DOUGLAS, M. Pureza e Perigo
DOUGLAS, M. Pureza e Perigo
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CAPÍTULO I
A IMPUREZA RITUAL
A nossa idéia de impuro é fruto do cuidado com a higiene e do respeito pela
convenções que nos são próprios. Certamente que as nossas regras de higiene evoluem
com os conhecimentos que adquirimos. Quanto às convenções que nos mandam afastar
da impureza, pode acontecer que não as cumpramos por amizade, como o pastor da
fazenda de Hardy que recusou um copo limpo para a sua cidra. «Aqui está um homem de
bem que não se faz esquisito», concluiram os trabalhadores da quinta.
– Um copo lavado para o pastor – bradou o preparador de malte.
– Não, de modo nenhum – disse Gabriel, num tom delicadamente reprovador. –
Eu nunca me aflijo com a sujidade no seu estado puro e quando sei de que espécie é... Por
nada na vida iria incomodar os nossos vizinhos obrigando-os a lavar mais loiça, quando há
já tanto trabalho para se fazer neste mundo.
Num espírito mais exaltado diz-se que Santa Catarina de Siena se censurava
amargamente pela revulsão que lhe provocavam as chagas que tratava. Sendo a higiene
incompatível com a caridade, bebeu deliberadamente uma tigela de pus.
Quer sejam observadas com rigor, quer violadas, não há nada nas nossas regras de
pureza que sugira uma relação entre o impuro e o sagrado. Por isso nos sentimos confusos
quando nos apercebemos de que os povos primitivos não distinguem o sagrado do
impuro.
Para nós os objectos e os lugares sagrados devem ser protegidos das impurezas. O
sagrado e o impuro são pólos opostos. Não podemos confundi-los, como não poderíamos
confundir a fome com a saciedade, o sono com a vigília e, contudo, parece que é
característico das religiões primitivas não distinguir claramente o sagrado do impuro. Se
isto for verdade, existe um grande abismo entre os nosso antepassados e nós, entre nós e os
primitivos contemporâneos. Numerosos foram os eruditos que retiveram esta hipótese que
ainda hoje se ensina de uma forma oculta ou outra. Vejamos, a este respeito, um reparo de
Elíade:
A afirmação pode ser feita de forma a parecer menos paradoxal. Poderia significar
que a nossa idéia do sagrado é especializada, enquanto em algumas culturas primitivas o
sagrado é uma idéia muito geral que significa pouco mais do que proibição. É neste
sentido que o universo se encontra dividido entre as coisas e as acções que estão sujeitas a
restrições e aquelas que não o estão. Certas restrições visam proteger os deuses das
profanações e outras proteger o profano das perigosas intromissões divinas. As regras
relativas ao sagrado destinam-se então a manter os deuses à distância e a impureza
constitui, nos dois sentidos, um perigo: através dela, o indivíduo pode entrar em contato
com o deus. Tudo se resume assim a um problema de linguagem e o paradoxo: desaparece
mudando-se de vocabulário. Isto poderá ser válido para algumas culturas (ver F. Steiner,
p. 33).
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A título de exemplo, a palavra latina sacer toma este sentido de restrição quando se
aplica aos deuses e em alguns casos, pode aplicar-se do mesmo modo à consagração e ao
seu contrário. Similarmente, a raiz K-d-sh em hebraico, geralmente traduzida por sagrado,
baseia-se na idéia de separação. Ciente da dificuldade que existe na tradução directa de K-
d-sh por santo, Ronald Knox, na sua tradução do Velho Testamento, emprega «set apart»;
«posto de lado». Desta forma, as magníficas palavras «Sereis santos porque eu sou santo»
são pobremente traduzidas por:
Porque eu sou o senhor que vos tirou do Egito para ser o vosso Deus: eu
estou posto de lado e vós sereis postos de lado como eu. (Lev. 11,45)
Se com uma retradução se pudesse esclarecer o assunto, como seria simples. Mas
existem muitos mais casos rebeldes. No Hinduísmo, por exemplo, é absurdo pensar que o
impuro e o sagrado possam pertencer a uma mesma categoria lingüística. A noção de
poluição nos Hindus sugere uma outra maneira de abordar o problema. Afinal de contas,
o sagrado e o profano não são sempre e como que por necessidade diametralmente
opostos. Podem ser categorias relativas: o que é puro em relação a uma coisa, pode ser
impuro em relação a outra e vice-versa. A linguagem da poluição presta-se a uma álgebra
complexa que leva em conta as variáveis de cada contexto. O Professor Harper explica, por
exemplo, como os Havik de Malnad, região do Estado de Mysore, exprimem o respeito:
Outro exemplo ainda mais claro é aquele em que uma mulher santa, sadhu, devia
ser tratada com o maior respeito quando ia de visita à aldeia. Para mostrá-lo, o líquido em
que banhava os seus pés
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própria linguagem e não levanta paradoxos embaraçantes. Longe de confundir as noções
de sagrado e de impureza, os Hindus distinguem-nas e com a mais extrema das subtilezas.
Nas linhas atrás citadas sobre a confusão entre o contágio sagrado e a impureza nas
religiões primitivas, Elíade não se referia certamente aos refinados conceitos bramânicos. A
que povo se referia então? Exceptuando os antropólogos, existe alguém que realmente
confunda o sagrado e o impuro? Donde vem esta noção?
Frazer parece ter acreditado que a confusão entre a impureza e o sagrado é o traço
distintivo do pensamento primitivo. Depois de uma longa exposição sobre a atitude dos
sírios em relação aos porcos, conclui:
Alguns diziam que era por os porcos serem impuros; outros, por serem
sagrados. Isto (...) indica um estado nebuloso do pensamento religioso que ainda não
distingue claramente as noções de sagrado e de impuro misturando-as numa espécie
de solução difusa à qual damos o nome de tabu. (Spiritus of the Corn and of the Wild, II, p.
23)
Frazer tinha muito boas qualidades, mas a originalidade nunca foi uma delas. As
linhas que acabamos de citar são um eco directo de Robertson Smith, a quem Frazer
dedicou The Spirits of the Corn and of the Wild. Mais de vinte anos antes, Robertson Smith
usara a palavra tabu no sentido de restrições ao uso arbitrário que o homem pode fazer da
natureza, reforçados pelo medo dos castigos sobrenaturais (1889, p. 142). Precauções
contra os espíritos malignos, estes tabus, inspirados pelo medo, são, segundo Smith,
comuns a todos os povos primitivos e tomam muitas vezes a forma de regras de impureza.
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que isto. As regras primitivas de impureza prestam atenção às circunstâncias materiais que
acompanham os actos e julgam-nos, por conseqüência, bons ou maus. Assim, considera-
se, por vezes, perigoso o contacto com os cadáveres, o sangue ou o cuspo. Nos cristãos, ao
contrário, as prescrições relativas ao sagrado ignoram as circunstâncias materiais e os
crentes julgam os actos em função dos motivos e do estado de espírito do agente.
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O seu panfleto suscitou; segundo Hodgen, reacções violentas e imediatas:
Finalmente; apareceu um homem que, até ao fim do século, pôs fim à controvérsia
trazendo o pensamento científico em auxílio dos adeptos do progresso. Tratava-se de
Henry Burnett Tylor (1832-1917). Desenvolveu uma teoria e procurou . provar que a
civilização era o .resultado de um lento progresso tendo como ponto de partida uma
sociedade semelhante às dos selvagens contemporâneos.
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O importante, para ele, era desaterrar e limpar da superfície da história as pedras e
da poeira das culturas selvagens contemporâneas e revelar as grandes correntes criadoras
que têm, na sociedade moderna, uma função activa e que assim se mostram como
produtos da evolução. Este é precisamente o seu objectivo ao escrever The Religion of the
Semites, onde separa os princípios da verdadeira religião das superstições selvagens que,
aliás, põe de parte sem perder demasiado tempo. As teorias de Robertson Smith sobre a
superstição e a magia são apenas um subproduto do tema central da sua obra-chave.
Portanto, procede, ao invés de Tylor. Enquanto este queria saber o que as relíquias
pitorescas nos podem ensinar sobre o passado, Smith partia em busca dos elementos
comuns à experiência primitiva e à experiência moderna. Tylor fundou os estudos
folclóricos; Robertson Smith, a antropologia social.
Houve outra corrente de pensamento que se ofereceu à curiosidade profissional de
Robertson Smith. Alguns crentes não podiam conciliar o desenvolvimento da ciência com
a Revelação cristã tradicional. A fé estava abalada. A razão e a fé pareciam
irremediavelmente em desavença, a menos que se encontrasse uma nova concepção da
religião. Um grupo de filósofos que já não podiam aceitar a religião revelada, mas que não
podiam também viver sem quaisquer crenças transcendentais que os guiassem, trataram de
procurar essa fórmula. Foi então que nasceu um movimento, ainda hoje vivo, que tendia a
destronar as revelações da doutrina cristã e a substituí-las por princípios morais erigidos
em estatuto de essência da religião. Citamos abaixo a descrição que Richter fez deste
movimento nascido em Oxford. Em Balliol, T. H. Green tentava aclimatar a filosofia
idealista hegeliana e resolver, graças a ela, os problemas da fé, da moral e da política
contemporânea. Jowett escrevera a Florence Nightingale:
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costumes e as leis graças aos quais se realiza na vida algo de semelhante a este ideal
são dotados de uma autoridade divina. (M. Richter, p. 105) .
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As lendas fenícias (...) estavam ligadas a uma concepção absolutamente pagã
de Deus, do homem e do mundo. Desprovidos como estavam de motivos morais,
nenhum dos seus crentes poderia alcançar uma concepção espiritual da Divindade ou
uma noção elevada dos fins da humanidade. (...) Não me cabe a mim explicar o
contraste (com as noções hebraicas de divindade); cabe sim àqueles que, orientados
por uma falsa filosofia da Revelação, apenas vêem no Velho Testamento o resultado
das tendências gerais das religiões semíticas. Os meus trabalhos não me permitem
aqui adoptar esse ponto de vista infirmado pelas numerosas semelhanças de pormenor
entre os contos e os ritos hebraicos e pagãos; porque todas estas semelhanças
concretas não fazem mais que por em evidência os contrastes entre as duas tradições
no plano espiritual (...) (J. S. Black e G. Chrystal, p. 536)
Isto quanto à esmagadora inferioridade das religiões dos vizinhos de Israel e dos
Semitas pagãos. No que respeita às religiões semitas pagãs, elas possuem essencialmente
duas características: uma demonologia abundante que desperta o medo e relações estáveis
e reconfortantes com o deus da comunidade. Os demônios são o elemento primitivo
rejeitado por Israel; as relações morais e estáveis com Deus constituem a verdadeira
religião.
Não há dúvida de que este julgamento sobre a relação entre a moral e a religião
primitivas encontrou, durante a década de 1890, um acolhimento favorável. Operava uma
combinação feliz entre o novo idealismo moral de Oxford e a antiga revelação. Robertson
Smith dedicara-se à interpretação moral da religião. As suas teses eram compatíveis com as
de Oxford e a prova disso é que Bailliol lhe ofereceu um lugar logo que foi demitido da
cadeira de hebraico na universidade de Aberdeen.
Smith estava convencido de que o Velho Testamento se manteria por cima da
contenda e que sairia incólume dum exame científico, por mais rigoroso que fosse. Podia
mostrar com uma erudição incompatível que todas as religiões primitivas eram a expressão
de formas e de valores sociais. E uma vez que os conceitos religiosos de Israel eram
indiscutivelmente de um grande valor moral, que ao longo da história deram lugar aos
ideais cristãos e que estes, por sua vez, abandonaram o catolicismo em favor do
Protestantismo, o sentido da evolução não colocava dúvidas. Deste modo, a ciência não
contradizia a tarefa dos cristãos, antes constituía um dos seus suportes essenciais.
Tendo definido a magia como um resíduo da evolução, os antropólogos
encontraram-se perante um problema irresolúvel. Por um lado, a magia era um rito que
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não fazia parte do culto votado ao deus da comunidade; por outro, era um rito do qual se
esperava um resultado automático. Num certo sentido, a magia era para os hebreus o que
o Catolicismo era para os Protestantes: um culto ridículo e irracional, ritos desprovidos de
sentido, cujos participantes esperavam ver resultados sem ter havido uma experiência
íntima de Deus.
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observâncias, quer em virtude de ter nascido dentro da família e da comunidade quer
em virtude de ter adquirido este ou aquele estatuto no seio dessa família e dessa
comunidade. (...) A religião tinha por objectivo não a, salvação das almas; mas a
preservação da sociedade e a garantia do seu bem-estar. (...). Todo indivíduo entrava,
pelo nascimento, em relações pré-estabelecidas com certos deuses e com os seus
congêneres; e a sua religião, que é a parte da conduta determinada pelas suas relações
com os deuses, era simplesmente um segmento do esquema geral de comportamento
que lhe estava prescrito consoante a sua posição na sociedade. (...) A religião antiga
não é mais que um aspecto da ordem social geral que regula tanto os deuses como os
homens.
Assim escreveu Robertson Smith (pp. 29-33). Não fora o seu estilo e o uso do
imperfeito e isto poderia ter sido escrito por Durkheim.
Achei muito útil, para compreender Durkheim, saber que ele se encontrou
inicialmente envolvido numa controvérsia com os ingleses, como sugere Talcott Parsons
(1960). As lacunas da filosofia política inglesa, sobretudo de Herbert Spencer, incitavam
Durkheim a levantar mais uma vez o problema da integração social que tanto o
preocupava. Não podia subscrever a teoria utilitarista segundo a qual a psicologia
individual bastaria para explicar o desenvolvimento da sociedade. Durkheim queria
demonstrar que era necessário algo mais, uma obrigação comum para com um conjunto
de valores comuns, uma consciência colectiva para se compreender a natureza da
sociedade. Na mesma altura, outro francês, Gustave le Bon (1841-1931) embrenhava-se
na mesma tarefa de corrigir as teses de Bentham que então prevaleciam. Para este efeito,
elaborou uma teoria da psicologia das massas que Durkheim parece ter utilizado
livremente. Compare-se a descrição que Durkheim faz da emoção arrebatadora que se
desprende das cerimônias totêmicas com a descrição de Gustave le Bon do «espírito das
massas», influenciável, emotivo, heróico ou selvagem. Mas para convencer os ingleses do
seu engano, Durkhein dispunha, de um argumento melhor presente na obra de outro
inglês.
Durkheim adoptou sem reservas a definição que Robertson Smith fez da religião
primitiva: uma igreja estabelecida que exprime os valores da comunidade. Aceitou a
distinção de Robertson Smith entre os ritos que fazem parte do culto aos deuses da
comunidade e os outros ritos. Como Smith, qualificou-os de ‘mágicos’ e definiu a magia e
os mágicos como crenças, práticas e pessoas que se encontram à margem da comunhão da
igreja e que por vezes lhe são hostis. Seguindo Robertson Smith e talvez também Frazer
(porque os primeiros volumes do Golden Bough apareceram antes da publicação, em
1912, das Formas Elementares da Vida Religiosa), admitiu que os ritos mágicos
correspondiam a uma forma de higiene primitiva:
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fundamentos da sua própria definição de religião. Nos primeiros capítulos, compendia e
rejeita as definições de religião que não o satisfazem: as que faziam apelo ao mistério e ao
medo e também a de Tylor, que identificava a religião com a crença em realidades
espirituais. Durkheim adopta de seguida dois critérios que supõe coincidentes: o primeiro,
vimo-lo já, é a organização comunitária dos homens no culto da comunidade; o segundo
é a distinção entre o sagrado e o profano. O sagrado é o objecto de adoração da
comunidade e pode ser reconhecido nas regras que exprimem o seu carácter
essencialmente contagioso.
Quando insiste na ruptura completa entre o sagrado e o profano, entre os
comportamentos seculares e os religiosos, Durkheim abandona Robertson Smith. Este
afirmava, ao contrário e com insistência (p. 29 e s.), que não existe «separação entre a
esfera religiosa e a vida corrente». Uma oposição total entre sagrado e profano parece ter
sido um passo necessário na teoria durkheimiana da integração social e exprimia outra
oposição, agora entre o indivíduo e a sociedade. Durkheim projecta a consciência social
para além e acima dos membros individuais da sociedade, para uma outra entidade ao
mesmo tempo exterior e poderosamente constrangedora. Vemos também Durkheim
insistir no facto de as regras de separação caracterizarem o sagrado, diametralmente oposto
ao profano. Os seus argumentos levam-no então a perguntar por que razão o sagrado é
contagioso. Responde referindo-se à natureza fictícia, abstracta, das entidades religiosas.
Elas não são mais do que idéias despertadas pela experiência da sociedade, idéias colectivas
projetadas para o exterior, meras expressões de valores morais. Não possuem bases
materiais. São pois, em última análise, desenraizadas, fluidas, capazes de se fundirem
noutras experiências. É da sua natureza estarem sempre em perigo de perder o seu carácter
distintivo e necessário. O sagrado precisa de estar forçosa e continuamente delimitado por
interdições. O sagrado deve sempre ser visto como contagioso porque as relações que se
estabelecem com ele se exprimem obrigatoriamente nos ritos de separação e de
demarcação e na idéia de que é perigoso , ultrapassar certos limites.
Mas aqui surge uma pequena dificuldade. Se o contágio caracteriza o sagrado, em
que difere então da magia, não sagrada, mas também caracterizada pelo contágio? Que
forma de contágio é esta que não é gerada pelo processo social? Por que assimilar as
crenças mágicas à higiene primitiva e não à religião primitiva? Estes problemas não
interessaram Durkheim. Ele seguiu a via traçada por Robertson Smith separando a magia
da moral e da religião e assim ajudou a transmitir-nos uma confusão de idéias sobre a
magia. Desde então, os estudiosos não cessaram de meditar numa definição satisfatória das
crenças mágicas e de se interrogar sobre a mentalidade dos povos que as subscrevem.
Sabemos agora que a visão durkheimiana de comunidade social era demasiado
unitária. Devemos começar por reconhecer que a vida comunitária é muito mais complexa
do que ele julgara. Depois, descobrimos que a sua teoria segundo a qual os rituais são
símbolos de processos sociais é válida para dois tipos de crenças – religiosas e mágicas –
relativas ao contágio. Se tivesse pressentido que as regras a que chamava higiênicas são
também dotadas de um simbolismo social, teria sem dúvida afastado a categoria da magia.
Voltaremos a este tema, pois não poderemos desenvolvê-lo sem primeiro fazer tábua rasa
de uma série de idéias preconcebidas derivadas, também, de Robertson Smith.
Frazer não se interessou pelas implicações sociológicas da obra de Robertson Smith
nem pelo seu tema principal. Optou por agarrar-se à magia, resíduo que Robertson Smith
rejeitara casualmente, por assim dizer, da sua definição de verdadeira religião. Ele mostrou
que as crenças mágicas tinham uma certa regularidade e que podiam ser classificadas.
Concluiu, após o exame, que a magia não era um conjunto de regras para evitar qualquer
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contaminação obscura. Os actos mágicos destinavam-se ora a procurar benefícios, ora a
evitar o mal. E portanto, os comportamentos que Robertson Smith classificava como
“supersticiosos” não se limitavam às regras de pureza. Todos estes comportamentos
pareciam estar dominados pela noção de contágio, bem como pela crença de que os
carácteres podem ser transmitidos por simpatia ou semelhança. Em virtude das chamadas
leis da magia, o mágico pode mudar o rumo dos acontecimentos entregando-se a actos
miméticos ou dando livre curso às forças contagiosas. Estudando a magia, Frazer
contentou-se em escrever as condições em que uma coisa pode simbolizar outra. Se não
estivesse convencido de que os selvagens pensam segundo princípios inteiramente
diferentes dos nossos, não teria talvez aceite de ânimo leve ver na magia um acto
simbólico. Poderia então ter dado as mãos a Durkheim e à escola francesa de sociologia e
estabelecido, nos dois lados do canal da Mancha, um diálogo mais frutífero para o
pensamento inglês do século XIX. Em vez disso, dedicou-se à tarefa de pôr ordem, aliás de
forma superficial, nas pressuposições evolucionistas implícitas de Robertson Smith:
destinando â cultura humana três estádios de desenvolvimento.
A magia era o primeiro estádio, a religião o segundo, a ciência o terceiro. O seu
argumento obedece a uma espécie de dialéctica hegeliana; a magia, que ele considerava
como ciência primitiva, era vencida pelas suas próprias insuficiências e suplementada pela
religião, forma de fraude perpetrada pelos políticos e pelos padres. Da tese (a magia)
emergia a antítese (a religião), e a síntese (a ciência moderna e eficaz) substituía, ao mesmo
tempo, a magia e a religião. Este esquema de evolução, muito em voga na altura, não
assentava sobre nada de concreto. Frazer baseava-se apenas nalgumas suposições
correntemente admitidas na época em conversas de salão. Acreditava-se, de facto, que o
requinte moral era um sinal de civilização avançada. Supunha-se também que a magia
nada tinha a ver com a moral nem com a religião. Foi com estes elementos que Frazer
pintou a imagem dos nossos antepassados. A magia dominava o seu espírito. O universo, a
seus olhos, era movido por princípios impessoais, mecânicos. Procurando
desajeitadamente a fórmula que lhes permitiria controlá-los, os nossos antepassados
tropeçavam por acaso nalguns princípios justos mas, o mais das vezes, a confusão mental
de que eram vítimas levava-os a crer que as palavras e os sinais lhes poderiam servir de
instrumentos. A magia seria a conseqüência da incapacidade dos primeiros humanos para
distinguir as suas próprias associações subjectivas da realidade exterior, objectiva. A sua
origem baseava-se, pois, num engano. Não existiam dúvidas de que o selvagem era um
pateta crédulo.
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próprio é capaz de repetir cada ano a obra da criação com os seus sortilégios e
encantamentos. (Spirits of the Corn and of the Wild, II, p. 109)
É difícil perdoar a Frazer a sua auto-satisfação, o seu desdém não disfarçado pelas
sociedades primitivas. O último capítulo de Taboo and the Perils of the Soul intitula-se «A
nossa dívida para com os Selvagens». Possivelmente, foi introduzido em resposta a
correspondentes que o pressionaram a reconhecer a sabedoria e a profundidade filosófica
das culturas primitivas que conheciam.
Frazer apresenta interessantes extractos destas cartas nas suas notas, mas as suas
idéias preconcebidas impediram-no de os levar em linha de conta. O capítulo em questão
simula um elogio à filosofia dos selvagens; mas como Frazer não nos oferece nenhuma
razão para respeitar idéias cujo carácter infantil, irracional e supersticioso acabava de
demonstrar, somos levados a crer que o seu elogio é apenas de fachada. Será possível
demonstrar uma condescendência mais pomposa?
No fim de contas, as nossas semelhanças com os selvagens são muito mais
numerosas do que as nossas diferenças. (...) Ao cabo e ao resto, aquilo que chamamos de
verdade é apenas a hipótese que se pensou ser mais eficaz. Assim, reexaminando as
opiniões e as práticas de idades e raças mais rudes que as nossas, faremos bem em olhar os
seus erros com indulgência, pois são passos em falso inevitáveis dados em busca da
verdade...
Frazer teve adversários que, no seu tempo, receberam alguma atenção. Mas, em
Inglaterra, triunfou incontestavelmente. Ainda hoje, a edição abreviada de Golden Bough é
vendável e ainda hoje se profere regularmente uma Frazer Memorial Lecture. O seu
sucesso deve-se à grande simplicidade das suas idéias, à incansável energia com que
publicava volume após volume e sobretudo a um estilo luxuriante que lhe permitiu atingir
um público tão vasto. Quase todas as obras então consagradas às civilizações antigas
contêm uma série de alusões ao primitivismo e ao critério que o define: a superstição
mágica sem conteúdo ético.
Assim, reconhecem-se em Cassirer, falando do Zoroastrismo, estes temas tirados do
Golden Bough:
Até a natureza assume novas formas, por ser vista exclusivamente através do
espelho da vida moral. A natureza (...) é concebida como sendo o domínio da lei e
daquilo que é lícito. Na religião de Zoroastro, a natureza é descrita pelo conceito de
Asha. Asha é a sabedoria da natureza que reflecte a sabedoria do seu criador, Ahura
Mazda, o «Senhor sábio». Esta ordem universal, eterna, inviolável, governa o mundo e
determina todos os fenómenos singulares: o trajecto do Sol, da Lua, das estrelas, o
crescimento das plantas e dos animais, o percurso dos ventos e das nuvens. Tudo isto
é mantido e preservado, não por meras forças físicas, mas pela força do Bem (...); o
sentido moral substituiu e suplantou o sentido mágico.
Ou, para considerar um exemplo mais recente, eis o Professor Zaehner observando
pesarosamente que os textos de Zoroastro menos truncados não têm qualquer interesse,
pois apenas contêm regras relativas à pureza:
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É certo que Robertson Smith nada avançou; mas poderemos ter a certeza, passados
setenta anos, de que não quis ir mais longe? Os especialistas do Velho Testamento supõem
geralmente que os povos primitivos apenas retêm, dos seus rituais, o carácter mágico, isto
é, mecânico, utilitário. «Israel, nos seus primórdios, quase não distinguia o que chamamos
de pecados voluntários e involuntários contra Deus» (Osterley e Box). «Para os Hebreus
do século V a.C.», escrevia o Professor James em 1938, «a expiação era apenas um
processo mecânico que consistia na eliminação da impureza material». A história dos
Israelitas é algumas vezes apresentada como uma luta entre os profetas – que proclamavam
uma comunhão íntima, interior, entre Deus e o povo– e este povo, sempre sujeito a recair
na magia primitiva para a qual está particularmente predisposto quando em contacto com
outras culturas mais primitivas que a sua. O paradoxo é que a magia parece por fim
triunfar no Código Sacerdotal. Se a magia, nas suas manifestações primeiras e tardias, é a
crença na eficácia adequada do rito, então ela deixa de ser o critério para a definição do
primitivo. Esperava-se que a própria palavra desaparecesse das obras consagradas ao Velho
Testamento. Mas assim não aconteceu e encontramo-la ao lado de tabu e de mana. Estes
três termos enfatizam o que distingue a religião israelita do paganismo semítico. Eichrodt
emprega-os com particular à vontade (pp. 438, 453):
Adiante cita os salmos 40,7 e 69,31 que, segundo ele, «se opõem à tendência –
inerente ao sistema do sacrifício – para fazer do perdão um processo mecânico». De novo
supõe (p. 119) que os conceitos religiosos dos primitivos são «materialistas». Grande parte
desta obra, aliás impressionante, assenta na suposição de que os rituais que funcionam ex
opere operato são primitivos, anteriores no tempo aos rituais que simbolizam estados
interiores do espírito. Mas o autor parece sentir por vezes um desassossego que lhe
infunde, talvez, o pouco fundamento da sua tese.
Depois ocorre-lhe uma ideia que, tomada a sério, faria escrever muitas páginas:
Mas uma vez que a palavra derivada, de origem árabe, e que significa
«cobrir», parece igualmente possível, pode bem ser que se trate de cobrir a
culpabilidade, de a dissimular aos olhos da pessoa ofendida por meio de uma
separação. Neste caso, o acto de expiação teria, ao contrário, um carácter pessoal. (p.
162)
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As mesmas conjecturas dominam as interpretações da literatura grega. Evocando a
vida social e as crenças da época de Homero, o Professor Finley, recorreu a um critério
moral para distinguir os primeiros elementos destas crenças dos elementos mais tardios
(pp. 147, 151, 157).
Por seu lado, um erudito helenista francês, Moulinier, dedica-se ao estudo
aprofundado das noções de puro e de impuro no pensamento grego. Contrariamente a
Robertson Smith, Moulinier é um homem imparcial e, se adoptarmos os critérios
correntes em antropologia, os seus trabalhos, empíricos, são excelentes. Não parece que os
Gregos se tenham preocupado muito com a poluição ritual no período descrito por
Homero (supondo que este período existiu). Só depois aparecem noções deste género
expressivas no teatro grego clássico. O antropólogo, fraco em erudição clássica, gostaria de
ter uma orientação especializada que lhe dissesse que crédito dar a este autor, pois a sua
obra é estimulante e, para o leigo, convincente. Mas eis que um crítico inglês do Journal of
the Hellenic Studies condena sem apelo o nosso autor pela sua ignorância da «antropologia»
que se fazia no século XIX:
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universo, captamos a essência da religião. Em vez de construir definições exclusivas,
tentaremos comparar as diferentes concepções que os povos têm acerca do destino e do seu
lugar no universo. Em segundo lugar, enfim, não podemos esperar entender as ideias dos
outros sobre o contágio, sagrado ou secular, antes de nos confrontarmos com as nossas.
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CAPÍTULO III
AS ABOMINAÇÕES DO LEVÍTICO
A poluição ritual é um fenómeno isolado. Só existe por referência a uma ordenação
sistemática das ideias. Seria, pois, um erro considerar isoladamente cada uma das regras
relativas à poluição numa cultura que não a nossa. As noções de poluição apenas fazem
sentido no contexto de uma estrutura total do pensamento cuja pedra angular, os limites,
as margens e os movimentos internos estão ligados uns aos outros pelos ritos de separação.
Para ilustrar esta tese, peguemos num velho e venerável enigma que ainda hoje
desconcerta os especialistas da Bíblia: as abominações do Levítico e, particularmente, as
suas prescrições alimentares. Por que são o camelo, a lebre e o texugo impuros? Por que
serão alguns gafanhotos, mas não todos, impuros? Por que é a rã pura, enquanto o rato e o
hipopótamo são impuros? Porquê meter no mesmo saco os camaleões, as toupeiras e os
crocodilos? (Lev. XI, 27.) Que têm eles em comum?
Para ajudar o leitor a seguir a argumentação, citemos primeiro ; os versículos do
Levítico e do Deuteronómio1.
Deut XIV
Não comerás coisa alguma abominável. 4 Eis os animais que comereis: o boi,
o cordeiro, a cabra, a gazela, 5 a corça, o gamo, o antílope, o búfalo e a cabra montês. 6
Comereis de todos os animais que têm a unha e o pé fendidos, e que ruminam. 7 Mas
não comereis daqueles que somente ruminam ou somente tenham a unha e o pé
fendidos, tais como o camelo, a lebre, o coelho, que ruminam mas não têm a unha
fendida: tê-los-eis por impuros. 8 Igualmente o porco, que tem a unha fendida mas não
rumina: tê-lo-eis por impuro. Não comereis de suas carnes, nem tocareis nos seus
cadáveres.
9 Dentre os animais que vivem que vivem nas águas, eis os que podereis
comer: Comereis os que têm barbatanas e escamas; 10 mas tudo o que não tiver
barbatanas nem escamas, tereis por impuro e não comereis.
11 Comereis de todas as aves que são puras. 12 Eis as que não podereis comer:
a águia, o falcão e o abutre, 13 o milhafre e toda a variedade de falcão, 14 toda a espécie
de corvo, 15 a avestruz, a andorinha, a gaivota e toda a variedade de gavião, 16 o mocho,
a coruja, o açor, 17 o caburé, o abutre, o ibis, 18 a cegonha e toda a variedade de garça, a
poupa e o morcego: 19 Tereis por impuro todo o insecto volátil: não comereis deles. 20
Mas comereis de toda a ave pura.
Lev. XI
1
O tradutor recorreu à Bíblia Sagrada traduzida dos originais hebraico, aramaico e grego, mediante a versão
francesa dos Monges Beneditinos de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico de São Paulo; São Paulo:
E ditora Ave Maria, 1961, 3.ª edição.
35
não tem a unha fendida; tê-los-eis por impuros. 6 E como a lebre também, que rumina,
mas não tem a unha fendida; tê-la-eis por impura. 7 E enfim, como o porco, que tem a
unha fendida e o pé dividido, mas não rumina; tê-lo-eis por impuro. 8 Não comereis de
sua carne e não tocareis nos seus cadáveres: vós os tereis por impuros.
9 Entre os animais que vivem na água, eis os que podereis comer: podereis
comer todos os que têm barbatanas e escamas, nas águas, no mar e nos rios. 10 Mas
tereis em abominação todos os que não têm barbatanas nem escamas, nas águas. nós
mares e nos rios, entre todos os animais que vivem nas águas e entre todos os seres
vivos que nelas se encontram. 11 A estes, tê-los-eis em abominação: não comereis de
sua carne e tereis em abominação os seus cadáveres. 12 Tudo o que nas águas não tem
barbatanas nem escamas, tê-los-eis em abominação.
20 Todo o volátil que anda sobre quatro pés vos será uma abominação. 21
Todavia, entre os insectos voláteis que andam sobre quatro pés, podereis comer
aqueles que, além de seus quatro pés, têm pernas para saltar sobre a terra. 22 Eis, pois,
os que podereis comer: toda espécie de gafanhoto, de locusta, de gafanhoto devorador
e de grilo. 23 Qualquer outro volátil tendo quatro pés vos será uma abominação. 24
Tornar-vos-eis imundos se os tocardes; se alguém tocar os seus cadáveres será impuro
até à tarde, 25 e aquele que levar os seus cadáveres lavará suas vestes e será impuro até
à tarde.
26 Tereis por impuro todo animal que tem a unha fendida mas que não tem o
pé dividido e não rumina; se alguém o tocar será imundo. 27 Tereis também por
impuros todos os quadrúpedes que andam sobre as plantas dos pés; se alguém tocar os
seus cadáveres será impuro até à tarde; 28 e aquele que levar os seus cadáveres lavará
suas vestes e será impuro até à tarde. Tereis estes animais por impuros.
29 Entre os animais que se movem sobre a terra, eis os que tereis por
impuros: a toupeira, o rato e toda a variedade de lagarto, 30 o musaranho, a rã, a
tartaruga, a lagartixa e o camaleão. 31 Tais são os répteis que tereis por impuros; quem
os tocar mortos será impuro até à tarde. 32 Todo objecto sobre o qual cairem os seus
cadáveres será impuro...
41 Todo animal que se arrasta sobre a terra vos será uma coisa abominável:
não se comerá dele. 42 Não comereis animal algum que se arrasta sobre a terra, tanto
aqueles que se arrastam sobre o ventre como aqueles que andam sobre quatro ou mais
pés: tê-los-eis em abominação.
Estes dois textos foram interpretados de duas maneiras: ou bem que estas regras são
desprovidas de significação e arbitrárias porque disciplinares e não doutrinais; ou bem que
se trata de alegorias das virtudes e dos vícios. Maimônides —que pensava que as
prescrições religiosas não são, no conjunto, simbólicas — escrevia:
36
Médico e vivendo na Idade Média, Maimónides predispunha-se a acreditar que as
prescrições alimentares tinham uma sólida base fisiológica; mas já afastamos, no segundo
capítulo, a interpretação médica do simbolismo. Para uma versão moderna da tese de que
as prescrições alimentares são morais e disciplinares e não simbólicas, vejam-se as notas de
Epstein sobre o talmude babilónico e também a sua história, muito popular, do Judaísmo
(1959, p. 24):
De acordo com The Dietary Laws in Rabbinic and Patristic Literature, do Professor
Stein, a interpretação moralista remonta ao tempo de Alexandre, o Grande, e da influência
helénica na cultura judaica. No primeiro século da nossa era, Aristeias declarava na sua
carta, não apenas que as leis mosaicas são uma boa disciplina que «impede os judeus de se
entregarem a acções irrefletidas ou injustas.>>, mas também que elas coincidem com
aquilo que prescreve a razão natural para que se possa levar uma vida moral. Assim, a
influência helénica permite às interpretações médicas e morais reunirem-se. Filon
sustentou que Moisés tinha precisamente por princípio de selecção a escolha das melhores
carnes:
(...) um mal perigoso para o corpo e para a alma, porque a gula provoca a
indigestão, fonte de doenças e de enfermidades.
37
R. Driver (1895) escreveu:
Pfeiffer, que adopta, no geral, uma posição crítica face aos aspectos eclesiásticos e
jurídicos da vida de Israel, sustentava com autoridade a tese de que as prescrições do
Código Sacerdotal são largamente arbitrárias:
Talvez seja verdade que os homens da lei tendem a pensar de uma maneira precisa
e codificada. Mas será que codificariam puros absurdos, decretos arbitrários? Pfeiffer
queria sustentar as duas teses ao mesmo tempo insistindo na rigidez jurídica dos padres
autores das interdições e, para justificar a sua tese de que as regras são arbitrárias,
comentava a grande desordem que reina neste capítulo. A meu ver, arbitrariedade é o que
menos se pode encontrar no Levítico. Esta é também a opinião do Rev. Prof. H. J.
38
Richards. A crítica atribui o Levítico aos padres, cuja preocupação dominante era a ordem.
Estamos então no direito de procurar outra interpretação.
Quanto à tradição de que as regras são alegorias de virtudes e vícios, o Professor
Stein remonta-a à mesma influência de Alexandria sobre o pensamento judaico (p. 145 e
s.). Citando a carta de Aristeias, Stein refere que o sumo-sacerdote Eleazar
O Professor Stein cita depois as alegorias que Filon evoca para interpretar as
prescrições dietéticas:
Os peixes com barbatanas e escamas que são admitidos pela Lei simbolizam
a resistência e o autocontrolo, ao passo que os peixes interditos se deixam levar pela
corrente, incapazes de resistir à força do rio. Os répteis que serpenteiam arrastando-se
pelo ventre simbolizam as pessoas que se entregam à satisfação das suas paixões e dos
seus desejos cúpidos. Ao contrário, os animais que rastejam mas que têm patas para
saltar são puros, pois simbolizam o sucesso que coroa o esforço moral.
39
Segundo outra tradição que remonta à carta de Aristeias, as interdições alimentares
dos israelitas destinam-se a proteger este povo das influências estrangeiras. Maimónides
estava convencido de que lhes era proibido cozer o cabrito no leite da sua mãe porque isso
era um rito religioso entre os Cananeus. Mas esta tese não explica tudo, pois não está
provado que os israelitas tenham rejeitado sistematicamente todos os contributos das
religiões estrangeiras e inventado algo de verdadeiramente original. Maimónides adopta a
tese segundo a qual algumas prescrições entre as mais misteriosas da Lei têm por fim fazer
uma ruptura total com os costumes pagãos. Os israelitas estavam assim proibidos de vestir
tecidos de linho e lã misturados, de plantar árvores diferentes juntas, de ter relações sexuais
com os animais, de cozer carne em leite, simplesmente porque estes actos figuravam entre
os ritos dos seus vizinhos pagãos. Até aqui, muito bem: as leis deviam impedir a
propagação dos rituais pagãos. Mas, nesse caso, por que se permitiam algumas práticas
pagãs? E não só se permitiam, como ainda — no caso do sacrifício, prática corrente entre
os pagãos e os Israelitas — lhes era dado um lugar absolutamente central na religião. A
resposta de Maimónides em The Guide to the Perplexed é esta: o sacrifício é um ritual de
transição, lamentavelmente idólatra, mas necessário, pois os Israelitas não podiam ser
afastados abruptamente do seu passado ímpio. É uma afirmação espantosa para um
erudito rabínico e, aliás, Maimónides não a manterá nas suas obras mais sérias: pelo
contrário, considerará o sacrifício como o acto mais fundamental da religião judaica.
Maimónides teve, pelo menos, o mérito de estar consciente do seu ilogismo que, de
resto, acabaria por conduzi-lo a uma contradição. Mas os estudiosos que lhe sucederam
parecem ter ficado satisfeitos retomando a teoria da influência estrangeira e alterando-a
aqui e ali segundo as necessidades do momento. O Professor Hooke e os seus colegas
demonstraram que os Israelitas se apropriaram de certos estilos de culto cananeus e que
estes tinham muitos pontos em comum com a cultura mesopotâmica (1933). Mas
representar Israel ora como uma esponja ora como um repelente nada explica, enquanto
não se perceber por que motivo absorveu este elemento estrangeiro e repeliu aquele. Que
interesse tem repetir que o Levítico proibe cozer o cabrito no leite da sua mãe e copular
com as vacas porque estes actos são ritos de fertilidade entre os seus vizinhos estrangeiros
(1935), quando sabemos que os Israelitas adoptaram outros ritos estrangeiros? Ainda não
discernimos quando é que a metáfora da esponja é correcta ou errada. Eichrodt deixa-nos
também perplexos quando recorre a este mesmo argumento (pp. 230-231). É claro que
nenhuma cultura surge do nada. Os israelitas absorveram numerosos contributos dos seus
vizinhos, mas não quaisquer uns. Certos elementos da cultura estrangeira eram
incompatíveis com os princípios de ordenação (patterning) sobre os quais construíam o seu
universo; outros eram compatíveis. Zaehner sugere a este respeito que a abominação
judaica dos animais que rastejam pode ter vindo do Zoroastrismo (p. 162). Seja qual for o
fundamento histórico da teoria de que os judeus adoptaram alguns elementos estrangeiros,
veremos que, pelo próprio ordenamento da sua cultura, esta abominação era à partida
compatível com os princípios gerais sobre os quais fundavam o seu universo.
Nenhuma interpretação que trate isoladamente as interdições do Velho
Testamento é válida. A única abordagem correcta é esquecer a higiene, a estética, a moral,
a revulsão instintiva e mesmo os Cananeus e os magos zoroástricos. Há que partir dos
textos. Cada injunção é precedida por um mandamento: Sereis santos. Devemos também
procurar neste mandamento a razão destas injunções. Existe certamente uma oposição
entre a santidade e a abominação que trará uma nova luz a todas as restrições particulares.
A santidade é o atributo de Deus. A sua raiz significa: separar (set apart). Esta
palavra terá outros sentidos? Qualquer pesquisa sobre a cosmologia deveria começar pelo
40
estudo das noções de poder e de perigo. No Velho Testamento, a benção é a fonte de
todos os bens e a recusa da benção é a fonte de todos os perigos. A graça divina torna a
terra fértil e, portanto, a vida dos homens possível. Que mais significa? Deveremos iniciar
qualquer pesquisa cosmológica buscando os princípios do poder e do perigo.
Por meio da benção, a obra de Deus é essencialmente criar a ordem graças à qual
prosperam os assuntos humanos. Deus promete que as mulheres, o gado e os campos serão
férteis para aqueles que respeitem a sua aliança e observem todos os preceitos e todas as
cerimónias (Deut XXVIII; 1-14). Quando Deus recusa a sua benção e quando se
desencadeia a sua maldição, há esterilidade, peste e confusão. Porque Moisés disse:
Deut XXVIII
Fica então claro que estes preceitos, positivos e negativos, são considerados eficazes
e não apenas expressivos: observá-los atrai prosperidade, desobedecer-lhes chama o perigo.
Podemos assim considerar estas prescrições como semelhantes, a este respeito, aos tabús
rituais dos primitivos que correm perigos se os transgridem. Preceitos e cerimónias
assentam na noção de santidade divina que os homens devem alcançar na sua própria vida.
Trata-se então de um universo no seio do qual os homens prosperam conformando-se à
santidade e perecem quando se desviam dela. Se não dispuséssemos de outros indícios,
bastar-nos-ia, para compreender a noção de santidade hebraica, examinar os preceitos
pelos quais os homens com ela se conformam. Ela não é evidentemente sinónimo de
bondade no sentido humanitário de uma bondade abraçando todos os homens. A justiça e
a bondade são sinais de santidade, e são parte dela, mas não a esgotam.
Sabendo-se que a raiz desta palavra significa estado de separação, a ideia de
santidade compreende também a de totalidade, de plenitude (completeness). O Levítico faz
muitas alusões à perfeição física. A Lei exige-a a todas as coisas presenteadas ao Templo e a
todas as pessoas que dele se aproximam. Os animais oferecidos em sacrifícios não podem
ter deformidades, as mulheres têm de ser purificadas após o parto, os leprosos devem estar
separados dos outros homens e, uma vez curados, ser ritualmente lavados antes de
entrarem no Templo. Todas as secreções corporais são consideradas poluentes e
interditam o acesso ao templo. Os padres só podem entrar em contato com a morte
quando um de seus parentes próximos morreu. Mas o sumo-sacerdote não poderá nunca
ter contacto com a morte.
Lev. XXI
41
17 Dize a Aarão o seguinte: Homem algum da tua linhagem, por todas as
gerações, que tiver um defeito corporal, oferecerá o pão de seu Deus. 18 Desse modo,
serão excluídos todos aqueles que tiverem uma deformidade corporal: cegos, coxos,
mutilados, pessoas de membros desproporcionados, 19 ou tendo uma fractura do pé
ou da mão, 20 corcundas ou anões, os que tiverem uma mancha no olho, ou a sarna, um
dartro, ou os testículos quebrados. 21 Homem algum da linhagem de Aarão, o
sacerdote, que for deformado, oferecerá os sacrifícios consumidos pelo fogo...
Quem aspira a ser padre deve, por outras palavras, ser um homem perfeito. Esta
noção de plenitude física tão frequente encontra-se na vida social e em particular no
acampamento dos guerreiros. A cultura israelita alcança o seu apogeu na oração e no
combate. O exército não pode vencer sem a benção divina e o acampamento deve ser
santo se quiser conservar a benção. Há que preservar o acampamento, bem como o
Templo, longe de todas as impurezas. As secreções corporais interditam o acesso tanto ao
acampamento como ao Templo. Um guerreiro que tenha sofrido uma excreção corporal
durante a noite deve permanecer o dia seguinte fora do acampamento e retornar ao
crepúsculo, depois de se ter lavado (Deut XXIII, 10-15). Em suma, a ideia de santidade
exprimia-se de um modo exterior, físico, na exigência da integridade do corpo considerado
como um receptáculo perfeito.
O significado da noção de integridade, de totalidade, estende-se num contexto
social, até significar a ideia de perfeição. Uma vez iniciados, os assuntos importantes não
devem ficar incompletos. Se não estiver «inteiro», nesse sentido, o guerreiro não pode
combater. Antes da batalha, os capitães devem interrogar os seus soldados nestes termos:
5 ...Há alguém entre vós que tenha edificado uma casa e não a tenha ainda
inaugurado? Que esse volte para a sua casa, não suceda que morra no combate e um
outro venha a habitar primeiro do que ele a sua casa. 6 Há alguém entre vós que tenha
plantado uma vinha e não tenha ainda gozado de seus frutos? Que esse volte para a sua
casa, não suceda que pereça no combate e outro venha a colher os primeiros frutos. 7
Há alguém que tenha desposado uma mulher e não a tenha ainda recebido? Que esse
volte para a sua casa, não suceda que morra no combate e outro a despose.
É verdade que não encontramos nestas linhas a menor alusão à lógica da poluição.
Não se diz que um homem com um projecto pela metade em mãos está poluído, como
estaria um leproso. O versículo seguinte, aliás, aconselha os medrosos a voltarem para casa
para evitar que o seu medo se propague. Mas outros versículos afirmam que um homem
não deve pôr as mãos na charrua e depois abandoná-la. Pedersen vai ao ponto de afirmar:
Em todos estes casos, um homem começou uma tarefa importante sem a ter
terminado (...) e contudo, uma nova totalidade nasceu. Aquele que abre
prematuramente uma brecha nesta totalidade, isto é, antes de ela ter atingido a sua
maturidade ou de ter sido acabada, corre o risco de cometer um pecado grave. (vol. III,
p. 9)
42
De acordo com a Lei antiga, cada um teria podido justificar validamente a sua recusa
referindo-se ao capítulo XX do Deuteronómio. Porém, esta parábola vem confirmar a tese
de Pedersen segundo a qual é mau interromper uma obra em curso. tanto na vida civil
como na vida militar.
Outros preceitos desenvolvem a ideia de perfeição, de plenitude, noutra direcção.
O corpo humano e a obra que se empreendeu são as metáforas através das quais é preciso
ver a perfeição e a integridade do indivíduo e das suas obras. A santidade estende-se, ainda
segundo outros preceitos, às espécies e às categorias. Os híbridos e outros desalinhavos são
abominações.
Lev. XVIII
23 Não terás comércio com um animal, para te contaminares com ele. Uma
mulher não se prostituirá a um animal: isto é uma abominação.
43
indivíduo e dos seus semelhantes. Para as prescrições alimentares basta desenvolver a
metáfora no mesmo sentido.
Comecemos pelos rebanhos de gado, camelos, carneiros e cabras, que eram o
sustento dos Israelitas. Estes animais eram considerados puros, na medida em que quem
lhes tivesse tocado não precisava de purificar-se antes de aceder ao Templo. O gado, tal
como a terra habitada, recebe a benção de Deus, torna-se fértil e integra-se na ordem
divina. O dever do lavrador é guardar esta benção. Por um lado, tem de preservar a ordem
da criação. Daí a interdição que pesa sobre os híbridos, sejam eles plantas, animais ou
tecidos (misturas de lã e de linho). Em certa medida, o homem estabeleceu uma aliança
com a sua terra e os seus animais, da mesma maneira que Deus celebrou com ele uma
aliança. Os homens respeitavam o primogénito do seu gado e obrigavam-no a cumprir o
Sabá. Os bovinos são literalmente domesticados como os escravos. Para que disfrutem da
benção, urge integrá-los na ordem social. A diferença entre o gado e os animais selvagens é
que estes não têm nenhuma aliança que os proteja. É possível que os Israelitas, como
outros povos pastores, não apreciassem a caça. Os Nuer do Sudão meridional desprezam
aqueles que dela vivem. Só um pastor pobre pode ser impelido a comer carne bravia. Seria
pois errado, parece-me, avaliar os Israelitas como um povo ávido de carnes proibidas e que
achava tantas restrições uma maçada. Driver tem certamente razão em crer que as
prescrições alimentares ratificam a posteriori um estado de facto. Os ungulados fissípedes e
que ruminam são a carne por excelência de um povo pastor. Se é obrigado a comer caça,
exige que ela possua os traços distintivos dos ungulados e que seja, assim, da mesma
espécie geral. Este é o tipo de casuística que permite aos judeus caçar antílopes, cabras e
carneiros selvagens. Tudo isto seria muito claro se o jurista autor destes livros, não tivesse
achado por bem estatuir sobre alguns casos limites. Alguns animais, como a lebre e o
damão, parecem ruminar na medida em que rangem constantemente os dentes. Mas não
tendo as patas fendidas são considerados proibidos, tal como os animais que têm as patas
fendidas mas não ruminam, como o porco e o camelo. Notemos que a única razão
apresentada pelo Velho Testamento para evitar o porco é a ausência dos dois traços
distintivos do gado. Nada é dito sobre os seus hábitos sujos nem do facto de ele comer
imundices. Como o porco não fornece leite nem couro nem lã, não existe nenhuma razão
para o cevar a não ser a sua carne. E se os israelitas não criassem o porco, não conheceriam
seus hábitos. Parece-me que originalmente não era visto como poluente, pela simples razão
de que, enquanto javali, não pertence à classe dos antílopes, no que está em pé de
igualdade com o camelo ou o damão, tal e qual como se diz no Livro.
Depois destes casos limite terem sido discutidos, os autores apresentam a lista das
diferentes criaturas segundo vivam na água, no ar ou na terra. Não estão em causa os
princípios que se aplicavam ao porco, à lebre e ao damão. Estes são impuros por terem um
mas não os dois traços característicos do gado. Não posso pronunciar-me sobre os
pássaros, pois, como vimos, não são descritos mas nomeados e a tradução dos seus nomes
levanta dúvidas. Mas, de um modo geral, apenas são puros os animais que se conformam
por inteiro à sua classe. As espécies impuras são aquelas que são membros imperfeitos da
sua classe ou cuja classe desafia o esquema geral do universo.
Para compreender este esquema precisamos de regressar ao Génesis e à Criação,
onde descobrimos uma primeira classificação de conjunto: a tripla distinção entre a terra,
as águas e o firmamento. O Levítico retoma este esquema e atribui a cada elemento os
animais adequados. Ao firmamento, as aves voadoras com duas pernas. À água, os peixes
escamosos que nadam com barbatanas. A terra, os animais de quatro patas e que saltam ou
caminham. Qualquer grupo de criaturas que não obedeça ao modo de locomoção que lhe
44
é atribuído no seu elemento é contrário à santidade. O indivíduo que entre em contacto
com um destes animais, fica desautorizado a entrar no Templo. Assim, tudo o que vive na
água sem barbatanas nem escamas é impuro (XI, 10-12). O texto não menciona os
caracteres predatórios e necrófagos. Os únicos critérios de pureza num peixe são as
escamas e a sua propulsão por meio de barbatanas.
As criaturas de quatro patas que voam (XI, 20-26) são impuras. Qualquer criatura
que possua duas pernas e duas mãos mas que ande como um quadrúpede é impura (XI,
27). Segue-se um inventário (V, 29) que foi objecto de muitas discussões. A acreditar em
certas traduções, este inventário reuniria precisamente as criaturas dotadas de mãos em
lugar de patas anteriores mas que, perversas, usam as mãos para caminhar: a doninha, o
rato, o crocodilo, o musaranho, vários tipos de lagartos, o camaleão e a toupeira (H.
Danby, 1933), cujas patas anteriores se assemelham estranhamente a mãos. Mas este traço
distintivo desapareceu no texto da New Revised Standard Translation, que emprega a
palavra <<patas>> ao invés de mãos.
Os últimos animais impuros são os que se arrastam, que rastejam ou fervilham
sobre a terra. Este modo de locomoção é explicitamente oposto à santidade (Lev. XI, 41-
44). Driver e White usam o termo «fervilhação» para traduzir o hebraico shérec, que se
aplica tanto aos seres que pululam nas águas como aos que fervilham na terra. Quer se
trate de deslizar, de se arrastar, de rastejar ou de fervilhar, este movimento é sempre
indeterminado. E se as principais categorias de animais são definidas pelo seu tipo de
movimento, então a «fervilhação», movimento que não é adequado a nenhuma classe
particular, desafia a classificação de base. Os bichos que pululam ou fervilham não são
nem peixes, nem aves, nem animais de abate. As enguias e os vermes vivem na água, mas
não como os peixes; os répteis vivem na terra, mas não como os quadrúpedes; alguns
insectos voam, mas não como os pássaros. Todos estes seres não participam em nenhuma
ordem. Relembremos, a este propósito, a profecia de Habacuc:
Pois tu assimilas os homens aos peixes do mar, às coisas que rastejam e não
têm chefe. (I, V, 14)
O verme é o protótipo e o modelo das criaturas que fervilham. Tal como os peixes
pertencem ao mar, os vermes dizem respeito ao reino da sepultura, da morte e do caos.
O caso dos gafanhotos é interessante e consistente. A prova de que são puros e, por
consequência, comestíveis é dada pelo modo como se movem sobre a terra. Se rastejam
são impuros. Se saltam são puros (XI, v, 21). O leitor do Mishnah notará que a rã não está
na lista das coisas que rastejam e que não tem nada de impuro (H. Danby, p. 722). Na
minha opinião, se a rã não está incluída na lista é porque salta. Se os pinguins vivessem no
Próximo Oriente, imagino que seriam considerados impuros, como pássaros sem asas. Se
partindo desta hipótese reconstituíssemos a lista dos pássaros impuros, talvez viéssemos a
descobrir que são anómalos porque nadam e mergulham tão bem como voam ou que,
duma maneira ou doutra, não se parecem completamente com as aves.
É certo que não seria correcto afirmar que «Sereis santos» significa apenas «Estareis
à parte». Moisés queria que o povo de Israel guardasse na memória os mandamentos de
Deus:
45
estiverdes em vossa casa, ou em viagem, quando vos deitardes ou levantardes. 20
Escreve-as nas ombreiras e nas portas de tua casa...
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