suscetível às ilusões causadas pelos sensíveis, mas capaz de se
viabilizar enquanto um caminho de aproximação da verdade – uma philosophía.
O erro de Theuth, contra o qual o rei Thamos se arvora, não era defender as
vantagens da escrita, mas fazer coincidir, ingenuamente, o saber divino com o conjunto
de informações que a escrita efetivamente pode registrar. O registro pela linguagem –
seja na sua modalidade oral, seja na sua modalidade escrita – representa tão somente a
mímesis da multiplicidade de sensações que atravessam a alma do filósofo, sensações que,
entretanto, representam o ponto de partida da pesquisa (249b7-c1: ἐκ πολλῶν ἰὸν
αἰσθήσεων). Não se confunde, porém, como Theuth parece acreditar, com o verdadeiro
saber. Nisso reside o contraponto do rei, de Sócrates – e de Platão.
Ademais, somente desse modo nos parece possível compreender por que o rei
371
Devo essa observação à Professora Maria Cecília Gomes dos Reis, por ocasião do Exame de Qualificação
desta tese, a quem agradeço.
213
ergue uma barreira a priori contra o intento de Theuth. Do contrário, se compreendemos
a posição de Thamos como uma negação tão categórica da utilidade dessa arte – sem
qualquer abertura para conhecê-la –, tal contraposição, se tomada no seu valor de face,
não poderia ser compreendida como a manifestação de um flagrante preconceito
histórico? E mais: não seria essa uma posição bastante aristocrática, ao privar a população
comum do usufruto de um bem? Recorde-se que o intento inicial de Theuth era,
precisamente, o de socializar a arte das letras entre a população egípcia (274d4-5: δεῖν
διαδοθῆναι τοῖς ἄλλοις Αἰγυπτίοις) e que as letras eram então apresentadas como o
produto de um aprendizado (274e5: μάθημα).
Paradoxalmente, conforme vimos, é precisamente essa a atitude intelectual que
os estudiosos da Escola de Tübingen-Milão atribuem a Platão. Platão, a exemplo de
Sócrates, teria se apropriado da escrita senão de forma desconfiada; teria restrito, por essa
razão, o verdadeiro conhecimento aos poucos discípulos que se encontrassem em
condição de aprendê-lo, no âmbito da Academia. Szlézak (2004 [1985], p. 17 et seq.),
rebatendo a crítica que se levanta contra essa interpretação, traz elementos da cultura
grega que mostram que uma perspectiva esoterista e iniciática da filosofia não seria de
todo estranha à época de Platão, e argumenta no sentido de que uma mentalidade aberta
e “democrática” seria produto dos sistemas filosóficos modernos372 e que, ademais, seria
possível encontrar na própria obra de Platão uma velada crítica à abertura democrática
ateniense, ao lado de elementos que apontam para uma seleção especial de a quem se
deve ou não permitir o acesso ao conhecimento373. Tais argumentos, que sustentam uma
leitura em desfavor da escrita nessa passagem, baseia-se, portanto, em razões de ordem
histórica, não filosófica.
Contudo, há também razões filosóficas para que Platão represente no discurso de
Thamos uma censura à posição de Theuth, sem que essa censura, isoladamente,
372
Cf. Szlézak (2009 [1985], p. 17): “Julgamos as épocas passadas de acordo com nossas experiências e
convicções: ainda conseguimos registrar e entender a retenção compulsória do conhecimento científico e
filosófico como, por exemplo, na história das ideias do início da Modernidade, de Galileu e Leibniz. O que
permanece incompreensível é a voluntária limitação da comunicação filosófica; é inconcebível que um
interlocutor de uma conversa intelectual, ainda mais um interlocutor de categoria, não possa ver como um
bem a comunicação para todas as pessoas daquilo que para ele é importante. Em seus diálogos, Platão conta
o tempo todo com a possibilidade de que um interlocutor na conversa manifeste apenas uma parte de seu
saber e sua compreensão”.
373
Cf. Szlézak (ib., p. 19): “Mas realmente conhecemos Platão, em outras partes, como defensor de abertura
democrática e liberalidade progressiva? Ele previu para seu Estado ideal, ou para seu Estado baseado em
leis, um sistema público de informação e de instrução? Sua obra Leis mostra, como se sabe, que não apenas
o conteúdo da educação dos que são chamados ao governo é protegido do conhecimento por parte dos não
chamados, mas que o mero fato da exclusão também deve permanecer oculto dos excluídos; aqui,
acentuando mais ainda do que em seu primeiro projeto de Estado as estruturas separatistas de classe, Platão
também exige que se mantenha segredo em relação também ao secretismo (Leis 961b4-6, com 952a7 e 968d-
e)”.
214
represente no final o próprio ponto de vista de Platão: seria ingênuo conceber a escrita
como uma panaceia para os problemas ligados ao saber, expectativa que se revela ao
exibir seu invento como uma droga não somente para a memória, mas também para a
sabedoria dos humanos (274e6: μνήμης τε γὰρ καὶ σοφίας φάρμακον). Ora, conforme
lemos com Brisson (2004 [1989], p. 60), a passagem não instaura uma oposição entre
oralidade e escrita, tendo como critério diferenciador o fato de aquela ser adequada à
filosofia e esta não; trata-se, antes, de fazer compreender a distinção, hoje talvez um tanto
banal, entre informação e conhecimento: enquanto a escrita possa vir em socorro da
transmissão e preservação de informações, ela jamais poderia compensar o verdadeiro
conhecer, radicado na memória e que se atinge mediante um exercício intelectual.
É também nesse sentido que poderíamos aqui evocar, como um parêntese, o
modo como o problema também se dispõe no núcleo filosófico da Carta 7 (341a-345c),
mostrando como a discussão que se instaura nessa carta é também confluente com a
leitura que apresentamos. Conforme vimos no último capítulo, essa passagem é também
tomada como um autotestemunho platônico que, ao mesmo tempo que revelaria o
descrédito da escrita, apontaria para doutrinas secretas além dos diálogos (cf. Szlézak,
2009 [1985], apêndice 3; Reale, 2004 [1991], p. 68 et seq., entre outros). Em que pesem as
dúvidas que ainda restam quanto à autenticidade da Carta374 e a diferença que ela
representa quanto ao gênero em que é escrita – o que nos impõe, logo de partida, a
necessidade de fazermos ressalvas quando a abordamos em paralelo com os diálogos375
374
O questionamento sobre a autenticidade da Carta 7 decorre, em grande parte, do estranhamento que o
seu núcleo filosófico causa, quando considerado à luz do pensamento que se depreende da leitura dos
diálogos platônicos. Essa problemática incompatibilidade com os diálogos é, pelos estudiosos da Escola de
Tübingen-Milão, argumento para a defesa da existência de um núcleo metafísico externo aos diálogos, com
o qual a carta parece entretanto concordar e, por isso, constitui também um argumento para sua
autenticidade; por outro lado, ela é igualmente usada por comentadores antiesoteristas como uma razão
para sua inautenticidade. Concordamos com Trabattoni (2003) que o debate sobre a autenticidade da Carta
não deve ter como critério a sua concordância ou não com uma interpretação particular de Platão.
Conforme comenta Irwin (2008), os elementos que se consideram contrários à autenticidade não são
definitivos (tais como o aparente desconhecimento dela por parte de Aristóteles e o silêncio sobre ela em
autores coetâneos ou em autores anteriores a Cícero; assim como o inusitado esquecimento da figura de
Sócrates), tampouco são categóricos os argumentos a favor da sua autenticidade (tais como a coerência
histórica e estilística). Embora tenhamos em Maddalena (1948) argumentos que defendem a
inautenticidade da Carta 7 (ao lado de todas as demais epístolas atribuídas a Platão) e em Cherniss (1962
[1945]) e Bröcker (1963), argumentos que consideram espúria ao menos a parte filosófica da Carta; pode-se
talvez afirmar que a tendência contemporânea é pela admissão de algumas cartas como autênticas, entre
as quais, particularmente, a sétima. Reforçam essa perspectiva: Pasquali (1967), Parente (1970), Trabattoni
(1993, 2003).
375
O fato de o texto configurar uma epístola, não um diálogo, manifesta uma motivação de natureza diversa
da dos diálogos. É possível, por exemplo, assumir que o tema tratado na carta tenha um caráter mais
contingencial e polêmico que o tratado nos diálogos, que são, pela sua natureza, mas investigativos e
dialéticos. Conforme comenta Trabattoni (2003, p. 161), a Carta 7 tem um movimento retórico apologético,
ligada à estratégia de Platão defender-se e mostrar-se isento das consequências políticas desastrosas de
Siracusa, permitindo, por essa razão, alguma hipérbole ou exagero. É, portanto, não sem relação com a
dimensão retórica da carta que se deve avaliar seu conteúdo filosófico.
215
– não é possível ignorar que ela represente uma peça crucial para avaliar a atitude de
Platão em relação aos diálogos e à escrita, e que seja também amplamente considerada
pela maior parte dos comentadores, ainda que mais difícil de ser interpretada. Assim,
parece-nos incontornável que também apresentemos algumas notas que nos permitem
compreender a polêmica passagem dessa carta, sem a pretensão de que elas representem
uma leitura sistemática desse texto, com o intuito de mostrar como o direcionamento da
nossa leitura também pode ser confirmada pela interpretação dessa passagem376.
376
Um conjunto de leituras mais abrangentes e sistemáticas da Carta 7, no âmbito do conjunto de epístolas
atribuídas a Platão e que, além disso, retrate também a história em torno do debate sobre as epístolas
platônicas tem como referências as obras de Maddalena (1948), Pasquali (1967) Parente (1970), Trabattoni
(1993, 2003), Irwin (2008), Gallazzi (2008), Forcignano (2016).
216
uma expedição militar que depôs Dionísio II em 357 a.C., e iniciado um governo que, não
obstante, foi logo interrompido com o seu assassinato em 354 a.C.
Conforme comenta F. Trabattoni (2003, p. 166), os dados históricos narrados por
Platão explicam, em grande parte, o movimento retórico do texto: a carta organiza-se
como uma espécie de apologia de Platão destinada à opinião pública ateniense. De fato,
o risco era que os embaraços diplomáticos em Siracusa e o fracasso de Platão em mediar
os problemas políticos sicilianos colocassem em xeque e diminuíssem a credibilidade do
seu pensamento filosófico377. Afinal, como justificar que Platão, depois das reflexões
sobre o tirano que realiza, por exemplo, no Górgias, na República e no Fedro, havia se
comprometido com um tirano como Dionísio? Como explicar o aparente fracasso da
filosofia platônica quando ela foi chamada a contribuir com a realidade política prática?
O excursus filosófico da carta não deve ser compreendido, portanto, desvinculado
da direção retórica do texto; com efeito, a questão da escrita, que emerge como tema
central no argumento dessa passagem, une a parte histórico-biográfica à discussão
propriamente filosófica. As reflexões que Platão apresenta na sequência sobre o
comércio entre filosofia e escrita estão, assim, fortemente vinculadas às observações
precedentes; são preparadas por uma longa sequência narrativa cujo objetivo é revelar,
na perspectiva de Platão, que o renovado interesse filosófico de Dionísio II (Ep. 7.339b3-
b4; 339d1-3)378 era não mais que uma presunção de sabedoria (341b1-3)379.
Bastante diferente daquela concepção de filósofo que Platão descreve nesse
contexto (340c1-341d6)380, Dionísio acreditara ter-se tornado sábio apenas por ter “ouvido
377
Cf. Trabattoni (2003, p. 167): “O mais preocupante para Platão, provavelmente, era exatamente isto, que
seu pensamento filosófico fosse avaliado à luz dos acontecimentos sicilianos, e se considerasse a dramática
parábola pessoal de Dionísio ou de Díon como o resultado natural a que é conduzido quem aprende e aplica
a filosofia. Confirma-o claramente, por exemplo, uma passagem em 341a, em que Platão diz que quem não
está disponível para aprender, como Dionísio, não pode atribuir a culpa em quem lhe indica a estrada (τὸν
δεικνύντα), mas a si mesmo. Assim, além de justificar praticamente os seus atos, Platão se esforça
igualmente na carta por dissociar suas ideias filosóficas dos resultados desastrosos dos acontecimentos
sicilianos, que já estavam sob os olhos de todos”.
378
Cf. Tradução de José Trindade Santos e Juvino Maia Jr. (2008): “Todos eles me fizeram o mesmo discurso:
o quão admiravelmente Dionísio estava entregue à filosofia (…). Mas mais cartas me chegavam de
Arquitas e daqueles de Tarento, que elogiavam a filosofia de Dionísio (…)”.
(Cf. οὗτοι δὲ ἡμῖν ἤγγελλον πάντες τὸν αὐτὸν λόγον, ὡς θαυμαστὸν ὅσον Διονύσιος ἐπιδεδωκὼς εἴη πρὸς
φιλοσοφίαν… ἐπιστολαὶ δὲ ἄλλαι ἐφοίτων παρά τε Ἀρχύτου καὶ τῶν ἐν Τάραντι, τήν τε φιλοσοφίαν
ἐγκωμιάζουσαι τὴν Διονυσίου).
379
Cf. Tradução de José Trindade Santos e Juvino Maia Jr. (2008): “Ele pretendia saber e ter compreendido
muito e até o máximo das lições que mal tinha ouvido de outros”. (Cf. πολλὰ γὰρ αὐτὸς καὶ τὰ
μέγιστα εἰδέναι τε καὶ ἱκανῶς ἔχειν προσεποιεῖτο διὰ τὰς ὑπὸ τῶν ἄλλων παρακοάς).
380
Cf. Tradução de José Trindade Santos e Juvino Maia Jr. (2008): “Aquele que ouviu, caso realmente seja
filósofo, tendo a familiaridade e sendo digno da tarefa, por ser divino, considera que é caminho
admirável ter ouvido e que se deve esforçar, e considera ainda que a quem faz assim não é possível
viver de outro modo. Depois disso, tendo-o seu guia iniciado nesse caminho, não desiste antes de
chegar a um fim em tudo, ou de ganhar força para por si próprio ser capaz de guiar, sem aquele que
indica o caminho. É dessa maneira que vive esse homem, fazendo seja o que for. Mas tudo o que faz
217
de outros” e, especialmente, por ter escrito um livro: “Mais tarde, soube que tinha escrito
acerca do que ouviu, mas compondo como se fosse obra sua e nada que tivesse ouvido a
outro” (341b3-5)381. Era preciso, portanto, desmascarar essa atitude falsamente filosófica,
que consistia tão somente em, cobrindo-se de opiniões (340d6-7: δόξαις
δ’ἐπικεχρωσμένοι), julgar o bastante, no que tange à sabedoria, apenas ter ouvido, sem
nada fazer (341a2-3: ὡς ἱκανῶς ἀκηκοότες εἰσὶν τὸ ὅλον, καὶ οὐδὲν ἔτι δέονταί τινων
πραγμάτων). Somente tendo em vista esse contexto é que podemos, então, passar para
aquela primeira passagem da Carta, onde Platão teria manifestado sua opinião sobre a
escrita:
fá-lo sempre com filosofia. Esta é o seu alimento de cada dia, levando-o, se for bom aluno, a ter boa
memória, ser apto nos cálculos e sóbrio, em si mesmo. E qualquer modo de vida contrário a esse ele
acaba por odiar”.
(Cf. ὁ γὰρ ἀκούσας, ἐὰν μὲν ὄντως ᾖ φιλόσοφος οἰκεῖός τε καὶ ἄξιος τοῦ πράγματος θεῖος ὤν, ὁδόν τε
ἡγεῖται θαυμαστὴν ἀκηκοέναι συντατέον τε εἶναι νῦν καὶ οὐ βιωτὸν ἄλλως ποιοῦντι· μετὰ τοῦτο δὴ
συντείνας αὐτός τε καὶ τὸν ἡγούμενον τὴν ὁδόν,οὐκ ἀνίησιν πρὶν ἂν ἢ τέλος ἐπιθῇ πᾶσιν, ἢ λάβῃ
δύναμιν ὥστε αὐτὸς αὑτὸν χωρὶς τοῦ δείξοντος δυνατὸς εἶναι ποδηγεῖν. ταύτῃ καὶ κατὰ ταῦτα
διανοηθεὶς ὁ τοιοῦτος ζῇ, πράττων μὲν ἐν αἷστισιν ἂν ᾖ πράξεσιν, παρὰ πάντα δὲ ἀεὶ φιλοσοφίας
ἐχόμενος καὶ τροφῆς τῆς καθ' ἡμέραν ἥτις ἂν αὐτὸν μάλιστα εὐμαθῆ τε καὶ μνήμονα καὶ λογίζεσθαι
δυνατὸν ἐν αὑτῷ νήφοντα ἀπεργάζηται· τὴν δὲ ἐναντίαν ταύτῃ μισῶν διατελεῖ).
381
Cf. ὕστερον δὲ καὶ ἀκούω γεγραφέναι αὐτὸν περὶ ὧν τότε ἤκουσε, συνθέντα ὡς αὑτοῦ τέχνην, οὐδὲν τῶν
αὐτῶν ὧν ἀκούοι·
382
Cf. τοσόνδε γε μὴν περὶ πάντων ἔχω φράζειν τῶν γεγραφότων καὶ γραψόντων, ὅσοι φασὶν εἰδέναι περὶ
ὧν ἐγὼ σπουδάζω, εἴτ' ἐμοῦ ἀκηκοότες εἴτ' ἄλλων εἴθ' ὡς εὑρόντες αὐτοί· τούτους οὐκ ἔστιν κατά γε τὴν
ἐμὴν δόξαν περὶ τοῦ πράγματος ἐπαΐειν οὐδέν. οὔκουν ἐμόν γε περὶ αὐτῶν ἔστιν σύγγραμμα οὐδὲ μήποτε
γένηται· ῥητὸν γὰρ οὐδαμῶς ἐστιν ὡς ἄλλα μαθήματα, ἀλλ' ἐκ πολλῆς συνουσίας γιγνομένης περὶ τὸ
πρᾶγμα αὐτὸ καὶ τοῦ συζῆν ἐξαίφνης, οἷον ἀπὸ πυρὸς πηδήσαντος ἐξαφθὲν φῶς, ἐν τῇ ψυχῇ γενόμενον
αὐτὸ ἑαυτὸ ἤδη τρέφει.
218
suficiente, a ponto de escrever um tratado com tais ideias, como se não as tivesse ouvido
de ninguém (341b4-5: συνθέντα ὡς αὑτοῦ τέχνην, οὐδὲν τῶν αὐτῶν ὧν ἀκούοι). Assim,
antes de abordarmos aquela frase crucial de Platão (“Não há obra minha escrita sobre ele,
nem jamais poderá haver” – 341c4-5383), que nos remete diretamente ao “escrever”, é
importante também considerar o peso que nessa passagem tem também o “ouvir”.
A passagem nos remete à ética do filósofo diante do que ouve e permite delinear
a oposição entre quem é “realmente um filósofo” (340c2: ὄντως ᾖ φιλόσοφος) e quem não
é (340d6: ὄντως μὴ φιλόσοφος). Somente o primeiro é digno dos assuntos de natureza
filosófica, possuindo natureza semelhante à divina (340c3: ἄξιος τοῦ πράγματος θεῖος
ὤν). Diante daquilo que ouve (340c1: ὁ γὰρ ἀκούσας), ele considera o ter ouvido como um
caminho extraordinário (340c3: ὁδόν θαυμαστὴν), no qual se engaja, não lhe ocorrendo
outro tipo de vida (340c4: οὐ βιωτὸν ἄλλως ποιοῦντι). Aquilo que é ouvido, isto é, o lógos,
representa um caminho (ὁδός), que pode conduzir o filósofo à autonomia quando ele se
torna capaz de seguir sem aquele que lhe indicou (340c7-d1: αὑτὸν χωρὶς τοῦ δείξοντος
δυνατὸς εἶναι ποδηγεῖν). Portanto, jamais esse lógos poderia confundir-se com a própria
sabedoria, justificando, por exemplo, a pretensão de, acreditando-se saber tudo, escrever
uma obra. A obra de Dionísio, como outra qualquer, representaria, portanto, não mais
que uma dóxa; aqueles que se consideram na condição de sábios por apenas tê-la escrito
(ou lido) não são verdadeiros filósofos, estão apenas “cobertos de opiniões” (340d6-7:
δόξαις δ’ἐπικεχρωσμένοι).
Dito isso, podemos retornar às impactantes frases de Platão em 341c4-c6: “Não há
obra minha escrita sobre o assunto, nem jamais poderá haver. Pois, de algum modo se
pode falar disso, como de outras disciplinas”384. Ora, sem descartar algum exagero de
expressão – cuja ocorrência seria compreensível e adequada ao gênero do texto –, e tendo
em mente o contexto em que a observação é apresentada, parece-nos difícil considerá-la
como uma crítica absoluta à toda e qualquer escrita enquanto possibilidade de expressão
filosófica, posição que, conforme apontamos, é mantida por vários estudiosos ligados à
Escola de Tübingen-Milão. Afirmamos isso considerando, em suma, três aspectos que,
então, parecem saltar aos olhos:
1. a referência à escrita não está em primeiro plano, mas decorre de um
acontecimento contingencial e histórico: o fato de Dionísio ter escrito um livro. Em
383
Cf. οὔκουν ἐμόν γε περὶ αὐτῶν ἔστιν σύγγραμμα οὐδὲ μήποτε γένηται·
384
Tradução de José Trindade Santos e Juvino Maia Jr. (2008), cf. οὔκουν ἐμόν γε περὶ αὐτῶν ἔστιν
σύγγραμμα οὐδὲ μήποτε γένηται· ῥητὸν γὰρ οὐδαμῶς ἐστιν ὡς ἄλλα μαθήματα (…).
219
primeiro plano estaria, conforme pontuamos, a distinção entre uma philo-doxía e a philo-
sophía, isto é, a distinção entre um verdadeiro filósofo, que se engaja em um caminho de
amor à sabedoria; e um falso filósofo, que estando “coberto de opiniões”, julga-se
detentor do conhecimento, e, por isso, também julga-se capaz de escrever385;
2. se essa primeira premissa está correta, então também faz sentido que Platão
tenha afirmado nada ter escrito sobre o assunto, pois nem mesmo a sua obra deveria ser
tomada no sentido de conter o conhecimento, haja vista que o conhecimento não se
confunde com a linguagem – oral ou escrita –, mas decorre de um engajamento filosófico,
da busca por um modo de vida;
3. não há indícios textuais na Carta 7 que assegurem irrefutavelmente uma
oposição entre o texto escrito e o falado: se a escrita é citada, a crítica sobre ela não
descarta também o que se diz oralmente, o termo usado por Platão para afirmar que é
impossível “falar” é rhetós, que significa “formulação discursiva”, “expressão”, não
estando ligado especificamente à escrita.
A essas razões, poderíamos ainda acrescentar uma quarta: Platão quer se defender
do que poderia apresentar um texto que não é seu, isentando-se, por isso, de qualquer
comprometimento com as decisões de Dionísio. Aliás, é nesse sentido que podemos
entender a observação seguinte: “o dito ou escrito por mim seria melhor” (341d2-3:
γραφέντα ἢ λεχθέντα ὑπ’ ἐμοῦ βέλτιστ’ ἂν λεχθείη). O “dizer” e o “escrever” estão aqui
no mesmo plano, o que nos sugere que a questão não é bem uma suposta diferença entre
um e outro, mas a incerteza que ronda o próprio fato (incerteza expressa, por exemplo,
pelo modo optativo do verbo: “talvez fosse escrito” – λεχθείη). Não há, portanto, uma
ressalva particular contra a escrita, mas há um franco ceticismo diante da própria
linguagem, quando ela, candidatando-se a ser mais que um “caminho”, pretende tornar-
se porta-voz do conhecimento, tal como se revela na opinião dos que acreditam que
bastaria escrever (ou ler) um livro de filosofia para se tornar um filósofo. O conhecimento,
por outro lado, não está na linguagem escrita (ou falada), não é possível ser formulado
discursivamente (341c4-5: ῥητὸν γὰρ οὐδαμῶς ἐστιν), mas ocorre como um evento
repentino (341c7: ἐξαίφνης), gerado a partir de uma prolongada convivência com ele
(341c6-7: ἐκ πολλῆς συνουσίας γιγνομένης περὶ τὸ πρᾶγμα αὐτὸ).
Sem avançarmos na leitura da Carta, por enquanto parece-nos suficiente destacar
385
Nesse sentido, Platão estaria aqui mostrando, a partir de um exemplo prático, aquilo que já afirmara na
República: a distinção entre dóxa, fundada no parecer, e conhecimento, fundado no ser; uma distinção entre o
philódoxos e o philósophos. Essa discussão aparece claramente em R. 5.476d-480a e pode ser encontrada
também no Fedro, na passagem que citaremos abaixo (275a6-b2).
220
que as observações acima reforçam a leitura que fizemos do mito de Theuth. Como
brevemente pontuamos, a crítica à escrita que emerge na Carta 7 não reside em tomar as
letras por oposição ao discurso oral, este supostamente superior e imune aos perigos da
escrita. Em vez disso, tanto no Fedro, quanto na Carta 7, o interesse filosófico consiste em
questionar a opinião daqueles que creditavam à escrita um estatuto idêntico ao do
conhecimento, tal como é a posição de Theuth e Dionísio II. Ambos estão em posições
análogas quanto à escrita: olhando para a leitura, Theuth imagina que a escrita poderia
tornar os homens mais sábios; olhando para o que escreveu, Dionísio julga já se ter
tornado um sábio em virtude disso. Portanto, a crítica que Thamos faz pesar sobre
Theuth parece se aplicar perfeitamente à atitude de Dionísio:
386
Cf. σοφίας δὲ τοῖς μαθηταῖς δόξαν, οὐκ ἀλήθειαν πορίζεις· πολυήκοοι γάρ σοι γενόμενοι ἄνευ διδαχῆς
πολυγνώμονες εἶναι δόξουσιν, ἀγνώμονες ὡς ἐπὶ τὸ πλῆθος ὄντες, καὶ χαλεποὶ συνεῖναι, δοξόσοφοι
γεγονότες ἀντὶ σοφῶν.
387
Um interessante experimento filosófico-literário que consiste em associar a filosofia de Platão aos
debates contemporâneos é a obra de Rebecca Goldstein (2017: Platão no Googleplex: por que a filosofia não
vai desaparecer). Nessa obra, a autora apresenta o inusitado encontro entre Platão e uma assessora editorial
na sede da Google, onde o debate entre informação – hoje virtualmente acessível e infinita na máquina do
Google – e conhecimento é novamente posto em cena com a radical atualidade do pensamento de Platão.
Vejamos o diálogo entre o filósofo e a assessora (Goldstein, 2017, p. 81):
“ – A Google não é a maneira mais poderosa de adquirir conhecimento?
– Sim, confirmei, é uma poderosa ferramenta de pesquisa, mas você não precisa entender como eles
fazem isso para usá-la. Todas as pessoas no mundo ‘googlam’, mas ninguém entende como funciona.
É tecnomágica.
– Se não entendermos nossas ferramentas, há o perigo de nos tornarmos as ferramentas de nossas
ferramentas, disse Platão.”
221
(δεινός). Como afirma Sócrates (275d4), por intermédio da escrita, os homens – como
Dionísio II, eu diria – julgam-se sábios, sem sê-lo (275a9: δοξόσοφοι γεγονότες ἀντὶ
σοφῶν)388. Os “sinais estranhos” representam precisamente os limites da escrita: týpos faz
referência exatamente a isso, às marcas, aos sinais, às impressões, às imagens; palavras
que dão conta de descrever uma experiência radicada no sensível.
Assim, é importante frisar que a crítica contida na passagem não incide sobre toda
escrita, mas somente sobre a pretensão daqueles que a veem como substituto do
conhecimento. Como comenta Hackforth (1997 [1952], p. 167), nisto reside o “perigo da
doxografia”: o leitor acreditar no poder de absorver conhecimentos pela mera leitura.
Não sendo, em suma, um repositório do conhecimento, restaria a ela uma função outra:
a de ser uma via associada à dialética, mas cujos benefícios só são colhidos a depender
dos caminhantes. Crer, por outro lado, que ela representaria o phármakon para o
problema do conhecimento, o ponto final dessa caminhada, seria o mesmo que acreditar,
por exemplo, ser possível possuir todo o saber apenas lendo a Wikipédia.
388
O termo que na passagem faz referência aos que “se julgam sábios” (275b2: δοξοσόφοι) é provavelmente
da lavra de Platão. Conforme Brandwood (1976, p. 257), o termo ocorre apenas no Phdr. 275b2. O substantivo
abstrato doxosophía aparece poucas vezes em diálogos que lhe são posteriores e a ele tematicamente
vinculados: Sof. 231b6, Fil. 49a2, 49d11. O uso desse termo, conforme comenta Centrone (2014, p. 170),
polemiza com a posição de Isócrates (para o quem o sábio – sophós – poderia somente atingir um saber
doxástico). Além disso, parece indiretamente aludir ao sofista – por oposição ao filósofo: parece ecoar, com
efeito, a conhecida definição de sofista, tal como encontramos na conclusão do Sofista (268b10-d4):
ESTR.: E do outro, o que diremos? Sábio ou sofista?
TEET.: É impossível dizer “sábio”, visto que o consideramos não sabedor: sendo, porém, imitador de
um sábio [μιμητὴς τοῦ σοφοῦ], é claro que tomará um nome parecido com o dele, e agora já
compreendo que é preciso verdadeiramente se dirigir ele como o sofista que ele realmente é.
ESTR.: Então vamos amarrá-lo, conforme antes, atando-se-lhe esse nome do início ao fim?
TEET.: Exatamente.
(Cf. {ΘΕΑΙ.} Τὸ μέν που σοφὸν ἀδύνατον, ἐπείπερ οὐκ εἰδότα αὐτὸν ἔθεμεν· μιμητὴς δ' ὢν τοῦ σοφοῦ
δῆλον ὅτι παρωνύμιον αὐτοῦ τι λήψεται, καὶ σχεδὸν ἤδη μεμάθηκα ὅτι τοῦτον δεῖ προσειπεῖν
ἀληθῶς αὐτὸν ἐκεῖνον τὸν παντάπασιν ὄντως σοφιστήν.
{ΞΕ.} Οὐκοῦν συνδήσομεν αὐτοῦ, καθάπερ ἔμπροσθεν, τοὔνομα συμπλέξαντες ἀπὸ τελευτῆς ἐπ'
ἀρχήν;
{ΘΕΑΙ.} Πάνυ μὲν οὖν.)
222
era nova na tradição grega389 e a polissemia desse termo em grego antigo é bem
conhecida: em seu sentido mais usual – “remédio”, “droga” – tal vocábulo pode ser, por
exemplo, percebido em muitas partes do corpus Platonicum390, mas nele também coexiste
assumindo conotações discrepantes: “poção”, “veneno”391. O termo é empregado quatro
vezes no Fedro (230d6, 270b6, 274e6, 275a5) e, na alquimia das palavras de Platão, o seu
emprego nesse diálogo tem como efeito tornar a questão ainda mais complexa,
requisitando-nos atitude interpretativa que enfrente o texto platônico como um
constante desafio para o leitor, que deve tensionar os seus significantes – ou os estranhos
sinais (ἀλλότριοι τύποι) da escrita. Nesse sentido, muita tinta tem sido empregada em
interpretações dessa palavra no Fedro; a mais famosa delas, talvez, seja a de Derrida (2004
[1972]), à qual fizemos menção prévia e preliminar no capítulo III.
Segundo o filósofo franco-argelino, qualquer tentativa hermenêutica que consista
em desfazer a ambiguidade presente no signo – incluindo até mesmo a sua tradução – já
seria, em si, uma derrogação da filosofia de Platão, em prol de um “platonismo”392. Para
389
A associação entre escrita, memória e phármakon estava já presente em muitos autores anteriores a
Platão. Atribuindo a escrita a Prometeu, Ésquilo (Pr. 460-461) já afirmava “combinações de letras, memória
de todas as coisas, artífice-mãe das Musas” (Cf. γραμμάτων τε συνθέσεις,/μνήμην ἁπάντων, μουσομήτορ'
ἐργάνην). Atribuindo-a a Palamedes, observa-se também a associação entre letra e memória em Eurípedes
(TrGF 578, 1): “Inventei para a humanidade as letras – o remédio para o esquecimento –, somente dispondo
corretamente as consoantes, as vogais e as sílabas” (Cf. τὰ τῆς γε λήθης φάρμακ' ὀρθώσας μόνος,/ἄφωνα
φωνήεντα συλλαβὰς τιθεὶς/ἐξηῦρον ἀνθρώποισι γράμματ'). No Elogio de Helena (14), de Górgias de
Leontinos, a relação entre escrita e phármakon também estava posta. Tradução de Aldo Dinucci (2009): “A
mesma relação tem também a potência do discurso para com a boa ordem da alma e a potência dos
medicamentos com relação ao estado natural dos corpos, pois, do mesmo modo que certos medicamentos
expulsam do corpo certos humores, e uns suprimem a doença, outros, a vida, do mesmo modo também,
entre as palavras, umas afligem, outras encantam, outras amedrontam, outras estabelecem confiança nos
ouvintes, outras, através de sórdida persuasão, envenenam e enganam a alma” (Cf. (14) τὸν αὐτὸν δὲ λόγον
ἔχει ἥ τε τοῦ λόγου δύναμις πρὸς τὴν τῆς ψυχῆς τάξιν ἥ τε τῶν φαρμάκων τάξις πρὸς τὴν τῶν σωμάτων
φύσιν. ὥσπερ γὰρ τῶν φαρμάκων ἄλλους ἄλλα χυμοὺς ἐκ τοῦ σώματος ἐξάγει, καὶ τὰ μὲν νόσου τὰ δὲ βίου
παύει, οὕτω καὶ τῶν λόγων οἱ μὲν ἐλύπησαν, οἱ δὲ ἔτερψαν, οἱ δὲ ἐφόβησαν, οἱ δὲ εἰς θάρσος κατέστησαν
τοὺς ἀκούοντας, οἱ δὲ πειθοῖ τινι κακῆι τὴν ψυχὴν ἐφαρμάκευσαν καὶ ἐξεγοήτευσαν.).
390
Na República (3.406d1-3), phármakon é tomado como remédio: “Um carpinteiro, quando está doente,
pretende do médico que lhe dê a beber um remédio que o faça vomitar a causa da doença, ou que o liberte,
purgando-o ou usando de cautérios ou praticando a incisão” (Tradução de M. H da Rocha Pereira, 2014, cf.
Τέκτων μέν, ἦν δ' ἐγώ, κάμνων ἀξιοῖ παρὰ τοῦ ἰατροῦ φάρμακον πιὼν ἐξεμέσαι τὸ νόσημα, ἢ κάτω
καθαρθεὶς ἢ καύσει ἢ τομῇ χρησάμενος ἀπηλλάχθαι). Também no Górgias (467c7-10): “Por exemplo: quem
toma remédio por prescrição médica te parece querer simplesmente o que faz, tomar remédio e sofrer, ou
aquilo em vista do que faz, ter saúde? (Tradução de Daniel R. N. Lopes, 2011, cf. οἷον οἱ τὰ φάρμακα πίνοντες
παρὰ τῶν ἰατρῶν πότερόν σοι δοκοῦσιν τοῦτο βούλεσθαι ὅπερ ποιοῦσιν, πίνειν τὸ φάρμακον καὶ ἀλγεῖν,
ἢ ἐκεῖνο, τὸ ὑγιαίνειν, οὗ ἕνεκα πίνουσιν;).
391
No sentido de “veneno” a palavra vem empregada duas vezes no Fédon, associado à cicuta tomada por
Sócrates. Em 57a1-3: “Equécrates: Estiveste tu mesmo, Fédon, junto de Sócrates no dia em que ele tomou o
veneno na prisão, ou ouviste de alguém?” (Tradução de Carlos A. Nunes, 2011, cf. {ΕΧ.} Αὐτός, ὦ Φαίδων,
παρεγένου Σωκράτει ἐκείνῃ τῇ ἡμέρᾳ ᾗ τὸ φάρμακον ἔπιεν ἐν τῷ δεσμωτηρίῳ, ἢ ἄλλου του ἤκουσας;);
também em 115a7-8: “Acho melhor fazer isso antes de beber o veneno, para não dar às mulheres o trabalho
de lavar o cadáver” (Tradução de Carlos A. Nunes, 2011, cf. δοκεῖ γὰρ δὴ βέλτιον εἶναι λουσάμενον πιεῖν τὸ
φάρμακον καὶ μὴ πράγματα ταῖς γυναιξὶ παρέχειν νεκρὸν λούειν).
392
Cf. Derrida (2004 [1972], p. 297): “Quand un mot s’inscrit comme la citation d’un autre sens de ce même
mot, quand l’avant-scène textuelle du mot pharmakon, tout en signifiant remède, cite, ré-cite et donne à
223
Derrida, seria preciso, portanto, ler o Fedro na composição dessas duas forças ínsitas à
palavra: não há remédio inofensivo; participando da doença e da cura, a escrita é parte
do bem e do mal, do agradável e do desagradável393. Nesse sentido, o phármakon seria, no
sentido derridiano, a condição para compreensão da diferença, ainda que ele próprio
escape a qualquer lógica ou discurso, e nos aprisione dentro de seu sistema, sendo
simultaneamente benéfico e maléfico.
Por essa razão, o exercício de captura de sentidos a partir da leitura de Platão não
pode presumir a compreensão de um sistema definitivo, visto que o texto opera apenas
na revelação de uma aparição, de um espectro (fantôme)394. Ler Platão, portanto, segundo
Derrida, seria sempre o exercício de nos depararmos com a aporia – e nela nos determos,
sem avançarmos nem mais um centímetro.
Se a análise derridiana parece ter o mérito de não reduzir a crítica à escrita contida
na passagem a uma disputa entre a admissão ou inadmissão dessa arte na pesquisa
filosófica, e de considerar, como vimos, a estrutural ambiguidade com que a questão é
formulada; por outro lado, o compromisso com os postulados de uma leitura pós-
moderna deixa à sombra oposições que, malgrado todo o esforço de desconstrução395,
lire ce qui dans le même mot signifie, en un autre lieu et à une autre profondeur de la scène, poison (par
exemple, car pharmakon veut dire encore d’autres choses), le choix d’un seul de ces mots français par le
traducteur a pour premier effet de neutraliser le jeu citationnel, l’« anagramme », et à la limite tout
simplement la textualité du texte traduit. Sans doute pourrait-on montrer, et nous tenterons de le faire le
moment venu, que cette interruption du passage entre des valeurs contraires est lui-même déjà un effet de
« platonisme », la conséquence d’un travail qui a déjà commencé dans le texte traduit, dans le rapport de «
Platon » à sa « langue »”.
393
Cf. Idem, ib., p. 299: “Il n’y a pas de remède inoffensif. Le pharmakon ne peut jamais être simplement
bénéfique. (...) Cette douloureuse jouissance, liée à la maladie tout autant qu’à son apaisement, est un
pharmakon en soi. Elle participe à la fois du bien et du mal, de l’agréable et du désagréable. Ou plutôt c’est
dans sa masse que se dessinent ces oppositions”.
394
Cf. Derrida (2004 [1972], p 305): “Et si l’on en venait à penser que quelque chose comme le pharmakon –
ou l’écriture –, loin d’être dominé par ces oppositions, on ouvre la possibilité sans s’y laisser comprendre;
si l’on en venait à penser que c’est seulemente à partir de quelque chose de tel que l’écriture – ou que le
pharmakon – que peut s’annoncer l’étrange différence entre le dedans e le dehors; si par conséquent l’on
en venait à penser que l’écriture comme pharmakon ne se laisse pas assigner simplement un site dans ce
qu’elle situe, ne se laisse pas subsumer sous les concepts qui à partir d’elle se décident, n’abandonne que
son fantôme à la logique qui ne peut vouloir la dominer qu’à procéder encore d’elle même, il faudrait alors
plier à d’étranges mouvements ce qu’on ne pourrait même plus appeler simplement à la logique ou le
discours”.
395
Com o projeto de ir além da crítica de Nietzsche à filosofia moderna, Jacques Derrida (1930-2004), na
sequência de outros autores “pós-modernos”, como Hans-Georg Gadamer (1900-2002), Martin Heiddegger
(1989-1976) e Leo Strauss (1989-1973), contribuíram para desmantelar completamente a pretensão de
racionalismo da filosofia ocidental, a começar pela releitura da obra de Platão. No caso de Derrida,
particularmente, a leitura de Platão em uma chave ético-política, se não contribuiu para minar as bases de
uma história da metafísica, ao menos a compreendeu bastante limitada a esses domínios. Revelou, desse
modo, um Platão muito pouco doutrinário, consciente da dificuldade de ir além em suas teses metafísicas.
O intuito de Derrida é sugerir que a História da Filosofia engendrou uma leitura excessivamente
racionalista da obra dos antigos e que o excesso de racionalismo é mais perigoso do que a especulação
cética. Assim, desconstruindo o racionalismo filosófico, Derrida pretende deslegitimizá-lo como um braço
que apoia (e sempre apoiou) toda forma de totalitarismo. Do ponto de vista teórico, a consequência disso
foi desfazer todas as distinções que decorreriam do platonismo, em termos dos quais a filosofia moderna
224
ainda se nos afiguram incontornáveis: as separações realizadas no campo do lógos (retórico
e dialético), que abarcam outras distinções fundamentais para a compreensão da
passagem: memória/reminiscência vs. recordação; conhecimento interno (ligado à
psykhé) vs. conhecimento externo (ligado às impressões, aos týpoi da escritura).
Ainda que venhamos a concordar com Derrida com o fato de que as linhas que
demarcam fronteiras entre sofística e filosofia não sejam tão definidas – a ponto de, em
muitos momentos, o filósofo e o sofista trocarem de posição396 – e que sustentar uma
contraposição forte entre a escrita sofística e a escrita platônica seria, de certo modo,
corroborar um platonismo à la Hegel397 – não nos parece possível desconstruir todas as
distinções que se nos afiguram efetivamente platônicas em prol de combater o
“platonismo” – a menos que tal operação represente, como o próprio Derrida propõe,
“um pequeno exercício” que subverta completamente a ordem do comentário398, o qual,
entretanto, não é aqui o nosso caso. Assim sendo, além do “fim de linha” que a chave de
leitura pós-moderna derridiana de Platão nos sugere399, ainda nos interessa,
efetivamente, compreender questões que lhe escapam: por que Platão, afinal, escolhe o
vocábulo phármakon para caracterizar a escrita? Se a ambiguidade medicamento/veneno
permanece latente, o que ela cura e o que envenena e qual sua relação com a memória?
A relação entre conhecimento, linguagem, doença e cura que, em última análise,
justifica e, em certa medida, explica a metáfora farmacológica que se estende no Fedro
manifesta-se ao longo de todo o diálogo. Ao se encontrar com Fedro, Sócrates afirma ser
225
um “doente por ouvir discursos” (Phdr. 228b6-7: τῷ νοσοῦντι περὶ λόγων ἀκοήν) e, logo
na sequência, na mesma fala, ser “um amante de discursos” (228c1-2: τοῦ τῶν λόγων
ἐραστοῦ). Ora, se o “amante” por discursos é o mesmo que se disse “doente” por eles, a
aproximação das duas expressões, nesse mesmo contexto dialógico, convida-nos a
estabelecer um paralelo entre universo da “doença” (νόσος) e o do “amante” (ἐραστής) –
paralelo ainda mais evidente conforme aflora a associação entre éros e doença que
sustenta as teses dos discursos na sequência proferidos por Fedro e Sócrates400.
Nesse sentido, se leitura que apresentamos no capítulo II estava correta em
apontar que o tratamento conferido a éros e lógos no Fedro poderia ser entendido como a
demonstração do procedimento da divisão (διαίρεσις) – i.e. de uma operação própria da
dialética – procedimento com o qual Platão teria, por meio dos discursos de Sócrates e
Fedro, logrado estabelecer uma espécie de fissura nesses dois campos e nos permitido
reconhecer uma demarcação, por assim dizer, entre gêneros distintos (um lógos e um éros
efusivos, arrebatadores e irracionais versus um éros e um lógos, equilibrados, racionais,
divinos e dialéticos), poderíamos aqui talvez estender essa divisão à noção de doença – e,
por conseguinte, cura – ambas relacionadas ao lógos? Seria possível concluir que haveria
também dois gêneros de doença, a requisitarem, cada um a seu modo, um gênero de
phármakon apropriado? Se este é o caso, a noção de “doença”, que evoca sentidos, a priori,
francamente negativos; quando ligada ao lógos, entretanto, teria sofrido um completo
renversement – operação análoga à que, conforme apontamos atrás, Platão cumpre
realizar com o tratamento conferido a outros temas, tais como à manía e à psykhagogía,
quando também relacionadas ao lógos.
Um indício textual que pesa a favor dessa interpretação também se pode
encontrar no mesmo contexto. Não nos parece ligeira a observação de Sócrates ao se
declarar como um “companheiro coribântico” (228b7: συγκορυβαντιῶντα). O termo,
oriundo do vocabulário religioso arcaico, evoca, em uma conotação mais imediata,
aqueles que se associam (συν-) aos rituais dos Coribantes (Κορύβαντες), que era o nome
dado aos sacerdotes de origem frígio-cretense ligados à deusa Cibele e cuja performance
ritual consistia em longas sessões de delírio e frenesi401. Metaforicamente, Sócrates
parece querer aludir ao estado extático (um enthousiasmós) em que se vê envolvido
400
Conforme vemos, por exemplo, na observação de Fedro (236a8-b2): “Concederei que partas do
pressuposto de ser o enamorado mais doente que o não enamorado (...)”. (Cf. τὸ μὲν τὸν ἐρῶντα τοῦ μὴ
ἐρῶντος μᾶλλον νοσεῖν δώσω σοι ὑποτίθεσθα).
401
As fontes antigas ligadas aos coribantes podem ser conferidas em Eurípedes, (Ba. 121; Hipp. 143) e,
sobretudo, em Platão (além dessa passagem do Fedro, também se entram menções em: Cri. 54d2-5, Smp.
215c5-6, Euthd. 227d4-e2, Lg. 7. 790c5-791b1). Para referências modernas, cf. Linforth (1946).
226
quando ouve discursos, o que, conforme comenta Yunis (2014, p. 89), antecipa a relação
estabelecida entre manía, éros e lógos, que se manifesta, conforme vimos, em sentidos
opostos no primeiro discurso de Sócrates (237a-241d) e na palinódia (243e-257b). Assim, a
alusão aos ritos extáticos associados aos Coribantes evocaria, a um tempo, tanto o êxtase
irracional dos que se veem iludidos pela pretensa aparência de sabedoria dos discursos
retóricos – com efeito, como apontamos antes, Sócrates viria a qualificar a experiência de
ouvir o discurso de Lísias como um “delírio báquico” (234d6: συνεβάκχευσα) – quanto
pela singular experiência de experimentar um delírio, possuído por um deus
(ἐνθουσιάζων), quando se é sujeito da contemplação das coisas em si, franqueada pelo
exercício filosófico (249c5-d1).
Nesse sentido, compreende-se a filosofia não somente como éros, mas também
como delírio e iniciação extática; aquilo que poderia, de outro modo, ser concebido como
uma doença – uma irracional e descontrolada subjugação da psykhé402 – passa,
justamente, a ser compreendido também como a possibilidade de sua liberdade403. As
palavras em Platão, portanto, novamente são sujeitas a um renversement de sentidos, e o
fruto dessas disassociações e congruências constitui exemplificação da dialética. Se a
doença (νόσος) – como o amor (ἔρως) e a loucura (μανία) – é compreendida, portanto,
nas tensões que emergem do diálogo – no jogo de associações e distinções tecidas na
malha do lógos de Platão – por que não o seria assim também com a escrita, que é, afinal,
parte do lógos? Se essa análise estiver correta, então a ambígua valência dos sentidos de
phármakon parece-nos bastante apropriada para referir-se metaforicamente à arte das
letras. Vejamos.
A primeira ocorrência do termo phármakon no texto (230d6), já associado ao
discurso, aparece no âmbito de uma inusitada imagem: Sócrates alega que a promessa de
ouvir o discurso de Lísias é o phármakon que o leva a sair de Atenas, em companhia de
Fedro. O phármakon impele Sócrates a avançar, como a visão de um alimento, quando
oferecido à frente de um animal, incita-o a se movimentar, uma imagem que vale a pena
ser destacada:
402
Nesse primeiro sentido, a “doença”, “loucura” ou “amor” associado ao apaixonado, como notamos no
discurso de Lísias/Fedro, 231d2-d5: “Pois o próprio apaixonado admite que está mais doente do que munido
de bom senso, sabe que pensa mal, mas não consegue ter domínio de si” (Cf. καὶ γὰρ αὐτοὶ ὁμολογοῦσι
νοσεῖν μᾶλλον ἢ σωφρονεῖν, καὶ εἰδέναι ὅτι κακῶς φρονοῦσιν, ἀλλ'οὐ δύνασθαι αὑτῶν κρατεῖν·
403
249d4-7: “E é para este ponto então que conduz todo o discurso relativos à quarta loucura: aquela que,
quando alguém ao ver o belo daqui, do verdadeiro tendo uma reminiscência, torna-se alado e uma vez
provido de novas asas deseja ardentemente voar” (Cf. Ἔστι δὴ οὖν δεῦρο ὁ πᾶς ἥκων λόγος περὶ τῆς
τετάρτης μανίας – ἣν ὅταν τὸ τῇδέ τις ὁρῶν κάλλος, τοῦ ἀληθοῦς ἀναμιμνῃσκόμενος, πτερῶταί τε καὶ
ἀναπτερούμενος προθυμούμενος ἀναπτέσθαι).
227
Tu, no entanto, pareces ter descoberto a droga (τὸ φάρμακον) para me
fazer pegar a estrada. E, tal como quem quer tocar em frente um animal
faminto e por isso aproxima dele um galho de fruta ou legume, também
tu estendes para mim discursos em manuscritos, e assim pareces que
podes me levar por toda a Ática, aonde quiseres.404
(Phdr. 230d5-e1)
404
Cf. σὺ μέντοι δοκεῖς μοι τῆς ἐμῆς ἐξόδου τὸ φάρμακον ηὑρηκέναι. ὥσπερ γὰρ οἱ τὰ πεινῶντα θρέμματα
θαλλὸν ἤ τινα καρπὸν προσείοντες ἄγουσιν, σὺ ἐμοὶ λόγους οὕτω προτείνων ἐν βιβλίοις τήν τε Ἀττικὴν
φαίνῃ περιάξειν ἅπασαν καὶ ὅποι ἂν ἄλλοσε βούλῃ.)
405
238b7-c3: “Ora, quando o desejo desprovido de razão domina uma opinião instigada pelo certo dirigindo-
se ao prazer do belo e quando, vigorosamente teso por desejos que lhe são congênitos e voltados à beleza
dos corpos, ele vence por fim a conduta, ao tomar de tal vigor o nome, é chamado amor”. (Cf. ἡ γὰρ ἄνευ
λόγου δόξης ἐπὶ τὸ ὀρθὸν ὁρμώσης κρατήσασα ἐπιθυμία πρὸς ἡδονὴν ἀχθεῖσα κάλλους, καὶ ὑπὸ αὖ τῶν
ἑαυτῆς συγγενῶν ἐπιθυμιῶν ἐπὶ σωμάτων κάλλος ἐρρωμένως ῥωσθεῖσα νικήσασα ἀγωγῇ, ἀπ' αὐτῆς τῆς
ῥώμης ἐπωνυμίαν λαβοῦσα, ἔρως ἐκλήθη.)
406
245c4-9: “Eis o princípio da demonstração. Toda alma é imortal. Pois o que é sempre móvel é imortal,
enquanto o que move outro e por outro é movido, cessando o movimento, cessa também a vida” (cf. ἀρχὴ
δὲ ἀποδείξεως ἥδε. Ψυχὴ πᾶσα ἀθάνατος. τὸ γὰρ ἀεικίνητον ἀθάνατον· τὸ δ' ἄλλο κινοῦν καὶ ὑπ' ἄλλου
κινούμενον, παῦλαν ἔχον κινήσεως, παῦλαν ἔχει ζωῆς).
228
deuses, à dignidade dos inteligíveis, possibilitado mediante um processo ligado à
memória: “[Os seguidores de Zeus, i.e. os filósofos] prosperam pela necessidade de pôr os
olhos intensamente na direção do deus, inspirados e alcançando-os pela memória”
(253a1-3)407. Nesse sentido, um éros que traduz o domínio do desejo (ἐπιθυμία), carente de
razão (λόγος), só pode resultar mesmo em apartar o amado da filosofia408 e, por outro
lado, a filosofia consiste em atribuir ao lógos o papel de diretor do movimento anímico,
para o qual a memória tem papel central409.
Se a primeira aparição do phármakon no texto o associa, como vimos até aqui, a
essa espécie de domínio sobre a alma, privando-a da razão e afastando-a da filosofia; se
phármakon está associado às letras escritas (aos manuscritos que Fedro trazia consigo),
poder-se-ia concluir, completando-se o silogismo, que a escrita afasta, portanto, a alma
de seu caminho filosófico? Se nos limitarmos a essa passagem, seremos forçados a admitir
que sim. Entretanto, como apontamos acima, Platão, ao longo do Fedro, desafia o leitor
diante da polissemia dos significantes, como já podemos testemunhar na segunda
passagem em que o termo ocorre no diálogo:
407
Cf. διὰ τὸ συντόνως ἠναγκάσθαι πρὸς τὸν θεὸν βλέπειν, καὶ ἐφαπτόμενοι αὐτοῦ τῇ μνήμῃ
ἐνθουσιῶντες.
408
239a8-b4: “É inevitável que seja então um invejoso e, ao apartá-lo de muitas outras convivências úteis
que poderiam fazer do amado um verdadeiro homem, é também causador de um grande dano – e do maior
de todos, se o aparta daquela que faria dele alguém mais sábio, que vem a ser justamente a divina filosofia”.
(Cf. φθονερὸν δὴ ἀνάγκη εἶναι, καὶ πολλῶν μὲν ἄλλων συνουσιῶν ἀπείργοντα καὶ ὠφελίμων ὅθεν ἂν
μάλιστ' ἀνὴρ γίγνοιτο, μεγάλης αἴτιον εἶναι βλάβης, μεγίστης δὲ τῆς ὅθεν ἂν φρονιμώτατος εἴη. τοῦτο δὲ
ἡ θεία φιλοσοφία τυγχάνει ὄν).
409
Nessa passagem do Fedro, aparece como subtexto a importante reflexão sobre alma proposta na
República, em suas três partes: cabe à parte da alma que raciocina (λογιστικόν) ser a diretora do processo
de conhecimento, não a parte desejante (ἐπιθυμετικόν) ou impulsiva (θυμοειδής), cf. R. 4.435c-441e; IX,
580d-581b. Quando o desejo (ἐπιθυμία) assume o controle, cede-se espaço para a tirania, e éros se torna o
absoluto tirano da alma (R. 574d1-575a6). Além disso, como também está na República (6.486d1-3), a memória
é atributo indissociável da alma do filósofo.
410
Cf. {ΣΩ.} Ὁ αὐτός που τρόπος τέχνης ἰατρικῆς ὅσπερ καὶ ῥητορικῆς.
{ΦΑΙ.} Πῶς δή;
{ΣΩ.} Ἐν ἀμφοτέραις δεῖ διελέσθαι φύσιν, σώματος μὲν ἐν τῇ ἑτέρᾳ, ψυχῆς δὲ ἐν τῇ ἑτέρᾳ, εἰ μέλλεις,
μὴ τριβῇ μόνον καὶ ἐμπειρίᾳ ἀλλὰ τέχνῃ, τῷ μὲν φάρμακα καὶ τροφὴν προσφέρων ὑγίειαν καὶ ῥώμην
ἐμποιήσειν, τῇ δὲ λόγους τε καὶ ἐπιτηδεύσεις νομίμους πειθὼ ἣν ἂν βούλῃ καὶ ἀρετὴν παραδώσειν.
229
A interpretação dessa passagem nos leva, se não a reverter, ao menos a colocar em
suspensão a conclusão a que teríamos chegado a partir daquela primeira (230d5-e1). A
relação entre doença e cura volta à tona no paralelo que Sócrates desenvolve entre a arte
da medicina (τέχνη ἰατρική) e da retórica (ῥητορική)411. Considerando que esta primeira
arte incida sobre corpo (270b4: σώματος) e a segunda sobre a alma (270b5: ψυχῆς),
Sócrates antecipa o tema da psicagogia, associada ao lógos, conforme examinamos no
capítulo II, mas afirma, ligeiramente, aquilo que mais particularmente nos interessa
neste momento: é necessário ser capaz de distinguir a natureza (270b4: δεῖ διελέσθαι
φύσιν). O termo dielésthai (“separar”, “discernir”, “dividir”, “distinguir”) remete-nos
àquelas operações do lógos que, como Platão já apresentara, ensinam a “falar e a pensar”
(266b4-5: λέγειν τε καὶ φρονεῖν) e que se poderiam chamar de dialética412.
Ora, o que Platão nos sugere é a necessidade de submetermos as opiniões ao crivo
desse processo dialético. Nesse sentido, não basta nos limitarmos a avaliar um problema
somente em uma direção, mas é condição fundamental apreender distinções413: a
411
As associações entre a arte do lógos e a saúde da alma, por um lado; e medicina e saúde do corpo, por outro,
também não é nova no Fedro. No Górgias (463b-466a), Sócrates delineia, embora com mais complexidade,
essa relação através de um jogo duplo de oposições: 1. artes (τέχναι) vs. lisonjas (κολακείαι); 2. tendo a alma
(ψυχή) por objeto vs. tendo o corpo (σῶμα) por objeto, conforme o quadro abaixo (em Lopes, 2011, p. 232):
ALMA CORPO
ARTE/τέχνη corretiva Justiça Medicina
regulativa Legislação Ginástica
ALMA CORPO
LISONJA/κολακεία corretiva Retórica Culinária
regulativa Sofística Indumentária
412
Vale a pena reproduzir novamente a passagem em 266b3-c9:
SÓCRATES: Pois bem, eu mesmo de fato sou um amante, Fedro, de tais divisões e reuniões, que
tornam capaz de falar e de pensar. E, se penso que qualquer outro é apto a olhar para o uno e para
o múltiplo como entidades naturais, persigo-o “no encalço de seus passos, como a um deus”. E, por
certo, aos que são capazes de executá-lo – se trato-os corretamente ou não, só um deus há de saber
– chamo-os por enquanto de dialéticos. Mas, diz agora, como se devem chamar aqueles que
aprendem junto contigo ou com Lísias? Ou é isso porventura aquilo: a arte dos discursos de que
Trasímaco e tantos outros se serviram, tornando-se eles próprios sábios no falar e fazendo o mesmo
de outros – de quantos quiserem cumulá-los de presentes, como se fossem reis?
FEDRO: São de fato homens régios, mas não tem ciência daquilo que interrogas. E, a mim, pareces
chamar essa forma pelo nome correto, chamando-a de dialética. Mas a retórica parece que ainda
nos escapa.
(Cf. {ΣΩ.} Τούτων δὴ ἔγωγε αὐτός τε ἐραστής, ὦ Φαῖδρε, τῶν διαιρέσεων καὶ συναγωγῶν, ἵνα οἷός τε ὦ
λέγειν τε καὶ φρονεῖν· ἐάν τέ τιν' ἄλλον ἡγήσωμαι δυνατὸν εἰς ἓν καὶ ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ' ὁρᾶν,
τοῦτον διώκω “κατόπισθε μετ' ἴχνιον ὥστε θεοῖο.” καὶ μέντοι καὶ τοὺς δυναμένους αὐτὸ δρᾶν εἰ μὲν
ὀρθῶς ἢ μὴ προσαγορεύω, θεὸς οἶδε, καλῶ δὲ οὖν μέχρι τοῦδε διαλεκτικούς. τὰ δὲ νῦν παρὰ σοῦ τε
καὶ Λυσίου μαθόντας εἰπὲ τί χρὴ καλεῖν· ἢ τοῦτο ἐκεῖνό ἐστιν ἡ λόγων τέχνη, ᾗ Θρασύμαχός τε καὶ
οἱ ἄλλοι ρώμενοι σοφοὶ μὲν αὐτοὶ λέγειν γεγόνασιν, ἄλλους τε ποιοῦσιν, οἳ ἂν δωροφορεῖν αὐτοῖς
ὡς βασιλεῦσιν ἐθέλωσιν;
{ΦΑΙ.} Βασιλικοὶ μὲν ἇνδρες, οὐ μὲν δὴ ἐπιστήμονές γε ὧν ἐρωτᾷς. ἀλλὰ τοῦτο μὲν τὸ εἶδος ὀρθῶς
ἔμοιγε δοκεῖς καλεῖν, διαλεκτικὸν καλῶν· τὸ δὲ ῥητορικὸν δοκεῖ μοι διαφεύγειν ἔθ' ἡμᾶς.)
413
270c10-d8: “Ora, não se deveria pensar sobre a natureza de seja lá o que for da seguinte maneira: primeiro,
se aquilo sobre o que queremos nós próprios ter o domínio da arte ou capacitar um outro é simples ou de
muitas formas; depois, caso seja simples, investigar o seu poder – qual o que naturalmente tem para atuar
230
linguagem (a escrita, em particular) certamente não é um objeto simples, o que exige uma
reavaliação, de modo a perceber as tensões inerentes a suas diferentes formas. Somente
após esse exercício é que, então, teremos a oportunidade de nos posicionar com mais
correção quanto aos possíveis benefícios ou malefícios que ela engendra.
Logo, essa atitude intelectual sugerida para o exame da questão – uma abordagem
dialética – implica assumir a complexidade do problema, do que decorre não podermos
sustentar uma leitura redutora desse phármakon, quando se lhe aprecia apenas um de
seus sentidos. A reflexão que essa passagem enseja, que se apresenta como antessala
daquela em que Sócrates e Fedro realizam sobre a escrita ao longo da narrativa do Mito
de Theuth, indica-nos, portanto, de que maneira interpretar as duas últimas ocorrências
desse termo (274e6 e 275a5), já no cerne dessa narrativa. Vejamos como aparecem nas falas
dos dois personagens do mito:
e em quê – e, caso tenha diversas formas, tendo-as enumerado, deve-se observar em cada uma exatamente
o que foi visto para a única – com qual naturalmente faz o que ou sofre o que pela ação de quê”. (Cf. ἆρ' οὐχ
ὧδε δεῖ διανοεῖσθαι περὶ ὁτουοῦν φύσεως· πρῶτον μέν, ἁπλοῦν ἢ πολυειδές ἐστιν οὗ πέρι βουλησόμεθα
εἶναι αὐτοὶ τεχνικοὶ καὶ ἄλλον δυνατοὶ ποιεῖν, ἔπειτα δέ, ἂν μὲν ἁπλοῦν ᾖ, σκοπεῖν τὴν δύναμιν αὐτοῦ,
τίνα πρὸς τί πέφυκεν εἰς τὸ δρᾶν ἔχον ἢ τίνα εἰς τὸ παθεῖν ὑπὸ τοῦ, ἐὰν δὲ πλείω εἴδη ἔχῃ, ταῦτα
ἀριθμησάμενον, ὅπερ ἐφ' ἑνός, τοῦτ' ἰδεῖν ἐφ' ἑκάστου, τῷ τί ποιεῖν αὐτὸ πέφυκεν ἢ τῷ τί παθεῖν ὑπὸ τοῦ;)
414
Cf. ἐπειδὴ δὲ ἐπὶ τοῖς γράμμασιν ἦν, “Τοῦτο δέ, ὦ βασιλεῦ, τὸ μάθημα,” ἔφη ὁ Θεύθ, “σοφωτέρους
Αἰγυπτίους καὶ μνημονικωτέρους παρέξει· μνήμης τε γὰρ καὶ σοφίας φάρμακον ηὑρέθη.” ὁ δ' εἶπεν· “Ὦ
τεχνικώτατε Θεύθ, ἄλλος μὲν τεκεῖν δυνατὸς τὰ τέχνης, ἄλλος δὲ κρῖναι τίν' ἔχει μοῖραν βλάβης τε καὶ
ὠφελίας τοῖς μέλλουσι χρῆσθαι· καὶ νῦν σύ, πατὴρ ὢν γραμμάτων, δι' εὔνοιαν τοὐναντίον εἶπες ἢ δύναται.
τοῦτο γὰρ τῶν μαθόντων λήθην μὲν ἐν ψυχαῖς παρέξει μνήμης ἀμελετησίᾳ, ἅτε διὰ πίστιν γραφῆς ἔξωθεν
ὑπ' ἀλλοτρίων τύπων, οὐκ ἔνδοθεν αὐτοὺς ὑφ' αὑτῶν ἀναμιμνῃσκομένους· οὔκουν μνήμης ἀλλὰ
ὑπομνήσεως φάρμακον ηὗρες.
231
da escrita relacionada a uma faculdade que se aprende e, portanto, se ensina. Mediante
essa instrução, os egípcios poderiam ser tornar mais sábios (σοφωτέρους) e com mais
memória (μνημονικωτέρους). Está postulado, portanto, aquele ponto de vista que
examinamos no último item: que estabelece uma relação causal entre as letras – algo que
se aprende – e a sabedoria. A réplica do rei reconhece nas letras o efeito contrário: ela é
prejudicial à memória, porque leva os homens ao esquecimento em suas almas (λήθην
μὲν ἐν ψυχαῖς), visto que o processo de rememoração (ἀνάμνησις) seria por ela
prejudicado, por passar a se estabelecer mediante um evento externo (ἔξωθεν) e não
interno à alma (οὐκ ἔνδοθεν).
Diante dessa passagem, perguntamo-nos: o que haveria de comum nas falas de
Theuth e Thamos? Αmbos concordam com a premissa de que sabedoria (σοφία) esteja
ligada à memória (μνήμη). A divergência entre os dois reside no fato de que, enquanto
aquele sublinha o papel da escrita como phármakon que gera a sabedoria (auxiliando a
memória), este lhe atribui o papel de phármakon que, em sentido contrário, causa
esquecimento na alma dos aprendizes (por levar a um descuido com a memória).
Enquanto para Theuth a escrita é aliada da memória; para Thamos, porém, é inimiga;
para aquele, ela torna os seres mais sábios; para este pode somente prestar auxílio à
recordação (ὑπόμνησις), sem levá-los à rememoração (ἀνάμνησις).
Considerando essas observações, parece-nos claro, portanto, que, no que tange ao
processo de conhecer, a divergência diz respeito à relação entre escrita e memória. Que a
memória seja parte central do processo cognitivo, parece não haver dúvida entre os
personagens; por isso, antes de mais nada, é mister analisarmos seu papel no diálogo.
232
3. “rememoração” (ἀνάμνησις) – expressa pelo particípio anamimneiskoménous
(274a4).
Apesar da notável concentração desses termos nessa passagem específica,
poderíamos afirmar que a questão da memória (tomada em sentido amplo) perpassa todo
o Fedro, sendo antecipada já no seu prólogo (228a2), conforme comentamos no capítulo
II. Com efeito, se partirmos de um simples levantamento lexical, é possível notar que os
termos associados à memória aparecem ao longo de todo o diálogo415, podendo ser
reunidos em torno de dois contextos dialéticos principais416:
1. no âmbito do mito descrito na palinódia socrática, em que as noções ligadas à
memória estão associadas, embora não exclusivamente, à atividade do filósofo, sendo ali
tomadas como elemento fundamental para o movimento, via pensamento, que seria
capaz de o reaproximar de uma anterior visão das Formas417;
2. no âmbito do mito de Theuth e das discussões que o seguem, onde estão
associadas ao problema da escrita e do conhecimento418.
Embora esses dois contextos não sejam partes contíguas do diálogo e,
aparentemente, sejam motivados por diferentes enjeux discursivos – o primeiro tratando-
se de um esforço de determinação de éros; o segundo, de uma tentativa de refletir sobre a
conveniência da escrita – indagamos: seria possível estabelecer uma aproximação entre
eles para neles compreender as noções ligadas à memória no Fedro?
Uma primeira semelhança, a mais óbvia, diz respeito ao enquadramento mítico
das passagens: em ambos os contextos, personagens de natureza divina se afiguram no
centro das narrativas. Isso quer dizer que, para compreendermos as noções relacionadas
à memória no Fedro, precisamos fazer um esforço de despojá-la, o quanto possível, de sua
roupagem mítica, intento, entretanto, nem sempre possível: no mais das vezes é preciso
415
Conforme está em Brandwood (1976), os termos ligados ao substantivo mnéme e ao verbo mimnésko
aparecem nas seguintes passagens: 234b2, 249c5, 250c7, 251d6, 250a5, 254b5, 263d2, 267a5, 274e6, 275a3, 275a5.
Os termos ligados ao substantivo hypómnesis e ao verbo hypomimnesko aparecem em: 241a5, 249c7, 266d7,
267d5, 275a5, 275d1, 276d3, 277b4, 278a1. Os termos ligados ao substantivo anámnesis e à forma verbal
correspondente anamimneskomai aparecem em: 249c2, 249d6, 250a1, 254d4, 272c4, 275a4.
416
Fora desses dois grupos, restam também três ocorrências em que os termos associados à memória dizem
respeito à dimensão técnica da retórica: 228a2, 267a5, 267d5. Como nosso objetivo é observar o significado
da memória no âmbito da relação entre memória, conhecimento e escrita, e também por já termos
amplamente comentado sobre a relação entre retórica e filosofia, não abordaremos esse grupo aqui.
Limitamo-nos a dizer que, ainda no prólogo, a noção de memória aparece quando Fedro, diante do pedido
que Sócrates lhe faz para declamar o discurso de Lísias, afirma não ser digno daquele orador para dizê-lo
de memória (228a2: ἀπομνημονεύσειν). Depois disso, as outras duas ocorrências do termo ligadas à retórica
estão no âmbito da discussão que Fedro e Sócrates empreendem, justamente, sobre os recursos técnicos da
retórica: em 267a5, ligado à expressão de fórmula retórica mnemônica, metrificada (ἐν μέτρῳ λέγειν
μνήμης); em 267d5, ligado à ideia de que o epílogo do discurso deveria “relembrar” (ὑπομνῆσαι) os ouvintes
do que foi apresentado.
417
Cf. 249c2, 249c5, 249c7, 249d6, 250a1, 250a5, 250c7, 251d6, 254b5, 254d4.
418
Cf. 274e6, 275a3, 275a4, 275a5, 275d1, 276d3, 277b4, 278a.
233
ler através das imagens nas quais elas estão apresentadas. Em segundo lugar, parece
também razoável aproximar os dois contextos no que tange à sua motivação
epistemológica: enquanto na palinódia se retrata o filósofo como quem, movido por éros,
parte em busca de um conhecimento perdido (aquela prévia visão que ele teria tido do
ser); no segundo, a escrita é oferecida como um presente para propiciar a sabedoria aos
mortais. Finalmente, ligado a essa questão, um terceiro paralelo é ainda concebível: tanto
no contexto da palinódia, quanto no do mito de Theuth, o conhecer está relacionado a
um “rememorar” (ἀναμιμνήσκομαι). Dito de outro modo, isso significa que a distinção
entre anámnesis e hypómnesis, que está ínsita à fala do rei Thamos, parece não somente
dizer respeito a uma concepção de aprendizagem compartilhada entre ele e Theuth, mas
parece corresponder também à própria busca do conhecimento que caracterizava o
filósofo movido por éros, na palinódia.
Voltemos à passagem para compreender essas distinções:
419
Cf. τοῦτο γὰρ τῶν μαθόντων λήθην μὲν ἐν ψυχαῖς παρέξει μνήμης ἀμελετησίᾳ, ἅτε διὰ πίστιν γραφῆς
ἔξωθεν ὑπ' ἀλλοτρίων τύπων, οὐκ ἔνδοθεν αὐτοὺς ὑφ' αὑτῶν ἀναμιμνῃσκομένους· οὔκουν μνήμης ἀλλὰ
ὑπομνήσεως φάρμακον ηὗρες.
234
mas somente à anámnesis, ou seja, o recordar que se produz internamente à psykhé
(ἔνδοθεν) e que, como está implícito na etimologia da palavra, sugere ainda a ideia de um
movimento: o termo anámnesis é formado pelo mesmo radical de mnéme, a partícula
preverbal ana- introduz à semântica dessa palavra as noções de “para cima”, “de baixo
para o alto”, ou, ainda, “para trás”. (cf. LSJ, Bailly, 2000).
Se a noção de movimento “para trás” e “para cima”, contida na partícula ana-, é
inerente à noção de anámnesis e esta, conforme vimos, é associada ao aprender, em que
consiste esse movimento da alma ligado ao aprendizado? Para responder a isso,
poderíamos talvez associar essa passagem àquela da palinódia (Phdr. 243e-257b), onde a
noção de movimento relacionado à alma se apresentara, sob a forma mítica, na imagem
do percurso de uma biga alada, e onde a própria alma fora definida como um princípio
automovente e causador de movimento (245c5-246a2). A possibilidade dessa
aproximação sugere, portanto, que a noção de memória contida no mito de Theuth tem
como premissa as reflexões sobre a alma presentes na palinódia: as noções de éros e
grámmata estão, assim, conectadas pelas reflexões em torno da memória e do
conhecimento que tocam a ambas. Vejamos.
Sabemos que Sócrates havia comparado a alma humana à imagem de uma biga
alada e seu condutor (246a7: ὑποπτέρου ζεύγους τε καὶ ἡνιόχου), cuja potência era
estabelecer uma espécie de comunhão entre homens e o divino (246a7: κεκοινώνηκε τοῦ
θείου)420, em um movimento que busca o conhecimento, isto é o belo, o sábio e o bom
(246e1: τὸ δὲ θεῖον καλόν, σοφόν, ἀγαθόν). Entretanto, em relação aos deuses, as almas
dos mortais diferiam quanto à natureza: enquanto a carruagem divina transitava nas
regiões supracelestes, propulsionadas por corcéis dóceis e equilibrados, progredindo sem
dificuldade, a carruagem alada das almas humanas avançava duramente, vencendo a
resistência de um dos seus cavalos, que era pesado, mal e reconduzia a biga para a terra421,
até que, finalmente, o conjunto psíquico também teria definitivamente perdido suas asas
(πτερορρυήσασα). Restaria finalmente ao homem, uma vez perdida suas asas, apenas o
engajar-se em um esforço de compreensão, como vemos na passagem:
420
246d6-e1: “A capacidade natural da asa consiste em conduzir o pesado para cima: ela eleva-o ao alto onde
tem morada a estirpe dos deuses. Dentre o que é corporal, de algum modo é ela quem tem maior
comunidade com o divino. Ora, o divino é belo, é sábio, bom e tudo o mais de tal qualidade” (Cf. Πέφυκεν
ἡ πτεροῦ δύναμις τὸ μβριθὲς ἄγειν ἄνω μετεωρίζουσα ᾗ τὸ τῶν θεῶν γένος οἰκεῖ, κεκοινώνηκε δέ πῃ
μάλιστα τῶν περὶ τὸ σῶμα τοῦ θείου [ψυχή], τὸ δὲ θεῖον καλόν, σοφόν, ἀγαθόν, καὶ πᾶν ὅτι τοιοῦτον·).
421
247b1-5: “Enquanto a carruagem dos deuses, por estarem em equilíbrio, são dóceis ao freio e avançam
com facilidade, as outras, por sua vez, o fazem a custo, pois o cavalo que participa do mal é pesado, e puxa
para a terra levando o auriga que não o treinou bem (Cf. ᾗ δὴ τὰ μὲν θεῶν ὀχήματα ἰσορρόπως εὐήνια ὄντα
ῥᾳδίως πορεύεται, τὰ δὲ ἄλλα μόγις· βρίθει γὰρ ὁ τῆς κάκης ἵππος μετέχων, ἐπὶ τὴν γῆν ῥέπων τε καὶ
βαρύνων ᾧ μὴ καλῶς ἦν τεθραμμένος τῶν ἡνιόχων)
235
Com efeito, um homem deve compreender o que é dito de acordo com
uma forma, indo das múltiplas percepções à unidade reunida pelo
raciocínio: e isso é a reminiscência (ἀνάμνησις) daquilo que um dia
nossa alma viu andando com um deus e olhando de cima as coisas que
por ora dizemos que são, levantando a cabeça para o que realmente é.
Por isso, com justiça de fato, somente o pensamento do filósofo tem asas;
pois, segundo sua capacidade está sempre próximo pela memória
(μνήμῃ) àquilo cuja proximidade o deus deve sua divindade.422
(Phdr. 249b6-c6)
422
Cf. δεῖ γὰρ ἄνθρωπον συνιέναι κατ' εἶδος λεγόμενον, ἐκ πολλῶν ἰὸν αἰσθήσεων εἰς ἓν λογισμῷ
συναιρούμενον· τοῦτο δ' ἐστὶν ἀνάμνησις ἐκείνων ἅ ποτ' εἶδεν ἡμῶν ἡ ψυχὴ συμπορευθεῖσα θεῷ καὶ
ὑπεριδοῦσα ἃ νῦν εἶναί φαμεν, καὶ ἀνακύψασα εἰς τὸ ὂν ὄντως. διὸ δὴ δικαίως μόνη πτεροῦται ἡ τοῦ
φιλοσόφου διάνοια· πρὸς γὰρ ἐκείνοις ἀεί ἐστιν μνήμῃ κατὰ δύναμιν, πρὸς οἷσπερ θεὸς ὢν θεῖός ἐστιν.
423
Cf. Phd. 73b3-9, tradução de Carlos Alberto Nunes (2011 [1980]):
“Se isso não basta, Símias”, interveio Sócrates, “para convencer-te, vê se, considerando a questão por
outro prisma, chegarás a concordar conosco. Duvidas que seja apenas recordar o que denominamos
aprender?”
236
contraparte do mito contido naquele diálogo: enquanto o mito do Fédon abordava a
condição da alma após a morte, no Fedro o mito da biga alada responderia às perguntas
que se lhe poderiam fazer: qual é a condição da alma antes do nascimento? De onde vem
o conhecimento prévio que distingue as almas humanas? Por outro lado, a passagem
acima preservaria da República tanto a ideia de ser possível ao filósofo uma forma de
contemplação das Formas (ideia que na República se depreendia do processo de
emancipação descrito na alegoria caverna), quanto a exigência de que a atividade
filosófica consistisse em um exercício do lógos, que partiria de uma multiplicidade ligada
às informações colhidas pelo aparelho perceptivo humano – multiplicidade ligada à dóxa
– em direção a uma unidade produzida pelo intelecto – ligada à epistéme (R. 5.476b; 5.479e;
6.484b). Como acrescenta Kahn (2006, p. 126), essas reflexões antecipariam ainda a
conclusão do Teeteto: para além da experiência sensório-perceptual (da αἰσθησις), o
conhecer implicaria a contribuição de um lógos interno: “um lógos que a alma mantém
consigo mesma, acerca daquilo que examina” (189e6: Λόγον ὃν αὐτὴ πρὸς αὑτὴν ἡ ψυχὴ
διεξέρχεται περὶ ὧν ἂν σκοπῇ). Nesse sentido, tanto a “visão noética”, quanto a
“reminiscência” corresponderiam a imagens cuja direção comum seria enfatizar que o
processo de conhecer representa a capacidade humana de transcender a experiência
sensível – embora dela partisse.
Kahn (2006, p. 132) propõe, assim, que a compreensão da natureza do
conhecimento (isto é, das Formas), passaria não tanto por compreender literalmente a
noção de visão das Formas a ele associado (por exemplo, na República, mas também aqui
no Fedro), ou reminiscência (por exemplo, no Fédon e também aqui). Tanto a visão das
Formas, quanto a reminiscência seriam imagens ligadas a narrativas de caráter mítico, e
deveriam ser consideradas somente nesse contexto alegórico e imagético. O que
efetivamente restaria – e que seria ponto comum tanto da República, quanto do Fedro e de
vários outros diálogos tardios de Platão – é o lógos dialético, em cuja perspectiva, portanto,
se deveria investigar o conhecimento424. Em todo caso, compreender a natureza do
“Não direi que duvide”, respondeu Símias. “O que quero é justamente isso sobre o que discutimos:
recordar-me. Com a exposição de Cebes, cheguei quase a relembrar-me e convencer-me.
(Cf. Εἰ δὲ μὴ ταύτῃ γε, ἔφη, πείθῃ, ὦ Σιμμία, ὁ Σωκράτης, σκέψαι ἂν τῇδέ πῄ σοι σκοπουμένῳ συνδόξῃ.
ἀπιστεῖς γὰρ δὴ πῶς ἡ καλουμένη μάθησις ἀνάμνησίς ἐστιν;
Ἀπιστῶ μέν [σοι] ἔγωγε, ἦ δ' ὃς ὁ Σιμμίας, οὔ, αὐτὸ δὲ τοῦτο, ἔφη, δέομαι παθεῖν περὶ οὗ ὁ λόγος,
ἀναμνησθῆναι. καὶ σχεδόν γε ἐξ ὧν Κέβης ἐπεχείρησε λέγειν ἤδη μέμνημαι καὶ πείθομαι·)
424
Cf. Kahn (2006, p. 132): “In other words, the nature of the Forms is to be understood not from the
perspective of vision or recollection but from the perspective of logos, where logos is conceived as the
dialectical pursuit of definition, the pursuit of clarity and understanding by way of linguistic exchange, by
means of question and answer concerning what things are and how they are. That is why, despite its changed
configuration in the later works, dialectic remains the best descrition – in the Philebus as well as in the
Phaedrus and Republic – for the highest form of knowledge, the cognition of what is ultimately real”.
237
conhecimento por intermédio das imagens associadas à visão dos inteligíveis ou à
reminiscência, ou, ainda, às duas coisas associadas, como é o caso no Fedro, teria a virtude
de nos convidar a refletir sobre as relações que se depreendem dessas imagens: a relação
sensível/inteligível e a relação memória/esquecimento – ambas, aliás, que podem
também ser reformuladas no Fedro nas oposições agora/antes, aqui/lá, amante/amado,
presença/ausência, externo/interno.
Vejamos como essas relações se colocam no texto:
Pois, de acordo com o que foi dito, toda alma de homem por sua
natureza contemplou os seres (τεθέαται τὰ ὄντα), ou não teria vindo
para tal vivente; ter deles uma reminiscência (ἀναμιμνῄσκεσθαι) a partir
destes daqui não é fácil para todas, nem para quantas naquele tempo
viram brevemente os de lá, tampouco para as que, caídas aqui tiveram
o infortúnio de, por obra de certas companhias, voltarem-se para o
injusto, esquecendo-se do que viram então de sagrado. Poucas restam
de fato que conservam memória (μνήμης) suficiente. Mas essas, quando
veem alguma semelhança com os seres de lá, tornam-se estupefatas e
não são mais donas de si mesmas, porém ignoram o que é essa afecção
porque carecem de percepção suficiente. Não há qualquer irradiação da
justiça, moderação e tudo o mais que é precioso para as almas nos
assemelhados daqui; pelo contrário: poucos são aqueles que, a custo,
por meio de órgãos obscuros e partindo de imagens, contemplam o
gênero do que é apresentado por elas.425
(Phdr. 249e4-250b5)
425
Cf. πᾶσα μὲν ἀνθρώπου ψυχὴ φύσει τεθέαται τὰ ὄντα, ἢ οὐκ ἂν ἦλθεν εἰς τόδε τὸ ζῷον·
ἀναμιμνῄσκεσθαι δὲ ἐκ τῶνδε ἐκεῖνα οὐ ῥᾴδιον ἁπάσῃ, οὔτε ὅσαι βραχέως εἶδον τότε τἀκεῖ, οὔθ' αἳ δεῦρο
πεσοῦσαι ἐδυστύχησαν, ὥστε ὑπό τινων ὁμιλιῶν ἐπὶ τὸ ἄδικον τραπόμεναι λήθην ὧν τότε εἶδον ἱερῶν
ἔχειν. ὀλίγαι δὴ λείπονται αἷς τὸ τῆς μνήμης ἱκανῶς πάρεστιν· αὗται δέ, ὅταν τι τῶν ἐκεῖ ὁμοίωμα ἴδωσιν,
ἐκπλήττονται καὶ οὐκέτ' <ἐν> αὑτῶν γίγνονται, ὃ δ' ἔστι τὸ πάθος ἀγνοοῦσι διὰ τὸ μὴ ἱκανῶς
διαισθάνεσθαι. δικαιοσύνης μὲν οὖν καὶ σωφροσύνης καὶ ὅσα ἄλλα τίμια ψυχαῖς οὐκ ἔνεστι φέγγος οὐδὲν
ἐν τοῖς τῇδε ὁμοιώμασιν, ἀλλὰ δι' ἀμυδρῶν ὀργάνων μόγις αὐτῶν καὶ ὀλίγοι ἐπὶ τὰς εἰκόνας ἰόντες θεῶνται
τὸ τοῦ εἰκασθέντος γένος.
238
(um anamimnéskomai), ideias que previamente foram formuladas, respectivamente, na
República e no Fédon.
Partindo da relação sensível/inteligível que se depreende dessa passagem,
devemos considerar que a reminiscência (anámnesis) representa um movimento cujo
ponto de partida é a experiência sensível da realidade humana. Com efeito, as almas que
logram retomar a visão dos seres, ainda que muito poucas (ὀλίγαι), o fazem a partir de
um processo intelectivo que se inicia ao se contemplar imagens (εἰκόνες). Isso significa
dizer, como comenta Schäfer (2012, p. 227), que, por ocasião da anámnesis, “a alma toma
impulso nos fenômenos transitórios para, no melhor dos casos, ascender até o
conhecimento da ideia do bem”. Em outras palavras, quer dizer que a memória que se
liga ao aprendizado, não constitui uma entidade pura, alheia e independente das imagens
que se captam pelos sentidos.
Ademais, nessa direção, convém também lembrar que não somente a psykhé
humana era concebida como uma mistura (246b1: μέμεικται) – no embate entre diferentes
qualidades de cavalos da biga, para seguirmos a imagem do Fedro, ou na inter-relação
entre os gêneros do conjunto psíquico, para nos estendermos à formulação da República
– como o próprio homem é apresentado como o complexo alma-corpo no Fedro (246c5:
ψυχὴ καὶ σῶμα). O filósofo, portanto, constitui-se desse conjunto misto, sua atividade
resulta dessa contaminatio: não é sinônima de uma atividade apartada do mundo em que
aparecem as imagens, estas disponíveis à alma “através de órgãos obscuros” (250b3-4: δι’
ἀμυδρῶν ὀργάνων).
Assim, por esse prisma, parece-nos que a noção de anámnesis que emerge do Fedro
não se distancia essencialmente daquela consagrada no Fédon (72e-76d). Naquele diálogo,
Sócrates definia reminiscência a partir da noção de que uma experiência sensível (um
ouvir, um ver, um perceber qualquer) pudesse trazer à mente não somente o
conhecimento do objeto percebido, mas também um outro tipo de conhecimento, tal
como o que ocorreria quando um amante, ao ver um dos objetos que pertenceram
outrora ao amado (uma lira, uma roupa etc.), formaria em sua mente a imagem do amado
(Phd. 73c4-d9)426.
426
Cf. Tradução de Carlos Alberto Nunes: - E não poderemos declarar-nos também de acordo a respeito de
mais outro ponto: que o conhecimento alcançado em certas condições tem nome de reminiscência
(ἀνάμνησιν)? Refiro-me ao seguinte: quando alguém vê ou ouve alguma coisa, ou a percebe de outra
maneira, e não apenas adquire o conhecimento dessa coisa como lhe ocorre a ideia de outra que não
é objeto do mesmo conhecimento, porém de outro, não teremos o direito de dizer que essa pessoa se
recordou do que lhe veio ao pensamento?
- Como assim?
- É o seguinte: uma coisa é o conhecimento do homem, outro o da lira.
- Sem dúvida.
239
Lendo essa passagem do Fédon com Dixsaut (2012, p. 112-117), concordamos que a
definição de Sócrates abordava a anámnesis por um ângulo mais complexo do aquele
apresentado por Cebes (Phd. 72e5-7), quando a reminiscência (ἀνάμνησις) havia sido
definida simplesmente como o aprendizado (ἡ μάθησις) que, necessariamente, teria sido
empreendido em tempo anterior (ἐν προτέρῳ τινὶ χρόνῳ). Àquela primeira definição,
que ademais consistia basicamente em retomar o sentido de anámnesis do Mênon427,
escapariam as mediações que Sócrates então proporia no Fédon entre o sensível (aquilo
que se percebe no presente, no agora, aqui) e o inteligível (o que se concebe na mente -
ἐννοήσῃ). Além disso, a imagem do amante não parecia gratuita: o “recordar-se”
decorreria também do movimento de uma alma tomada por um desejo (éros) por uma
realidade de que sente falta, de que se sente carente (realidade que representa o objeto
desse amor, estando em outro lugar, em outro tempo, ausente).
Portanto, compreender a anámnesis a partir da relação sensível/inteligível nos
obriga a pensá-la também por intermédio das relações amante/amado, ausente/presente,
agora/em outro tempo, aqui/alhures. Se concordamos com Kahn (2006, p. 122) que é
possível conceber que as reflexões sobre conhecimento ligadas à reminiscência são
desenvolvidas em três estágios ao longo da obra de Platão – no Mênon, no Fédon e no
Fedro – em cujos âmbitos elas consagrariam uma formulação própria, ligadas a
problemas específicos428, sem que isso represente, todavia, que tais formulações sejam
essencialmente distintas entre si, podemos talvez aproximar o Fédon e o Fedro no que diz
- E não sabe o que se passa com os amantes, quando veem a lira, a roupa ou qualquer outro objeto
de uso dos seus amados? Reconhecem a lira e formam no espírito a imagem do mancebo a quem a
lira pertence. Reminiscência é isso: ver alguém frequentemente a Símias e recordar-se de Cebes”.
(Cf. Ἆρ' οὖν καὶ τόδε ὁμολογοῦμεν, ὅταν ἐπιστήμη παραγίγνηται τρόπῳ τοιούτῳ, ἀνάμνησιν εἶναι; λέγω δὲ
τίνα τρόπον; τόνδε. ἐάν τίς τι ἕτερον ἢ ἰδὼν ἢ ἀκούσας ἤ τινα ἄλλην αἴσθησιν λαβὼν μὴ μόνον ἐκεῖνο
γνῷ, ἀλλὰ καὶ ἕτερον ἐννοήσῃ οὗ μὴ ἡ αὐτὴ ἐπιστήμη ἀλλ' ἄλλη, ἆρα οὐχὶ τοῦτο δικαίως λέγομεν ὅτι
ἀνεμνήσθη, οὗ τὴν ἔννοιαν ἔλαβεν;
Πῶς λέγεις;
Οἷον τὰ τοιάδε· ἄλλη που ἐπιστήμη ἀνθρώπου καὶ λύρας.
Πῶς γὰρ οὔ;
Οὐκοῦν οἶσθα ὅτι οἱ ἐρασταί, ὅταν ἴδωσιν λύραν ἢ ἱμάτιον ἢ ἄλλο τι οἷς τὰ παιδικὰ αὐτῶν εἴωθε
χρῆσθαι, πάσχουσι τοῦτο· ἔγνωσάν τε τὴν λύραν καὶ ἐν τῇ διανοίᾳ ἔλαβον τὸ ἶδος τοῦ παιδὸς οὗ ἦν
ἡ λύρα; τοῦτο δέ ἐστιν ἀνάμνησις· ὥσπερ γε καὶ Σιμμίαν τις ἰδὼν πολλάκις Κέβητος ἀνεμνήσθη).
427
Embora, conforme observa Kahn (2006) e Dixsaut (2012), o conceito de reminiscência do Mênon é senão
incompleto em relação às formulações posteriores, presentes já no Fédon. Escapam à discussão no Mênon
ao menos as seguintes informações que já se apresentam no Fédon associadas à anámnesis: 1) que o saber
que a rememoração enseja não é da vida presente, mas de um estado anterior; 2) a necessidade de ter
esquecido para relembrar; 3) a relacão entre buscar/pesquisar, desejar, aprender, relembrar, o movimento
da alma nela e sobre ela mesma. Para além disso, por outro lado, a formulação do Fédon omite do Mênon a
passagem pela aporia e a consciência do não saber.
428
Para Kahn (2006), a doutrina da reminiscência aparece, ademais, nos três diálogos, com propósitos
diferentes: enquanto no Mênon serve sobretudo para explicar a dinâmica do aprender (ligada, conforme
vimos no capítulo I, à demonstração do método de hipóteses), no Fédon é evocada como um dos argumentos
para demonstrar a imortalidade da alma; no Fedro, por sua vez, é o fundamento que oferece a explicação
metafísica da experiência de éros.
240
respeito a esse tema, concordando ainda com Dixsaut (2012, p. 113) no sentido de que
recordar é uma espécie de olhar para algo e sentir a falta de outra coisa, é desejar algo
ausente, dele se aproximando pelo pensamento. Além disso, a experiência desse desejo,
que decorre da percepção de uma ausência, é semelhante à relação entre amante e amado,
para o que viera bem a propósito o exemplo de Sócrates. Como afirma Dixsaut: “A
reminiscência própria do filósofo é como a generalização da experiência do amante. Ao
rememorar, ele pára de acreditar que as coisas sensíveis representam uma presença
plena e suficiente, para transformá-las em signos de uma outra presença” (id., ib., p. 114)429.
Assim, tendo éros como o agente intermediário que gera a aproximação das duas
polaridades da relação sensível/inteligível, aproximando, pelo pensamento, o amante e o
amado, sendo de natureza análoga à própria filosofia, conforme pontuamos no capítulo
II, a reminiscência pode então ser tomada como experiência de natureza erótica no Fedro,
um desejo de aproximação entre amante e amado, em cujos termos podemos também
entender a polarização recordar/esquecer. Retornando à passagem citada, vimos que o
recordar-se (250a1: ἀναμιμνῄσκεσθαι) pressupunha uma espécie de retorno (ana-) ao
estado de contemplação dos seres (249e5: τεθέαται τὰ ὄντα). Conforme vimos, esse
movimento de volta estava no texto expresso pela noção de distanciamento temporal e
espacial (sugeridos, por exemplo, pelo verbo no perfeito tethéatai – “ter contemplado”,
“ter visto diretamente” – opondo-se ao infinitivo presente de anamimnéiskesthai –
“rememorar”, “recordar-se” – e pela correlação das expressões dêiticas tõnde vs. tóte –
“daqui/deste momento” vs. “ali/naquela ocasião”). Por outro lado, o “esquecer” (250a4:
λήθην…ἔχειν) diz respeito ao “aqui” (250a3: δεῦρο), quando as almas caídas, voltam-se
para o injusto (250a3: ἐπὶ τὸ ἄδικον τραπόμεναι). Assim sendo, porquanto o rememorar
pressupõe o movimento que tem como partida o aqui/agora, poderíamos dizer que
implica, necessariamente, um movimento que parte também do “esquecer”.
Em outras palavras, o “recordar” pressupõe o “esquecer”: a capacidade humana
do conhecer não subsiste sem o risco sempre iminente de o homem se perder nas
imagens em que se vê mergulhado no presente, e acabar voltando-se para o injusto. O
esquecimento opõe-se, portanto, à reminiscência, não por aquele representar a perda de
um conteúdo (a soma de muitas informações obtidas), mas porque ele configura uma
espécie de letargia, de imobilidade diante dos sensíveis, que é sinônima de uma perda de
capacidade de se mover pelo lógos em direção ao ser, ou seja, de rememorar, de aprender.
429
Cf. “La réminiscence propre au philosophe est comme la généralisation de l’éxperience de l’amoureux.
En se ressouvenant, il cesse de croire à la presence suffisante et pleine des choses sensibles pour les
métamorphoser en signes d’une autre présence”.
241
Assim sendo, a distinção sensível vs. inteligível pode ser, no campo do
conhecimento, relacionada às distinções presença vs. ausência, aqui vs. em outro lugar,
agora vs. em outro tempo, amante vs. amado, esquecer vs. recordar. Se, no segundo
membro de cada oposição podemos fazer referência ao saber puro, divino, ligado ao ser,
e à contemplação da verdade, saber que é apanágio dos deuses que transitam no lugar
“supraceleste” (247c3: τὸν ὑπερουράνιον τόπον); no primeiro aludimos sempre à
capacidade humana do conhecer: aquela que parte do sensível, do presente, do
aqui/agora, de um esquecimento da alma, de um não-saber. O rememorar, portanto, diz
respeito a essa capacidade humana de transcender o que se dispõe agora diante de nós, e
o fazemos mediante um esforço do lógos, um esforço dialético.
Nos termos das imagens propostas no Fedro, esse exercício corresponde a um
esforço de contemplar o ser mediante uma elevação pelo pensamento, tal como pássaro
sem asas que, querendo voar, impotente, limita-se a olhar o céu430, revivendo-o mediante
uma mobilização do lógos, esforçando-se por não esquecê-lo e dele relembrando quando
se depara com algo que, na terra, se lhe assemelha. O acesso ao ser pelos homens é,
portanto, tentativo, incompleto e impuro, erigido sobre uma possibilidade de se
aproximar o quanto mais de uma experiência divina, no limite do que é o humano431;
decorre de um exercício de intelecção, dirigido pelo lógos, que tem partida nos sensíveis,
ou nas imagens, por meio de uma relação de semelhança: as diferentes imagens da beleza
– dos belos jovens, por exemplo – são, por assim dizer, gatilhos para a reminiscência do
Belo em si432.
430
Cf. Phdr. 249d4-e1: “E é para este ponto então que conduz todo o discurso relativo à quarta loucura:
quando alguém, ao ver o belo daqui, do verdadeiro tendo uma reminiscência, torna-se alado e uma vez
provido de novas asas deseja ardentemente voar, mas, impotente, olhando para o alto à maneira de um
pássaro e descuidando do que está embaixo, dá motivos para que o considerem louco” (Cf. Ἔστι δὴ οὖν
δεῦρο ὁ πᾶς ἥκων λόγος περὶ τῆς τετάρτης μανίας – ἣν ὅταν τὸ τῇδέ τις ὁρῶν κάλλος, τοῦ ἀληθοῦς
ἀναμιμνῃσκόμενος, πτερῶταί τε καὶ ἀναπτερούμενος προθυμούμενος ἀναπτέσθαι, ἀδυνατῶν δέ, ὄρνιθος
δίκην βλέπων ἄνω, τῶν κάτω δὲ ἀμελῶν, αἰτίαν ἔχει ὡς μανικῶς διακείμενος).
431
Cf. Phdr. 252e7-253a5, grifos nossos: “e seguindo a pista para descobrir por si mesmos a natureza do
próprio deus, prosperam pela necessidade de pôr os olhos intensamente na direção do deus, inspirados e
alcançando-o pela memória, tomam dele os costumes e as ocupações na medida em que é possível a um
homem compartilhar do divino” (Cf. ἰχνεύοντες δὲ παρ' ἑαυτῶν ἀνευρίσκειν τὴν τοῦ σφετέρου θεοῦ φύσιν
εὐποροῦσι διὰ τὸ συντόνως ἠναγκάσθαι πρὸς τὸν θεὸν βλέπειν, καὶ ἐφαπτόμενοι αὐτοῦ τῇ μνήμῃ
ἐνθουσιῶντες ἐξ ἐκείνου λαμβάνουσι τὰ ἔθη καὶ τὰ ἐπιτηδεύματα, καθ' ὅσον δυνατὸν θεοῦ ἀνθρώπῳ
μετασχεῖν·).
432
O conhecimento das Formas a partir de dados dos sensíveis não são, entretanto, tese nova no Fedro. Em
conhecida passagem do Banquete, por exemplo, fica claro no discurso de Diotima que os dados fenomênicos
funcionam como estímulos exteriores para o movimento de acesso ao ser: o homem vê algo de belo na
Terra que serve como ponto de partida para relembrar do belo, o que sempre é. Vejamos a passagem entre
211c1-d1, na tradução de Donaldo Schüler (2010): “Tome-se como ponto de partida o que aqui é belo, não se
perca de vista aquele belo, fonte de todos os corpos belos. Suba-se como por degraus, de um só a dois e de
dois a todos os corpos belos e dos belos corpos aos belos ofícios e dos ofícios aos belos saberes e dos saberes
até findar naquele saber que não é outro senão o saber daquele belo, sabendo, por fim, o que é o belo em
si” (Cf. ἀρχόμενον ἀπὸ τῶνδε τῶν καλῶν ἐκείνου ἕνεκα τοῦ καλοῦ ἀεὶ ἐπανιέναι, ὥσπερ ἐπαναβασμοῖς
242
Podemos, portanto, concluir com Centrone (2014, p. 169), que, no Fedro, memória
(mnéme) não diz respeito à capacidade de armazenar uma quantidade de informações
(que, se fosse o caso, poderia ser melhor exercitada mediante a existência de um texto
escrito), mas, em sentido mais abrangente, abriga essa capacidade – a anámnesis – de
reconduzir a psykhé ao conhecimento, com o qual teria tido prévio contato. Esse contato
prévio permite, por sua vez, uma leitura ambígua: tanto uma precedência temporal, na
dimensão mítica, aludindo a um tempo antes de as almas se encarnarem, quando teriam
tido uma pré-visão das Formas; quanto também pode referir-se a uma precedência
ontológica e epistemológica: as Formas precedem as suas imagens. Nesse segundo
sentido, dizer que a alma existe antes significaria, portanto, afirmar que sua natureza é
semelhante à das Formas, precedendo ontologicamente os objetos sensíveis, sua pré-
existência poderia, portanto, ser concebida em outra temporalidade, não cronológica,
mas ligada ao lógos433.
Em suma, somente considerando a anámnesis nesse sentido, i.e. ligada à
capacidade humana de conhecer, é que faz sentido aquela oposição a que aludimos antes
e que estava no cerne do argumento de Thamos: a anámnesis não pode ser sinônima de
uma hypómnesis. Ou seja, representando um movimento que tem éros como uma de suas
causas, transcendendo o que se vê no presente, a reminiscência é um processo ligado ao
conhecer, não é, portanto, uma hypómnesis – uma lembrança, uma informação que faz
recordar, imóvel e estática, que poderia ser registrada por escrito. Disso decorre a
divergência entre Theuth e Thamos: uma coisa é o efeito que a escrita pode engendrar
enquanto porta-voz de um texto que nos faça relembrar uma informação (ὑπόμνησις);
outra, bastante diferente, seria a sua viabilização enquanto um instrumento gerador de
conhecimento (ἀνάμνησις). Enquanto o texto falado ou escrito é externo – a partir de
“sinais estranhos”, visíveis ou audíveis –, o processo de busca do conhecimento
representa um movimento inerente à alma, é a sua contribuição diante do
χρώμενον, ἀπὸ ἑνὸς ἐπὶ δύο καὶ ἀπὸ δυοῖν ἐπὶ πάντα τὰ καλὰ σώματα, καὶ ἀπὸ τῶν καλῶν σωμάτων ἐπὶ
τὰ καλὰ ἐπιτηδεύματα, καὶ ἀπὸ τῶν ἐπιτηδευμάτων ἐπὶ τὰ καλὰ μαθήματα, καὶ ἀπὸ τῶν μαθημάτων
ἐπ'ἐκεῖνο τὸ μάθημα τελευτῆσαι, ὅ ἐστιν οὐκ ἄλλου ἢ αὐτοῦ ἐκείνου τοῦ καλοῦ μάθημα, καὶ γνῷ αὐτὸ
τελευτῶν ὃ ἔστι καλόν).
433
Cf. Dixsaut (2012, p. 115): “Platon joue sur l’ambiguïté du terme « avant » : entendu comme ce qui précède
la naissance, « avant » désigne un temps pendant lequel l’âme existait sans être unie à un corps ; pris au sens
d’une priorité ontologique et épistémologique, « avant » signifie simplement que l’essence – l’Égal en soi,
par exemple – ne peut être abstraite de la perception des choses égales, qu’elle est au contraire condition
pour que ces choses nous semblent telles. Dans le Phédon, Socrate peut dissocier préexistence de l’âme et
réminiscence : dire que notre âme existait « avant », c’est dire qu’elle existe au même titre et de la même
façon qu’existent les réalités en soi. Il dépouille ainsi la réminiscence de toute connotation mythique en
pensant l’existence de l’âme comme semblable (mas non pas identique) à celle des réalités en soi, et il peut
en conclure leur « égale nécessité d’existence ». Ce qui signifie que la préexistence ne doit pas s’entendre
chronologiquement mais comme une existence indépendante de tout devenir e de toute naissance”.
243
maravilhamento dos sentidos434. É nesse sentido que a experiência de rememorar –
portanto, de aprender – é uma espécie de enthusiasmós, isto é, a vivência interna de uma
experiência divina: o filósofo experimenta uma inspiração (253a3: ἐνθουσιῶντες) que
pode engendrar, por intermédio da memória (253a3: τῇ μνήμῃ), a visão divina (253a2: πρὸς
τὸν θεὸν βλέπειν).
Considerando essas observações, podemos, então, retornar às posições
dissonantes do inventor da escrita e do rei Thamos quanto ao phármakon. A escrita, afinal,
seria um phármakon que vem em auxílio ou em detrimento do conhecimento? Como
reavaliarmos as posições de Theuth e Thamos, para o sentido global do diálogo,
considerando os sentidos associados à memória? Parece-nos claro, a esta altura, que a
escrita e a linguagem oral representam expressões produzidas e percebidas no âmbito
dos sensíveis: seja através da visão que capta “os caracteres estranhos” (ἀλλότριοι τύποι)
da escrita; seja através da audição que reconhece e comunica a sequência de sons
distintivos da fala (γράμματα). Nesse sentido, a alegação do rei Thamos de que ela
representa uma experiência externa (275a3: ἔξωθεν) e não interna (275a4: οὐκ ἔνδοθεν), se
nos afigura uma avaliação correta. Também parece correta a observação de que tais
sinais podem representar no máximo a produção de um texto que nos faça lembrar de
algo (ὑπόμνησις). Do discurso régio, todavia, o que não nos parece possível subscrever é
o argumento de que a experiência da escrita – por mais precária que o seja – opor-se-ia
à reminiscência e, portanto, ao aprender. Assumir que a escrita produz esquecimento na
alma dos aprendizes (275a2-3: τῶν μαθόντων λήθην μὲν ἐν ψυχαῖς παρέξει),
434
A ideia de que o processo de rememoração é um movimento interno da alma também não aparece
somente no Fedro. A famosa imagem da memória como uma impressão em cera, presente no Teeteto, mostra
claramente que a aquisição e o acesso ao conhecimento decorre de uma inscrição íntima, não de um escrito
exterior. Cf. Tht. 191d-e, tradução de Carlos Alberto Nunes (1988):
SÓCRATES: Suponhamos, agora, só para argumentar, que na alma há um cunho de cera; numas
pessoas, maior; noutras, menor; nalguns casos, de cera limpa, noutros com impurezas, ou mais dura
ou mais úmida, conforme o tipo, senão mesmo de boa consistência, como é preciso que seja.
TEETETO: Está admitido.
SÓCRATES: Diremos, pois, que se trata de uma dádiva de Mnemosine, mãe das Musas, e que sempre
que queremos lembrar-nos de algo visto ou ouvido, ou mesmo pensado, calcamos a cera mole sobre
nossas sensações ou pensamentos e nelas os gravamos com relevo, como se dá com os sinetes dos
aneis. Do que fica impresso, temos a lembrança e conhecimento enquanto persiste a imagem; o que
se apaga ou não pôde ser impresso, esquecemos e ignoramos.
(Cf. {ΣΩ.} Θὲς δή μοι λόγου ἕνεκα ἐν ταῖς ψυχαῖς ἡμῶν ἐνὸν κήρινον ἐκμαγεῖον, τῷ μὲν μεῖζον, τῷ δ'
ἔλαττον, καὶ τῷμὲν καθαρωτέρου κηροῦ, τῷ δὲ κοπρωδεστέρου, καὶ σκληροτέρου, ἐνίοις δὲ
ὑγροτέρου, ἔστι δ' οἷς μετρίως ἔχοντος.
{ΘΕΑΙ.} Τίθημι.
{ΣΩ.} Δῶρον τοίνυν αὐτὸ φῶμεν εἶναι τῆς τῶν Μουσῶν μητρὸς Μνημοσύνης, καὶ εἰς τοῦτο ὅτι ἂν
βουληθῶμεν μνημονεῦσαι ὧν ἂν ἴδωμεν ἢ ἀκούσωμεν ἢ αὐτοὶ ἐννοήσωμεν, ὑπέχοντας αὐτὸ ταῖς
αἰσθήσεσι καὶ ἐννοίαις, ἀποτυποῦσθαι, ὥσπερ δακτυλίων σημεῖα ἐνσημαινομένους· καὶ ὃ μὲν ἂν
ἐκμαγῇ, μνημονεύειν τε καὶ ἐπίστασθαι ἕως ἂν ἐνῇ τὸ εἴδωλον αὐτοῦ· ὃ δ' ἂν ἐξαλειφθῇ ἢ μὴ οἷόν
τε γένηται ἐκμαγῆναι, ἐπιλελῆσθαί τε καὶ μὴ ἐπίστασθαι).
244
representando um descuido da memória (275a3: μνήμης ἀμελετησίᾳ), por se caracterizar
como uma experiência externa, consistiria em admitir que o processo do
aprender/conhecer pudesse, em alguma medida, prescindir da experiência humana e
representasse uma introspecção pura, uma experiência mística, somente interna e alheia
a qualquer estímulo externo.
Portanto, se também não podemos assumir com Theuth, conforme avaliamos no
item anterior, que a escrita, em si mesma, seja o remédio para a sabedoria, tampouco a
compreenderemos como um implacável veneno, adverso à sabedoria. A ambiguidade
contida no phármakon possibilita-nos, assim, avançar uma concepção situada no
entrelugar entre esses dois extremos: não sendo nem a de Theuth, nem a de Thamos,
uma concepção intermédia melhor enseja o papel da escrita como uma uma via apenas
potencial para o conhecimento – e talvez aqui espelhe o posicionamento de Platão
(explicando, por exemplo, a sua franca adesão a uma modalidade de escrita, ainda que
mantivesse uma distância jamais ultrapassada em relação ao entusiasmo que lhe
conferiam os sofistas, especialmente Isócrates435).
Conforme vimos, diversamente do que implica a posição de Thamos, a
reminiscência, embora represente um processo interior, visto que radicado na psykhé,
não obstrui a colaboração de estímulos externos; se o conhecimento não é o mesmo que
tais estímulos, estes podem, contudo, estimular um movimento íntimo que leva à
rememoração. Nesse sentido, a escrita estaria na classe dos fatores que podem, se bem
compreendidos, colaborar no processo de conhecer. Assim, a escrita seria uma imagem,
um sensível, e, como tal, seu modo de existência não deixaria de configurar uma
oportunidade para o filósofo. Entretanto, restaria ainda uma pergunta: ela também
comportaria um risco?
No excerto supracitado da palinódia de Sócrates (249e4-250b5), advertia-se que a
maior parte dos mortais, ao serem afetados pelos sensíveis, que, em relação aos
inteligíveis, são apenas “semelhantes” (250a6: ὁμοίωμα), não eram capazes de a partir
deles discernir o gênero das coisas neles representadas, escapando-se-lhes a razão, ao
ficarem “estupefatas” (250a6: ἐκπλήττονται), nestes, como complementa a passagem, não
435
Nesse sentido, o mito de Theuth representa também uma resposta de Platão ao debate sobre as
vantagens e desvantagens da escrita, tal como era realizado por Isócrates e Alcidamante. A posição
platônica estaria na distância entre a posição de Alcidamante, francamente hostil à escrita, análoga à do rei
Thamos, e a posição de Isócrates, claramente favorável a esse meio de expressão, análoga à de Theuth. A
menção a Isócrates no epílogo do diálogo, onde se externa um claro elogio ao sofista, também diz muito a
esse respeito. Sobre o debate em torno da escrita em Górgias, Isócrates e Alcidamante, remeto à tese de
Salles (2018). Voltaremos a essa questão no capítulo VI.
245
restaria qualquer traço de justiça (250b1: δικαιοσύνη), temperança (250b2: σωφροσύνη) ou
qualquer outro valor associado aos seres inteligíveis.
Com essa ligeira observação, ficava patente que a maneira pela qual os mortais se
relacionam com os sensíveis não era de menor importância para Platão: se orientados
pela perspectiva do conhecer – quando, então, são capazes de contemplar, através dos
semelhantes, a visão das Formas –, ou se entregues ao domínio dessas afecções,
“estupefatos”. Resulta dessa análise, portanto, uma separação semelhante àquela que se
concebera entre formas de éros e formas de lógos: também no que tange aos sensíveis –
entre os quais a escrita –, quando vem a baila a sua relação com o conhecimento, eles
podem ter diferentes efeitos, a depender de que direção a psykhé neles imprime. Assim
como, diante das imagens, só perdem a razão aqueles que “ignoram o que é essa afecção”
(250a7-b1: τὸ πάθος ἀγνοοῦσι), por não distingui-la suficientemente (250b1: διὰ τὸ μὴ
ἱκανῶς διαισθάνεσθαι); diante da escrita, os mortais só perderiam a razão – e ela se
tornaria, portanto, um “veneno” – quando também não fossem capazes de compreendê-
la. Assim, a atitude proposta não seria a de condená-la peremptoriamente, mas a de
conhecê-la, distingui-la, ou seja, submetê-la à dialética. Tal é o que Platão nos convida a
fazer.
Somente assim a escrita poderia, quando submetida à crítica, tornar-se
instrumento aliado da filosofia, um caminho digno para a pesquisa, e não um phármakon
com o poder mágico de nos tornar automaticamente mais sábios, como defende seu
inventor; nem tampouco um mal em si mesma, que nos converteria em homens
incapazes de conhecer, como contrapõe o rei. Na mediana entre as duas posições, a
escrita parece emergir como uma dimensão do lógos intrínseca à pesquisa: se ela também
nos oferece uma possibilidade para o pensamento, condição fundamental para a
rememoração, então talvez não seja mesmo aquela poção mágica que nos livra de todos
os males da ignorância e da servidão da alma, mas, enquanto ela própria corresponda a
uma imagem, a um sensível, talvez se viabilize como um ponto de partida que nos indica
o caminho para a filosofia: esta sim, e não outra, é o que pode representar a cura para os
nossos maiores sofrimentos (252b1: ἰατρὸν ηὕρηκε μόνον τῶν μεγίστων πόνων).
246
CONCLUSÃO DA PARTE β´
Tendo como roteiro norteador a crítica à escrita presente no Fedro, nos dois
capítulos desta parte buscamos avaliar diferentes perspectivas desse tema, considerando
1. a pertinência ou não da dicotomia escrita vs. oralidade como princípio para a análise
desse problema em Platão, discussão que apresentamos a partir de diferentes posições
analíticas que descrevem o status quaestionis nos estudos platônicos; 2. a dimensão mítica
da narrativa da invenção da escrita e a ambiguidade que é inerente a ela; 3. a relação
entre escrita, memória e conhecimento e; 4. a noção de phármakon associada à escrita.
Vimos, nesse percurso, que a escrita – seja enquanto um tema de reflexão, seja
enquanto uma prática efetivamente realizada no Fedro – é tensionada filosoficamente por
Platão ao longo do diálogo, e emerge no centro do debate filosófico sobre a dialética, não
se limitando, portanto, a representar mero registro histórico que Platão teria produzido
quanto ao uso dessa tecnologia. Isso implica afirmar que não somente ela é trazida à tona
no mito de Theuth (Phdr. 274c5-275b2) enquanto um tema de reflexão – quais são seus
limites para o conhecer? Qual é a forma bela da escrita? –, como também, enquanto uma
performance, ela se apresenta dialeticamente: do mesmo modo como Platão realiza
divisões e reuniões na busca das determinações de éros, lógos, manía etc., também a
própria escrita é alvo de semelhante exercício crítico.
Nesse sentido, vimos que o reconhecimento das limitações da modalidade escrita,
ou das suas diferenças, em relação ao estatuto do diálogo oral não parecia implicar, como
sustentavam os teóricos da Escola de Tübingen-Milão, nem que 1. ela se reduzisse a um
jogo de menor importância, não configurando uma forma possível para a dialética (razão
porque Platão teria confiado somente à oralidade as coisas “mais valiosas” ou “mais
sérias”); nem que 2. os seus limites, caracterizados, sobretudo, no uso que os retóricos e
sofistas dela faziam, não fossem entretanto, reconhecidos e ponderados por Platão. Em
outras palavras, isso significaria compreender a crítica à escrita como o resultado de uma
tensão discursiva que é condigna com seu estatuto ambivalente – um phármakon – que,
de resto, aparece no contraste entre a posição de seu inventor e do rei, oposição que faz
ver, por um lado, os benefícios potenciais dessa novíssima tecnologia à disposição dos
gregos, mas, por outro, lhe reconhece também as graves consequências, quando utilizada
sem reflexão.
Nesse sentido, para a leitura da narrativa da invenção da escrita (Phdr. 274c5-275b2)
propusemos tanto considerar o caráter ambíguo com que o tema é desenvolvido por
247
Platão – ambiguidade que se revela no emprego de certas palavras, nas opiniões
aparentemente ou ironicamente contraditórias de Sócrates, no enquadramento da
passagem em um esquema mítico – quanto observar, atentamente, seu caráter polifônico,
o que exige ponderar sobre as duas posições, a do inventor da escrita e a do rei Thamos,
que não representam, em si mesmas, a posição de Platão.
Dessa forma, mostramos como uma leitura das metáforas da escrita presentes no
mito (escrita como uma invenção divina, escrita como um phármakon para a memória),
nos permitia visualizar a escrita não somente como uma questão filosófica, mas como
uma possibilidade para a filosofia. Entender a escrita enquanto uma possibilidade filosófica
implicava relativizar tanto o ponto de vista de seu inventor, que nela via a solução, ou o
remédio, para o problema do conhecimento; quanto a do rei Thamos, que nela via apenas
um adversário implacável do saber, um veneno para a memória.
Haveria, portanto, razões filosóficas para que Thamos censurasse Theuth pelo
erro em que ele incorria, sem que isso representasse, no final, o ponto de vista de Platão:
seria ingênuo conceber a escrita como uma panaceia para os problemas ligados
conhecimento. Entretanto, longe de se instaurar, com essa censura, uma oposição entre
uma oralidade filosófica e uma escrita não filosófica, tratava-se, antes, de fazer
compreender a distinção entre informação e conhecimento: enquanto a escrita pudesse
vir em socorro da transmissão e preservação de informações, ela jamais poderia
compensar o verdadeiro conhecer, radicado na memória e que se atinge mediante um
exercício intelectual, tratava-se, portanto, da oposição entre um saber interno, inerente à
alma; e um saber puramente externo, apenas representado pela dimensão sensível da
linguagem (não somente escrita). Por outro lado, assumir que a escrita pudesse ser
inimiga da filosofia, por descuidar da memória e produzir esquecimento na alma dos
aprendizes, seria o mesmo que admitir a existência de um processo de conhecimento
puro, alheio à experiência humana e às afecções que atravessam o homem, entendido
como corpo-alma.
Entendendo a memória, ou, mais especificamente, a reminiscência (anámnesis)
como uma imagem que descreve o movimento psíquico ligado ao conhecer, a escrita,
portanto, não lhe substitui – como pretende Theuth –, tampouco lhe é adversária – como
supõe Thamos. A escrita, como a linguagem, está no âmbito daquelas coisas que,
entretanto radicadas na experiência sensório-perceptual (a sua compreensão decorre de
sinais visíveis e audíveis), podem representar o ponto de partida de um processo ligado
ao conhecer: trata-se, portanto, de uma imagem, a qual, como todas as demais, podem
servir como ponto de partida do rememorar. Por isso, ela não se pretende estar à altura
248
do verdadeiro saber, mas parece configurar um ponto de partida e um caminho dignos
para a filosofia. Assim, a ambiguidade contida no phármakon é pertinente porque nos
enseja avançar uma concepção situada no entrelugar entre esses dois extremos: não
sendo nem a de Theuth, nem a de Thamos, tal concepção melhor enseja o papel da escrita
como uma uma via apenas potencial para o conhecimento, um elemento intermediário,
uma lente que se interpõe à visão – e talvez aqui esteja o posicionamento de Platão.
Parece-nos, em suma, que a contraposição expressa no mito de Theuth – e, de
outro modo, também na Carta 7 – demonstra, ademais, um exercício de reflexão sobre a
escrita, um esforço que consiste em compreendê-la dialeticamente. As posições
contrapostas representam, por assim dizer, um exercício de distinção que Platão nos
propõe, permitindo examinar as vantagens das letras – imagens que podem colaborar
para a busca do saber, realizada por uma alma movida por éros – , quanto também seus
riscos – tendo a natureza dos sensíveis, elas podem também conduzir a um crer saber,
embora não sabendo. Assim, para apreciar os potenciais da escrita como uma via do
pensamento filosófico, é necessário, portanto, conhecê-la, tensioná-la, criticá-la,
assegurar-se de que possa ser adequada à dialética, seja como um caminho, seja como um
ponto de partida.
No entanto, até onde se estenderia essa koinonía entre escrita e dialética? É possível
pensar não somente que a dialética se aplica à compreensão da escrita, como apontamos,
mas também que a escrita colabore, inversamente, para compreender a própria dialética
no Fedro? Se respondermos afirmativamente à segunda questão, poderíamos então
pensar que a escrita, mais que uma imagem, como vimos neste capítulo, também possa
ser compreendida como um paradigma do pensar? Esse é o ponto que pretendemos
melhor desenvolver na próxima parte da tese, quando, expandindo a noção de
paradigma associada às letras, a contraporemos à leitura da passagem final do Fedro, na
tentativa de cobrir essa complexa relação entre dialética e escrita.
249
250
γ´ PARÁDEIGMA
436
Tradução de Maria Cecília Gomes dos Reis, com algumas modificações nossas Cf. δικαιοσύνης μὲν οὖν
καὶ σωφροσύνης καὶ ὅσα ἄλλα τίμια ψυχαῖς οὐκ ἔνεστι φέγγος οὐδὲν ἐν τοῖς τῇδε ὁμοιώμασιν, ἀλλὰ δι'
ἀμυδρῶν ὀργάνων μόγις αὐτῶν καὶ ὀλίγοι ἐπὶ τὰς εἰκόνας ἰόντες θεῶνται τὸ τοῦ εἰκασθέντος γένος·
κάλλος δὲ τότ' ἦν ἰδεῖν λαμπρόν, ὅτε σὺν εὐδαίμονι χορῷ μακαρίαν ὄψιν τε καὶ θέαν, ἑπόμενοι μετὰ μὲν
Διὸς ἡμεῖς, ἄλλοι δὲ μετ' ἄλλου θεῶν, εἶδόν τε καὶ ἐτελοῦντο τῶν τελετῶν ἣν θέμις λέγειν μακαριωτάτην,
ἣν ὠργιάζομεν ὁλόκληροι μὲν αὐτοὶ ὄντες καὶ ἀπαθεῖς κακῶν ὅσα ἡμᾶς ἐν ὑστέρῳ χρόνῳ ὑπέμενεν,
ὁλόκληρα δὲ καὶ ἁπλᾶ καὶ ἀτρεμῆ καὶ εὐδαίμονα φάσματα μυούμενοί τε καὶ ἐποπτεύοντες ἐν αὐγῇ καθαρᾷ,
καθαροὶ ὄντες καὶ ἀσήμαντοι τούτου ὃ νῦν δὴ σῶμα περιφέροντες ὀνομάζομεν, ὀστρέου τρόπον
δεδεσμευμένοι.
251
Conforme tivemos a ocasião de discutir nos capítulos precedentes, essa
contraposição entre uma temporalidade mítica – representada pela imagem das almas
humanas como bigas aladas no séquito dos deuses – e o estado atual – o tempo dos seres
humanos como almas encerradas em corpos, entre os quais também se encontra o filósofo
–, enseja também outras oposições e distinções que nos pareceram cruciais no Fedro:
aquelas, por exemplo, entre loucura humana (associada à ὕβρις) e loucura divina
(associada ao ἔνθουσιασμός); entre éros (como desejo irracional) e éros (como condição
para reminiscência); entre os sensíveis (tal como a beleza dos jovens) e os inteligíveis (a
contemplação do Belo em sua pureza); entre esquecimento e reminiscência; entre
movimento e estaticidade, entre outros. Se na perspectiva dialética tais contraposições
representam tentativas de divisão (διαίρεσις), por outro lado, elas também não
prescindem de um esforço de reunião (συναγωγή). Por essa razão, tais oposições não
poderiam representar contradições, não constituindo, portanto, antilogias, pois não há
nelas a negação ou a anulação de qualquer um dos membros contrapostos, mas antes a
compreensão mais ampla e sinóptica da complexidade que diz respeito ao status humano
em face dos reais e verdadeiros objetos do conhecimento.
No mesmo sentido, nos capítulos anteriores, foi-nos também possível
compreender o filósofo não como um sábio (um sophós), uma figura acima dos demais
mortais associada às dimensões divinas do conhecimento, mas como um ser misto,
consoante sua condição humana. Nessa condição, o filósofo constitui-se pelo conjunto
alma-corpo, sendo alguém que se move no entrelugar entre esquecimento e
reminiscência, entre o maravilhamento causado pelos sensíveis e a busca racional de
uma visão cada vez mais nítida das Formas. Compreendemos, consequentemente, o
engajamento filosófico como uma jornada motivada por éros, ainda que realizada a custo
(μόγις) ou por apenas alguns poucos (ὀλίγοι). Tal jornada tinha as imagens – ou as
sombras, ou os espectros – como pontos de partida, e se realizava mediante órgãos
obscuros (δι’ ἀμυδρῶν ὀργάνων).
Ainda que não haja consenso entre os comentadores quanto ao significado da
alusão a “órgãos obscuros” (ἀμυδρὰ ὄργανα) da passagem em epígrafe, sendo ela por
vezes associada ao aparelho sensório-perceptual (cf. Brisson, 2004, p. 213; Centrone, 2014,
p. 150) ou à própria capacidade cognitiva humana (cf. Hackforth, 1997 [1952], p. 95)437; em
437
Conforme comenta Brisson (2004, p. 213), tais órgãos podem ser remetidos ao aparelho sensório-
perceptual humano (de que daria testemunho também a passagem do Timeu, 54a). Sua caracterização como
obscuros (ἀμυδρά) não diria respeito ao seu próprio estatuto, mas ao fato de produzirem representações
desprovidas de claridade e distinção. No mesmo sentido, como comenta Centrone (2014, p. 150), a
deformação que tais órgãos produzem tampouco dizem respeito aos seus próprios objetos (a visão pode,
252
todo caso, parece-nos possível afirmar que tais órgãos, ainda que imperfeitos, se
apresentam como os instrumentos de que os seres humanos dispõem para apreender,
registrar e, em seguida, elaborar intelectualmente as afecções que decorrem dos sensíveis
– as imagens –, entre as quais se encontram aquelas produzidas pela linguagem – seja na
sua dimensão acústica, seja na sua dimensão gráfica, visual. Portanto, na medida em que
restariam aos humanos – e ao filósofo, em particular – seus “órgãos obscuros” para aferir
compreensão a partir das imagens com que se deparam (por exemplo, no interior da
Caverna, se recuperamos a imagem da República), e se os signos linguísticos representam
ademais também imagens, é possível concluir preliminarmente, em se admitindo essas
duas premissas, que os signos vocais ou visuais da linguagem poderiam representar
pontos de partida para a investigação filosófica.
Além disso, como vimos na parte anterior, a linguagem revelou-se também meio
pelo qual seria possível realizar a dialética, e pelo qual se torna viável “o falar e o pensar”
(266b4-5: λέγειν τε καὶ φρονεῖν). Em vista disso, é que nos pareceu ser possível admitir
que a linguagem representaria também uma instância intermediária, um “entrelugar”
entre a ignorância e o conhecimento. Ela seria como uma lente que se interpõe entre a
visão turva e indefinida que é característica das almas humanas encarnadas e os objetos
do conhecimento. Por vislumbrarem somente à distância os objetos reais, os amantes do
saber (philósophoi), graças a essa “lente”, podem alcançar maior nitidez, e recobrar, assim,
uma prévia visão das Formas. Compreender a linguagem como uma lente diante do
conhecimento corresponde, em suma, a reconhecer que ela possa, efetivamente,
colaborar para uma visão mais nítida da realidade, mas também implica assumir que ela
não seria de todo modo imune a alguma deturpação, refração ou mesmo ilusão de ótica.
Disso decorre o perigo que se lhe pôde associar quando admitida sem crítica, e, por isso,
a necessária cautela que os humanos deveriam ter ao se servirem dela: como um
phármakon que cura e envenena – e que talvez também cause dependência – os signos
linguísticos não atendem por si mesmos aos anseios da alma filosófica pelo saber.
Em todo caso, se para Platão, a linguagem oral ou escrita, como as demais
imagens, representa o ponto de partida de uma pesquisa filosófica, e se, além disso, pode
ser compreendida como um intermediário entre a ignorância (ou o esquecimento) e o
conhecimento (ou a reminiscência), perguntamo-nos: seria possível dizer que ela é no
com efeito, ter clareza diante dos sensíveis), mas aos objetos do intelecto (nesse sentido, seria também
esclarecedora a passagem do Phd. 65a-67d). Hackforth (1997 [1952], p. 95), por outro lado, com base no
comentário de Hérmias, defende que se trata dos próprios mecanismos da cognição humana, que encontra
dificuldade em discernir as imagens dos objetos reais.
253
Fedro também concebida como um modelo (παράδειγμα) de que Platão teria lançado mão
para compreender o processo filosófico como um todo? Tendo em vista que Platão, em
muitos diálogos, refira-se às letras (γράμματα) quando lhe importa compreender os
limites, os contornos ou as especificidades do fazer filosófico438, poderíamos talvez pensar
que, no seu ambíguo estatuto, elas representem modelos para a compreensão da própria
dialética ou do filósofo?
Assumindo, provisória e preliminarmente, a noção de paradigma (παράδειγμα)
em Platão como “padrão de referência” ou “modelo explicativo”, poderiam as letras
também representar semelhante expediente, para compreensão das operações dialéticas,
de divisão e reunião? E se isso for possível, poderíamos reconhecer a ambivalência da
escrita, consignada na metáfora farmacológica, também na oposição imagem/paradigma,
isto é, enquanto imagem que substitui o real configuraria também um modelo para
compreendê-lo? Em outras palavras: se for possível pensar as letras não somente como
imagem, mas também como paradigma, então talvez seja possível não somente ver no
Fedro uma aplicação dos procedimentos dialéticos de divisão e reunião para pensar o
tema da escrita, conforme vimos na parte β´, mas também compreender que a própria
escrita esteja aí posta como um paradigma para pensar a dialética. Essa é a hipótese que
pretendemos examinar agora.
Assim, nos dois próximos capítulos, desenvolveremos nossas reflexões em torno
dessas questões, em dois eixos principais:
1. no capítulo V, propomo-nos a estabelecer os contornos (ainda que não
definitivos) da noção de paradigma na obra de Platão, a fim de justificar, particularmente,
como é possível associá-la, de forma ampla, ao tema das letras. Para isso, faremos
novamente uma incursão na República e uma reflexão a partir do exame de algumas
passagens do Político. Este último diálogo, embora se admita como sendo posterior ao
Fedro, a ele pode ser associado por representar, de certo modo, uma aplicação da dialética
tal como definida no Fedro – ou seja, o método de divisão e reunião – contribuindo, assim,
438
Nos diálogos platônicos considerados autênticos, o termo grámma e suas flexões são registrados 164
vezes, em dezenove diálogos e na Carta 7 (cf. Brandwood, 1976): Ap. 26d7; Chrm. 159c3, 165a1, a3, 164d5, d6; Ep.
7.325d5, 343d4, 344c8, 347c2; Cra. 390e4, 393d3, e2, e8, 394b4, b5, c1, c2, c7, 399a7, b3, b8, 400c9, 414c6, 418a6,
423e8, 424a9, b9, 425d1, 426d7, 427a3, a6, c2, c4, c7, 430e5, 431c4, c10, c12, d2, e10, 432e1, 432e3, e3, 433b3, b10,
c5, 434d11, 435a9; Criti. 113b2, 119c7, e3, 120a8; Euthd. 277a3, a3, a7, b1, 279e3; Phdr. 229e6, 242c5, 274d2, e4, 275a1,
c3, c5, c6, 276d1; Phlb. 17a8, 18b3, c2, 39d7, 48c9, d2; Grg. 484a4; Hp. Ma. 285d1, d3, Hp. Mi. 368d4; Lg. 3.680a5,
689d3; 4.721e5, 722a7; 6.754d7; 7.793b5, 809b6, c3, e2, e7, 810b1, b5, c1, 812a3, 819b2, 823a1; 9.856a1, 858c6, c6, c7,
e4, e5; 10.886b10, 891a1; 11.914c8, 922a4, 923a5; 12.946d4, 955d7, 957c3, d2, d5, 968d6. Ly. 209b3; Prm. 127c3, d3,
128a3, b8, c3, c7, d3; Plt. 258c8, 290b1, 277e3, 285c10, 292a8, 293a7, a7, b3, b3, 295a6, c8, 296d8, e1, 297a1, 298e8,
299a3, b5, 300a4, c11, 301e9, 302e10; Prt. 325e1, e3, 345a1, a2; R. 2.368d3, d5; 3.402a7, b5; 4.425b8; 5.472d6; Sph.
253a1, 261d1; Tht. 163b5, 199a1, 202e6, 203a2, 204a3, 206a2, 207d8, e1; Ti. 23a6, c3, e3, 24a1, 27b4.
254
para fornecer mais subsídios para a discussão do tema;
2. no capítulo VI, retornaremos ao Fedro e nos deteremos particularmente sobre a
segunda parte da crítica à escrita nele consignada (Phdr. 275d4-278b6), para cuja leitura
evocamos as reflexões anteriores em torno da ambiguidade imagem/paradigma
associada às letras, com o intuito de elucidar as imagens que Platão mobiliza nesse
diálogo para abordar o problema da escrita e do conhecimento.
255
256
V.
PARADIGMAS DO PENSAR
439
Cf. δείκνυμι : « faire voir, montrer, démontrer, indiquer » (Hom. ion.-attique etc.) ; nombreuses formes à
preverbe dans le verbe e dans les formes nominales : ἀνα-, « montrer, proclamer » ; ἀπο-, « démontrer »;
δια-, ἐκ- (rare), ἐν-, « montrer, donner un exemple », employé aussi comme terme rhétorique ; κατα-, « faire
connaître, inventer » ; παρα-, « montrer, donner un modèle » ; περι- (très rare), προ-, « montrar d’avance » ;
προσ- (très rare), συν- (très rare), ὑπο-, « montrer, indiquer, tracer ». Avec le suffixe neutre -μα, δεῖγμα,
« exemple, échantillon, preuve » (ion.-att.), mais aussi « lieu d’exposition de marchandises, marché, bazar »
(X. Lys.) ; avec préverbes ἀνα- (rare), ἐν-, « preuve »; ἐπι-, « exemple, preuve »; παρα-, « modèle, exemple,
preuve par l’exemple », terme important dans les raisonnements des orateurs, c’est aussi le « paradigme »
de Platon.
440
Cf . Brandwood (1976): Ap. 23b1; Ep. 7.332b4; Euthd. 282d4; Euthphr. 6e9; Phdr. 262c9, d1, 264e5; Phlb. 13c8,
53b8, c3; Grg. 525b2, c2, c6, d3; La. 187a7; Lg. 1.632e4; 2.663e9; 3.692c2; 4.722a1; 5.735c4, 739e1, 746b7; 7.794e6,
795a4, 801b9, 811b8, c6, d6; 9.855a1, 862e5, 876e2; 11.927d6, 961e7; Men. 77a9, 79a10; Prm. 132d2; Plt. 275b4, 277b4,
d1, d9, 278b4, c3, e6, e7, e9, 279a4, a7, 287b2, 305e8; Prt. 326c8, 330b2; R. 3.409b1, c7, d2; 5.472c9, d5, d9; 592b2;
6.484c8, 500e3; 7.540a9; 8.529d10, 557e1, 559a8, 561e3; 10.617d5, 618a1; 9.592b2; Sph. 218d9, 221c5, 233d3, 226c1,
235d7, 251a7; Tht. 154c1, 176e3, 202e4; Ti. 24a3, 28c6, 28a7, b2, 29b4, 31a4, 37c8, 38b8, c1, 39e7, 48e5, 49a1.
257
Entretanto, por outro lado, isso poderia também ser indício de que a noção de paradigma
estivesse de algum modo relacionada a desenvolvimentos teóricos das obras do período
de maturidade e velhice, o que justificaria o registro desse termo em praticamente todas
as obras dessa fase441.
Des Places (2004 [1967], p. 401-402), observa que os contextos em que o termo
parádeigma aparece em Platão, embora muito diversos, podem ser nucleados em torno de
quatro sentidos principais:
1. no sentido de “exemplo, amostra”, na conotação mais comum e prosaica do
termo na língua grega, tal como, por exemplo, no Men. 77a9442 ou no Phdr. 262c9443;
2. no sentido de “exemplo, modelo a ser seguido em uma lição”; tal como na Ap.
23b1444;
441
Com efeito, o termo aparece apenas em onze ocasiões nos diálogos de juventude (Ap. 23b1, Euthd. 282d4;
Euthphr. 6e9; Grg. 525b2, c2, c6, d3; Men. 77a9, 79a10; Prt. 326c8, 330b2), estando ausente em muitos dos
diálogos dessa fase (como o Hp. Ma., Hp. Mi., Cri., Ion, Chrm., Lys., Mx.), ao passo que está presente em todos
os diálogos da fase de velhice, com exceção do Crítias.
442
Cf. Men. 77a3-b1, tradução de Maura Iglésias (2001):
SÓC.: Mas não é seguramente por falta de empenho, absolutamente, que deixarei de falar coisas
desse tipo, tanto no teu interesse quanto no meu. Mas talvez não sejas capaz de dizer muitas dessas
coisas. Mas, vê lá!, tenta também tu pagar a promessa que me fizeste, dizendo, sobre a virtude, o que
ela é como um todo, e para de fazer muitas coisas a partir do que é um, como os trocistas dizem que
fazem aqueles que quebram alguma coisa, a cada vez <que isso acontece>. Antes, deixando-a íntegra
a sã, dize o que é a virtude. Os paradigmas (παραδείγματα) já recebeste de mim. (Cf. {ΣΩ.} Ἀλλὰ μὴν
προθυμίας γε οὐδὲν ἀπολείψω, καὶ σοῦ ἕνεκα καὶ ἐμαυτοῦ, λέγων τοιαῦτα· ἀλλ' ὅπως μὴ οὐχ οἷός τ'
ἔσομαι πολλὰ τοιαῦτα λέγειν. ἀλλ' ἴθι δὴ πειρῶ καὶ σὺ ἐμοὶ τὴν ὑπόσχεσιν ἀποδοῦναι, κατὰ ὅλου
εἰπὼν ἀρετῆς πέρι ὅτι ἐστίν, καὶ παῦσαι πολλὰ ποιῶν ἐκ τοῦ ἑνός, ὅπερ φασὶ τοὺς συντρίβοντάς τι
ἑκάστοτε οἱ σκώπτοντες, ἀλλὰ ἐάσας ὅλην καὶ ὑγιῆ εἰπὲ τί ἐστιν ἀρετή. τὰ δέ γε παραδείγματα παρ'
ἐμοῦ εἴληφας).
443
Cf. Phdr. 262c5-9, tradução de Maria Cecília Gomes dos Reis (2016):
SÓC.: Queres ver então, no discurso que trazes de Lísias e naqueles que nós proferimos, algum dos
traços que dissemos constituir o que é dotado ou desprovido de arte?
FEDR: Mais do que qualquer outra coisa, já que até agora falamos de modo abstrato, não dispondo
de exemplos (παραδείγματα) adequados.
(Cf. {ΣΩ.} Βούλει οὖν ἐν τῷ Λυσίου λόγῳ ὃν φέρεις, καὶ ἐν οἷς ἡμεῖς εἴπομεν ἰδεῖν τι ὧν φαμεν
ἀτέχνων τε καὶ ἐντέχνων εἶναι;
{ΦΑΙ.} Πάντων γέ που μάλιστα, ὡς νῦν γε ψιλῶς πως λέγομεν, οὐκ ἔχοντες ἱκανὰ παραδείγματα.).
444
Cf. Ap. 22e6-23b4, tradução de André Malta (2014):
Foi precisamente por causa dessa “inspeção”, varões atenienses, que surgiram muitos ódios contra
mim, e assim tão duros e pesados que a partir deles então muitas calúnias começaram a surgir – e fui
chamado desse nome, de “sábio”... Pois os circunstantes toda vez pensam que eu mesmo sou sábio
nas coisas a respeito das quais refuto alguém, mas corre-se o risco, varões, de, na realidade, o deus ser
sábio, e com aquele oráculo afirmar isto: que a sabedoria humana pouco ou nada vale. Parece ainda
que ele não fala aquilo de Sócrates, mas se serve do meu nome para fazer de um modelo (παράδειγμα),
como se dissesse – “Entre vocês homens o mais sábio é qualquer um que, como Sócrates, tenha
reconhecido que, na verdade, em sabedoria não vale nada”.
(Cf. Ἐκ ταυτησὶ δὴ τῆς ἐξετάσεως, ὦ ἄνδρες Ἀθηναῖοι, πολλαὶ μὲν ἀπέχθειαί μοι γεγόνασι καὶ οἷαι
χαλεπώταται καὶ βαρύταται, ὥστε πολλὰς διαβολὰς ἀπ' αὐτῶν γεγονέναι, ὄνομα δὲ τοῦτο λέγεσθαι,
σοφὸς εἶναι· οἴονται γάρ με ἑκάστοτε οἱ παρόντες ταῦτα αὐτὸν εἶναι σοφὸν ἃ ἂν ἄλλον ἐξελέγξω.
τὸ δὲ κινδυνεύει, ὦ ἄνδρες, τῷ ὄντι ὁ θεὸς σοφὸς εἶναι, καὶ ἐν τῷ χρησμῷ τούτῳ τοῦτο λέγειν, ὅτι ἡ
ἀνθρωπίνη σοφία ὀλίγου τινὸς ἀξία ἐστὶν καὶ οὐδενός. καὶ φαίνεται τοῦτον λέγειν τὸν Σωκράτη,
προσκεχρῆσθαι δὲ τῷ ἐμῷ ὀνόματι, ἐμὲ παράδειγμα ποιούμενος, ὥσπερ ἂν <εἰ> εἴποι ὅτι “Οὗτος
ὑμῶν, ὦ ἄνθρωποι, σοφώτατός ἐστιν, ὅστις ὥσπερ Σωκράτης ἔγνωκεν ὅτι οὐδενὸς ἄξιός ἐστι τῇ
ἀληθείᾳ πρὸς σοφίαν.”
258
3. no sentido de “modelo de investigação, padrão de referência ou, ainda,
paralelo”, como, por exemplo, no Sph. 218d9445 e no Plt. 277d9446;
4. no sentido de “modelo aplicado à compreensão das Formas”, como, por
exemplo, R. 6.500e3447.
Enquanto os dois primeiros, mais ligados aos sentidos comuns da palavra grega,
parecem evocar uma reflexão ética e metodológica da pesquisa filosófica; os dois últimos
sugerem desdobramentos que, transcendendo questões meramente metodológicas,
parecem implicar também compromissos teóricos com os princípios da epistemologia e
ontologia platônicas, estreitamente ligados às noções de dialética e de Formas. Nos
próximos tópicos, iremos nos deter particularmente no exame desses dois últimos
sentidos da noção de paradigma, buscando distinguir uma primeira formulação, que
associa a noção de paradigma àquela de Formas (cf. R. 6.500e3, 7.540a9, 9.592b2); de uma
445
Cf. Sph. 218c5-e1, tradução de Carlos Alberto Nunes (1980):
SÓC.: (...) A tribo dos sofistas que nos dispomos a investigar não é fácil de definir. Mas para levar a
um bom termo empresas grandes, segundo preceito antigo de aceitação geral, só será de vantagem
experimentar antes as forças em temas menores e mais fáceis, e só depois passar para as maiores. Por
isso, Teeteto, o que na presente situação sugiro para nós dois, já que reconhecemos ser difícil e
trabalhosa a raça dos sofistas, é nos exercitarmos primeiro nalgum tema simples, a menos que te
ocorra indicar um caminho mais cômodo.
TEET.: Não, nada me ocorre nesse sentido.
ESTR.: Concordas, então, em escolhermos um exemplo (παράδειγμα) singelo e apresentá-lo como
modelo para o maior?
TEET.: Concordo.
(Cf. {ΣΩ.} ... τὸ δὲ φῦλον ὃ νῦν ἐπινοοῦμεν ζητεῖν οὐ πάντων ῥᾷστον συλλαβεῖν τί ποτ' ἔστιν, ὁ
σοφιστής· ὅσα δ' αὖ τῶν μεγάλων δεῖ διαπονεῖσθαι καλῶς, περὶ τῶν τοιούτων δέδοκται πᾶσιν καὶ
πάλαι τὸ πρότερον ἐν σμικροῖς καὶ ῥᾴοσιν αὐτὰ δεῖν μελετᾶν, πρὶν ἐν αὐτοῖς τοῖς μεγίστοις. νῦν οὖν,
ὦ Θεαίτητε, ἔγωγε καὶ νῷν οὕτω συμβουλεύω, χαλεπὸν καὶ δυσθήρευτον ἡγησαμένοις εἶναι τὸ τοῦ
σοφιστοῦ γένος πρότερον ἐν ἄλλῳ ῥᾴονι τὴν μέθοδον αὐτοῦ προμελετᾶν, εἰ μὴ σύ ποθεν
εὐπετεστέραν ἔχεις εἰπεῖν ἄλλην ὁδόν.
{ΘΕΑΙ.} Ἀλλ' οὐκ ἔχω.
{ΞΕ.} Βούλει δῆτα περί τινος τῶν φαύλων μετιόντες πειραθῶμεν παράδειγμα αὐτὸ θέσθαι τοῦ
μείζονος;
{ΘΕΑΙ.} Ναί).
446
Cf. Plt. 277d1-7, tradução de Jorge Paleikat e João Cruz da Costa (1987):
ESTR.: Seria difícil, meu caro amigo, tratar satisfatoriamente um assunto importante sem recorrer a
paradigmas (παραδείγμασι). Poderíamos quase dizer que cada um de nós conhece todas as coisas
como sonho, mas que, à luz do despertar, se apercebe nada saber.
SÓC. JOV.: Que queres dizer?
ESTR.: Parece-me ser uma descoberta curiosa que me leva a falar em que consiste, em nós, a ciência.
(Cf. {ΞΕ.} Χαλεπόν, ὦ δαιμόνιε, μὴ παραδείγμασι χρώμενον ἱκανῶς ἐνδείκνυσθαί τι τῶν μειζόνων.
κινδυνεύει γὰρ ἡμῶν ἕκαστος οἷον ὄναρ εἰδὼς ἅπαντα πάντ' αὖ πάλιν ὥσπερ ὕπαρ ἀγνοεῖν.
{ΝΕ. ΣΩ.} Πῶς τοῦτ' εἶπες;
{ΞΕ.} Καὶ μάλ' ἀτόπως ἔοικά γε ἐν τῷ παρόντι κινήσας τὸ περὶ τῆς ἐπιστήμης πάθος ἐν ἡμῖν).
447
Cf. R. 6.500d10-e4:
- Mas se a multidão sentir que dizemos a verdade sobre os filósofos, por acaso vão tratá-los mal e
desconfiarão de nós, ao dizermos que a cidade não seria feliz de outro modo, a não ser que os
pintores a pintassem fazendo uso de um paradigma divino?
(Cf. Ἀλλ' ἐὰν δὴ αἴσθωνται οἱ πολλοὶ ὅτι ἀληθῆ περὶ αὐτοῦ λέγομεν, χαλεπανοῦσι δὴ τοῖς φιλοσόφοις
καὶ ἀπιστήσουσιν ἡμῖν λέγουσιν ὡς οὐκ ἄν ποτε ἄλλως εὐδαιμονήσειε πόλις, εἰ μὴ αὐτὴν
διαγράψειαν οἱ τῷ θείῳ παραδείγματι χρώμενοι ζωγράφοι;)
259
segunda, que permite concebê-lo como um modelo explicativo para a compreensão da
dialética e das Formas (cf. R. 7.529d7; Plt. 277d1, 278e6, e8, e9).
A assim chamada “Teoria das Formas”, salvo raras exceções (como na primeira
parte do Parmênides e em algumas passagens pontuais do Fédon), não é diretamente
tratada por Platão e sequer é reconhecida unanimemente como uma “teoria” entre
comentadores. Conforme comenta Ferrari (2018b, p. 216), na maior parte das vezes há
alusões às Formas ao longo do corpus Platonicum como se tratasse de um princípio já
conhecido pelos dialogantes, fato que torna bastante difícil para o intérprete estabelecer
com precisão os contornos dessa que devia representar entretanto um pensamento
original, complexo e não desprovido de tensões teóricas significativas ainda mesmo no
âmbito da Academia448. Em que pese isso, é possível admitir que, em determinada fase
da obra de Platão, as Formas tenham sido consideradas modelos ou padrões de referência
inteligíveis para a compreensão da realidade na sua dimensão fenomênica. Tal é, por
exemplo, a reflexão sobre as Formas que se estende na esteira do artigo seminal de H.
Cherniss (1936), cuja proposição, em certa medida, encontra eco nos trabalhos de R. Bluck
(1957), Prior (1983), Parry (2001) e R. Dancy (2004), limitando-nos a citar apenas algumas
referências da longuíssima bibliografia especializada sobre o tema.
Cherniss (1936) sublinhava particularmente o caráter “econômico” da teoria: em
resposta a propostas por vezes paradoxais no campo da ética, da epistemologia e da
ontologia então correntes em meados do século V, Platão teria apresentado as Formas,
segundo Cherniss, como hipótese de trabalho para compreender, de forma coerente,
fenômenos relativos a esses três âmbitos ou níveis de sua investigação, apresentando um
448
Conforme esclarece Ferrari (2018b, p. 213), a concepção das Ideias (ou Formas), em Platão, desde a
Antiguidade, representa um dos nós teóricos mais importantes e controversos da filosofia de Platão: “O
destino da conceção das Ideias afigura-se particularmente singular: no fim da Antiguidade, ela foi
considerada um dos pontos cardeais da filosofia de Platão, a ponto de ser identificada com esta; todavia, os
três maiores representantes da Academia, isto é, Espeusipo, Xenócrates e Aristóteles, se distanciaram desta
doutrina, ora a rejeitando (Espeusipo e Aristóteles), ora a modificando significativamente (Xenócrates)”.
Contemporaneamente, não existe também consenso sobre o tema. Entre as questões principais, estão o
problema da autopredicação, a sua natureza ontológica, uma possível evolução do conceito (ou mesmo seu
abandono, em certa fase da obra, tese defendida por alguns comentadores) e sua causalidade (se, em sentido
lógico, ontológico, epistemológico etc.). Alguns nomes importantes nesse debate são: Cherniss (1936);
Vlastos (1954; 1969); Fronterrota (2001). Ferrari (2005) argumenta que a tese de que o segmento inicial do
Parmênides (128e-134e), que contém objeções contra a doutrina das Formas, seja um testemunho da crise
enfrentada pela versão clássica dessa doutrina, que teria, por isso, sido abandonada e substituída por uma
versão mais refinada, é equivocada na medida em que o contexto traz à baila uma série de pressupostos
não-platônicos e revela um equívoco em relação à concepção eidética, o que não permite que assumamos
tal crítica como o posicionamento filosófico de Platão.
260
“cosmos racionalmente unificado” para compreensão dos fenômenos449. As Formas
deveriam, portanto, ser compreendidas como um padrão (standard), um paradigma
alternativo ao relativismo ético, por exemplo, dos dissoi lógoi450; ao sensacionalismo
epistêmico, por exemplo, da tradição protagórica451; e à perspectiva ontológica
puramente fenomênica, limitada à percepção da realidade como fluxo452.
Bluck (1957), compreende as Formas enquanto paradeígmata, no sentido de que
representariam, como lhe teria sugerido Wittgenstein453, padrões ou modelos (standards)
em relação aos quais os objetos sensíveis seriam ‘cópias’, tal como o padrão de medida de
peso da libra inglesa seria um padrão de referência para o peso efetivo dos objetos na vida
comum. Entretanto, Bluck pondera que a metáfora wittgensteiniana comporta certo grau
de imprecisão e deveria ser lida com cautela: uma vez que as Formas são objetos
puramente intelectuais (νοητόν) e não sensíveis (αἰσθητόν), elas não poderiam ser
449
Cf. Cherniss (1936, p. 445): “The phenomena for which Plato had to account were of three kinds, ethical,
epistemological, and ontological. In each of these spheres there had been developed by the end of fifth
century doctrines so extremely paradoxical that there seemed to be no possibility of reconciling them with
one another or any one of them with the observable facts of experience. The dialogues of Plato, I believe,
will furnish evidence to show that he considered it necessary to find a single hypothesis which would at
once solve the problems of these several spheres and also creat a rationally unified cosmos by establishing
the connection among the separate phases of experience”.
450
A busca por um referencial ético se revela, por exemplo, nos diálogos da primeira fase, nos quais o
tratamento de problemas éticos revela a necessidade de criar um padrão ético, ideia já presente em
Demócrito (DK fr. 56; 248) contra o relativismo de Protágoras (p. 446). Os diálogos de pesquisa [aporéticos,
da 1a fase], ao demonstrar a inutilidade de outros expedientes, mostram, como notou Cherniss, que as
definições são pré-requisitos de uma ética normativa, são possíveis somente mediante a assunção de que
existe, fora dos fenômenos, objetos substantivos dessas definições, que são a fonte dos valores ligados à
existência fenomenológica, como nos diálogos Eutífron (15c11e2), Laques (199e; 200e-201a), Lísis (222e),
Cármides (176a), Hípias menor (376b). A possibilidade de fazer distinções de natureza ética implica diferenças
objetivas que requerem um padrão de referência (no caso, as Formas). (Cf. Cherniss, 1936, p. 446-447).
451
A necessidade epistemológica da hipótese das Formas, como notou Cherniss, decorre da diferenciação
entre intelecção, sensação e opinião. A opinião correta, assim como a sensação, está no âmbito dos
fenômenos, ao passo que o conhecimento deriva do contato do sujeito com seu objeto (as Formas). Contudo,
o sujeito não tem como entrar em contato direto com os objetos sensíveis (precisando da intermediação dos
sentidos), nem com os objetos inteligíveis (com os quais teve contato prévio, sendo, preciso, portanto,
rememorar). As Formas são, portanto, a intermediação entre os fenômenos e o sujeito do conhecimento: as
Formas são os objetos do conhecimento, entidade à parte do mundo sensorial. Portanto, as Formas são uma
maneira de evitar o sensacionalismo de Protágoras ou o niilismo psicológico de Górgias (Cf. Cherniss, 1936,
p. 452).
452
Ainda segundo Cherniss, a partir da percepção de que os fenômenos são a expressão da mudança e do
fluxo, se as Formas se limitassem a sua perspectiva ética e epistemológica, ela se tornaria mera hipótese
pragmática, e mesmo as distinções de bom e mal, certo e errado, quando tomadas ontologicamente, seriam
convencionais e artificiais. Por isso, Platão (sobretudo no Timeu) reconhece a necessidade de estudar a
ontologia independentemente das exigências da ética e da epistemologia. Os dados da realidade, contudo,
são fenômenos mutáveis do mundo físico (caracterizam a existência fenomenológica e que Platão
reconhece: o fluxo). Contudo, a mudança só é possível com a assunção de que haja coisas que não mudam
(as Formas). No Timeu (50c, 51a7-b1), Platão insiste na existência de ideias substantivas de ar, fogo, água,
terra, exteriores aos fenômenos. De fato, embora os fenômenos se caracterizem pela mudança e
instabilidade, é preciso que haja ideias que nos tornem estáveis; sem elas, não haveria qualquer estabilidade
no cosmos (Cf. Cherniss, 1936, p. 454-456).
453
A analogia de Wittgenstein sobre as Formas aparece, pela primeira vez, no artigo de P. T. Geach (1956, p.
74), ao qual Bluck faz referência em nota.
261
tomadas como entidades relativas, i.e. não seriam dependentes de quaisquer
circunstâncias tais como tempo, mudança etc., e, por essa razão, na condição de um
paradigma, i.e. de um padrão de referência (standard), as Formas não poderiam ser
relacionadas a uma experiência de comparação (sensível), entre o “mais” (pesado, no
caso) e o “menos”. Para este comentador, “a Forma, como um padrão, cobre uma gama
mais vasta que um padrão sensível poderia cobrir, e o pode fazer precisamente porque é
νοητόν e não αἰσθητόν” (Bluck, 1956, p. 116)454, do que se conclui que tal padrão (standard)
pode somente ser apreendido pela mente e, portanto, não pode ser dotado dos atributos
próprios às instâncias sensíveis455.
Há uma vasta bibliografia reunindo autores que, na linha de Cherniss (1936) e
Bluck (1957), subscreveram a noção de que as Formas possam representar modelos ou
padrões inteligíveis, paradéigmata456. Entretanto, W. J. Prior, em seu artigo de 1983,
problematiza a associação automática entre paradigmas e Formas. Prior sugere que,
assim como o seu cognato em língua inglesa, o termo teria diferentes sentidos, podendo
significar tanto “exemplo/modelo” (example/model), quanto “padrão” (pattern). Segundo
Prior (1983, p. 33), aqueles estudos que associavam simplesmente paradéigma às Formas
não deixam de apresentar vantagens analíticas evidentes457, entretanto, tais vantagens
parecem coexistir com fragilidades teóricas incontornáveis: se as Formas representam
modelos inteligíveis de determinada propriedade e se algumas propriedades dizem
respeito a particulares, seria preciso então conceber a existência de Formas de
particulares (Forma da Cama, Forma de um Animal X, Forma de um Veículo Automotor
etc.), o que parece francamente embaraçoso e inadmissível à luz da obra de Platão (ainda
454
Cf. “The Form as a standard in some cases covers a wider range than a sensible standard could, and it is
able to do so precisely because it is νοητόν and not αἰσθητόν”.
455
Uma das consequências desse raciocínio, a que Bluck chega ao final do seu artigo, é desfazer o Argumento
do Terceiro Homem (presente no Parmênides e retomada por Aristóteles). O argumento seria falacioso na
medida em que admite uma compreensão equivocada das Formas, não a compreendendo como um padrão.
“Finally, if Forms are standards, what of the Third Man Argument (TMA) in the Parmenides? If, when a Form
was grouped with its homonymous particulars, we had to assume a further Form to account for the
similarity betweent them, the original Form could hardly be regarded as a standard after all. The answer,
in my view, is that Plato means us to infer from the Parmenides that the positing of a further Form is not
necessary. The TMA is a reductio ad absurdum of false views of the circumstances in which a Form must be
posited: we do not have to posit a new one every time we find a group of things that are called by the same
name X, or resemble each other in respect of being X. All that is necessary is that there should be one Form
to be ‘standard’, even if we happen to be treating that Form as (qua an X) a member of the group of X things
(which we may properly do, if we wish)” (Bluck, 1957, p. 124).
456
Como exemplo desses estudos, poderíamos citar os trabalhos de Allen, 1965, 1970; Brownstein, 1973;
Strang in Vlastos, 1971, Dancy, 2004 entre outros.
457
Cf. Prior (1983, p. 33), compreender as Formas como parádeigmata e os paradigmas como “modelos” para
os sensíveis resolve algumas questões interpretativas, 1) oferece uma base para a teoria da auto-predicação
(uma Forma F é em si mesma F); 2) coaduna-se com a ideia de que os participantes de uma Forma F se
assemelham, imitam ou reflete tal propriedade F (isto é: possui a propriedade F de um modo derivado,
enquanto a Forma F a tem de forma plena, “em si mesma”).
262
que alguns sustentem que tal possa ter sido a posição de Platão quando da formulação de
sua doutrina na fase de juventude – para isso, entretanto, o comentador replica não haver
evidências textuais).
Em segundo lugar, na melhor das hipóteses de as Formas serem tomadas como
“modelos inteligíveis” de propriedades individuais, isso não se poderia aplicar a todas as
Formas. Não faria sentido admitir que as Formas a que Platão confere mais atenção nos
seus diálogos tardios (as Formas da Unidade, do Ser, da Igualdade, da Diferença) tenham
como função principal serem modelos dos atributos que representam (o que, todavia, se
poderia admitir, por exemplo, a respeito de outras Formas, como a Forma do Belo: esta
poderia ser, de fato, modelo inteligível da beleza)458. Finalmente, nos próprios diálogos
em que Platão parece fazer referência às Formas como paradigmas, no sentido de
“modelos inteligíveis” (como, por exemplo, no Euthphr. 6d-e; 72b), o filósofo parece
contradizer essa mesma posição: a exigência de generalidade das Formas (unidade na
multiplicidade) não se coaduna com o fato de que elas sejam modelos de referência, mas
leva a assumi-las, antes, como entidades imanentes, havendo, nisso, um conflito
irreconciliável459.
O ponto de Prior (1983, p. 36) é, então, compreender o termo parádeigma na
polissemia ínsita à própria palavra, que pode significar tanto “modelo, exemplo” (model,
example), quanto “padrão” (pattern). Enquanto um modelo (ou exemplo) diz respeito a
características particulares, um padrão (pattern) remete a uma noção inerentemente
geral. Desse modo, Prior pensa que Platão utiliza o termo nesses dois sentidos ao longo
de sua obra, não sendo possível, em alguns casos, aferir com certeza em que sentido o
termo é utilizado. Porém, nas passagens em que a discussão faz referência às Formas, o
sentido de parádeigma seria sempre o de “padrão” (pattern), e não “modelo, exemplo”
(model)460.
Embora se poderiam levantar questões quanto ao método de que Prior se utiliza
para determinar que sentido específico a palavra parádeigma deve assumir em suas
458
Nesse passo, Prior (1983) considera os “grandes gêneros” do Sofista como Formas. Admitindo isso, não faz
sentido que tais Formas sejam paradigmas. No Sofista, postula-se, por exemplo, que todas os demais gêneros
participam do Ser; se o Ser representa um paradigma, e a relação de participação pressupõe uma relação
de imagem-paradigma, seria preciso admitir que os demais gêneros representariam “imagens”.
459
Tampouco, conforme observa Prior (1983, p. 35), se poderia admitir que se trata de um desenvolvimento
no pensamento de Platão, considerando uma cronologia mais favorável dos diálogos, haja vista que se
poderia encontrar no Timeu a mesma noção de Forma como paradigma presente nos diálogos de juventude.
Para isso, seria preciso repensar a cronologia da obra de Platão, o que contudo não parece poder ser
resolvido de forma definitiva ou totalmente.
460
Prior elenca as seguintes referências: Euthphr. 6e; R. 5.472c, 6.500e, 7.540a, 9.592b; Tht. 176e; Prm. 132d; Ti.
28a-c, 29b, 31a, 37c, 38b-c, 39e, 48e-49a.
263
diferentes ocorrências no corpus Platonicum, seu artigo não deixa de lançar luz sobre a
distinção entre paradigma tomado como padrão inteligível, remetendo às Formas, e um
segundo sentido dessa palavra, o qual nos resta ainda precisar. Por ora, estendamos ainda
a discussão em torno desse primeiro sentido: parádeigma como padrão inteligível
(pattern), uma referência às próprias Formas, mostrando, a título de ilustração, algumas
breves passagens da República.
No livro VI da República, observa-se um esforço em determinar a natureza do
filósofo. O filósofo não é aquele que detém um conhecimento ou uma dóxa. Por oposição
aos não-filósofos, que se mantêm presos ao múltiplo e variável (484b5: ἐν πολλοῖς καὶ
παντοίως ἴσχουσιν), os filósofos se caracterizam pela “capacidade de atingir o que se
mantém do mesmo modo” (484b4-5: οἱ τοῦ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ ὡσαύτως ἔχοντος δυνάμενοι
ἐφάπτεσθαι). Dois aspectos saltam aos olhos: primeiro que o ser filósofo se caracteriza
por uma capacidade, uma potência (uma dýnamis), não por uma faculdade completa e
acabada. Em segundo lugar, fica também claro que o modo de ação do filósofo pode ser
caracterizado como um esforço em direção a algo (sugerido, por exemplo, pelo verbo
ἐφάπτεσθαι, “atingir”, “alcançar”), e que o alvo desse movimento são os entes inteligíveis
e invariáveis, as Formas. O filósofo, portanto, parece estar colocado como o intermediário
entre a condição humana não-filosófica (perdida e errante entre as coisas múltiplas e
variáveis) e uma condição divina, que, em tese, teria a posse absoluta dos inteligíveis. Por
isso, o filósofo se caracteriza, sobretudo, como um “apaixonado pelo conhecimento que
lhe pode revelar algo daquela essência do que sempre é” (485b1-2: μαθήματός γε ἀεὶ
ἐρῶσιν ὃ ἂν αὐτοῖς δηλοῖ ἐκείνης τῆς οὐσίας τῆς ἀεὶ οὔσης). No horizonte do filósofo
estão, portanto, as Formas, essa “essência do que sempre é” (οὐσία τῆς ἀεὶ οὔσης); mas,
como ponto de partida, ele possui éros, o desejo que o impulsiona. É nesse contexto que
as Formas assomam como o paradigma, como o padrão inteligível (pattern) que justifica a
sua ação:
461
Cf. Ἀλλ' ἐὰν δὴ αἴσθωνται οἱ πολλοὶ ὅτι ἀληθῆ περὶ αὐτοῦ λέγομεν, χαλεπανοῦσι δὴ τοῖς φιλοσόφοις καὶ
ἀπιστήσουσιν ἡμῖν λέγουσιν ὡς οὐκ ἄν ποτε ἄλλως εὐδαιμονήσειε πόλις, εἰ μὴ αὐτὴν διαγράψειαν οἱ τῷ
θείῳ παραδείγματι χρώμενοι ζωγράφοι;
264
exercício poético, uma espécie de figuração para compreender no plano macro o que
corresponderia ao micro ao se tentar determinar o que é a justiça462, não é de se admirar
que, no livro VI, na passagem citada acima, a cidade esteja representada como a obra de
artistas, de pintores (ζωγράφοι). O que é digno de nota é que tais pintores, se desejam
figurar uma cidade feliz (εὐδαιμονήσειε πόλις), deveriam fazê-lo segundo um “paradigma
divino” (τῷ θείῳ παραδείγματι). Considerando que toda a discussão anterior quanto à
educação dos guardiões, a partir do livro III, indicava que aquele a ter a incumbência de
governar a cidade deveria possuir as virtudes em seu grau de excelência – justiça,
temperança, coragem e sabedoria – assim como adquirir o domínio do método e da
ciência que lhe permitiriam alcançar algo ainda mais elevado – a Forma do Bem –; e
considerando ainda que essa discussão levara Sócrates a introduzir a doutrina dos
inteligíveis, parece-nos possível concluir que nessa passagem, tais pintores/filósofos
estão associados àqueles que desenvolveram a capacidade de conhecer as Formas e,
portanto, de adquirir aquelas virtudes que os elevam acima dos demais, tornando-os
livres de qualquer suspeita ou desconfiança dos concidadãos463. Parece-nos claro,
portanto, que o “paradigma divino” a que se faz menção nessa passagem possa
efetivamente estar associado às Formas, cuja apreensão perfeita e plena, conforme já
havíamos notado, é inerente à condição divina, mas cujo esforço de alcançá-las é
apanágio do filósofo.
Outra passagem que nos permite associar a noção de parádeigma a um “padrão
inteligível”, mantendo aqui a distinção de Prior (1983), está no livro VII. Logo após nos
apresentar a alegoria da Caverna (7.514a-517d), Gláucon e Sócrates voltam a discorrer
sobre as características do saber do filósofo, avaliando suas relações e afinidades com
tékhnai como a geometria e a astronomia, chegando, enfim, à postulação da dialética
462
A ideia de que a construção da cidade é uma poíesis (“fabricação, construção, criação, produção”) revela-
se, por exemplo, no livro II, quando os dialogantes propõem pensar sobre a construção de uma cidade, como
exercício intelectual para compreender em uma escala mais ampla (a cidade) o que ocorre também com o
indivíduo (a justiça ou injustiça): “Então eu disse: vamos, criar uma cidade em palavras, desde o início. Ao
que parece, são as nossas necessidade que vão criá-la (R. 2.369c9-10, cf. Ἴθι δή, ἦν δ' ἐγώ, τῷ λόγῳ ἐξ ἀρχῆς
ποιῶμεν πόλιν· ποιήσει δὲ αὐτήν, ὡς ἔοικεν, ἡ ἡμετέρα χρεία, grifos nossos).
463
De acordo com Emlyn-Jones & Preddy (2013, p. xxv), o argumento de que a cidade deveria ser governada
por reis-filósofos é consequência da tensão entre conhecimento (ἐπιστήμη) e crença/opinião (δόξα).
Segundo os comentadores, essa polaridade tem significado não somente ontológico e epistemológico (da
ordem do que é e não é real e do que se pode ou não pode conhecer), mas também implicações políticas. Se
tal passagem é lida de acordo com a assim chamada “Teoria dos dois mundos”, os filósofos, mesmo que
tenham tido acesso aos inteligíveis, serão não mais aptos que os demais para lidar com o mundo dos
sensíveis. Assim, o significado político da República é em grande parte diminuído em prol de uma reflexão
eminentemente metafísica e psicológica. Essa é a posição sustentada, por exemplo, por Annas (1981,
capítulos 8 e 9, p. 180-241). Por outro lado, mais recentemente, a interpretação da hipótese das Formas pela
lente da “Teoria dos dois mundos” tem sido amplamente questionada, em prol de uma leitura de Platão
menos dualista e metafísica. A esse respeito, podemos citar, por exemplo, a discussão de Sedley (2007, p.
256-283). A nossa perspectiva se afiniza mais com essa segunda interpretação.
265
como o método não-hipotético para a apreensão da essência de cada coisa através do lógos
(533d-534b), uma forma de saber mais elevada, acima de todas as ciências (534e). Os
dialogantes examinam o perfil do candidato a filósofo, e reconhecem que ele deve ter
agudeza de espírito (535b), memória, força e apreço pelo trabalho (535c), possuir
temperança, coragem e grandeza da alma (536a), devendo-se ainda aplicar a estudos
propedêuticos e ser rigorosamente selecionado entre os que apresentam as mais
excelentes qualidades naturais (537d), não lhe sendo também descuidada a educação
dialética, a qual deve ter início quando é ainda pequeno (539b-d).
Somente depois de terem exposto esse extenso e rigoroso “currículo”, é que se
chegará, enfim, ao momento em que se deverá pôr à prova o candidato a filósofo, prova
que consiste em “descer novamente à caverna” (540a), a fim de ver se se mantêm firmes
as suas qualidades. Somente ao termo desse longo percurso de saída e retorno da e à
caverna, o filósofo, em fase mais avançada da vida, estaria pronto para se engajar no
movimento que lhe permite a contemplação do supremo paradigma, aqui tomado como
aquele padrão de referência inteligível a ser usado em seu estar-na-cidade:
464
Cf. γενομένων δὲ πεντηκοντουτῶν τοὺς διασωθέντας καὶ ἀριστεύσαντας πάντα πάντῃ ἐν ἔργοις τε καὶ
ἐπιστήμαις πρὸς τέλος ἤδη ἀκτέον, καὶ ἀναγκαστέον ἀνακλίναντας τὴν τῆς ψυχῆς αὐγὴν εἰς αὐτὸ
ἀποβλέψαι τὸ πᾶσι φῶς παρέχον, καὶ ἰδόντας τὸ ἀγαθὸν αὐτό, παραδείγματι χρωμένους ἐκείνῳ, καὶ πόλιν
καὶ ἰδιώτας καὶ ἑαυτοὺς κοσμεῖν τὸν ἐπίλοιπον βίον ἐν μέρει ἑκάστους, τὸ μὲν πολὺ πρὸς φιλοσοφίᾳ
διατρίβοντας (...).
266
aparece também no Fedro e em outros diálogos como uma forma de aludir ao processo
do conhecer.
No trecho citado acima, sugere-se que a alma filosófica é dotada de um órgão que
permite, a um tempo, iluminar e ver. Trata-se do substantivo αὐγή, que figura na
expressão τῆς ψυχῆς αὐγὴν, “olhos da alma”. O termo admite em grego também os
sentidos de “brilho”, “luz”. Contudo, a mera posse de um órgão de visão não parece ser o
suficiente para o exercício da visão e, logo, para o conhecer. Espera-se que haja também
uma certa mobilização, aqui representada pelo esforço que o filósofo precisa empreender
para direcionar o seu olhar para a contemplação do Bem em si (τὸ ἀγαθὸν αὐτό). A
adequada percepção, que permite, como consequência, ordenar (κοσμεῖν) a cidade
(πόλιν), os indivíduos (ἰδιώτας) e o próprio filósofo (ἑαυτοὺς), tem como condição esse
movimento do olhar que o leva à apreensão de um “paradigma” (παραδείγμα). Logo, fica
também claro que, se tal movimento é uma metáfora para a compreensão do filosofar –
processo que, conforme vimos, representa a busca pelo conhecimento das Formas e,
particularmente, da Forma do Bem – o seu resultado tampouco é alheio a um
engajamento político. Em outras palavras, a contemplação do paradigma não emerge
desvinculada de suas consequências para a vida na cidade. Vale a pena evidenciar ainda
que se o paradigma parece aqui estar vinculado às Formas, ele tampouco pode ser
tomado automaticamente como o seu substituto ou sinônimo. De fato, entre o Bem em si
mesmo (τὸ ἀγαθὸν αὐτό) e o paradigma (παράδειγμα), nota-se que há uma relação
instrumental, gramaticalmente explicitada pelo emprego do dativo (παραδείγματι): uma
vez que a Forma é contemplada por meio do órgão interior da alma, cabe ao filósofo se
utilizar (χρωμένους) do resultado dessa contemplação para orientar sua ação na cidade.
Finalmente, uma terceira passagem que consideramos exemplar da associação
entre paradigma e Formas é a emblemática conclusão do livro IX da República, onde
encontramos a última ocorrência desse termo nesta obra. Em linhas muito sumárias,
poderíamos dizer que os livros VIII e IX consistem, respectivamente, no exame das
diferentes formas de constituição da pólis, suas vantagens e suas formas de deterioração
(livro VIII) e na discussão sobre o caráter da alma daqueles que estão à frente de cada
uma das formas de governo que são aí examinadas, mantendo-se a analogia entre a
cidade e o indivíduo (livro IX).
No quadro da discussão sobre as fragilidades próprias ao timocrata, ao oligarca,
ao democrata e ao tirano, emerge novamente a figura do filósofo como quem tem o perfil
adequado para ocupar a posição de governante. As razões para tal seriam, entre outras
coisas, o fato de ele demonstrar ter um equilíbrio entre a saúde do corpo e da alma (591c-
267
d), de não se deslumbrar com o excesso de riquezas, nem se inquietar com sua escassez,
e de saber administrá-la sensatamente (591e); e, enfim, por aceitar receber apenas
honrarias enobrecedoras, evitando aquelas que possam deteriorar sua constituição
anímica (592a).
As exigências que se apresentam para ocupar o posto de governante são tantas,
que Gláucon chega a duvidar se existiria alguém com tal perfil, que se interessasse por
questões ligadas à pólis (592a5-6). Mas Sócrates o contesta com veemência, sublinhando
novamente o necessário engajamento político do filósofo (592a7-9). Gláucon, com sua
réplica, dá a entender ter compreendido que Sócrates tratava não do governante de
Atenas (ou de outra cidade qualquer), mas de quem estaria à frente de uma cidade
“perfeita”:
465
Cf.- Μανθάνω, ἔφη· ἐν ᾗ νῦν διήλθομεν οἰκίζοντες πόλει λέγεις, τῇ ἐν λόγοις κειμένῃ, ἐπεὶ γῆς γε
οὐδαμοῦ οἶμαι αὐτὴν εἶναι.
- Ἀλλ', ἦν δ' ἐγώ, ἐν οὐρανῷ ἴσως παράδειγμα ἀνάκειται τῷ βουλομένῳ ὁρᾶν καὶ ὁρῶντι ἑαυτὸν
κατοικίζειν. Διαφέρει δὲ οὐδὲν εἴτε που ἔστιν εἴτε ἔσται· τὰ γὰρ ταύτης μόνης ἂν πράξειεν, ἄλλης
δὲ οὐδεμιᾶς.
466
Em estudo recente, M. Vegetti dedicou sua obra Um paradigma no céu (2012) para avaliar as diferentes
interpretações que essa passagem recebeu ao longo da história, interpretações que ora traduzem um
filósofo mais engajado na reflexão política, ora o representam como um filósofo que teria concedido espaço
não para pensar a cidade, mas o indivíduo, um Platão menos político e mais metafísico. Vegetti contesta a
ideia de um Platão “apolítico”, propondo uma interpretação particular desta passagem.
268
uma questão se impõe: seria a cidade construída “em palavras” uma efetiva contribuição
de Platão para pensar a pólis, ou ela não passaria de uma imagem para se compreender a
natureza e a constituição da psykhé? Essa questão tem diferentes respostas ao longo dos
anos, a depender do modo como se compreendem, na passagem, as expressões que
traduzimos como “um paradigma no céu” (ἐν οὐρανῷ ἴσως παράδειγμα) e “estabelecer-
se [nela]” (ἑαυτὸν κατοικίζειν).
Se olharmos com atenção a passagem, veremos que ela apresenta dois
argumentos que se contrapõem, articulados pela conjunção adversativa allá, que, na
passagem, compreendemos não ter apenas a função de mera partícula discursiva, mas de
conjunção que indica contraposição de argumentos:
1. de um lado, o argumento de Gláucon, para quem a cidade que “se sustenta
apenas em palavras” (τῇ ἐν λόγοις κειμένῃ), parece não ter um modo de existência real,
exterior ao discurso, “não existe em lugar algum da terra” (γῆς γε οὐδαμοῦ...εἶναι);
2. do outro lado, a posição de Sócrates, para quem, talvez existindo um “paradigma
no céu” (ἐν οὐρανῷ παράδειγμα), aqueles que se esforçam por vê-lo, conseguem se
estabelecer nesse tipo de cidade (ἑαυτὸν κατοικίζειν).
Lendo a passagem a partir dessa contraposição, nada parece indicar que a fala de
Sócrates faça remissão à ideia de politeía exclusivamente como uma experiência
subjetiva, moral, interior, individual e psíquica. Se é indiferente o modo de existência
histórica e sensível desse paradigma (“Não faz qualquer diferença se ela existe ou
existirá” – Διαφέρει δὲ οὐδὲν εἴτε που ἔστιν εἴτε ἔσται); o seu modo de existência
inteligível está assegurado para aqueles que “queiram vê-lo” (τῷ βουλομένῳ ὁρᾶν), o que
significa, segundo a metáfora da visão platônica, que tal modo de existência é
apreensível/visível para aqueles que queiram conhecê-lo, isto é, para quem é amigo da
sabedoria. Ademais, isso implica pensar em uma dimensão volitiva associada à
possibilidade de visão do paradigma: é preciso que se queira ver, do que decorre a
caracterização de um sujeito de uma contemplação ativa. Portanto, parece ser possível
concluir que se o paradigma é uma utopia, ele o é não enquanto uma construção
impossível, irrealizável, mas simplesmente como um não-lugar, porque sendo uma
construção ἐν λόγοις, ele pode estar em todo lugar, porque não está em um lugar fixo,
preciso. Ou seja, é indiferente a sua existência em um tempo e lugar específicos, sob a
forma de uma cidade particular; contudo, nessa dimensão utópica, ela se realiza como
um paradigma que se apresenta no horizonte, e que mobiliza e possibilita a ação política
269
do filósofo467. Uma vez vislumbrado intelectualmente, mediante o esforço filosófico, tal
paradigma se revela o padrão de acordo com o qual, agirá um dia todo aquele que o tendo
contemplado e compreendido, se mostrar capaz de se estabelecer (ἑαυτὸν κατοικίζειν)
orientando-se por ele468.
Todavia, conforme comenta Vegetti (2012, p. 242), ao traduzir a expressão heautón
katokízein como “fundar uma cidade em si mesmo” (found a city in himself), J. Adams, no
início do século XX, contribuiu para reforçar uma interpretação que diminuía a
importância política da obra, em prol de uma maior ênfase moral, produzindo uma cisão
entre uma reflexão sobre a moral individual (onde seria possível “fundar o paradigma”)
e a dimensão política (uma “utopia”, no sentido de que uma cidade assim não pudesse
vir a existir)469. Essa cisão é reforçada pela posição de autores como Emly-Jones & Preddy
467
Termo grego provavelmente cunhado por Thomas More (1478-1535), a “utopia” ocupa lugar de destaque
nas discussões modernas sobre o sentido político da República. Contudo, a respeito desse conceito, nem
mesmo a etimologia da palavra está isenta de questionamentos. No addendum à tradução histórica de Ralph
Robinson (originalmente publicada em 1556), como nos lembra Vegetti, o humanista e tradutor inglês anota
que o próprio Thomas More reconhecia a ambiguidade do termo utopia, a partir de duas etimologias (eu-
topia: “um bom lugar” vs. ou-topia: “um não lugar”). O privilégio concedido ao sentido de utopia como um
“não-lugar”, permitiu que se a compreendesse como um “lugar inexistente”, e, daí, “uma fantasia, uma
quimera, algo irrealizável”, conforme atestam, por exemplo, os sentidos registrados no Dicionário Houaiss
(2009, no verbete “utopia”). Diferentes interpretações da República de Platão como uma “utopia” se
revelaram, ao longo do século XX, em acalorados debates. Vegetti chama atenção para a posição de Karl
Popper. A seu ver, reagindo às ideologias totalitárias do marxismo e do nazismo, Popper defendeu, em sua
obra de 1945, The open society and its enemies, uma leitura bastante singular: para ele, a República não somente
seria um modelo realizável, uma “utopia” francamente aplicável à constituição da cidade, como tal modelo
deveria inclusive ser lido como o protótipo das sociedades autoritárias. Popper, em sua obra, contribui para
a compreensão do pensamento político de Platão ao colocar em xeque as leituras excessivamente idealistas
do início do século XIX e início do século XX; contudo, ao enfatizar os aspectos da educação proposta por
Platão e relacioná-los às sociedades fechadas do século XX, propondo, por assim dizer, uma atualização
dessa “utopia” tendo em vista o nazismo e o marxismo de sua época, não deixa de configurar um flagrante
anacronismo que, ademais, ignora muitos outros aspectos da própria República (Cf. Vegetti, 2012, p. 175-184).
Outra leitura influente do século XX é aquela realizada por Leo Strauss, em sua obra The City and Man
(1964). Strauss, na contramão de Popper, defende que o modelo platônico é uma utopia no sentido quase
inverso: não se tratava de modelo a ser aplicado a qualquer sociedade, mas de uma fantasia cômica, uma
“anti-utopia”, no sentido de que as propostas “absurdas” apresentadas por Sócrates (especialmente no livro
V) fariam lembrar a mais escrachada comédia de Aristófanes. Em nosso texto, não tomamos a palavra
utopia, nem no sentido de um modelo a ser aplicado, como sugere a interpretação popperiana, nem como
uma mera fantasia (e ademais, cômica), como propõe Strauss. Usamos essa palavra a partir de seus dois
sentidos etimológicos: o de “bom lugar” (o que também remete à própria ideia da kallipolis platônica), e o
não-lugar (“o que não está aqui”). Desse modo, a utopia, não implica nem uma constituição a ser aplicada às
sociedades de agora, tampouco algo irrealizável, impraticável, inexistente, mas configura-se como um
horizonte – externo, portanto, à temporalidade/localidade presentes, mas que insinua, aos olhos de quem
o busca, uma possibilidade.
468
Sobre este ponto, concordamos com L. Brisson (2003, p.14): “Platão foi progressivamente levado a opor o
sensível ao inteligível, e a alma ao corpo, para tentar em seguida descrever sua relação mútua, devendo o
inteligível permitir pensar e falar do sensível, e cabendo à alma mover e dirigir o corpo no universo. Essas
tomadas de posição Platão as desenvolveu não somente para convencer um pequeno número de
pensadores, mas também com o fim de modificar a sociedade na qual ele vivia”.
469
Cf. Vegetti (2012, p. 243): “O texto parecia, então, dizer claramente: 1. a realização do projeto da kallipolis
no tempo histórico é impossível; 2. de toda a forma, é irrelevante, porque a sua função consiste em fornecer
um modelo a ser interiorizado para construir a virtude individual, para “refundar-se a si mesmo” segundo
o paradigma da justiça; 3. dado que o homem justo agiria politicamente somente na cidade justa, que não
pode existir, manifesta-se a sua radical estranheza à política”.
270
(2013, p. xxxiv), que apresentam, como argumento adicional contra a aplicação prática
do modelo apresentado na República as características aparentemente irrealistas que são
atribuídas a essa cidade. Para esses autores, a existência de uma cidade com tais
características pressuporia uma completa revolução das estruturas sociais vigentes, ao
que se acrescenta o fato de Platão ter sido bastante econômico ao apresentar propostas
concretas que viabilizassem sua implementação470.
A consequência desse tipo de interpretação foi a de orientar a leitura da República
para uma cisão entre a dimensão dos inteligíveis – em cujo âmbito se enquadra a
experiência filosófica de edificação da cidade ideal – e a dos sensíveis, separação que viria
a ser reforçada pela insistência com que se estabelece na República a comparação entre as
diferentes formas de governo e as diferentes formas de governantes – o timocrata, o
oligarca, o democrata e o tirano. Essa comparação culminaria na conclusão negativa de
que todas essas constituições falham precisamente naquilo em que cada tipo de alma é
também viciosa. Nenhuma dessas formas de governo pode levar à felicidade do
indivíduo, nem tampouco do estado (Cf. Emlyn-Jones & Preddy, 2013, p. xxxi; Blössner,
2007, p. 345).
Em outras traduções, contudo, são propostas soluções diversas para verter essa
expressão, não resolvendo, como Adams, em favor de uma interpretação específica. G.
Grube & C. Reeve (in Cooper, 1997), por exemplo, traduzem heautón katokízein como
“tornar-se seu cidadão” (make himself its citizen); Emlyn-Jones & Preddy (2013) a traduzem
como “fundar-se nela” (found himself on it); em português, temos C. A. Nunes (2016 [1976]),
que opta por “organizar seu governo particular”; E. Teixeira (2009), que propõe
“estabelecer-se nela” e M. H. Rocha Pereira, que traduz a expressão como “fundar uma
para si mesmo”. Todas essas propostas permitem revelar, em maior ou menor grau, o
sentido que Vegetti (2012, p. 242) lhe atribui:
470
Entretanto, há uma recomendação “prática” para a implementação da cidade oferecida por Platão no
final do livro VII (540e-541b), onde se recomenda que os mais velhos, deverão enviar seus filhos para o
campo, onde seriam educados de acordo com o modelo sugerido, longe dos costumes atuais. A
consequência disso seria que essas crianças, ao crescerem, seriam capazes de instituir a cidade conforme se
descreve. Contudo, mesmo a respeito dessa passagem, os comentadores divergem: C. Rowe (1999, p. 268),
considera tal passagem particularmente irônica; quanto a isso discordam Morrison (2007, p. 241). Admitir
uma ironia nessa passagem implicaria ler toda a República também desse modo.
271
justa.
(Vegetti, 2012, p. 242)
De nossa parte, pensamos que tais traduções não inviabilizam uma leitura
politicamente forte da obra, não privilegiando uma interpretação estritamente
psicológica e moral. Elas resgatam, em suma, ao menos a possibilidade, entretanto vetada
no comentário de Adams, de que a República possa ser mais do que uma reflexão sobre
uma disposição interior, acerca de uma “cidade dentro de nós mesmos” (πολιτεία ἐν ἡμῖν)
(1921, p. 370)471. Em outras palavras, o “paradigma no céu” poderia também representar
o padrão intelectual para a construção de uma cidade sensível, dentro da qual cada um
possa se fixar, estabelecendo-se nela (ἑαυτὸν κατοικίζειν).
A consequência dessa leitura é que, se a noção de paradigma apresentada faz
referência às Formas, conforme apontamos também acerca das duas últimas passagens
analisadas, essas não devem ser compreendidas somente em sua dimensão ética, ligada
às virtudes da alma, mas, em linha com a proposta de Cherniss (1936), como um padrão
de referência inteligível que não se pode pensar fora de sua pertinência a diferentes
domínios, a saber, à ética, à política, à epistemologia, entre outros. O caráter teoricamente
econômico do paradigma novamente se revela como o efeito de um longo paralelo entre
o indivíduo e a cidade, em busca de compreender a justiça e o papel do filósofo na pólis.
Contudo, para além dessa conotação do paradigma de Platão como uma forma de
remissão ou alusão às Formas, resta ainda a compreender ao menos um segundo sentido
do termo, que, ao nosso ver, parece escapar à interpretação desenvolvida até aqui. Nas
passagens que examinaremos na sequência, mostraremos que não é possível atribuir ao
paradigma platônico somente o sentido filosoficamente forte que nele reconhecemos até
o momento, mas é preciso também admiti-lo em seu papel intermediário, mais
metodológico, segundo o qual o paradigma se assemelha não tanto a um “padrão de
referência inteligível” (i.e. às Formas), mas a um “modelo explicativo”. Nesse segundo
sentido, conforme propõe Sanday (2017, p. 150), o paradigma configura um expediente
provisório e exploratório de que Platão por vezes lança mão para a compreensão dos
inteligíveis. Apontando para além de si mesmo, o paradigma, enquanto “modelo
explicativo”, orienta a pesquisa para a compreensão do verdadeiro objeto, na qualidade
471
“If the philosopher is prevented from founding a city after the patterns in the Heavens, he can at all events
‘found himself’. ἑαυτὸν κατοικίζειν is a pregnant and powerful phrase, which involves not only the ideal of
the πόλις s. πολιτεία ἐν ἡμῖν (cf. 590e, 591e, 10.605b, 608b) but also perhaps a hint that the παράδειγμα ἐν
οὐρανῷ is as it were the μητρόπολις from which our souls should be colonised”.
272
de uma visão substituta desse mesmo objeto, mantendo analogia com a forma pesquisada
e se baseando também em um contexto familiar e conhecido472. Nesse segundo sentido,
o paradigma é, portanto, uma espécie de intermediário metodológico, que se põe diante
do olhar do filósofo, na interseção entre os múltiplos sensíveis e a unidade das Formas.
Diga-se de passagem que, se admitirmos esse segundo sentido, a edificação da
cidade “em palavras”, como notou Gláucon na passagem examinada acima, talvez
represente o paradigma mais importante da República. Com efeito, a politeía tratar-se-ia
de um modelo para a compreensão da alma e, particularmente, da alma filosófica, ou
justa e, consequentemente, das Formas. Entretanto, embora haja quem identifique na
crítica às diferentes formas de governo alusões implícitas a diferentes eventos históricos
do mundo grego, narrados, por exemplo, por Heródoto, Tucídides e mesmo
Aristóteles473, ou veja na crítica psicológica traços que antecipam a comédia de costumes
de Menandro474; parece-nos, contudo, que o propósito de Platão com a representação da
sua kallípolis é muito mais do que propor simplesmente uma nova constituição para
Atenas, mas dispor um paradigma diante dos olhos de seus concidadãos. Em suma: nesse
sentido, a reflexão da República poderia até ser considerada uma utopia, no sentido que
apresentamos antes, mas também nesse caso, parece possível admitir que o caráter
exploratório que caracteriza a edificação dessa cidade “em palavras” (592a11: ἐν λόγοις)
seja condigno com a ideia de que um paradigma não se limita a ser aquele padrão
absoluto (o inteligível, as Formas), mas pode se revelar também como um modelo de
investigação, um modo de fazer ver algo que está além das palavras. Vejamos.
472
Cf. Sanday (2017, p. 150): “Paradigm as a whole points beyond itself to the ultimately guiding form, acting
as a surrogate insight that bears an analogy with the ultimate form the inquiry is helping us to grasp, while
drawing on and remaining rooted in a context that is known and familiar”.
473
Conforme apontam Emlyn-Jones & Preddy (2013, p. xxxv): “Moreover, there ar a number of occasions
where Socrates, in considering how his state will react to external forces, seems to envisage it engaging with
the other Greek póleis and the non-Greek world very much as they existed in his time, for example, in
warfare (469a-471b), where a distinction is made between the behavior of the fighting class (the auxiliaries)
toward “barbarians” and toward fellow Greeks, where Plato draws on conventional pan-Hellenic rhetoric
concerning common language, religious traditions, and festivals binding Greeks of different póleis together
(470e10)”.
474
Cf. Emlyn-Jones & Preddy (2013, p. xxxi): “the struggles of the individual within the oikos (household)
resemble and in some respects anticipate the New Comedy of Menander (342-290), involving
intergenerational conflict and purporting to describe in detail tensions in domestic life between fathers,
mothers, and sons (e.g., 549c-550b)”.
273
item e 2. um modelo exploratório e explicativo, intermediário entre a multiplicidade dos
sensíveis e a unidade inteligível, conforme veremos na sequência, requer,
preliminarmente, alguma justificativa teórica. Afinal, por que Platão teria se valido, no
âmbito da mesma obra, de dois sentidos diversos para a noção de paradigma,
considerando, sobretudo, sua importância filosófica em ambas as acepções?
Primeiramente, poderíamos pensar que a compreensão do paradigma, nessa
dupla acepção, não apresenta necessariamente uma divergência, desde que, no primeiro
sentido, não se faça simplesmente uma correspondência entre paradigma e Forma. De
fato, conforme vimos na última seção, mesmo quando Platão mencionava a existência de
um paradigma para fazer referência às Formas, entendendo-o como padrão inteligível,
não havia ali uma relação de identidade ou igualdade entre Formas e paradigma, mas
uma relação instrumental: o paradigma já se colocava, de certo modo, como um meio de
compreensão da Forma. Ainda que, em algumas circunstâncias, tais como aquelas que
comentamos no último item, o paradigma pareça claramente remeter às Formas, isso não
implicaria todavia reconhecer nessa aproximação uma equação (nesse caso, a “Estrela da
Manhã” não é a “Estrela da Tarde”, para citarmos o exemplo de Frege). Assim, seria
possível concordar com a tese de R. Parry (2001, p. 24) de que, nesse sentido, as Formas
não seriam propriamente paradigmas, mas “paradigmáticas”475, isto é, sujeitas a serem
compreendidas por intermédio de um paradigma476, o que implica mitigar a
correspondência absoluta entre Formas e paradigma, tornando por consequência menos
incompatíveis as duas acepções do termo que encontramos na República.
Além disso, é preciso também considerar que, na contramão do hábito moderno,
Platão não desenvolveu algo como uma terminologia filosófica estável, uma
correspondência inequívoca entre conceitos e palavras ou, ainda, um sistema filosófico
de pensamento, internamente coeso e imune a contradições. Conforme já assinalamos
ao longo dessa tese, ler Platão requer que o leitor se engaje no jogo da escrita dialógica e
dialética, consciente de suas armadilhas, de suas contradições, dos riscos da escrita, de
475
Cf. Parry (2001, p. 24): “Our interpretation then is original in that it holds that Forms are not paradigms,
but that they are paradigmatic. According to this interpretation, then, instead of confusing Form and
paradigm and instead of making them the same thing, the theory of Forms actually depends on a
distinction between Form and paradigm. One way to address the plausibility of this claim is to look at the
way Plato uses the word ‘paradeigma’ in reference to Forms in order to determine whether or not the use
shows confusion between what is called a parádeigma and what is called an eidos”.
476
Compreendendo o paradigma como um sujeito que exemplifica uma característica em seu grau mais
elevado, Parry (2001, p.2) conclui que o paradigma não é a própria característica de uma Forma F (F-ness),
mas serve a exemplificá-la. Ou seja: se Sócrates, nesse sentido, pode ser pensado como paradigma da
sabedoria, Sócrates não é a própria sabedoria, mas a exemplifica, a sabedoria não é o próprio Sócrates, mas
é possível de ser pensada utilizando-se desse paradigma; nesse caso, a sabedoria socrática é
“paradigmática”.
274
suas ambiguidades.
A própria forma dialógica, com sua riqueza de expedientes literários, revela-se,
como notou Schäfer (2012, p. 14), como “uma das maneiras de se servir da escrita sem cair
na estase da letra”. Além disso, como notou D. Moraes (2017, p. 45), o diálogo platônico se
inscreve em uma “escola literária”, assemelhando-se às formas do teatro grego e não
abrindo mão de sua genealogia “dramática”, de modo que é impossível rastrear seu
significado filosófico sem considerar as vozes que sustentam seus diferentes “atores” em
cena, sem considerar que a dialética sustenta-se igualmente no fenômeno da mímesis que
é o substrato da literatura477. Sendo assim, não nos parece razoável, no exame do
pensamento de Platão, submeter a vivacidade polissêmica de suas palavras e a riqueza
dos expedientes literários que manifestam a um tour de force para que elas digam sempre
o mesmo, de forma inequívoca e sistemática. Se nos valêssemos desse expediente,
acabaríamos de fazer com o texto de Platão precisamente aquilo que Sócrates condena
no Fedro (275d8-9): “ao interrogá-los, querendo aprender sobre o que quer que tenham
dito, indicam sempre uma única e mesma coisa”478.
Desse modo, parece-nos possível (e mesmo francamente “platônico”), que, no
âmbito da obra de Platão, um mesmo termo possa ter significados filosóficos distintos,
aproximando-se ou distanciando-se semanticamente em maior ou menor grau. Se,
conforme vimos nas passagens acima, o paradigma se insinuava no diálogo como uma
maneira de se referir a Formas, apresentando, naquela ocasião, o sentido de “padrão
inteligível”, em outras passagens, essa relação parece mais distante, quando não
francamente ausente. Tal é o caso da passagem abaixo, que examinaremos na sequência:
477
Moraes (2017, 45-46) afirma ser possível “sustentar que o fenômeno da forma dialógica possa ter seu
substrato extraído tanto do contexto mais amplo da produção literária grega quanto da prática dos
socráticos e de seu esforço apologético. As duas explicações, se entrelaçadas, não comprometem o caráter
inovador dos lógoi sokratikói quando pensamos que esses escritos, não obstante sua forma mimético-
dramática, mantêm, no limite, pretensões de conteúdo fortemente intelectual ou filosófico (...).Tanto o
poeta quanto um escritor de lógoi sokratikói são imitadores, reprodutores de realidades aparentes ou
verossímeis. E provavelmente Platão sabe que ele é também um mimetés, um imitador. Tal reconhecimento,
contudo, não é o bastante. O esforço do filósofo ao compor seus dramas não se restringe apenas em imitar
ações como se essa realização se bastasse a si mesma. Diferentemente da prática discursiva poética, comum
aos diversos produtores de dramas de seu tempo, a técnica de Platão não pretende explorar as aparências
sensíveis nelas mesmas, mas, por meio delas, pretende “tornar-se imitador daquilo que é efetivamente (as
formas inteligíveis, o bem) e, ao fazê-lo, ‘manifestar verdades’ (...)”
478
Cf. ἐὰν δέ τι ἔρῃ τῶν λεγομένων βουλόμενος μαθεῖν, ἕν τι σημαίνει μόνον ταὐτὸν ἀεί.
275
conduzindo-se reciprocamente, e conduzindo o que há dentro delas, as
coisas apreensíveis somente pela razão (λόγῳ) e pela inteligência
(διανοίᾳ) e não pela vista (ὄψει). Ou você pensa diferente?
- De modo algum – ele disse.
- Então – eu disse –, é preciso fazer uso das estrelas celestes como de
paradigmas para o aprendizado daquelas coisas, como se alguém se
deparasse com os projetos especialmente traçados e executados por
Dédalo, ou por outro artesão ou artista.479
(R. 7.529c7-e3)
479
Cf. - Ὧδε, ἦν δ' ἐγώ. ταῦτα μὲν τὰ ἐν τῷ οὐρανῷ ποικίλματα, ἐπείπερ ἐν ὁρατῷ πεποίκιλται, κάλλιστα
μὲν ἡγεῖσθαι καὶ ἀκριβέστατα τῶν τοιούτων ἔχειν, τῶν δὲ ἀληθινῶν πολὺ ἐνδεῖν, ἃς τὸ ὂν τάχος
καὶ ἡ οὖσα βραδυτὴς ἐν τῷ ἀληθινῷ ἀριθμῷ καὶ πᾶσι τοῖς ἀληθέσι σχήμασι φοράς τε πρὸς ἄλληλα
φέρεται καὶ τὰ ἐνόντα φέρει, ἃ δὴ λόγῳ μὲν καὶ διανοίᾳ ληπτά, ὄψει δ' οὔ· ἢ σὺ οἴει;
- Οὐδαμῶς γε, ἔφη.
- Οὐκοῦν, εἶπον, τῇ περὶ τὸν οὐρανὸν ποικιλίᾳ παραδείγμασι χρηστέον τῆς πρὸς ἐκεῖνα μαθήσεως
ἕνεκα, ὁμοίως ὥσπερ ἂν εἴ τις ἐντύχοι ὑπὸ Δαιδάλου ἤ τινος ἄλλου δημιουργοῦ ἢ γραφέως
διαφερόντως γεγραμμένοις καὶ ἐκπεπονημένοις διαγράμμασιν.
276
sempre é” (527b7-8: ἀεὶ ὄντος…γνῶσίς). Em terceiro lugar, está a astronomia (527d1:
ἀστρονομία). Embora Gláucon reconheça que a nobreza dessa ciência seja devida ao fato
de que ela “força a alma a olhar para o alto, e conduzir as coisas daqui para lá” (529a1-2:
ἀναγκάζει ψυχὴν εἰς τὸ ἄνω ὁρᾶν καὶ ἀπὸ τῶν ἐνθένδε ἐκεῖσε ἄγει), Sócrates adverte que
é necessário que esse movimento do olhar ocorra não com os olhos, mas com o
pensamento (529b2: νοήσει ἀλλ’ οὐκ ὄμμασι). Em outras palavras, a verdadeira ciência,
apenas por analogia, tem a ver com o processo físico de olhar para cima ou para baixo
(529c)480. Com essa observação, Gláucon lhe interroga de que modo a astronomia pode,
então, ser útil para a formação do filósofo. É quando, então, deparamo-nos com a
passagem citada acima (529c7-e3), que vem a ser a resposta de Sócrates à indagação de
Gláucon.
Ora, todas as artes enumeradas – a aritmética, a geometria, a astronomia e, logo
na sequência, a harmonia – são formativas para o filósofo na medida em que têm em
comum o potencial de conduzi-lo, pelo tipo de habilidade que desenvolvem, à apreensão
do que é imutável, uno, inteligível481. O objeto dessas ciências, tais como o número e a
unidade, os entes geométricos, as relações entre os astros e as relações entre os acordes,
podem representar (mas não necessariamente representam) objetos de investigação
intelectual, uma vez que o acesso a eles supõe a mediação do pensamento (διανοίᾳ) e não
apenas dos olhos (ὄψει). Isso não implica negligenciar que a apreensão dos seus objetos
possa se valer, em algum grau, também dos sentidos – é possível, com efeito, observar
com os olhos (ou com as lentes) as estrelas que ornamentam o firmamento (τὰ ἐν τῷ
οὐρανῷ ποικίλματα), e, graças ao sentido da visão, reconhecer que são as mais belas e
perfeitas (κάλλιστα μὲν ἡγεῖσθαι καὶ ἀκριβέστατα). Entretanto, as verdadeiras relações
entre os astros, por exemplo, a velocidade, o ritmo de suas circunvoluções e as formas
que descrevem, constituem objetos inteligíveis, capturáveis apenas pela diánoia, não
pelos sentidos.
A reflexão sobre os objetos astronômicos, matemáticos, geométricos e
harmônicos sublinha, portanto, a distinção entre inteligíveis e sensíveis. Ocorre que, para
o filósofo, importam sobretudo os primeiros, mesmo em vista de uma comprensão dos
480
Rocha Pereira (2014, p. 340), acerca dessa passagem anota que, com esse comentário de Platão,
certamente não desprovido de certo caráter cômico, parece ser resposta às Nuvens, de Aristófanes, cujo
argumento retrata Sócrates suspenso em uma cesta, para observar mais de perto os fenômenos celestes.
481
Essa é também a compreensão de J. Annas (1981, p. 273): “It is made very clear that the chief point of these
studies is to encourage the mind in non-empirical and highly abstract reasoning. Plato is not so concerned
to produce experts in these subjects as he is to produce people who are accustomed to a priori reasoning
about subjects where most people comprehend only an empirical approach (cf. 526d-e) (…) The curriculum
is introduced by the argument at 521 ff. that some concepts provoke the mind into recognizing Forms, and
among these is that of oneness and unity”.
277
segundos. Por isso, se tais ciências estão aqui consideradas como disciplinas
propedêuticas para a dialética, é exatamente em virtude da dimensão inteligível de seus
objetos, que elas devem ser privilegiadas na formação do candidato a filósofo482. Quanto
à sua manifestação sensível, as estrelas que brilham no céu, por sua vez, podem servir de
paradigma para que se alcancem os primeiros e mais elevados objetos, as Formas. É por
essa razão que a noção de “paradigma” presente nessa passagem, não mais está
relacionada às Formas, como vimos antes, mas aos próprios sensíveis que se podem
ocupar uma posição intermediária no salto para a investigação filosófica. Os astros, na
sua beleza e perfeição registradas pelo aparelho sensório-perceptual humano, são
paradigmas da verdadeira beleza e perfeição, e o seu estudo se converte, desse modo, em
uma espécie de treinamento para a pesquisa filosófica. Enquanto paradigmas, tais objetos
evidentemente não podem ser as próprias Formas, mas se revelam como um expediente
metodológico em todo caso útil, uma etapa na formação do filósofo, um modo de ver.
Olhando para aquilo que aparece – as estrelas no céu – os aprendizes de filósofos podem
mais facilmente se predispor a alcançar aquilo que não é visível.
A imagem com que Sócrates encerra o seu argumento parece-nos também digna
de nota. As estrelas, quando tomadas enquanto paradigma, são comparadas por Sócrates
aos planos (διαγράμμασιν), traçados (γεγραμμένοις) por Dédalo ou por outro artesão ou
artista (ἤ τινος ἄλλου δημιουργοῦ ἢ γραφέως). Como se sabe, Dédalo é na mitologia grega
o inventor ateniense a quem os gregos atribuíam a invenção de engenhosos aparatos
mecânicos móveis, graças aos quais teria sido possível desenvolver a arquitetura e a
escultura. A construção do labirinto em Creta, uma obra encomendada pelo rei Minos e
a sua fuga espetacular, em companhia de seu filho Ícaro, usando as asas mecânicas de
cera que ele próprio teria fabricado, constituem episódios memoráveis na mitologia
grega (Howatson, 2005, p. 167). Os projetos traçados e executados (γεγραμμένοις καὶ
ἐκπεπονημένοις) por Dédalo representam instrumentos para realização das obras de seu
inventor. Assim como o paradigma à disposição do filósofo, tais dispositivos configuram
expedientes intermediários entre uma ideia (da invenção de um mecanismo, por
exemplo) e sua efetiva realização; tais projetos representam, em suma, um guia, um mapa
482
Essa posição rendeu a Platão a acusação de ser um adversário das ciências, como mostraram os estudos
de J. O Thomson (1933), e B. Farrington (1961). Contudo, concordando com G.E. Lloyd (1968), tal acusação
nos parece bastante apressada e superficial, senão também anacrônica. Com efeito, importa para Platão
nessa passagem destacar o “treinamento” intelectual do filósofo, este que, mediante os objetos matemáticos,
geométricos, astronômicos e harmônicos precisa treinar seu intelecto para o reconhecimento das Formas.
De todo modo, Platão reconhece, na mesma passagem, a importância “prática” dessas disciplinas, como,
por exemplo, a aplicação da geometria para as artes bélicas. O que Platão talvez queira fazer é distinguir
entre uma “tecnologia” (útil do ponto de vista prático) e uma “ciência” (útil do ponto de vista teórico).
278
à disposição do artífice (e do filósofo)483.
Além disso, o plano traçado por Dédalo (ou por qualquer outro artífice) –
diágramma – indica a existência de um elemento gráfico com que se compara o paradigma
na passagem. O substantivo diágramma (“plano, projeto, desenho”), o substantivo
graphéos (“pintor, escritor”) e o particípio gegrámmenois (“traçados, desenhados, escritos”),
registrados exatamente na mesma linha 529e2, ao repetirem a raiz grega gramph-, não
somente evocam sentidos associados a “desenho, pintura, traço”, como também a
“escrita, letras”484. Ora, se, por um lado, o emprego desses termos nessa passagem parece
corroborar a metáfora do filósofo como “pintor” – imagem que comentamos no último
tópico acerca da passagem 500d10-e4 – por outro, suscita a questão: não sugeriria a
ambiguidade semântica desse radical também a ideia de que não somente a pintura, mas
também a própria escrita, poderia ser tomada como paradigma para o filósofo? Se
admitirmos uma resposta positiva para essa questão, poderemos propor que não somente
a construção poética da cidade assoma na República como um paradigma, mas também o
seriam as próprias letras. De fato, assim como os astros no céu, elas também poderiam
ser pensadas como aquele expediente intermediário entre os sensíveis e os inteligíveis,
um paradigma de que o filósofo pode lançar mão como um auxílio para o pensar. Duas
referências às letras (grámmata) na República parecem advogar a favor dessa tese, sendo a
primeira delas no livro II (368c7-d7) e a segunda no livro III (402a7-c9). Vejamos.
483
Conforme aponta F. Frontisi-Ducroux (1975), as fontes antigas sobre o mito de Dédalo são muito raras,
tendo em vista o desaparecimento das obras literárias mais importantes que teriam tido a narrativa de
Dédalo como seu objeto (entre as quais, por exemplo, o Dédalo, de Sófocles e de Aristófanes ou o Teseu, de
Eurípedes). A estudiosa mostra que Dédalo faz referência ao protótipo do artesão ou do inventor, como dá
mostra o estudo lexical realizado em sua obra: as palavras cognatas δαίδαλον, δαιδάλεος, δαιδάλλω,
πολυδαίδαλος, encontradas desde Homero, fazem referência ora a objetos artesanais ora a técnicas
artesanais: a fabricação de armas, de peças de mobiliário, de carpintaria – especialmente naval – à técnica
da tecelagem ou da tapeçaria. Em fontes mais tardias, é possível, contudo, encontrarmos o relato completo
do mito. Diodoro Sículo (I a.C.), em sua Biblioteca Histórica, e apresenta Dédalo como artesão e inventor (B.
Hist., 4.76.1.3-76.3.1):
“Por natureza, ele se elevava muito acima de todos os homens e cultivava a arte da construção, a fabricação
de estátuas e trabalhos em pedra. Tendo sido o inventor de muitos dispositivos que contribuíram para o
avanço de sua arte, construiu obras em muitas regiões do mundo que despertam a maravilha dos homens.
Na escultura de estátuas, ele se destacou de todos os homens, de tal modo que gerações posteriores
contaram histórias sobre ele, de que suas estátuas se assemelhavam a modelos vivos, que podiam ver, falar,
andar, que preservavam as características de todo o corpo, que o observador pensava que a imagem feita
por ele era um ser dotado de vida”. (Cf. φύσει δὲ πολὺ τοὺς ἄλλους ἅπαντας ὑπεραίρων ἐζήλωσε τά τε περὶ
τὴν τεκτονικὴν τέχνην καὶ τὴν τῶν ἀγαλμάτων κατασκευὴν καὶ λιθουργίαν. εὑρετὴς δὲ γενόμενος πολλῶν
τῶν συνεργούντων εἰς τὴν τέχνην, κατεσκεύασεν ἔργα θαυμαζόμενα κατὰ πολλοὺς τό πους τῆς
οἰκουμένης. κατὰ δὲ τὴν τῶν ἀγαλμάτων κατασκευὴν τοσοῦτο τῶν ἁπάντων ἀνθρώπων διήνεγκεν ὥστε
τοὺς μεταγενεστέρους μυθολογῆσαι περὶ αὐτοῦ διότι τὰ κατασκευαζόμενα τῶν ἀγαλμάτων ὁμοιότατα τοῖς
ἐμψύχοις ὑπάρχει· βλέπειν τε γὰρ αὐτὰ καὶ περιπατεῖν, καὶ καθόλου τηρεῖν τὴν τοῦ ὅλου σώματος
διάθεσιν, ὥστε δοκεῖν εἶναι τὸ κατασκευασθὲν ἔμψυχον ζῷον.
484
No próximo capítulo, veremos como as duas ideias – da pintura e da escrita – associadas em grego na
ph
mesma raiz verbal gram - não estão ingenuamente associadas na crítica à escrita presente na última parte
do diálogo Fedro.
279
Sócrates inicia o livro II, propondo a Gláucon que reflitam sobre a justiça: a justiça
deve ser considerada um valor em si e por si (358d2: αὐτὸ καθ’ αὑτὸ) ou o apreço por ela
decorre das vantagens que advêm como consequência de sua prática? E, ainda, o que é
preferível, ter uma vida justa ou injusta (357a-358d)? Gláucon apresenta a definição de
justiça como convenção (νόμος), que se manifesta como a busca do meio termo entre
entre o maior bem, que seria realizar uma injustiça sem ser punido, e o maior mal, que
seria sofrer uma injustiça, sem poder vingar-se dela (359a5-7). Nesse caso, os homens a
perseguem não por terem propensão natural à justiça, mas por obediência a um acordo
coletivo, caso contrário, individualmente, os homens prefeririam a injustiça à justiça
(360c6-d1). Gláucon e Adimanto apontam, então, aquelas que seriam as vantagens de
parecer justo, e não de ser, de fato, justo: aqueles que parecem justos – mesmo não o
sendo – recebem dádivas sociais que são omitidas àqueles que parecem ser injustos –
ainda que não o sejam (361a-363e; 365b-c). Esse tipo de entendimento explica por que os
poetas e músicos enaltecem a justiça e a temperança, embora consideradas difíceis, ao
passo que a intemperança e a injustiça são cantadas como suaves e fáceis (364a). Todos
esses argumentos parecem, então, corroborar a tese de Trasímaco, apresentada no livro
I, de que a justiça é um bem útil ao mais forte e pernicioso ao mais fraco (367c). Sócrates
se vê, então, desafiado a refutar essa posição, e a demonstrar a tese contrária, a de que a
justiça está entre os bens valiosos não pelas consequências que decorrem dela própria,
mas pelo seu valor intrínseco (367d). Alegando sua ignorância quanto ao assunto (368b),
é quando, então, Sócrates explana brevemente sobre a pesquisa que haveriam de
empreender na sequência, com o intuito de compreender qual seja a natureza da justiça:
485
Cf. εἶπον οὖν ὅπερ ἐμοὶ ἔδοξεν, ὅτι τὸ ζήτημα ᾧ ἐπιχειροῦμεν οὐ φαῦλον ἀλλ' ὀξὺ βλέποντος, ὡς ἐμοὶ
φαίνεται. ἐπειδὴ οὖν ἡμεῖς οὐ δεινοί, δοκῶ μοι, ἦν δ' ἐγώ, τοιαύτην ποιήσασθαι ζήτησιν αὐτοῦ, οἵανπερ ἂν
εἰ προσέταξέ τις γράμματα σμικρὰ πόρρωθεν ἀναγνῶναι μὴ πάνυ ὀξὺ βλέπουσιν, ἔπειτά τις ἐνενόησεν,
ὅτι τὰ αὐτὰ γράμματα ἔστι που καὶ ἄλλοθι μείζω τε καὶ ἐν μείζονι, ἕρμαιον ἂν ἐφάνη οἶμαι ἐκεῖνα πρῶτον
ἀναγνόντας οὕτως ἐπισκοπεῖν τὰ ἐλάττω, εἰ τὰ αὐτὰ ὄντα τυγχάνει.
280
A observação de natureza metodológica que Sócrates apresenta nessa passagem
é um preâmbulo do paralelo que se desenvolve, em praticamente todos os demais livros
da República, entre a psykhé e a pólis. As letras estão aqui evocadas como uma imagem para
fazer compreender esse mecanismo argumentativo da obra, mas representam também
um modelo para a compreensão do próprio processo dialético, ao indicar a existência de
dois níveis de visão/compreensão. Enquanto não é possível “ver agudamente” (ὀξὺ
βλέποντος) – condição hipotética para uma intelecção pura, sem intermediários, que
poderia, fosse esse o caso, permitir a distinção das letras pequenas mesmo à distância
(γράμματα σμικρὰ) –, cabe ao filósofo lançar mão de uma forma de visão substitutiva,
uma visão mediada. Assim, antes de ver as letras menores, é preciso antes ler as maiores
(μείζω τε καὶ ἐν μείζονι). Se, conforme observamos antes, Platão recorre à metáfora da
visão para, analogicamente, pensar o processo do conhecer na República, insinua-se nessa
passagem que tal processo requer, para a maior parte dos mortais, entre os quais se
encontram Sócrates e seus interlocutores, uma espécie de mediação, como consequência
da ausência de uma visão absoluta.
Não nos parece despropositado que semelhante mediação se faça aqui pelo
recurso à metáfora das letras e da experiência da leitura (ἀνάγνωσις). Embora não haja
na passagem em discussão uma definição explícita das letras (γράμματα) como
paradigmas (παραδείγματα), perguntamo-nos se seria possível reconhecer que as letras
sejam aí efetivamente empregadas como modelo para a compreensão do processo que
conduz à compreensão da Forma de justiça. Se assim o for, parece-nos justa a proposição
de M. Vegetti (1988, p. 408) de que o tema das letras em Platão não deve ser considerado
(somente) à luz do conflito entre oralidade e escrita (cf. Carta 7) ou da escrita como o duplo
precário da linguagem que não substitui a verdadeira memória (cf. Fedro). Para o Vegetti,
assim como a utilização da metáfora, do mito e da própria dramaticidade do diálogo
supõe a ambiguidade de uma relação indissolúvel entre oralidade e escrita, tal uso
também permite compreender as letras como pólo revelador de noções capitais do
platonismo: a matemática, a voz do pensamento, a lei, a alma, a justiça e as Formas. Essa
última característica das letras em Platão parece ficar ainda mais clara na próxima
passagem que examinaremos, extraída do livro III da República.
O livro III é conhecido como aquele que contém talvez a mais severa crítica aos
poetas em toda a obra de Platão. Na sua primeira parte (3.386a-392b), Sócrates demonstra,
através de passagens de Homero, que os poetas produziam imagens falsas e indignas dos
deuses, atribuindo-lhes comportamentos que representavam modelos prejudiciais à
educação dos jovens, se se levasse em consideração que a educação deveria conduzi-los
281
à temperança, à coragem, à justiça e à verdade. Sócrates propõe, então, um exame das
formas poéticas, em relação aos seus gêneros e temas, em uma seção que constitui talvez
a primeira reflexão explícita sobre uma arte poética na tradição grega que nos foi
conservada (392c-395b)486. No contexto de análise do problema da mímesis, os dialogantes
concluem que não se deve admitir na cidade a presença dos poetas miméticos, a menos
que sua imitação tenha como modelos comportamentos de coragem, de prudência, de
piedade e de liberdade (395c4-5: ἀνδρείους, σώφρονας, ὁσίους, ἐλευθέρους)487. Desse
modo, não seria bem-vinda à cidade tampouco a visita de alguém que, dominando tal
arte, se afirmasse capaz de imitar com seus poemas todas as coisas. Embora esse visitante
pudesse mesmo ser considerado pela população “sagrado, admirável e doce” (398a4-5:
ἱερὸν καὶ θαυμαστὸν καὶ ἡδύν), ele seria convidado a deixar a cidade (398a). Somente
seria admissível um poeta (μυθόλογος) “mais austero e menos agradável” (398a8:
αὐστηροτέρῳ καὶ ἀηδεστέρῳ), e que se limitasse a cantar mythoi que estivessem de
acordo com os princípios que foram instituídos para a educação. Na sequência, Platão
põe em discussão o caráter do canto e da melodia (398c1-2: περὶ ᾠδῆς…καὶ μελῶν).
Excluídos os gêneros jônicos e lídios, que são, entre outros, considerados perniciosos à
486
De forma explícita, talvez Platão tenha escrito o texto supérstite mais antigo que tematiza a poesia e
contribui para a compreensão de suas formas, mecanismos e funcionamento na cultura grega, como
testemunhamos a partir dessa famosa passagem do livro III da República (especialmente entre 376e-398b),
de uma outra no livro X (entre 598a-608b) e, também, embora menos diretamente, em passagens de outros
diálogos como o Íon e o Fedro. Contudo, como demonstra J. L. Brandão, em seu livro Antiga musa (2005), já
na obra dos poetas arcaicos, especialmente em Homero e Hesíodo, é possível reconhecer – ainda que de
forma implícita – uma reflexão metapoética. Escreve Brandão: “O testemunho das leituras gregas não nos
deixa dúvidas de que, tratando-se de leitores excepcionalmente dotados, como o são Sólon, Platão e
Aristóteles, o que se expõe é o que os textos, de alguma forma, supõem – e seria no mínimo preconceituoso
atribuir aos poetas arcaicos e a seu público uma inconsciência ingênua sobre o fazer poético ou pretender
que Homero e Hesíodo, em nome de uma inconsistente mentalidade primitiva, agissem meio às cegas. Na
verdade, eles, com seu gesto inaugural (pelo menos até onde podemos retroceder numa tradição narrativa
que parece muito antiga) expuseram o lugar do poeta, ao refletirem sobre sua função, abrindo a história de
uma reflexão crítica que se estenderá por uma longuíssima duração” (Brandão, 2005, p. 177-178).
487
P. Murray (1996, p. 3-6), destaca que a atitude de Platão acerca da mímesis é ambivalente nessa passagem.
Quando um poeta ou um recitador produz uma imitação, ele adota não somente seus semblantes e gestos,
mas também seu caráter. Assim sendo, a mímesis tem um poderoso efeito sobre a alma. É por isso que se
recomenda que poetas e artistas representem somente o que é bom (401b1-8), o que parece implicar que a
poesia não é denecessária por ser fútil, mas por ser, ao contrário, poderosa. As imagens que a poesia produz
podem gerar uma impressão permanente na alma dos jovens, por isso, os poetas, se admitidos na cidade,
devem ser supervisionados pelo governante. Essa reflexão parece iluminar, portanto, uma ambivalência da
poesia: se a imitação de bons modelos pode vir em benefício da educação dos jovens, por que restringir a
imitação ao mínimo na cidade (cf. 395c3-7; 396e4-7)? Annas (1981, p. 99) observa que parte da implicância de
Platão contra os poetas decorre na verdade de uma suspeita geral quanto aos efeitos da poesia,
particularmente no seu aspecto dramático: “All the drammatic resources of poetry make us feel the
impossibility of giving a single finally right moral appraisal of certain situations; and for Plato this is wrong,
and dangerously wrong, because it encourages us to stay at the level of dramma and theatre, rather than to
persevere in the search of moral truth”. A mim, sou mais cético quanto à essa ressalva geral de Platão acerca
da poesia pelas razões apresentadas por Annas (1981), tendo em vista não somente o elogio da poesia em
outras obras do corpus (Ion, Ap. 22a-c; Men. 99c-e; Phdr. 245; Lg. 719c-d), quanto também, sobretudo, que a
característica poética e dramática dos diálogos de Platão é notável e reconhecida por vários estudiosos há
bastante tempo (Tarrant, 1955; Schaerer, 1969; Nussbaum, 1986; Brisson, 2003; Cotton, 2014).
282
educação por inspirarem a embriaguez, a fraqueza moral e a preguiça (398e6-7: μέθη…καὶ
μαλακία καὶ ἀργία), os interlocutores admitem o dórico e o frígio, e aqueles que, imitando
a voz dos homens valentes na guerra, sejam capazes de lhes insuflar coragem na batalha
(398e-399c). O mesmo juízo recai sobre o seu modo de execução: deveriam ser
prestigiados somente os gêneros simples, desprovidos de instrumentos complexos, e os
ritmos que não sejam variados, mas simples e ordenados (399c-400a).
Embora a longa passagem soe como uma provocativa censura às artes – ou mesmo
uma franca interdição aos poetas, expressa, por exemplo, mais claramente entre 401b-d
– o papel da música como elemento para a educação dos jovens é mais uma vez
ressaltado: o ritmo e a harmonia que ela contém (401d7: ὅ τε ῥυθμὸς καὶ ἁρμονία)
possuem a propriedade de “penetrarem a alma” (401d6: ὅ τε ῥυθμὸς καὶ ἁρμονία),
trazendo-lhe graça (401d8: εὐσχημοσύνην), tornando-a mais nobre (401d8: ποιεῖ
εὐσχήμονα), se essa alma for corretamente educada (401e1: ἐάν τις ὀρθῶς τραφῇ).
Não é nosso propósito aqui entrar em detalhes acerca dessa rigorosa “crítica
literária e musical platônica”, objeto de incontáveis estudos e de numerosas controvérsias
críticas, cujo exame requisitaria de nós um capítulo à parte488. Nosso interesse aqui se
limita a salientar que o foco da discussão parece ser destacar que, entre as diferentes artes
que figuravam desde a Grécia Arcaica como elementos da educação grega, somente
mereceriam atenção aquelas que se mostrassem condignas à educação dos guardiões por
razões que importam propriamente ao filósofo, i.e. a educação da psykhé tendo em vista a
coragem, a temperança e a justiça.
É por essa razão que, no conjunto maior das artes imitativas, Platão destaca não o
prazer, a graça ou os efeitos propriamente poéticos das composições, mas os elementos
formais e abstratos da harmonia e do ritmo que, em geral, passam despercebidos para
quem apenas se interessa pela fruição estética da música ou da poesia. Dito de outro
modo, é como se Platão nos convidasse a considerar a música não como o objeto estético
que ela representa – não para, efetivamente, ouvi-la e, por conseguinte, sermos afetados
pelas sensações belas, apaziguantes, excitantes etc. que ela possa engendrar a partir de
488
Apesar da censura e da insistência em demonstrar a inadequação da poesia imitativa como recursos
educativos para a juventude na cidade, é importante notar que Platão, no livro X (607c) apresenta uma
“abertura dialética”: se forem apresentados argumentos a favor da poesia imitativa que provassem a sua
utilidade para a cidade, ela seria novamente readmitida, principalmente por terem consciência do
encantamento que ela produz. Ao longo da história crítica dessa passagem, vários argumentos foram
apresentados “em defesa da poesia” – como, por exemplo, para citarmos apenas alguns, Aristóteles (Poetica,
III a.C.); Sir P. Sidney (An apology for poetry, 1595), P. Schelley (A defence of poetry, 1821-1840); F. Nietzsche (Die
Geburt der Tragödie, 1872; Zur Genealogie der Moral, 1886); J. Derrida (L'Écriture et la différence, 1967) etc. Uma
boa referência dessas controvérsias entre poesia e filosofia na República é a edição crítica comentada de
Murray (1996) e Levin (2001).
283
seus sons. Considerar intelectualmente a música, como peça fundamental da educação
filosófica, significaria vermos nela algo que estaria além da sua manifestação sensorial,
aquele elemento que configura, precisamente, a sua potência educativa. É para explicar
essa ideia que Platão recorre ainda uma vez ao exemplo das letras. Vejamos a passagem
que aqui nos interessa examinar:
Nessa passagem, Platão parece novamente frisar a distinção entre dois níveis da
percepção da realidade e do conhecimento: um nível relacionado às imagens (por
exemplo, das letras na água, ou no espelho) e um nível subjacente, ligado à compreensão
489
Cf. - Ὥσπερ ἄρα, ἦν δ' ἐγώ, γραμμάτων πέρι τότε ἱκανῶς εἴχομεν, ὅτε τὰ στοιχεῖα μὴ λανθάνοι ἡμᾶς
ὀλίγα ὄντα ἐν ἅπασιν οἷς ἔστιν περιφερόμενα, καὶ οὔτ' ἐν σμικρῷ οὔτ' ἐν μεγάλῳ ἠτιμάζομεν αὐτά,
ὡς οὐ δέοι αἰσθάνεσθαι, ἀλλὰ πανταχοῦ προυθυμούμεθα διαγιγνώσκειν, ὡς οὐ πρότερον ἐσόμενοι
γραμματικοὶ πρὶν οὕτως ἔχοιμεν
- Ἀληθῆ.
- Οὐκοῦν καὶ εἰκόνας γραμμάτων, εἴ που ἢ ἐν ὕδασιν ἢ ἐν κατόπτροις ἐμφαίνοιντο, οὐ πρότερον
γνωσόμεθα, πρὶν ἂν αὐτὰ γνῶμεν, ἀλλ' ἔστιν τῆς αὐτῆς τέχνης τε καὶ μελέτης;
- Παντάπασι μὲν οὖν.
Ἆρ' οὖν, ὃ λέγω, πρὸς θεῶν, οὕτως οὐδὲ μουσικοὶ πρότερον ἐσόμεθα, οὔτε αὐτοὶ οὔτε οὕς φαμεν
ἡμῖν παιδευτέον εἶναι τοὺς φύλακας, πρὶν ἂν τὰ τῆς σωφροσύνης εἴδη καὶ ἀνδρείας καὶ
ἐλευθεριότητος καὶ μεγαλοπρεπείας καὶ ὅσα τούτων ἀδελφὰ καὶ τὰ τούτων αὖ ἐναντία πανταχοῦ
περιφερόμενα γνωρίζωμεν καὶ ἐνόντα ἐν οἷς ἔνεστιν αἰσθανώμεθα καὶ αὐτὰ καὶ εἰκόνας αὐτῶν,
καὶ μήτε ἐν σμικροῖς μήτε ἐν μεγάλοις ἀτιμάζωμεν, ἀλλὰ τῆς αὐτῆς οἰώμεθα τέχνης εἶναι καὶ
μελέτης;
- Πολλὴ ἀνάγκη, ἔφη.
284
de seu valor. Tomando a metáfora das letras, o que parece estar claro é que a sua
apreensão sensível, sem sua respectiva compreensão intelectual, é vazia de significado:
se antes não se der atenção às letras por elas mesmas (αὐτὰ γνῶμεν), suas figuras
refletidas na água ou no espelho não terão qualquer valor distintivo490. É por isso que o
processo de aquisição da leitura, se bem-sucedido, implica o prévio esforço para
identificar, reconhecer e distinguir os elementos da escrita (τὰ στοιχεῖα), nos variados
contextos em que ocorrem, no sentido de lhes apreender o seu valor. A curiosidade de
uma criança aprendendo a ler – o entusiasmo aplicado nesse exercício (προυθυμούμεθα)
– leva-a a proceder, incessantemente, a um exercício analítico da linguagem, gerando a
compreensão de que, a partir de relativamente poucas letras, é possível ler e escrever todo
tipo de palavra.
A alusão às letras e, em particular, ao processo de aquisição da competência da
leitura, parece ter a função de paradigma, na medida em que o aprendizado das letras é
evocado como modelo explicativo para a compreensão do análogo processo da
investigação filosófica: o filósofo não chegará jamais a ser músico (isto é, a ter proficiência
nas artes, ou a dominar os mecanismos de composição harmônica e rítmica), antes de se
engajar, ativamente, em um processo de aprendizado que lhe torne familiarizado
(γνωρίζειν), com as formas da temperança, da generosidade, da coragem e da grandeza
de alma que, de certo modo, conferem valor à música (e, acrescentaríamos, à realidade).
Esse processo, voltado para a apreensão de valores abstratos, não despreza contudo sua
dimensão sensível: é preciso também que tais formas sejam objetos da percepção
(αἰσθανώμεθα), bem como que sejam consideradas não somente em si mesmas, mas,
também, nas imagens delas (καὶ αὐτὰ καὶ εἰκόνας αὐτῶν)491.
490
A noção de “valor distintivo” é aqui particularmente significativa por dois aspectos. Em primeiro lugar,
por uma razão linguística: a ideia de valor é familiar às reflexões modernas no campo da linguagem – noção
de valor saussuriano, corroborada, por exemplo, nas reflexões sobre “distintividade” fonética desenvolvidas
por R. Jakobson (1963) poderia talvez se aplicar ao exemplo dado por Platão relativo ao aprendizado da
leitura nessa passagem. Além disso, há também uma razão filosófica: a noção de valor parece se coadunar
com a hipótese das Formas tomada em sua dimensão axiológica, como, por exemplo, propõe Trabattoni
(2010, p. 106): “segundo Aristóteles, Sócrates se interessava exclusivamente por questões éticas. Mas também
o Sócrates de Platão, particularmente aquele representado pelos diálogos de juventude, direciona sua típica
pergunta exclusivamente para o âmbito dos valores. A teoria platônica das ideias parece compartilhar dessa
preocupação. É de se suspeitar que seu interesse principal fosse direcionado a esse gênero de universais.
(…) Para Platão não há dúvidas de que o mundo das ideias é superior à realidade sensível também em termos
de valores”.
491
O termo que aqui traduzimos como formas (402c2: εἴδη), segundo alguns comentadores (como Rocha
Pereira, 2014, p. 134) não deve ser considerado em seu sentido forte, em referência aos inteligíveis, uma vez
que essa doutrina seria formulada em seu sentido filosófico apenas no livro VII. Assim, deveria antes ser
tomada no sentido fraco, como “espécies” ou “gêneros”. Entretanto, considerando que, conforme
comentamos antes, a hipótese das Formas não deve ser considerada uma doutrina fechada, tampouco
restrita a uma obra, sendo, no mais das vezes, mencionada à luz do exame de problemas que aparecem em
diferentes diálogos – no Crátilo, no Fédon, na República e no Fedro, principalmente –, acho francamente difícil
285
Assim, as letras e o seu aprendizado, como paradigma desse processo, têm a
extrema vantagem de encerrarem, a um só tempo, qualidades sonoras/visuais (logo,
sensíveis) e traços abstratos distintivos (logo, intelectuais), que permitem aos olhos e aos
ouvidos apreenderem unidades de significação, como notou C. Gaudin (1990, p. 155).
Parece-nos, portanto, plausível imaginar que Platão tenha considerado suficientemente
paradigmática e, portanto, filosoficamente relevante, a coexistência dos elementos
sensório-perceptuais e abstrato-intelectuais que é constitutiva das letras e do processo de
leitura e, portanto, ter lançado mão desse paradigma como um auxílio para o
desenvolvimento do seu pensamento. Gaudin observa ainda que o sistema alfabético
materializa, ademais, a “ciência dos elementos” (stoicheïologie) que estaria na base do
interesse filosófico de Platão, e que poderia, grosso modo, ser traduzida como a busca dos
elementos últimos e imperceptíveis da realidade que se articulam racionalmente, que
possibilitam a divisão e a reunião. Assim, a pesquisa filosófica – tal como o decodificar
das letras – representaria de certo modo uma tentativa de “estabelecer os elementos do
pensamento, tal como peças que se ajustam umas às outras, manifestando a
inteligibilidade de uma composição”492. Nesse sentido, as letras poderiam ser pensadas
como um paradigma, um “modelo para a inteligibilidade” (1990, p. 172).
É claro que Gaudin (1990) avança suas conclusões sobre o papel paradigmático
das letras fazendo um estudo bastante erudito que considera desenvolvimentos da
filosofia platônica em vários diálogos, especialmente nos mais tardios, como o Teeteto, o
Sofista e o Timeu, mas ele não estende o seu exame, pelo menos não de modo
pormenorizado, às passagens da República que nos interessam, e tampouco à passagem
final do Fedro (275d4-278b6), que será o objeto de discussão no próximo e último capítulo
de nossa tese. Além disso, a compreensão da relação do paradigma com as letras, no
propor, como Rocha Pereira, uma delimitação desse tema ao livro VII da República. Do mesmo modo, não
advogo nem mesmo para o livro VII uma concepção ontológica e metafísica absuluta que desembocaria na
famosa “Teoria dos dois mundos”. É verdade que há uma distinção no que diz respeito ao tratamento dos
εἴδη entre o livro III e o livro VII, mediante um progressivo desenvolvimento dialético e um fortalecimento
teórico do conceito, com suas implicações epistemológicas, ontológicas e metafísicas, mas isso não significa
que a sua dimensão ética e axiológica, presente talvez desde o livro III, sejam, mais à frente, abandonadas.
Por isso, mesmo nessa passagem, não admitiria que o termo esteja aí empregado sem qualquer
consequência filosófica. Ao contrário: penso mesmo que seu emprego contribui para a elaboração de uma
distinção (não uma oposição) entre as dimensões do conhecimento sensível e inteligível, a partir de uma
questão (ainda) essencialmente ética. Isso me parece particularmente claro quando tomamos a comparação
que se faz com as letras: assim como é preciso buscar o “ser das letras” (isto é, o seu valor), mais do que o
“parecer” (isto é, seus reflexos), é também preciso ir em busca do ser das coisas. Tenho, nesse sentido, uma
concepção das Formas mais aproximada da proposta por Dixsaut (2012, p. 99-130), na linha dos
comentadores que têm, mais recentemente, questionado a Teoria dos dois mundos (cf. Ferrari, 2018b, p.
215).
492
Cf. “[Ce souci d’infime], d’établir les éléments pensables comme des pièces qui s’ajustent les unes aux
autres, manifestant l’intelligibilité d’une composition”.
286
sentido de “modelo explicativo”, decorre em ampla medida da interpretação que
propomos para essas passagens, haja vista que não existe nelas uma associação explícita
entre grámmata e paradeígmata – diversamente do que ocorre na primeira passagem
citada nesta seção (R. 7.529c7-e3), na qual víamos textualmente explícita a associação entre
o paradigma e as estrelas celestes. Entretanto, se tal associação não se realiza de modo
explícito na República, o que dizer do que se passa nos diálogos do período de maturidade
e velhice, com quais a República e o Fedro teriam maior afinidade teórica? Se admitirmos,
conforme anota Brisson (2004, p. 33), que o conjunto República-Fedro-Sofista-Político pode
ser lido como uma unidade, ainda que não homogênea, na qual noções filosóficas
inicialmente postuladas na República vão encontrar seu desenvolvimento, serem
ampliadas e confirmadas nos diálogos subsequentes493, parece-nos oportuno encerrar
este capítulo mencionando, a título de ilustração, uma breve passagem do Político (277a3-
278d6), onde nos deparamos com uma evidência textual da noção das letras tomadas
como paradigma para a dialética494.
493
Cf. Brisson (2004, p. 33-34): “Postérieur au Banquet, le Phèdre l’est donc aussi à la République. Le « lieu qui
se trouve au-dessus du ciel » (Phèdre 247c) doit être mis en rapport avec le « lieu intelligible » de la République
(VI 508b-c, 509d, VII 517b). Le second discours de Socrate peut être interprété comme la reprise, sur un plan
cosmique, de l’allégorie de la caverne (Rép. VI 514a-517a). La représentation de l’âme sous une forme d’un
ensemble constitué par un cocher qui dirige deux chevaux tirant un char implique l’idée d’une tripartition
de l’âme du genre de celle qu’on trouve au livre IV de la République. Bien plus, l’eschatologie du Phèdre
prolonge, affine et développe celle du mythe d’Er au livre X de la République. Enfin, l’expression « mythe sur
la justice » qu’on trouve à la fin du Phèdre (276e) semble bien être une allusion à la République. Cela dit,
l’affirmation du rôle que doit jouer la dialectique pour donner au discours la possibilité d’atteindre à la
vérité et l’importance que prend, dans le cadre de la dialectique, la méthode de division se verront confirmer
dans des dialogues comme le Sophiste, le Politique et le Philèbe, dont une relecture permet de comprendre
certains points obscurs du Phèdre”.
494
Poderíamos citar também a famosa passagem do Sofista (entre 252e1 e 253e), em que as letras estão
explicitamente tomadas como paradeígmata, i.e. como modelos explicativos da koinonía entre os grandes
gêneros. Contudo, como nosso propósito não é apresentar um exame exaustivo de todas os diálogos em que
aparece essa relação, mas apenas indicar que em diálogos posteriores Platão faz uma explícita referência às
letras como paradigma, limitamo-nos aqui a comentar as mencionadas passagens do Político (277b; 285a-d)
que consideramos mais relevantes para a discussão que empreenderemos no próximo capítulo, quando
retornaremos ao exame da questão no Fedro.
495
Conforme comenta Narcy (2012, p. 707), do ponto de vista dramático, o diálogo teria ocorrido
provavelmente no mesmo dia em que houve o diálogo apresentado no Sofista (talvez um dia depois da
discussão presente no Teeteto). A continuidade entre o Sofista e o Político é evidenciada, por exemplo, pela
sugestão que o Estrangeiro de Eleia faz de “deixá-lo [Teeteto] descansar” (257c7: Διαναπαύσωμεν αὐτὸν),
substituindo-o, na discussão, pelo Jovem Sócrates. Parece claro aqui o caráter infatigável do Estrangeiro de
Eleia, que não dá mostras de cansaço após um longa discussão, estando prestes a reiniciar outra.
496
Quem é a misteriosa personagem do Estrangeiro de Eleia no Sofista e no Político? Não há consenso entre
os comentadores se se trata de uma figura alternativa a Sócrates, o alter-ego de Platão, talvez representando
287
(πολιτικός) e do filósofo (φιλόσοφος, Sph. 216c-217b), o Político propõe, na sua cena inicial,
“completar a discussão” acerca desses dois últimos gêneros (Plt. 257a4-5: ἐπειδὰν τόν τε
πολιτικὸν ἀπεργάσωνταί σοι καὶ τὸν φιλόσοφον). Assim, o diálogo entre o Estrangeiro
de Eleia e o Jovem Sócrates, que passa a assumir a posição antes ocupada por Teeteto497,
apresenta-se, principalmente, como a busca pela definição do político (πολιτικός).
Conforme destacam vários comentadores, entre os quais H. Fowler (1925, p. 3), J. Cooper
(1997, p. 294), Dixsaut (2001, p. 231), L. Brisson & J.-F. Pradeau (2003, p. 21) e M. Narcy (2012,
p. 707), a preocupação central do diálogo não é somente oferecer uma reflexão em torno
de uma “ciência política”, mas, considerando-se a indissociabilidade entre o método e o
objeto, também tensionar os limites e possibilidades da dialética, de modo a que, no final
desse percurso investigativo, os dialogantes possam se converter, eles próprios, em
“melhores dialéticos para a investigação de todos os assuntos” (285d5-6: τοῦ περὶ πάντα
διαλεκτικωτέροις γίγνεσθαι)498. Fica patente, portanto, a vinculação entre o Político, o
Sofista e o Fedro: para além de seus vários objetos particulares, os três diálogos implicam
um esforço de distinguir o filósofo, dos rétores (cf. Fedro), dos sofistas (cf. Sofista) e dos
políticos (cf. Político). Além disso, a aplicação rigorosa do método de divisão e reunião,
que traduz no Político particularmente as suas dificuldades e limitações, põe em evidência
a ênfase metodológica presente nesse diálogo, prática precedida pelas reflexões em torno
da dialética presentes na República e no Fedro, conforme examinamos no capítulo I499.
as posições de algum acadêmico, tal como Aristóteles (posição sustentada por G. Roggerone, 1983); se seria
um personagem fictício, criado por Platão para refutar os sofistas, mantendo uma posição intermediária
entre a sofística e a Academia (posição de R. Brumbaugh, 1989), se seria o representante da filosofia eleática
com quem Platão, escondido atrás do Jovem Sócrates estaria debatendo (posição de T. Jatakari, 1990), ou,
enfim, se representaria o próprio Platão, que não mais poderia se servir de Sócrates como seu protagonista
por razões de verossimilhança (posição de L. Brisson, 2003). F. Muniz (2018) analisa diferentes
interpretações acerca dessa personagem, propondo que sua formulação decorre da tentativa de Platão de
fazer uma incursão nos “diálogos eleáticos” (por oposição crítica aos diálogos “socráticos”). Escreve Muniz:
“Deste modo, o Estrangeiro não deve ser visto apenas como o discípulo transgressor que mata o pai teórico
para tonar possível o pensamento do mestre, mas deve ser visto, também, como quem denuncia as
limitações filosóficas de Sócrates: a ausência de uma doutrina positiva, a infertilidade requerida pela
maiêutica. A filosofia da divisão do Estrangeiro tem assim uma dupla face: por um lado, é uma alternativa
a essas deficiências da filosofia socrática e, por outro, um desdobramento do pensamento parmenídico.
Nesse sentido, a filosofia do Estrangeiro é uma filosofia pós-parmenídica, que supõe um todo dotado de
partes que, portanto, pode ser dividido. Daí o método de divisão ser o supremo procedimento da filosofia
do Estrangeiro”.
497
O Jovem Sócrates (Σωκράτης ὁ νεώτερος) é o personagem que o Estrangeiro de Eleia introduz à conversa
após a saída de Teeteto (257c8). Conforme comenta Narcy (2012, p. 707), trata-se do discípulo de Teeteto (cf.
Tht. 147d-148b), que estava presente, como espectador, na discussão do Sofista (218b). Conforme anota Nails
(2002, p. 269), sendo ainda jovem, por ocasião da data da morte de Sócrates, em 399 a.C., teria frequentado
a Academia entre 367 e 347 a.C.
498
Essa ligeira observação do Estrangeiro de Eleia em 285d5-6 sugere que, embora não haja no Político (ou
em outro diálogo que nos tenha chegado), uma discussão específica sobre o filósofo, que pudesse, assim,
completar a proposta lançada no Sofista (216c-217b), a reflexão sobre o filósofo subjaz à discussão desse
diálogo (e também a de vários outros, como o Banquete, a República, o Fedro e o Sofista).
499
Na medida em que as letras, tomadas como modelos de explicação (παραδείγματα), são tematizadas
filosoficamente por Platão como expedientes para a elucidação do próprio método (a dialética), a discussão
288
A leitura do Político deixa entrever que a mera aplicação do método de divisões –
diferentemente do que ocorrera no Sofista – não culmina sempre em uma definição
satisfatória para o objeto pesquisado500. Tendo postulado que o político estava entre os
homens que detêm uma ciência (258b4: τῶν ἐπιστημόνων), o Estrangeiro propõe que
procedam, tal como o haviam feito no Sofista, mediante o método de divisões dicotômicas.
Por esse procedimento, eles chegam à definição do “político” como um “condutor de
rebanhos humanos” (267c2: ἀνθρωπονομικὸν), e da “política” (ἡ πολιτική) como uma
subtécnica da técnica mais geral da criação de animais (267b1-2: ζῳοτροφικῆς εἶδος), e,
enfim, como uma das modalidades técnicas do pastoreio (267d6: τῶν νομευτικῶν ἡμῖν
πολλῶν) e, por conseguinte, como “a ciência que cuida [nutre, alimenta] dos homens em
uma comunidade” (267d11: ἀνθρώπων κοινοτροφικὴν ἐπιστήμην). No entanto, essa
definição revelou-se insatisfatória, e os levou a se interrogar pelas razões para tal.
Primeiramente, ela não se mostrou eficaz para estabelecer a distinção entre o
gênero do político e outros gêneros que poderiam igualmente reivindicar para si o
atributo de “pastor de homens”, tal como os comerciantes, os agricutores, os atletas e os
médicos (276e7-8: οἱ ἔμποροι καὶ γεωργοὶ καὶ σιτουργοὶ πάντες, καὶ πρὸς τούτοις
γυμνασταὶ καὶ τὸ τῶν ἰατρῶν γένος). Em segundo lugar, porque, após o longo interlúdio
narrativo mítico do diálogo (269c-274e), que se propôs a representar “algo como uma
brincadeira” (268d8: σχεδὸν παιδιὰν)501, concluiu-se que a primeira definição incorrera
sobre essa questão a partir do Fedro parece exigir não somente uma digressão em torno de seus
fundamentos na República (conforme realizamos neste capítulo e também, principalmente, no capítulo I
desta tese), mas poderia ser também enriquecida com alguma reflexão sobre seus desdobramentos no
Sofista e no Político. Para uma discussão mais avançada sobre o Sofista, indicamos as introduções e traduções
anotadas de N.-L. Cordero (1998), F. Fronterrota (2007) e, em português, H. Murachco et al. (2011) e o estudo
de M. Marques (2006). A respeito do Político, indicamos a introdução e tradução comentada de L. Brisson
& J.-F. Pradeau (2003), os estudos de M. Miller Jr. (1980) e Márquez (2012), e as coletâneas de estudos
editadas por C. Rowe (1995) e J. Sallis (2017).
500
Enquanto no Sofista a aplicação do método das divisões dicotômicas chegara à proposição de definições
satisfatórias para o sofista (como fica patente na fala final do Estrangeiro de Eleia, em 268c-d), o mesmo
método progride com dificuldade no Político, que é entrecortado por várias interrupções em que ocorrem
reflexões metodológicas e correção do método (como, por exemplo, em 262a-264b, 283c-d, 286c-287a etc.). A
nosso ver, isso parece indicar que no Político, mais que no Sofista, onde Platão demonstra a eficácia da
aplicação do método proposto no Fedro (266b3-c9), ele estaria evidenciando a sua falibilidade. Ou seja, o
método não é sempre eficaz independentemente das demais variáveis, como, por exemplo, a natureza da
questão e quem são os interlocutores envolvidos.
501
O interessante interlúdio mítico presente no Político (269c-274a) se apresenta como uma proposta do
Estrangeiro de Eleia para que prossigam “por outro caminho” (268d5: καθ' ἑτέραν ὁδὸν), após terem se
deparado com um primeiro fracasso na aplicação do método da divisão. O que essa proposta significa? A
nosso ver, a sugestão de outra rota representa uma inflexão de natureza metodológica que põe em primeiro
plano o mito como alternativa à dialética stricto sensu (cf. entendida no Fedro 266b3-c9). Assim sendo, na
sequência de um diálogo como o Sofista, em que testemunhamos somente uma rigorosa e eficaz aplicação
do método das divisões, Platão parece retornar ao mito como um dos elementos importantes da dialética
para lidar com os impasses, reaproximando assim o Político, de um ponto de vista formal, da República e do
Fedro, sem que com isso esteja destituindo o método das divisões e reuniões da sua posição central no
âmbito da dialética. Afinal de contas, após a narrativa mítica, ambos os interlocutores voltarão a se engajar
na aplicação daquele método e, finalmente, serão bem sucedidos em sua empresa. Concordamos com M.
289
em uma “falta” (274e5: ἁμάρτημα). Com efeito, o mito cosmológico narrado pelo
Estrangeiro figurara não um homem, mas um deus, como pastor dos homens que viviam
sob a égide de Kronos502. Logo, se se admitisse a definição anterior, i.e. do político como o
pastor dos rebanhos humanos, cometer-se-ia a impiedade de tornar indistintos homens
e deuses e se fracassaria na tentativa de definir o político503.
Assim, além de representar uma espécie de retomada filosófica de referências
Narcy (2012, p. 708) que a “mudança de rota” não significaria propriamente uma “mudança de método”. É
o que bem mostra também Dixsaut (2001, p. 345): “Une espèce de logos – la division – s’est révélée
impuissante à définir le politique, et le passage par le mythe nous donne la raison de son échec. La division
n’est donc pas le moyen infaillible d’arriver à une définition et le recours à un moyen « impur » comme le
mythe peut servir à dénoncer et à en rectifier les erreurs. Mais c’est néanmoins le logos qui constitue le seul
bon moyen de saisir les réalités les plus importantes (…). Tout d’abord [le mythe] il montre l’impossibilité
d’assimiler la dialectique, en général, à la dite « méthode de division ». Non seulement la dialectique ne se
résume pas à diviser e à rassembler, mais le dialecticien peut – et doit – conjuguer tous les moyens d’arriver
à son but. Le mythe peut, en certains cas, faire partie de ces moyens, à condition de construire un récit
obéissant à des fins dialectiques, puis de raisonner et de réfléchir sur lui”.
502
Sem a pretensão de fazermos aqui a síntese desse excurso mítico (269c-274a), que, vale dizer, é bastante
complexo (cf. Miller Jr., 1980, p. 36-56; Brisson, 2003, p. 211-237), é oportuno apontar apenas alguns de seus
elementos estruturais que nos parecem fundamentais para a sua contextualização. O mito figura a
alternância dos diferentes ciclos cósmicos: um, quando o universo seria conduzido pela própria divindade
(269c4-5: αὐτὸς ὁ θεὸς), o outro, quando ele seguiria o curso natural da vida e da inteligência que o habitam
(269d1: ζῷον ὂν καὶ φρόνησιν). Essa alternância se manifesta também no sentido da rotação do universo –
ora no sentido atual, ligado à temporalidade humana, a era de Zeus, ora no sentido inverso, ligado à
temporalidade divina (270b-c), a era de Kronos. Com a inversão no sentido da rotação do universo, entre a
era de Zeus e a era de Kronos, os mortais que sobrevivem passam a ter um modo de vida completamente
diverso, no qual não mais envelheceriam, mas, ao contrário, se tornariam cada vez mais jovens (270e-271a).
Todas as dimensões da vida seriam objeto do cuidado divino (271d4: ἐπιμελούμενος…ὁ θεός), e a divindade
governaria a vida no universo, pastoreando (νομεύουσι) os mortais. Não haveria, assim, a pólis, a posse de
mulheres e crianças, a necessidade de bens ou mesmo de trabalho, já que os frutos seriam sempre pródigos
e gratuitos a todos os mortais, o que tornaria a vida mais feliz (εὐδαιμονέστερον, 271e-272b). Há uma extensa
bibliografia que se interessa pela interpretação dessa passagem do mito que retrata a alternância de duas
eras (Cf. A. Lovejoy & G. Boas, 1935; A.-M. Dillens, 1985; L. Brisson, 2003). De acordo com Brisson (2003, p.
211 et seq.) a interpretação tradicional, que vê na passagem a alternância dos dois ciclos, suscita várias
questões e contradições (por exemplo: se a era atual, de Zeus, corresponde ao cosmo abandonado pelas
divindades, como interpretar o fato que em nosso mundo os deuses intervêm amiúde para auxiliar os
humanos, como por exemplo, para presenteá-los com as diversas técnicas, como é descrito em 273e-274e?).
Brisson (2003, p. 218-220) advoga em defesa da tese segundo a qual, para ler o mito como uma argumentação
rigorosa, que permite estabelecer uma relação entre antropologia, cosmologia e política, é preciso admitir
que aí estão representadas, na verdade, três distintas épocas, e não duas, sendo: 1) A era de Krónos (271c4-
272d6); 2) um interregno do cosmos entregue a si mesmo, abandonado pelos deuses (272d6-273e4); 3) a era
atual, o reinado de Zeus (273e4-274e7).
503
A constatação desse equívoco leva a pensar que Platão pretendesse sublinhar a diferença entre um
“governo divino” e um “governo humano”. Ao enfatizar o caráter um tanto quanto precário, improvisado e
imperfeito do governo dos homens, a reflexão proposta no Político parece representar um importante
momento de inflexão da teoria do rei-filósofo da República (cf. Cooper, 1997, p. 295). Assim, como também já
notara Fowler (1925, p. 3), diversamente do que ocorreria em um governo perfeito, regido talvez pelos
próprios deuses (ou pelos filósofos, cf. R.), o governo do político faz concessões “realistas” – como, por
exemplo, a necessidade das leis – e, talvez por isso mesmo, exija, como veremos mais adiante, uma reflexão
mediada por paradigmas. Com relação às leis, Narcy (2012, p. 711) escreve: “À l’inverse de la République, où
Socrate maintient qu’après tout l’apparition d’un philosophe roi ou d’un roi philosophe n’a rien
d’impossible (Resp. 499c7-d6), la référence à « aujourd’hui », à la réalité actuelle, n’a pas pour contrepartie
l’espoir que survienne un jour le monarque idéal. Ayant démontré qu’en l’absence ou à défaut de ce dernier,
la loi, quels qu’en soient les défauts, doit être en tout point obéie (comme la prescription d’un médecin,
aussi longtemps que lui-même ne juge pas bon de la modifier), l’Étranger n’a d’autre programme à proposer
que de faire, justement des lois, qui soient aussi proches que possible du régime idéal”.
290
mitológicas homéricas e hesiódicas504, provavelmente para se contrapor a certa
equiparação entre homens e deuses produzida pela retórica sofística humanista505, o
interlúdio mítico do Político (269c-274e), como convincentemente mostrou M. Miller Jr.
(1980, p. 34 et seq.), representa também a primeira digressão crítica a respeito do método
das divisões, pelo fato de chamar a atenção para sua falibilidade. É plausível pensar que
o Estrangeiro tenha assim procedido deliberadamente, com o intuito de conduzir o jovem
Sócrates a se tornar um filósofo melhor. Com efeito, se a própria pesquisa pode resultar
em aperfeiçoamento do pesquisador, como será possível aferir mais à frente com a
proposição de que o jovem Sócrates e o Estrangeiro poderiam vir a se tornarem
“melhores dialéticos” (285d6: διαλεκτικωτέροις γίγνεσθαι), o Estrangeiro de Eleia teria
agido, desde o início, como um psykhagogós. E, assim como Sócrates do Fedro, o
Estrangeiro estaria introduzindo o elemento mítico que oferece material crítico para que
seu interlocutor possa desenvolver suas habilidades filosóficas506. De toda forma, o
resultado dessa primeira digressão crítica teria uma função sobretudo negativa,
essencialmente elêntica, ou seja, ela não é portadora de uma nova definição, mas apenas
oferece o argumento que serve a refutar a proposição anterior.
Na sequência, os interlocutores fazem uma revisão das divisões anteriores,
identificando os erros cometidos e propondo retomar a pesquisa a partir de divisões (Plt.
274e-277a). A associação apressada entre a técnica real (βασιλική) ou política (πολιτική)
como sendo do gênero da técnica do pastoreio, i.e. da “técnica de nutrir os rebanhos”
(275d1: ἀγελαιοτροφικήν), levara não a uma determinação, mas a um afastamento do
504
Na passagem, Platão reescreve, filosoficamente, a ideia do governante como pastor de um rebanho
humano, já presente nas representações homéricas de Agamêmnon, Menelau e Odisseu, assim como no
mito da Era de Kronos, narrado por Hesíodo emTrabalhos e os dias. Contudo, conforme notou Miller (1980,
p. 36), Platão não se refugia no passado mítico, mas se apropria dele, de modo a oferecer um mythos que
evidencia transparentemente um lógos.
505
Sofistas como Protágoras, por exemplo, ao retomar mitos da tradição (como ocorre no diálogo platônico
que leva o seu nome) teriam se valido de tais elementos, seja como mais um elemento retórico, como um
modo de revestir uma ideia em imagens tradicionais; seja como uma forma de inserir a existência humana
no contexto dos valores arcaicos de uma cultura teocêntrica (Miller, 1980, p. 45). Platão, entretanto, ao
recontar o mito, evidencia que o “esquecimento” sobrevém ao abandono da divindade, e mostra que isso
demanda um subsequente auxílio divino. Entretanto, o esquecimento dos homens, pode levá-los a pensar
que têm a mesma medida dos deuses (idem, ib., p. 50).
506
Como notou Miller (1980, p. 34-36), é surpreendente que o Estrangeiro identifique a inadequação da
primeira definição a que conduziu o método de divisões, propondo um desvio de rota para uma reflexão de
caráter mítico, uma vez que a indistinção entre o político e outros candidatos a “pastores de homens”
poderia ser resolvida em se persistindo no método de divisões. Isso leva a crer que o intuito não seria,
efetivamente, o de chegar de modo mais rápido à definição mais precisa, mas o de oferecer ao jovem
Sócrates uma oportunidade de desenvolver seu senso crítico. Parece-nos possível, nesse sentido, traçar um
paralelo entre o Jovem Sócrates do Político e o personagem Fedro, do diálogo homônimo. Como mostramos
em nosso primeiro capítulo, sua disposição para aprender se defronta com um obstáculo, na medida em
que não é temperada por uma reflexão crítica, razão pela qual competirá ao Estrangeiro no Político, como
ao Sócrates no Fedro, conduzir o seu jovem interlocutor em direção à dialética.
291
objeto pesquisado (275c9-d6). Assim, seria preciso pensar em outra denominação para ela
mais abrangente e adequada: a técnica real implicaria não propriamente uma “nutrição”
(τροφή), mas um “cuidado” (ἐπιμέλεια). Feita essa constatação, resta agora experimentar
um outro modo de proceder às divisões, buscando separar o “pastor divino” (276d5:
θεῖον…νομέα) do “cuidador humano” (276d6: ἀνθρώπινον ἐπιμελητήν) e, então, fazer
uma nova divisão, distinguindo o cuidador humano que age por meio da força (276d11: τῷ
βιαίῳ) – o tirano – daquele que o faz tendo a boa-vontade e aquiescência da população
(276d11: ἑκουσίῳ) – o rei e o político (276e13: βασιλέα καὶ πολιτικὸν). Assim, o Estrangeiro
não somente corrige os equívocos cometidos na aplicação anterior do método, mas indica
ao Jovem Sócrates, ao mesmo tempo, um caminho a ser percorrido. O que isso significa,
senão que o Estrangeiro, tal como um mestre, esteja conduzindo o seu discípulo no
aprendizado do método correto de pensar, a saber, a dialética, ao experimentar junto com
ele as divisões corretas? As observações de natureza metodológica que sobrevêm na
sequência, entre 277a3-278d6, parecem corroborar essa hipótese, quando, então, o
Estrangeiro introduz a noção de parádeigma.
Antes de passarmos à discussão dessa passagem, apresentemos, ainda que
sinteticamente, aquelas que são, a nosso ver, as principais vias argumentativas nas quais
se desenvolve o pensamento:
1. o lógos como pintura e escultura inacabados (Plt. 277a3-277c6): a investigação
não está completa até que ambos os interlocutores tenham chegado a um acordo. Tal
como escultores (ἀνδριαντοποιοί) que, agindo apressadamente, acabam esculpindo
muitas partes demasiadamente grandes, e acabam atrasando as outras etapas da
execução de sua obra, também os dialogantes, ao tentarem esclarecer de forma grandiosa
(μεγαλοπρεπῶς…δηλώσαιμεν) o equívoco cometido, valeram-se de grandes modelos
(μεγάλα παραδείγματα), usando-se de uma narrativa mítica muito complexa, da qual se
viram obrigados a se ocupar em demasia. Nesse caso, porque estava privado da arte
(ἀτεχνῶς), o discurso (λόγος) apresentou-se apenas como o esboço de um ser vivo
(ζῷον…περιγραφὴν) que ainda não recebeu a vivacidade das cores (τῶν χρωμάτων
ἐνάργειαν), que é efeito dos pigmentos e da mistura (τοῖς φαρμάκοις καὶ τῇ συγκράσει).
Entretanto, seria mais conveniente mostrar esse animal através das palavras e dos
discursos (λέξει καὶ λόγῳ), do que através de um desenho ou qualquer outro trabalho
manual (γραφῆς δὲ καὶ συμπάσης χειρουργίας).
2. um paradigma para o paradigma, as letras e a leitura (Plt. 277d1-278d1): é difícil
mostrar algo grande (ἐνδείκνυσθαί τι τῶν μειζόνων), sem fazer uso de paradigmas (μὴ
παραδείγμασι χρώμενον). Tendo parecido estranho (ἀτόπως) o modo anterior de
292
abordar a experimento da ciência [dialética]507 (τῆς ἐπιστήμης πάθος), tornou-se
necessário apresentar um paradigma do paradigma (παραδείγματος…τὸ παράδειγμα).
Quando começam a aprender as letras, as crianças conseguem distinguir (διαισθάνονται)
melhor as letras em sílabas mais fáceis e breves (ἐν ταῖς βραχυτάταις καὶ ῥᾴσταις τῶν
συλλαβῶν), sobre as quais tornam-se capazes de falar com correção (τἀληθῆ φράζειν).
Por outro lado, diante de sílabas mais complexas, frequentemente cometem erros tanto
no que julgam quanto no que dizem sobre elas (δόξῃ τε ψεύδονται καὶ λόγῳ). Assim, um
método adequado para o ensino consistiria em lhes apresentar primeiramente as letras
naquelas sílabas em que já são capazes de julgá-las corretamente (ὀρθῶς ἐδόξαζον), para
depois lhes apresentar as outras ainda desconhecidas, e, fazendo um paralelo entre elas
(παραβάλλοντας), mostrar o que há de semelhante na natureza de ambas as combinações
(ἐν ἀμφοτέραις…ταῖς συμπλοκαῖς), até que todas as letras que conhecem sejam
mostradas (δειχθῇ,) junto àquelas que não conhecem, de modo que elas se tornem um
paradigma.
3. a noção de paradigma e sua aplicação ao processo psíquico do conhecimento
(Plt. 278c3-d6): o Estrangeiro e o jovem Sócrates chegam, enfim, a uma compreensão
satisfatória (ἱκανῶς συνειλήφαμεν) de paradigma. Ocorre um paradigma quando se faz
um juízo correto (δοξαζόμενον ὀρθῶς) sobre uma mesma coisa (ὂν ταὐτὸν), quando
encontrada em outro lugar (ἐν ἑτέρῳ διεσπασμένῳ), de forma que é possível fazer uma
comparação de seus valores em ambas as posições, disso resultando uma única e correta
opinião sobre ela (μίαν ἀλητῆ δόξαν). Tal é o que se passa com as letras: seu correto
aprendizado implica ter o juízo correto de seu valor em diferentes contextos silábicos, o
que se obtém pela comparação que se pode fazer de uma mesma letra em diferentes
sílabas, tendo em vista apreender o seu valor. A psykhé, pela sua natureza (φύσει),
experimenta o mesmo acerca dos elementos de todas as coisas (περὶ τὰ τῶν πάντων
στοιχεῖα): em certos casos, é bastante segura da verdade (ὑπ’ἀληθείας…συνίσταται), em
outros, é errante acerca de todas as coisas (ἅπαντα ἐν ἑτέροις αὖ φέρεται); opina
corretamente em algumas combinações (πῃ τῶν συγκράσεων ὀρθῶς δοξάζει), ao passo
que se torna novamente ignorante (πάλιν ἀγνοεῖ), quando essas mesmas coisas são
transpostas para sílabas maiores e difíceis (εἰς τὰς τῶν πραγμάτων μακρὰς καὶ μὴ ῥᾳδίους
507
Concordamos com Dixsaut (2001, p. 233), que, a propósito do Político, “la science qu’est la dialectique est
le fondement de la science prescriptive propre au politique : aucun homme dans son bon sens ne pourra
donc croire que la définition du politique mérite d’être recherchée pour elle-même, puisque la
connaissance de cette définition ne fera jamais de persone un bon politique. Ce qui en fera un véritable
politique, c’est, comme le dit la République, sa capacité d’aller jusqu’au terme de la dialectique, de voir le
Bien et, l’ayant vu, d’appliquer la connaissance qu’il en a acquise”.
293
συλλαβὰς).
Os argumentos sintetizados acima preparam o campo para o paradigma que será
apresentado a seguir, a saber, o paradigma da tecedura (278e-283a). É digno de nota que
essa longa passagem, que inclui o interlúdio mítico (269c-274e) e a digressão
metodológica subsequente (277a-287b), representa um núcleo do diálogo de importância
crucial para a compreensão da dialética, dos seus limites e das suas formas de realização,
não representando, o que pode parecer ser, uma “mudança de curso” na investigação que
tem por finalidade buscar uma definição do político508. A reflexão sobre a necessidade de
paradigmas para a investigação filosófica constitui uma reflexão sobre o próprio método
de pesquisa, ao mesmo tempo que indica a necessidade da substituição de um primeiro
paradigma, o da técnica do pastoreio (257a-277a), por um segundo, o da técnica da
tecedura (278e-311c)509. Examinemos alguns dos argumentos desenvolvidos a essa altura
do diálogo.
O primeiro argumento (277a3-277c6) põe em evidência a diferença de perspectiva
entre o Estrangeiro de Eleia e o jovem Sócrates. Como bem percebeu Miller (1980, p. 54),
enquanto o jovem, de modo apressado e e acrítico510, crê concluída a pesquisa, o
Estrangeiro de Eleia faz notar que o estágio atual da investigação se apresentava como
uma obra ainda por se concluir – uma escultura grosseiramente executada ou o esboço
de uma pintura ainda por ser acabada. A associação entre a pesquisa e as artes enfatiza,
a nosso ver, o caráter exploratório e gradual da dialética, opondo-a, talvez, a outra forma
508
O diálogo articula a busca pela definição do político em torno de dois paradigmas principais: o do pastor
(257a-277a) e o do tecelão (278e-311c). Compreendemos que a alternância entre esses dois paradigmas é
precisamente suscitada pelo interlúdio crítico que torna consciente a necessidade de paradigmas para a
pesquisa no contexto da passagem que estamos examinando (277a-278e). Como notou Sanday (2017, p. 155):
“The success of the paradigm of weaving is due in large part to the analogy between the structure of weaving
and the structure of statesmanship, especially the use of helping arts. But the success of the new paradigm
is also due to our being explicit that we are adopting a paradigm. Awareness of our dependence on
paradigms helps us to acknowledge and incorporate the distance at which we stand from our intuitions
about statesmanship”.
509
O que leva à necessidade de mudança de paradigma? Como observou S. Kato (1995, p. 163), na sua função
de auxiliar da pesquisa, é preciso que o paradigma se mostre apropriado. E sua propriedade viria 1. de sua
capacidade de revelar semelhança entre si e o objeto de pesquisa; e 2. do fato de sua escolha ser motivada
por algum tipo de compreensão intuitiva antecipada do objeto de pesquisa. Quanto a essa prévia e intuitiva
compreensão do objeto, alguns comentadores, como Dixsaut (2001, p. 247), associam-na à anámnesis. A
extensão entre uma possível relação entre a anámnesis e o método de divisão intermediado por paradigmas,
que poderia encontrar precisamente no Fedro o seu elo teórico. No entanto, considerando-se que a escolha
do paradigma não é indiferente, então talvez faria sentido pensar que o segundo paradigma do Político, o do
tecelão, seria mais apropriado que o primeiro, o do pastor no Político, por corresponder mais plenamente às
exigências do próprio objeto?
510
Cf. Miller (1980, p. 54) chama atenção para esse traço da personalidade do Jovem Sócrates, o que pode ser
visto como uma crítica indireta aos jovens da Academia: “these points suggest that young Socrates’
enthusiastic endorsement of the initial definition is Plato’s miming of an uncritical acceptance of that
impression by young Academicians; or what is nearly the same, it is Plato’s anticipatory miming of the
likelihood of such na uncritical acceptance in the future”.
294
de conhecimento imediata e repentina, que se realizaria, em tese, sem a passagem por
etapas intermediárias antes de sua efetiva resolução. E por que considerar a pesquisa
como inacabada? Pensamos, como Dixsaut (2001, p. 241), que o material que o mito
oferece e que leva os dialogantes a estabelecer novas distinções, como, por exemplo, entre
o tirano e o rei, mostra-se insuficiente para a definição do político. Com efeito, o mito
apresentara a questão no nível dos deuses, nada contendo que se pudesse aplicar,
simplesmente, a um rei humano, quanto menos a um político511. Isso significa dizer ainda,
como ficaria claro mais à frente (Plt. 286d-e), que o mais importante não é encontrar a
solução do problema, mas saber examiná-lo corretamente. Assim, a resposta definitiva
parece ocupar uma posição secundária em relação à adequada aplicação do método.
Além disso, o Estrangeiro teria também como intenção alertar o jovem Sócrates
de sua excessiva confiança nos recursos imagéticos: é verdade que eles podem oferecer
um quadro esboçado da realidade investigada, mas não vão além do mero esboço. Os
desenhos ou demais artefatos manuais (277c3-4: γραφῆς δὲ καὶ συμπάσης χειρουργίας)
são menos adequados que a palavras e os discursos (277c4: λέξει καὶ λόγῳ). A
contraposição entre, por um lado, uma pesquisa pautada em “palavras e discurso” e, por
outro, uma pesquisa que se serve de “desenhos e artefatos manuais” parece implicar,
como argumenta Sanday (2017, p. 156), um convite do Estrangeiro de Eleia para que se
movam do domínio do primeiro para o do segundo segmento da linha dividida (i.e. da
imagem para a diánoia). E, nesse caso, a postulação na sequência da necessidade do
paradigma implicaria, ao mesmo tempo, duas ideias associadas, que formam uma
antítese:
1. um retorno ao lógos, que deve acompanhar, como condição sine qua non, o
método de divisão (não se deve, portanto, admitir divisões apressadamente realizadas,
baseadas na admissão acrítica de imagens, como na passagem anterior, em que o jovem
não foi a capaz de distinguir homens e deuses, tomando por base apenas a semelhança
com a imagem do “pastor”, que foi então admitida sem crítica);
2. o reconhecimento de que a pesquisa depende de imagens, as quais constituem
paradigmas em seu percurso. O paradigma é elaborado no plano imagético – o pastoreio,
a tecelagem, o alfabeto etc. – que promove um deslocamento para outro contexto, com
vistas a investigar um objeto com o qual mantém alguma relação de familiaridade (e com
o qual, certamente, também guarda diferenças).
511
Dixsaut (2001, p. 241): “il est à remarquer que rien, dans le mythe, ne s’applique à un roi humain, encore
moins à un politique. (…) L’histoire n’a donc pas encore trouvé sa conclusion (277b) : la seule image du Roi
qui s’y trouve est celle d’un dieu”.
295
Não implicaria tal procedimento uma velada censura ao jovem que se revelara
incapaz de seguir a discussão (ἕπεσθαι), por ter-se contentado apenas com o conteúdo
imagético do paradigma apresentado, sem compreender justamente sua função
enquanto paradigma e, portanto, sem ir além dos contornos sem vivacidade (ἐνάργειαν)
da figura apenas esboçada? O passo que se segue parece oferecer uma resposta positiva
para essa pergunta, pois o Estrangeiro esclarece o próprio paradigma, evidenciando o seu
papel metodológico na formação do jovem. O jovem não teria ainda compreendido o
“jogo” (παιδιά) no qual já se encontrava envolvido, a bem da verdade, bem antes da
narrativa mítica. A conclusão disso é que o Estrangeiro, diante de um interlocutor
inexperiente, precisa pôr às claras a importância (e os limites) do paradigma para a
pesquisa, o que ele fará por intermédio de um segundo paradigma: o do aprendizado das
letras (277d1-278d1).
O Estrangeiro afirma ser difícil mostrar coisas maiores (277d2: ἐνδείκνυσθαί τι τῶν
μειζόνων), sem recorrer a paradigmas (277d1: μὴ παραδείγμασι χρώμενον). Sem essa
mediação, os dialogantes pareceriam saber, como quando se sabe de algo vislumbrado
em sonho (277d3: οἷον ὄναρ εἰδὼς) e, ao acordarem, são tomados como ignorantes (277d3-
4: ὕπαρ ἀγνοεῖν). Não são poucas as controvérsias entre os comentadores quanto à
contraposição que se estabelece nesse passo entre o sentido deste “estar sonhando” e do
“estar acordado”. Haveria ou não aqui uma alusão à ideia da reminiscência?512 Entretanto,
independentemente da interpretação que se adote, o que nos parece aqui interessante de
se sublinhar é o caráter necessário de que se reveste o paradigma quanto se trata de lidar
com “objetos maiores” (τι τῶν μειζόνων), ou seja, se o propósito é a investigação das
512
V. Goldschmidt (1985, p. 55), interpreta a passagem “do sonho” (οἷον ὄναρ) para a “vigília” (ὕπαρ) como
análoga ao processo de reminiscência descrito no Fédon. J. B. Skemp, na décima edição de sua tradução
comentada do Político (1987) acrescenta nota afirmando arrepender-se de ter, na sua primeira edição (1952,
p. 242), estabelecido uma relação entre o paradigma e a anámnesis. S. Kato (1995, p. 166) se limita a admitir
que a passagem do sonho à vigília tenha relação com a anámnesis, se se tratar da reminiscência em seu
sentido mais prosaico, como no Mênon, e não no seu sentido filosoficamente forte como é o caso no Fédon e
no Fedro. Comparando a passagem do sonho descrita no Mênon (85c6-d1), que antecipa a proposição da
hipótese da reminiscência, com a passagem do Político discutida aqui, M. Dixsaut (2001, p. 249-250),
reconhece que embora haja um parentesco “inegável” entre o Mênon e o Político, no que concerne a essa
questão, há diferenças importantes (idem, ib, p. 250):
Mênon:
Opiniões verdadeiras sobre Opiniões verdadeiras Questionamento frequente e Ciência
as coisas que não se sabem expressas sobre as coisas que múltiplo
não se sabe como em um sonho
Político:
Saber sobre todas as coisas Ignorância sobre todas as Uso de um paradigma Passagem do sonho à vigília,
como em um sonho coisas = quasi-vigília (ainda em opinião correta
sonho?)
Para Dixsaut (2001, p. 251), o “conhecimento sobre as coisas como em um sonho” se opõe ao “conhecimento
verdadeiro”, trata-se de um saber ilusório, assim, a metáfora no Político consistiria na passagem da
ignorância para a opinião correta (por intermédio de um paradigma).
296
questões filosóficas, que certamente não são simples ou redutíveis a esquemas ou
esboços, impõe-se o recurso a essas formas de mediação. Se tais “coisas maiores”
remetem às Formas513, ou apenas talvez a uma versão menos ontológica e mais lógica dos
objetos da pesquisa, tal como defende S. Kato (1995, p. 164)514, isso não parece alterar o fato
de que o paradigma se coloca como um expediente útil para a investigação, um recurso
menor tomado como substituto de um objeto maior, com vistas à compreensão desse
último. O caráter dêitico do paradigma – ínsito não somente na raiz da própria palavra,
conforme evidencia a epígrafe deste capítulo, mas também o verbo empregado acima
(ἐνδείκνυσθαί) – acentua o seu papel de coadjuvante na investigação, i.e. sua dimensão,
por assim dizer, metodológica, uma vez que, indicando, serve a orientar a vista em
direção do objeto pesquisado que, ipso facto, só pode estar além do próprio paradigma. O
paradigma do tecelão, por exemplo, evoca uma imagem que, no âmbito do diálogo,
corresponde a um uso de um objeto menor para a compreensão de um objeto maior, de
maior dificuldade e valor filosófico – o político515.
A admissão da necessidade de um paradigma – e ainda mais a exigência dele –
parece rebaixar a expectativa diante da potência da dialética: porque deuses e homens
são efetivamente inigualáveis – como ademais demonstrara o interlúdio mítico do
diálogo, ao constatar a inadequação de equiparar o político aos pastores divinos, função
privativa das divindades na era de Kronos – tampouco se pode esperar que o filósofo seja
capaz de alcançar uma visão direta dos objetos, sem recurso a qualquer tipo de mediação,
uma visão, diríamos, divina. Além disso, como já observara Sanday (2017, p. 154), ao
diferenciar a função do político daquela atribuída aos pastores divinos da era de Kronos,
513
Dixsaut (2001, p. 269 et seq.) refuta a tese de Owen (1973), segundo a qual, no Político, Platão não manteria
a distinção canônica entre objetos sensíveis e inteligíveis (Formas). Para tanto, Dixsaut aponta, em primeiro
lugar, que esse argumento depende da cronologia que se adote para a obra de Platão – o Timeu precedendo
o Político e o Parmênides –, em segundo lugar, porque gera contradições quando contraposto com o Sofista,
por exemplo, e pressupõe interpretações de passagens do Político não inteiramente incontestáveis.
514
Cf. “Ontology should be preceded by inquiry in semantics. Every form which appears at each junction of
the system of division determines the ‘being’ of each object in its essence. It is not the transcendent Form of
the middle dialogues. But on the other hand, it is not a mere subjective concept, but an objective entity,
which we grasp through reasoning”.
515
A respeito do paradigma do pescador à linha e anzol (ἀσπαλιευτής) do Sofista (216a1-236d4), Kato (1995, p.
162) defende um uso análogo ao que vemos no Político, i.e. “the inquiry proceeds with the help of a preceding
process of analysing and defining the easier thing, i.e. the paradigm”. Contudo, Dixsaut (2001, p. 246), ao
examinar a mesma passagem, chama atenção para uma diferença, que não deve ser negligenciada, entre o
uso do paradigma nesses dois diálogos: “Dans le Sophiste, le paradigme du pêcheur à la ligne servait
simplement d’exemple de la méthode de division em géneral et d’exercice préalable sur un « petit sujet ». Il
ne jouait aucun autre rôle dans la recherche. Dans le Politique il en va tout autrement puisque le paradigme
choisi – le tissage – a à la fois une fonction méthodologique et un usage métaphorique. Entre le politique et
le tisserand, il n’y a pas seulement analogie, mais ressemblance : le politique est à sa manière un tisserand,
le tissage rencontre le même problème (τὴν αὐτὴν […] πραγματείαν, 279a7-8) que l’action politique, au
point que l’Étranger peut parler du «royal tissage» (306a1, 310e8) et filler tout au long la métaphore à la fin
du dialogue (à partir de 308d)”.
297
o mito mostrou que não resta aos mortais senão a função de “cuidar” (θεραπευεῖν), o que,
por sua vez, descreve apenas os contornos da essência da atividade política. Tal limite
exige do filósofo uma tarefa interpretativa não isenta de riscos (e, por isso, sujeita a erros).
A filosofia admite, portanto, “graus de fragilidade e risco que não podem ser evitados”,
como bem mostra Sanday (2017, p. 155), se “existe para os seres humanos a possibilidade
de uma compreensão inteligente das circunstâncias práticas e uma participação na
percepção divina”, isso não pode se dar senão indiretamente516. O paradigma, portanto,
enquanto radicado no universo das imagens, não deixa de comportar, em si mesmo, um
risco; mas, considerando a natureza da pesquisa e do filósofo – um mortal, sob a égide de
Zeus –, trata-se de um risco incontornável. O filósofo é, assim, aquele que se engaja em
um processo essencialmente marcado por tentativas, por aproximações, e, por isso, não
de todo imune à fragilidade inerente a essa empresa, que supõe a mediação de imagens
tomadas como paradigmas.
Como paradigmas desse processo, as letras (γράμματα) são significativas por
várias razões. Em primeiro lugar, porque remetem à aquisição de uma habilidade
infantil, o que poderia ser, conforme observou Miller (1980, p. 59), um artifício que
espelha nessa imagem a atitude do jovem Sócrates no curso da investigação, que
continua se comportando de maneira ingênua, tal qual uma criança517. Em segundo lugar,
porque descreve um processo que tem por finalidade empreender um esforço de
identificação, distinção e reunião – análogo ao processo dialético – o que remete à força
do paradigma em seu poder de “mostrar” (ἐνδείκνυσθαι) algo familiar em um contexto
diverso. É por essa razão que a força do paradigma é indicadora tanto de homologias
quanto de diferenças, conforme já notara M. L. Gill (2015). Se, conforme aponta Dixsaut
(2001, p. 233), a ciência e os modos de ação do político descrevem a dialética e suas formas
de operação (de divisão e reunião), o paradigma gramatical parece antecipar, de certo
modo, o paradigma do tecelão, a ser apresentado na sequência, que é modelo da ação do
516
Cf. “The work of brigding the gap between principle and expression admit degrees of fragility and risk
that cannot be bypassed. There is for human beings the possibility of an intelligent grasp of practical
circumstances and a share in divine insight, but not directly”.
517
Cf. Miller (1980, p. 59) comenta, “Does young Socrates recognize himself in this mirroring image? His
response is characteristic: eager to agree with the stranger, he repeats his interrogative phrase, transforming
it into an affirmative. ‘It would not be all surprising’, he says (278d). The Platonic irony here is sharp.
Wouldn’t it be more encouraging if young Socrates were surprised, even slightly nonplussed, by the
comparison? The repetition of another words is an odd way (to say the least) to express self-recognition.
The sense in which deference to the teacher is actually an ‘obstacle’ to philosophy appears here as a
poignant, if fleeting, way, and we cannot help but wonder at the implications of these exchange for Plato’s
relations with his students”.
298
político518. Em outras palavras, as habilidades “syn-críticas” e “dia-críticas” que
caracterizam as operações do tecelão (282b7) – como paradigma do político/dialético –
são também indissociáveis daquelas envolvidas na percepção, distinção e combinação
das letras em seus contextos silábicos.
O terceiro argumento, apresentado (Plt. 278c3-d6), conclui a passagem como um
corolário onde se oferece, enfim, uma explicação e uma definição do paradigma. Tal
como o aprendizado da leitura, o aprendizado por paradigmas consiste na
reinterpretação de um elemento conhecido, quando este é inserido em um contexto
desconhecido, disso resultando um julgamento correto (278c5: δοξαζόμενον ὀρθῶς).
Assim, a psykhé pode lançar mão de um paradigma como de um expediente para adquirir
uma opinião correta (ὀρθῶς δοξάζε) sobre aquilo que, de outro modo, ela poderia vir a se
encontrar à deriva (278d3: φέρεται). Para Dixsaut (2001, p. 253), a definição de paradigma
se situaria, desse modo, no horizonte da dóxa519, o que implica que seu uso, embora
permita ao filósofo identificar corretamente um elemento e mesmo produzir sobre ele
um julgamento correto, evitando assim que se chegue a uma opinião falsa, permanece
sendo um expediente que, em todo caso útil, se revela todavia insuficiente520. E a sua
insuficiência traduz-se exatamente em quê? Em primeiro lugar, no fato de que, quer na
sua dimensão didática, quer na sua dimensão heurística, o paradigma pressupõe sempre
algum tipo de direcionamento prévio. A sua escolha não pode ser aleatória. Quem
aprende a ler, por exemplo, conta sempre com a orientação do grammatikós, que lhe
indica em quais sílabas se deve inserir as letras e quais sílabas, juntas, permitem a
combinação para formar as palavras (e quais não)521. Em segundo lugar, porque, como o
518
Cf. Dixsaut (2001, p. 233): “Les opérations politiques, analogues à celles du tisserand, sont des opérations
dialectiques, puisqu’elles consistent à rassembler et séparer correctement : ce sont des opérations
« suncritiques » et « diacritiques ». L’activité proprement politique consiste à « tisser » l’unité de la cité, c’est-
à-dire l’unité politique de la vertu. Le problème qu’il lui faut affronter est donc un problème essentiellement
dialectique : unifier une multiplicité dont il a d’abord commencé par discerner les éléments constituants”.
519
Que no Político o conhecimento produzido pelo paradigma esteja talvez limitado ao domínio da “opinião
correta”, provam-no as expressões com que ele é referido na passagem: ὀρθῶς ἐδόξαζον (278a9); τὰ
δοξαζόμενα ἀληθῶς (278b3); δοξαζόμενον ὀρθῶς (278c5); μίαν ἀληθῆ δόξαν (278c6); ὀρθῶς δοξάζει (278d4).
520
Cf. Dixsaut (2001, p. 253): “Cependant, être capable d’épeler correctement les éléments constituant une
réalité, et éviter ainsi l’opinion fausse, est un moment nécessaire mais non suffisant. Le paradigme est
nécessaire quand on faire à des syllabes « de grande étendue », « longues », c’est-à-dire composées
d’éléments multiples, mais aussi à des syllabes ayant une connotation de « grandeur », de majesté, qui risque
de faire obstacle à l’humble entreprise de décomposition des éléments”.
521
Cf. Dixsaut (ib., p. 254): “Si on considère le paradigme du paradigme, faire acquérir des opinions droites à
un élève demande qu’um maître de grammaire sache quelle syllabe rapprocher d’une autre : il devra
évidemment connaître l’identité de l’élement qu’il cherche à faire reconnaître par l’élève. Le paradigme ne
sert donc pas à découvrir cette identité : quelqu’un doit déjà la connaître pour donner à ce rapprochement
avec une petite syllabe as fonction paradigmatique. Tout usage d’un paradigme suppose ce savoir préalable.
Est-ce à dire qu’il n’a qu’une utilité didactique ? Une fois le paradigme choisi, et ce choix suppose au moins
le savoir qu’il y a quelque chose de commun entre la petite e la grande réalité, il pourra également servir à
299
próprio diálogo Político demonstra, não se trata de propor um novo método em
substituição a um antigo – o paradigma substituindo o método das divisões, por exemplo
–, mas trata-se de sublinhar a necessidade de que o dialético tenha o domínio de
diferentes formas de se abordar um objeto filosófico: o perguntar e responder
(διαλέγεσθαι), o uso do mito (μυθολογεῖν), as operações da divisão e reunião (διαίρεσις
καὶ συναγωγή) e, enfim, o uso de paradigmas (παραδείγματα). Desse modo, o paradigma,
como expediente heurístico e metodológico, contribui, no Político, para figurar de modo
bastante complexo o próprio dialético.
Ao termo deste percurso, julgamos, em suma, ser possível assumir que, no que diz
respeito à noção de paradigma, o seguinte: se, na República, pudemos notar a coexistência
de dois sentidos principais, um ontologicamente forte, em referência às próprias Formas,
e um mais metodológico, esta segunda é a conotação predominante no Político, onde as
letras estão também textualmente tomadas como o “paradigma do paradigma”. Resta,
portanto, examinar como essa noção se apresenta no Fedro, e de que modo se articula
com o recurso às letras: haveria no Fedro uma noção particular de paradigma, tal como
encontramos no República e no Político? A reflexão sobre as letras e a escrita, para além de
sua ambiguidade decorrente de sua natureza imagética (cf. vimos no capítulo IV),
poderia, em alguma medida, também ser aproximada da noção de paradigma? Se sim, de
que modo?
Essas questões estarão no centro de nossa atenção a seguir, no capítulo em que
retornaremos ao Fedro para discutir particularmente a segunda parte de sua crítica às
letras nele apresentada (Phdr. 275d4-278b6), dando sequência à discussão que
suspendemos no capítulo IV.
découvrir avec précision, et plus facilement, les élements de la grande réalité. Il a donc aussi une fonction
heuristique”.
300
VI.
A GRAMÁTICA DA DIALÉTICA
522
Cf. παῖς, m. : le mot répond au français « enfant » et se trouve concurrencé par τέκνον, lequel
étymologiquement marque mieux la filiation et se trouve chez lez trag., surtout à propos de la mère ; παῖς
exprime l’enfance et la jeunesse et le mot s’emploie de façon assez large (…) notamment en attique παῖς
dans un emploi tout différent se dit du serviteur ou de l’esclave. Au premier terme de composé :
παιδεραστής « péderaste », παιδαγωγός « qui conduit les enfants » etc. παιδιά : « jeu d’enfant, jeu » en
général, ce qui n’est qu’un jeu, une plaisanterie, une amusement (opposé à σπουδή), une manière de passer
le temps.
301
procedimentos analíticos da divisão e da reunião (265d1-266b2), procedimentos esses que
Sócrates anuncia ser a essência da dialética (266b4-c1).
Em linhas gerais, esses três passos argumentativos ilustram o que apontamos na
primeira parte da tese: os discursos de Sócrates podem ser compreendidos como uma
performance da dialética, na medida em que, ao serem apresentados em duas versões,
materializam uma divisão do objeto (e, com ela, produz distinção), ao mesmo tempo que,
mediante um esforço de reflexão e crítica, ensejam também uma reunião, possibilitando
assim aos interlocutores uma melhor compreensão da complexidade do problema
pesquisado.
Além disso, essa passagem representa uma nova etapa na investigação sobre o
lógos no Fedro, e, particularmente, um passo adiante para responder à questão posta em
258d7: “qual é a forma bela e não bela de escrever? (Τίς οὖν ὁ τρόπος τοῦ καλῶς τε καὶ μὴ
γράφειν;). Assim, a investigação crítica sobre a escrita, que tem seu ponto crucial no mito
de Theuth (274c5-275b2) e nos desdobramentos analíticos que o sucedem na parte final
do diálogo, não somente parece estar antecipada por essa discussão mais geral em torno
do lógos, presente já na primeira parte do diálogo, como também mantém com ela uma
consistente e orgânica interrelação. Leiamos a passagem:
523
Cf. Tradução de Reis (2016, com adaptações):
{ΣΩ.} Βούλει οὖν ἐν τῷ Λυσίου λόγῳ ὃν φέρεις, καὶ ἐν οἷς ἡμεῖς εἴπομεν ἰδεῖν τι ὧν φαμεν ἀτέχνων
τε καὶ ἐντέχνων εἶναι;
{ΦΑΙ.} Πάντων γέ που μάλιστα, ὡς νῦν γε ψιλῶς πως λέγομεν, οὐκ ἔχοντες ἱκανὰ παραδείγματα.
{ΣΩ.} Καὶ μὴν κατὰ τύχην γέ τινα, ὡς ἔοικεν, ἐρρηθήτην τὼ λόγω ἔχοντέ τι παράδειγμα, ὡς ἂν ὁ
εἰδὼς τὸ ἀληθὲς προσπαίζων ἐν λόγοις παράγοι τοὺς ἀκούοντας. καὶ ἔγωγε, ὦ Φαῖδρε, αἰτιῶμαι τοὺς
ἐντοπίους θεούς· ἴσως δὲ καὶ οἱ τῶν
Μουσῶν προφῆται οἱ ὑπὲρ κεφαλῆς ᾠδοὶ ἐπιπεπνευκότες ἂν ἡμῖν εἶεν τοῦτο τὸ γέρας· οὐ γάρ που
ἔγωγε τέχνης τινὸς τοῦ λέγειν μέτοχος.
302
parecem trazer à tona os principais signos da discussão posterior sobre a escrita. Nota-se,
em primeiro lugar, que Sócrates reforça a dimensão psicagógica que possui um discurso
produzido “com arte”: aquele que é capaz de “conduzir os ouvintes” (262d2: παράγοι τοὺς
ἀκούοντας). Parece-nos significativo que Platão empregue na passagem o verbo parágoi,
que abarca sentidos mais específicos que o de simplesmente “conduzir”, admitindo as
acepções de “desviar”, “desvirtuar”, assim como de “mudar o trajeto”, “guiar”. A
polissemia contida no verbo parece-nos condigna desse ambíguo estatuto do discurso e
da escrita. A passagem mostra que, no que diz respeito à arte, o efeito do lógos não é senão
potencial – daí o emprego do modo optativo do verbo – e seu modo de afetar os que o
ouvem tem a mesma ambiguidade do phármakon: o discurso “distrai, desvirtua e desvia o
foco”, mas também pode “mudar o trajeto, influenciar, guiar e reconduzir” quem o ouve
em uma dada direção.
No caso, como o que está em jogo não é a determinação de qualquer modo de
expressão, mas do “falar e escrever de modo belo” (259e2: καλῶς ἔχει λέγειν τε καὶ
γράφειν), Sócrates parece reforçar aqui a tese de que a verdadeira psicagogia, aquela
capaz de conduzir as almas (não desvirtuá-las ou distraí-las) somente se realiza mediante
o conhecimento da verdade (262d1: εἰδὼς τὸ ἀληθὲς). Acrescenta ainda que tal
procedimento se opera “brincando com as palavras” (262d2: προσπαίζων ἐν λόγοις). Ora,
o que significa o brincar com palavras (ou discursos), conhecendo a verdade? A
proposição não é problematizada imediatamente pelos dialogantes nessa passagem, mas
é certo que, mais à frente, na segunda parte da crítica à escrita (275d4-278b6), a oposição
entre uma certa “brincadeira” ou “jogo” (παιδιά) e “algo sério” (σπουδὴ) centralizará a
discussão sobre escrita e dialética, conforme veremos na sequência.
Em segundo lugar, a menção que Sócrates faz às divindades (262d3: τοὺς…θεούς)
parece prenunciar Thamos e Theuth, divindades egípcias que figuram, conforme vimos,
no mito narrado sobre a criação da escrita (274c5-275b2). Ainda que a ligeira observação
de Sócrates possa não estar em todo caso desprovida de alguma ironia nessa passagem,
como ademais notou Hackforth (1997, p. 130), a atribuição de uma “arte do falar” (262d5:
τέχνης τοῦ λέγειν) às divindades parece sublinhar certa distinção entre a dimensão das
divindades (como símbolos da verdade e do conhecimento) e a precária condição
humana (essencialmente desprovida de saber, entretanto, em certos casos, capaz de
reconhecer sua ignorância e seu desejo de conhecer). A distinção entre a condição dos
deuses e a dos mortais parece percorrer todo o diálogo, estando particularmente
imbricada no modo como a preliminar “condenação” à escrita se afigura no mito de
Theuth, como vimos no capítulo IV.
303
Finalmente, na mesma passagem, Sócrates reconhece também a necessidade de
um parádeigma. O termo grego ocorre em apenas três ocasiões no Fedro (262c9, 262d1 e
264e5), duas delas na passagem citada. Fedro observa que a discussão anterior (259e1-
262c4), na qual se discutira precisamente sobre a retórica dos oradores e sofistas, seu
estatuto artístico e seus pretensos efeitos psicagógicos524, revelara-se talvez
excessivamente “direta” (ψιλῶς). O que esse advérbio parece implicar, senão que o
assunto tenha sido previamente apresentado, efetivamente, sem intermediações, sem
acompanhamentos que pudessem colaborar para a sua plena compreensão?
Embora a maior parte dos tradutores a que tivemos acesso opte por traduzir o
termo parádeigma nessas duas ocorrências (262c9, 262d1) simplesmente como
“exemplo”525, parece-nos contudo que tal opção tradutória omite a relação entre a
exigência de um paradigma (um modelo explicativo intermediário, em uma de suas
acepções, conforme discutimos no último capítulo) e o diagnóstico de que a discussão
anterior tenha se realizado de forma excessivamente “direta”. Ora, Sócrates e Fedro
parecem se ressentir precisamente da falta de um paradigma, i.e. de um modelo de
explicação, de um expediente metodológico auxiliar para a compreensão da distinção
capital entre o lógos retórico (representado pelo discurso de Lísias) e o lógos dialético
(representado pelos dois discursos de Sócrates), um recurso metodológico crucial para a
própria dialética, não se tratando somente de uma forma de exemplificação. Talvez não
tenhamos nesse diálogo, tal como vimos no Político, a proposição explícita de um
paradigma para a compreensão da dialética, mas não seria também possível dizer que a
existência desse recurso está de certo modo prevista, ainda que implícita ou velada, na
malha dialógica do Fedro? Ademais, é o próprio Sócrates quem parece indicar em que
consistiria tal paradigma: a contraposição dos dois blocos discursivos, que é capaz de
“conduzir os ouvintes” (αράγοι τοὺς ἀκούοντας), operação que representa uma espécie
de “brincar com os discursos” (προσπαίζων ἐν λόγοις).
524
Conforme vimos no capítulo II, a persuasão não existiria enquanto produto de uma técnica neutra, mas
estaria imbricada a uma forma de condução psíquica, isto é, a uma psykhagogía: o lógos verdadeiramente
persuasivo é aquele que conduz quem o ouve a agir de determinado modo (comprando um asno, por ex.,
mas também, diríamos, celebrando um tratado de paz, se filiando a um partido político, iniciando uma nova
atividade física, aceitando uma proposta de casamento etc). Em suma, o persuadir engendra consequências
que dizem respeito não somente ao indivíduo, mas também à cidade como um todo, visto que leva a
determinada ação; exemplifica, portanto, a verdadeira “condução de almas” (261a8: ψυχαγωγία), a qual,
para Platão, somente se alcança mediante o conhecimento da verdade e que, entretanto, falta nos discursos
dos oradores e sofistas, no de Lísias, em particular.
525
Cf. Traduções em língua portuguesa de M. C. G. Reis, 2016; C. A. Nunes, 2011; J. C. Souza, 2016; em língua
francesa, de L. Robin, 1933; É. Chambry, 1992 e L. Brisson, 2004; em língua italiana, R. Velardi, 2006 e Pucci
& Centrone, 2014. R. Hackforth (1997), traduz por “ilustração” em inglês e F. De Luise (2002), em italiano,
opta por “paradigma” e “modelo”.
304
Ao longo deste capítulo, pretendemos refletir sobre essa questão. Consideraremos
com maior atenção os desdobramentos dialéticos que se seguem ao mito de Theuth, a
passagem entre 275d4 e 278b6, a fim de mostrar como a reflexão sobre as letras, que
emerge no final do diálogo, parece configurar o paradigma que Sócrates oferece a Fedro,
no intuito de conduzi-lo à compreensão da distinção entre o lógos retórico e o lógos
dialético. Para isso, dividiremos o exame passagem em quatro seções: na primeira,
analisaremos o símile entre escrita e pintura, para refletir sobre a relação entre
mobilidade e imobilidade da escrita, considerando o confronto das posições de Platão e
Isócrates (275d4-276a9); na segunda, discutiremos a relação entre escrita e jogo (παιδιά), a
partir das imagens do “Jardim de Adônis” e do “Jardim das Letras” (276b1-277b3); nas duas
partes finais, retornaremos à discussão sobre as letras e o movimento de dividir e reunir
que caracteriza a dialética, tendo em vista uma melhor compreensão da distinção
lógos/conhecimento (277b4-278b6).
A escrita tem algo de “terrível” (δεινόν). O vocábulo grego, que pode admitir o
sentido negativo consignado majoritariamente na palavra em português – algo “terrível,
perigoso, causa de horror e medo” –, registra também, como anota o LSJ, os sentidos de
“poderoso, excepcionalmente forte” e “veemente, agudo, inteligente, habilidoso”. A
escrita (γραφή) comporta, portanto, a ambiguidade ínsita ao termo com que é predicada,
ambiguidade também anteriormente expressa na metáfora do phármakon, conforme
analisamos no capítulo IV. Assim como naquela passagem, parece-nos que também não
haveria aqui indícios para que nos inclinássemos decididamente em favor de apenas um
dos sentidos associados à palavra grega527. Observar a fala de Sócrates por esse ângulo
526
Cf. {ΣΩ.} Δεινὸν γάρ που, ὦ Φαῖδρε, τοῦτ' ἔχει γραφή, καὶ ὡς ἀληθῶς ὅμοιον ζωγραφίᾳ. καὶ γὰρ τὰ
ἐκείνης ἔκγονα ἕστηκε μὲν ὡς ζῶντα, ἐὰν δ' ἀνέρῃ τι, σεμνῶς πάνυ σιγᾷ. ταὐτὸν δὲ καὶ οἱ λόγοι· δόξαις μὲν
ἂν ὥς τι φρονοῦντας αὐτοὺς λέγειν, ἐὰν δέ τι ἔρῃ τῶν λεγομένων βουλόμενος μαθεῖν, ἕν τι σημαίνει μόνον
ταὐτὸν ἀεί.
527
É interessante observar que as diferentes traduções para as línguas modernas mostram soluções diversas
para o termo δεινόν, uma demonstração de que não se trata de palavra transparente na língua original. Em
305
permite-nos, logo de partida, matizar o tom negativo na avaliação da escrita que parece
transparecer na sua primeira consideração. Divergindo talvez do que faz dizer o seu
mestre, Platão teria considerado a escrita um desafio inteligente e arriscado? Se assim o
for, teria percebido que ela comporta os riscos de uma charada a ser decifrada. Assim
sendo, sua potencial – mas também arriscada – contribuição à filosofia precisaria,
portanto, ser cautelosa e inteligentemente avaliada e não rechaçada peremptoriamente.
A aproximação entre a escrita (γραφή) e pintura (ζωγραφίᾳ), para além da
explícita relação evidenciada pelo radical cognato graph-, parentesco etimológico que
provavelmente não passaria despercebido a olhos atentos à época de Platão528, é também
aqui evidenciada pelo efeito que uma e outra logravam produzir: o de aparentarem seres
vivos (275d6: ὡς ζῶντα), embora, quando algo se lhes interrogasse (δ’ ἀνέρῃ τι),
silenciarem-se solenemente (275d6: σεμνῶς πάνυ σιγᾷ). O que significa o “silêncio
solene” das palavras? E que palavras silenciam ao serem interrogadas?
Uma vigorosa tradição crítica enxergou nessa proposição, conforme assinalamos
no capítulo III, uma explícita censura à escrita como meio de expressão e divulgação das
ideias filosóficas. Na esteira dos estudiosos ligados a Tübingen e Milão, a passagem seria
uma evidência da inadequação da escrita, por oposição à vivacidade da oralidade
praticada no âmbito da Academia. Para esses estudiosos, a grande questão de Platão
nessa passagem não seria tanto – como, aliás, nos parece – empreender um esforço
filosófico de determinação do lógos dialético, mas, em vez disso, testemunhar e submeter
à crítica posição de resistência histórica à escrita, por ele considerada perigosa,
excessivamente dependente de quem escreve e, sobretudo, incapaz de oferecer respostas,
o que a tornaria muito pouco adequada, portanto, à expressão e divulgação da filosofia.
Como anotou Szlezák (2009), por meio da escrita, ademais, o filósofo não saberia a quem
falar e a quem silenciar, devendo preferir sempre, por conseguinte, a expressão reservada
e controlada do colóquio entre as paredes de sua escola529.
português: J. C. Souza (2016), “terrível”; C. A. Nunes (2011), “perigosa”; P. Gomes (2000), “inconveniente”; em
italiano: Pucci & Centrone (2014), “é una stranza condizione”; De Luise (2002) “terribile”; R. Velardi (2006),
“inquietante”; em francês: L. Robin (1933) e L. Brisson (2004), “terrible; É. Chambry (1992), “inconvenient”;
em inglês: Hackforth (1997) e Yunis (2014), “strange”.
528
Em grego, o mesmo verbo grapheîn significa “pintar” e “escrever”. A palavra que significa “pintura”
(ζωγραφία), etimologicamente significa “desenho de seres vivos”. O comentário de Platão na passagem,
portanto, chama atenção para a etimologia da palavra.
529
Cf. Szlezák (2009, p. 26): “A escrita, diz Sócrates, compartilha uma má característica com a pintura: assim
como pinturas pintadas parecem vivas, mas permanecem solenemente em silêncio se questionadas, as
exposições escritas (λόγοι) também parecem falar como se tivessem discernimento, mas, se alguém indaga
a fim de entender melhor o que foi dito, elas dizem sempre o mesmo. E uma vez escrita uma exposição corre
por toda parte, entre aqueles que entendem algo do tema e igualmente entre aqueles a quem este não diz
respeito. Ela não sabe falar (ou deixar de falar) às pessoas a quem deve (ou não deve) falar. Se é atacada e
injustamente insultada, sempre precisa do auxílio do autor: ela mesma não pode se defender, nem se
306
Tal posição, todavia, parece-nos excessivamente baseada em uma interpretação
literal das palavras de Sócrates e seria, por essa razão, um tanto quanto esquemática, ao
atribuir à fala de Sócrates a autoridade de expressar a posição de Platão quanto à
escritura da filosofia. Ademais, ela se limita a oferecer uma representação histórica, que
deixa escapar suas consequências filosóficas na economia do diálogo como um todo. De
resto, correspondendo quase que à paráfrase literal do conteúdo proposicional contido
na fala de Sócrates, a posição dos estudiosos de Tübingen e Milão desconsidera
inteiramente os elementos formais da prosa artística de Platão que, entretanto, podem
ser decisivos para uma reinterpretação da passagem. Vejamos.
Em primeiro lugar, a passagem exemplifica um conjunto de símiles que soa como
uma composição homérica530. Na primeira proposição, Platão desenvolve duas
comparações, ambas explícitas por intermédio do operador gramatical ὡς:
1. a escrita (γραφή) é (verdadeiramente) como (ὡς ἀληθῶς ὅμοιον) a pintura
socorrer. A exposição viva e animada de quem sabe é superior à exposição escrita (ao λόγος γεγραμμένος),
que é uma cópia da primeira (…)”.
530
O símile pode ser basicamente definido como a figura de linguagem na qual elementos de dois universos
são aproximados comparativamente. Do ponto de vista sintático, tal aproximação é assinalada pela
presença de elementos linguísticos comparativos (principalmente conjunções e/ou partículas correlativas).
Conforme discute L. Hardwick (1997, p. 326), o símile homérico era essencialmente parte da uma cultura
ligada à performance da poesia, derivada de uma longa tradição oral. Esse recurso poético realizaria um
papel formal e estrutural ao longo do poema, remetendo também a um universo imagético compartilhando
pela audiência. Como observa P. Jones (2013, p. 40), na obra de Homero os símiles podem ser de vários tipos:
1. símile breve: com um único ponto de comparação (Il. 1.47 “como chega a noite”; 22.1 “como gamos”); 2.
símile breve estendido, na forma “como X, que...” (exemplo: Il. 4.243-5: “como gamos / que, após terem
percorrido uma longa planície se cansam / e ali ficam estacados, sem qualquer força no espírito”); 3. símile
anular: começa com um termo comparativo tal como “tal como/quando/como/qual” e termina com o termo
correlativo “tal foi/assim foi/tal” (exemplo: Il. 17.520-3: “Tal como quando um homem com o afiado
machado/ golpeia atrás dos chifres um boi do curral e corta / os tendões completamente e o boi cai para trás
/ assim Areto saltou para frente, mas tombou para trás”). Como observa H. Morier (1989, p. 1051), o símile,
embora característico da épica grega, foi apropriado por Virgílio e, posteriormente, pelos épicos modernos,
como John Milton (1608-1674):
As when a Vultur on Imaus bred.
Whose snowie rigde the roving Tartar bounds,
Dislodging from a Region scarce of prey
To gorge th flesh of Lambs or yeanling Kids
On Hills where Flocks are fed, flies towards the Springs
Of Ganges of Hydaspes, Indian streams;
But in this way lights on the barren plaines
Of Sericana, where Chineses drive
With Sails and Wind thir canie Waggons light:
So on this windie Sea of Land, the Fiend
Walk’d up and down alone bent on his prey...
(The paradise Lost, 3.431-441)
Os símiles também se mostram presentes na literatura contemporânea, nos mais diferentes gêneros
literários. L. Montenegro (2018), mostra, por exemplo, o seu uso na música popular brasileira, em duas
canções:
“Drão” – Gilberto Gil (1982) “Roda Viva” – Chico Buarque de Holanda (1967)
Drão!
O amor da gente é como um grão Tem dias que a gente se sente
Uma semente de ilusão Como quem partiu ou morreu
Tem que morrer pra germinar A gente estancou de repente
Plantar nalgum lugar Ou foi o mundo então que cresceu.
Ressuscitar no chão.
307
(ζωγραφίᾳ);
2. os produtos da escrita (ἔκγονα) são como (ὡς) seres vivos (ζῶντα).
Na sequência, esse conjunto de comparações é estendido aos discursos (λόγοι):
3. “e tal também (são) os discursos…” (275d7: ταὐτὸν δὲ καὶ οἱ λόγοι).
Ora, essa estrutura gramatical coloca-nos diante de uma perfeita composição de
símile anular, tal qual encontramos na Ilíada e na Odisseia, que poderíamos parafrasear
do seguinte modo:
4. “tal como a pintura, cujos produtos, ao serem questionados, permanecem em
silêncio solene, assim também os discursos, ao interrogá-los querendo-se aprender com
eles, indicam sempre a mesma coisa”.
Ora, o que Platão, célebre pela sua verve literária, estaria indicando com essa
construção?
Conforme observou P. Jones (2013, p. 40), em comentário ao estilo da Ilíada, os
símiles homéricos conferiam ao texto épico vivacidade, páthos e humor. Segundo Jones,
“os símiles tendem a ocorrer em momentos de muita emoção, drama e tensão, na maior
parte dos casos, introduzindo uma mudança de perspectiva”. Se podemos estender os
comentários de Jones acerca do símile para além do poema homérico, e se é possível
admitir que, à época de Platão, não somente o conteúdo dos poemas homéricos, mas
também sua forma, eram amplamente conhecidos e cultivados, constituindo uma espécie
de tesouro cultural coletivo, sendo ensinados, recitados e, frequentemente memorizados,
logo, não nos parece desarrazoado admitir que essa flagrante emulação do estilo
homérico também não passasse imperceptível aos acadêmicos contemporâneos de
Platão.
Em outras palavras, parece-nos possível admitir que o efeito dramático que a
composição em símile enseja em Homero, conferindo vivacidade, tensão e mudança de
perspectiva, causaria efeito análogo na prosa de Platão. Assim sendo, engendrar-se-ia,
por intermédio desse expediente, um certo contraste com o conteúdo proposicional que
as palavras evidenciam, quando lidas independentemente de sua forma. Assim, a
aparente e inquestionada condenação da escrita, consignada, por exemplo, nos
inequívocos sinais de anuência pacífica de Fedro: “certíssimo” (275d3: ὀρθότατα); “tudo o
que disseste está certíssimo” (275e6: καὶ ταῦτά σοι ὀρθότατα εἴρηται), deveria ser lida de
outro modo. Dessa forma, se o símile puder ser indício de uma possível e inesperada
mudança de perspectiva que confere dramaticidade à narrativa, ficaria portanto patente
que a questão da escrita não estaria ainda resolvida nesse passo, a despeito do que
pareceria à primeira vista com a sentença final de Sócrates e a concordância pacífica de
308
Fedro. Platão, ao provocar esse efeito poético, convidaria o seu leitor a ver através dos
signos linguísticos, nas entrelinhas das falas de Fedro e Sócrates.
Em segundo lugar, não se pode negligenciar a segunda parte do símile: a escrita
(γραφή) é tal qual os discursos (λόγοι). Ao associar a escrita aos discursos, torna-se
manifesta uma ampliação do escopo da reflexão. Não se trata de discutir somente sobre
a escrita em particular, mas sobre o lógos. A escrita parece ser evocada, portanto, como
um paradigma pelo qual se busca compreender algo mais avançado – o mecanismo do
discurso, as tensões entre, de um lado, os modos de usar a linguagem tal como os oradores
e sofistas o faziam e, de outro, esse nova modalidade de uso da linguagem oral e escrita
que Platão pretende inaugurar, a dialética. Portanto, a reflexão sobre a escrita aflora no
diálogo talvez limitada ao seu valor heurístico, trata-se de um modelo de que Platão lança
mão – um recurso aos nossos olhos efetivamente imagético, como a pintura – que permite
que Fedro compreenda não somente um gênero específico da escrita (ou toda ela), mas o
próprio lógos. Como vimos no último capítulo, a escrita estaria evocada então na condição
de paradigma, na medida em que configuraria um modelo que apontaria para além de si
mesmo, permitindo ampliar as fronteiras da compreensão filosófica para domínios mais
complexos, um expediente, em todo caso, não desprovido de riscos, e que se constrói a
partir de imagens531.
Diante disso, indagamo-nos ainda: estaria Platão se referindo a toda e qualquer
forma de escrita ou a um tipo particular? Na passagem aqui em discussão, Sócrates refere-
se à escrita “que é posta como seres vivos” (275d6: ἕστηκε μὲν ὡς ζῶντα). Chama-nos
atenção o fato de que o verbo ἱστημι (“colocar ou estar de pé, estabelecer, pôr”) esteja
empregado no seu aspecto perfeito, no modo indicativo. Em outras ocasiões, enfatizamos
como o emprego do modo optativo sugeria, naqueles casos, um caráter potencial e
subjetivo para a ação indicada pelo verbo; nessa passagem, entretanto, o indicativo
denota factualidade – trata-se de uma escrita efetivamente realizada – e o aspecto perfeito
consagra um estado presente que resulta de um fato passado532. Isso nos leva a pensar que
Platão, em sua crítica, tinha provavelmente em mente não toda e qualquer forma de
escrita, tomada em abstrato ou potencialmente – no seu aspecto indefinido, ou aoristo,
531
Conforme vimos no capítulo anterior, o lógos era também no Político comparado à pintura (Plt. 277a3-277c6)
e a escrita apontada explicitamente como paradigma para a dialética. No Fedro, essas questões parecem
estar, portanto, recolocadas. Mais uma vez, a escrita aparece como um paradigma para o lógos e é comparada
à pintura.
532
Conforme indica E. Ragon (2012, p. 212), o perfeito pode indicar: 1. o estado presente resultado do passado;
2. uma ação passada que ainda têm importância no presente, à qual se busca dar uma ênfase por razão
estilística. No seu modo indicativo, como indica A. Sihler (1995, p. 475), denota factualidade, materialidade
e objetividade da ação realizada.
309
no modo optativo –, mas uma prática efetiva dela, que se realizava desde muito antes e
cujas consequências poderiam ser constatadas em sua época; uma prática, portanto,
histórica.
Mas de que prática Platão estaria falando? O que nela justificava a necessidade de
seu exame crítico? A julgar pelo modo como Platão, em várias ocasiões do Fedro, refere-
se a logógrafos e a oradores e, nomeadamente, a Isócrates e a Lísias, a quem dedica as
últimas páginas do diálogo (Phdr. 278b7-279c8), parece-nos razoável assumir que a escrita
em questão, e aqui tomada como paradigma de um uso específico do lógos, seja aquela
consagrada nas obras e no estilo desses dois oradores533. Mas como elas se apresentavam,
na perspectiva de Platão? Que lugar ocupa a referência a tais oradores no âmbito da
reflexão sobre a escrita no Fedro? Tais perguntas levam-nos a fazer um breve parêntese
para apresentarmos algumas informações sobre Isócrates, para podermos compreender
o papel da alusão a esse personagem no epílogo do Fedro.
Platão e Isócrates
533
Conforme vimos na primeira parte da tese, Lísias é o personagem invisível que domina a primeira parte
do Fedro, cuja voz se faz sentir através do discurso proferido por Fedro e que se torna objeto de demorada
discussão com Sócrates na primeira parte do diálogo. Afora as menções ao seu discurso, Lísias é novamente
citado no epílogo do Fedro (278b8, c1), assim como Isócrates, citado pela primeira vez no diálogo também
nessa passagem (278e8). Embora essa passagem apresente as únicas citações explícitas de Isócrates no corpus
Platonicum, Cruces & Gonzales (2000, p. 921 et seq.), Eucken (2014) e Yunis (2014) mostram que há inúmeras
alusões indiretas a Isócrates e à sua obra em diferentes diálogos: no Górgias, no Eutidemo, no Banquete, no
Teeteto e no Político. Como notou C. Eucken (2014), não somente é possível apreender uma alusão indireta a
Isócrates em várias obras de Platão, quanto também, reciprocamente, uma alusão a Platão nas obras de
Isócrates. Embora o aspecto polêmico presente nos escritos de ambos os filósofos seja bastante evidente,
tanto Platão, quanto Isócrates evitam o confronto direto e explícito, o que, todavia, não significa que tal
confronto passasse despercebido aos contemporâneos.
310
(Jebb, 1962, p. 4; Cruces & Gonzáles, 2000, p. 894). Contemporâneo de Platão, Isócrates
também teria tido contato com Sócrates, sem ter se tornado um frequentador assíduo.
Sabe-se ainda que teria atuado como logógrafo em Atenas durante certo período, após a
perda de seus bens pessoais por ocasião da tirania dos trinta (entre 404 e 403 a.C.)534. No
entanto, a notoriedade de Isócrates deve-se sobretudo ao fato de ter fundado uma escola
de filosofia, provavelmente entre 380 e 390 a.C., onde teria exercido importante atividade
pedagógica, política e literária, certamente rivalizando, em alguns casos, com a própria
Academia de Platão535. Conforme observou S. Usener (1994, p. 22), os tratados e discursos
de Isócrates não teriam sido concebidos exclusivamente para a leitura, nem tampouco
para sua performance oral, mas visavam aos dois modos de expressão
indiscriminadamente. Conforme assinala Rocha Pereira (2012, p. 484 et seq.), a escola
isocrática tinha como finalidade a formação humanística, voltada sobretudo para a
aquisição de habilidades oratórias, mas sem ser “moralmente indiferente”. Isso significa
dizer que, conforme notou a estudiosa, havia uma “finalidade cívica e patriótica” e a
autoridade do orador decorria de sua vida virtuosa. Segundo Cruces & Gonzáles (2000,
p. 906), a philosophía de Isócrates conferia ao lógos uma importância central: ele é
compreendido como “o resultado de um processo mental de compreensão da realidade,
e deve exprimir um julgamento (δόξα) de acordo com uma circunstância concreta
(καιρός) da pólis”536. Em seu magistério, dedicava-se, portanto, ao ensino do uso correto
do discurso aplicado a uma filosofia de cariz essencialmente político e social537.
534
Como reflexo de sua atividade logográfica, restam algumas peças de oratória judiciária que nos chegam
aos dias atuais, entre 403 e 390 a.C.: Πρὸς Εὐθύνουν ἀμάρτυρος, Παραγραφή πρὸς Καλλίμαχον, Κατὰ
Λοχίτου αίχείας ἐπίλογος, Περὶ του ζεύγους, Τραπεζιτικός, Αἰγινητικός. Não é possível precisar se tais
discursos foram, efetivamente, empregados diante de um tribunal ou se se tratavam, de modelos concebidos
para um uso escolar, haja vista que foram registrados somente anos depois de aberta sua escola de retórica.
(Cruces & Gonzáles, 2000, p. 896).
535
Data da segunda metade do século XX a revalorização de Isócrates como pensador. Por muito tempo,
contudo, sua obra foi eclipsada pela comparação contínua com Platão. H. J. Rose (1960, p. 285) anotava, por
exemplo, a respeito de Isócrates, que “he had a most unphilosophical mind and no turn for speculation
either ethical o metaphysical”. Recentemente, estudos como os levados a termo por I. Hadot (1984) e M.
Dixsaut (1992) assinalam a importância do seu pensamento filosófico. Isócrates disputava, com Platão, o
significado da palavra philosophía, também por ele empregada para designar sua atividade de educador.
Contudo, conforme comentam Cruces & Gonzáles (2000, p. 905), o termo cobre, na obra de Isócrates, um
sentido muito mais amplo que em Platão. Burger (1980, p. 115) identifica a passagem do Eutidemo (entre 305c-
306d) como uma alusão bastante crítica às pretensões filosóficas de Isócrates.
536
Cf. “le discours (λόγος) est le résultat d’un processus mental de compréhension de la réalité, et doit
exprimer un jugement (δόξα) en acord avec une circonstance concrète (καιρός) de la polis”.
537
Cf. Cruces & Gonzáles (2000, p. 906): “Isocrate enseigne dans son école la culture et la maîtrise du λόγος.
L’emploi du λόγος de la parole ou du discours à des fins politiques est d’abord recommandé, puis exalté
dans Nicoclès 5-9, un passage que l’orateur va répéter quelques années plus tard dans le Sur l’échange 253 sqq.
Tout d’abord, le logos nous distingue des animaux, lesquels sont supérieurs à l’homme par d’autres aspects,
et il nous permet de nous débarasser de la vie sauvage (§ 5 sq.). Il est donc le principe de la civilisation dans
toutes ses manifestations : étant donné que chez les hommes il est inné « de nous convaincre mutuellement
et de faire apparaître clairement à nous-mêmes l’object de nos décisions » (§ 6), c’est lui qui rend possible la
vie en communauté, qui permet l’établissement des lois et l’invention des arts (§ 6)”.
311
Portanto, coetâneo de Platão e, à época de redação do Fedro538, já um respeitável
sexagenário, Isócrates, em sua escola, também disputava com Platão o valor e o
significado filosófico do lógos. Assim, não é surpreendente que Isócrates seja citado em
destaque no final do Fedro539, embora o elogio que Sócrates lhe tece nessa passagem possa
soar como algo inusitado540. O “belo Isócrates” (278e8: Ἰσοκράτη τὸν καλόν) ou “jovem
Isócrates” (278e10: Νέος…Ἰσοκράτης) é mencionado como superior a Lísias no que diz
respeito tanto aos discursos, quanto ao caráter (278a3-4: Δοκεῖ μοι ἀμείνων ἢ κατὰ τοὺς
περὶ Λυσίαν εἶναι λόγους τὰ τῆς φύσεως). Sócrates estimava que, com o passar dos anos,
o jovem deveria se conduzir para algo mais elevado e mais divino (θειοτέρα), como
consequência de possuir um pensamento condigno à filosofia.
Como a distância entre a data dramática e a data histórica do Fedro colocam o
leitor diante de dois momentos distintos da vida de Isócrates – o jovem discípulo dos
sofistas e amigo de Sócrates, no primeiro caso, e o sexagenário professor de retórica e
rival de Platão, no segundo – a passagem foi por muitos comentadores (como Mazzara,
1992; Yunis, 2014; Reis, 2016, entre outros) compreendida em chave irônica, posição,
contudo, não isenta de qualquer problematização entre os seus diversos comentadores541.
Independentemente de assumirmos uma leitura mais ou menos irônica para essa
passagem, parece-nos claro que a eleição de Isócrates como o “amigo de Sócrates”
(ἑταῖρον) coloca-o diante do próprio Platão, que se omite por trás da alusão explícita de
538
Cf. Nails (2002), o Fedro teria sido efetivamente redigido por volta de 370 a.C.
539
Reis (2016, p. 237), defende que é Isócrates, e não Lísias, o alvo principal da crítica de Platão ao lógos
retórico no Fedro: “Isócrates, fundador de uma escola de retórica muito influente nos dias de Platão e a quem
Sócrates dirige um inesperado elogio, é seguramente o alvo de suas críticas desde o início; Lísias, por sua
vez, que já estava morto por ocasião da suposta conversa, decerto foi eleito como símbolo da cultura retórica
em ataque por uma mera questão de conveniência”. É também o que já pensava G. Mazzara (1992, p. 215):
“on pourrait considérer le Phèdre comme la réponse de Platon, d’une part, pour ce qui concerne à la
première partie du dialogue, à la pratique rhétorique d’Isocrate ; de l’autre, pour ce qui concerne la seconde
partie, à l’enseignement théorique”.
540
Já em 1937, R. L. Howland publicou um artigo na The Classical Quaterly cujo objetivo era discutir o
estranho elogio a Isócrates contido na parte final do Fedro. Desde então, vários comentadores do Fedro
acrescentam adendos para tratar do “problema de Isócrates” nesse diálogo, como, por exemplo R. Burger
(1980, p. 115-126); F. Trabattoni (1993, p. 84-94); M.-P. Noël (2009) e A. Brancacci (2011, p. 7-38).
541
O fato de Isócrates ter, em dado momento de sua trajetória, se posionado também contra os logógrafos (e
Alcidamante e Antístenes, em particular), posição expressa, por exemplo, em Contra os sofistas, aproxima-o,
de fato, do ponto desenvolvido por Platão e permitiria, senão eliminar, ao menos matizar a leitura irônica
do elogio expresso no segmento final do Fedro. A interpretação de Hackforth (1997, p. 167) é bastante
representativa dessa posição: “the fact that he [Isócrates] is favourably contrasted with Lysias in itself rules
out the idea that he, personally and individually, has been the target of all the foregoing critique of rhetoric.
The playful description of him as Socrates παιδικά must imply that Socrates knew and liked him as a young
man, and that Plato should recall this friendship, and should put into Socrates’ mouth a prophecy, albeit a
conditional prophecy of future greatness (…). I should interpret the first half of the prophecy as already
fulfilled when Plato wrote; Isocrate’s orations, notably the Panegyricus of 380 B.C., had already put all
previous orators in the shade (…); the second half, the ‘sublime impulse leading to greater things’ is as yet
unfulfilled; but I do not see why Plato should not still have hoped for its fulfillment. If Plato had, as he surely
had, any hope of his proposals for a philosophic rhetoric being adopted, he must win over Isocrates to his
cause”.
312
seu rival. Desse modo, parece-nos que a passagem convida a um sofisticado cotejo entre
Platão e Isócrates, tendo como fio condutor a diferença entre ambos no que se refere ao
lógos e à escrita542.
Conforme mostrou F. Gaubaudan (1986, p. 279), Isócrates possuía uma vigorosa e
influente prosa literária, caracterizada pela homogeinização da expressão escrita, pela
utilização da linguagem cotidiana e por uma simplificação das fórmulas judiciárias.
Como já o havia notado S. Usher (1973, p. 39 et seq.), não era habitual na prosa isocrática
encontrarem-se palavras poéticas, metáforas e composições de palavras inusitadas. Além
disso, Isócrates teria reforçado o aspecto rítmico da prosa, evitando o choque de
consoantes dissoantes e o hiato, elementos considerados empecilhos para uma leitura
fluente. D. Quirim (2016, p. 83) chama atenção para o zelo com que Isócrates tratava da
própria escrita, o que se revela logo nas primeiras linhas de sua Antídosis. Nessa passagem,
o orador se equipara a um Fídias, Zêuxis ou Parrásio dos lógoi, sendo que seus escritos
eram produto de uma arte elevada (Ant. 1-3). Além disso, a existência de citações revela
um cuidadoso planejamento da escrita, oferecendo evidência – talvez uma das mais
antigas – de intertextualidade dentro da obra de um mesmo autor.
Se, por um lado, tal estilo lhe pudesse conferir notável clareza e precisão, por
outro, tornaria provavelmente o texto excessivamente áspero e objetivo, impedindo
qualquer ambiguidade e figuração subjetiva e, consequentemente, tornando-o menos
aberto para a polifonia543. Ora, não precisamos avançar muito nesse sentido para
constatar o quanto tal estilo seria bastante diverso da prosa platônica, cujas construções
privilegiavam não raro elementos metafóricos e alegóricos, formulavam proposições
intencionalmente ambíguas, reconstruíam, em suma, uma linguagem literária que,
certamente, muito se afastava da língua cotidiana – embora nela se incluíssem também
elementos de uma certa oralidade.
Considerando que Platão, ao evocar Isócrates, convida-nos a confrontar a sua
própria escrita com a do mais notável prosador de seu tempo, que conclusão se poderia
tirar dessa contraposição? Em primeiro lugar, parece-nos que seria uma prova da
abertura dialética de Platão, que, do mesmo modo como opusera, na primeira parte do
542
Que toda a passagem faça uma alusão à polêmica entre Isócrates, Antístenes e Platão, tendo como marco
o discurso Contra os sofistas, já foi notada por A. Brancacci (2011). A viva discussão sobre a oralidade
(improvisada) e a escrita (planejada) entre Alcidamante e Isócrates parece também estar implícita,
conforme Quirim (2016).
543
Não se confundam, entretanto, tais expedientes com a ausência de uma ornamentação retórico-literária,
hipoteticamente em prol de uma “linguagem simples”. De fato, trata-se, em vez disso, da postulação de um
novo estilo para prosa grega, que teria grande influência na posteridade (por exemplo, no filósofo e orador
romano Cícero e no próprio Platão). Que Isócrates fosse, ademais, grande estilista e se colocasse ativamente
nesse debate, atesta, por exemplo, o estudo de Noël (2016).
313
diálogo, o discurso de Lísias – que se mostrara monológico e repetitivo – à elaboração
dialética dos dois discursos apresentados por Sócrates na sequência544, também aqui
pareceria propor a contraposição entre uma escrita monológica, objetiva, proposicional
e retórica – a de Isócrates – à sua própria escrita – dialógica, dependente do engajamento
subjetivo do leitor e dialética. Assim, se na primeira parte do diálogo temos a
contraposição entre o discurso de Lísias e Sócrates, Platão sugere-nos, no epílogo, um
confronto análogo entre sua própria escrita e a de Isócrates.
Em segundo lugar, o epílogo do diálogo parece também vir em reforço da tese que
propúnhamos antes: Platão não quer se manifestar sobre a escrita tomada em geral, mas
propõe uma contraposição entre suas diferentes formas, como um paradigma para
compreender uma outra e maior contraposição que percorre todo o diálogo, aquela entre
as diferentes manifestações do lógos. Nesse sentido, o discurso de Lísias e a escrita de
Isócrates seriam, então, exemplares desse lógos que Platão pretende distinguir da
dialética. E como esse lógos se distingue e se caracteriza? Voltemos à passagem.
A característica marcante desses discursos é a sua incapacidade de dialogar: se se
lhes interroga algo, “calam-se solenemente” (275d6: σεμνῶς πάνυ σιγᾷ); se com eles se
quer aprender com o que dizem, “indicam sempre uma única e mesma coisa” (275d9: ἕν
τι σημαίνει μόνον ταὐτὸν ἀεί). Porque responde sempre o mesmo, o lógos retórico –
isocrático e lisiânico – possui menor abertura dialética. Não sendo capaz de responder às
interrogações que se lhe possam fazer, esse lógos não se submete à dinâmica do
dialégesthai e, assim, não permite a polifonia, o confronto das opiniões diversas, o exame
da diversidade de pontos de vista, tratando-se, em suma, de um discurso monológico,
limitado à visão do seu artífice, incapaz de promover um diálogo e, consequentemente,
aprendizado. É esse gênero de discurso (e de escrita), que requer uma espécie de tutela
daquele que o produz – carece de um socorro parental (275e4: τοῦ πατρὸς ἀεὶ δεῖται
βοηθοῦ), por não ser capaz de se defender e de se ajudar (275e5: αὐτὸς γὰρ οὔτ’ ἀμύνασθαι
οὔτε βοηθῆσαι δυνατὸς αὑτῷ). Portanto, o lógos retórico (e o seu correspondente
paradigma, a escrita), ainda que, como a pintura, possa despertar o apreço e a admiração
pública e consistir em produto artístico valorizado socialmente, no que diz respeito ao
conhecimento, não é favorável aos que querem aprender, porque não possibilita o
diálogo. Além disso, não possuindo autonomia, é excessivamente dependente de seus
544
Nesse sentido, conforme também comenta G. Mazzara (1992, p. 214), o discurso de Lísias recitado por
Fedro poderia ser comparado ao Elogio de Helena de Isócrates: limitar-se-ia a proceder um elogio em um
sentido único, sem distinções e definições, como se se inspirasse nos princípios retóricos isocráticos, sem a
coloração presente nas duas composições de Sócrates apresentadas na sequência.
314
autores e vulnerável aos seus adversários545.
Parece ficar claro, portanto, que Platão, por intermédio da reflexão sobre a escrita
de Isócrates, não enseja uma crítica a toda forma de escrita, em abstrato, muito menos
ratifica a sua condenação a priori – posição entretanto talvez admissível na perspectiva de
Sócrates. O que Platão nos oferece é um novo confronto dialético entre duas formas de
escrita, confronto que é paradigma da distinção crucial entre a prática da retórica e da
filosofia, como ele a concebe. Nesse sentido, seria preciso, indo além, mostrar também a
existência de um “outro discurso” (276a1: ἄλλον...λόγον), que se revelasse como uma
versão “melhor e mais capaz que aquela outra por natureza” (276a2-3: ἀμείνων καὶ
δυνατώτερος τούτου φύεται), ou seja, um lógos dialético e sua correspondente forma de
escrita. Vejamos, então, como esse será apresentado.
Um “discurso vivo”
545
Que Platão faça referência aqui uma modalidade de escrita – a dos rétores e sofistas – e não a toda
expressão escrita, parece ainda ficar mais claro quando cotejamos com a passagem do Protágoras (329a), na
qual Sócrates levanta a mesma acusação contra o discurso dos sofistas, conforme vemos na passagem
abaixo:
Se alguém consultasse sobre este assunto algum dos nossos oradores políticos, talvez ouvisse
idêntico discurso da boca de Péricles ou da de qualquer outro dos mais fecundos oradores. Todos
eles, porém, no instante em que lhes apresentam qualquer objeção, comportam-se como livros:
ficam sem saber responder e formular a menor pergunta.
(Prot. 329a1-4, tradução de C. A. Nunes, 2002, cf. τάχ' ἂν καὶ τοιούτους λόγους ἀκούσειεν ἢ
Περικλέους ἢ ἄλλου τινὸς τῶν ἱκανῶν εἰπεῖν· εἰ δὲ ἐπανέροιτό τινά τι, ὥσπερ βιβλία οὐδὲν ἔχουσιν
οὔτε ἀποκρίνασθαι οὔτε αὐτοὶ ἐρέσθαι).
546
Cf. {ΦΑΙ.} Τίνα τοῦτον καὶ πῶς λέγεις γιγνόμενον;
{ΣΩ.} Ὃς μετ' ἐπιστήμης γράφεται ἐν τῇ τοῦ μανθάνοντος ψυχῇ, δυνατὸς μὲν ἀμῦναι ἑαυτῷ,
ἐπιστήμων δὲ λέγειν τε καὶ σιγᾶν πρὸς οὓς δεῖ.
{ΦΑΙ.} Τὸν τοῦ εἰδότος λόγον λέγεις ζῶντα καὶ ἔμψυχον, οὗ ὁ γεγραμμένος εἴδωλον ἄν τι λέγοιτο
δικαίως.
{ΣΩ.} Παντάπασι μὲν οὖν.
315
Ora, o que significa um discurso e uma escrita “dotados de alma” e “vivos”? Discutimos,
nos capítulos anteriores, como a ideia de movimento parece estar fortemente associada à
pesquisa filosófica no Fedro. A própria distinção entre reminiscência (ἀνάμνησις) e
lembrança (ὑπόμνησις), para o que chamamos atenção no capítulo IV, poderia ser
compreendida a partir de um jogo de oposições que envolve, de um lado, estaticidade e,
de outro, movimento. Vimos também que conhecer (rememorar) representa, em suma,
uma função anímica estreitamente ligada à vida e ao movimento, tendo a alma imortal
como o seu motor gerador. A própria demonstração da alma presente na palinódia já
trazia a associação entre movimento e vida, como víamos em 245c4-9: “Eis o princípio da
demonstração. Toda alma é imortal. Pois o que é sempre móvel é imortal, enquanto o que
move outro e por outro é movido, cessando o movimento, cessa também a vida”547.
Considerando tais reflexões, parece tornar-se evidente por que razão o lógos
dialético, que representa o intermédio pelo qual se pode viabilizar a busca filosófica,
deveria ser “dotado de alma” (ἔμψυχον). Ora, para engendrar conhecimento, ele precisa
ter a natureza das coisas moventes, das coisas vivas, ele precisa se caracterizar por uma
vivacidade e uma capacidade de dialogar, de se moldar, de se diferenciar,
metamorfoseando-se e produzindo novos significados mediante novas circunstâncias,
sendo capaz de falar e de se calar – e não somente de se silenciar ou repetir sempre as
mesmas informações, mecanicamente548. Não obstante, para Platão, o discurso de Lísias
– ou a escrita de Isócrates – não logravam cumprir tais exigências, ao passo que a escrita
platônica, por que satisfaz a essas exigências, seria uma alternativa – tanto na
performance da dialética, como vemos em seus diálogos escritos, quanto também nos
momentos de reflexão teórica, como vemos nessa passagem do Fedro e, particularmente,
na Carta 7, à qual retornamos brevemente.
Tivemos ocasião de examinar, no capítulo IV, como a crítica à escrita de Dionísio
II, expressa por Platão na Carta 7, representava também um esforço de compreensão da
dialética. As posições contrapostas naquele contexto constituíam um exercício de
distinção proposto por Platão, permitindo examinar as vantagens e desvantagens das
letras – imagens que tanto poderiam colaborar para a busca do saber, se realizada por
uma alma movida por éros, quanto também poderiam oferecer riscos, visto que,
547
Cf. ἀρχὴ δὲ ἀποδείξεως ἥδε. Ψυχὴ πᾶσα ἀθάνατος. τὸ γὰρ ἀεικίνητον ἀθάνατον· τὸ δ' ἄλλο κινοῦν καὶ
ὑπ' ἄλλου κινούμενον, παῦλαν ἔχον κινήσεως, παῦλαν ἔχει ζωῆς.
548
Ademais, conforme notou N. Cordero (2011, p. 41), uma concepção dinâmica da realidade, já consignada
no velho termo physis empregado pelos filósofos pré-socráticos, persistiu ao longo de todo o pensamento
grego. Assim sendo, é possível pensar que também a resposta platônica não pudesse prescindir da noção de
movimento e vida associado ao processo filosófico e, por conseguinte, associado à dimensão filosófica do
lógos.
316
compartilhando da natureza dos sensíveis, elas poderiam conduzir não necessariamente
ao saber, mas a um crer-saber – como era o caso do tirano de Siracusa. Ora, vimos também
que o problema da escrita, que aflorava como paradigma para o problema da linguagem,
dizia também respeito à sua natureza imagética, uma vez que se tratava de um construto
necessariamente radicado no sensível, de modo que sua associação causal ao
conhecimento seria bastante ingênua, haja vista que poderia culminar com o
desenvolvimento de uma aparência de conhecimento, e não com o próprio
conhecimento. Era por essa razão, portanto, que emergia da Carta 7 senão um patente
negativismo quanto à expressibilidade da filosofia, ao menos um generalizado ceticismo
quanto à linguagem – oral e escrita –, como testemunhamos, por exemplo, no argumento
que concluía a reflexão levada a termo por Platão naquele texto: “Ninguém que tenha
juízo ousará expor pela linguagem o seu pensamento, [por causa de sua fragilidade],
sobretudo em caracteres imóveis, como acontece com os escritos”549.
Conforme vimos, no contexto discursivo da Carta 7, importava para Platão frisar
– talvez em tons particularmente retóricos – exatamente a falibilidade, a fraqueza ou a
fragilidade do lógos (343a1: τὸ τῶν λόγων ἀσθενές), característica que se revelava
particularmente na escrita pseudo-filosófica de Dionísio II, personagem que se arrogava
ter se tornado um filósofo meramente por ter escrito uma obra sobre temas filosóficos. O
que nos chama atenção nessa passagem, como em outras antes examinadas, é que os
limites da linguagem estão também aqui associados à imobilidade de seus caracteres
(ἀμετακίνητον), tal qual acabamos de ver na apreciação feita do lógos (e da escrita) de
Lísias e Isócrates no Fedro. Assim sendo, os escritos de Dionísio II – como os de Lísias e
Isócrates – serviam a evidenciar a insuficiência deste tipo de lógos, insuficiência não
intrínseca a todo e qualquer ato discursivo, mas somente àquele que falha por não ser
“vivo e dotado de alma”, i.e. que se encerra na imobilidade e não consegue se abrir ao
diálogo vivo, fértil e dinâmico.
Logo, se a existência de um discurso e de uma escrita assim caracterizados se
mostra patente na alusão a Lísias e Isócrates, resta ainda a hipótese de uma outra escrita
(paradigma de um outro lógos), caracterizada pelo contraponto, a saber, a mobilidade
dialética. Afinal, em lugar da escrita de Lísias, Isócrates e Dionísio II, a que outro modo
de escrita Platão poderia recorrer? No próximo tópico, pretendemos mostrar que uma
primeira abordagem dessa questão pode ser observada como plano de fundo das imagens
549
Tradução de J. T. Santos e J. Maia Jr., 2008, com modificações, cf. νοῦν ἔχων οὐδεὶς τολμήσει ποτὲ εἰς
αὐτὸ τιθέναι τὰ νενοημένα ὑπ' αὐτοῦ, καὶ ταῦτα εἰς ἀμετακίνητον, ὃ δὴ πάσχει τὰ γεγραμμένα τύποις.
317
do lavrador, do “Jardim de Adônis” (276b3: Ἀδώνιδος κήπους) e dos “jardins das letras”
(276d1: τοὺς...ἐν γράμμασι κήπους).
Entre 276b1 e 277b3, Platão oferece uma nova imagem para melhor explicitar as
distinções apresentadas na última seção. Sócrates interroga inicialmente se um lavrador
sério e inteligente dispersaria suas sementes em pleno verão (uma ocasião, portanto,
inoportuna para a semeadura) e se se contentaria em vê-las germinar em apenas oito dias
(como ocorria com prática dos Jardins de Adônis550). Ou, caso tal lavrador participasse
desse ritual, se ele realizaria tal atividade apenas como um jogo, por ocasião de uma
festividade (276b5: μὲν δὴ παιδιᾶς τε καὶ ἑορτῆς χάριν), reservando, por outro lado, as
sementes para uma ocasião mais oportuna (καιρός), quando pudesse vê-las germinar ao
longo de oito meses. No contexto, a pergunta parece retórica, tendo em vista que Fedro,
na sequência, a compreende como uma afirmação: “É assim como dizes que ele faria,
Sócrates, sem dúvida: umas a sério, outras não” (276c1-2: Οὕτω που, ὦ Σώκρατες, τὰ μὲν
σπουδῇ, τὰ δὲ ὡς ἑτέρως ἂν ᾗ λέγεις ποιοῖ). Assim, Platão parece contrapor a prática do
cultivo do “Jardim de Adônis” – uma brincadeira, um jogo (παιδιά) – à arte da lavoura (ἡ
γεωργική τέχνη), insinuando que o lavrador inteligente, se por acaso decidisse se dedicar
à construção dos Jardins de Adônis, não o faria a sério, mas apenas como uma
brincadeira.
Essa imagem permite compreender, na perspectiva de Platão, qual deveria ser a
atitude do filósofo diante dos discursos (e da escrita). O filósofo – dispondo do
conhecimento do justo, do belo e do bom (276c3-4: τὸν δὲ δικαίων τε καὶ καλῶν καὶ
ἀγαθῶν ἐπιστήμας ἔχοντα) pode, como o lavrador, cultivar “jardins das letras” por
divertimento (276d2: παιδιᾶς χάριν)551. Se esse divertimento pode, além disso, ter a
vantagem de amealhar um “tesouro de lembretes” (273d3: ὑπομνήματα θησαυριζόμενος),
550
Conforme Parker (2005) e Howatson (2005), os “Jardins de Adônis” consistiam em oferendas
comemorativas a Adônis e Afrodite, realizadas no verão, como parte das festividades religiosas de Adônis.
O ritual celebrava e lamentava a morte prematura de Adônis, por quem Afrodite, segundo a mitologia, fora
apaixonada. Os artefatos consistiam em pequenos vasos, cestos ou conchas, nos quais se plantavam vegetais
e flores e que eram expostos nos terraços das casas. Esses jardins em miniatura duravam apenas alguns dias
e a morte deles também deveria simbolizar a morte do próprio Adônis.
551
Aqui Platão parece proceder ao um renversement da noção de jogo, divertimento (παιδιά), como, ademais,
percebemos na própria reação de Fedro (276e1-2):
Fedro: Falas de um belíssimo divertimento, comparado a outro trivial, Sócrates: o de quem é capaz
de se divertir com discursos (…)
(Cf. {ΦΑΙ.} Παγκάλην λέγεις παρὰ φαύλην παιδιάν, ὦ Σώκρατες, τοῦ ἐν λόγοις δυναμένου παίζειν).
318
e, por isso, representar um “divertimento belíssimo” (276e1: παγκάλην...παιδιάν),
sobretudo se comparado a outros passatempos triviais, como a participação em
simpósios, isso não significa que semelhante prática – como a dos Jardins de Adônis –
devesse estar no centro das preocupações do filósofo – como o plantio dos pequenos
jardins por ocasião daquela ocasião festiva não deveria substituir a semeadura no tempo
adequado realizada pelo lavrador sério. Portanto, ainda que os jogos do discurso possam
representar uma atividade bela, ela não pode significar o mesmo que a dedicação à arte
da dialética (276e5: τῇ διαλεκτικῇ τέχνῃ), uma atividade séria e mais bela ainda (276e4-5:
καλλίων σπουδὴ) e que consiste em “plantar e semear discursos com ciência” (276e6-7:
φυτεύῃ τε καὶ σπείρῃ μετ’ ἐπιστήμης λόγους), discursos que se tornam autônomos,
capazes de se ajudarem a si mesmos, e frutíferos, capazes de suscitar outros discursos.
Essa imagem serviu de matéria para que se associasse o cultivo do “Jardim de
Adônis” à prática da escrita da filosofia – um jogo ou uma brincadeira (παιδιά) – opondo-
a à dialética, uma atividade séria (σπουδὴ) e oral, como vemos no comentário de T.
Szlezák (2009):
Ainda que nos pareça haver na passagem uma contraposição entre a dialética e a
produção de discursos, ou, ainda, entre, por um lado, uma atividade bela, mas não
essencial – como o cultivo dos Jardins de Adônis ou o “contar histórias sobre a justiça”
(276e3-4: δικαιοσύνης...πέρι myγοῦντα) – e, por outro, uma atividade essencial – a prática
da lavoura e da dialética –, a nosso ver o trecho não permite associar, como propõe
Szlezák (2009, p. 30), dialética a oralidade – e isso por razões internas ao próprio texto.
Vejamos.
Na passagem, Sócrates continua a discussão sobre a escrita, que, conforme vimos,
parece funcionar como paradigma para a compreensão mais geral do próprio lógos. É por
essa razão que se consigna nessa passagem referências ao “escrever” aqui associado a
uma das formas do lógos, como se pode atestar pelo emprego de um léxico específico:
319
1. 276c7: “Não escreveria em água a sério” (Οὐκ ἄρα σπουδῇ αὐτὰ ἐν ὕδατι γράψει);
2. 276d1: “nos jardins das letras, semeia e escreve” (ἐν γράμμασι κήπους… σπερεῖ
τε καὶ γράψει);
3. 276d2-3: “escreve formando para si um tesouro de lembretes” (γράφῃ ἑαυτῷ τε
ὑπομνήματα θησαυριζόμενος).
Tais passagens associam, com efeito, a prática dos discursos à escrita, contudo,
assim o fazem não para contrapor a escrita a uma hipotética oralidade dialética, mas
simplesmente porque Platão, ao longo do Fedro, toma a escrita como paradigma do lógos.
Tanto é assim que essa mesma prática de escrita, inicialmente associada ao grapheîn, é
referida logo à frente como um mythologeîn, isto é, um “contar histórias”, termo que, se
não remete exclusivamente a uma prática oral, ao menos admite a oralidade como seu
traço semântico mais comum: “[a prática] de quem é capaz de se divertir com discursos,
contando histórias sobre a justiça (…)” (276e2-3: τοῦ ἐν λόγοις δυναμένου παίζειν,
δικαιοσύνης…πέρι μυθολογοῦντα).
Além disso, a linha 276e5, que Szlezák aponta como evidência do “fato decisivo de
que aquele que ensina só aplica a dialética na conversação”, não contém sequer um
elemento lexical que permita corroborar a associação proposta pelo comentador.
Vejamos toda a passagem:
SÓCRATES: Pois é assim, meu caro Fedro. Mas suponho ser muito mais
bela a seriedade que surge disso tudo, quando alguém empreendendo a
dialética e alcançando uma alma predisposta, planta e semeia discursos
com ciência – que são competentes em ajudar a si mesmos e a quem os
plantou e, longe de infrutíferos, dotados de sementes da qual crescem
outros discursos552.
(Phdr. 275e4-7)
Ora, diversamente do que sugere Szlezák, a passagem acima não faz qualquer
relação entre a dialética e uma suposta prática oral. Em vez disso, corrobora os aspectos
que já haviam sido destacados anteriormente na contraposição entre o lógos retórico e a
dialética no Fedro, que poderíamos sintetizar nos pontos abaixo:
1. a dialética pressupõe o encontro com uma “alma predisposta” (ψυχὴν
προσήκουσαν): a oração participal λαβὼν ψυχὴν προσήκουσαν (“tendo encontrado uma
552
Tradução de Reis (2016), com adaptações Cf. Ἔστι γάρ, ὦ φίλε Φαῖδρε, οὕτω· πολὺ δ' οἶμαι καλλίων
σπουδὴ περὶ αὐτὰ γίγνεται, ὅταν τις τῇ διαλεκτικῇ τέχνῃ χρώμενος λαβὼν ψυχὴν προσήκουσαν, φυτεύῃ
τε καὶ σπείρῃ μετ' ἐπιστήμης λόγους – οἳ ἑαυτοῖς τῷ τε φυτεύσαντι βοηθεῖν ἱκανοὶ καὶ οὐχὶ ἄκαρποι ἀλλὰ
ἔχοντες σπέρμα, ὅθεν ἄλλοι ἐν ἄλλοις.
320
alma predisposta”), parece explicitar a condição pela qual é possível se realizar a dialética
– é preciso que haja uma espécie de encontro entre almas, caracterizado, diríamos, por
uma predisposição que se viabiliza tanto pela philía entre os dialogantes, quanto por éros
que motiva o aprender, temas que já foram abordados na primeira metade do Fedro;
2. os discursos são “plantados e semeados” (φυτεύῃ τε καὶ σπείρῃ) com “ciência”
(μετ’ ἐπιστήμης): a prática da semeadura remete à arte da lavoura (276b6: τῇ
γεωργικῇ...τέχνῃ), o que nos permite associar a dialética àquela arte, não ao “Jardim de
Adônis”. Ao passo que a lavoura rende frutos no longo prazo, corresponde ao “Jardim de
Adônis” um efeito limitado a oito dias. Isso diz algo a respeito do efeito dos discursos: o
lógos que se limita a entreter, ainda que seja belo quando fala de justiça, tem um efeito
transitório, ao passo que a dialética, por ser produzida com “ciência”, tem um efeito
duradouro. A diferença entre a transitoriedade e a permanência do efeito dos discursos
pôde, ademais, ser verificada na prática discursiva contida no próprio Fedro: o discurso
de Lísias, ainda que tenha sido considerado belo, pareceu convincente somente durante
um pequeno período de tempo, o que demonstra que o efeito psicagógico da retórica
seria localizado e limitado a uma primeira impressão, ao passo que o da dialética seria
duradouro, visto que se constrói com base em uma “ciência”; por conseguinte, somente
essa arte mostrou-se verdadeiramente psicagógica;
3. o lógos dialético é autônomo (“capaz de ajudar a si mesmo”) e frutífero
(“dotado de sementes das quais crescem outros discursos”): trata-se aqui, novamente,
da oposição entre um discurso que diz sempre o mesmo, sendo incapaz de dialogar e, por
isso, dependente de tutela, um discurso “sem vida própria”, e um discurso vivo, que seja
capaz de incluir a plurivocidade e, portanto, suscitar novas discussões e novos discursos;
além disso, como é dotado de sementes que germinam, esse segundo lógos caracteriza-se
pelo movimento da vida, por ser dotado de uma “alma” (ἐνψυχόν).
Esses três pontos permitem-nos, sem dúvida, corroborar aquela distinção entre as
duas formas de lógos, conforme comentamos no último item, parecendo-nos estar
ausente dela uma contraposição entre oralidade e escrita. Entretanto, restaria ainda a
pergunta: por que Platão, em um primeiro momento, faz clara menção ao “escrever”
(γραφεῖν) e, na segunda parte, não mais se refere explicitamente à escrita, mas a um
“contar histórias” (μυθολογεῖν) e a um “semear e plantar discursos” (φυτεύῃ τε καὶ
σπείρῃ…λόγους)?
A nosso ver, trata-se de uma característica da própria “escrita dialética” de Platão
e do uso extensivo da noção de paradigma como elemento da própria dialética, conforme
vimos no capítulo V. Nessa passagem específica, Platão parece oferecer, com efeito, um
321
desdobramento do paradigma em três níveis, de forma análoga à passagem do Político
que mencionamos anteriormente: o paradigma do paradigma (o jardim e a lavoura); o
paradigma propriamente dito (a escrita) e o tema do diálogo (a contraposição dialética
principal do Fedro: aquela entre as duas modalidades de lógos). Assim, na terceira dobra
desse movimento textual, está em jogo não mais a escrita – stricto sensu – mas uma
instância maior e englobante – a do lógos – como, em síntese, podemos ver no quadro
abaixo:
322
Jogo, brincadeira vs. atividade séria
553
Cf. Reale (2004, p. 59-60): “De fato, quem possui a ciência não pode operar com ‘seriedade’ fixando com
a tinta e com a pena sobre rolos de papel as coisas que lhe são mais caras; justamente porque os escritos, como
sabemos, não são capazes de defender-se nos seus conteúdos, nem são capazes de comunicar a verdade de
modo adequado. (...) O escrito é um jogo muito belo, de dignidade muito elevada em relação a outros jogos
que não valem nada. Mas a arte dialética na dimensão da oralidade é muito mais bela, e justamente nela
encontra-se o empenho de seriedade (...)”.
554
Cf. Szlezák (2009, p. 32): “Se aquilo que o φιλόσοφος leva a sério deve se chamar φιλοσοφία, então a
‘filosofia’ é, para Platão, a conversa oral, que o ‘que sabe’ conduz tendo em vista o ‘ensinamento’ de um
‘aprendiz’ escolhido. Portanto, de todos os λόγοι, apenas o ‘que é pronunciado no contexto do ensinamento
e com a finalidade de fazer aprender’ (διδασκομένοις καὶ μαθήσεως χάριν λεγομένοις) (278a2) tem valor
verdadeiro. Esse tipo de λόγοι foi o único que restou de uma abrangente divisão de todos os λόγοι: todos os
escritos, metrificados ou não, não são dignos de grande seriedade. Como não há um escrito que não seja
nem metrificado, nem não metrificado, é vão perguntar se os próprios diálogos de Platão, por exemplo,
estariam excluídos desse julgamento”. Dessa citação de Szlezák, causa-nos assombro que, na linha citada
como evidência do “único discurso” sobrevivente, o comentador tenha recortado a frase precisamente antes
do particípio graphómenos. Voltaremos a essa questão no próximo item.
323
o texto escrito teria apenas uma finalidade pedagógica: ao emular os elementos da
verdadeira improvisação, seria não mais que um “jogo” (Brisson, 2004, p. 58; Quirim, 2016,
p. 80). A invectiva de Alcidamante ter-se-ia colocado também como uma espécie de
autodefesa, talvez em resposta ao célebre Contra os sofistas (Κατά τῶν σοφιστῶν) de
Isócrates, que teria tido como alvo precisamente a obra de sofistas como Alcidamante555.
Ora, o que essas alusões nos podem indicar? Em primeiro lugar, que a sombra de
Isócrates já se faz sentir – embora o orador seja citado somente mais à frente, em 278e8,
na passagem que comentamos na última seção. Para L. Brisson, Platão parece evocar
argumentos de Alcidamante – nomeadamente: a associação entre escrita e pintura (275d),
entre escrita e jogo (276c-d) e a oposição entre discurso inerte e vivo (276a) – certamente
não para defender o mesmo ponto do sofista, i.e. a inferioridade do discurso escrito em
relação ao discurso improvisado e oral, ou para condenar ipso facto o estilo de Isócrates,
mas para pôr em relevo um tertium quid, a prática do lógos fundada em um tratamento
metódico, profundamente implicado com a exigência de uma psykhé que é motora do
processo de conhecimento e pode ser conduzida mediante um exercício adequado da
linguagem. Nas palavras de Brisson (2004):
555
Conforme comenta Brisson (2004, p. 58), a posição de Alcidamante seria, entretanto, uma causa perdida:
o estilo de Isócrates já havia se tornado um padrão e sua maneira de escrever já se impunha em outros
autores – mesmo em Platão. Tanto é assim, que Aristóteles, na Retórica (III, 3), tomará a posição ao lado de
Isócrates, contra Alcidamante.
556
Cf. “Mais il déplace le centre de gravité de sa critique de l'écriture, qui, chez Alcidamas et même chez
Isocrate, implique une attention au moment oportun (kairós) et donc la capacité à s'adapter à l'ocasion et à
profiter de la conjoncture, cède la place à la nécessité d'un discernement méthodique, fondé sur la pratique
de la dialectique, des genres d'âmes et des genres de discours (Phèdre 271c-277a, 277b-c)”.
324
– do kairós – mas de uma propensão psíquica, privativa dos humanos, de se porem em
marcha, em uma espécie de movimento de rememoração. Ademais, pensasse Platão tal
como Alcidamante – que simplesmente condenava os discursos escritos em favor de uma
oralidade improvisada –, não teria ele francamente representado, como vemos na
Apologia, o paradoxo dessa posição? De fato, o improviso de Sócrates naquela ocasião
mostrara-se francamente ineficaz na defesa de seu ponto de vista557.
Assim sendo, admitir que corresponderia à posição de Platão o argumento de
Alcidamante de que a escrita seria um jogo de menor importância, não somente implica
ignorar a sutileza do debate posto – e as diferentes vozes que se podem ouvir nas
entrelinhas –, mas também desconsiderar as relações entre essa passagem e as demais
partes do diálogo, e, em particular, toda a discussão precedente sobre a psykhagogía, sobre
a psykhé e sobre a anámnesis, conforme vimos nos capítulos anteriores. E isso sem falar
das reflexões que poderíamos encontrar, talvez, em outras obras centrais do corpus
Platonicum.
Concordamos com R. Burger (1980, p. 100), em vez disso, com o fato de que o Fedro
exige do leitor a quebra de uma ilusão: aquela que consistia em admitir que Platão,
embora representasse Sócrates como seu personagem principal no Fedro, estivesse
apresentando ipsis verbis a sua própria posição através das falas de seu mestre. Embora a
posição de Sócrates – o personagem, ao menos – possa de fato estar mais explícita no
texto; Platão, o “personagem invisível” nessa cena dramática, não necessariamente a teria
assumido para si, quando não seria o caso de tê-la deliberadamente subvertido558. Assim,
o contraste entre o caráter lúdico do Jardim de Adônis e a seriedade do plantio das
sementes no solo e estação adequados, que aparece na fala de Sócrates como uma
primeira oposição entre os jogos da escrita e uma prática mais séria da dialética (talvez
oral, para Sócrates), cederia lugar para uma outra e mais profunda distinção, agora de
557
Mesmo em outros diálogos, o insucesso das discussões entre Sócrates e os sofistas mostram que
simplesmente a oralidade improvisada não é o suficiente para a dialética, como, por exemplo, em diversas
ocasiões em que Sócrates abre mão de simplesmente perguntar – como discurso contido na parte final do
Górgias – e, mesmo assim, não logra persuadir seus interlocutores. A exigência da dialética, portanto, vai
muito além da discussão oral e improvisada.
558
Conforme comentamos no capítulo III, R. Burger (1980) argumenta no sentido de que, do mesmo modo
que a distância entre o que poderíamos considerar como método filosófico de Sócrates e o pensamento
filosófico maduro de Platão emerge sutilmente na estratégia platônica de deliberadamente se tornar
invisível nas imitações dramáticas dos diálogos; no diálogo entre Theuth e Thamos no Fedro, e nas
passagens que o seguem, o contraste entre Sócrates – o filósofo que, de fato, nada escreveu – e Platão – o
filósofo que, de fato, levou o gênero escrito do diálogo a complexidade antes não conhecida – estaria
representado na contraposição entre uma aparente condenação da escrita por Sócrates e a sutil defesa de
seu potencial filosófico por Platão.
325
interesse de Platão559, que repousaria, para Burger, na “oposição entre um lógos ilegítimo,
sem raízes, que é como uma pintura silenciosa, e o lógos dialético, falado ou escrito, cujas
raízes são plantadas na alma do aprendiz” (Burger, 1980, p. 121)560.
Nesse sentido, a manipulação que Platão faz dos diferentes recursos na sua escrita
– o uso das imagens, das alegorias, o emprego de símiles, a presença de polifonia, as
alusões, a polissemia etc., recursos linguísticos e literários a que fizemos menção em
diferentes momentos desta tese – se afiguraria também como uma espécie de jogo da
linguagem a serviço da filosofia ou em prol de uma escrita dialética. Sendo assim, como
é possível sustentar a incompatibilidade entre paidiá e spoudé, posição defendida por
Szlezák (2009) e Reale (2004)?
Para se defender a tese de que exista nesta passagem uma incompatibilidade entre
jogo, ou divertimento (παιδιά) e a seriedade da dialética (σπουδή), seria preciso,
retomando o paradigma apresentado, admitir que fosse também inconciliável a atividade
do lavrador que produz o “Jardim de Adônis” e aquele que cultiva o campo. Ora, na
passagem, Sócrates formula hipoteticamente a possibilidade de o lavrador sério cultivar
tais jardins, não havendo aí, necessariamente, uma interdição. O que parece ficar claro é
que, na hipótese de o lavrador cultivar os Jardins de Adônis, ele o deveria fazer como
“uma brincadeira”, não levando tal atividade a sério. Apenas o plantio adequado das
sementes, em se respeitando a época propícia e o tempo de cultivo correto, é que
mereceria sua maior atenção e “seriedade”. Não se trata, portanto, de uma antinomia,
mas de uma divisão.
Além disso, ao apresentar a imagem do “Jardim de Adônis”, Platão parece colocar
as duas atividades – o jogo e a seriedade – em uma relação mais complexa, não
propriamente de oposição. De fato, conforme explica Parker (2005, p. 283), os pequenos
jardins plantados em cestas ou em fragmentos de vasos de terracota destinavam-se a uso
ritual nas festas de Adônis, um festival em que as mulheres lamentavam a morte do
personagem mítico. Esses artefatos simbolizariam a morte prematura do jovem que,
segundo a mitologia, teria despertado o amor de Afrodite e, de acordo com diferentes
narrativas, teria sido morto por um javali selvagem, enquanto caçava na floresta, talvez
559
A necessidade de reconhecer uma distinção entre o que se diz nas falas de Sócrates e o pensamento de
Platão – a que os comentadores da Escola de Tübingen-Milão não atentam – é também reconhecida por G.
Ferrari (1990, p. 213) que, embora não subscreva a posição de Burger (1980), por ele mesmo rebatida, afirma,
por exemplo, que: “Certainly, when we take these points of presentation into account we see that an extreme
interpretation of Socrates’ words, which would strictly confine the effects he describes according to
mechanical boundaries of format, is not a plausible reading of Plato’s intent”.
560
Cf. “the opposition between the rootless, ilegitimate lógos which is like a silent painting and the dialectic
logos, spoken or written, whose roots are planted in the soul of the learner”.
326
por vingança de Ártemis (Howatson, 2005, p. 6). Ora, por que Sócrates, já anteriormente
alertado pelo seu daímon da impiedade em que outrora incorrera contra Éros (Phdr. 242b8-
d2), se colocaria novamente contra uma divindade, posicionando-se contra um ritual que,
ademais, celebrava justamente o amor? Não nos parece plausível, portanto, que nessa
passagem Platão proponha uma visão negativa dessa prática. Assim sendo, o jogo – o
cultivo do Jardim de Adônis – não somente mereceria ser respeitado, dentro de sua
dignidade ritualística, como poderia também ser o símbolo da relação entre homens e
deuses, tendo Éros como elemento comum.
Do mesmo modo, se estendemos tais reflexões ao segundo paradigma – o do
jardim das letras (276d: ἐν γράμμασι κήπους) –, vemos não uma antinomia entre, de um
lado, o “escrever em água” (276c7: ἐν ὕδατι γράψει), i.e. a escrita por diversão ou
brincadeira (παιδιά) – ainda que ela pudesse render frutos muito belos, como os discursos
sobre a justiça – e, por outro lado, a dialética, i.e. a prática “que planta e semeia discursos
com ciência” (276e6-7: φυτεύῃ τε καὶ σπείρῃ μετ’ ἐπιστήμης λόγους). Em suma, o que
temos aqui, exatamente como no caso da lavoura, é uma vez mais a apresentação do
exercício dialético da divisão e reunião, exatamente como vimos acerca da contraposição
entre os dois discursos proferidos por Sócrates. Ou seja, o conhecimento – aqui, no caso,
da “bela escrita” – não emerge da proposição particular contida em cada um dos
membros dessa divisão, mas assoma como o efeito do próprio exercício de dividir e
reunir. Assim sendo, a escrita dialética não emerge na passagem senão como o resultado
desse esforço: a despeito das inegáveis limitações da linguagem, e da escrita, em
particular, é como se Platão nos convidasse a nos engajarmos nessa prática de divisão e
reunião, um trabalho sério e difícil (σπουδή), mas cuja recompensa é de uma beleza
superior (καλλίων): compreender a própria dialética e, portanto, tornar-se apto a ser
filósofo.
Em outras palavras, como bem mostrou A. Cotton (2014, p. 4 et seq.), esse constante
movimento dialético, que podemos identificar na malha do texto de Platão desde que não
o reduzamos a signos que transmitem uma doutrina fechada, é paradigmático do próprio
filosofar. Por intermédio desse paradigma, como sustenta a estudiosa, os diálogos de
Platão “nos encorajam a nos engajarmos neles por nós mesmos, e apontam adiante para
um filosofar ativo, além dos limites do texto”561. Concordamos com Cotton (2014, p. 7) que
“parece claro que a passagem foi projetada para nos parecer perturbadora e desencadear
561
Cf. “they encourage us to engage in it for ourselves, pointing towards further active philosophizing
beyond the confines of the text”.
327
em nós um processo de reflexão sobre as questões que ela levanta.”562
562
Cf. “it seems clear that the passage is designed to strike us as troubling, and to trigger in us a process of
reflection about the issues it raises (…)”.
563
Cf. {ΣΩ.} Ὧν δὴ πέρι βουληθέντες ἰδεῖν ἀφικόμεθα εἰς τόδε, ὅπως τὸ Λυσίου τε ὄνειδος ἐξετάσαιμεν τῆς
τῶν λόγων γραφῆς πέρι, καὶ αὐτοὺς τοὺς λόγους οἳ τέχνῃ καὶ ἄνευ τέχνης γράφοιντο. τὸ μὲν οὖν
ἔντεχνον καὶ μὴ δοκεῖ μοι δεδηλῶσθαι μετρίως.
{ΦΑΙ.} Ἔδοξέ γε δή· πάλιν δὲ ὑπόμνησόν με πῶς.
328
Esse breve adendo final na fala de Sócrates acentuava a potência de a filosofia
tornar feliz (εὐδαιμονεῖν) a vida daqueles que a cultivam – uma preocupação, diga-se de
passagem, jamais ausente do fazer filosófico no mundo antigo564. Ao mesmo tempo,
sublinhava o caráter relativo dessa potência, isto é, o cultivo da dialética conduz a um
estado de felicidade limitado ao “quanto é possível a um ser humano” (εἰς ὅσον ἀνθρώπῳ
δυνατὸν). Portanto, do mesmo modo que competiria aos mortais o engajar-se na busca
filosófica, o resultado desse caminho em termos de um “tornar-se feliz” (εὐδαιμονεῖν)
pareceria conformar-se à condição humana. Isso parece remeter àquela distinção
filosófica que comentamos antes, e que subjaz a reflexão presente em todo o diálogo: a
distinção entre o estatuto da sophía – divina, “hiperurânia”, ligada a uma visão plena e
absoluta das Formas, sem intermediários – e da philo-sophía – uma atividade humana, um
movimento psíquico de rememoração (ἀνάμνησις), para o qual se tornam necessários
expedientes intermediários, tais como um método – a dialética – e paradigmas – como a
escrita, essa forma de oferecer uma “lembrança” (ὑπόμνησις). De fato, como Sócrates
afirma mais à frente, chamar de sábio (σοφός) quem maneja com excelência o lógos
“parece ser algo grande demais, somente conveniente a um deus” (278d3-4: μέγα εἶναι
δοκεῖ καὶ θεῷ μόνῳ πρέπειν).
Na prática, em que consistiria a atividade filosófica à altura (ou no limite) do
gênero humano? Em que consistiria produzir um discurso “com arte”? De fato, uma
condição para esse tipo de lógos fora oferecida em 273d8-e4:
se alguém não enumerar as naturezas dos que vão ouvi-lo, se não for
capaz de dividir os seres por formas e compreender com uma única ideia
de acordo com cada um deles, jamais será hábil em discursos à altura do
possível ao ser humano565.
(Phdr. 273d8-e4, grifos nossos)
564
De fato, conforme defende P. Hadot (2014), a filosofia antiga é, sobretudo, “um modo de vida”, que
pressupõe uma opção existencial, a busca por uma vida comunitária e o desenvolvimento de um discurso
teórico a partir dessa visão de mundo, que tem em vista à sabedoria (σοφία) e, como consequência dela, a
felicidade (εὐδαιμονία).
565
Tradução Reis (2016), com modificações, cf. ἐὰν μή τις τῶν τε ἀκουσομένων τὰς φύσεις διαριθμήσηται,
καὶ κατ' εἴδη τε διαιρεῖσθαι τὰ ὄντα καὶ μιᾷ ἰδέᾳ δυνατὸς ᾖ καθ' ἓν ἕκαστον περιλαμβάνειν, οὔ ποτ' ἔσται
τεχνικὸς λόγων πέρι καθ' ὅσον δυνατὸν ἀνθρώπῳ.
329
περιλαμβάνειν). Tais se colocam como condições – explícitas pelo período hipotético
introduzido pela conjunção ἐαν – para alguém lograr se tornar um tekhnikós lógon, i.e.
alguém capaz de produzir um discurso verdadeiramente artístico. Ora, conforme vimos,
tais operações descrevem a dialética conforme definida no Fedro566 e as operações de
divisão e reunião descritas na passagem são requisitos para um “saber enumerar”
(διαριθμήσηται), o que, por sua vez, implica distinguir as naturezas daqueles que ouvem
o discurso (τῶν τε ἀκουσομένων τὰς φύσεις).
Já estaria claro a Sócrates, portanto, que o discurso artístico (τεχνικὸς λόγος)
deveria levar em conta aqueles que o ouvem. Assim, ele não poderia prescindir de uma
flexibilidade e mobilidade tais, de modo a fazer jus às diferentes psykhaí daqueles que o
recebem. Ou seja, se é verdade que há diferentes naturezas de ouvintes e se é preciso
distingui-las, seria igualmente forçoso que o lógos a eles direcionado desse conta dessas
diversas formas de recepção. Compreende-se, então, por que um discurso que, como uma
pintura, se limitasse somente a responder o mesmo – e não a dialogar – só poderia estar
aquém dessa exigência fundamental.
Além disso, tal exigência implicaria tanto um modo particular de expressão – uma
modalidade específica de performance dos lógoi, de modo a serem “frutíferos”, capazes de
produzirem outros discursos (Phdr. 276e4-277a4) –, quanto o conhecimento a ele associado
– um conhecimento pertinente à natureza da alma humana, para o que a palinódia e a
alegoria da alma como biga alada antes apresentadas revelam-se novamente fecundas
para essa reflexão567. Assim, parece-nos ser esse o ponto que Sócrates revela ter
finalmente alcançado e que, instado por Fedro, será objeto de uma nova reflexão.
Vejamos o que ele diz:
566
Conforme comentamos no capítulo II, acerca da passagem: “Reunir em uma única ideia coisas dispersas
aqui e ali, abarcando-as numa visão de conjunto, a fim de tornar evidente, definindo cada coisa, aquilo em
que cada caso pretende ensinar. Tal como agora mesmo a respeito de Éros – quando definido o que é –,
esteja bem ou mal enunciado, o discurso teve como dizer graças a isso algo ao menos claro e coerente
consigo mesmo” (Phdr. 265d3-7, cf. Εἰς μίαν τε ἰδέαν συνορῶντα ἄγειν τὰ πολλαχῇ διεσπαρμένα, ἵνα
ἕκαστον ὁριζόμενος δῆλον ποιῇ περὶ οὗ ἂν ἀεὶ διδάσκειν ἐθέλῃ. ὥσπερ τὰ νυνδὴ περὶ Ἔρωτος – ὃ ἔστιν
ὁρισθέν – εἴτ' εὖ εἴτε κακῶς ἐλέχθη, τὸ γοῦν σαφὲς καὶ τὸ αὐτὸ αὑτῷ ὁμολογούμενον διὰ ταῦτα ἔσχεν
εἰπεῖν ὁ λόγος.)
567
Fato que desafia a perplexidade dos comentadores que indicam problemas quanto à unidade do Fedro
(conforme vimos na Parte α᾽). Parece-nos bastante claro que o núcleo ontológico da “palinódia” descreve o
tipo de ciência fundamental que se requer dos que sabem manejar os discursos com arte. Assim, as duas
partes do diálogo não se podem dissociar.
330
discurso adequado a cada natureza, componha e ordene assim o
discurso, oferecendo à alma variegada discurso variegado e em tudo
harmonizado a ela e discurso simples à alma simples, antes disso ele não
será capaz de manejar com arte o gênero dos discursos e à altura do que
concede a natureza, nem em vista de ensinar, nem em vista de persuadir
alguém, como o argumento anterior inteiro deixou claro para nós568.
(Phdr. 277b5-c6)
568
Cf. {ΣΩ.} Πρὶν ἄν τις τό τε ἀληθὲς ἑκάστων εἰδῇ πέρι ὧν λέγει ἢ γράφει, κατ' αὐτό τε πᾶν ὁρίζεσθαι
δυνατὸς γένηται, ὁρισάμενός τε πάλιν κατ' εἴδη μέχρι τοῦ ἀτμήτου τέμνειν ἐπιστηθῇ, περί τε ψυχῆς φύσεως
διιδὼν κατὰ ταὐτά, τὸ προσαρμόττον ἑκάστῃ φύσει εἶδος ἀνευρίσκων, οὕτω τιθῇ καὶ διακοσμῇ τὸν λόγον,
ποικίλῃ μὲν ποικίλους ψυχῇ καὶ παναρμονίους διδοὺς λόγους, ἁπλοῦς δὲ ἁπλῇ, οὐ πρότερον δυνατὸν τέχνῃ
ἔσεσθαι καθ' ὅσον πέφυκε μεταχειρισθῆναι τὸ λόγων γένος, οὔτε τι πρὸς τὸ διδάξαι οὔτε τι πρὸς τὸ πεῖσαι,
ὡς ὁ ἔμπροσθεν πᾶς μεμήνυκεν ἡμῖν λόγος.
331
passagem569. A propósito desse lógos, a passagem alude: ao seu efeito (o de produzir o
conhecimento verdadeiro e gerar persuasão); à sua característica flexível e móvel (é capaz
de se moldar aos diferentes enquadres comunicativos, estando igualmente apto a
diferentes ouvintes); ao fato de pressupor uma ciência (o discernimento dos diferentes
tipos de alma); ao seu procedimento metodológico (ser capaz de oferecer definição e
proceder a divisões e reunião) e, finalmente, à sua condição de instância prática
preliminar ao conhecimento da verdade, isto é, à sua excelência enquanto método
filosófico.
A propósito do seu procedimento metodológico, requisita-se daquele que
pretende tornar-se um tekhnikós logõn, que seja capaz de manejar o discurso com arte, que
proceda a divisões até o indivisível (μέχρι τοῦ ἀτμήτου), isto é, que se engaje em um
processo reflexivo orientado por um esforço analítico que culmina com a identificação
dos “elementos menores”, para, em seguida, ser capaz de compor (τιθέναι) e ordenar
(διακοσμεῖν) o lógos. Em se considerando a convergência temática entre o Fedro e o Político
no que diz respeito à determinação da prática da dialética, a observação que aqui se faz
parece representar uma formulação mais condensada que aquela explicitada no
paradigma das letras do Político (277d1-278d6).
Tal como é o caso nessa passagem do Fedro, o objetivo no Político é o de clarificar
em que consiste a “ciência” (ἐπιστήμη) da dialética, para o que se recorre ao paradigma
das letras. Ao se aludir a uma experiência cultural específica – o ato de ler e escrever –
afigurava-se naquele diálogo uma imagem para o processo intelectual de divisão até o
elemento mínimo – no caso do aprender a ler, as letras –, etapa que permitiria, na
sequência, produzir combinações diversas, mas não aleatórias, a fim de produzir sílabas
e palavras com significado. Assim, figurava-se o processo experimentado pela psykhé no
ato de aprender como algo análogo ao processo alfabético de aquisição da capacidade de
leitura e escrita. Sem que o aprendiz conhecesse de antemão os elementos menores, ele
não seria capaz de reconhecer combinações “nas sílabas maiores e mais difíceis das
coisas” (Plt. 278d4-5: εἰς τὰς τῶν πραγμάτων μακρὰς καὶ μὴ ῥᾳδίους συλλαβὰς).
Admitindo-se uma aproximação entre esses dois diálogos no que diz a tal
caracterização do lógos, perguntamos: seria possível pensar, enfim, que o lógos dialético
de Platão – ao menos como consignado no Fedro e no Político – seria de certo modo
569
Conforme comenta Trabattoni (1993, p. 22), “Anche qui si può notare che il discorso scritto e quello orale
sono messi esatamente sulo stesso piano e accomunati dalla medesima critica. Né se deve credere che
questo motivo abbia un rilievo solo episodico. Esso in effetti no fa che riprendere nei medesimi termini il
programma enunciato nel Fedro al momento di introdurre il tema della scrittura (260d)”.
332
gramatical, isto é, consistiria em uma forma de pensar pautada por divisões e reuniões de
ordem “alfabética”? Se admitimos uma resposta positiva para essa questão, parece ser
possível então corroborar uma vez mais a tese de que a escrita – tal como tematizada no
Fedro – corresponda a algo mais que a resposta de Platão ao debate sobre as
consequências sociais da adesão generalizada à tecnologia alfabética nas diversas
práticas discursivas de seu tempo. A tematização das letras no Fedro não se restringiria a
mero testemunho histórico, e, menos ainda, a uma tomada de posição, mas seria produto
de um sofisticado trabalho de composição do próprio diálogo, mais uma evidência da
performance da dialética, mais uma amostra desse lógos poikílos do qual Platão é mestre.
O recurso às letras do alfabeto se encontra presente em diversos diálogos de
Platão, e é mobilizado por vezes na abordagem de problemas filosóficos bastante
específicos570. Estudiosos como G. Ryle (1960), D. Gallop (1963), T.-A. Druart (1975) e C.
Gaudin (1990) se ocuparam particularmente desse tema, revelaram que o modo como
Platão se refere às letras nesses diversos contextos parece indicar a existência de uma
preocupação filosófica relacionada à elaboração de uma espécie de “ciência dos
elementos” (Stoicheïologie). Com efeito, a referência às letras nos diálogos representaria
mais do que um modo de abordar uma experiência cultural – consignada, conforme
vimos, na experiência do aprendizado da leitura (como vimos no Político), na relação entre
escrita e conhecimento (como vimos no Fedro) ou na autoridade “filosófica” que confere a
escrita de uma obra (como vimos na Carta 7). O recurso às letras, seja em sua dimensão
propriamente fonética (στοιχεῖα) ou gráfico/fonética (γράμματα)571 revelar-se-ia o
expediente filosófico do qual Platão teria lançado mão para figurar um modelo de
compreensão da realidade. Conforme comentava T.-A. Druart (1975), o intuito seria o de
elaborar
570
Conforme nos indica D. Gallop (1963), a imagem do aprendizado das letras aparece ao menos nos
seguintes contextos ao longo da obra de Platão: 1. no Protágoras (325e), durante uma descrição da educação
tradicional grega, o aprendizado das letras é mencionado como etapa anterior à leitura dos poetas; 2. no
Eutidemo (277a), menciona-se que quando um professor “dita as letras”, somente um garoto que “conhece as
letras” é capaz de copiá-las; na República (402a-c), Sócrates compara as Formas com as letras; 3. no Teeteto,
Platão emprega o termo “conhecer as letras” (163b, 199a), “aprender as letras” (203a, 206a, 207d); 4. no Sofista
(253a), o Estrangeiro de Eleia afirma que algumas das letras combinam entre si, enquanto outras não; 5. no
Político (277c-278d), letras e sílabas tomadas na noção de paradigma; 6. no Filebo (17-18) letras tomadas como
paradigmas para o método da divisão; 7. no Crátilo (várias passagens), letras tomadas como o próprio objeto
da discussão.
571
Conforme observa G. Ryle (1960, p. 433), “I hope to show (a) that Plato uses stoicheion nearly uniformly for
‘phonetic element’, though in Theaetetus (206a) stoicheia are both things uttered and things written; (b) that
Plato uses grammata quite impartially for phonetic elements and for characters”.
333
a partir das letras fornece um paradigma, isto é, um modelo, da
passagem do finito ao infinito, do múltiplo ao infinito572.
(Druart, 1975, p. 262)
Segundo Druart (id., p. 250 et seq.), a excelência do paradigma das letras residiria
no fato de que o alfabeto colocaria à disposição dos ouvidos (e dos olhos,
acrescentaríamos) uma heterogeneidade de elementos que, uma vez submetidos a leis de
associação rigorosas, engendraria um conjunto homogêneo, que corresponderia mais ou
menos ao sistema fonético/fonológico da língua. A chave da “estoiqueologia” platônica
seria não somente determinar quais seriam tais “constituintes menores” e suas
propriedades, mas também as formas de combinação de tais elementos na constituição
de todas as coisas. Analisando a imagem da “carruagem de Hesíodo” na parte final do
Teeteto (206a-208c), a estudiosa observa, por exemplo, que, para a determinação da
natureza desse objeto, não bastaria saber descrever as suas partes constitutivas – as cem
peças da carruagem – , mas igualmente seria necessário compreender os modos de
arranjo dessas partes. Também C. Gaudin (1990, p. 158) diz algo parecido, ao afirmar que
“uma definição não seria somente uma fórmula a designar uma coisa, mas ela tende a
dizer a conexão que explica a articulação de suas partes”573. Tratar-se-ia, portanto, de um
modelo que levaria em conta não somente as unidades propriamente ditas (os elementos,
as letras), mas também a pluralidade ordenada dessas unidades (as composições, em
sílabas e palavras). Talvez por isso, tal modelo se presta tão bem quando se trata de
compreender as relações que permitem operar divisões e reuniões, mostrando que elas
não têm nada de arbitrárias. Como fica claro no Fedro (265e1-3), seria preciso ser capaz de
separar (διατέμνειν) segundo “as articulações naturais” (κατ’ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν) e não
“despedaçar ao modo de um mau açougueiro” (καταγνύναι…κακοῦ μαγείρου τρόπῳ
χρώμενον).
Enfim, ao reconhecer a existência de um modelo subjacente à reflexão sobre as
letras em Platão, parece ser possível associá-lo também à passagem do Fedro citada acima.
De fato, caracterizava-se o lógos dialético pelo esforço de definir (ὁρίζεσθαι), e se associava
tal esforço às operações de dividir o objeto em seus elementos mínimos, indivisíveis
(τέμνειν…μέχρι τοῦ ἀτμήτου), e, após isso, recompô-lo (τιθέναι) e ordená-lo (διακοσμεῖν).
572
Cf. “Cette stoicheïologie élabore un schéma d'intelligibilité de la réalité par le biais de la «comparaison
des lettres ». Celle-ci qui étudie la constitution des syllabes à partir des lettres fournit un paradigme, c'est-
à-dire un modèle de compréhension du passage du fini à l'infini et enfin de l'un au multiple et à l'infini”.
573
Cf. “Une définition n'est pas seulement une formule qui désigne une chose mais elle tend à dire le lien
qui rend raison de l'assemblage des parties”.
334
Fica evidente, portanto, que essa propriedade do lógos dialético de operar movimentos de
análise e síntese é análogo ao processo de reconhecer as letras e combiná-las formando
palavras. Assim como no campo da linguagem seria a correta compreensão das letras e de
suas combinações que permitiria distinguir entre, digamos, um termo significativo na
língua – lama, por exemplo – de outro que, apesar de constituído dos mesmos elementos,
não possui significado – como amla –, ou mesmo distinguir termos significativos apenas a
partir de seus elementos sonoros mínimos – lama e cama, por exemplo –, ou, contendo os
mesmos elementos, distingui-los apenas pela sua ordem – lama, alma, mala etc. –; no
campo da pesquisa filosófica seria também necessário aferir tais distinções; seria preciso,
em suma, conhecer uma espécie de “gramática das coisas”. Ou seja, para aferir distinções
entre as coisas e com isso obter a compreensão e a clareza acerca de cada uma, seria
necessário conhecer suas partes e seus modos de reunião, para, somente assim, ser capaz
de “discernir precisamente a semelhança e dessemelhança das coisas que existem” (Phdr.
262a6-7: τὴν ὁμοιότητα τῶν ὄντων καὶ ἀνομοιότητα ἀκριβῶς διειδέναι). O efeito desse
procedimento de natureza “gramatical” é, como na linguagem, o de aferir distinções e
reconhecer diferenças para, então, conceber uma totalidade, tarefa em que o discurso de
Lísias fracassou (262c-266c).
Assim, o debate sobre a escrita no Fedro – especialmente aquele configurado na
querela entre Isócrates e os sofistas – poderia ser pensado como a proposição de um
paradigma, um modo de Platão indicar algo para além dessa questão em si mesma, de
mostrar coisas maiores recorrendo a uma figuração574. Desse modo, Platão parece ter se
debruçado sobre o universo imagético que a questão da escrita evocava não tanto para
comentá-la per se, mas para fazer ver, indicar (δείκνυσθαί) algo próximo a ela (παρά). Na
passagem do Político examinada no capítulo anterior, a recorrência ao paradigma viera
em socorro de um erro detectado na pesquisa; de modo análogo, também no Fedro o mito
de Theuth e as considerações em torno da escrita parecem evitar um equívoco, aquele de
considerar a linguagem – não somente a escrita – como um substituto do conhecimento,
“um remédio para a memória e para a sabedoria” (Phdr. 274e6: μνήμης τε γὰρ καὶ σοφίας
φάρμακον). Assim como o Estrangeiro de Eleia afirmava no Político que, sem o uso de um
paradigma, os dialogantes corriam o risco de “saber como em sonho (Plt. 277d3: οἷον ὄναρ
εἰδὼς), embora acordados fossem ignorantes (Plt. 277d4: 277d3-4: ὕπαρ ἀγνοεῖν)”; também
no Fedro, por intermédio do paradigma da escrita, Platão estaria advertindo os seus
574
Conforme explicaria o Estrangeiro de Eleia, no Político, 277d1-2: “É difícil mostrar algo maior
suficientemente sem fazer uso de um paradigma” (Cf. Χαλεπόν, ὦ δαιμόνιε, μὴ παραδείγμασι χρώμενον
ἱκανῶς ἐνδείκνυσθαί τι τῶν μειζόνων.)
335
interlocutores do risco de “ser ignorante em sonho ou acordado” (Phdr. 277d10: τὸ γὰρ
ἀγνοεῖν ὕπαρ τε καὶ ὄναρ).
Não nos demoraremos repetindo os comentários apresentados nos capítulos
anteriores, mas é válido destacar uma vez mais que essa descrição do lógos produzido com
arte, conforme vemos retratada na passagem citada no início desta seção (Phdr. 277b5-c6),
parece se inscrever no Fedro como um corolário descritivo daquela experiência discursiva
que foi materializada nos dois discursos proferidos por Sócrates575. Finalmente, julgamos
ainda pertinente oferecer uma breve nota sobre o estilo com que essa descrição é
apresentada, o qual parece refletir, de certo modo, as observações contidas nela própria
sobre a forma do lógos dialético. Vejamos.
Nesta passagem afirma-se que o lógos provido de arte caracteriza-se por ser
“panarmônico” (παναρμόνιος, “que possui todas as harmonias musicais”), o que evoca
sua capacidade de se metamorfosear segundo as características da alma daqueles que o
recebem, tornando-se adequado a diferentes perfis de ouvintes. Disso resulta que a
simplicidade ou a complexidade psíquica das pessoas engajadas no ato dialético implica
também diferentes graus de simplicidade ou complexidade na recepção do discurso.
Assim, a admissão de diferentes formas (de recepção) do discurso, estando cada uma de
acordo com as diferentes formas de almas, contraria a tese segundo a qual Platão teria se
posicionado contrariamente à escrita porque não teria confiado que todos os leitores
fossem capazes de compreender adequadamente o texto escrito576.
Todavia, a passagem em questão, talvez uma das mais complexas do diálogo do
ponto de vista filosófico, revela-se igualmente complexa do ponto de vista formal. Em
comentário à passagem, H. Yunis (2014, p. 236) nota que:
575
Mostramos no capítulo II como a definição de dialética oferecida no Fedro (265d3-7; 266b3-c9), como o
procedimento de divisão (διαίρεσις) e reunião (συναγωγή), espelhava também a prática discursiva presente
ao longo de todo o diálogo. Assim sendo, o Fedro não somente pode ser visto como um dos diálogos
metadialéticos do corpus Platonicum como seria evidência privilegiada de uma performance da dialética, o
que também reforçaria a perspectiva hermenêutica adotada, segundo a qual não se deve prescindir da
forma na análise do conteúdo da obra de Platão.
576
Conforme escreve Trabattoni (1993, p. 68): “rimane così confermato che la diffidenza verso il discorso
scritto non deriva da un rifiuto antiiluministico della divulgazione. Platone riconosce che esistono anime
semplici, cui è possibile e conveniente fare discorse semplici. Il problema dello scritto consiste piuttosto
nella sua incapacità di armonizzare anime e discorsi”.
336
ἁπλῇ). As rimas in –ους e -ῃ são impressionantes. O efeito evoca a arte
do falante de associar os discursos às almas577.
(Yunis, 2014, p. 236)
577
Cf. The μέν clause unfolds gradually, the δέ clause completes the thought with punch, and the whole is
phrased in lively, artificial word order: ABAB interlacing (ποικίλῃ μὲν ποικίλους ψυχῇ…λόγους), AABB
polyptoton (same words, different cases: ποικίλῃ μὲν ποικίλους…ἁπλοῦς δὲ ἁπλῇ), ABBA homoioptoton
(different words, same cases: ποικίλῃ μὲν ποικίλους…ἁπλοῦς δὲ ἁπλῇ). The rhymes in -ους and -ῃ are
striking. The effect evokes the speaker artistry in matching discourses and souls.
578
Cf. ὅταν τις τῇ διαλεκτικῇ τέχνῃ χρώμενος, λαβὼν ψυχὴν προσήκουσαν, φυτεύῃ τε καὶ σπείρῃ μετ'
ἐπιστήμης λόγους.
579
Nesse sentido, mesmo que Platão, conforme vimos no item anterior, faça Sócrates retomar os
argumentos de Alcidamante contra a escrita, a conclusão jamais poderia ser a de subscrever a posição
desse sofista, o qual, afinal, condenava a influência da escrita nos discursos, em prol de uma improvisação
próxima à oralidade (Cf. Brisson, 2004, p. 58; Quirim, 2016, p. 80).
580
Hackforth (1997, p. 164) comenta que essa passagem se aproxima da fala de Diotima no Banquete
(especialmente entre 249a1-4): “Although the language of our present passage is less erotic, the words
ὅταν…λαβὼν ψυχὴν προσήκουσαν, φυτεύῃ τε καὶ σπείρῃ μετ' ἐπιστήμης λόγους mean just the same as
παιδεραστήσαντος μετὰ φιλοσοφίας (249a). And when we see this, we see also that this discussion of the
merits and defects of writing is no extraneous appendage to the main theme of the dialogue”.
337
discernir a natureza das almas (277b8: περί τε ψυχῆς φύσεως διιδὼν) e descobrir um tipo
discurso adequado a cada natureza (277c1: προσαρμόττον ἑκάστῃ φύσει εἶδος
ἀνευρίσκων) são condições para que o lógos efetivamente atinja os seus interlocutores,
fica claro que o domínio dessa técnica se impõe ao candidato a filósofo.
581
O uso do mesmo paradigma tanto para a configuração do lógos dialético, materializado na escrita de
Platão, quanto para a caracterização do lógos retórico, de que os discursos de Lísias (e de Isócrates) seriam
exemplares, parece ainda confirmar aquela observação de Sócrates de que “escrever discursos não seria
em si mesmo algo vergonhoso” (258d1-2: οὐκ αἰσχρὸν αὐτό γε τὸ γράφειν λόγους).
582
Cf. τὸ μὴ καλῶς λέγειντε καὶ γράφειν ἀλλ' αἰσχρῶς τε καὶ κακῶς.
583
Cf. {ΣΩ.} Ὡς εἴτε Λυσίας ἤ τις ἄλλος πώποτε ἔγραψεν ἢ γράψει ἰδίᾳ ἢ δημοσίᾳ νόμους τιθείς, σύγγραμμα
πολιτικὸν γράφων καὶ μεγάλην τινὰ ἐν αὐτῷ βεβαιότητα ἡγούμενος καὶ σαφήνειαν, οὕτω μὲν ὄνειδος τῷ
γράφοντι, εἴτε τίς φησιν εἴτε μή· τὸ γὰρ ἀγνοεῖν ὕπαρ τε καὶ ὄναρ δικαίων καὶ ἀδίκων πέρι καὶ κακῶν καὶ
ἀγαθῶν οὐκ ἐκφεύγει τῇ ἀληθείᾳ μὴ οὐκ ἐπονείδιστον εἶναι, οὐδὲ ἂν ὁ πᾶς ὄχλος αὐτὸ ἐπαινέσῃ.
338
A passagem acima caracteriza um modo específico de escrever e uma
correspondente atitude acerca desse tipo de escrita. Do ponto de vista da forma, trata-se
de um tratado político (σύγγραμμα πολιτικὸν)584. O termo sýngramma remete a um tipo
de composição em prosa, que tem pretensão de sistematicidade, e se opõe, como nos
indica o LSJ, a hypónema. Conforme destacamos no capítulo IV, a crítica de Platão
consignada no mito de Theuth incidia exatamente sobre a perspectiva de se ver a escrita
como uma sistematização do conhecimento, como uma espécie de substituto gráfico do
saber, ao se lhe atribuir, entre outras, a faculdade de, por si mesma, tornar os homens mais
sábios. Naquela ocasião, vimos que, no entrelugar entre a opinião do inventor da escrita
– Theuth –, e aquela de quem ela fora oferecida como um presente – o rei Thamos –, a
escrita, na sua dimensão hyponemática, poderia ser vista como um intermediário entre o
não-conhecer e o conhecer, uma imagem, certamente, mas também um paradigma à
disposição do filósofo. É nesse sentido, aliás, que Fedro, na passagem citada na última
seção (Phdr. 277a9-b4), solicitara a Sócrates que lhe “lembrasse” mais uma vez da
conclusão a que teriam chegado a respeito do discurso produzido com arte: “Mas faz com
que eu me lembre mais uma vez” (Ἔδοξέ γε δή· πάλιν δὲ ὑπόμνησόν με πῶς). A resposta
desse pedido é uma fala de Sócrates, mas, conforme vimos, é também a demonstração da
forma de escrever de Platão. Uma escrita hyponemática, não um tratado.
Assim, mantendo coerência com aquela passagem, temos que admitir que fala de
Sócrates se refira aqui não a toda forma de escrita, mas àquela que tem a pretensão de ser
um “tratado” (σύγγραμμα), sem contudo ser capaz de aferir distinções (entre o justo e o
injusto, o bom e o mau). Um lógos desse gênero poderia mesmo suscitar o elogio de uma
multidão (277e2-3: ὁ πᾶς ὄχλος αὐτὸ ἐπαινέσῃ) – tal era a celebridade dos sofistas e
oradores, qual era o encantamento de Fedro pelo discurso de Lísias no início do diálogo
–, porém, sua forma seria incompatível com as exigências postas para o lógos dialético, e,
sendo assim, tal gênero de discurso não se revelaria persuasivo e tampouco capaz de
chegar à verdade, uma vez que ele não poderia oferecer qualquer certeza (βεβαιότης) ou
clareza (σαφήνεια).
Sócrates apresenta, então, uma espécie de conclusão, na qual vemos confrontadas
as características do primeiro tipo de lógos às do segundo:
584
A referência é um exemplo do tipo de linguagem usada por oradores como Lísias. Conforme anota Yunis
(2014, p. 237), “making laws, [thereby] writing a political composition: ‘making laws’ is an instance of the larger
category of writing a political composition (257e1-258c9, 278c3-4), which would also include the products of
forensic speechwriters like Lysias”.
339
SÓCRATES: Quem considera que há necessariamente muito de diversão
em um discurso escrito sobre qualquer tema, que nenhum discurso em
verso ou em prosa digno de muita seriedade jamais foi escrito ou mesmo
proferido como os de rapsodos proferidos para persuadir sem exame ou
ensinamento, e que o melhor deles vem a ser realmente um meio de
recordar de quem sabe; e que clareza e perfeição digna de seriedade, por
outro lado, existem somente nos que tratam do que é justo, belo e bom,
ensinados e proferidos graças à instrução e realmente escritos na alma,
e que tais discursos devem ser tratados como seus filhos legítimos –
primeiro o que está nele e se lá for descoberto; depois, qualquer rebento
e irmão desse que ao mesmo tempo tenha crescido em outras almas de
outros indivíduos e de acordo com o seu mérito; e que se deve dar adeus
aos demais –, eis sem dúvida o homem, Fedro, cuja natureza é tal como
aquela que eu e tu fizemos voto de nos tornar585.
(Phdr. 277e5-b4)
585
Cf. {ΣΩ.} Ὁ δέ γε ἐν μὲν τῷ γεγραμμένῳ λόγῳ περὶ ἑκάστου παιδιάν τε ἡγούμενος πολλὴν ἀναγκαῖον
εἶναι, καὶ οὐδένα πώποτε λόγον ἐν μέτρῳ οὐδ' ἄνευ μέτρου μεγάλης ἄξιον σπουδῆς γραφῆναι, οὐδὲ
λεχθῆναι ὡς οἱ ῥαψῳδούμενοι ἄνευ ἀνακρίσεως καὶ διδαχῆς πειθοῦς ἕνεκα ἐλέχθησαν, ἀλλὰ τῷ ὄντι αὐτῶν
τοὺς βελτίστους εἰδότων ὑπόμνησιν γεγονέναι, ἐν δὲ τοῖς διδασκομένοις καὶ μαθήσεως χάριν λεγομένοις
καὶ τῷ ὄντι γραφομένοις ἐν ψυχῇ περὶ δικαίων τε καὶ καλῶν καὶ ἀγαθῶν [ἐν] μόνοις ἡγούμενος τό τε
ἐναργὲς εἶναι καὶ τέλεον καὶ ἄξιον σπουδῆς· δεῖν δὲ τοὺς τοιούτους λόγους αὑτοῦ λέγεσθαι οἷον ὑεῖς
γνησίους εἶναι, πρῶτον μὲν τὸν ἐν αὑτῷ, ἐὰν εὑρεθεὶς ἐνῇ, ἔπειτα εἴ τινες τούτου ἔκγονοί τε καὶ ἀδελφοὶ
ἅμα ἐν ἄλλαισιν ἄλλων ψυχαῖς κατ' ἀξίαν ἐνέφυσαν· τοὺς δὲ ἄλλους χαίρειν ἐῶν – οὗτος δὲ ὁ τοιοῦτος ἀνὴρ
κινδυνεύει, ὦ Φαῖδρε, εἶναι οἷον ἐγώ τε καὶ σὺ εὐξαίμεθ'ἂν σέ τε καὶ ἐμὲ γενέσθαι.
586
Cf. Perine (2014, p. 93): “Dito de outro modo, a diferença fundamental entre o discurso de Lísias e o de
Sócrates no Fedro é a diferença entre psykhagogia e didaskalia. O discurso de Lísias seduz Fedro, mas não lhe
ensina nada, nem mesmo sobre aspectos formais, isto é, técnicos, da arte de fazer discursos. O discurso de
Sócrates não só fascina o jovem Fedro, mas também lhe ensina coisas de maior valor do que o simples
domínio de uma técnica”.
340
Assim sendo, que consequências podemos tirar do exame dessa passagem, em
consonância com a interpretação que propusemos? Para tentarmos responder a essa
questão, propomo-nos a examinar em seu conjunto os argumentos principais, assim
parafraseados:
Logo de partida, os argumentos (1) e (2), quando lidos em conjunto, não permitem
admitir contradição entre “seriedade” (σπουδή) e “jogo/brincadeira” (παιδιά), ou a
associação desses dois termos ao lógos oral ou ao escrito. Se a escrita pode ser vista,
conforme propusemos, como um paradigma do lógos, então reconhecê-la como um
“jogo”, não importando de que tema trate, implica reconhecer estar inerente a toda
expressão discursiva o fato de se conter nela própria algum elemento “lúdico”. Assim, por
intermédio de Sócrates, Platão parece sublinhar novamente aquela posição
moderadamente cética e bastante crítica quanto à linguagem como um todo587. Por isso,
não se trata de apresentar uma posição fechada e definitiva quanto à escrita, seja para
defendê-la – como fizera o deus Theuth e talvez Isócrates – ou condená-la – como o rei
Thamos e talvez Alcidamante. Compreender o lógos na sua dimensão lúdica implicaria
em vez disso concebê-lo como um risco e uma oportunidade: por seu intermédio seria
possível tanto abordar um assunto digno de seriedade (ἄξιον σπουδῆς), quanto
simplesmente limitar-se a divertir os ouvintes, como ocorre com a recitação dos rapsodos
587
De fato, como G. Ferrari (1990, p. 224) comenta: “Writing, as an instrument the consequences of which
depend on its good or bad use, must be handled with the utmost diffidence and transparency as to its
potential danger; so that philosophic confidence in the written product stems from a thourough-going lack
of confidence in the medium”.
341
(ῥαψῳδεῖν). Na primeira hipótese, é preciso que o lógos se constitua de modo tal a oferecer
um prévio “exame” (ἀνάκρισις) e que seja precedido de algum tipo de “ensinamento”
(διδαχή).
O termo anákrisis, conforme indica o LSJ, remete às ideias de “exame” – tal como é
traduzido – mas denota também as ideias de “interrogação” e “questionamento”.
Conforme comenta Harrison (1971, p. 94), o termo parece aludir igualmente à prática
jurídica segundo a qual o magistrado interrogava os litigantes previamente ao
julgamento, alusão que também parece dizer algo a respeito da forma como se produziria
esse lógos – não tanto como um texto assertivo, quanto principalmente interrogativo.
Assim, a condição necessária para que o lógos pudesse se revelar instrumento de uma
investigação séria seria submetê-lo a um questionamento, capaz de torná-lo objeto de
uma abordagem dialógica e dialética – tal como Sócrates e Fedro, de fato, o fizeram no
Fedro, ao submeterem os diferentes discursos proferidos a uma rigorosa inquirição.
Contudo, ao mesmo tempo, esse lógos deveria dispor de capacidade de diálogo com os
diferentes tipos de alma – isto é, ser capaz de perguntar e responder –, e não simplesmente
“manter-se em silêncio solene” (275d6: σεμνῶς πάνυ σιγᾷ). Para tanto, seria preciso que
ele também se constituísse tendo em vista um tipo específico de “ensinamento” (διδαχή).
O termo didakhé é bastante problemático para a interpretação da passagem, como
dão mostras os diferentes equivalentes que os tradutores modernos encontram para a
palavra grega. Trata-se de caracterizar uma qualidade do lógos (como sugere a tradução
de Hackforth, 1997: exposition); seu propósito (como sugerem as duas traduções francesas,
a de Robin, 1933, e a de Brisson, 2004: volonté d’instruire; a tradução italiana de De Luise,
2002: scopo didattico; e, ainda, a tradução para o português de Souza, 2016: intenção didática);
trata-se de pensar, em vez disso, no seu efeito (como sugerem as traduções em língua
portuguesa de Reis, 2016: ensinamento, e Nunes, 2011: ensinam; ou ainda, a tradução inglesa
de Nehamas & Woodruff, in Cooper, 1997: explanation); trata-se, enfim, de qualquer
combinação desses elementos ou ainda de nenhum deles?
Levando-se em conta o contexto dialógico, no qual, conforme vimos, a escrita
vinha sendo tomada como paradigma para aferir a distinção entre dois tipos de lógoi,
parece-nos que a didakhé, ao lado da anákrisis, na condição de correquisitos do lógos
dialético, possam dizer algo a respeito do modo como o próprio lógos se constitui. Em
outras palavras, um discurso “digno de seriedade” seria aquele que, jamais perdendo seu
caráter lúdico, constituir-se-ia segundo a dinâmica do perguntar e responder – sendo,
portanto, anacrítico – mas, além disso, pressuporia também um tipo de ensinamento ou
explicação, uma didakhé.
342
Conforme observa Trabattoni (2003, p. 150 et seq.) a esse propósito, as palavras de
Sócrates nessa passagem parecem reassumir, de forma concisa, o projeto da República.
Tanto no Fedro quanto na República, a dialética poderia constituir-se objeto de uma
educação (τροφή), pressupondo algum tipo de ensinamento (διδαχή). Contudo, enquanto
na República, a dialética seria entendida “como uma ciência cujo aprendizado é possível
programar de maneira metódica, simplesmente com o estudo da disciplina”, “por meio de
longo e severo curriculum científico” (Trabattoni, 2003, p. 151), no Fedro, por outro lado, o
aprendizado seria “somente um auto-aprendizado, um movimento da alma que
rememora parte de um saber perdido” (idem, ibidem). O lógos, portanto, seria não mais que
um instrumento substitutivo e imperfeito – um jogo –, mas tal instrumento poderia,
mediante certas condições, revelar-se um poderoso recurso à disposição dos mortais para
se conduzirem ao conhecimento:
o lógos não tem o poder de fazer conhecer diretamente a ideia, mas tem,
em lugar disso, o poder psicagógico de conduzir a alma, de favorecer a
persuasão, estimulando a memória da alma para a existência de
realidades imóveis de que depende toda a realidade e todo
conhecimento.
(Trabattoni, 2003, p. 155)
588
Além disso, como observou Brisson, em nota (2004, p. 234, nota 468), o discurso dos rapsodos, recitadores
profissionais (cf. Ion) não são capazes de responder às questões que o filósofo gostaria de lhes colocar (cf.
Cármides, 176c, Protágoras, 329a). Em todo caso, continua Brisson (p. 234) a passagem também parece
apresentar um problema de ordem filológica: a expressão οἱ ῥαψῳδούμενοι não seria uma interpolação?
343
desonroso silêncio – ou o abandono da discussão –, haja vista que não pressupõem o
conhecimento que os poderia tornar verdadeiramente eficazes, a saber, o conhecimento
da alma, condição pressuposta para que se tornassem dialéticos, suficientemente capazes
de falar a cada tipo de alma. Em suma, falta aos discursos dos oradores e dos rapsodos não
propriamente uma dicção oral (que, ademais, em geral possuíam), mas a capacidade de
perguntar e responder (ἀνάκρισις) e o “ensinamento” (διδαχή) que os habilitassem a ser
verdadeiramente psicagógicos e, portanto, persuasivos. Ao abordar essa questão,
Trabattoni comenta que:
344
podem ser tomados hypómnesis? Que tipo de conhecimento se pressupõe prévio e qual é
a sua extensão?
Admitir que o lógos pressupõe de antemão o conhecimento filosófico que é o seu
próprio objeto (o Justo, o Belo e o Bom) representaria diminuir o seu papel como método
para a investigação filosófica em torno desses temas. Ademais, se o dialético já possui o
conhecimento que investiga, qual seria o sentido da pesquisa? Não nos parece ser o caso,
portanto, de corroborar a tese segundo a qual o filósofo seria, de antemão, um sophós, e
que o discurso válido seria aquele dos que já possuem esse tipo de conhecimento (posição
mantida, conforme vimos, por Szlézak, 2009, p. 32)589. Conforme mencionamos em outra
ocasião, tal interpretação parece construir uma imagem do filósofo e da filosofia avessa
àquela consagrada no próprio Fedro, ao extirpar da atividade filosófica a sua dimensão
erótica, implicada no movimento de busca de um saber que se sabe ausente pelos mortais
(conforme analisamos no capítulo IV).
Na sentença em questão, não está explícito o complemento do particípio do verbo
eideîn, o que resulta em tornar a passagem particularmente aberta a diferentes
interpretações no que diz respeito ao objeto desse “saber”. Entretanto, se consideramos o
contexto dialógico, no qual, conforme vimos, a questão inicial é aquela dos discursos
“escritos com arte ou sem arte” (277b1-2: τέχνῃ καὶ ἄνευ τέχνης γράφοιντο), parece
plausível admitir que se alude aqui ao conhecimento sobre a tékhne dos discursos, isto é,
o conhecimento da dialética – o que, por sua vez, impõe um conhecimento sobre a
natureza alma (277b8: ψυχῆς φύσις). Desse modo, parece não se estar postulando que o
lógos é somente digno de seriedade quando se possui o prévio conhecimento do objeto da
pesquisa, mas que, mesmo que se parta da ignorância quanto a esse objeto (ou de um
desejo de conhecer), seria preciso possuir de antemão um outro tipo de conhecimento,
um saber-fazer ligado ao método da pesquisa.
É digno de nota ainda que o sintagma “dos que sabem” (αὐτῶν…εἰδότων) esteja
empregado no caso genitivo, que mantém com hypómnesis uma relação de determinação:
não é qualquer discurso que logra ter as características que o tornam aliado do processo
de conhecimento (uma ὑπόμνησις), mas somente os daqueles que possuem um tipo de
conhecimento. O emprego do caso genitivo na expressão “dos que sabem”
(αὐτῶν…εἰδότων) e não do dativo “para os que sabem” (αὐτοῖς εἰδόσι) determina quem é
589
Cf. “o φιλόσοφος provou ser, então, o ‘sapiente’, ‘que faz uso da arte da dialética’, na conversa com o
aprendiz, declarado e apropriado e, portanto, ‘escreve em sua alma’ (…). Se aquilo que o φιλόσοφος leva a
sério deve se chamar φιλοσοφία, então a ‘filosofia’ é para Platão a conversa oral, que ‘o que sabe’ conduz
tendo em vista um ‘ensinamento’ de um ‘aprendiz’ escolhido”.
345
que pode manejar dialeticamente o discurso (a dialética pode ser de alguns, desde que
aprendam essa arte), mas não pressupõe um alvo pré-estabelecido, tornando-se um saber
restrito ou fechado (a dialética sendo para alguns). Compreender a dialética para e não de
favoreceria a tese de Szlézak (2014), que, segundo Marques (2012, p. 303), implicaria o
seguinte dilema: “ou adotamos a perspectiva hiper aristocrata da hiper exclusividade do
acesso à dialética ou tudo estará perdido (em todos os planos, político, antropológico,
ontológico e ético!)”.
Finalmente, o argumento (4) parece recuperar dois aspectos já comentados no
capítulo IV: o lugar do lógos no processo de aprendizado (μάθησις) e a pressuposição de
uma dimensão “interna” (psíquica) do conhecimento (“grafado na alma”). Afirma-se na
passagem que um discurso digno de seriedade (ἄξιον σπουδῆς), se caracteriza por ser
claro (ἐναργές) e completo (τέλεον), sendo proferido e ensinado em virtude do
aprendizado (μαθήσεως χάριν). Além disso, que discursos dessa natureza são grafados na
alma (γραφομένοις ἐν ψυχῇ) e versam sobre o justo, o belo e o bom (περὶ δικαίων τε καὶ
καλῶν καὶ ἀγαθῶν).
Conforme analisamos no capítulo IV, a reflexão sobre a escrita contida no mito de
Theuth (274c5-275b2) associa o aprender (μανθάνειν) ao rememorar (ἀναμιμνῄσκειν),
avaliando criticamente a pretensão de que a escrita torne os seres humanos mais sábios.
Naquele contexto, as letras (γράμματα) eram apresentadas por Theuth como uma
“instrução” (τὸ μάθημα) capaz de tornar os egípcios “mais sábios e de melhor memória”
(274e5-6: τὸ μάθημα…σοφωτέρους Αἰγυπτίους καὶ μνημονικωτέρους παρέξει).
Observamos mais de uma vez acerca da passagem como não se tratava de tomar partido
por uma das posições conflitantes – a da divindade Theuth ou a do rei Thamos –, mas a
de compreender a distinção entre o que talvez hoje poderíamos chamar de “informação”
e “conhecimento”: enquanto os sinais externos (audíveis ou visíveis) da linguagem
pudessem vir em socorro da transmissão e preservação de informações, eles jamais
poderiam representar por si mesmos o conhecimento. O conhecimento seria, portanto,
um saber interno, inerente à alma, e seu aprendizado decorreria de um processo
igualmente psíquico.
Dito isso, faz sentido que, nessa última passagem, a conclusão do Fedro afirme que
o lógos digno de seriedade seja ensinado em vista do “processo de aprendizado” (μάθησις).
A sutil distinção entre a pretensão de Theuth e a posição de Sócrates pode ser percebida
na oposição entre máthema e máthesis. Enquanto para Theuth a escrita corresponde a um
tipo de lógos que consiste em uma “instrução” (μάθημα), ou seja, um produto acabado,
completo – noção expressa pelo sufixo nominal –μα –, a fala de Sócrates impõe pensar
346
que o discurso, para ser digno de seriedade, precisa se voltar ao aprendizado tomado
como um processo – consignado no sufixo –συς. Portanto, enquanto Theuth estaria
considerando o lógos a partir de seu efeito visível (ou audível), tomando-o, portanto, como
sinônimo do aprender tomado como um produto acabado (μάθημα), Sócrates nos convida
a pensar no papel da escrita a partir de sua relação com uma concepção dinâmica de
aprendizagem (μάθησις). Uma concepção do conhecer como um processo comporta uma
incerteza nunca totalmente eliminável – seu resultado nunca é inteiramente conhecido.
É por esse motivo que o lógos filosófico está “à altura dos humanos” e por isso também ele
é apenas “um filho legítimo” (278a6). Como bem o mostrou Trabattoni “todo lógos, ou
discurso, até o mais elevado, é, não obstante, sempre filho, isto é, dependente de um saber
não-discursivo que, em última análise é pai de todas as altas e baixas formas de saber
acessíveis ao homem” (Trabattoni, 2003, p. 154).
Nesse sentido, a observação de Sócrates fornece mais uma evidência da concepção
de conhecer que Platão apresenta no Fedro. O manthánein indica um processo, um
movimento psíquico, uma atividade a alma em direção a um saber de outra ordem. Por
essa razão, os lógoi produzidos em vista do processo de aprendizado (μαθήσεως χάριν)
precisam, antes de tudo, ser “grafados na alma” (γραφομένοις ἐν ψυχῇ). A referência ao
lógos dialético novamente por intermédio da imagem da escrita, corrobora a conclusão já
apresentada por Sócrates em 276a5-6: o lógos da filosofia é “escrito com conhecimento na
alma dos que aprendem” (276a5-6: ὃς μετ’ ἐπιστήμης γράφεται ἐν τῇ τοῦ μανθάνοντος
ψυχῇ) e é “dotado de alma” (ἔμψυχον). Assim, parecem manter coerência entre si todas
as conclusões a que chegamos quanto à relação entre movimento, alma e conhecimento,
que poderíamos, enfim, sintetizar nos três pontos:
1. a alma é princípio de movimento (245c9: ἀρχὴ κινήσεως);
2. o processo de conhecimento (ἀνάμνησις) é uma forma de movimento dirigido
pela alma;
3. o lógos que serve ao filósofo deve voltar-se para o aprendizado tomado como um
“processo” (μάθησις).
Logo, o ponto é compreender que a alma é o único lugar onde ocorre o verdadeiro
aprendizado possível e que somente um lógos que leve isso em conta torna possível tal
aprendizado e é capaz de conduzir as almas através da persuasão e do ensinamento (Phdr.
277c5-6). Assim, as expressões lógos “grafado na alma” (γραφομένοις ἐν ψυχῇ) ou “dotado
de alma” (ἔμψυχον) ou “escrito com conhecimento na alma” (μετ’ ἐπιστήμης γράφεται ἐν
τῇ…ψυχῇ) podem ser compreendidas como equivalentes na medida em que conferem
ênfase à dimensão psíquica – portanto interna – do processo filosófico.
347
Tais expressões poderiam denotar, por um lado, a consciência do filósofo acerca
dos limites da linguagem, enquanto veículo sensível de questões ligadas ao
conhecimento, com os quais a linguagem não deveria ser confundida. O filósofo está
ciente de que a linguagem comporta sempre a precariedade que seu estatuto de imagem
lhe confere – ela representa, ademais, um “jogo”. Entretanto, o filósofo é também alguém
atormentado por uma falta, pela consciência de uma ausência, um amante (ἐραστής) que
se move em busca de seu objeto amado, um objeto que reconhece encontrar-se além dos
discursos (um objeto puramente intelectual, um νοητόν). Na palinódia de Sócrates, vimos
que tal amante, quando se depara com a visão de um belo menino, sofre um misto de
desejo e dor, uma afecção quase física que lhe conduz à memória da Beleza (Phdr. 251a7-
d1). Assim, contanto que tal amante não se entregue a um prazer animalizado, levado pela
desmedida (250e4-5), ele pode encontrar nesse jovem a cura para os seus sofrimentos
(252b1) e o resultado dessa experiência erótica seria o compartilhar de uma experiência
divina, na medida em que isso é possível no horizonte da experiência humana (253a4-5).
A atitude filosófica diante dos discursos não seria diferente: os que amam o saber
se movem através dos discursos em busca de seu objeto amado. A percepção visual ou
acústica de um belo discurso não se encerra na dose de prazer que ele pode evocar – mas
tal percepção tampouco nega esse prazer. O filósofo não deve se perder na perturbação
que os discursos geram – as diferentes sensações que despertam, que são inerentes à
linguagem como um jogo –, mas deve experimentá-los tendo em vista exclusivamente o
efeito psicagógico que podem produzir, que é o de levá-los à memória, ao “verdadeiro
acerca daquilo que fala ou escreve” (277b5-6: τό τε ἀληθὲς…πέρι ὧν λέγει ἢ γράφει)590.
Assim, tal como os belos jovens podem proporcionar a cura para o sofrimento do amante
desejoso do Belo, também os lógoi podem se revelar um meio potencial para produzir a
cura do sofrimento que o filósofo experimenta, tornando-o “feliz à altura do humano”
(277a3). Nas palavras de Trabattoni podemos então concluir que:
590
É interessante, a esse propósito, o paralelo entre o amante-filósofo e o escritor-filósofo, como propõe
Ferrari (1990, p. 223-224): “By treating his text as a treasury of reminders (276d3), the philosophic writer
displays a self-conscious caution about the risk of his activity as a writer, [of] usurpating that primary place
in his structure of goals which belongs by right to the way of life that such writing intrumentally promotes;
while the philosophic lover, in so far as he treasures his boy for the reminder of the beatific vision stirred
by his presence, is swept up in painfully self-conscious struggle against that in him which would neglect
this vision, allow the boy to become a compulsion, and so succumb to the danger that the mere presence of
the boy, divorcd from the larger sense of beauty that he inspires, should become the addictive goal of his
life. The good writer and the good lover, then, share a sensitivity to the common risk of obsession in their
respective sphere of action”
348
O filósofo pode, certamente, escrever e compor discursos. Mas recusará
a ver-se identificado por inteiro com esses discursos, porque são sempre
o produto imperfeito e transitório da sua alma (…). O saber mais precioso
de que o homem dispõe é aquele que permanece na sua alma, muito ou
pouco que seja, da visão das ideias, advinda antes de nascer; nenhum
lógos, nenhuma tradução em palavras pode resultar senão imperfeita e
de menor valor em relação a ela.
(Trabattoni, 2003, p. 157-158)
591
Cf. “Tout discours, écrit ou parlé, peut être incompris ou mal compris ; de tout discours, lu ou écouté, on
peut dire qu’il se répète, qu’il choisit mal ceux à qui s’adresse et qu’il est incapable de se défendre, moins en
raison de l’absence de son père qu’en raison de l’ignorance ou de la mauvaise foi de celui qui le reçoit. Tout
cela ne peut être évité qu’à la condition que l’auditeur ou le lecteur se serve de sa « part divine »,
l’intelligence”.
349
do manuscrito de Lísias, Sócrates proferiu outros dois discursos, os quais também foram
objeto de um rigoroso escrutínio, de uma exigente investigação que, como resultado,
tornou evidente uma atividade do pensamento – que viria a ser posteriormente nomeada
de dialética –, mas cuja manifestação foi a produção e a postulação de um outro discurso.
350
CONCLUSÃO DA PARTE γ´
351
3. o paradigma decorre do uso de elementos imagéticos, mas sua eficácia só pode
ser garantida mediante uma consciência crítica do filósofo em relação às suas limitações.
À luz a noção de paradigma no sentido que observamos no Político, retomamos no
capítulo VI a segunda parte da crítica à escrita no Fedro (275d-278a), de modo a verificar
se, nas entrelinhas das reflexões contidas naquela passagem, seria possível reconhecer
um uso paradigmático da escrita, com vistas a uma determinação da natureza da
dialética.
Nas duas ocorrências do termo parádeigma no Fedro (262c9, 262d1), vimos que
Sócrates e Fedro pareciam se ressentir de um modelo de explicação, de um expediente
metodológico auxiliar para a compreensão da distinção capital entre o lógos retórico
(representado no discurso de Lísias) e o lógos dialético (representado pelo movimento
proporcionado pelos dois discursos de Sócrates), e constatamos que tal paradigma
consistia, inicialmente, na contraposição dos dois blocos discursivos. Analisando o
restante da passagem, vimos como toda a reflexão que se segue à apresentação do mito
de Theuth (274c5-275b2) confirmava essa exigência. Vejamos.
Inicialmente, através da análise do símile entre escritura e pintura (Phdr. 275d4-
d9), observamos que, ao associar a escrita (γραφή) aos discursos (λόγοι), Platão parecia
evocar a escrita como um paradigma pelo qual se buscava compreender algo mais
avançado – o mecanismo do discurso, as tensões entre, de um lado, os modos de usar a
linguagem tal como os oradores e sofistas o faziam e, de outro, esse nova modalidade de
uso da linguagem oral e escrita que Platão pretende inaugurar, a dialética. Assim, a
associação entre escrita e pintura parecia evocar paradigmaticamente a prática dos
oradores e sofistas, particularmente Lísias e Isócrates, a quem as últimas páginas do
diálogo foram dedicadas (Phdr. 278b7-279c8). Ao evocar a figura de Isócrates – ainda que
para elogiá-lo nas palavras de Sócrates –, Platão toma sua escrita como um paradigma
para a distinção entre o lógos retórico – representado pelos discursos de Lísias e pela
escrita de Isócrates – e o lógos dialético – representado pelo diálogo de Sócrates e pela
escrita dialética de Platão. Porque responde sempre o mesmo, o lógos retórico – isocrático
e lisiânico – possui menor abertura dialética; não sendo capaz de responder às
interrogações que se lhe possam fazer, ele não se submete à dinâmica do dialégesthai e
não permite assim a polifonia, o confronto das opiniões diversas, o exame da diversidade
de pontos de vista, apresentando-se, em suma, como um discurso monológico, limitado
à visão do seu artífice, e, por conseguinte, incapaz de promover um diálogo e, logo,
aprendizado.
Na sequência, ao analisarmos as imagens do “Jardim de Adônis” e do “Jardim das
352
Letras”, constatamos não ser possível indicar uma contradição entre “seriedade”
(σπουδή) e “jogo” (παιδιά), e ainda menos concordar com a dicotomia entre quaisquer
desses termos e as ideias de oralidade e escrita. Acreditamos que Platão oferece nessa
passagem um desdobramento do paradigma em três níveis, de forma análoga do que
ocorre na passagem do Político examinada no capítulo V. São eles: 1. o paradigma do
paradigma (o jardim e a lavoura); 2. o paradigma propriamente dito (a escrita retórica e a
escrita dialética) e; 3. a contraposição dialética principal do Fedro: aquela entre as duas
modalidades do lógos. Assim, na terceira dobra desse movimento textual, estaria em jogo
não mais a escrita – stricto sensu – mas uma instância maior e englobante – o lógos. Além
disso, vimos como a imagem parecia recuperar argumentos do debate entre Isócrates e
Alcidamante sobre a escrita. Ao evocar os argumentos de Alcidamante – a associação
entre escrita e pintura (275d), entre escrita e jogo (276c-d) e a oposição entre discurso
inerte e vivo (276a) – Platão põe em relevo a prática do lógos fundada em um tratamento
metódico, coerente com a exigência de uma psykhé que é o motor do processo de
conhecimento e que também é conduzida mediante um adequado exercício da
linguagem. Ou seja, Platão parecia tomar o debate histórico sobre a escrita como o
paradigma de uma discussão maior, que implicava determinar que tipo de lógos seria
adequado ao processo de conhecer; processo associado à propensão psíquica, própria aos
humanos, de se porem em marcha, em uma espécie de movimento de rememoração.
A propósito desse lógos, vimos que a passagem entre 277b5 e 277c6 nos oferece
muitas informações relevantes: alude ao efeito do lógos (o de produzir o conhecimento
verdadeiro e gerar persuasão); à sua natureza flexível e móvel (a de ser capaz de se moldar
aos diferentes enquadres comunicativos, estando igualmente apto a diferentes
receptores); ao fato de ele pressupor uma ciência (o discernimento dos diferentes tipos
de alma); ao seu procedimento metodológico (ser capaz de oferecer definição e proceder
a divisões e a reuniões) e, finalmente, à sua condição de instância prática preliminar ao
conhecimento da verdade, isto é, à sua excelência enquanto método filosófico.
Do ponto de vista de seu método, a propriedade do lógos dialético de operar os
movimentos de divisão e reunião pareceu análogo ao processo de reconhecer as letras e
combiná-las para formar palavras, o que nos levou a considerar que se encontra implícito
na passagem o mesmo paradigma das letras que é empregado no Político (277d1-278d6).
De fato, afigura-se também no Fedro a operação intelectiva que consiste na divisão até o
elemento mínimo, etapa que permite, na sequência, produzir combinações diversas, mas
não aleatórias. Ao admitir que exista um modelo subjacente à reflexão sobre as letras em
Platão, o recurso às letras no Fedro seria então mais que um mero indício de uma prática
353
de linguagem. Ele poderia ser visto como o expediente filosófico de que Platão lançou
mão para figurar um modelo de compreensão da realidade. O efeito desse procedimento
de natureza “gramatical” seria, como na linguagem, o de aferir distinções e reconhecer
diferenças, para, então, ser capaz conceber uma totalidade, tarefa em que o discurso de
Lísias teria fracassado (262c-266c).
Finalmente, na última seção do capítulo VI, analisamos a fala de Sócrates que se
apresenta como uma espécie de síntese (Phdr. 277e5-b4) da discussão. Quanto à sua forma
de constituição, o lógos dialético – o discurso “digno de seriedade” (ἄξιον σπουδῆς) – deve
oferecer um prévio “exame” (ἀνάκρισις) e pressupor uma espécie de “ensinamento”
(διδαχή), o que, respectivamente, implica constituir-se como um discurso aberto ao
questionamento, segundo a dinâmica do perguntar e responder, e apresentar
conhecimento sobre a tékhne dos discursos, isto é, o conhecimento da dialética – o que,
por sua vez, supõe o conhecimento acerca da natureza alma (277b8: ψυχῆς φύσις).
Somente um discurso com tais características revela-se apto a ser “um meio de gerar
recordação” (ὑπόμνησις), um aliado do conhecimento. Além disso, ficou patente também
que tal discurso deveria conceber o aprendizado como um processo psíquico,
compreendendo a alma como o locus do aprender. Assim, a atitude filosófica diante dos
discursos deve ser a do amante para quem a percepção de um belo discurso não se limita
à dose de prazer que ela produz, mas experimenta-a tendo em vista seu efeito potencial
de conduzi-lo à memória. Somente nesse sentido os lógoi poderiam tornar o filósofo “feliz
à altura do humano”.
354
CONCLUSÃO FINAL
I.
“O primeiro paradoxo da obra platônica é que ela existe”. A mesma frase, com
ligeiras diferenças, está registrada textualmente na obra de M. Vegetti (1988, p. 387) e M.
Dixsaut (2012, p. 17). Implicitamente, tal constatação parece motivar também a discussão
de inumeráveis estudiosos que se detiveram sobre as relações entre escrita e filosofia na
obra de Platão. De fato, em primeiro lugar, o “paradoxo” reside, como apontam esses
autores, no fato de Platão produzir uma extensa obra escrita, em cujo interior, não
obstante, seria possível encontrar elementos que parecem reforçar uma recusa da própria
escrita (ou da linguagem como um todo) como instrumento de expressão filosófica. Além
disso, a forma do diálogo pela qual se consagra a obra platônica – indubitavelmente um
gênero de mímesis – contradiz, na prática, também uma possível condenação da narrativa
imitativa, posição que se poderia sustentar, por exemplo, no livro III da República. Em
terceiro lugar, ainda acrescentaríamos, a própria sobrevivência integral dos escritos de
Platão, fruto de longa tradição manuscrita, em meio a tantos autores antigos cujas obras
chegaram apenas fragmentariamente, também é causa de espanto, se considerarmos que
se tratava de um filósofo que, teoricamente, não teria dado grande crédito à escrita.
O desconcerto que esse “paradoxo” cria parece-nos, contudo, um traço da própria
escrita platônica. O espanto diante dela configura exemplo da atitude que Platão propõe
diante da linguagem como veículo para o pensamento filosófico. Como afirma M.
Dixsaut (2012, p. 23), uma forma de escrita na qual o pensamento se faz presente tem a
natureza dos “discursos vivos”: “aqueles que não procuram impor o modo pelo qual o
autor concebe tal ou tal realidade, mas se esforçam para sempre despertar e manter o
desejo de aprender e compreender”592. O desejo de aprender – esse éros característico do
filósofo, como vemos no Fedro – é o que distingue o filósofo e, por conseguinte, a
linguagem na qual ele se expressa – seja ela oral ou escrita. Por esse motivo, o texto de
Platão, como paradigma do lógos filosófico, suscita muito mais questionamentos do que
propõe encerrar conclusões, razão pela qual uma mesma questão ou uma mesma
passagem, conforme vimos ao longo desta tese, pode comportar por vezes leituras
592
Cf. Ceux-ci ne cherchent pas à imposer la façon dont l’auteur conçoit telle ou telle réalité, ils s’efforcent
d’éveiller toujours à nouveau, et de maintenir, le désir d’apprendre et de comprendre”.
355
bastante diferentes, conflitantes até, cujos argumentos precisam ser levados em conta em
uma pesquisa séria, verdadeiramente filosófica.
Alinhando-nos à longa tradição de estudiosos que se depararam com o “paradoxo
da escrita” na obra de Platão, sem reduzi-la, contudo, a reflexo de uma posição histórica
quanto ao advento e à consolidação da escrita em Atenas, propusemos compreender, a
partir do Fedro, as possíveis convergências e dissidências entre o tema das letras e da
dialética. Para isso, reavaliamos o problema da escrita tal como consignado no Fedro,
cotejando-o com o modo como a questão fora também tratada na Carta 7. Nesse sentido,
mostramos que o tema das “letras” não figura nesse diálogo como um desvio da discussão
principal, um intercurso de menor valor filosófico ou, ainda, uma mera réplica de Platão
a uma questão histórica. Enquanto se busca responder às perguntas: a escrita pode ser bela?
Se sim, em que condições?, Platão oferece no quadro do diálogo uma reflexão que
transcende uma questão ligada a um debate em curso em Atenas – o das vantagens e
desvantagens da escrita para a expressão filosófica. Mais que isso, Platão associa o tema
das letras organicamente à formulação (e à prática) da dialética como divisão e reunião,
na medida em que as letras podem, efetivamente, ser vistas tanto como imagens, como
quanto paradigmas para a compreensão do “falar e pensar”, representando, a um tempo,
representações e modelos para pensar a filosofia.
Assim, ao longo das três partes em que organizamos esta tese, avaliamos as
relações entre a dialética e as letras, tendo como fonte principal o diálogo Fedro, mas
considerando também incursões em outros diálogos, em especial na República, no
Banquete, no Górgias e no Político. Em linhas gerais, vimos como a crítica de Platão
consignada no mito de Theuth (274b-278b) incide principalmente sobre a perspectiva de
se ver o discurso como uma sistematização do conhecimento, e a escrita como uma
espécie de substituto gráfico do saber, ao se lhes atribuir, entre outras, a faculdade de, por
si mesmos, tornarem os homens mais sábios. No entrelugar entre a opinião do inventor
da escrita – Theuth –, e a de quem ela fora oferecida como um presente – o rei Thamos –
propusemos que a escrita, na sua dimensão hyponemática, pode ser vista como um
intermediário entre o não-conhecer e o conhecer, uma imagem, certamente, mas, ao
mesmo tempo, também um paradigma à disposição do filósofo para conceber a sua
prática de pensamento e linguagem. Compreender a escrita na sua função de imagem e
paradigma significa, sem dúvida, recolocá-la no centro do debate filosófico do Fedro.
Por intermédio das letras, testemunhamos nesse diálogo um esforço para
compreender a crucial distância entre o lógos retórico – lisiânico e isocrático – e o lógos
dialético – socrático e platônico. Além disso, por meio dessa contraposição, é possível
356
distinguir a escrita de Platão como aquela na qual se podem identificar as características
da própria dialética. Com efeito, a escrita platônica enseja as operações da divisão
(διαίρεσις) e reunião (συναγωγή), ela se revela portanto capaz de persuadir (πείθειν),
esclarecer (διδάσκειν) e verdadeiramente conduzir a alma (ψυχαγωγεῖν) de seus
interlocutores, tarefas nas quais, entretanto, o discurso retórico falha. Assim, esse lógos –
que tem nas letras o seu paradigma – constitui-se ademais como um meio que pode
aproximar o amante do saber do conhecimento verdadeiro pelo qual ele anseia (τό
ἀληθὲς…εἰδεῖν), cuja falta ele percebe e cuja presença ele deseja. Assim, vimos que, para
um diálogo cujas linhas argumentativas se empenham em distinguir os lógoi em evidência
na prática intelectual de sua época, de modo a produzir em seus interlocutores uma
conversão à filosofia, as letras, que revelam, por sua vez, notável capacidade diacrítica –
nas suas operações de divisão e reunião dos segmentos da linguagem – não podem ser
tampouco menosprezadas.
II.
Em 1932, o romancista inglês Aldous Huxley (1864-1963) publicava O admirável
mundo novo. O romance de ficção científica figura uma distopia situada no ano 632 depois
de Ford, uma sociedade de castas que se organizava por um rígido controle social de matiz
tecnocrático, no qual as mais diversas formas de controle e manipulação da informação
representavam o cimento social. Os personagens transitam nessa obra em uma espécie de
hipnose pela linguagem, fomentada por anos de condicionamento a repetições
“hipnopédicas” que lhes impedem de refletir e pensar, mas lhes condicionam a agir de
modo adequado naquele universo. Naquele contexto, a educação dependia de palavras,
mas em hipótese alguma, admitia explicação racional (Huxley, 2014 [1932], p. 49)593. “A
educação” – afirmava o Diretor de Incubação e Condicionamento – “não deve nunca, em
circunstância alguma, ser racional” (id., ib., p. 47). A consequência disso, era, por um lado,
a absoluta supressão da cultura, a abolição dos livros, a estigmatização da democracia e,
por outro, o fomento ao consumo e a um padrão de felicidade baseado em fugas da
realidade causadas por doses diárias de soma, a droga mágica de distribuição gratuita pelo
governo central. A crítica a esse modelo de sociedade somente é possível nesse romance
em virtude de um “erro genético” – uma falha trágica que impede que um ou mais de seus
cidadãos se encaixassem perfeitamente nas expectativas daquela civilização. É o caso de
593
Cf. Huxley, 2014 [1932], p. 49 (grifos nossos): “O condicionamento sem palavras é grosseiro e genérico; é
incapaz de fazer apreender as distinções mais sutis, de inculcar as formas de comportamento mais
complexas. Para isso, é preciso palavras, mas palavras sem explicação racional”.
357
Bernard Marx, personagem que, sentindo-se inadequado àquela sociedade, não mais
conseguiu suportar o fato de que, naquela cidade, a verdade se construía com “sessenta e
duas mil repetições” (id., ib., p. 62). Bernard Marx parecia, em suma, aquele filósofo que é
compelido a “sair da caverna” na República de Platão.
Afora representar talvez a denúncia de uma sociedade que via o nascimento da
máquina de propaganda fascista nos anos 30, ou uma crítica à ascensão de uma prática
cientificista desumanizante e anti-humanista, ou mesmo talvez uma sátira à utopia
soviética totalitária em ascensão na primeira metade do século XX (cf. Beauchamp, 1986;
Carvalho, 2014; Quines, 2017), o romance de Huxley nos toca nos dias de hoje não apenas
pela sátira histórica. A assim chamada “Era da Pós-Verdade”, termo pelo qual futuros
historiadores talvez venham a descrever nosso tempo atual, parece se caracterizar, à
primeira vista, pelo acesso pleno e irrestrito à informação. Contudo, tal como na Londres
de 631 d.F., nosso tempo também assiste ao prestígio dos discursos irracionais, que
ganham terreno nas formas de comunicação de massa e afetam o modo de vida de
milhões de indivíduos. Além disso, se, por um lado, a massificação do acesso à tecnologia
permite que vida humana esteja cada vez mais interconectada, fato que aparentemente
torna a informação instantânea e democrática, por outro lado, a difusão de fakenews gera
um poder persuasivo que, cada vez mais, submete a verdade ao poder de repetições
midiáticas que, sem dúvida, coloca as democracias em xeque.
Assim, repensar Platão como o filósofo que oferece uma crítica da linguagem e
propõe um método para o “pensar correto” parece ser uma exigência do nosso tempo. Ao
longo desta tese, vimos que o problema relacionado à verdade, à linguagem e à
informação configura uma questão central para Platão em sua obra filosófica,
particularmente no Fedro. Nesse exame, o filósofo não nos propunha uma forma de
controle do discurso, uma fórmula acabada e mecânica (“hipnopédica”) de uso da
linguagem ou da escrita. Em vez disso, convida-nos à pesquisa, mostra ser imprescindível
o exercício livre da crítica, com vistas a uma tomada de consciência. Na contramão de uma
sociedade essencialmente totalitária – como é a Londres retratada por Huxley, cuja nota
dominante era a ausência de liberdade e reflexão – as bases de uma sociedade
verdadeiramente democrática – como talvez fosse a Atenas de Platão e aquela que
esperamos alcançar – são o exercício livre da atividade de pensamento, i.e. a possibilidade
de articulação do pensamento em torno de uma reflexão crítica, sempre por intermédio
das diferentes vias da linguagem. Para isso, parece-nos hoje imprescindível nos
levantarmos em defesa dos espaços em que é possível nos colocar como interlocutores de
um diálogo, onde podemos, em suma, exercitar o amor à sabedoria.
358
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