Consciencia - Paulo Freire
Consciencia - Paulo Freire
RESUMO
Este artigo, de natureza bibliográfica, tem por objetivo analisar os conceitos de intransitividade, transitividade ingênua e
transitividade crítica da consciência em Paulo Freire, utilizando para isso as obras Educação e atualidade brasileira e
Educação como prática da Liberdade. Freire nos mostra os níveis de consciência existentes e os descreve enfatizando a
importância da educação crítica e problematizadora no processo de transição de um nível ingênuo para um nível crítico.
Podemos afirmar que há uma relação direta entre a educação, a transição para o nível de consciência crítica e a
transformação humana e da sociedade.
Palavras-chave: Níveis de consciência; Educação; Paulo Freire.
ABSTRACT
This article, as a bibliographic one, aims to analyze the intransitivity concepts, naive transitivity, and consciousness critical
transitivity in Paulo Freire, based on Education and Brazilian News and Education as a Freedom Practice. Freire shows us
the existing levels of consciousness and describes them emphasizing the importance of critical and problematized education
in the transition process from a naive level to a critical level. We can affirm that there is a direct relationship between
education, the level transition of critical consciousness and the human and society transformation.
Keywords: Levels of consciousness; Education; Paulo Freire.
RESUMEN
Este artículo, de carácter bibliográfico, tiene como objetivo analizar los conceptos de intransitividad, transitividad ingenua y
transitividad crítica de la conciencia en Paulo Freire, utilizando las obras Educación y actualidad brasileña y Educación como
práctica de la Libertad. Freire nos muestra los niveles de conciencia existentes y los describe enfatizando la importancia de
la educación crítica y problematizadora en el proceso de transición de un nivel ingenuo a un nivel crítico. Podemos afirmar
que existe una relación directa entre la educación, la transición al nivel de conciencia crítica y la transformación humana y
social.
Palabras clave: Niveles de conciencia; Educación; Paulo Freire.
1
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS – Osório – Rio Grande do Sul - Brasil
2
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS – Porto Alegre – Rio Grande do Sul - Brasil
INTRODUÇÃO
Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais
e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de
difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei
também que os obstáculos não se eternizam. (Paulo Freire)
Reflexão e Ação [ISSN 1982-9949]. Santa Cruz do Sul, v. 29, n. 2, p. 57-68, mai./ago. 2021.
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para tal utilizaremos duas de suas obras: Educação e atualidade brasileira (1959) e Pedagogia
como prática da liberdade (1967), obras nas quais tais conceitos se encontram e são detalhados.
Alguns conceitos freireanos perpassam suas obras, como o de esperançar, o de temas geradores, o
de cultura popular, o de círculos de cultura, o da consciência, etc. E é exatamente o conceito de
consciência em seus três estágios (intransitivo, transitivo ingênuo e transitivo crítico ) que nos
interessa aqui.
Em Pedagogia como prática da liberdade, Paulo Freire afirma que “sem esta consciência
cada vez mais crítica não será possível ao homem 3 brasileiro integrar-se à sua sociedade em
transição, intensamente cambiante e contraditória” (FREIRE, 1967, p. 56). Mas como chegar a essa
consciência cada vez mais crítica? É necessário passar por fases para que isso ocorra. Essas fases
não são necessariamente sequenciais, alguns nunca saem da primeira ou da segunda, mas Paulo
Freire (Ibid., p. 57) nos alerta para o fato de que esta passagem
Não poderia ser feita nem pelo engodo, nem pelo medo, nem pela força. Mas, por uma
educação que, por ser educação, haveria de ser corajosa, propondo ao povo a reflexão sobre
si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel [...] Uma
educação que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua
instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse poder, na explicitação de suas
potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção.
3
Ana Maria Araújo Freire, esclarece, na obra Paulo Freire: Uma biobibliografia, que “nos anos 50 e até após a
publicação, no início dos anos 70, nos Estados Unidos, da Pedagogia do oprimido, Freire não nominava mulheres,
entendendo, erroneamente, que, ao dizer homem, incluía a mulher” (FREIRE, 1996, p. 35). O próprio Paulo Freire
reconhece essa falha ao utilizar apenas o termo “homem” em seus primeiros escritos, após ser questionado
pelas feministas estadunidenses e passa a utilizar ambos os termos em seus escritos posteriores à Pedagogia do
Oprimido. Para uma explicação mais detalhada sobre a temática dos usos desses termos sugere-se a leitura de
“Paulo Freire e a condição da mulher”, de autoria de Antonio Andreola Balduino, disponível em
https://doi.org/10.18593/r.v41i3.10398. Aqui, utilizaremos o termo “homem” devido à contextualização das
obras em que os conceitos trabalhados se encontram, mas esclarecemos que no decorrer do texto,
acompanhando a evolução da escrita do autor, passaremos, assim como ele, a utilizar os termos nos gêneros
masculino e feminino.
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Suas preocupações se cingem mais ao que há nele de vital, biologicamente falando. Falta-lhe
teor de vida em plano mais histórico [...] essa forma de consciência representa um quase
incompromisso entre o homem e sua existência. Por isso, adstringe-o a um plano de vida
mais vegetativa. Circunscreve-o a áreas estreitas de interesses e preocupações.
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compreensão para além desse seu espaço e sua dificuldade em reconhecer os desafios postos fora
deste. “Neste sentido, e só nesse sentido, é que a intransitividade representa um quase
incompromisso do homem com sua existência” (Ibid., p. 59). Essa visão reduzida e cerceada acaba
por fazer com que esse homem acredite em causalidades mágicas em detrimento da causalidade
autêntica dos fatos e da realidade.
Entretanto, à medida que vai se abrindo a novas possibilidades de diálogos, seja com outros
homens, seja com a sociedade e com o mundo, se transitiva; sua consciência avança uma etapa e o
homem começa a perceber sua realidade para além de seu antigo espaço. “Seus interesses e
preocupações, agora, se alongam a esferas mais amplas do que à simples esfera vital” (FREIRE,
1967, p. 58). Kronbauer (2018, p. 103) lembra que
Essa transitividade, porém, se funde em dois níveis: ela se faz inicialmente de forma
preponderantemente ingênua e só após um processo de conscientização – detalhado no decorrer
do texto – chegará à transitividade crítica de sua consciência. Quanto à transitividade ingênua,
Paulo Freire (1967, p. 59) assim a define:
A transitividade ingênua, fase em que nos achávamos e nos achamos hoje nos centros
urbanos, mais enfática ali, menos aqui, se caracteriza, entre outros aspectos, pela
simplicidade na interpretação dos problemas. Pela tendência a julgar que o tempo melhor foi
o tempo passado. Pela subestimação do homem comum. Pela impermeabilidade à
investigação, a que corresponde um gosto acentuado pelas explicações fabulosas. Pela
fragilidade na argumentação. Por forte teor de emocionalidade. Pela prática não propriamente
do diálogo, mas da polêmica.
Percebe-se aqui que há uma evolução do nível de consciência intransitiva para a transitiva
ingênua que ainda tende à massificação, que não prioriza o diálogo e a investigação; ainda não é
uma inquietação que se faz crítica. Beisiegel (2010) afirma que a consciência transitiva ingênua é a
consciência da existência bruta, articulada com coisas, transcorrendo no nível das coisas e por isso
destituída de destituída de subjetividade e perspectiva histórica. O homem ainda segue buscando
explicações não racionais para os fatos ocorridos. Paulo Freire (1967, p. 62) afirma que a
transitividade ingênua se caracteriza
Pelas explicações mágicas. Esta nota mágica, típica da intransitividade, perdura, em parte na
transitividade. Ampliam-se os horizontes. Responde-se mais abertamente aos estímulos. Mas
se envolvem as respostas de teor ainda mágico. É a consciência do quase homem-massa, em
quem a dialogação mais amplamente iniciada do que na fase anterior se deturpa e se
distorce.
Kronbauer (2018, p. 104) diz que a consciência transitiva ingênua já percebe a contradição
social, entretanto ainda se move nos limites do conformismo, adotando explicações fabulosas para
os fenômenos que vivencia. “Ela não é capaz do pensamento autônomo porque não se arrisca na
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investigação pelas verdadeiras causas e, por isso mesmo, não é capaz de se aventurar na direção
da mudança. É o tipo de consciência dependente, que transfere para os outros a para as
instituições a responsabilidade pela solução dos problemas” ( Ibid., p. 104)
Para Paulo Freire, esse é o grande perigo. A busca por explicações de teor mágico, essa
distorção que, se não promovida à fase de transitividade crítica, leva o homem ao fanatismo e ao
irracionalismo, diminuindo ou mesmo fazendo desaparecer o diálogo e fazendo com que este
homem, ainda que assim se acredite, deixe de ser verdadeiramente livre. “Seu gosto agora é das
fórmulas gerais, das prescrições, que ele segue como se fossem suas. É um conduzido, não conduz
a si mesmo” (FREIRE, 1967, p. 63). Eis que aqui o homem é nada mais que objeto, manipulado e
condicionado, mesmo que se creia sujeito de sua vida; o homem fanático não possui a criticidade
necessária para ver além das explicações mágicas, para encontrar a verdadeira causalidade dos
fatos. Para ver além ele precisa da transitividade crítica, que tem como principal característica a
criticidade na interpretação e na busca de resolução dos problemas. “A transitividade crítica [...] a
que chegamos com uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política,
se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas” ( Ibid., p. 60).
Nesta fase, segundo o educador, se substituem as explicações mágicas por explicações
causais, realistas e racionais. Essa fase é caracterizada também, segundo Paulo Freire (1967, p.
60)
Por procurar testar os “achados” e se dispor sempre a revisões. Por despir-se ao máximo de
preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar
deformações. Por negar a transferência de responsabilidades. Pela recusa a posições
quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo, e não da polêmica. Pela
receptividade ao novo, não apenas porque novo, e pela não recusa ao velho, só porque velho,
mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre a arguições.
A consciência transitiva crítica é caracterizada ainda “pelo desprender-se ativo das coisas,
pela aquisição de liberdade diante delas, pela historicidade” (BEISIEGEL, 2010, p. 31). Kronbauer
(2018, p. 104) afirma que a transitividade crítica “caracteriza-se pela profundidade com que
interpreta os problemas e pelo engajamento sociopolítico”. Chegando a um ponto importante que
Paulo Freire destaca acerca da transitividade crítica, que é o de que esta seria a etapa que
retomaria a matriz da verdadeira democracia. Para ele, a transitividade crítica é característica dos
autênticos regimes democráticos e das formas de vida altamente interrogadoras, inquietas e
dialogais, em oposição às formas de vida e regimes autoritários (FREIRE, 1967). “A
responsabilidade por seus atos, a atitude argumentativa dialógica e a receptividade diante do novo
são características suas” (KRONBAUER, 2018, p. 104).
Apresentadas as principais características dos três estágios a que nos dispomos refletir
aqui, perguntamos: como se dá o processo de transição entre essas fases? E buscamos novamente
em Paulo Freire as respostas. Em Educação como prática da liberdade, o autor afirma que a
passagem da consciência intransitiva para a transitiva ingênua se dá paralela à transformação dos
padrões econômicos da sociedade, conforme se intensifica o processo de urbanização e o homem
se vê lançado em formas de vida mais complexas. Um circuito maior de relações, um recebimento
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de maior número de sugestões e desafios, acaba por levar o homem a transpor a intransitividade de
sua consciência e se começa a verificar nele a transitividade, ainda aqui ingênua.
Essa transição, da intransitividade para a transitividade ingênua, se dá de forma quase que
natural e automática quando esse homem é colocado diante de uma conjuntura que lhe exija um
maior número de relações, entretanto como se dá a transição da fase de transitividade ingênua da
consciência para a fase de transitividade crítica? É em Paulo Freire também que encontramos essa
resposta. O autor afirma que essa passagem, essa transição, é o passo decisivo: ela não se dá
automaticamente, “mas somente por efeito de um trabalho educativo crítico com esta destinação”
(FREIRE, 1967 p. 61). Somente através da educação se consegue transpor a transitividade ingênua
da consciência e chegar à transitividade crítica dela. É necessário, porém, observar que esta
educação deve ter por interesse essa transposição, não pode se tratar de uma educação que tenha
por objetivo manter a ingenuidade. Essa consciência transitiva crítica surge quando o homem, ao
refletir, pode agir diante da realidade como sujeito, ativo e participante. Beisiegel (2010) observa
que, para Paulo Freire, essa consciência, intransitiva e crítica, não resulta diretamente da
transformação de infraestrutura, como na transição da intransitividade para a transitividade
ingênua. Segundo Paulo Freire (1959) é preciso que esta educação seja uma educação que
possibilite ao homem uma discussão corajosa de sua problemática, de sua inserção nessa
problemática e que o coloque em constante diálogo com o outro; “que o predisponha a constantes
revisões [...] a uma certa rebeldia no sentido mais humano da expressão. Que o identifique com
métodos e processos científicos” (Ibid., p. 33). E afirma com veemência que não há como conceber
uma educação que leve o homem ao quietismo, que não o torne consciente de sua transitividade,
que não acentue nele cada vez mais a racionalidade. Tendo consciência de que a educação, não
qualquer educação, mas uma educação crítica e problematizadora, seria o necessário para a
transição da fase de transitividade ingênua para a fase de transitividade crítica da consciência, por
que esta não acontece com a facilidade esperada? Novamente Paulo Freire traz as respostas.
Ao escrever sobre a ascensão da transitividade ingênua para a transitividade crítica da
consciência, Paulo Freire (1967, p. 63) nos diz que
Exatamente porque, significando esta ascensão uma inserção do homem na sua problemática
e a sua capacidade de optar, as ameaças aos privilégios se fariam maiores, como maior a sua
capacidade de rejeitar prescrições. [...] e o crime dos que se engajavam neste esforço era o
de crerem no homem, cuja destinação não é coisificar-se, mas humanizar-se.
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crítica total diante de sua produção. Desumaniza-o. Corta-lhe os horizontes com a estreiteza
da especialização exagerada. Faz dele um ser passivo. Medroso. “Ingênuo”. [...] Toda prática,
então, de que possa resultar a amenização da ruptura entre o homem e a sua obra,
característica da produção em série, ajudará incontestavelmente a preservar a transitivação
da consciência.
Como ultrapassar essa barreira? Paulo Freire afirma que “não será e não vem sendo, com
uma educação quase exclusivamente centrada no verbo, no livro, no programa” (FREIRE, 1959, p.
42), que é necessária uma educação que tenha outro sentido. Para o educador ( Id., 1967, p. 93)
Daí a necessidade de uma educação corajosa, que enfrentasse a discussão com o homem
comum, de seu direito à participação. De uma educação que levasse o homem a uma nova
postura diante dos problemas de seu tempo e de seu espaço. A da intimidade com eles. A da
pesquisa em vez da mera, perigosa e enfadonha repetição de trechos e de afirmações
desconectadas das suas condições mesmas de vida.
Uma educação que parta e se sustente na realidade do homem comum, na sua própria vida
e espaço. Uma educação que problematize. Uma educação que se faça crítica. Uma educação que
se faça ação. E quanto a isso Paulo Freire (1967, p. 94) afirma que
Não há nada que mais contradiga e comprometa a emersão popular do que uma educação
que não jogue o educando às experiências do debate e da análise dos problemas e que não
lhe propicie condições de verdadeira participação. [...] educação que se perca no puro
bacharelismo, oco e vazio [...] ela é verbosa. Palavresca. É “sonora”. É “assistencializadora”.
Não comunica. Faz comunicados, coisas diferentes.
E afirma enfaticamente que não seria com essa educação desvinculada da vida, centrada
na palavra esvaziada de realidade, pobre de atividades em que o educando se sinta sujeito e
problematize, que se chegaria à transição da transitividade ingênua para a transitividade crítica de
sua consciência (FREIRE, 2020, p. 125). E nesse mesmo sentido, Paulo Freire (1967, p. 97) ainda
nos diz que “nada ou quase nada existe em nossa educação que desenvolva em nosso estudante o
gosto da pesquisa, da constatação, da revisão dos achados – o que implicaria o desenvolvimento da
consciência transitivo-crítica”, pelo contrário “a sua perigosa superposição à realidade intensifica
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no nosso estudante a sua consciência ingênua” (Ibid., p. 97). Para o educador “a própria posição da
nossa escola, de modo geral acalentada ela mesma pela sonoridade da palavra, pela memorização
dos trechos, pela desvinculação da realidade, pela tendência a reduzir os meios de aprendizagem
às formas meramente nocionais, já é uma posição caracteristicamente ingênua ( Ibid., p. 97).
É preciso uma educação que seja capaz de auxiliar o homem em uma ação reflexiva de sua
existência, de seus problemas e de seu espaço. É necessária uma “educação que lhe pusesse à
disposição meios com os quais fosse capaz de superar a captação mágica ou ingênua de sua
realidade, por uma dominantemente crítica” (FREIRE, 1967, p. 107). Porque só a consciência
transitivamente crítica é capaz de produzir no homem a ciência necessária para que este se
transforme e transforme a sua realidade. Gerhard (1996, p. 161) destaca a intenção de Paulo Freire
com a educação, afirmando que tinha como foco a libertação em relação aos mecanismos
opressores das classes dominantes e que “os objetivos da educação constituem, [...] a facilitação
de uma transformação radical da estrutura social” (Ibid., p. 161) E para que essa educação se
concretize é imprescindível que os educadores e educadoras se comprometam com a
problematização e criticização da construção do saber com seus educandos e educandas.
Corrobora com a nossa análise a obra Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à
prática docente, Paulo Freire (2020) que centraliza seu texto em torno dos saberes que ele crê
necessários para a prática docente de educadores e educadoras críticas, progressistas – também
necessários aos educadores e educadoras conservadores. “Saberes demandados pela prática
educativa em si mesma, qualquer que seja a opção política do educador ou educadora” (FREIRE,
2020, p. 23). E esses saberes partem do princípio de “reconhecer que somos seres condicionados
mas não determinados. Reconhecer que a história é tempo de possibilidade e não de determinismo,
que o futuro [...] é problemático e não inexorável” (Ibid., p. 20).
Nos permitimos, aqui, delinear um passo a passo que acreditamos seja um possível
caminho para auxiliar os homens e mulheres a transporem a consciência transitivamente ingênua,
e para isso nos centramos no papel dos educadores e educadoras nesse processo. O primeiro
passo para que se possa transpor a transitividade ingênua é o reconhecimento, por parte dos
educadores e educadoras, de que é possível fazer acontecer essa transposição. Reconhecer, como
foi citado acima, que a mudança é viável e que existem possibilidades; que mesmo estando
condicionados a permanecer na ingenuidade, temos a capacidade de transformação e superação. O
segundo passo para a transposição da transitividade ingênua é assumir-se como sujeito também
da produção do saber; o convencimento de que ensinar não é transferir conhecimento, mas sim
criar as possibilidades para que este seja produzido ou construído (FREIRE, 2020, p. 24). O terceiro
passo seria compreender que é imperativo que educadores e educadoras se façam críticos e
recusem o ensino bancário, pois o educando e a educanda submetidos a ele estão fadados ao
fracasso ao terem deformada sua criatividade (Ibid., p. 27). O quarto passo para transpor a
ingenuidade se dá no respeito ao saber que os educandos e educandas trazem consigo quando
chegam à escola, saberes esses muitas vezes sem rigor científico e pertencentes ao senso comum;
é preciso que haja respeito por esses saberes no processo de sua necessária superação e, o
estímulo para essa superação (Ibid., p. 31). E, por fim, é necessário que a docência verdadeira não
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não podendo ser neutra, tanto pode estar a serviço da decisão, da transformação do mundo,
da inserção crítica nele, quanto a serviço da imobilização, da permanência possível das
estruturas injustas, da acomodação dos seres humanos à realidade tida como intocável. Por
isso, falo da educação ou da formação. Nunca do puro treinamento. Por isso, não só falo e
defendo mas vivo uma prática educativa radical, ou das razões de ser dos fatos. E
compreendendo facilmente como uma tal prática não pode ser aceita, pelo contrário, tem de
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ser recusada, por quem tem, na maior ou menor permanência do status quo, a defesa de seus
interesses. Ou por quem, atrelado aos interesses dos poderosos, a eles ou a elas serve. Mas,
porque, reconhecendo os limites da educação, formal e informal, reconheço também a sua
força, assim como porque constato a possibilidade que têm os seres humanos de assumir
tarefas históricas, que volto a escrever sobre certos compromissos e deveres que não
podemos deixar de contrair se nossa opção é progressista [...] o nosso testemunho, pelo
contrário, se somos progressistas, se sonhamos com uma sociedade menos agressiva, menos
injusta, menos violenta, mais humana, deve ser o de quem, dizendo não a qualquer
possibilidade em face dos fatos, defende a capacidade do ser humano de avaliar, de
comparar, de escolher, de decidir e, finalmente, de intervir no mundo.
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MAYOR, Federico. Primeiras palavras. In GADOTTI, Moacir (Org.). Paulo Freire uma
biobibliografia. São Paulo: Cortez Editora, 1996. P. 17-18.
Doutora em Educação pela UNISINOS. Atua também como colaboradora no Programa de Pós-
Graduação em Educação na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS, Campus Osório-
RS. Coordenadora/líder do Grupo de Pesquisa: GIPEJA - Grupo interdisciplinar de pesquisas em
Educação de Jovens e Adultos e Educação Popular: direito, políticas públicas e processos
educacionais. Cadastrado no CNPQ.
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