0% acharam este documento útil (0 voto)
33 visualizações7 páginas

O Corpo Como Lugar de Ressurreição

Enviado por

6yft4bg5hj
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
33 visualizações7 páginas

O Corpo Como Lugar de Ressurreição

Enviado por

6yft4bg5hj
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 7

V COLÓQUIO INTERFACES

Corpo e teologia na sociedade do controle, do aperfeiçoamento e do cuidado

O corpo como lugar de ressurreição

Diego Patricio Vera Vélez1

Resumo: Este trabalho oferece uma interpretação do corpo como lugar de ressurreição a partir da teologia de
Karl Rahner. Nosso objetivo é descrever como a corporeidade e não simplesmente a alma é necessária para a
salvação do ser humano. Rahner compreende a ressurreição como a salvação definitiva da existência humana
diante de Deus. Sua antropologia estabelece que o ser humano não é simplesmente o espírito que por qualquer
destino veio cair no corpo, no espaço, no tempo e na história. Ele é a unidade absoluta e indissolúvel de matéria
e espírito, portanto sua ressurreição é una e total. As Sagradas Escrituras narram que foi na carne e não uni-
camente no espírito que Cristo desceu à morada dos mortos, apareceu aos seus discípulos e subiu à direita do
Pai. É o corpo do Senhor o lugar da ressurreição e a prefiguração do que o ser humano deve tornar-se um dia
após a morte. As conclusões da nossa pesquisa visam os desafios de compreender uma escatologia que integre
a corporeidade do ser humano e não somente sua alma perante a salvação.

Palavras-chave: Corpo. Morte. Ressurreição.

INTRODUÇÃO

Tradicionalmente concebe-se o espírito ou a alma imortal como um dos elementos


dentro da totalidade do ser humano que se pode encontrar imediatamente em estado puro,
distinto em sua natureza do resto dos outros elementos constitutivos do ser humano, susci-
tando assim certo menosprezo pela corporeidade. Esta compreensão fundamenta-se princi-
palmente no livro do Eclesiastes quando afirma que com a morte, o espírito volta para Deus
enquanto o corpo retorna à terra da qual foi formado (Ecl 12,7). No entanto, esta passagem
simplesmente indica que na morte Deus retira seu alento vivificante e o ser humano desce
ao sepulcro, não afirma nem nega explicitamente a separação de corpo e alma. Na atualidade,
a morte ainda é concebida como uma mera cisão entre matéria e espírito. As pessoas rezam
pela salvação das almas dos seus defuntos, mas despreocupam-se com a ressurreição dos seus
corpos.

De acordo com Rahner, explicar a morte como uma separação de corpo e alma, como
se ambos fossem diferentes entre si, não permite compreender a ressurreição final da carne,
assim como a professamos no Credo, embora permita entender a subsistência do ser huma-
no após a morte. O teólogo alemão propõe interpretar a alma como a forma substancial do
corpo sem nenhuma distinção real. Portanto, é necessário pressupor que a alma separada do
1 Licenciado em Ciências da Educação e Filosofia da Universidade Politécnica Salesiana do Equador.
Estudante de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia y Teologia. A presente pesquisa faz parte da pesquisa do
Programa de Iniciação Científica da FAJE, e foi orientada pelo Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori, como parte da
pesquisa desenvolvida no Grupo de Pesquisa “As interfaces da antropologia na teologia contemporânea”, tendo
tido apoio da FAPEMIG. Contato com o autor: [email protected]

8 | Annales FAJE, Belo Horizonte-MG, v. 8, n. 4 (2023)


V COLÓQUIO INTERFACES
Corpo e teologia na sociedade do controle, do aperfeiçoamento e do cuidado

corpo tem relação com o mundo material, ela não é acósmica, mas pancósmica. Nossa pes-
quisa busca resgatar a compreensão unitária do ser humano perante a morte proposta por
Rahner. Para isso, organizamos nosso trabalho sistematicamente em três partes. Na primeira
parte, apresentaremos uma breve reflexão sobre a morte e o pecado. Na segunda, descrevere-
mos a morte na teologia de Karl Rahner. E na terceira parte, proporemos uma reflexão sobre
a ressurreição da carne.

1 MORTE E PECADO

De acordo com as Sagradas Escrituras, a morte é consequência do pecado (Rm 6,23;


Ef 2,1). Os primeiros seres humanos foram criados por Deus com a possibilidade de não
morrer. O ser humano morre porque seus primeiros pais se afastaram voluntariamente da
vontade de Deus, perdendo assim a justiça original e com ela a possibilidade da imortalidade.
Essa justiça original era a íntima união com Deus pela graça, que transformava a natureza
espiritual do ser humano e penetrava sua corporeidade. A morte, na atual economia da salva-
ção, é em certo sentido a expressão visível da ruptura de relações entre Deus e a humanidade
(RAHNER, 1965, p. 38).

Ao afirmar que a morte é a consequência do pecado, Rahner considera que antes da


queda (Gn 3), o ser humano não tinha a necessidade de morrer. Porém, a fé da Igreja não
nos diz que se não houvesse pecado o ser paradisíaco teria prolongado indefinidamente sua
vida terrena. Segundo Rahner, o ser humano teria permanecido na sua forma corporal, mas
sua vida chegaria a um ponto de consumação e plena maturidade desde dentro. Sem sofrer a
separação de corpo e alma o ser humano teria passado a uma consumação da sua existência
aberta ao mundo, o que agora é aguardado no momento escatológico da ressurreição da carne
(RAHNER, 1965, p. 39).

A morte não é só um acontecimento passivamente sofrido, que alcança igualmente a


todos os seres humanos: bons e maus. Ela é também o fim da vida e a consumação realizada
ativamente no decorrer de toda a existência humana como uma decisão distinta nos justos e
nos pecadores. Neste sentido, podemos afirmar que a morte não é meramente uma expressão
do afastamento de Deus que arrastou toda a descendência de Adão, mas que tem relação com
os pecados pessoais graves de cada pessoa (Rm 1,32; 7,9; 8,13; 9,16; 7,5; 8,2). Para Rahner, o
pecado pessoal e o pecado original encontram na morte uma representação interna: para os
ímpios, como manifestação total do pecado pessoal, e para os justos, pela relação com o pe-
cado original e pela manifestação do commorrer com Cristo2 (RAHNER, 1965, p. 57).

Nessa perspectiva, a morte dos justos e dos pecadores leva-os a alcançarem, em Cristo,
sua definitividade, como é apresentado no relato da paixão do Evangelho de são Lucas. Neste
relato, um dos homens crucificados com o Senhor consegue enxergar na morte de Cristo sua
própria morte e pede para Ele: Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino (Lc
2 Commorrer é o termo utilizado por Rahner para referir-se à participação e apropriação da morte re-
dentora do Senhor.

Annales FAJE, Belo Horizonte-MG, v. 8, n. 4 (2023) | 9


V COLÓQUIO INTERFACES
Corpo e teologia na sociedade do controle, do aperfeiçoamento e do cuidado

23,42). Esse homem moribundo compreendeu o sentido da sua morte, e Jesus que compar-
tilhava sua mesma condição sentiu compaixão e o consolou dizendo-lhe: hoje estarás comigo
no paraíso (Lc 23,43). No entanto, para o outro homem Jesus não disse nada. As trevas e o si-
lêncio mortal da sua parte nos advertem que a morte pode ser também aurora de morte eter-
na. Os cristãos no meio do temor perante o fim somos chamados a acolher a morte do Senhor
como Boa Nova que nos oferece uma vida que não conhece o ocaso. O mistério que envolve a
morte do ser humano aponta sacramentalmente para o mistério da morte de Cristo. Por essa
razão, cada cristão pode celebrar na liturgia da própria vida o mistério da morte redentora do
Senhor (RAHNER, 1965, p. 88).

2 A MORTE NA TEOLOGIA DE KARL RAHNER

A morte é um fenômeno biológico próprio de todos os seres humanos. De acordo com


os enunciados tradicionais da fé cristã, ela implica uma separação de corpo e alma. A morte
é também o fim do estado de viador, a consequência do pecado e a manifestação do nosso
commorrer com Cristo. A teologia estritamente tomista afirma que na morte a alma se separa
e individua pela relação ao corpo que não tem, mas que recuperará ao final dos tempos, quan-
do a história termine. De acordo com Rahner, pela morte, a alma não se torna acósmica, mas
pancósmica. Ou seja, ao abandonar na morte sua forma corporal limitada e abrir-se ao todo,
a alma concorre de alguma maneira a determinar o universo como fundo da vida pessoal dos
outros seres humanos enquanto seres corpóreo-espirituais. Com isso, Rahner aponta à influ-
ência dos defuntos no mundo e busca apresentar uma explicação teológica para o mistério
de comunhão entre vivos e mortos. Ao mesmo tempo, tenta expressar a influência da vida
terrena de cada pessoa no ulterior desenvolvimento da história unicamente perceptível no
momento do Juízo Final.

O ser humano está inserido no mundo e sua liberdade acontece nas diversas ações
realizadas no espaço e no tempo no decorrer da história. Essa liberdade torna-se autêntica
quando é assumida na unidade. À medida que o ser humano se percebe inteiramente, perce-
be-se também como um ser livre para alcançar a salvação. Isto significa que, quando a pessoa
tem consciência da sua unidade é capaz de responder por suas ações com liberdade autêntica
e pode compreender que o problema da existência humana é um problema de salvação que
abrange não unicamente a alma como espírito puro, mas o ser humano inteiramente.

Dado que a morte é pela sua natureza a consumação da vida temporal do ser humano,
não pode considerar-se como um acontecimento que embora seja evidentemente passivo
só passivamente se aceite. A morte é um fenômeno difícil de ser explicado e compreendido,
principalmente pela complexidade do próprio ser humano. A antropologia de Rahner enten-
de o ser humano como a estranha e íntima unidade de matéria e espírito, pessoa e natureza,
que na sua essência possui uma dialética verdadeiramente complexa. Portanto, é lógico espe-
rar que essa complexidade se evidencie na morte, pois ela é o fim do humano inteiro, mas não
inteiramente (RAHNER, 1965, p. 34).

10 | Annales FAJE, Belo Horizonte-MG, v. 8, n. 4 (2023)


V COLÓQUIO INTERFACES
Corpo e teologia na sociedade do controle, do aperfeiçoamento e do cuidado

A morte do ser humano constitui o fim do estado de viador, ou seja, do seu peregrinar


nesta vida corruptivelmente corporal. De fato, se cada pessoa termina sua vida temporal pela
separação de corpo e alma, já no momento da morte alcança sua consumação desde dentro
e seu caráter de definitividade. Portanto, essa separação entre matéria e espírito não deve
entender-se como uma simples evasão do mundo por parte da realidade espiritual do ser hu-
mano. Pelo contrário, com a morte o ser humano começa uma nova relação com o mundo, já
que sua realidade espiritual não está mais limitada pelo espaço e tempo do seu corpo humano
(RAHNER, 1965, p. 36).

A escatologia de Rahner, apresenta a morte como a definitividade e consumação do


ser humano, como a indissolúvel unidade de ação e paixão, e como o nascimento para a
eternidade. Nesta perspectiva, a eternidade não é simplesmente uma prolongação do tempo
terreno, mas o fruto do estado definitivo da liberdade humana e da decisão última de cada
pessoa. De modo que, a morte representa um sofrimento extremo, mas também uma ação da
própria liberdade. O ser humano pode ser surpreendido pela morte como o momento do fim
da sua existência, ou pode ir morrendo no decorrer da sua vida como preparação para este
momento definitivo (RAHNER, 1965, p. 92).

Constantemente vamos abandonando a vida: nos despedimos, nos desiludimos, e nos


cansamos até chegar ao momento da nossa morte. Passamos do presumível ao incompreen-
sível e irremediável. E precisamente por esta razão é possível afirmar que vamos morrendo
no decorrer de toda nossa vida e aquilo que comumente chamamos de morte não é mais
do que o fim dela mesma. A morte deve ser compreendida como façanha da liberdade do
ser humano, algo que não lhe é imposto, mas acolhido. Perante o fim, o ser humano deve
possuir uma liberdade autêntica, tanto para aceitar a morte como para sentir-se livre diante
dela. Quando, pelo contrário, o temor à morte o paralisa e busca esconder-se dela, o ser hu-
mano rejeita sua consciência de transcendência e deslegitima a própria fé na ressurreição do
Senhor (RAHNER, 1965, p. 94).

De acordo com Rahner, onde há plena liberdade, há amor à morte e coragem para
morrer. Portanto, é necessário alcançar uma liberdade autêntica que não somente acolha
a morte, mas também compreenda seu sentido. O ser humano não caminha simplesmente
para o fim da sua vida terrena como afirmava Heidegger, mas para o começo da eternidade
na definitiva consumação da sua existência através da fé. A morte é queda. No entanto, pela
fé, ela pode ser interpretada como uma queda nas mãos do Deus vivo, ao qual chamamos Pai.
Essa interpretação positiva da existência mortal como disposição sobre a totalidade da vida
é possível pela graça de Cristo. Por esta razão, chamamos fé à ação que se realiza através da
graça do Senhor, na qual cada pessoa no meio das trevas e do absurdo da morte compreende
seu próprio sentido existencial (RAHNER, 1965, p. 95).

A fé é o total abandono do ser humano em Deus em um momento incompreensível da


sua existência. Quando o ser humano morre em liberdade autêntica, fidelidade e confiança;
quando se abandona por inteiro e parece cair no vazio de um abismo sem fundo, acontece

Annales FAJE, Belo Horizonte-MG, v. 8, n. 4 (2023) | 11


V COLÓQUIO INTERFACES
Corpo e teologia na sociedade do controle, do aperfeiçoamento e do cuidado

algo que só pela graça de Deus pode acontecer: participar da morte de Cristo. Esta morte re-
dentora nos liberta da nossa própria morte e nos introduz na vida de Deus. Para os cristãos,
morrer em graça é commorrer com Cristo através da vida sacramental. Os sacramentos são
o caminho para nossa salvação porque nos remetem à graça e nos posicionam diante da co-
munhão dos santos.

Embora não todos os seres humanos sejam capazes (em todas as situações históricas
da humanidade) de tomar uma decisão explícita diante da fé anunciada, todos são capazes
de uma disposição interna de apertura a Deus (fides virtualis). De acordo com Rahner, esta
disposição interna elevada por graça de Deus, pode ser também um evento de salvação e uma
vontade ou desejo que pode equiparar-se com um ato explícito de fé. De modo que, a morte
pode também ser interpretada como uma disposição interna da liberdade humana para aco-
lher como vontade de Deus a fatalidade do fim da existência. A morte é a desaparição do ator
e da sua ação diante dos olhos dos espectadores e o caminho definitivo para chegar a Deus
(RAHNER, 1965, p. 104).

3 A RESSURREIÇÃO DA CARNE

A fé na ressurreição dos mortos não surgiu de uma elucubração conceptual, mas da


reflexão da comunidade sobre uma circunstância histórica; não foi elaborada pelos teólogos,
mas estabelecida pelos mártires: homens e mulheres que experimentaram a Deus na dor pe-
rante seu silêncio, na decepção do seu afastamento, mas também na alegria da sua presença
(Sl 16, 49, 73) e na consciência que tinham Nele sua recompensa (Sb 5,15). Para os Israelitas,
é Deus quem vai abrindo caminho na vida da comunidade e tudo acontece em torno à rela-
ção com Ele. O caráter unitário da antropologia hebraica revela que a relação com Deus não é
uma realidade unicamente futura, mas algo já experimentado no decorrer da história (RUIZ
DE LA PEÑA, 1986, p. 103)

As Sagradas Escrituras em diversas ocasiões descrevem relatos sobre ressurreições de


mortos. No entanto, é necessário esclarecer conceitual e terminologicamente o que significa a
ressurreição da carne no final dos tempos que professamos na fé cristã. O Evangelho de Mateus
27,52-53 afirma que: “se abriram os túmulos e muitos corpos dos justos falecidos ressuscita-
ram”. Do mesmo modo, em diversas ocasiões Jesus aparece realizando ressurreições como
em Lc 7,11-15; 8,49-55; Jo 11,38-44. Em outras passagens Pedro e Paulo continuam com
essa missão do Senhor como vemos em At 9,36-43; 20,9-10. Também no Antigo Testamento,
encontramos pessoas ressuscitadas por Elias e Eliseu, como em 1Rs 17,17-24; 2Rs 4,32-37;
13,20-21. Estas passagens referem-se a reanimações e não à ressurreição final da carne, como
professamos no Credo. A diferença está em que todas as pessoas que foram reanimadas even-
tualmente morrerão um dia; enquanto Jesus, o primeiro ressuscitado dentre os mortos, não
volta a morrer mais. Ele é a prefiguração do que o ser humano deve tornar-se um dia após a
morte3.
3 É nesta perspectiva que Paulo afirma “Cristo é o primogênito entre os mortos” (Cl 1,18), e “Ele ressus-
citou dentre os mortos, como primícias dos que morreram” (1 Cor 15,20).

12 | Annales FAJE, Belo Horizonte-MG, v. 8, n. 4 (2023)


V COLÓQUIO INTERFACES
Corpo e teologia na sociedade do controle, do aperfeiçoamento e do cuidado

O dogma de fé sobre a ressurreição da carne no final dos tempos refere-se à ressurrei-


ção definitiva como Cristo, cujo corpo vive eternamente. A morte não deve compreender-se
como mero sofrer ou como fatalidade destrutora que vem de fora, mas como realização últi-
ma que o ser humano aspira positivamente. Por conseguinte, a recuperação da forma corpo-
ral na ressurreição não significa a perda da abertura ao mundo como um todo, alcançada na
morte. Ao contrário, o corpo glorificado (1Cor 15), além de receber uma plasticidade perfeita
para o espírito divinizado pela graça, é expressão da pancosmicidade permanente da pessoa
glorificada (RAHNER, 1965, p. 28).

Pela encarnação no seio de Maria, o Filho de Deus se fez carne e habitou entre nós (Jo
1,14). Ao assumir nossa carne em tudo, exceto no pecado (Hb 4,15), Ele se fez semelhante a
nós também na nossa morte. Portanto, afirmar que Cristo morreu nossa própria morte não
significa que sua morte seja simplesmente e em todos os aspectos igual à nossa morte ou que
se reduza a uma mera aparência externa. As Sagradas Escrituras consideram seu descenso à
mansão dos mortos como um fato próprio da morte real de Cristo (At 2,24.31). De modo que,
quando as Sagradas Escrituras e o Símbolo da fé da Igreja afirmam que Cristo morreu, apon-
tam para uma realidade que vai além de um mero fato empírico sobre um acontecimento
histórico (RAHNER, 1965, p. 64).

A vida e a morte de Cristo constituem uma unidade: sua vida nos redime enquanto a
sua morte está presente como vontade do Pai em toda sua existência. A obediência de Cristo
é nossa redenção porque é morte e sua morte nos alcança a salvação porque é obediência.
De modo que, o ser humano na obediência à vontade do Pai vai morrendo com Cristo no
decorrer da sua vida. Pela morte de Cristo se abriu de modo novo ao mundo uma realidade
espiritual que Cristo possuía desde o princípio e que se consumou na sua morte. Portanto, a
doutrina sobre a Descensus Christi ad Inferos, não somente compreende uma ação soterioló-
gica em favor daqueles que morreram antes da sua vinda, mas é expressão da identidade da
morte interna do Senhor e sua relação com a morte de todos os seres humanos (RAHNER,
1965, p. 71).

Enfim, comumente identifica-se o hades no seu lado negativo, isto é, como carência
escatológica do corpo glorioso. Rahner resgata desta morada um aspecto positivo, implícito
na doutrina da fé, ao afirmar que na representação do hades está presente a ideia de profun-
didade ou de mundo inferior. Esta ideia sugere e inclui em certo modo o sentido do interior,
do essencial e do radicalmente um. O fato de que o ser humano desça ao hades significa que
ele entra de algum modo ao nível mais profundo da realidade do mundo, num fundo que une
radicalmente a tudo. Ao professar (no quinto artigo do Credo) que Cristo desceu aos infernos,
afirmamos que Ele entrou nessa realidade mais profunda. Assim, a humanidade espiritual
de Cristo alcança pela morte uma relação pancósmica, aberta, real e ontológica com todo o
universo (RAHNER, 1965, p. 72).

Annales FAJE, Belo Horizonte-MG, v. 8, n. 4 (2023) | 13


V COLÓQUIO INTERFACES
Corpo e teologia na sociedade do controle, do aperfeiçoamento e do cuidado

CONCLUSÃO

No decorrer dessas breves páginas percebemos como o pensamento de Karl Rahner,


apesar da sua complexidade, é apropriado para compreender a corporeidade do ser huma-
no como parte constitutiva da salvação e da ressurreição da carne no final dos tempos. O ser
humano lembra-se da morte não necessariamente porque caminha e é um ser para ela, como
afirmava Heidegger, mas porque a morte é um mistério sofrido no corpo de Cristo. Na pri-
meira parte do nosso trabalho percebemos como a morte, além de ser uma consequência
do pecado, representa a ruptura das relações entre Deus e o ser humano. Na segunda parte,
Rahner nos ensina que com a morte o ser humano começa uma nova relação com o mundo.
De modo que, no momento da morte cada pessoa alcança sua consumação desde dentro e
seu caráter de definitividade.

Na terceira parte do nosso trabalho, vimos como a fé cristã apresenta a ressurreição da


carne como uma realidade que atingirá o ser humano inteiramente em corpo e alma. A recu-
peração da forma corporal na ressurreição da carne no final dos tempos, como afirma nossa
profissão de fé, não significa a perda da abertura ao mundo como um todo alcançada na mor-
te. Pelo contrário, o corpo glorificado pela graça é expressão da pancosmicidade permanente
da pessoa glorificada. Com isto, Rahner busca apresentar pedagogicamente uma escatologia
que integra a corporeidade do ser humano e não somente sua alma perante a salvação.

REFERÊNCIAS
A BÍBLIA Sagrada. Tradução da CNBB. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2002.

RAHNER, Karl. Sentido teológico de la muerte. Barcelona: Herder, 1965.

RUIZ DE LA PEÑA, Juan Luis. La otra dimensión: escatología cristiana. 5.ed. Bilbao: Sal Terrae. 1986.
(Presencia Teológica, 29).

14 | Annales FAJE, Belo Horizonte-MG, v. 8, n. 4 (2023)

Você também pode gostar