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Eclesiologia Domrobinson

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DISCLAIMER

Essa versão digital do livro foi compilada por Douglas


Araujo para uso pessoal e compartilhamento com a
comunidade local.

Nenhum texto foi alterado ou modificado de nenhuma


forma, no intuito de preservar o escrito do nosso queri-
do Dom Robinson Cavalcante.

O livreto a seguir é um compilado recuperado com mui-


to trabalho de 15 artigos publicados por Dom Robinson
Cavalcanti no site dar.org.br (que não mais existe desde
o fim de 2009)

Caso haja alguma ilegalidade na publicação, favor entrar


em contato e excluiremos imediatamente. Foi feita uma
extensa pesquisa no processo de espólio do falecido
Dom Robinson e nenhum herdeiro a quem pudéssemos
solicitar permissão foi localizado. O processo de espólio
corre no TJPE em busca de herdeiros válidos desde
27/03/2012 e pode ser acompanhado pelo nª
0002617-05.2012.8.17.0990

Contato: [email protected]
Douglas Araujo - Vitória/ES
Janeiro de 2022
A Igreja é portadora de doutrinas, ou seja, de verda-
des reveladas sistematizadas, que formam parte da sua
identidade e da sua missão. As doutrinas, emanadas das
Sagradas Escrituras e compreendidas pela Tradição Apos-
tólica, devem ser entendidas e ensinadas interna e exter-
namente. Há uma diversidade de campos doutrinários, e
um deles – de suma importância – é a doutrina sobre a
própria Igreja (a Eclesiologia). E é aí que reside uma das
fragilidades atuais da Igreja: estuda e ensina sobre tudo,
menos sobre ela própria, ou, quando o faz, é de modo su-
perficial ou deficiente. Essa é uma constatação crescente.
Do coração do Senhor nos chega duas preocupa-
ções centrais com a sua Igreja: a preocupação com a uni-
dade, “para que todos sejam um”, e a preocupação com a
verdade, “o Espírito conduz a toda a verdade”. Esses dois
desejos do Senhor não estão sendo cumpridos. As here-
sias e ensinos exóticos se multiplicam nos extremos do
espectro, desde a “verdade pluriforme” ou inatingível do
liberalismo pós-moderno, às “revelações” particulares e
pretensamente complementares de círculos ultra-pente-
costais. Por outro lado, estamos atingindo o ponto mais
baixo da degradação divisionista: a túnica inconsútil está
rasgada, o Corpo dilacerado. Um debate estéril é o que
se trava para se saber o que é “menos ruim”: se um Cor-
po dividido que ensina a Verdade, ou se um Corpo unido
às custas da Verdade. A divisão do Corpo, em si, já atenta
contra a verdade, e a unidade sem verdade é uma falsa
unidade. A Igreja, pois, vive em pecado, e em grave peca-
do, não demonstrando consciência disso, não se arrepen-
dendo e não tomando medidas de correção. Uma Igreja
dividida e herética perde a autoridade missionária e per-
de a autoridade disciplinar interna.
O Jardim do Éden não precisava de Igreja, porque
todo o povo era Povo de Deus. A Nova Jerusalém não pre-
cisará de Igreja, porque a noiva já casada verá, outra vez,
todo o povo como Povo de Deus. Entre o Pecado Original,
com a expulsão do Paraíso, e o Juízo Final – a História – es-
tamos sob a Providência salvífica de Deus, com seus Pac-
tos (Adão, Noé, Abraão, Moisés), a Primeira Aliança com o
Povo de Israel: espaço para a religião correta (monoteís-
mo), para a ética pessoal correta (mandamentos), para a
ética social correta (ano sabático e ano do jubileu), para a
Lei, para os Profetas e para a vinda do Messias. Deus não
enviou anjos, mas trabalhou na História, concretamente,
com seres humanos. Com o advento do Messias, cessou o
papel de Israel (que nada tem a ver com o Estado de Israel
atual), e nenhuma nação terrena pode pretender hoje o
status de “povo escolhido”.
A Igreja é a Segunda Aliança, divinamente instituí-
da e humanamente constituída. De todas as nações para
todas as nações, nos ensina o apóstolo Pedro, ela é a her-
deira universal dos títulos anteriormente atribuídos a Is-
rael: como “casa espiritual”, “sacerdócio santo”, “sacerdócio
real”, “geração santa”, “nação santa”, “povo adquirido” (I Pe
2:5-10). Para o reformador protestante Martinho Lutero,
se Israel quiser se salvar hoje deve ser re-enxertado no
Novo Israel, a Igreja. Mistério e Sacramento, espaço da
Graça, ensaio da Nova Humanidade, vanguarda do Reino
de Deus. Saímos da dispensação da Lei para a dispensa-
ção da Graça.
Pensar a Igreja é pensar sobre um organismo vivo
e sobre uma organização. Ou seja, a Eclesiologia deve in-
cluir sempre o pensar sobre a natureza da Igreja, sobre a
vida da Igreja, sobre a doutrina da Igreja, sobre a missão
da Igreja e sobre a organização da Igreja ( “church order”).
A ausência de qualquer um desses itens resulta no dano
de uma mutilação.
Quanto à sua natureza não podemos somente afir-
mar que é divinamente instituída (dimensão espiritual),
ou que é humanamente constituída (dimensão social,
histórica, cultural), mas sempre ambas as coisas. Importa
dizer que uma organização sem um organismo vivo se re-
duz a uma mera instituição humana, mas um organismo
vivo sem organização humana é algo descarnado ou algo
anárquico.
A vida interna da Igreja, tendo como paradigma
a Igreja primitiva, deveria incluir os vínculos de afeição
(o amor), o estar juntos, a oração, o estudo da Palavra,
a adoração e o louvor, a ministração mútua dos dons, a
hospitalidade, a partilha dos bens, a celebração dos sa-
cramentos (Atos 2:37-41, 4:32-35). Não se pode hipertro-
fiar ou atrofiar qualquer uma dessas dimensões, sem que
acarrete em dano para o Corpo.
A Igreja veio para uma tarefa, uma missão, e ou é
missionária, ou não é Igreja. Quem realiza a missão é a
Igreja, e a Igreja só tem sentido realizando a missão. São
faces da mesma moeda, indissociáveis. Ser orientado para
a Igreja é ser orientado para a missão, e ser orientado para
a missão é ser orientado para a Igreja. Ao longo dos sé-
culos, e particularmente na Idade Contemporânea, con-
trovérsias teológicas têm resultado em parcializações da
missão. O que denominamos de Missão Integral da Igreja
é apenas a recuperação da totalidade do ensino bíblico a
respeito (a Grande Comissão e o exemplo de Jesus): evan-
gelismo, ensino, comunhão, serviço e profetismo.
A organização da Igreja, a partir das Escrituras e das
respostas do Espírito Santo às necessidades humanas, foi
construída – na reflexão teológica e na práxis – ao longo
dos séculos, em um surpreendente “consenso dos fiéis”,
ou “mente da Igreja”, pelas experiências Bizantina, Assíria,
Pré-Calcedônica (Siriana, Copta, Etíope, Armênia, India-
na), Celta e Romana. A Reforma Protestante, ao priorizar
o tema da autoridade da fonte de revelação (as Escrituras
canônicas do Antigo e do Novo Testamentos) e a Sote-
riologia (salvação pela Graça mediante a fé) teve o seu
ponto débil justamente na Eclesiologia. As ênfases sote-
riológicas e missiológicas do Evangelicalismo, e Pneuma-
tológica do Pentecostalismo incorreram na mesma lacu-
na. O Arcebispo de Cantuária, Robert Runcie, falando ao
1º NEAC (Congresso Nacional Evangélico, na Inglaterra),
reconhecendo o valor do Evangelicalismo, fez um apelo
para que este reconhecesse a sua fragilidade nessa área,
procurando corrigi-la, para o bem da Igreja.
A escandalosa fragmentação denominacionalista
(com suas “denominações”, “sub-denominações”, “pós-de-
nominações”, “ministérios” e “jurisdições”), fruto da carne
(com as congratulações do inferno), e as consciências
anestesiadas diante dessa tragédia, indicam a seriedade
do momento em que vivemos, da necessidade do “saco”
e da “cinza”, para que o crescimento da Igreja não resulte
em mera inchação. Afinal “denominação” não é um termo
teológico, mas sociológico, inventado pelos norte-ameri-
canos no século XVIII, não está na Bíblia, nem nos Pais da
Igreja ou nos Reformadores.
No primeiro texto, ressaltamos a Igreja como um
Povo Universal da Nova Aliança, a dispensação da Graça,
com sua natureza, sua vivência interna, sua doutrina, sua
missão e sua organização. Ressaltamos o momento atual
de falta de verdade e falta de unidade. Por outro lado,
o denominacionalismo surgido nos Estados Unidos no
século XVIII e a “anabatistização” do protestantismo lati-
no-americano (Samuel Escobar) concorrem para a fuga
racionalizante de que “o que importa é a igreja invisível”,
ou “a unidade espiritual” (platonismo), e para uma visão
localista das “igrejas”, com a perda da prioridade da Igreja.
No Credo Apostólico afirmamos: “Creio... Na Santa
Igreja Católica”.
No Credo Niceno afirmamos: “E cremos na Igreja
Una, Santa, Católica e Apostólica”.
A Confissão de Augsburgo , luterana, de 1530, em
seu Artigo 8º, nos ensina que: “...a igreja cristã, propria-
mente falando, outra coisa não é, senão a congregação
de todos os crentes e santos...”.
A Confissão Helvética , reformada, de 1562, em seu
Artigo 17, elabora o tema:
“A Igreja é a assembléia de todos os santos, isto é,
dos que verdadeiramente conhecem, adoram correta-
mente e servem o verdadeiro Deus em Cristo, o Salva-
dor, pela palavra e pelo Espírito Santo, e que, finalmente,
participam, pela fé, de todos os benefícios gratuitamente
oferecidos mediante Cristo”... Segue-se, necessariamente
que existe uma só Igreja. A Igreja Católica. Por isso cha-
mamos de “católica” a essa Igreja, porque é universal... Mi-
litante e Triunfante. Uma é declarada a Igreja Militante e a
outra a Igreja Triunfante. A primeira ainda milita na terra...
A outra já deu baixa e triunfa no céu... Entretanto, essas
duas Igrejas têm comunhão e união uma com a outra. A
Igreja Militante na terra tem tido, sempre, muitas igrejas
particulares. Contudo, todas estas devem se referir à uni-
dade da Igreja Católica” .
A Confissão Helvética se refere à unidade espiritual,
mística, entre a Igreja Militante e a Igreja Triunfante, a “co-
munhão dos santos” e não à unidade no interior da Igreja
Militante, que deve ser visível, visto que é composta de
pessoas vivas, inserida no tempo e espaço, na cultura e
na conjuntura. O termo “igreja particular” se refere, por
séculos, aos ramos históricos em sua expressão nacional
ou regional.
Uma Igreja sadia começa pela consciência de per-
tença à Igreja Católica, Militante, e, em seguida, às igrejas
particulares, nacionais ou regionais.
A Igreja é Apostólica porque foi dirigida pelos após-
tolos após a Ascensão de Jesus, até quase o final do pri-
meiro século, e porque se fundamenta em seus ensinos
e em suas práticas. Os apóstolos foram chamados e co-
missionados, pelo próprio Cristo, como portadores de au-
toridade para ligar e desligar (o que a teologia luterana
chama de “Ofício das Chaves”).
Comentando sobre esse período, Emil Brunner, em
O Equívoco sobre a Igreja (pp.31,32), escreve:
“...o que eles receberam deve ser passado para
o mundo. E o que eles receberam tem o pleno
peso da autoridade divina final. Sem os após-
tolos não haveria cristianismo, ou, mais preci-
samente, sem a autoridade divina dos após-
tolos não haveria Ecclesia. A comunidade de
Jesus só é concebível, somente eficaz, como
uma comunidade apostólica...na Ecclesia do
período do Novo Testamento, a posição de
autoridade completamente não democrática
e hierárquica ocupada pelos apóstolos, está
baseada no fato de que somente eles são as
primeiras testemunhas da história da salva-
ção, que todos os outros devem receber a pa-
lavra da salvação somente deles, e somente
deles ela pode ser recebida. Discordar neste
ponto é discordar não de fundamentos cató-
licos, mas cristãos. A contingência da revela-
ção na história condiciona a contingência da
preeminência atribuída aos apóstolos” .
O que Brunner está claramente negando é a lenda
da “democracia direta”, defendida pelos congregacionais,
ou da “democracia indireta” defendida pelos presbiteria-
nos em sua equivocada releitura, de frente para trás, da
História da Igreja, na verdade elaborações de teóricos
quando da substituição da aristocracia pela burguesia
como classe hegemônica no Ocidente, quando este vai
substituindo a servidão pelo capitalismo, como modo de
produção.
Os apóstolos trataram do governo da Igreja, seja no
episódio da substituição de Judas por Matias (At 1:15-26),
na designação dos diáconos (At 6:1-7), na resolução das
primeiras controvérsias (At 15). Descolando-se do Templo
de Jerusalém e das sinagogas, de uma seita judaica para
uma fé universal, a igreja nascente vai sendo organizada
não democraticamente, mas teocraticamente (Deus – o
Filho de Deus – os Apóstolos – os indicados pelos apósto-
los – os sucessores dos apóstolos). O carisma não existia
solto da autoridade constituída.
A Igreja de Jerusalém, presidida pelo apóstolo Tiago,
o irmão do Senhor, foi a primeira “igreja local” e a primeira
“mega-igreja” (mais de cinco mil membros), em um mo-
delo auto-centrado, que não cumpria a Grande Comissão.
Foi preciso que o Senhor, em sua Providência , levantasse
uma perseguição que destruiria aquela comunidade e o
seu modelo eclesiástico, e daria um impulso no empreen-
dimento missionário. “Naquela ocasião desencadeou-se
grande perseguição contra a igreja em Jerusalém. Todos,
exceto os apóstolos, foram dispersos pelas regiões da Ju-
déia e de Samaria... Os que haviam sido dispersos prega-
vam a palavra por onde quer que fossem” (At 8: 1b, 4).
A Igreja desloca o seu centro para Antioquia, e daí
para Alexandria, Éfeso, Corinto, Colossos, Filipos, por toda
a Ásia Menor, sul da Europa e norte da África, com cida-
des-pólos com suas igrejas-sedes regionais (Sés) com
seus bispos, presbíteros e diáconos. Se, em um primeiro
momento os termos episkopos (bispos) e presbyteroi se
confundem, logo haverá uma diferenciação, uma presi-
dência, uma supervisão regional, tomando como modelo
a administração greco-romana. “Paulo e Timóteo, servos
de Cristo Jesus, a todos os santos que estão em Filipos,
com os bispos e diáconos” (Fp 1:1).
Já no segundo século há uma clareza sobre o gover-
no apostólico da Igreja no pensamento dos Pais Apostóli-
cos, em particular em Inácio, Bispo de Antioquia.
“Na Igreja de Uganda, o Anglicanismo tem
sido construído sobre três pilares: os márti-
res, o reavivamento e o Episcopado histórico.
E cada um deles se refere à Palavra de Deus,
a base sobre a qual nos edificamos”. (Henry
Orombi, Arcebispo Primaz).
No Período Apostólico (33-90 A.D.) tivemos o fecha-
mento do Cânon do Novo Testamento, e nele podemos
encontrar a natureza da Igreja, sua vida comunitária e sua
missão. O governo da Igreja, com o processo de expan-
são e de institucionalização, e a sistematização doutriná-
ria contra as heresias, vão se dar no período seguinte, o
dos Pais Apostólicos, a geração que conviveu e foi disci-
pulada pelos Apóstolos, e destes recebeu a autoridade e
a tarefa para preservar sua herança, e dar respostas, em
dependência do Espírito Santo, às novas necessidades e
desafios.
A Igreja, nos finais do primeiro século e início do
segundo século, havia deslocado o seu centro irradiador
de Jerusalém para Antioquia, e é um dos seus primeiros
bispos, sucessor dos apóstolos, Inácio, que será o grande
pioneiro na reflexão eclesiológica daquele período. Titu-
lar de um profícuo Episcopado, Inácio seria martirizado
(entre os anos 107 e 110 A.D.). Antes, porém, escreveu
uma série de sete cartas: a Policarpo de Esmirna, aos Efé-
sios, aos Magnesianos, aos Tralianos, aos Romanos, aos
Filadelfienses, aos Esmirniotas, onde exorta as Igrejas a
perseverarem na doutrina apostólica, condenando as he-
resias nascentes, e que esse compromisso com a verdade
deveria se dar em unidade: unidade para com Deus em
Jesus Cristo, unidade entre si como comunidade de fé, e
unidade com os seus dirigentes – os Bispos, os Presbíteros
e os Diáconos. Em seus textos já há um reconhecimento
explícito das três ordens.
Ensina Inácio de Antioquia:
“...convém caminhar de acordo com o pensa-
mento de vosso bispo, como já o fazeis. Vos-
so presbitério, de boa reputação e digno de
Deus, está unido ao bispo” (aos Efésios, 4.1);
“...eu vos felicito por estardes unidos a ele, as-
sim como a Igreja está unida em Jesus Cristo,
e Jesus Cristo com o Pai” (ibid., 5.1);
“...devemos olhar ao bispo como ao próprio
Senhor” (ibid., 3.1);
“...por isso vos peço que estejais dispostos a
fazer todas as coisas na concórdia de Deus,
sob a presidência do bispo, que ocupa o lugar
de Deus, dos presbíteros que representam o
colégio dos apóstolos, e dos diáconos que são
muito caro para mim, aos quais foi confiado o
serviço de Jesus Cristo” (ibid., 6.1);
“...uma voz de Deus: permanecei unidos ao
bispo, ao presbitério e aos diáconos” (aos Fila-
delfienses, 7.1).
E, ainda, escreve:
“...foi o Espírito que me anunciou dizendo:
“não façais nada sem o bispo, guardai vossos
corpos como templos de Deus, amai a união,
fugi das divisões, sede imitadores de Jesus
Cristo, como ele também o é do seu Pai” (ibid.,
2.2);
“...sem o bispo ninguém faça nada do que diz
respeito à Igreja” (aos Esmirnionitas, 8.1);
“...é bom reconhecer a Deus e ao bispo. Quem
respeita o bispo é respeitado por Deus; quem
faz algo às ocultas do bispo, serve ao diabo”
(ibid., 9.1).
Inácio de Antioquia põe particular ênfase na Euca-
ristia como celebração da unidade, e é o primeiro escritor
cristão a usar a expressão “Igreja Católica”: “...onde aparece
o bispo, aí esteja a multidão, do mesmo modo que onde
está Jesus Cristo, aí está a Igreja Católica” (ibid., 8.2). Ele é,
também, enfático em afirmar que o modelo de governo
episcopal não é algo peculiar a Antioquia, ou de algumas
Igrejas, mas que era algo já estabelecido por toda a Igreja
“até os confins da terra” (ao Efésios, 3.2).
Da geração seguinte, ainda no primeiro século,
destaca-se a figura de Irineu, Bispo de Lyon, discípulo do
mártir Policarpo, que, reafirmando o legado doutrinário
dos Apóstolos, elaborou notável trabalho apologético
contra as heresias dos Gnósticos e dos Montanistas, com
uma mensagem cristocêntrica (com as duas naturezas)
e o caráter canônico dos quatro evangelhos. Suas obras
principais foram: “Contra os Hereges” e “Demonstração da
Pregação Apostólica”.
Irineu elabora a compreensão da Tradição Apostó-
lica:
“...poderíamos enumerar aqui os bispos, que
foram estabelecidos nas igrejas pelos apósto-
los, e os seus sucessores até nós, e eles nunca
ensinaram, nem conheceram nada, que se pa-
recesse com o que essa gente vai delirando...
com efeito, queriam que os seus sucessores,
aos quais transmitiam a missão de ensinar...” (
Adversus Haereses, III, 3.1);
“...Os bem aventurados apóstolos que fun-
daram e edificaram a igreja, transmitiram o
governo episcopal a Lino (...) Lino teve como
sucessor Anacleto. Depois dele, em terceiro
lugar, depois dos apóstolos, coube o episco-
pado a Clemente, que tinha visto os próprios
apóstolos e estivera em relação com eles, que
ainda guardava viva em seus ouvidos a pre-
gação deles e diante dos olhos a tradição (...)
A este Clemente sucedeu Evaristo, a Evaris-
to, Alexandre; em seguida, sexto depois dos
apóstolos, foi Sisto; depois dele, Telésforo,
que fechou a vida com glorioso martírio; em
seguida Higino, depois Pio, depois dele, Ani-
cleto. A Anicleto sucedeu Sóter, e, presente-
mente, Eleutério, em décimo segundo lugar
na sucessão apostólica... com esta ordem e
sucessão chegou até nós, na Igreja, a tradição
apostólica e a pregação da verdade. Esta é
uma demonstração mais plena de que é uma
e idêntica a fé vivificante que, fielmente, foi
conservada e transmitida, na Igreja desde os
apóstolos” (ibid., III, 3.3).
Irineu enfatiza a ligação entre sucessão apostólica
nos bispos e a sucessão da doutrina dos apóstolos, e a im-
portância das Sés Episcopais (igrejas-mães, onde o bispo
tem assento, cátedra = catedrais).
Por desconhecimento, ou preconceito, há quem
pense que o Episcopado foi uma construção muito poste-
rior, medieval, e não algo estabelecido no final do primei-
ro século e início do segundo século, na transição entre
os Apóstolos e os Pais Apostólicos; ou que o Episcopado
era uma das formas de governo encontradas naquela
época, e não a única forma, como podemos ver, pois não
há nenhum trabalho, de nenhum pensador, defendendo
outra forma; ou que o Episcopado era algo localizado, e
não algo universalmente aceito, adotado e ensinado.
O terceiro grande sistematizador da eclesiologia
episcopal foi Cipriano de Cartago, em meados do século
terceiro (como veremos no próximo texto). A partir daí o
assunto não era nem discutido, tal o seu consenso, por
dezesseis séculos, até a Reforma Protestante.
“Nossa Eclesiologia é, sem dúvida, cipriânica:
Um território, com um povo e o clero em tor-
no do seu bispo”.(Michael Nazir-Ali, Bispo de
Rochester).
Cipriano (Thascius Caecilius Cyprianus), convertido
do paganismo com paixão pelo Senhor e por Sua Palavra,
em apenas dois anos após o seu batismo, era eleito Bispo
de Cartago, a potência do norte da África que rivalizava
com Roma, e de que seria, posteriormente, derrotada nas
“Guerras Púnicas”. Foi ele quem convocou dois impor-
tantes Concílios de Bispos daquela região. Escreveu 81
epístolas e 11 monografias, destacando-se “A Unidade da
Igreja Católica” (De Catholicae Ecclesiae Unitate), em que
defende a unidade, a verdade e a santidade como marcas
da Igreja. Foi martirizado (degolado), em 14.09.248 , du-
rante a perseguição do Imperador Valeriano.
A Igreja de Cristo, a Igreja Católica, para Cipriano,
deve ser uma e é uma, pois procede de Cristo e de um só
núcleo, confessando a ortodoxia herdada dos apóstolos,
e sob a autoridade da sua liderança: os Bispos. O Episco-
pado seria uma providência divina para preservar a uni-
dade da Igreja. Os apóstolos foram escolhidos por Cristo,
e os Bispos estão no lugar dos apóstolos, como seus su-
cessores, e ocupam esse cargo por decisão de Deus:
“...ao largo dos tempos, vai-se continuando
a sucessão dos Bispos e a administração da
Igreja, de sorte que a Igreja sempre esteve
estabelecida sobre os bispos, e todo ato da
Igreja era dirigido por estes propósitos” (De
Unitate, 23.4).
Os Bispos presidem as suas Dioceses e se mantêm
em comunhão com os outros Bispos, como uma só Or-
dem, preservando a unidade. Sendo o Bispo símbolo de
unidade e guardião da fé, requer-se, do Clero e dos fiéis,
submissão à sua autoridade. São dele as conhecidas fra-
ses: “Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja
como mãe”, e “Ninguém se salva fora da Igreja”.
Ele não somente reafirma a existência de três or-
dens de ministros na Igreja: os Diáconos, os Presbíteros e
os Bispos, mas compreende essas ordens como cumula-
tivas. Identifica os Bispos com os apóstolos (apóstolos, it
est episcopos), e se preocupou com a seriedade, inclusive
do processo de sagração episcopal:
“...com toda diligência, é preciso guardar a tra-
dição divina e as práticas apostólicas, e é pre-
ciso atentar para o que se faz entre nós, que
é o que se faz em quase todas as províncias
do mundo, a saber, que para haver uma or-
denação bem feita, os bispos mais próximos
da mesma província se reúnam com o povo
a frente de estar o bispo ordenado” (Epístola,
67.5).
A referência ao termo Igreja é sempre em seu sen-
tido geral: a Igreja Católica. Os conceitos de “Igreja par-
ticular” ou “província”, para suas expressões regionais, e
de “Diocese”, para suas expressões locais, já eram de uso
corrente.
Estávamos, então, no terceiro século de existência
da Igreja, e a compreensão e a prática do governo episco-
pal estava estabelecida e consolidada em todo o mundo.
Não seria mais uma preocupação, nem dos Concílios, nem
da terceira geração, os Pais da Igreja, nem das gerações
anteriores. Estávamos diante de uma clara percepção da
“mente da Igreja”, do “consenso dos fiéis”, percebida como
uma resposta iluminada pelo Espírito Santo, a velha fór-
mula “pareceu-nos bem ao Espírito Santo e a nós”. Esse
sistema estava mencionado no mais antigo texto de ins-
trução para a Igreja (do primeiro século): o Didaké, e re-
gistrado nos mais antigos dos seus historiadores, como
Eusébio de Cesaréia (História Eclesiástica), e tomado por
sentado pelos Pais da Igreja.
Concluído o Cânon neo-testamentário (e de toda a
Bíblia), que decisões principais foram tomadas pelo con-
senso da Igreja:
1. O estabelecimento do próprio Cânon (que livros
deveriam ou não integrar a Bíblia);
2. O estabelecimento da Doutrina, o que deveria ou
não ser crido, e isso foi feito com a redação dos Credos:
Apostólico e Niceno;
3. O estabelecimento de uma forma de governo
para a Igreja, o que foi feito com o Episcopado.
Vale a pena chamar a atenção para o fato de que
tivemos controvérsias posteriores sobre o Cânon (com
o acréscimo dos deuterocanônicos pela Igreja de Roma,
oficializado pelo Concílio de Trento), e sobre os Credos
(com o acréscimo da cláusula “filioque” (procedente do
Pai e do Filho), pela Igreja Ocidental, rejeitado pelas Igre-
jas Orientais). Mas, nenhuma controvérsia se deu sobre o
Episcopado entre o século I e o século XVI (Reforma Pro-
testante).
Unidade, Santidade, Catolicidade e Apostolicida-
de foram percebidas como as marcas centrais da Igreja.
Durante os séculos seguintes, o final da Idade Antiga e a
Idade Média, questões regionais, culturais, políticas e de
aspectos tópicos da doutrina iriam resultar na divisão ins-
titucional da Igreja em apenas quatro ramos (a malfadada
expressão “denominação” ainda não havia sido cunhada),
três no Oriente (A Igreja Assíria (nestorianos), as Igrejas
Pré-Calcedônicas (Siriana, Armênia, Copta, Etíope e Ma-
labar/Índia) e as Igrejas Bizantinas), majoritárias, e em
comunhão com o Patriarcado Ecumênico de Constanti-
nopla, e uma no Ocidente (a Igreja Romana ). E só, por
dezesseis séculos. Espalhadas por todo o mundo, e, sem
exceção, todas Episcopais.
Até a Reforma Protestante, pelo critério de antigui-
dade, de universalidade, de consenso e de funcionalida-
de, não havia dúvidas, de quaisquer naturezas, de que a
Igreja deveria ser dirigida pela tríplice ordem de minis-
tros, sob a liderança dos bispos, e que esse sistema, oriun-
do dos apóstolos, era uma provisão que teria como fonte
o Espírito Santo.
E aí chegamos à ambigüidade (como tudo no hu-
mano) em que se constituiu a Reforma Protestante do
Século XVI: por um lado combateu os erros, desvios e su-
perstições absorvidas, principalmente pela Igreja do Oci-
dente, durante a Idade Média, afirmou a centralidade das
Escrituras Canônicas do Antigo e do Novo Testamento
como a fonte primária de Revelação ( Sola Scriptura), e a
centralidade da salvação apenas em Jesus Cristo, apenas
por uma resposta de Fé à sua oferta de Graça (Sola Gra-
tia, Sola Fide ). Nesses aspectos, de fonte de Revelação e
de Doutrina de Salvação (soteriologia), afirmei, em minha
juventude, que o 31 de outubro de 1517 foi “o dia mais
importante para a Igreja depois do Dia do Pentecostes”;
mas, por outro lado, o seu descaso ou construções equivo-
cadas quando a Eclesiologia, foi a gênese desse processo
incessante e pecaminoso de fragmentação institucional
do Corpo de Cristo. A busca da verdade se fez à custa da
unidade, e o sacrifício da autoridade como mantenedo-
ra da verdade daria lugar, posteriormente, também, com
o Liberalismo e as revelações particulares, provocando,
igualmente, a perda da Verdade.
“Os Apóstolos designaram bispos e diáconos
em cada lugar, e foram eles que deram a di-
reção de como o ministério deveria se perpe-
tuar”, (Clemente, terceiro Bispo de Roma).
“Em meados do segundo século, todos os
centros de liderança do Cristianismo, apare-
ciam com seus próprios bispos, e, desde en-
tão, até a Reforma, o Cristianismo em toda a
parte estava organizado sob uma base epis-
copal” (The Oxford Dictionary of the Christian
Church).
Em um período histórico muito curto, os Apóstolos
e os Pais Apostólicos, em pleno processo de expansão
missionária, estabelecimento de comunidades em uma
diversidade de contextos e culturas, escolha do Cânon bí-
blico e explicitação doutrinária, foram capazes de elabo-
rar uma forma de governo para a Igreja universalmente
aceito e implantado.
É verdade que foi um processo complexo e assimé-
trico, que, nos momentos iniciais já estava claro o papel
dos Diáconos, mas que se usou os termos Bispos e Pres-
bíteros às vezes como sinônimos, que os Bispos, como
supervisores, presidiram conselhos com outros Presbíte-
ros. Mas, os desafios das crescentes heresias concorreram
para a separação dos papéis dos Bispos e dos Presbíteros,
cabendo ao primeiro zelar pelo sagrado depósito da fé
apostólica, mantendo a Igreja em verdade e unidade. A
tríplice ordem: diáconos-presbíteros-bispos. O historia-
dor W. Walker (História da Igreja Cristã, vol. I, p.71) reco-
nhece que “por volta de 160, o episcopado... tinha se tor-
nado quase universal”.
Nos séculos seguintes a Igreja se fracionaria entre
os três ramos orientais (assírios, pré-calcedônios e bizan-
tinos), e no ramo ocidental (Roma). Os assírios (nestoria-
nos) foram os que primeiro partiram para um pique mis-
sionário, chegando à Índia e a China, estabelecendo 400
Dioceses, contando cerca de quatro milhões de mem-
bros, para serem esmagados, primeiro pelos mongóis, e,
depois, pelos islâmicos, reduzidos, praticamente à Pérsia
(Irã). Os pré-calcedônios se consolidaram no Egito (Cop-
tos), a partir de Alexandria (Sé de São Marcos), converte-
ram a Etiópia e enviaram missionários para várias partes
da África, com uma base maior na Eritréia, e, desde Antio-
quia, e, depois, Damasco, estabeleceram uma florescen-
te presença (até hoje) na Índia, no Estado de Kerala, atri-
buindo esse empreendimento à própria presença de São
Tomé, e a Armênia, tantas vezes vítima de genocídios, foi
a primeira nação cristã, no final do terceiro século. Assí-
rios e Pré-Calcedônios nunca estiveram sob a autoridade
de Bizâncio ou de Roma.
Os Bizantinos evangelizaram no norte da África, na
bacia do Mediterrâneo (Chipre), na Grécia, Sérvia, Romê-
nia, Bulgária, Ucrânia, e, com a conversão da Rússia, che-
garam à Sibéria e ao Alaska (onde, até hoje, temos Igrejas
de norte-americanos descendentes de russos). O domí-
nio islâmico, a partir do oitavo século, sobre quase toda
a região onde eram majoritários, à exceção da Rússia, à
semelhança dos assírios e dos pré-calcedônios, pratica-
mente fez cessar sua atividade missionária. Eles haviam
reconhecido o Bispo de Roma como um “primado de
honra” (em virtude da capital do império), mas rejeitaram
sua pretensão de autoridade universal, bem como todos
os dogmas posteriores, e decisões de Concílios que não
representavam toda a Igreja.
A Igreja de Roma, única no Ocidente (à exceção da
Igreja Celta, nas Ilhas Britânicas, os primeiros sete sécu-
los), evangelizou grande parte da Europa, integrou os
diversos povos ditos “bárbaros”, plasmando uma civiliza-
ção e uma instituição política: o Sacro-Império Germâni-
co-Romano. Nessa caminhada se envolveu em uma re-
lação promíscua com o Estado, presenciou a corrupção
dos costumes internos, tolerou superstições e decretou
dogmas que nem tinham base bíblica, nem consenso da
Igreja Universal. Vários movimentos reformadores foram
tentados internamente: alguns cooptados (franciscanos),
outros reprimidos (lollardos, hussitas). No século XVI a si-
tuação era grave, e o palco da História estava pronto para
uma Reforma.
A Reforma Protestante do Século XVI não se deu
em todo o espaço da Igreja, não incluiu os três ramos da
Cristandade Oriental, mas foi um fenômeno no interior da
Igreja do Ocidente (Roma), e, em nenhum momento pre-
tendeu fundar uma nova religião, mas reformar a Igreja
Ocidental. Não se reforma o que não existe. Os seguido-
res tanto da Primeira Reforma (Luteranos e Anglicanos),
quanto da Segunda Reforma (Calvinistas) reconheciam a
Igreja de Roma e as Igrejas do Oriente “como autênticas
expressões da Igreja de Cristo, embora eivadas de erros,
desvios e superstições”. A História da Igreja era reconhe-
cida; a presença do Espírito Santo, desde o dia de Pente-
costes até então, idem; os Credos e os Sacramentos, idem.
A Reforma era contra não a Igreja e sua herança positiva,
mas contra esses “erros, desvios e superstições”.
Há, por um lado, um consenso entre os Reformado-
res sobre a Soberania de Deus, a autoridade singular das
Sagradas Escrituras e a Salvação pela Graça mediante a
Fé, e um dissenso sobre o sentido dos dois sacramentos
por todos aceitos: o Batismo e a Ceia do Senhor (Eucaris-
tia). O processo se torna mais problemático com o sur-
gimento da Terceira Reforma, ou “Reforma Radical” (Ana-
batistas, primeiro; menonitas, congregacionais e batistas,
depois), com a progressiva construção da lenda da “apos-
tasia geral da igreja” (como se o Espírito Santo dela tivesse
se afastado, salvo esporádicos episódios, desde a morte
dos apóstolos, ou o edito de Constantino até a Reforma),
rejeitando a Primeira e a Segunda Reforma como “insufi-
cientes”, inclusive negando os sacramentos, pretendendo
recomeçar de zero. A Primeira e a Segunda Reformas ain-
da se referem à Igreja, Una, Santa Católica e Apostólica, a
Reforma Radical não.
Os Reformadores tendem a um conceito minimalis-
ta e localista da Igreja: uma comunidade de fé, que en-
sina corretamente a Palavra, que celebra corretamente
os Sacramentos (ou “Ordenanças”) e que aplica correta-
mente a disciplina. Essa preocupação com a pureza da fé
e a realidade da crise institucional e moral da Igreja de
Roma levaram a uma despreocupação ou a uma rejeição
(anabatistas) de dezesseis séculos de pensamento e vida
da Igreja. A Eclesiologia, então, se tornaria no “calcanhar
de Aquiles” da Reforma Protestante. A produção teológi-
ca sobre esse tema foi limitada, bem como o seu lugar
nas Confissões de Fé e Catecismos. O Episcopado – ora
histórico, ora não histórico – foi por alguns mantido, e se
inventaram os sistemas presbiteriano e congregacional.
Com esse dissenso, se abria as portas para a fragmenta-
ção do Corpo de Cristo.
No início do século XVI o “governo da Igreja” não era
um assunto para debate, porque não existiam “modelos”,
mas – tanto nos três ramos Orientais quanto no ramo Oci-
dental – só se conhecia um e único modelo: o Episcopal,
agrupado em “igrejas particulares” (“províncias”, nacio-
nais/regionais) e “igrejas locais” (dioceses).
Com a “Primeira Reforma”, os Luteranos, pretende-
ram manter esse modelo. A “Confissão de Augsburgo”
afirma o “profundo desejo”, o “sincero desejo”, de “manter
a praxe da Igreja e os diversos graus da hierarquia ecle-
siástica”. A tensão dizia respeito à moral e à doutrina dos
expoentes da hierarquia. Nos países onde também os an-
tigos bispos romanos (ou uma hierarquia reorganizada)
aderem à Reforma, se manteve, na Igreja Luterana, o Epis-
copado Histórico (Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia,
Islândia, Estônia, Letônia, Lituânia, Prússia); nas regiões da
Alemanha onde o clero adere, mas os bispos não, cria-se
(pela primeira vez na História), uma nova figura: o Episco-
pado meramente “administrativo” (sem a Ordem, a Suces-
são Apostólica e o Rito Sacramental de Sagração).
Os Anglicanos, herdeiros da Igreja Celta (séculos I a
VII), da Igreja Romana, da Pré-Reforma de Wiclyffe, e in-
fluenciados, tanto pelo Luteranismo e quanto pelo Cal-
vinismo, percebendo a si mesmos, como “uma parcela
provisória da Igreja de Jesus Cristo, Una, Santa, Católica
e Apostólica”, por meio do trabalho, principalmente do
Arcebispo Thomas Cranmer (Livro de Oração Comum –
LOC) e do teólogo Richard Hooker, procuram formar uma
síntese entre uma Eclesiologia Católica e uma Soteriolo-
gia Reformada. Embora o Artigo XIX dos “XXXIX Artigos
de Religião” incorpore os elementos minimalistas defen-
didos pelos outros ramos da Reforma: “A Igreja visível de
Cristo é uma congregação de fiéis na qual é pregada a
pura Palavra de Deus, e são devidamente administrados
os sacramentos, conforme a instituição de Cristo” (sem re-
ferência ao elemento “disciplina”). Isso se dá em um con-
texto de valorização da herança apostólica e da manuten-
ção da tríplice ordem: Bispos, Presbíteros e Diáconos. O
Anglicanismo será o único ramo da Reforma Protestante
a manter unicamente o Episcopado Histórico como for-
ma de governo eclesiástico.
Com a “Segunda Reforma”, como nos diz um autor:
“Calvino respeitava o Episcopado, mas não o apoiava”. A
teocracia de Genebra apresentava uma similitude, em ter-
mos de “democracia indireta”, entre o Conselho que go-
vernava o Estado, e o Conselho que governava a Igreja. Os
Diáconos e os “Presbíteros regentes” passam a ser meros
“oficiais” da Igreja, os pastores, ou “Presbíteros docentes”
, são ministros, mas, também, não integram a hierarquia
da Ordem, como historicamente entendida. Desaparece
a figura do Bispo. As comunidades locais se aglutinam
(herança diocesana) em regiões, ou “presbitérios”, e estes,
regional ou nacionalmente, se aglutinam em Sínodos,
Concílios ou Assembléias. Esse ramo da Reforma reflete,
em sua eclesiologia, que toma como normativa algumas
experiências históricas do período de transição entre os
Apóstolos e os Bispos (90- 160 A.D). O novo momento
histórico de hegemonia burguesa no modo de produção
capitalista, que supera a servidão e o feudalismo, rejeita
os reis e os bispos a esses associados. (Um dos “gritos de
guerra” dos Puritanos não-conformistas seria: “No Kings;
no Bishops”). Surgia a forma Presbiteriana de governo da
Igreja.
O Episcopado apenas “administrativo” seria, porém,
adotado pela Igreja Reformada da Hungria, assim como
pelos Moravianos (descendentes espirituais dos hussitas,
pré-reformados).
É, contudo, com a “Terceira Reforma” (ou “Reforma
Radical”) que há uma rejeição total ao Episcopado e a
instâncias intermediárias da Igreja (Igrejas Particulares e
Igrejas Diocesanas ou Presbitérios e Sínodos). O concei-
to minimalista de uma comunidade local de fé, adoração,
estudo da Palavra, celebração das ordenanças (não mais
Sacramentos) reduz, totalmente, o conceito de Igreja a
“igreja local”. Desaparece não somente o Bispo, mas, tam-
bém o Presbítero. Fica o Diácono como oficial e o Pastor
como “obreiro consagrado” . Surgia o congregacionalis-
mo como forma de governo da Igreja.
Um aspecto a destacar é que a redescoberta do “sa-
cerdócio universal dos crentes” foi compatibilizado com
o “sacerdócio especial dos vocacionados”, em setores da
Reforma, ou eliminado, em outros setores, quando – cre-
mos – ambos são bíblicos e históricos.
O que, até então, tinha sido percebido como o “le-
gado apostólico” foi desvalorizado, bem como a História
do Pensamento Cristão. Luteranos e Calvinistas ainda re-
verenciaram a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, a
formação do Cânon bíblico e os Credos, considerando as
Igrejas Orientais e Ocidentais como legítimas, condenan-
do apenas os seus erros, e não adotando o re-batismo,
mas apenas a Profissão de Fé ou Confirmação dos seus
fiéis. Os anabatistas, e os seus descentes espirituais (me-
nonitas, congregacionais e batistas) tenderam a rejeitar o
legado histórico, teológico cultural ( “apostasia geral da
Igreja”) e pretenderam construir uma “ponte” direta entre
o que eles achavam que era a Igreja do primeiro século e
a Igreja do século dezesseis (embora fique difícil se ima-
ginar a Igreja de Jerusalém usando as regras de procedi-
mento do Parlamento de Westminster...).
O Episcopado apenas “administrativo” seria, porém,
posteriormente, adotado pelos Batistas em países como
a Geórgia (ex-União Soviética) e as Bahamas.
O século XVI se iniciara com quatro ramos do Cris-
tianismo (Roma, Bizâncio, Assírios e Pré-Calcedônios) e
terminara com doze: + Valdenses, Moravianos, Luteranos,
Anglicanos, Presbiterianos/Reformados, Menonitas, Con-
grega-cionais e Batistas. Aumentava a divisão, mas, ainda
estávamos muito longe da desagregação que ocorreria
posteriormente. Começara uma forma de governo da
Igreja: Episcopal Histórica, e termina com quatro: Episco-
pado Histórico, Episcopado Administrativo, Presbiteriana
e Congregacional .
Ao combater os desvios morais e doutrinários da
Igreja de Roma, e, ao mesmo tempo, não atentar para as
situações diferentes dos três ramos da Igreja no Oriente,
“se esquecendo” de todo um pensar e um agir multissecu-
lar, que revelara o consenso dos fiéis, ou a mente da Igre-
ja, a Reforma “joga fora o bebê com a placenta e a bacia”
... Por que manter o Cânon bíblico e os Credos (fontes de
suas Confissões de Fé) e não necessariamente o Episco-
pado Histórico (Luteranos) ou inteiramente (Calvinistas)?
Por que manter o Cânon bíblico e não os Credos e o Epis-
copado Histórico (Anabatistas)? Quando os três: Cânon
bíblico, Credos e Episcopado Histórico não foram frutos
do mesmo processo decisório da Igreja pós-apostólica?
Um capítulo a mais na divisão da Cristandade co-
meça a se escrever no século XII, e chega até o século XX
com a criação dos Uniatas, que são jurisdições das Igre-
jas Orientais que passaram a aceitar a autoridade papal,
retendo, contudo, suas respectivas línguas, ritos, costu-
mes e leis canônicas. Algumas vieram quase que intei-
ramente, como os Maronitas, do Líbano, outras de 1% a
3% dos seus membros, mas se organizando em Sínodos
e patriarcas concorrentes das Igrejas Orientais. Maronitas,
Melquitas, Sirianos, Malankarianos, Coptas, Etíopes, Búl-
garos, Gregos, Armênios, Ucranianos, Húngaros, Sérvios e
Albaneses, sofreram essa ação “diplomática” do Vaticano,
totalizando mais de 12 milhões de pessoas, nessa com-
binação original: Ortodoxos Orientais, cismáticos de seus
patriarcados, em comunhão com a Igreja de Roma. Nes-
ses casos, não houve mudanças eclesiológicas significa-
vas, exceto a adição do Papado.
Um outro capítulo nas divisões (este no século XIX)
se dá após a decretação da Infalibilidade Papal, com o
Concílio Vaticano I (1870), com o surgimento das Igrejas
Vétero-Católicas da União de Utrech (1874), que apenas
aceitam o que foi ensinado até a divisão entre Roma e
Bizâncio (1054), rejeitando todos os dogmas posteriores.
Contam eles hoje com cerca de 300.000 membros, prin-
cipalmente na Holanda, Alemanha, Áustria e Suíça, e que
mantém o mais antigo tratado de reconhecimento mú-
tuo de ordem e ministério com a Comunhão Anglicana.
Nesse caso, não houve mudanças eclesiológicas significa-
tivas, exceto a subtração do Papado.
Um terceiro capítulo na divisão (nos séculos XIX
e XX) foi ocasionado pelos cismas na Igreja Romana (os
maiores na Polônia e na Filipinas) em diversos países, for-
mando o que hoje se denomina de “Associação Interna-
cional das Igrejas Católicas Nacionais” (representada, no
Brasil, pela ICAB – Igreja Católica Apostólica Brasileira).
Também nesse caso, não houve mudanças eclesiológicas
significativas, exceto a subtração do Papado.
Um capítulo peculiar se deu na Índia, por influência
dos Anglicanos uma parcela da Igreja Malankar (Sirianos,
Jacobitas), funda a Igreja Mar Thoma, com eclesiologia
ortodoxa e soteriologia protestante, enquanto um pe-
queno grupo, sob influência presbiteriana, funda a Igreja
Evangélica Mar Thoma.
Uniatas, Vétero-Católicos, Católicos Nacionais e Mar
Thoma mantêm o Episcopado Histórico e as três ordens
apostólicas (Bispos, Presbíteros e Diáconos), além da es-
trutura diocesana. Foram cismas, divisões de jurisdições,
mas, sem inovações na Eclesiologia.
É no lado Protestante que os novos ramos do Cristia-
nismo vão rompendo com a tradição apostólica e criando
novas eclesiologias. No século XVII surgem os “Quakers”
(Sociedade Religiosa dos Amigos), radicalizando a tradi-
ção anabatista, rejeitando qualquer ministério ordenado,
e qualquer Credo ou Confissão de Fé, com a “iluminação
interior” jogando um papel mais importante do que a
própria Bíblia. A eclesiologia basista “quaker” irá influen-
ciar os grupos darbistas do século XIX como os Irmãos de
Plimouth (ou “Irmãos Livres”) e, depois, o “pequenino re-
banho” de Watchman Lee e as “igrejas locais” (sem nome)
de Witness Lee.
No final do século XVIII o movimento de santidade
e compromisso social dentro da Igreja Anglicana, chefia-
do pelos irmãos John e Charles Wesley, tem um setor ma-
joritário (após a morte dos fundadores) que se separa e
funda a Igreja Metodista, que irá crescer, principalmente
nos Estados Unidos, agora com três sub-modalidades do
Episcopado Administrativo (Não-Histórico):
a) Os Bispos Administrativos Vitalícios;
b) Os Bispos Administrativos elegíveis e reelegíveis
ou não (podendo voltar a ser apenas Presbíteros/Pasto-
res); e,
c) O Episcopado-sem-a-Nomenclatura (superinten-
dentes).
O Metodismo sofrerá divisões, com o chamado
“movimento de santidade” (Nazarenos, Metodistas Livres
etc.), de eclesiologia semelhante.
O modelo capitalista de “livre empresa” ou “livre ini-
ciativa”, individualista, vai concorrer para que nos Estados
Unidos, nos séculos XVIII e XIX se acelere a divisão insti-
tucional da Igreja de Cristo. Os grupos de imigrantes de
um mesmo ramo do Cristianismo optam por criar a sua
própria jurisdição (Sínodos luteranos de alemães, suecos,
eslovacos etc.), o mesmo acontecendo com os grupos
raciais (A Igreja Metodista Episcopal e a Igreja Metodis-
ta Episcopal Sião; a Convenção Batista Nacional, entre os
negros). Funda-se uma igreja como quem abre uma qui-
tanda. Surgem as “seitas para-protestantes” (Mórmons,
Testemunhas de Jeová, Ciência Cristã).
Na trajetória do Protestantismo, o Puritanismo ti-
nha um preconceito anti-episcopal menos por teologia
do que por uma questão política e de classe, o Pietismo
desenvolve o conceito de “ecclesia ecclesiola” (os cole-
gia pietatis como igrejinhas dentro das Igrejas), o Evan-
gelicalismo com a ênfase na autoridade das Escrituras, o
evangelismo, a conversão e a santidade, e o movimento
missionário ( “a evangelização do mundo nesta geração”),
foram, em geral, omissos quanto à reflexão eclesiológica.
Como relacionar a unidade da Igreja de Cristo com
esse divisionismo e subdivisionismo institucional inces-
sante? Por um lado surge um termo não teológico, mas
sociológico, para designar essas jurisdições eclesiásti-
cas: denominações. Por outro lado, isso pressupõe um
conceito minimalista (comunidade de fé + Palavra + Sa-
cramentos/Ordenanças + Disciplina) e um acercamento
claramente neo-platônico e ahistórico (a “igreja invisí-
vel”). Para essa pirueta mental ou ginástica cerebral (que
aliviaria as tensões teológicas e os sentimentos de culpa
pelo dilaceramento do Corpo de Cristo), a Igreja de Jesus
Cristo seria única, e se manifestaria em grupos de “igrejas
locais” que tomam um nome, ou se denominam (deno-
minação), assim ou assado, todos unidos, metafísica ou
misticamente, na tal de “Igreja Invisível” (que deveria ser
uma igreja formada por fantasmas e não seres humanos).
Essa foi, digamos, uma maneira de fazer o camelo passar
pelo fundo da agulha... Para susto dos Apóstolos, dos Pais
Apostólicos, dos Pais da Igreja e dos Reformadores... Mas
é nessa exótica “eclesiologia” que nós fomos (mal) cria-
dos...
No século XX (que começa com 100 denominações
“principais” ) o Movimento Pentecostal, cujo novo eixo
central será a Pneumatologia (a doutrina do Espírito San-
to), em suas várias “denominações”, dará uma ênfase nos
dons espirituais, mas usará dos modelos eclesiológicos já
encontrados no mercado. No Brasil, a Congregação Cristã
fará opção pelo modelo quaker-irmãos de Plymouth e a
Assembléia de Deus pelo Episcopado sem nomenclatura
( episcopé sem episcopos), com seus pastores-presiden-
tes.
O século XIX nos lega, positivamente, um impulso
missionário sem precedentes: a Igreja chega, praticamen-
te, a todos os quadrantes da terra. Mas, por outro lado, nos
lega os dois pecados centrais da Igreja: a falta de unidade
(multiplicação de denominações e sub-denominações) e
a falta de verdade (o Liberalismo teológico racionalista).
O movimento missionário seria resistido na Ásia, por islâ-
micos e hinduístas que se apoiavam em textos de autores
liberais que negavam as doutrinas históricas do Cristia-
nismo (Santíssima Trindade, Duas Naturezas de Cristo, os
Milagres, o Sacrifício Vicário, a Ressurreição).
Iniciamos o século XX (principalmente nos EUA)
com uma série de controvérsias: “liberalismo vs. funda-
mentalismo”; “evolucionismo vs. criacionismo”; “evange-
lho individual vs. evangelho social”, que consomem ener-
gia e dividem mais ainda a Igreja. A inconformação com o
divisionismo leva ao surgimento do Movimento Ecumê-
nico, com seu apelo em favor da unidade e da coopera-
ção, tendo como marco o Congresso de Edimburgo, Escó-
cia, em 1910, a criação do movimento “Vida e Missão”, em
1925, e “Fé e Ordem”, em 1927, e, finalmente, a fundação
do Conselho Mundial de Igrejas (WCC), em 1948.
A Igreja de Roma, que sempre se considerou “a”
Igreja nunca se filiou ao Conselho, apenas enviando ob-
servadores e técnicos. Os Ortodoxos Orientais, embora se
considerando “a” Igreja de Cristo (a Igreja de Roma seria
uma desviada, e os Protestantes algo mutilado), se filia-
ram, bem como a maioria dos ramos históricos do Pro-
testantismo. Em vários países foram criados Conselhos
Nacionais de Igreja (no Brasil, de 1934 a 1964 tivemos
a CEB – Confederação Evangélica Brasileira). O WCC foi,
crescentemente, caindo sob a liderança dos liberais. Os
evangelicais se reuniram na Aliança Evangélica Mundial
(WEF), e os fundamentalistas no Concílio Internacional de
Igrejas Cristãs (ICCC).
Em alguns países, denominações se fundiram em
uma nova Igreja Unida, como a Igreja do Sul da Índia, a
Igreja do Norte da Índia, a Igreja do Paquistão, a Igreja de
Bangladesh, envolvendo anglicanos, metodistas, pres-
biterianos, batistas, luteranos e irmãos livres, mantendo
o Episcopado Histórico, e a Igreja Unida do Canadá e a
Igreja em União da Austrália, sem o Episcopado Histórico.
As Igrejas Unidas da Ásia que optaram pelo Episcopado
Histórico viriam, posteriormente, a se filiar à Comunhão
Anglicana. Por força de decisão governamental, tivemos
a Igreja de Jesus Cristo no Zaire e a Igreja Evangélica da
Guiné (Bissau), também como espaços sínteses. Com o
Concílio Vaticano II (1962-1965) houve uma abertura na
Igreja de Roma, sem, contudo, alterar os seus dogmas. O
“Vaticano II dos evangélicos” (expressão da Revista Time)
foi o Congresso Internacional para a Evangelização Mun-
dial, que teve lugar em julho de 1974, em Lausanne, na
Suíça, de onde saiu o “Pacto de Lausanne” (considerado
o documento confessional mais importante desde a Con-
fissão de Westminster).
Do ponto de vista dos efeitos políticos sobre a vida
da Igreja, os totalitarismos nazista e comunista e o pro-
cesso de descolonização merecem destaque. O fim da
União Soviética trouxe um raro momento de liberdade
para a Cristandade Oriental.
Os dois movimentos mais importantes para a Igreja
do século XX foram sem dúvida: o Movimento Ecumênico
e o Movimento Pentecostal.
O Movimento Pentecostal, surgido nos Estados Uni-
dos, em 1906, com a ênfase na contemporaneidade dos
dons espirituais, associando a glossolalia (falar em línguas
estranhas) com a xenoglossia (falar em línguas estrangei-
ras) do Dia do Pentecostes, e tida como o “batismo com o
Espírito Santo”, cria novas denominações (Assembléia de
Deus, Igreja de Deus), divide outras (“renovados” batistas,
presbiterianos, metodistas ou congregacionais), ou faz
surgir setores no interior de outras mais ( “carismáticos”
anglicanos, luteranos, católicos romanos). Por um lado,
se torna em uma força dinâmica e missionária; por outro,
vem concorrer, mais ainda, para a fragmentação do Cris-
tianismo, e, como já afirmamos, não elabora uma nova
Eclesiologia, nem aponta para o retorno da Eclesiologia
Apostólica, mas, dependendo da época e lugar, lança
mão das diversas expressões eclesiológicas disponíveis.
Enquanto o Secularismo externo e o Liberalismo
interno foram esvaziando o Cristianismo norte-ocidental,
este, em mais um movimento geo-histórico, foi se deslo-
cando para o sul e o oriente. O nacionalismo, o tribalismo,
a resistência ao colonialismo europeu, e o sincretismo de
formas históricas e/ou pentecostais com os cultos reli-
giosos nativos, fez surgir, na África, um sem número de
expressões novas autóctones do Cristianismo, de rápido
crescimento, em geral em torno de um(a) “profeta(isa)” ou
“apóstolo(a)” local, e que hoje é parte importante do ce-
nário religioso daquele continente.
Por último, o século XX nos brinda com duas here-
sias advindas da América do Norte: a “teologia da pros-
peridade” e a “batalha espiritual”, que irão gerar um novo
fenômeno conhecido por neo/pós/iso/pseudo-pentecos-
talismo, seja com a nova burguesia (Renascer, Sara Nossa
Terra), seja com os setores populares (Universal do Rei-
no de Deus, Internacional da Graça de Deus), para usar
exemplos brasileiros. Se os pentecostais começam tendo
pastores, e depois tiveram “missionários”, os neo/pós/
iso/pseudo-pentecostais têm adotado, crescentemente
o título de “bispos” (episcopado eclesiástico caudilhes-
co, político-administrativo, mas não Histórico), ou o de
“apóstolos”, que hoje já se constitui em um movimento
internacional institucionalizado.
O Liberalismo Moderno racionalista foi sendo subs-
tituído pelo Liberalismo Pós-Moderno, individualista,
subjetivista e relativista, como ataques frontais às verda-
des doutrinárias e éticas. Para os mais otimistas, termina-
mos o século XX com 30.000 “denominações”, com seus
nomes cada vez mais exóticos (“Bola de Neve”, “Cuspe de
Cristo” etc.). Para citar apenas um caso brasileiro, a Assem-
bléia de Deus, em menos de duas décadas se dividiu em
cerca de 100 “ministérios” separados. Que caminho carnal
percorremos desde as 04 instituições do início e as 12 ins-
tituições existentes no final do Século XVI?
O aumento numérico significou realmente um cres-
cimento da Igreja de Cristo, quando as heresias aumen-
taram de influência, e as instituições se fragmentaram
de uma maneira escandalosa? Que missão é essa, e que
Evangelho é esse que não impacta a cultura e os costu-
mes? Que Igreja é essa?
A questão central continua, sem dúvida, sendo de
natureza eclesiológica. Estará a Igreja disposta a enfrentá-
-la? As vozes apostólicas serão, de novo, ouvidas?
A Igreja não foi uma invenção humana, mas é insti-
tuída por Jesus Cristo. Ele desejou para ela unidade (“as-
sim como eu e o Pai somos um”) inclusive por que essa
unidade seria um fator para que o mundo cresse. Ele não
criou uma Igreja de anjos, mas de seres humanos, históri-
cos, culturais, sociais, e que se organizam em instituições.
A Igreja teria, necessariamente, que se institucionalizar, e
como uma só instituição. Afinal as instituições são não só
inevitáveis para a vida em sociedade, mas fazem parte da
capacidade criativa da humanidade, no exercício do man-
dato cultural que lhe foi outorgado pelo Criador. Essa ins-
tituição única (unidade visível) deveria professar a mesma
fé e a mesma doutrina. Unidade e Verdade deveriam ser
as marcas mais evidentes dessa Igreja unificada.
Os Apóstolos, enquanto em vida, eram o epicentro
dessa nascente organização, continuada e aperfeiçoada
pelos seus sucessores: os Bispos. Nunca tivemos um úni-
co centro administrativo, nem uma única lista de suces-
são apostólica, mas tantos quantos foram os apóstolos
(Tiago em Jerusalém; Marcos em Alexandria; Tomé em
Kerala etc.), com as Sés situadas nas cidades-chaves do
Império Romano, com supervisão sobre as regiões cir-
cunvizinhas, com destaque para as capitais do Oriente
(Constantinopla) e do Ocidente (Roma). Os Patriarcados
originais foram: Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Cons-
tantinopla, no Oriente; e Roma, no Ocidente. Diferenças
culturais e de pontos doutrinários tópicos concorreram
para a fragmentação da Cristandade antiga nos quatro
ramos históricos: Assírios, Pré-Calcedônios, Bizantinos e
Romanos, sendo que os dois primeiros nunca estiveram
sob a jurisdição dos dois últimos.
Esse processo de discernimento e consenso conver-
giu por quinze séculos para um só modelo: o Episcopado
Histórico . A partir da Reforma Protestante, como resulta-
do de trabalhos teóricos de teólogos e/ou práticas comu-
nitárias novas, ocorreu uma diversificação nos modelos
de gestão da Igreja: Episcopado Administrativo (perma-
nente ou com mandato), Episcopado Não-Nominado
(pastores-presidentes, superintendentes, moderadores,
pastores-sinodais, pastores-distritais etc.), Presbiterianis-
mo, Congregacionalismo, basismo “quaker” etc. A diver-
sificação dos modelos de gestão, acrescido das variáveis
do individualismo e da “livre iniciativa” da hegemonia
burguesa no modo de produção capitalista resulta no
“denominacionalismo”, justificado por uma visão localista
e uma concepção minimalista de igreja e de uma unidade
neo-platônica de uma “igreja invisível”.
Não é uma contestação, mas uma constatação que,
ao final do século XX, 90% dos cristãos estavam vivendo
em espaços institucionais episcopais (em suas várias sub-
-modalidades), e que os 10% restantes, que viviam em
espaços institucionais presbiteriais ou congregacionais
eram responsáveis por 90% da fragmentação da Cristan-
dade. O denominacionalismo foi um fenômeno norte-a-
mericano, e bem menos europeu, mas que agora se re-
pete em outros continentes, particularmente na América
Latina. Um fato novo, nas últimas décadas, é uma tendên-
cia de fragmentação que começa também a atingir insti-
tuições de governo episcopal.
O Anglicanismo, por exemplo, somente conheceu
três cismas localizados (EUA, Inglaterra e África do Sul)
em quinhentos anos. Com a controvérsia da ordenação
de mulheres e da ordenação de homossexuais pratican-
tes (para variar, tendo como epicentro os Estados Unidos
da América), presenciamos uma reação conservadora
louvável no “Movimento Continuante”, mas que, lamen-
tavelmente, tem sofrido um contínuo processo de frag-
mentação em dezenas de jurisdições, algumas diminutas,
às vezes, até, com “Bispos Primazes” de uma só Paróquia (
“More Purple than People” / “Mais Púrpura do que Povo”, é
o que, espirituosamente, se diz naquele país).
Outro fenômeno que deve ser registrado, no final
do século passado, foi o surgimento – também nos Esta-
dos Unidos – do chamado “Movimento de Convergência”:
católicos romanos, ortodoxos orientais, batistas, presbite-
rianos, metodistas, congregacionais, anglicanos, adven-
tistas, que, redescobrindo o valor da Tradição Apostólica,
dos Pais da Igreja e dos Concílios da Igreja Indivisa, se
uniram para criar uma nova instituição que fosse católica
e reformada (mas que buscou nos bispos da ICAB – Igre-
ja Católica Apostólica Brasileira – aquela que canonizou
o Padre Cícero do Juazeiro – a sua sucessão apostólica).
Também aí logo se viu uma divisão em razão da orde-
nação feminina ( Episcopais Carismáticos vs. Episcopais
Evangélicos) além de denúncias de práticas ao arrepio da
ética, acarretando em desgaste de imagem.
Enquanto massas de animistas se convertem ao
Cristianismo na África, massas de católicos nominais se
convertem ao Protestantismo na América Latina, um
crescente número de protestantes conservadores, não
tendo outras opções senão igrejas liberais, e mesmo com
discordâncias doutrinárias, estão migrando para a Igreja
de Roma e para as Igrejas Orientais, e evangélicos pres-
biterianos e congregacionais (pela redescoberta da His-
tória, revalorização da Liturgia, ou fuga do Legalismo)
estão migrando para Igrejas Episcopais ( “Evangélicos a
Caminho de Cantuária”), o que demonstra, nesse quadro
confuso, que o Secularismo ainda não é a última palavra
na Civilização.
Temos afirmado que a Igreja Contemporânea, ao
ser marcada pelo divisionismo e/ou pela heresia, está em
grave pecado, em evidente desobediência aos propósitos
do seu Senhor, de Unidade e Verdade. E que, ainda mais
preocupante, são as consciências anestesiadas, a falta de
sentimento de culpa diante desse pecado. O denomina-
cionalismo nem é bíblico, nem é apostólico, nem é ne-
cessário, nem é inevitável. Nunca afirmamos que o Epis-
copado Histórico seria a única variável necessária para
restaurar a unidade da Igreja em verdade, mas que tal
não se dará se não o incluir. A Comunhão Anglicana, ao
definir, na Conferência de Lambeth de 1888, o seu “Qua-
drilátero”, não o fez apenas para a confessionalidade in-
terna, mas como base para a unidade da Igreja: Escrituras,
Credos, Sacramentos e Episcopado Histórico .
No Prefácio do nosso Rito de Ordenação, afirma-
mos:
“As Sagradas Escrituras, e os antigos auto-
res cristãos, são claros que, desde os tempos
apostólicos, tem havido diferentes ministérios
na Igreja. Em particular, desde o tempo do
Novo Testamento, as três ordens distintas que
têm caracterizado a Igreja Católica de Cristo.
Primeiro, a ordem dos Bispos, que continua o
trabalho apostólico de liderar, supervisionar e
unir a Igreja. Em segundo, associada com eles,
a ordem dos Presbíteros, que, juntamente
com os bispos, tomam parte no governo da
Igreja, conduzindo seu trabalho missionário e
pastoral, pregando a Palavra de Deus e admi-
nistrando os Santos Sacramentos. Em terceiro,
estão os Diáconos, que assistem aos Bispos e
Presbíteros em seu trabalho, com responsabi-
lidade especial de ministrar, em nome de Cris-
to, aos pobres, aos enfermos, aos que sofrem
e aos sem esperança” (LOC – Livro de Oração
Comum).
Um dos problemas que temos encontrado, é que
lideranças equivocadas têm feito equivalência entre a
Igreja e o Reino de Deus. A Igreja não é o Reino de Deus,
mas a sua Agência. O Senhor nosso Deus já reina sobre o
Universo, a História e as Nações, é Providente sobre tudo,
embora os seus filhos relutem em aceitar o seu reinado
sobre as suas vidas, os incrédulos procurem ignorá-la, e
os demônios rejeitá-la. René Padilla, o grande idealizador
e líder da Fraternidade Teológica Latino-Americana – FTL,
nos fala na tensão entre o “já” do Reino e o “ainda não”: a
plenitude de todas as coisas a ser obtida na restauração,
após o Juízo Final, e na Nova Jerusalém. Os cristãos, como
indivíduos e como comunidades de fé, vivem a luta entre
a submissão ao reinado de Deus e a instrumentalidade
como agente de promoção do Reino, por um lado, e as
inclinações da natureza caída e as tentações satânicas,
por outro.
Uma distorção é a identificação da Igreja com o Rei-
no, e o crescimento da Igreja com o crescimento do Rei-
no. O crescimento da Igreja se torna um fim em si mesmo.
Não há uma visão do cumprimento do mandato cultural
na História, nem uma presença de serviço, profetismo e
promoção de valores também na vida das instituições,
que, aí sim, seria promover o Reino no lugar dos anti-va-
lores do anti-reino das trevas. Nesse caso, a Igreja apenas
cresce para dentro, ou, melhor, incha. Distorções têm feito
igrejas com cara de sindicatos e partidos (quando o pro-
fetismo se faz sem o evangelismo), ou, no outro extremo,
com cara de clube, associação ou sociedade lítero-atléti-
co-recreativa. O mundo pode se danar, que não se está
nem ai... Como resultado, no caso brasileiro, o evidente
crescimento numérico das Igrejas protestantes não tem
concorrido para o decréscimo numérico da violência, da
corrupção, ou das injustiças sociais entre nós.
Se crescimento da Igreja (por tradição ou adesão)
não significa, necessariamente, evangelização, quando se
volta para dentro, e os objetivos éticos não ultrapassam
o micro (temperamento-valores-individuais-sexualidade-
-relacionamentos-finanças), dentro de uma visão tipica-
mente marcada pelo individualismo da sociedade urbana
capitalista, não há projeto nem impacto para fora. Os si-
nais do Reino de Deus na História (que, em geral, se dão
com martírio) são ausentes ou muito débeis. O fenôme-
no, relativamente recente, das chamadas “mega-igrejas”
(algumas verdadeiras “disneylândias” religiosas) parece se
inclinar nessa direção. O que chamam de “igreja” (na ver-
dade, uma comunidade religiosa local) tem tudo dentro
de si mesma, se basta a si mesma, se torna um fim em si
mesma, no máximo com uma caridadezinha aqui ou aco-
lá.
A história recente tem evidenciado que, em geral,
as “mega-igrejas” , centradas na figura do seu “pastor-che-
fe”, normalmente carismáticos e de personalidade fortes,
ou se tornam novas “denominações” ou funcionam como
“uma denominação dentro da denominação”.
Enquanto o Fundamentalismo deixa de fazer uma
promoção adequada do Reino, por gerar guetos religio-
sos, seitas separatistas, que se consideram a “única” ver-
dadeira (concorrendo com a outra “única”: a Igreja de
Roma), o Liberalismo (Moderno, Pós-Moderno, Teologia
da Libertação etc.) reduz o papel da Igreja, nega o seu
caráter específico e único como agência, identifica, em
razão do universalismo salvífico, todo o povo com o Povo
de Deus (vide Leonardo Boff ), e a missão da Igreja se re-
duz meramente às ações sociais. Uns procuram promover
um novo nascimento que não dá frutos, e os outros que-
rem colher frutos sem plantar a árvore (conversão).
O Protestantismo tem sofrido, contemporanea-
mente, mais do que os outros ramos do Cristianismo. As
Igrejas Ortodoxas Orientais, depois de séculos de domí-
nio sob o Império Otomano (turco) e o Império Soviéti-
co, vivem hoje nova primavera de liberdade, embora se-
jam tentadas a uma tutela sobre o Estado e Sociedade,
como monopólio, hostis à presença de outras expressões
da Igreja, seja Roma sejam os protestantes. Roma, ape-
sar dos embates entre “tradicionalistas” e “progressistas”
(principalmente depois do Concílio Vaticano II), limitou o
espaço dos Liberais, enquadrou a Teologia da Libertação
(embora incorporando alguns de seus elementos dentro
de sua “Doutrina Social”), perde membros em espaços
tradicionais, mas tem compensado em outros espaços,
particularmente na África, mantendo a mobilização da
religiosidade popular, e a expansão de movimentos en-
tre as classes médias (Renovação Carismática, Focolari,
Comunhão e Libertação, Neo-Catecumenato) e entre as
elites ( Opus Dei).
Os Protestantes, institucionalmente dilacerados,
têm de conviver, dentro do espaço de sua pretensa identi-
dade, com o Liberalismo (Moderno e Pós-Moderno), que,
não somente nega tudo o que foi o conjunto de crenças
reformadas, mas os próprios fundamentos do Cristianis-
mo (algo único na História, em que se afirma a identida-
de por sua negação), e, ainda com o chamado Neo/Pós/
Iso/Pseudo-Pentecostalismo que além de não priorizar os
postulados protestantes ou evangélicos, às voltas com as
heresias da “teologia da prosperidade” e da “batalha es-
piritual”, ainda enveredou por todo tipo de sincretismo (
“esoterismo protestante”...) com “correntes”, “galhos de ar-
ruda” e “sessões de descarrego” .
Não podemos deixar de reconhecer que o Movi-
mento Ecumênico, mesmo com a resistência dos extre-
mistas e sectários, e o desvio liberalizante posterior de
sua cúpula dirigente (Conselho Mundial de Igrejas), dei-
xou um saldo positivo, com os conselhos internacionais
e nacionais, regionais e locais, de igrejas, de ordens ou
conselhos de ministros, e com a criação dos organismos
denominacionais internacionais (Comunhão Anglicana,
Federação Luterana Mundial, Aliança Mundial das Igre-
jas Presbiterianas e Reformadas, Aliança Batista Mundial,
Congresso Mundial Pentecostal etc.), bem como para um
melhor relacionamento na base do social. Mas, depois da
redução do ódio, do preconceito e da ignorância mútuas,
se sente um certo esgotamento, imposto pelos limites
das antigas e das novas diferenças.
O que todos ficamos a nos perguntar é: Por que o
tripé do coração do Senhor – Verdade, Unidade, Amor –
não tem funcionado? Apesar da iniciativa de Jesus Cristo,
da assistência do Espírito Santo, da Palavra e dos Sacra-
mentos, por que a Igreja tem conhecido heresias, ódios
e fragmentação? Uma tríplice resposta, também, seria:
em virtude das limitações da natureza humana, do peca-
do de líderes e liderados e da ação demoníaca. Sabemos
que, ao fim, essas forças do mal não prevalecerão ( “as
portas do inferno não prevalecerão contra ela”), mas, até
lá, ficaremos indulgentes com os nossos próprios erros,
inquebrantados, distantes do “saco e cinza”, incapazes de
esboçar reações e de buscar a obediência?
Durante a maior parte do século passado, a Igreja
teve que enfrentar o desafio de ideologias e filosofias ma-
terialistas, defensoras do ateísmo, destacando-se o mar-
xismo. Tudo isso mudou radicalmente no Ocidente, com
o fenômeno descrito como “ressacralização”, ou “reencan-
tamento” do mundo (“A Revanche de Deus”, para Giles
Kepel). Há uma revalorização da “espiritualidade”, onde se
mistura auto-ajuda, misticismo, esoterismo, gnosticismo,
refratário, porém, às instituições religiosas, particular-
mente as que (como o Cristianismo) advoga a revelação
da Verdade. Essa “espiritualidade” convive com um novo
tipo de materialismo prático: o consumismo, que nos
lembra o velho hedonismo grego. E essa onda neo-mís-
tica tem influenciado setores da Igreja ( “esoterismo cris-
tão”...), enquanto a chamada Teologia da Prosperidade faz
a ponte de fiéis individualistas com o consumismo, agora
tido como uma forma de “bênção”...
Com a imigração, a Europa se islamiza. E no Islã
(bem como no Judaísmo, no Hinduismo e no Budismo)
se presencia um ressurgimento de expressões extremis-
ta-fanáticas, violentas. Enquanto Jenkins nos aponta para
um esvaziamento da Cristandade euro-ocidental e para
o fortalecimento da Cristandade sul-oriental, Huntington
nos fala em um “Choque de Civilizações”, que substituiria
o antigo choque de ideologias (com o episodio de 11 de
setembro, e a destruição das Torres Gêmeas, de Nova Ior-
que, como sua dramatização). O intrigante é que o Iraque
foi armado pelos Estados Unidos para combater o Irã, e a
Al-Qaeda para, no Afeganistão, combater os então inva-
sores soviéticos, enquanto a família Bush tem negócios
petrolíferos com a família Bin Laden...
Sendo a maioria das Igrejas protestantes da Europa
teologicamente liberais, o caminho estaria aberto para o
Islã, porque os Liberais também negam todas as doutri-
nas cristãs que os islâmicos não aceitam. É o caso único
na História em que uma religião “implode” pela negação
interna dos seus postulados. Não é de surpreender que,
há poucos meses, uma pastora norte-americana se decla-
rou “islâmica e cristã” ... Além do esoterismo e do fanatis-
mo, o Ocidente traz um novo desafio externo para a Igre-
ja, que é o Estado Secularista, como uma nova expressão
ideológica anti-religiosa, com uma agenda (a)moral, em
que a fé é relegada à esfera apenas privada.
Os papas João Paulo II e Bento XVI têm decidido
bater de frente com o Secularismo, reafirmando as po-
sições tradicionais da Igreja de Roma. O novo ressurgi-
mento pós-soviético das Igrejas do Oriente se faz à base
de suas crenças tradicionais: o Patriarcado, os Credos, os
Primeiros Concílios, os Pais da Igreja. O Patriarca Ecumê-
nico Bartolomeu I (educado no Ocidente) tem dado uma
maior visibilidade àquele ramo da Cristandade, incluin-
do temas novos, como a ecologia. O Fundamentalismo
Protestante, com seu sempre isolacionismo sectário, seu
legalismo-moralista, seu anti-intelectualismo, e sua mis-
siologia apenas da salvação individual das almas, além da
sua sacralização do capitalismo e do modo norte-ameri-
cano de vida, também não parece ser o espaço de onde
se possa esperar respostas adequadas para os novos de-
safios do nosso tempo. O Evangelicalismo, apesar da sua
antiga origem britânica, está muito associado aos Esta-
dos Unidos, e este é o novo Império mundial, que exporta
de tudo – de produtos a idéias – inclusive seitas, denomi-
nações, valores e métodos “milagrosos” de liderança e de
evangelismo.
Depois de todo um esforço para superar a vincula-
ção protestantismo-americanismo, travado por mais de
um século na América Latina, destacando-se a Fraterni-
dade Teológica Latino-Americana, FTL, e, em nosso caso,
a Confederação Evangélica Brasileira – CEB, vivemos um
novo apogeu de colonialismo cultural. As nossas livrarias
evangélicas estão inundadas de obras (de todo o nível e
corrente) de autores norte-americanos, são estes, como
“a última palavra”, que fazem a cabeça dos nossos jovens
pastores em um sem número de eventos. Parece ter ido
para o espaço qualquer preocupação de fincar a fé refor-
mada nas “raízes do Brasil”. Recentemente, ao ler a revista
“Christianity Today”, descobri porque tantos pastores em
países do terceiro mundo vestem um certo tipo de cami-
sa esportiva: é porque um super-líder de uma mega-igre-
ja no Tio Sam costuma usá-la em seus cultos...
Penso, mais uma vez, nas semelhanças entre as cor-
rentes de hoje e aquelas do tempo de Jesus: o misticismo
alienante dos essênios, o fanatismo e a luta armada dos
zelotes, o puxa-saquismo dos herodianos, a resistência
nacionalista dos fariseus e o liberalismo internacionalista
(helenista) dos saduceus. Hoje, Liberais se orgulham de
estarem por dentro “das últimas” do “mundo desenvolvi-
do”, e setores do Fundamentalismo e do Evangelicalismo
idem, embora “as últimas” desses grupos eurocentrados
ou americanalhados não sejam as mesmas. Enquanto
isso, grande parte dos missionários que nos chega vindo
daquelas e de outras plagas, não conseguem esconder
o seu colonialismo e a sua atitude de superioridade cul-
tural, insubmissos e não inculturados, a nos impor a sua
própria agenda e pacotes pré-cozidos.
O crescimento expressivo – e desordenado – do
Cristianismo no hemisfério sul, malgrado o divisionismo e
crenças e práticas exóticas, ainda é um sinal de vitalidade,
e, na maioria dos casos, de um compromisso com a Ver-
dade. Mas, na presente ordem global imperial, o que con-
duz os destinos da Civilização são as idéias prevalecen-
tes (e exportáveis) dos centros do poder político, militar
e econômico. Sabemos que História se faz com História.
A História se constrói a partir do legado histórico. Qual o
grau de conhecimento e convicções históricas que mar-
cam a Igreja de hoje? O presente constrói o futuro a partir
do passado. Qual a valorização do passado encontrada na
Igreja de hoje? Já se afirmou que “um povo sem passado
é um povo sem futuro”, e que “um povo sem História é um
povo sem identidade”. Cultura se constrói com Cultura
(que é parte do “mandato cultural” entregue pelo Criador
às criaturas, e que nós, cristãos, deveríamos resgatar os
propósitos originais).
Em nossa forma de pensar e de viver (idéias, críti-
cas, propostas, usos, costumes), nos isolamos das culturas
como sub-culturas, misturamos a fé com culturas, repro-
duzimos culturas, ou salgamos e iluminamos culturas?
Uma grande preocupação de C. S. Lewis era com a
arrogância de cada geração nova, que se pretendia sem
umbigo, reinventar a roda, ignorando e desprezando o
acervo legado pelo passado. Atitude ainda mais trágica
em se tratando de líderes cristãos. A Igreja é ou não é a
soma do que ela pensou e fez – positiva e negativamen-
te – por dois mil anos? Onde estava o Espírito Santo por
todo esse tempo? O consenso dos fiéis, ou a mente da
igreja, pluricultural e pluritemporal – a Tradição Apostóli-
ca – foi ou não iluminada por Ele?
Não teriam setores da Reforma Protestante proce-
dido, de fato, a uma Ruptura, uma Re-fundação, e não a
uma Reforma? O que nos falta?
As divisões entre os quatro ramos iniciais da Igreja
Cristã tiveram como causas, principalmente, as diferenças
entre culturas – como a romana, a grega, a semítica, a per-
sa, a egípcia – que dificultavam a compreensão comum
dos conceitos e a apreensão comum da experiência de
fé, e as diferenças no campo político, notadamente a ri-
validade entre a capital do Império Romano do Oriente
(Constantinopla) e do Ocidente (Roma). Entre esses dois
Patriarcados nunca houve uma relação formal, institu-
cional, muito menos de submissão, mas fraternal, com o
Oriente (autocéfalo) reconhecendo em Roma apenas um
“primado de honra”, e rejeitando, a partir do século XI, sua
pretensão de uma autoridade papal universal (quando se
deu a excomunhão mútua entre o Papado e Patriarcado,
extinta, no século XX, por decisão do papa Paulo VI e do
Patriarca Athenagoras I). Os assírios e os pré-calcedônios,
em Igrejas funcionando ininterruptamente desde os dias
apostólicos, continuaram em sua autocefalia, pois não
poderiam romper com quem nunca se esteve ligado. Pa-
pado e jurisdição universal, de um lado, e Patriarcado e
autocefalia nacional, por outro, marcam diferenças for-
mais centrais entre Roma e as Igrejas do Oriente, embora
ambas Episcopais. Os Credos e as decisões dos Primeiros
Concílios (Igreja Indivisa), bem como o respeito à autori-
dade e à tradição, e ao pensamento dos Pais Apostólicos
e dos Pais da Igreja, foram capazes de manter apenas es-
ses quatro ramos da Cristandade como únicos por mais
de um milênio e meio de sua História.
As divisões entre a Reforma Protestante e aquelas
quatro jurisdições pré-reformadas se dão em torno de ên-
fases doutrinárias: a Soberania de Deus, a Autoridade das
Sagradas Escrituras, a Salvação pela Graça mediante a Fé,
e na questão Eclesiológica, com o Anglicanismo e a maior
parte do Luteranismo mantendo o Episcopado Histórico
(evoluindo de um modelo monárquico para um modelo
participativo: colegial/sinodal), com o Calvinismo criando
o Presbiterianismo e o Anabatismo criando o Congrega-
cionalismo, para, como já afirmamos, terminarmos o sé-
culo XVI com doze ramos do Cristianismo.
As divisões do passado foram coisas sérias e doloro-
sas. A Primeira e a Segunda Reforma pretenderam apenas
uma Reforma do Cristianismo Pré-existente (e não se re-
forma o que não existe), rejeitando os erros e não a tota-
lidade. E eles não saíram de Roma, antes foram expulsos,
porque Roma não queria se reformar, ou promoveria a sua
própria Contra-Reforma. Esses Reformadores conheciam
a História da Igreja, valorizavam os mártires e os pensado-
res de todas as épocas e lugares. É apenas a partir da Ter-
ceira Reforma, ou “Reforma Radical” que, com a lenda da
“apostasia geral da Igreja”, a negação ou rejeição de todo
o passado, que passamos a ter um processo contínuo –
até os nossos dias – não de Reforma, mas de Ruptura e
Refundação (sempre com alguém, em cada época e lugar,
“redescobrindo” alguma verdade que o Espírito Santo ti-
nha se esquecido de ensinar nos séculos anteriores...).
O secularismo pós-iluminista contemporâneo atin-
giu tanto o setor Liberal quanto o setor Conservador do
Protestantismo. O Liberalismo, com as melhores das in-
tenções ( “e, de boas intenções, o inferno está cheio”...),
pretendeu, com a sua demitologização, ou desmitifica-
ção, tornar o Cristianismo melhor aceitável pelo homem
moderno. Tirou tanto conteúdo que, por fim, não havia
mais o que o homem moderno aceitar... O Conservadoris-
mo também caiu na armadilha do secularismo, primeiro
ao adotar uma eclesiologia denominacionalista, esvazian-
do-a do sagrado, e, agora, ao nível dos estilos e métodos,
está embarcando na mesma canoa furada do Liberalismo,
ao procurar tornar o Evangelho melhor aceitável pelo ho-
mem pós-moderno, o que não pode fazer sem que se dê
uma mutilação de aspectos, digamos, “desagradáveis” do
conteúdo da fé, e sem uma perda irreparável da herança
cultural da Igreja.
Há um silêncio ou uma omissão eclesiológica. Fun-
dar uma Igreja, hoje em dia, requer um conhecimento
dos requisitos legais, contábeis e administrativos para o
seu registro e funcionamento, a decisão sobre a marca e
a proposta de produto, o melhor “ponto” para se estabe-
lecer, e as estratégias mercadológicas. Apesar do jogo de
cena das orações, a coisa é, no fundo, humana mesmo,
carnal mesmo, pragmática mesmo. A verdade é o que
funciona!
E, aí, se fundam quantas “denominações” que se
queira, com os nomes que se queira, sem problemas de
consciência. O SEBRAE e não a Confissão de Westminster;
Duda Mendonça e não Cipriano de Cartago ou Martinho
Lutero é, afinal, o que conta. O importante é se verificar
a viabilidade do “mercado”, suas novidades ou seus as-
pectos de concorrências (“pequenas igrejas; grandes ne-
gócios”). Não são somente os seguidores da Teologia da
Prosperidade que elaboraram e trabalham o eclesiástico
segundo as regras do Capitalismo. Afinal de contas ( “com
todo o respeito”) já disse um realista: “igreja é um negócio
como outro qualquer”. Se a esquerda teológica, muitas
vezes, trabalhou a igreja sob a perspectiva de um partido
político, sindicato ou ONG, conservadores a têm tratado
como empresas.
E a Igreja estabelecida por Cristo? E o Corpo Místico
como instituição histórica? E o legado do passado? E a as-
sistência contínua do Espírito Santo? Essa coisa continua
a incomodar.
Recentemente um conhecido pensador presbiteria-
no do Brasil, lamentando o caos (de forma e de conteúdo)
em que se encontra o protestantismo nacional, escreveu:
“O que nos falta é voltar aos postulados da Reforma Pro-
testante, que, parece ter-se perdido”. Concordo inteira-
mente com ele, mas diria: o que nos falta, também, e mui-
to, é voltarmos para os postulados anteriores à Reforma
Protestante, ao consenso dos fiéis e à mente da Igreja de
todos os tempos e lugares, sob a iluminação do Espírito
Santo.
Há alguns anos, na região metropolitana do Reci-
fe, em um domingo pela manhã, um universitário, filho
de um pastor regional de uma importante Igreja pente-
costal, saiu de casa em direção ao templo, para partici-
par da Escola Bíblica Dominical. Ao passar pela frente de
uma Paróquia Católica Romana teve sua atenção chama-
da pela decoração com plantas e com o povo cantando
e agitando palmas. Era Domingo de Ramos. Ele parou,
entre constrangido e admirado, assistiu a Missa, alusiva
àquele momento importante do ministério de Jesus. E fi-
cou pensando: “Quando eu chegar à minha Igreja será um
domingo igual a qualquer outro. Não haverá alusão aos
Ramos, como não há alusão a nenhum evento, a exceção
do Natal (no que sua denominação é criticada, por uma
nova congregação que surgiu em seu bairro anti-natali-
na, e defensora da re-introdução do calendário religioso
judaico)” .
“Senhor – ele orou – tem que ser assim? Tem que
haver esse dilema entre uma Igreja solene, valorizadora
do passado e da arte, dos grandes eventos históricos da
fé, mas, que, lamentavelmente, ensina doutrinas alheias
à Sua Palavra, e as outras, como a minha, que te é fiel,
mas em um despojamento radical, que agrida a História
e mutila a nossa espiritualidade?” “Senhor – clamava ele
em seu desconhecimento do todo reformado – não exis-
te Igreja reformada com Domingo de Ramos? Se existe,
Senhor, me revela!” .
“E aos que predestinou, a esses também cha-
mou; e aos que chamou, a esses também jus-
tificou; e aos que justificou, a esses também
glorificou”. (Rm 8.30)
A Igreja nasce da mente e do coração perfeitos de
Jesus. Ela é motivo central do seu diálogo com o Pai (Jo
17). Jesus convoca, equipa e envia os 12 apóstolos, no lu-
gar universal das 12 tribos de Israel, e os 70, como nova
“descendência de Jacó”. O Povo da Nova e Eterna Aliança
é parte central da economia da salvação. Um novo Povo
de todos os povos, com uma missão de salvar, santificar,
sarar, exorcizar, transformar, apontando, ensaiando e
anunciando a plenitude escatológica do Reino de Deus. É
inegável a iniciativa divina e a importância da Igreja, que
recebeu de Jesus o sopro do Espírito, e que a assiste até
a consumação de todas as coisas. Em sua caminhada ela
sofreria aflições de parte do Estado e da Sociedade, seria
perseguida, martirizada, mas nunca destruída. Como “ou-
tros Cristos” (alter Christus) os membros da Igreja vivem a
sua cruz, em doação pelo resgate de muitos.
Os problemas da Igreja não estão do lado de sua
iniciativa divina, que a vê como mistério /sacramento na
História, e como a noiva da Boda Final, como o povo de
branco adorando eternamente o Cordeiro, e habitando
a Nova Jerusalém. Os problemas da Igreja estão em sua
composição humana. Nela – e é o próprio Jesus que ad-
verte – sempre haveria “trigo” e “joio” (que parece com
trigo sem ser trigo), e que não nos cabe fazer essa separa-
ção, mas apenas Ele no Dia Final. Nela apareceriam sem-
pre “falsos profetas” com “outros evangelhos” (heresias).
Nela estariam os que nunca foram (por tradição, adesão
ou interesse). Nela estariam as sementes que nunca ger-
minariam. Nela estariam os “carnais”, que não se deixariam
trabalhar pelo Espírito Santo, e que seriam fontes de por-
fias, invejas, maledicências. Em nenhum momento Jesus
Cristo disse que a vida externa da sua Igreja seria um mar
de rosas, um mero acúmulo de bênçãos e vitórias, nem
disse que a sua vida interna seria uma tranqüilidade. Os
apóstolos retomam sempre as essas questões do martírio
externo e da carnalidade interna.
A Igreja teve, historicamente, seus bons e maus mo-
mentos, seus altos e baixos, mas tem subsistido por dois
mil anos, e subsistirá até o fim, embora, periodicamente,
sejam necessárias ações especiais de Deus, reformas e
avivamentos, para purificá-la dos seus desvios. Os mo-
mentos mais difíceis são quando parece que o “joio” se
torna majoritário sobre o “trigo”, exercendo, inclusive, a
docência e o mando. Assim, é de se perguntar aos cristãos
de hoje qual o grau de sua compreensão, da sua visão,
do seu compromisso com a Igreja. Estaríamos dispostos a
crer – como os Pais – que “fora da Igreja não há salvação?”.
O pensamento liberal (chamado na Igreja Romana
de “modernista”) tem procurado minimizar ou negar o
papel especial da Igreja, ou, até mesmo, a encarar como
um grande equívoco. Alfred Loisy elaboraria uma afirma-
tiva que tem desdobramentos até hoje: “Jesus anunciou
o Reino, e o que veio foi a Igreja”. Como se a instituição
Igreja tivesse usurpado o lugar do reino na “missio Dei”
(missão de Deus). Foram eles, com a separação entre o Je-
sus histórico e o Cristo de Deus deslocando primeiro o Fi-
lho, e, depois, também o Pai Espírito Santo, como centrais
a esse Reino, para eles, primeiro formado pelos valores
comuns a todas as religiões (“procurar ver a face escon-
dida de Cristo por trás dos orixás”, p.ex.), e, depois, para
as ideologias e utopias seculares. Um Reino de Deus sem
Deus. O reino cósmico e histórico de Deus, personalizado
nos corações dos salvos, presente nas comunidades e na
universal assembléia dos remidos, pelo no escaton, tem
como centro o próprio Cristo (autobasiléia), como ensi-
nava Orígenes. Hoje o pensamento liberal pós-moderno,
revisionista, apenas aprofunda o universalismo e o rela-
tivismo, por um humanismo antropocêntrico e não teo-
cêntrico, muito menos cristocêntrico (secularismo), onde
se nega o papel específico e central da Igreja como Povo
de Deus em missão.
Não pode ser diferente quando a maioria dos mem-
bros da Igreja não é convertida, nascida de novo, e/ou
não é “espiritual” no sentido de deixar a ação do Espírito
Santo substituir as “obras da carne” pelo seu “fruto”.
Mas, devemos ser honestos em reconhecer que
desvios e heresias não surgem apenas do lado dos libe-
rais, mas muita esquisitice e carnalidade brotam nos ar-
raiais ditos “conservadores”. O culto à personalidade de
líderes auto-referidos (“apóstolos”, “bispos”, “missionários”,
“pastores”), a completa desvalorização da experiência e
do ensino histórico, tanto reformado, quanto pré-refor-
mado, a ausência de um estudo sério sobre a eclesiologia,
a perda do sagrado, o preconceito contra as “instituições”,
a estreiteza tribal inevitável da percepção apenas con-
gregacional da Igreja (“igreja-local”), sem história, sem
universalidade, sem conteúdo, a escandalosa divisão de-
nominacional, as revelações privadas, o emocionalismo,
o individualismo subjetivista, o clubismo classista, a mu-
tilação do conteúdo da missão e do Reino, a identificação
entre Igreja e Reino, ou a desvalorização da Igreja na mis-
são do reino, são sinais da carne e do demoníaco também
entre os pretensamente “ortodoxos”.
Em nossos dias, católicos romanos e orientais per-
dem, e muito, por não ouvirem as vozes questionadoras e
restauradoras da Reforma. Reformados perdem, e muito,
por não ouvirem as vozes pré-reformadas, sejam Latinas
sejam Orientais. Essa Igreja de Jesus Cristo tem dois mil
anos de episódios carnais a serem conhecidos para não
serem repetidos, de heresias que devem ser conhecidas
para não serem repetidas, mas tem, também, e, principal-
mente, dois mil anos de martírio, missão, sinais do reino
e ensino da verdade, que devem ser conhecidos para se-
rem mantidos, atualizados, ensinados, encarnados, trans-
mitidos.
A Tradição não pode ser uma fonte alternativa ou
complementar de Revelação, mas, juntamente a Razão
e a Experiência (pessoal e comunitária) são ferramentas,
nas mãos do Espírito Santo, para uma mais adequada
compreensão da Revelação Escrita (as Sagradas Escritu-
ras do Antigo e do Novo Testamento), que aponta para a
Revelação Viva: Jesus Cristo. Concordamos com a diferen-
ciação entre Tradição (como fé viva dos que já morreram)
e Tradicionalismo (fé morta dos que ainda vivem). A Igreja
deve perguntar sempre, e primeiramente ao tempo apos-
tólico, registrado nos Evangelhos, no Livro dos Atos e nas
Epístolas, mas devem perguntar, também, às primeiras
gerações pós-apostólicas, pois foram elas que primeiro
vivenciaram a fé e promoveram a inevitável e necessária
institucionalização da Igreja. Foram elas que definiram o
Cânon do Novo Testamento; foram elas que definiram as
doutrinas centrais nos Credos; foram elas que organiza-
ram a Igreja em torno das três ordens ministeriais: Bispos,
Presbíteros e Diáconos.
O compromisso com a Igreja é um compromisso
com o seu Senhor, mas o compromisso com esse Senhor
é um compromisso com a Sua Igreja. É assim conosco?
Que Senhor? Que Igreja?
Jesus Cristo é o fundamento da Igreja. O Pentecos-
tes o seu ato fundacional. Mas, que outros aspectos, nos
primeiros séculos, são fundamentais, e estão na base do
edifício histórico e institucional da Igreja?
1. O processo de discernimento e decisão sobre os
livros que viriam a compor o Cânon do Novo Testamento,
e, em decorrência, fechando definitivamente o Cânon bí-
blico;
2. O estabelecimento das doutrinas básicas da fé
cristã (em contraste com um sem número de movimen-
tos heréticos), contidas no Credo dos Apóstolos e no Cre-
do Niceno. É a partir daqueles documentos que cremos
como verdades centrais do Cristianismo:
a) a Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito San-
to;
b) a Encarnação e as Duas Naturezas de Jesus
Cristo: a Divina e a Humana;
c) o Sacrifício Vicário na Cruz;
d) a Ressurreição;
e) a Ascensão;
f ) o Juízo Final;
g) a Vida Eterna;
h) a Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica;
3. A estruturação da Igreja Universal em Igrejas Par-
ticulares (regionais ou nacionais) e Igrejas-Locais (Dioce-
ses, regiões) sob governo Episcopal, com as três ordens
ministeriais: Bispos, Presbíteros e Diáconos;
4. O pensamento dos Pais Apostólicos (discípulos
dos apóstolos);
5. As decisões dos Concílios da Igreja Indivisa, no
que não contrariem os aspectos anteriores;
6. O pensamento dos Pais da Igreja (discípulos dos
Pais Apostólicos).
Há, nesse conjunto, um acervo comum de conteú-
do de doutrinas, princípios éticos, sistema de governo,
compreensão da vida e da missão da Igreja – aceitos, com
divergências apenas secundárias, pelos quatro ramos
históricos: Assírios, Pré-Calcedônios, Bizantinos e Roma-
nos – que deveria ser mantido intacto através de todas as
épocas e lugares, como dimensões centrais da identidade
cristã, aplicada contextualmente, até o fim. Os pensado-
res da Primeira Reforma (Anglicanos e Luteranos), reafir-
maram esses postulados, já que não estavam procurando
uma Ruptura, mas uma Reforma; não estavam fundando
uma nova igreja, mas reformando a Igreja de sempre. Que
especificidades encontramos na reflexão dos Reformado-
res e nas Confissões de Fé da Reforma Protestante (Oci-
dental) do Século XVI?
1. A concordância com as Igrejas Orientais de que
não se poderia aceitar dogmas e outras resoluções de
Concílios da Igreja já dividida, por representarem apenas
parcialmente a Cristandade;
2. A convicção de que Papas e Concílios cometeram
erros, e que deveriam sempre estar sujeitos ao crivo das
Sagradas Escrituras;
3. A percepção de que o pensamento dos Pais da
Igreja (Patrística), com o uso da ferramenta hermenêutica
neo-platônica, e do pensamento medieval posterior (Es-
colástica), com o uso da ferramenta hermenêutica neo-a-
ristotélica, por mais importante que seja, não estava au-
sente de influências culturais do mundo greco-romano, e
que deveriam ser sujeitos à crítica;
4. A centralidade das Sagradas Escrituras como últi-
ma palavra em matéria de fé e ordem, fonte de revelação
e que nada deveria ser ensinado ou requerido ser crido se
por ela não se pudesse provar (Sola Scriptura);
5. A salvação unicamente pela graça (Sola Gratia)
oferecida por Jesus Cristo (Solus Christus), e recebida pela
fé (Sola Fide);
6. A crença em aspectos adiáforos (indiferentes) na
vida da Igreja, em sua licitude, em virtude da diversidade
cultural e da criatividade da pessoa humana. A Bíblia não
seria o Corão a normatizar cada detalhe da existência;
7. A crença em uma Inclusividade, e não em uma
total padronização de todas as crenças e práticas: “No es-
sencial, unidade; no acidental, diversidade; em tudo, ca-
ridade”;
8. A percepção dos aspectos: comunidade + adora-
ção + exposição da Palavra + celebração dos Sacramen-
tos (Batismo e Eucaristia) + disciplina como conteúdos
necessários a uma comunidade de fé localizada, conec-
tadas às dimensões maiores, e não (como erroneamente
tem sido entendido por alguns) como conceito reducio-
nista (minimalista) da Igreja;
9. A valorização da Arte Sacra histórica (arquitetura,
escultura, pintura, música etc.), inclusive a arte da ado-
ração manifestada na Liturgia, que, expurgada de erros
adicionados no passado, deveria ser preservada e aper-
feiçoada;
10. A manutenção do Episcopado Histórico como
forma mais adequada para o governo da Igreja e con-
soante o processo de elaboração pela Igreja Primitiva;
11. O valor do Consenso dos Fiéis (consensum fide-
lium), como a expressão da “mente da Igreja”, ao longo do
tempo e do espaço, a ser levado em conta em matéria de
compreensão da fé, da ordem e da ética na Igreja.
Tanto as quatro instituições pré-reformadas: Assí-
rios, Pré-Calcedônios, Bizantinos e Romanos, quanto às
instituições pós-reformadas: Luteranos, Anglicanos, Cal-
vinistas, Moravianos, Anabatistas (Menonitas, Congrega-
cionais, Batistas) e Valdenses, se percebiam, de uma ou de
outra maneira, como ramos do Cristianismo, e não como
“denominações” (igreja cristã que se “denomina” de tal ou
qual modo), pois essa expressão era inexistente nos sécu-
los XVI e XVII. Lamentavelmente, o princípio do Livre Exa-
me (livre acesso e leitura) das Sagradas Escrituras foi de-
turpado para uma “Livre Interpretação” (individualismo,
racionalismo) e para uma “Livre Iniciativa” (capitalismo),
resultando no denominacionalismo (fragmentação) jus-
tificado, neo-platonicamente, pelo conceito metafísico e
ahistórico da “unidade da Igreja Invisível”.
Uma das perguntas que revelam o absurdo cog-
nitivo e existencial em que se encontra o Cristianismo
(particularmente em nossa Pátria) é a pergunta: “Você é
Católico ou Protestante?”. A Igreja Assíria é Católica, bem
como são católicas as Igrejas Pré-Calcedônias (Sirianos,
Armênios, Coptas, Etíopes, Indianos/Malabar), as Igrejas
Bizantinas (Grega, Russa, Sérvia, Romena, Búlgara etc.), os
Vétero-Católicos da União de Utrech e os Católicos Nacio-
nais (Poloneses, Filipinos, ICAB etc.). Mas – chamamos a
atenção – os Protestantes são Católicos, na correta per-
cepção da Primeira Reforma. O Protestantismo não é a
negação do Catolicismo, mas, sim, a crítica ao Romanismo
(e Roma não tem o monopólio do Catolicismo). O Protes-
tantismo é a Reforma, e a afirmação do Catolicismo, não é
a sua negação. Os Protestantes são os verdadeiros Católi-
cos. Catolicismo entendido como Cristianismo Histórico e
Universal, que confessa os Credos: Apostólico e Niceno, e
se organiza em torno das três Ordens ministeriais: Bispos,
Presbíteros e Diáconos, em Sucessão Apostólica.
Alguns ramos do Cristianismo atual são expressões
desse Catolicismo Reformado:
a) O Anglicanismo e o Luteranismo Escandinavo e
Báltico (que subscrevem o “Acordo de Porvoo”, Finlândia),
como reformas do catolicismo ocidental;
b) A Igreja Mar Thoma, na Índia, como reformas do
catolicismo oriental siriano;
c) As Igrejas Unidas do Paquistão, de Bangladesh,
do Norte da Índia e do Sul da Índia (fusão de anglicanos,
luteranos, metodistas, presbiterianos, congregacionais,
batistas e irmãos livres). Dois mil anos ininterruptos de
Cristianismo, o antes e o depois da Reforma, que sempre
se reforma, procura se atualizar e contextualizar. É um
Cristianismo abrangente, com grandeza e profundidade,
que evita a parcialização mutilante, o sectarismo estreito,
o novidadismo iconoclasta.
Quando, por nove anos, estudei o Anglicanismo,
antes de me filiar, fiquei impressionado com o Livro de
Oração Comum (LOC) quando o definia como “um ramo
provisório da Igreja de Cristo”, e orava pela “unidade visí-
vel da Igreja”, pelo dia quando seríamos “um só rebanho
e um só Pastor”.
O que enfrentamos hoje, por um lado, é a aridez
do racionalismo liberal, por outro, a aridez do tradicio-
nalismo imobilista; por outro, ainda, no lado “ortodoxo”,
o individualismo egocêntrico na sofreguidão das novi-
dades “que funcionem” (especialmente importadas), ou
o emocionalismo, o misticismo, a alienação, a histeria, as
revelações privadas, o desprezo pelo passado, o legalis-
mo-moralismo, o anti-intelectualismo, a ênfase não na
Palavra, mas na experiência; não no arrependimento e na
santidade, mas nas curas, nos milagres e na prosperidade,
em uma cultura eclesiástica anabatistizada e (neo)pente-
costalizada.
O individualismo tem ido muito longe, com a “livre
iniciativa/livre empresa” criando, a torto e a direito (mais
ao torto), “denominações” com nomes e práticas as mais
exóticas, para todos os gostos, se chegando, até, sob a
liderança de líderes espiritualmente baratinados, a ecle-
siologias anárquicas (“Caminhando e Cantando...” / “Ca-
minhando Contra o Vento... Sem Lenço e Sem Documen-
to...”).
Uma questão central, creio, diz respeito à Disciplina,
à Prestação de Contas, que tem gerado zonas nebulosas
e – é triste confessar – procedimentos criminosos, em
que o braço da Lei é racionalizado, marotamente, como
“perseguição religiosa”. Líderes e comunidades cristãs
ocupam, cada vez mais, a página policial. Uma eclesio-
logia autocrática “coronelística” tem marcado muitos dos
novos grupamentos religiosos, com um(a) todo-podero-
so(a) cacique(a) como “dono(a)”, de poder inconteste (fal-
ta de transparência) nessas “denominações”. Se Luis XIV
dizia que o Estado era a sua pessoa (“L’Etat c’est moi”),
esses “apóstolos”, “bispos”, “missionários” e “pastores” po-
dem dizer que a Igreja é a sua pessoa (“L’Eglise c’est moi”).
A seriedade das instituições se manifesta na clareza das
normas (Constituições, Estatutos, Cânones), no compro-
misso de todos com o seu cumprimento, e na distribui-
ção do poder em uma diversidade de pessoas e grupos,
mutuamente dependentes e controladores. No Anglica-
nismo denominamos de “autoridade dispersa” ou “poder
partilhado” em um “episcopalismo participativo”, não mo-
nárquico ou democrático.
As diferenças entre os ramos do Cristianismo, na
Antiguidade e na Reforma, diziam respeito a questões
culturais ou de percepção; hoje, contudo, são de interes-
ses e de expressão do espírito de rebeldia e rebelião (que
está no Pecado Original). Na velha controvérsia quanto
ao governo da Igreja, por exemplo, tomando a imagem
de um ser em formação, cremos que os congregacionais
se apegaram ao embrião, os presbiterianos ao feto, en-
quanto que os episcopais esperaram pelo nascimento do
bebê.
Uma marca da pós-modernidade individualista
atual tem sido a rejeição de toda autoridade: familiar, es-
colar, no mundo do trabalho, nas entidades, no Estado,
enquanto que os rebeldes são movidos pela “síndrome
de Lúcifer”: no fundo são contra o poder da instituição
dos outros, e quer o poder exclusivamente para si. Nada
como uma grande denominação, ou uma grande “igre-
ja-local” (mega-igreja), com grande membresia e grande
orçamento para tentar os obreiros nessa triste e trágica
direção desagregante para o Corpo de Cristo e sua ex-
pressão institucional histórica, a Igreja.
Alguém disse, recentemente, que, no Brasil, católi-
cos romanos e protestantes são todos idólatras. A dife-
rença é que os católicos romanos idolatram mortos e os
protestantes idolatram vivos!
Um “laboratório” desse modelo autocrático-paro-
quialista, “coronelítico” (dentre tantos encontrados por
esse País afora) foi, durante muito tempo, a antiga Cate-
dral Anglicana do Recife, hoje sob “posse” da Igreja Epis-
copal Carismática. Dirigida, por muitos anos, por uma
personalidade centralizadora, narcísica, foi erigida à base
da “opção preferencial pelos não-pobres”, como confraria
de assemelhados na satisfação mútua dos egos e a mili-
tância em certos “movimentos de evangelização” (fartos
em adesão, débeis em conversão), com uma inanição bí-
blico-doutrinária e um completo desconhecimento do
conteúdo teológico (e, particularmente, eclesiológico)
do Anglicanismo. Todo poder e toda lealdade ao che-
fe! O chefe, de modo totalitário, controla tudo e a todos
(dos cargos ao que se pode ler). A Assembléia Paroquial
tão forte quanto a Assembléia Nacional de Cuba... A Jun-
ta (Conselho) Paroquial tão forte quanto o “Presidium”
do Soviete Supremo (da antiga URSS). O Bispo tão forte
quanto a Rainha da Inglaterra. Nesse caso, o chefe, quan-
do lhe aprouvesse, poderia conduzir o seu, literalmente,
rebanho, para a Paróquia de Nossa Senhora do Bom Par-
to ou para a Igreja Adventista do Oitavo Dia. O que fez,
faltando com a verdade e injuriando sua antiga institui-
ção e os seus líderes. Hoje, “Arcebispo Primaz”, exerce a
dignidade do mando sem nunca ter exercido a honra da
obediência.
Enfim, o Povo da Nova Aliança na História, comuni-
dade e instituição que deveria ser caracterizado pela Uni-
dade, pela Verdade e pelo Amor, em conteúdo e forma
dando continuidade, em relevância, ao que lhe foi lega-
do, demonstra vitalidade em muitas partes do mundo, e,
em outras, vive crises profundas. Clama-se por Reforma e
Avivamento. O Senhor da Igreja a renova sempre e a as-
siste sempre. Parte do problema está no silêncio ou nas
distorções em torno da Eclesiologia. Fica o desafio para a
nossa geração!

Paripueira (AL), 09 de setembro de 2007.


Dom Robinson Cavalcanti, OSE

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