UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E POLÍTICAS
DISCIPLINA: SOCIOLOGIA GERAL
PROFESSOR: RODOLFO NORONHA
MONITORA: CLARA SOUZA
P2 – VALOR: 10,0 PONTOS.
ALUNO: VÍTOR DOS SANTOS FERREIRA
MATRÍCULA: 20231361048
Questão 01
No capítulo “Deriva”, Richard Sennett aborda a questão do trabalho no capital
flexível e o caráter, reverberando conceitos dos autores clássicos, como Marx, Weber e
Durkheim. Construindo o contraste entre duas gerações, a do pai Eurico e a do filho Rico,
Sennett identifica suas trajetórias, na ocupação, nas relações de trabalho, na perspectiva
de vida e nas preocupações de cada um, traçando a partir desses perfis uma aproximação
com os tipos sociais de Max Weber, na medida em que representam um perfil médio1,
capaz de sintetizar as características de cada uma das gerações a respeito dos temas.
Na investigação sobre as relações de trabalho, podemos destacar a influência dos
três autores clássicos. De Weber, por relacionar trabalho e corrosão do caráter, espelhando
a relação entre valor moral e trabalho. Em Weber, a Ética protestante sustenta a ideia de
um trabalho edificante, a serviço do desenvolvimento moral. Em Sennett, é feita a
distinção entre as trajetórias: A do pai, um faxineiro, que buscou uma carreira como
assalariado – relação típica do capitalismo de sua época, com perspectivas a longo prazo,
tendo preocupações em possibilitar ao filho o que não teve, uma formação universitária e
uma vida melhor. A do filho, que se sustenta com Jobs, já tendo atuado em variadas áreas,
tendo uma função indeterminada, não sendo assalariado, mas dependendo de relações
contratuais com seus clientes-patrões. A instabilidade de suas dinâmicas de trabalho, que
1
“Se ele é o Homem Comum de sua época, sua universalidade pode estar em seu dilema (SENNETT,
2009, p.33)”
sugerem uma vida com mais liberdade e risco, traduz o capitalismo flexível e reflete na
formação de seu caráter, em corrosão.
Tal análise remete a Durkheim, quando este considera as diferenças entre
sociedades simples e complexas, e estabelece que nessas últimas existem instituições que
são espaços de socialização privilegiados, como a escola, a família e a igreja, que
intermediam a influência determinante da consciência coletiva sobre as consciências
individuais. Na modernidade, o trabalho é uma dessas instituições que merecem uma
análise. No capitalismo flexível, no entanto, rompe-se com a capacidade de imposição de
fatos sociais, na medida em que estes lugares antes privilegiados agora também não
possuem uma forma sólida e definida, sendo provisórios e cedendo ao imediatismo. Este
cenário impossibilita o desenvolvimento da lealdade e do compromisso mútuo2.
Perpassando esses contratos de trabalhos, esses Jobs, desprovido de uma
perspectiva de longo prazo e instigado a se reinventar sempre, Rico, o filho, se sente dono
de seu próprio negócio, sem perceber a precariedade das suas condições, camuflada na
promessa de liberdade e ousadia (risco). Possui algum dinheiro, mas muda de bairro e
casa e seus filhos não permanecem em uma só escola. Em função dos Jobs, mal tem tempo
de vivenciar a vida em família e não acompanha o desenvolvimento deles. Apesar da
formação universitária, suas dinâmicas de trabalho são bem diferentes das esperadas pelo
pai – que visava conceder estabilidade ao filho.
Diante dessa precariedade, podemos relacionar a trajetória de Rico ao trabalho
alienado de Karl Marx. Em Marx, o trabalho alienado produz exploração, enquanto ocorre
uma projeção de qualidades, fazendo com que a classe operária se identifique com os
proprietários dos meios de produção. No caso de Rico, a busca por acumulação custa o
próprio caráter e a possibilidade tipicamente humana de projetar o próprio destino,
ficando assim à deriva. Se em Marx, o trabalhador não se reconhece no que é criado nas
linhas de montagem, desprovido do domínio do processo criativo e incapaz de reproduzir
as etapas produtivas por conta própria sem a indústria, em Sennett, em Enrico, era
possível ao menos projetar a melhoria para a vida da geração seguinte. No entanto, as
transformações do capitalismo evidenciam que nem isso foi possível, já que as conquistas
2
“Como se podem manter lealdades e compromissos mútuos em instituições que vivem se desfazendo
ou sendo continuamente reprojetadas (SENNETT, 2009, p.11)?”
importantes pra geração passada não servem para que Rico consolide e estruture bases
para seus filhos se desenvolverem posteriormente, comprometendo seu modelo paterno.
A incerteza das relações de trabalho atinge, portanto, atua na corrosão do caráter.
Questão 02
A modernidade apresenta ao mundo uma sociedade racionalizada, burocratizada
e desencantada. O processo de criação do Estado Moderno caminha lado a lado com o
processo de racionalização da vida social, que tenta abarcar a colossal complexidade das
novas relações humanas. Desencantada, a vida moderna é marcada pela perda do sentido
da existência, vinculada à modificação da relação do ser humano com a natureza. Esta
passa a ser vista como meio para obtenção dos interesses, sendo quantificada,
racionalizada e não mais dotada de uma relação entre o sobrenatural e a matéria. O
desencanto despiu o sujeito moderno de certos costumes e crenças e abriu espaço para a
necessidade de legitimação. É nesse cenário que a burocratização se manifesta, como uma
forma de organização administrativa e para Max Weber, como uma forma de dominação
legitimada na legalidade (portanto, não no poder patriarcal ou carismático, por exemplo),
sendo marcada pela formalização, pela impessoalidade e, no âmbito da política, pela
presença dos políticos profissionais. É a partir dessa leitura que será possível analisar a
notícia sobre o político Joaquim Roriz e identificar a presença do conceito de dominação
de Weber.
Diferenciando-se da visão positivista de Durkheim, que faz uso da suposta
neutralidade da Ciência, Weber faz um recorte na realidade social, partindo da
constatação de que ela não é mensurável tal qual a realidade natural, direcionando sua
abordagem para a captura de frações desse todo, num olhar para o que é relevante numa
determinada ação social (racional ou não), considerando o agente individual.
Considerando, também, metodologicamente, a influência da subjetividade do
pesquisador, a Sociologia de Weber dedica-se às ocorrências particulares utilizando os
tipos ideias, construções teóricas, abstratas que ressaltam características escolhidas pelo
pesquisador e que permitem uma aproximação específica com esses objetos de estudo,
para que a comparação entre diferentes fenômenos seja possível. Assim, o pesquisador
organiza o modo como vai dar conta da infinita realidade cultural e histórica, captando a
objetividade possível a partir da própria escolha subjetiva.
Constituindo o social a partir de ações individuais, à primeira vista isoladas,
Weber localiza a dominação como o fator que proporciona a continuidade/ manutenção
da vida social, sendo a realidade social como um complexo de estruturas de dominação.
A dominação é legitimada. Nela, a vontade de quem manda influi sobre os atos de
outro(s), “como se os dominados tivessem adotado por si mesmo e como máxima de sua
ação o conteúdo do mandato (obediência)” (WEBER3 apud QUINTANEIRO;
BARBOSA; OLIVEIRA, 2002, p 120). A dominação também possui seus tipos ideias,
podendo ser tradicional, carismática ou legal/burocrática e é a partir deles que poderemos
nos aproximar do contexto, da postura e do discurso de Joaquim Roriz.
A notícia relata um político que usa trejeitos de pastor para manifestar sua posição
política, mirando eleitores evangélicos, que constituem um grupo grande, alinhado e
decisivo de eleitores, mas também outros perfis. Partindo dos tipos ideais é possível
identificar elementos que remetem a cada um dos tipos no fenômeno descrito.
É possível associar o caso à dominação carismática, que diz respeito a um líder
que se destaca da multidão, dotado de algo para além do comum, extraordinário aos
olhares dos que o obedecem. Se essa dominação não está plenamente efetuada no
exemplo da notícia, é possível ponderar, por outro lado, que a corrida eleitoral sempre
utiliza inúmeros recursos para a construção desse carisma – e que muitos já perderam ou
ganharam eleições por esta razão. Ao discursar sobre o que os eleitores querem ouvir,
com declarações contra o PT e assumindo certa agressividade e extremismo (sobretudo
ao demonizar o partido rival), Joaquim constrói sua imagem pública diante de todos
buscando se alinhar com uma tendência comportamental já presente na sociedade, embora
ainda latente (a notícia é de 2010). O que o coloca como extraordinário nesse exemplo?
O fato de expressar em um papel de destaque e com habilidade discursiva e gestual
exacerbado e aparentemente valente, a insatisfação já timidamente presente em
determinados grupos sociais. Com oportunismo, exerce-se, portanto, a personificação de
uma liderança corajosa, por oposição ao que se deseja mostrar sobre o PT, uma figura
associada não ao demônio, mas a Deus, não ao vermelho do inferno, mas ao azul do céu,
não ao mau, mas ao bem. São apelos emotivos que miram a adesão irracional à liderança
3
Não foi permitido o uso de referência para além das disponibilizadas.
proposta. Conforme menciona o texto da notícia, os candidatos precisam se adaptar para
ganhar a simpatia desse público.
A dominação tradicional, considerada mais estável do que a anterior, é utilizada
de modo sutil e vinculada à dominação carismática, pois o discurso citando valores do
imaginário cristão atinge o eleitor evangélico e, por analogia ou sobreposição, sugere
traços comuns entre o político e o pastor, ainda que por instantes e por uma confusão de
sentimentos e percepções da figura de líder político com a figura de líder religioso (tal
como a mulher que vira gorila por um jogo de espelhos no circo, na atração popularmente
nomeada de “Monga”). Acessando o discurso, o gestual e a postura messiânica de
combate ao mau, pela salvação humana, o político, aos olhos dos evangélicos, pode
provocar certa obediência e fé cega semelhante a proporcionada na instituição religiosa.
Tendo um exemplar da Constituição nas mãos como quem carrega uma bíblia sagrada,
Joaquim soube criar um cenário híbrido entre religião e política. Onde impera a fidelidade
(os seguidores evangélicos são chamados de fiéis) e a prática cotidiana de costumes
baseados em um papel moral no mundo, não é difícil de imaginar certa submissão por
parte dos eleitores evangélicos a um candidato que de alguma forma reforce a autoridade
dos valores e dogmas da tradição religiosa. Desse modo, o campo de debate político, lugar
de relativização, pode ser visto como um púlpito onde uma linha de pensamento
considerada verdadeira manifesta e defende ideias “intocáveis”, “inquestionáveis” –
polarizando radicalmente a política. Como no tipo anterior, novamente o irracional é
provocado a favor da manipulação da relação entre o eleitor e o político.
Weber considera esses dois tipos relativamente instáveis. A estabilidade é mais
consolidada na dominação com bases jurídicas, no tipo de dominação legal ou
burocrática, em que a organização racional, característica da modernidade, se faz
presente. No entanto, não há progresso linear que se direcione necessariamente e
diretamente a este fim e em estados de crise e descontinuidade, o líder surge como agente
da ruptura, opondo novamente encanto e técnica, magia e razão.
Ainda assim, é possível compreender porque a dominação racional é a finalidade
de Joaquim Roriz e como os dois outros tipos aparecem como caminhos possíveis para a
concretização do terceiro tipo citado, que ganharia forma numa possível vitória no
processo eleitoral, passando a ser garantida pela validade do estatuto legal. Também é
possível compreender pela dinâmica dessas relações como o eleitor evangélico se tornou
tão interessado em eleger os seus “irmãos” religiosos, diante do esforço da bancada da fé
de promover esta presença maciça4.
Questão 03
Durkheim caracterizou o fato social, o objeto de sua abordagem sociológica, como
externo ao indivíduo, mas sendo capaz de exercer controle sobre este, expondo a relação
de influência da consciência coletiva sobre as consciências individuais (mirando a coesão
social). O ser social apresenta-se assim como um organismo, tendo em seus órgãos
diversas funções que se complementam, demonstrando, portanto, em sua coesão, uma
estabilidade que não evidencia disputas e tensões. Bourdieu adapta a ideia de fato social,
inserindo a política e um campo de disputa, a partir do conceito de poder simbólico.
Para Bourdieu, conhecer o mundo é atribuir significado a ele, é construir a
realidade social, (re)organizando os símbolos e ressignificando os sentidos em campos de
disputa. A compreensão da sociedade requer um olhar para as estruturas. Elas são espaços
que estruturam a lógica de compreensão da realidade, pois operam na construção de novos
significados, sendo, portanto, estruturantes, mas que também são estruturadas, na medida
que partem de símbolos já concebidos pela integração lógica entre o símbolo e
significado. Dentro do que ele chamou de campo, sistemas simbólicos que produzem e
operam símbolos, é definido o que é sagrado e o que é profano, ou seja, o que está inserido
ou alheio aos símbolos dominantes do contexto referido.
As estruturas não são fixas, não são dadas, e dentro delas há uma disputa para
configurar quem tem o poder de atribuir significado às coisas num determinado campo e,
portanto, dar um sentido universal aos interesses particulares, dar um tom de necessário
ao que é contingente e obra de uma força dominante, mas que não é fixa. É assim no
campo das Artes, por exemplo, em que a própria definição do que é Arte requer
participações de certas figuras que se tornam referências, especialistas, como artistas
influentes ou curadores. Ainda assim, em diversas épocas, vanguardas diferentes
determinam esse discurso e essa lógica. Um operador de caixa do McDonalds, sem
qualquer vínculo com este meio e desprovido do acesso aos símbolos dominantes, não é
capaz de exercer a criação e operação dos símbolos, que é um exercício de poder,
4
Não à toa, o Bispo Macedo escreveu um livro denominado “Plano de Poder: Deus, os cristãos e a
política”.
exercício de poder simbólico. Este não possui, portanto o capital simbólico necessário
para se inserir na disputa daquele campo e muitas vezes sequer é capaz de compreender
certos modos de manifestação artística.
O capital simbólico se relaciona com o capital material, já que um produz e
mantém o outro. Portanto, o poder simbólico não trata apenas de discurso, pois, na medida
em que constrói a realidade, atua sobre a integração social, já que a assimilação dos
símbolos pressupõe um consenso no âmbito da comunicação que estabelece sentido
acerca do mundo social, podendo, por exemplo, dissimular o elo entre os esquemas
sociais e a reprodução destes. O poder simbólico atinge assim a possibilidade de
manutenção ou não da ordem social, já que a consolidação do que é divino ou profano
num campo estabelece um elo entre os seus diferenciando-se dos que são estranhos a este.
Questão 04
a)
A palestra de Direito Penal recebeu o título “Punir é a solução?”, almejando
realizar uma “análise crítica sobre o sistema penal brasileiro”. Participaram Roberta
Pedrinha, advogada, Doutora em sociologia e Pós-Doutoranda em Criminologia e Direito
Penal, Pedro Rennó, Defensor Público e Mestre em Teoria do Estado e Direito
Constitucional e Djeff Amadeus, Diretor de Litigância Estratégica do Instituto de Defesa
da População Negra, Mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica.
A introdução feita pelos alunos organizadores, relata o sumiço de um conhecido
vendedor de amendoins, que trabalha em Botafogo, nas proximidades do CCJP. Por dias
sem notícias, os estudantes se preocuparam com seu destino. No entanto, ao
reencontrarem com ele, perceberam que ele usava tornozeleira e que cumpria medidas
restritivas. Essa figura humana, diante de seus conflitos e diante do Direito Penal, motivou
a organização do evento.
Na primeira fala de um convidado, Roberta Pedrinha percorreu os fundamentos
que sustentam o sistema penal brasileiro, desenvolvendo os temas da colonização punitiva
e do(s) abolicionismo(s), evidenciando elementos ocultos que contribuem para a
manutenção da punição como solução e apontando outras formas de lidar com a questão.
Pedrinha identificou a estrutura do sistema penal oficial como instrumento de
controle social, tecendo uma comparação sobre a desigualdade entre a estrutura e o
sujeito: a primeira se organiza racionalmente em suas diversas etapas (e definindo o que
é crime como uma instância política) e o segundo, muitas vezes, opera por motivações
como desespero e impulsividade.
O sistema penal produz dor e sofrimento e também dessubjetivação (conceitos
apresentados a partir de Deleuze e Guattari e mencionados por Pedrinha ao citar as
solitárias). Nas prisões, podemos perceber como há um sistema extraoficial que também
produz mortes, suicídios, torturas, lidando com a letalidade e produzindo também o crime
(como exemplo, a advogada citou o nascimento do PCC nos presídios). A prisão é
apresentada como uma fonte de embrutecimento humano, de desumanização, motivado
pelas funções ocultas da pena: que é a manifestação de uma vingança, social e privada.
Pelas citações de Franz Fanon e Angela Davis e mencionando o exemplo do caso
Rafael Braga, Pedrinha explicitou a herança da colonialidade que nos leva a compreender
a prisão e o sistema penal como sendo direcionados a um perfil específico. A prisão pode
ser vista como lugar de subalternidade, um dos lugares do negro, que também se identifica
com o lugar do pobre – o que implica em considerarmos a raça como pilar do sistema
opressivo e outra função oculta da pena (função econômica): pôr os pobres, a reserva de
mão de obra, num “depósito humano”.
Citando o caso da criminalização da maconha em El Paso, Texas, também
motivada pela perseguição aos mexicanos (que não cruzaram a fronteira, pois ali já
estavam em seus antepassados), a palestrante chega a questão das drogas, principal
bandeira utilizada pelo discurso conservador para justificar o uso da letalidade como
medida razoável. No entanto, há um número expressivo de casos de receptação ou de
outros crimes não violentos ligados às drogas e todo aparato que contribui para direcionar,
pela miséria e pelo desespero já citado, um certo perfil até zona de marginalidade (que
carrega em si a exclusão5). É nesse contexto que a punição, manifestada como vingança
seletiva, não aborda o contexto justamente e apenas reduz toda a rede de sustentáculos
que produzem o crime.
5
Giorgio Agambem fará referência ao Homo Sacer, de vida nua, como um sujeito que é incluído no
ordenamento jurídico na medida de sua exclusão.
A tendência à ampliação da pena máxima, defendida por nomes como Flávio
Bolsonaro e Carla Zambelli, demonstra como a colonização punitiva ainda encontra
reverberação, no Congresso, mas também no imaginário popular. O pensamento clássico
dentro do Direito Penal, apesar das décadas de convivência com a análise crítica, necessita
ainda ser questionado e problematizado. Em contraposição à redução do problema,
Pedrinha enfatizou a necessidade de ouvirmos as vozes de quem vivencia essa violência
direcionada e de construir a visibilidade dos corpos negros, tratados desigualmente pelo
sistema penal.
Como base teórica para expandir esse questionamento, ela lançou mão do
abolucionismo, situando este em sua pluriversalidade e até mesmo como destino posterior
a outros caminhos possíveis, como o realismo marginal racial e perspectiva minimalista.
Na prática, indicou a mediação, a conciliação, a reparação de danos e a justiça restaurativa
como possibilidades para esse caminho em construção.
O segundo palestrante, Pedro Rennó, iniciou demonstrando o acordo com a fala
anterior e buscou interagir com os estudantes presentes, instigando uma mobilização, ao
menos do pensamento, em um primeiro momento – desafiando “o silenciar da utopia que
podemos viver”.
A partir da experiência como Defensor, ele relatou que nem sempre o que estava
acontecendo em seu campo de atuação era o que estava de fato acontecendo, dialogando
assim com as funções ocultas da pena, expostas por Roberta Pedrinha, mas expandindo o
caráter oculto para o jogo de cena dos tribunais e da defesa criminal.
Segundo Rennó, em seu processo de abstração, o Direito “mente pra gente”, e para
além da dogmática, faz-se necessário buscar produzir um pensamento que não adote a
priori os pressupostos dados. O que não necessariamente nos levará a construção de uma
escrita acadêmica, pois ele se refere a produção desse pensamento como um guia para o
posicionamento político – assumir a própria trincheira. No caso dele, Rennó cita uma
atitude que teve no exercício de sua função (exigindo um intérprete russo em um caso
específico) e que criou um constrangimento nesse jogo de cena. Seu posicionamento foi
capaz de criar o estranhamento para o que está sendo ocultado pelo jogo de cena, mas que
não deveria ser.
Reforçou como o Direito mantém as chaves de opressão sobre classe, gênero e
raça, e como é importante evidenciar a “batalha silenciosa das famílias dos presos” e
outras batalhas silenciadas pelo sistema penal. Referindo-se aos estudantes, indicou que
é preciso buscar saber sobre esses casos e também sobre quem luta para expor tais casos,
como os mecanismos de prevenção à tortura e a própria Defensoria Pública.
O interesse por tais questões é imprescindível para o estudante de Direito, mas
não somente para este. O debate público é apresentado pelo palestrante como um caminho
necessário à sociedade como um todo, pois o avanço depende dele. Cita como exemplo o
casamento gay na Argentina, que a partir de duas pesquisas, uma contemporânea a criação
da lei, e outra feita dez anos depois, após anos de convivência, reeducação e debate, revela
maior aceitação e tolerância com a causa.
Além disso, o palestrante apresentou a linguagem como parte das estruturas de
poder. Embora a questão sobre a redução da violência não se reduza à linguagem, seu
campo teórico também faz uso dela com um manejo linguístico específico, derivado do
discurso criminal. No entanto, ele é campo de disputa e o debate materializa esses
contrastes. Sendo assim, os estudantes, segundo Rennó, enquanto membros da academia
estão em um lugar de privilégio e esse lugar de privilégio nos faz perceber o que não está
dado, o que está nas entrelinhas: toda a violência por trás do sistema penal. “É ok?”,
perguntou o palestrante. É razoável perceber essa realidade e não se incomodar e agir,
ainda mais no nosso papel de estudantes de Direito?
Se não há ainda uma resposta precisa para a pergunta que inaugurou a palestra, há
em comum entre os dois primeiros palestrantes, a convicção argumentada e exemplificada
de que o sistema penal atual possui enormes problemas e desafios a serem superados,
incluindo a pena como solução. Rennó fixou com sua fala que caminho para essa
superação é o debate e que os estudantes de Direito precisam achar a própria fronteira, as
próprias causas e um pensamento autêntico, crítico, capaz de enxergar o problema em
suas sutilezas, em suas entrelinhas, mas também sendo capazes de fazer uso da
sensibilidade, do senso de humanidade, para que seja possível transformar injustiça em
incômodo.
O Djeff Amadeus expôs o conceito de “normalpatia”, referente a normalização da
barbárie, reforçando a fala anterior ao associar barbárie e ausência de sensibilidade. Citou
a sua experiência com a população da comunidade do Jacarezinho, de como se aproximou
de uma cena de corpos assassinados pela polícia junto dos moradores e cantando música
de louvor para que não fosse baleado pela força policial. O que não impediu a tentativa
de intimidação da PM, que ameaçou atirar, e reverberou em outras falas como “não é
papel do advogado estar aí”.
Sobre um caso de racismo exposto, questionou se a pena seria a melhor solução e
exemplificou com um caso em que a solução foi a criação do calendário de combate ao
racismo científico (ao invés da aposta no sistema penal).
O palestrante indicou algumas referências para abordar e transformar o tema,
como a organização, o estudo (citou Paulo Freire e a frente de soldados que vai a batalha
deixando outra parte para contribuir com outras dimensões para além da guerra), a
consciência política (saber o que somos para saber o que queremos) e a realidade material.
Concluiu se dirigindo à turma sobre como os brancos ali presentes, ou qualquer
outro, não são culpados pela estrutura de desigualdade que se mantém, também por meio
do sistema penal, mantendo assim o negro em lugares subalternos. Os brancos não têm
culpa, mas sim responsabilidade – enfatizando o uso do Direito de modo estratégico e a
favor de outra configuração possível.
Após as falas, a abertura para as perguntas revelou com precisão a medida do
trabalho que será preciso realizar por debates e outras formas de pôr as invisibilidades em
evidência (invisibilidades dos sujeitos e das ideias): as três primeiras questões ignoraram
o teor do que havia de mais urgente sendo debatido. Os estudantes tentaram levar a
questão para a prática, buscando entender em que caso se aplicaria ou não a pena. O
propósito da palestra, no entanto, se localizou um passo atrás: a própria ideia de pena
como solução estava sendo questionada, por todas as razões expostas: manifestar uma
vingança, uma racionalização da imposição da dor e do sofrimento (não há toa a tortura
e o sadismo se manifestam na prisão e nas forças policiais), um modo de manter os corpos
pobres e negros docilizados, um modo de reforçar que só há um culpado pelos crimes,
enquanto vimos que o crime também é produto do sistema penal.
Como resumo do que a palestra deixou de mais enriquecedor: as referências de
autores e a intensidade de quem encontrou a própria trincheira – inspiradora e que nos
instigou a uma aproximação dos abolicionismos no campo criminal, a encontrar uma
trincheira e promover o debate crítico com nosso saber acadêmico a ser construído e a
combater a normalização da barbárie com as ferramentas disponíveis.
b)
O processo judicial, em práticas corriqueiras, mesmo em um Estado Democrático
de Direito como o nosso, costuma desobedecer ao que seria a garantia dos direitos de
defesa quando se trata de certos crimes ou supostos crimes, estabelecendo nas diferenças
de classe e raça critérios não oficiais que determinam a conduta processual abusiva. Como
exemplo, observa-se os milhares de casos de auto de resistência, conduzidos por policiais
que torturam e executam indivíduos sem que se respeite a presunção da inocência e o
devido processo legal e seus ritos. As comunidades e o subúrbio marcam a fronteira onde
essas atrocidades “podem” ocorrer normalmente, como prática comum – já que não é
observado o mesmo comportamento policial em bairros nobres. Quando os policiais
encaram os tribunais, o que vemos é uma esmagadora impunidade, que acaba por permitir
a reprodução dessas ações. Em muitos desses casos, existem provas implantadas, cenas
de crime modificadas, testemunhas intimidadas, e o que vemos aos olhos da sociedade é
apenas um “jogo de cena”, conforme mencionou o palestrante Pedro Rennó.
No filme “O caso dos irmãos Naves”, de Luiz Person, Joaquim e Sebastião, o que
vemos é a presunção de culpa, já que os irmãos sofrem tortura dos policiais como método
para obter confissões, ainda que não exista nada a ser confessado, como foi o caso dos
irmãos, presos injustamente. O pano de fundo é a ditadura do Estado Novo. Nesse
contexto, não podemos esquecer que mesmo pessoas com poder aquisitivo e influência
sofreram com arbitrariedades, sobretudo por questões políticas – cumprindo suas penas
no presídio em Ilha Grande, em condições precárias.
O “crime” dos Naves foi o suposto sumiço do primo Benedito, que devendo aos
irmãos, sumiu no mundo e só apareceu anos depois, com o estrago já feito. A visita da
família dos Naves à delegacia, para contar que viram o Benedito, não desperta o interesse
do policial, já inclinado a não acreditar na história, que passa todo o depoimento mexendo
nas unhas e ordena que um policial “segure” o Joaquim, já de saída. No depoimento de
Sebastião José, além da mesma postura, já é possível ver o tom de deboche que sobe ainda
mais, já determinando o depoimento pela ameaça psicológica. Como pano de fundo,
agressões, pauladas e sadismo sobre os dois irmãos e a mãe deles, uma senhora, Dona
Ana. Ao longo do filme, vemos que a tortura se aplicou a um bebê, com estupro sob a
presença de uma criança. Assim, as confissões são efetuadas mesmo sem prova material
– o dinheiro sumido.
Numa das cenas, o advogado procurado por Dona Ana lê o texto sobre o habeas
corpus, na cena que é seguida da sensação de tortura por espancamento – com Joaquim
deitado e Sebastião dependurado de ponta cabeça; o contraste entre a lei e a aplicação
dela, constitui o grande desafio do processo judicial – mas no caso de uma ditadura,
aberrações como a ausência de soberania do júri, permite que os seus votos pela
absolvição sejam suprimidos pelo Tribunal de Justiça, reforçando o caráter teatral do
processo legal.
A tendência a fazer do processo um meio de vingança contaminou até mesmo o
advogado de defesa, que posteriormente levou o caso até as últimas consequências. Em
seu papel fundamental para o cumprimento da defesa, o advogado chegou a duvidar da
inocência dos irmãos, o que começa a mudar com a percepção que ele tem da existência
de forte coação, violência e tortura.
É evidente que as garantias ampliadas pelo processo de democratização tendem a
reduzir ocorrências abusivas, já que estas não encontram o respaldo legal. No entanto, na
prática, conforme foi visto na fala de Djeff Amadeus, existem ainda situações em que a
presença do advogado é questionada, porque este simboliza a presença da lei e do respeito
ao processo e à defesa. Com uma hora e quatro minutos do filme, o narrador relata:
“Contrariando a ordem processual, os denunciados são interrogados depois das
testemunhas. O advogado dos Naves não é informado desse interrogatório”. De volta à
atualidade, Djeff expõe a postura policial ameaçando atirar em pessoas de mãos dadas e
cantando músicas religiosas, o que traduz o Estado de exceção para o microcosmo das
favelas.
Devido à injustiça que permanece, de 1937 a 2023, sob formas legais diferentes,
mas sob práticas igualmente violentas e repletas de vingança e devido à gravidade das
consequências de um processo legal mal executado ou distorcido, a denúncia e o combate
ao caráter vingativo do sistema penal, seja por filme, palestra ou atuação nos tribunais,
ainda se faz necessário, para que suas garantias de fato se concretizem para todos. Nem o
aparecimento posterior do suposto assassinado, Benedito, foi capaz de apagar o rastro
deixado por um assassinato, ainda que fictício.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Difel. Lisboa,
1989.
QUINTANEIRO, Tania; BARBOSA, Maria; OLIVEIRA, Márcia. Um toque de
clássicos: Marx, Durkheim e Weber – 2 ed. rev. amp. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
O caso dos irmãos Naves. Direção: Luís Sérgio Person, Brasil, 1967. Canal de YouTube
Cine Antiqua. https://www.youtube.com/watch?v=30qOGj8cASM (Acessado em 29 de
junho de 2023).
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Tradução de Marcos Santarrita. Ed.
Record. Rio de Janeiro. São Paulo, 2009.