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DOUGLAS, M. Pureza e Perigo

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PUREZA E PERIGO

ENSAIO SOBRE A NOÇÃO DE POLUIÇÃO E TABU


MARY DOUGLAS

1
CAPÍTULO I

A IMPUREZA RITUAL
A nossa idéia de impuro é fruto do cuidado com a higiene e do respeito pela
convenções que nos são próprios. Certamente que as nossas regras de higiene evoluem
com os conhecimentos que adquirimos. Quanto às convenções que nos mandam afastar
da impureza, pode acontecer que não as cumpramos por amizade, como o pastor da
fazenda de Hardy que recusou um copo limpo para a sua cidra. «Aqui está um homem de
bem que não se faz esquisito», concluiram os trabalhadores da quinta.
– Um copo lavado para o pastor – bradou o preparador de malte.
– Não, de modo nenhum – disse Gabriel, num tom delicadamente reprovador. –
Eu nunca me aflijo com a sujidade no seu estado puro e quando sei de que espécie é... Por
nada na vida iria incomodar os nossos vizinhos obrigando-os a lavar mais loiça, quando há
já tanto trabalho para se fazer neste mundo.
Num espírito mais exaltado diz-se que Santa Catarina de Siena se censurava
amargamente pela revulsão que lhe provocavam as chagas que tratava. Sendo a higiene
incompatível com a caridade, bebeu deliberadamente uma tigela de pus.
Quer sejam observadas com rigor, quer violadas, não há nada nas nossas regras de
pureza que sugira uma relação entre o impuro e o sagrado. Por isso nos sentimos confusos
quando nos apercebemos de que os povos primitivos não distinguem o sagrado do
impuro.
Para nós os objectos e os lugares sagrados devem ser protegidos das impurezas. O
sagrado e o impuro são pólos opostos. Não podemos confundi-los, como não poderíamos
confundir a fome com a saciedade, o sono com a vigília e, contudo, parece que é
característico das religiões primitivas não distinguir claramente o sagrado do impuro. Se
isto for verdade, existe um grande abismo entre os nosso antepassados e nós, entre nós e os
primitivos contemporâneos. Numerosos foram os eruditos que retiveram esta hipótese que
ainda hoje se ensina de uma forma oculta ou outra. Vejamos, a este respeito, um reparo de
Elíade:

A ambivalência do sagrado não é só de ordem psicológica (na medida em que


atrai ou causa repulsa), mas também a ordem dos valores; o sagrado é, ao mesmo
tempo, «sagrado» e «profano». (1958, p. 14-15)

A afirmação pode ser feita de forma a parecer menos paradoxal. Poderia significar
que a nossa idéia do sagrado é especializada, enquanto em algumas culturas primitivas o
sagrado é uma idéia muito geral que significa pouco mais do que proibição. É neste
sentido que o universo se encontra dividido entre as coisas e as acções que estão sujeitas a
restrições e aquelas que não o estão. Certas restrições visam proteger os deuses das
profanações e outras proteger o profano das perigosas intromissões divinas. As regras
relativas ao sagrado destinam-se então a manter os deuses à distância e a impureza
constitui, nos dois sentidos, um perigo: através dela, o indivíduo pode entrar em contato
com o deus. Tudo se resume assim a um problema de linguagem e o paradoxo: desaparece
mudando-se de vocabulário. Isto poderá ser válido para algumas culturas (ver F. Steiner,
p. 33).

10
A título de exemplo, a palavra latina sacer toma este sentido de restrição quando se
aplica aos deuses e em alguns casos, pode aplicar-se do mesmo modo à consagração e ao
seu contrário. Similarmente, a raiz K-d-sh em hebraico, geralmente traduzida por sagrado,
baseia-se na idéia de separação. Ciente da dificuldade que existe na tradução directa de K-
d-sh por santo, Ronald Knox, na sua tradução do Velho Testamento, emprega «set apart»;
«posto de lado». Desta forma, as magníficas palavras «Sereis santos porque eu sou santo»
são pobremente traduzidas por:

Porque eu sou o senhor que vos tirou do Egito para ser o vosso Deus: eu
estou posto de lado e vós sereis postos de lado como eu. (Lev. 11,45)

Se com uma retradução se pudesse esclarecer o assunto, como seria simples. Mas
existem muitos mais casos rebeldes. No Hinduísmo, por exemplo, é absurdo pensar que o
impuro e o sagrado possam pertencer a uma mesma categoria lingüística. A noção de
poluição nos Hindus sugere uma outra maneira de abordar o problema. Afinal de contas,
o sagrado e o profano não são sempre e como que por necessidade diametralmente
opostos. Podem ser categorias relativas: o que é puro em relação a uma coisa, pode ser
impuro em relação a outra e vice-versa. A linguagem da poluição presta-se a uma álgebra
complexa que leva em conta as variáveis de cada contexto. O Professor Harper explica, por
exemplo, como os Havik de Malnad, região do Estado de Mysore, exprimem o respeito:

Os comportamentos que usualmente redundam em estados de poluição são por


vezes intencionais e exprimem a deferência e o respeito; fazendo aquilo que noutras
circunstâncias , seria um acto de profanação, um indivíduo expressa a sua posição inferior.
Por exemplo, o tema de subordinação da mulher em relação ao marido, encontra a sua
expressão ritual no facto de comer na folha do marido depois de ele ter acabado...

Outro exemplo ainda mais claro é aquele em que uma mulher santa, sadhu, devia
ser tratada com o maior respeito quando ia de visita à aldeia. Para mostrá-lo, o líquido em
que banhava os seus pés

passava de mão em mão num recipiente de prata. Todas as pessoas presentes


o derramavam na sua mão direita e o bebiam como Tirtha (líquido sagrado), indicando
assim que lhe fora atribuído um estatuto: de deusa e não de simples mortal (... ). De
todas as manifestações de respeito pela poluição, a mais surpreendente e que mais
freqüentemente se encontra é o uso de esterco de vaca como agente de purificação. As
mulheres havik adoram diariamente uma vaca e os homens fazem-no também em
certas ocasiões cerimoniais (...). Por vezes, diz-se que as vacas são deuses; ou que mais
de mil deuses habitam nelas. As poluições menores são removidas pela água, as mais
graves pela água e pelo esterco de vaca (...); o esterco de vaca, como os excrementos de
qualquer outro animal, é intrinsecamente impuro. Pode poluir um deus; mas por
referência ao homem, é puro (...). A parte mais impura da vaca é suficientemente pura
para remover as impurezas de um sacerdote brâmane. (E. B. Harper, pp. 181-183)

É óbvio que estamos perante uma linguagem simbólica capaz de diferenciações


muito subtis. Este uso da relação entre pureza e impureza não é incompatível com a nossa

11
própria linguagem e não levanta paradoxos embaraçantes. Longe de confundir as noções
de sagrado e de impureza, os Hindus distinguem-nas e com a mais extrema das subtilezas.
Nas linhas atrás citadas sobre a confusão entre o contágio sagrado e a impureza nas
religiões primitivas, Elíade não se referia certamente aos refinados conceitos bramânicos. A
que povo se referia então? Exceptuando os antropólogos, existe alguém que realmente
confunda o sagrado e o impuro? Donde vem esta noção?
Frazer parece ter acreditado que a confusão entre a impureza e o sagrado é o traço
distintivo do pensamento primitivo. Depois de uma longa exposição sobre a atitude dos
sírios em relação aos porcos, conclui:

Alguns diziam que era por os porcos serem impuros; outros, por serem
sagrados. Isto (...) indica um estado nebuloso do pensamento religioso que ainda não
distingue claramente as noções de sagrado e de impuro misturando-as numa espécie
de solução difusa à qual damos o nome de tabu. (Spiritus of the Corn and of the Wild, II, p.
23)

Frazer exprime a mesma idéia quando apresenta o significado de tabu:

Os tabus relativos ao sagrado concordam com os tabus relativos à impureza


porque o selvagem não faz a distinção entre o sagrado e o impuro. (Taboos and the Perils
of the Soul, p. 224)

Frazer tinha muito boas qualidades, mas a originalidade nunca foi uma delas. As
linhas que acabamos de citar são um eco directo de Robertson Smith, a quem Frazer
dedicou The Spirits of the Corn and of the Wild. Mais de vinte anos antes, Robertson Smith
usara a palavra tabu no sentido de restrições ao uso arbitrário que o homem pode fazer da
natureza, reforçados pelo medo dos castigos sobrenaturais (1889, p. 142). Precauções
contra os espíritos malignos, estes tabus, inspirados pelo medo, são, segundo Smith,
comuns a todos os povos primitivos e tomam muitas vezes a forma de regras de impureza.

A pessoa sujeita a um tabu não é considerada sagrada, pois está impedida de


aproximar-se do santuário, bem como de ter qualquer contacto humano; mas os seus
actos, ou a sua condição, estão de uma maneira ou de outra associados a perigos
sobrenaturais que têm por origem, segundo a explicação comum dos selvagens, a
presença de espíritos terríficos que se evitam como doenças infecciosas. Parece que na
maioria das sociedades selvagens, não se faz qualquer distinção entre os dois tipos de
tabu.

De acordo com esta hipótese, a principal diferença entre os tabus primitivos e as


regras relativas ao sagrado seria a distinção entre deuses malévolos e benévolos. A
separação entre santuário, pessoas e objectos sagrados, de um lado, e a realidade profana,
do outro, que é um aspecto normal dos cultos religiosos, é basicamente idêntica às
separações inspiradas pelo medo dos espíritos malevolentes. A separação é, nos dois
contextos, a idéia central; só o motivo difere – e não tanto quanto isso, já que os deuses
benevolentes por vezes também são temidos. Quando Robertson Smith acrescentava que
«distinguir o sagrado do impuro marca um verdadeiro avanço sobre a selvajaria», as suas
palavras não constituíam, para os seus leitores, nem um desafio nem uma provocação. É
certo que estes leitores distinguiam muito bem o impuro do sagrado e que se encontravam
precisamente no fim do processo evolutivo. Mas Robertson Smith estava a dizer mais do

12
que isto. As regras primitivas de impureza prestam atenção às circunstâncias materiais que
acompanham os actos e julgam-nos, por conseqüência, bons ou maus. Assim, considera-
se, por vezes, perigoso o contacto com os cadáveres, o sangue ou o cuspo. Nos cristãos, ao
contrário, as prescrições relativas ao sagrado ignoram as circunstâncias materiais e os
crentes julgam os actos em função dos motivos e do estado de espírito do agente.

Do ponto de vista da religião espiritual ou mesmo de um paganismo


evoluído, (...) a irracionalidade das leis respeitantes à impureza é tão manifesta que se
deve considerá-las como sobrevivências de uma fé e de uma sociedade
anteriores.(Nota C, p. 4~0) .

Eis um critério de classificação das religiões em primitivas ou em evoluídas. No


primeiro caso, as prescrições relativas ao sagrado e à impureza seriam inseparáveis; no
segundo, as regras respeitantes à impureza desapareciam da religião. Eram relegadas para a
cozinha, para o quarto de banho ou para os serviços de saneamento municipais, nada
tendo a ver com a religião. Mas quanto mais se ligava a impureza a fundamentos
materiais, mais era assimilada a um estado de indignidade espiritual e mais a religião se
considerava evoluída.
Robertson Smith era sobretudo um teólogo e :um especialista do Velho
Testamento. Na medida em que a teologia aborda as relações entre o homem e Deus, tem
forçosamente de se pronunciar sobre a natureza humana. No tempo de Robertson Smith,
a antropologia ocupava um lugar de primeiro plano nas discussões dos teólogos. Na
segunda metade do século XIX, a maioria dos pensadores era constituída, por força das
circunstâncias, por antropólogos amadores. Margaret Hodgen demonstra-o na sua obra
The Doctrine of Survivals, um guia indispensável para quem quer que deseje seguir o
confuso diálogo que então se desenrolava entre a antropologia e a teologia. Nesse período
de formação, a antropologia era ainda tributária do púlpito do pregador e da paróquia e os
bispos usavam as suas descobertas para redigir textos fulminantes.
Os etnólogos de paróquia tomavam partido: eram optimistas ou pessimistas quanto
às perspectivas do progresso humano. Os selvagens eram, ou não, capazes de evoluir? John
Wesley ensinava que, no seu estado natural, o homem era fundamentalmente mau, e
pintava quadros vivos dos costumes primitivos para ilustrar a sua tese sobre a
degenerescência daqueles que não haviam recebido a salvação. ,

A religião natural dos Creek,~ Cherokee, Chickasaw e de todos os outros


índios, consiste em torturar os seus prisioneiros de manhã à noite e por fim assá-los
em lume brando (...). Digo-vos que é comum entre eles o filho. estoirar os miolos do
pai se achar que ele já viveu demasiado: (Works,- vo1: 5, p: 402)

É inútil resumir aqui a longa controvérsia entre os partidários do progresso e os da


degenerescência. As discussões arrastaram-se por várias décadas sem nunca terem sido
concludentes. Por fim, o Arcebispo Whately retomou de forma pertinaz e popular a tese
da degenerescência para refutar o optimismo dos economistas discípulos de Adam Smith.

Poderá esta criatura licenciosa ser dotada de alguma nobreza? [pergunta]


Poderão considerar-se os selvagens mais atrasados e os espécimes mais evoluídos das
raças européias como membros da mesma espécie? Será concebível, como afirmava o
grande economista «progredir passo a passo em todas as artes da vida civilizada»?
(1855, pp. 26-7)

13
O seu panfleto suscitou; segundo Hodgen, reacções violentas e imediatas:

Outros partidários da degenerescência, como W. Cooke Taylor, escreveram


volumes em apoio da tese de Whately e reuniram para este fim um grande número de
provas; enquanto o Arcebispo se contentara só com uma ilustração (...). Os defensores
do optimismo do século XVIII apareciam de todos os lados. Criticavam os livros a
partir das teses de Whately. E em toda a parte os reformadores da ordem social, essas
boas almas cuja recente compaixão pelos oprimidos se consolava com a idéia de uma
melhoria inevitável da sociedade, se alarmavam com as conseqüências práticas da tese
oposta. (...) Mais desconcertados ainda estavam aqueles especialistas da cultura e do
espírito humano interessados pessoal e profissionalmente numa metodologia baseada
na idéia de progresso. (pp. 30-1)

Finalmente; apareceu um homem que, até ao fim do século, pôs fim à controvérsia
trazendo o pensamento científico em auxílio dos adeptos do progresso. Tratava-se de
Henry Burnett Tylor (1832-1917). Desenvolveu uma teoria e procurou . provar que a
civilização era o .resultado de um lento progresso tendo como ponto de partida uma
sociedade semelhante às dos selvagens contemporâneos.

Entre os elementos quë nos ajudam a delinear o verdadeiro curso da


civilização no mundo, existe uma importante categoria de dados a que, por
comodidade, chamei «sobrevivências». São processos, costumes, opiniões, etc:, que se
arrastaram pela força do hábito até o coração da nova sociedade (...) que, deste modo,
constituem provas, exemplos de uma cultura mais antiga a partir da qual uma outra,
mais nova, evoluiu (p. 16).

Tudo se passa como se os assuntos mais importantes da antiga sociedade se


tivessem introduzido no espírito das gerações seguintes e como se as suas crenças
mais importantes permanecessem como um folclore de nursery. (p. 71) (Primitive
Culture, I, 7ª. ed.)

Robertson Smith recorrera à noção de sobrevivência para explicar a persistência das


regras irracionais de impureza. Tylor publicou a sua obra em 1873, depois da publicação
de The Origin of the Species e a sua análise das culturas parece-se, nalguns pontos, com a
que Darwin faz das espécies orgânicas. Darwin tinha curiosidade de saber em que
condições podia surgir um novo organismo. Interessava-se pela sobrevivência dos mais
fortes e também pelos organismos rudimentares cuja permanência lhe dava as indicações
necessárias para a reconstituição do esquema evolucionista. Mas Tylor estava unicamente
interessado na persistente sobrevivência dos elementos inadaptados, nas relíquias de
culturas quase desaparecidas. Não era sua intenção catalogar as espécies culturais distintas
nem mostrar a sua adaptação através da história. Apenas pretendia demonstrar, de uma
maneira geral, a continuidade da cultura humana.
Robertson Smith, aparecendo depois, herdou a idéia de que o homem civilizado
dos tempos modernos resulta de um longo processo de evolução. Admitia que os nossos
actos e as nossas crenças têm ainda hoje um lado fóssil, como um apêndice petrificado e
desprovido de sentido, preso ao nosso modo de vida. Mas Robertson Smith não se
interessava pelas sobrevivências fossilizadas. Para ele, estes costumes, que não alimentaram
os momentos de crescimento que balizam a nossa história, eram irracionais, primitivos e,
por isso, sem grande interesse.

14
O importante, para ele, era desaterrar e limpar da superfície da história as pedras e
da poeira das culturas selvagens contemporâneas e revelar as grandes correntes criadoras
que têm, na sociedade moderna, uma função activa e que assim se mostram como
produtos da evolução. Este é precisamente o seu objectivo ao escrever The Religion of the
Semites, onde separa os princípios da verdadeira religião das superstições selvagens que,
aliás, põe de parte sem perder demasiado tempo. As teorias de Robertson Smith sobre a
superstição e a magia são apenas um subproduto do tema central da sua obra-chave.
Portanto, procede, ao invés de Tylor. Enquanto este queria saber o que as relíquias
pitorescas nos podem ensinar sobre o passado, Smith partia em busca dos elementos
comuns à experiência primitiva e à experiência moderna. Tylor fundou os estudos
folclóricos; Robertson Smith, a antropologia social.
Houve outra corrente de pensamento que se ofereceu à curiosidade profissional de
Robertson Smith. Alguns crentes não podiam conciliar o desenvolvimento da ciência com
a Revelação cristã tradicional. A fé estava abalada. A razão e a fé pareciam
irremediavelmente em desavença, a menos que se encontrasse uma nova concepção da
religião. Um grupo de filósofos que já não podiam aceitar a religião revelada, mas que não
podiam também viver sem quaisquer crenças transcendentais que os guiassem, trataram de
procurar essa fórmula. Foi então que nasceu um movimento, ainda hoje vivo, que tendia a
destronar as revelações da doutrina cristã e a substituí-las por princípios morais erigidos
em estatuto de essência da religião. Citamos abaixo a descrição que Richter fez deste
movimento nascido em Oxford. Em Balliol, T. H. Green tentava aclimatar a filosofia
idealista hegeliana e resolver, graças a ela, os problemas da fé, da moral e da política
contemporânea. Jowett escrevera a Florence Nightingale:

É preciso fazer pelos instruídos alguma coisa de comparável ao que J.


Wesley fez pelos pobres.

Este era precisamente o objectivo de T. H. Green: ressuscitar a religião nos meios


instruídos, torná-la intelectualmente respeitável, suscitar um novo fervor moral e, assim,
reformar a sociedade. E as teorias de T. H. Green foram acolhidas com entusiasmo. As
suas idéias filosóficas eram complicadas e a sua base metafísica tortuosa, mas de princípios
muito simples. Mrs. Humphrey Ward chegou mesmo a exprimi-los no seu romance, um
best-seller intitulado Robert Elsmere(1888).
A filosofia da história de Green era uma teoria do progresso moral: de época para
época, Deus incarna na vida social e esta, cada vez mais, tende para a perfeição moral. Eis
um extracto do sermão laico onde ele afirma que a consciência que o homem tem de Deus

tem sido, sob várias formas, o agente moralizador da sociedade humana, ou


melhor, o princípio criativo desta mesma sociedade. A existência de deveres
específicos e o seu cumprimento, o espírito de auto-sacrifício, a lei moral e o respeito
que ela inspira sob a forma mais abstracta e mais absoluta, tudo isto supõe
evidentemente a existência de uma sociedade. Mas esta sociedade não pode ser a
criação nem de meros apetites nem do medo. (...) Sob a sua influência, as necessidades
e os desejos que têm a sua origem na natureza animal tornam-se numa aspiração ao
progresso que educa, engrandece e reforma as sociedades. O homem terá sempre
perante si um ideal por cumprir do Bem, um ideal que lhe aparece de diferentes formas
consoante o seu grau de desenvolvimento, mas que em todos os casos é Deus; os

15
costumes e as leis graças aos quais se realiza na vida algo de semelhante a este ideal
são dotados de uma autoridade divina. (M. Richter, p. 105) .

Em última análise, a filosofia de Green tende a afastar-se da revelação e a substituí-


la pela moral enquanto essência da religião. Robertson Smith nunca renunciou à
Revelação. Até ao fim da vida, acreditou que o Velho Testamento era de inspiração divina.
Mas os seus biógrafos, Black e Chrystal, sugerem que, embora guardando a fé, ele se
abeirou, estranhamente, da religião pregada pelos idealistas de Oxford.
Em Aberdeen, no ano de 1870, Robertson Smith regia a cadeira de hebraico na
Free Church. .Estava na vanguarda dum movimento de crítica histórica que havia algum
tempo vinha a perturbar profundamente os especialistas da Bíblia. Em 1860, em Balliol, o
próprio Jowett fora censurado por publicar um artigo intitulado «A propósito de uma
interpretação da Bíblia», no qual defendia que o Velho Testamento tinha de ser entendido
como qualquer outro livro. As acções intentadas contra Jowett falharam e foi-lhe
permitido continuar como Professor Regius. Em compensação, quando em 1875 escreveu
o artigo «Bíblia» para a Enciclopédia Britânica, a Free Church sublevou-se contra uma tal
heresia. Foi suspenso e, depois, demitido das suas funções. Como Green, Robertson Smith
mantinha um estreito contacto com o pensamento alemão. Mas enquanto Green não
defendia a Revelação cristã, Robertson Smith nunca vacilou na sua fé na Bíblia enquanto
testemunho de uma Revelação específica e sobrenatural. Mas estava preparado para
submeter a Bíblia à crítica, como qualquer outra obra. Dirigiu-se inclusive à Síria, depois
de ter sido demitido da .universidade de Aberdeen, para recolher no terreno informações
que viriam a firmar a sua interpretação: Expôs o fruto destas pesquisas em primeira mão
sobre a vida e os documentos semitas nas suas “conferências Burnet”, cuja primeira série
foi publicada sob o título The Religion of the Semites.
O leitor desta obra apercebe-se rapidamente de que Robertson Smith não procurou
iludir os problemas da humanidade do seu tempo, e refugiar-se numa torre de marfim. Se
julgava importante compreender as crenças religiosas das obscuras tribos árabes, era
porque estas lançariam alguma luz sobre a natureza humana e sobre a experiência religiosa.
Destas conferências emergem temas fundamentais: primeiro, que os fenômenos exóticos e
mitológicos, as teorias cosmológicas, têm pouco a ver com a religião. Assim, Smith
contradiz implicitamente a teoria de Tylor de que a religião primitiva teria as suas origens
no pensamento especulativo. Robertson Smith sugeria àqueles que passavam as suas noites
em branco tentando conciliar a Criação segundo o livro da Gênesis com a teoria da
evolução darwiniana, que podiam enfim descansar. A mitologia é uma espécie de bordado
que enfeita as crenças mais sólidas. A verdadeira religião, desde os tempos mais remotos,
está enraizada nos valores morais da comunidade. Até os mais primitivos e os mais errantes
dos vizinhos de Israel, atormentados por demônios e mitos, mostram alguns sinais de
verdadeira religião.
O segundo tema de Robertson Smith é que a vida religiosa de Israel era mais moral
do que a de todos os povos circundantes. Consideremos brevemente este tema. As três
últimas conferências Burnett, proferidas em Aberdeen no ano de 1891, nunca foram
publicadas e hoje delas pouco sobrevive. Estas conferências tratam dos pontos comuns
entre a cosmogonia do Gênesis e a dos povos semitas. Smith achava que a pretensa
similaridade com a cosmogonia caldaica era muito exagerada e que os mitos babilônicos
estavam mais próximos dos das sociedades selvagens do que dos de Israel. É certo que a
lenda fenícia se assemelha superficialmente à história do Gênesis, mas. estas similaridades
põem em relevo as suas diferenças fundamentais de espírito e de sentido.

16
As lendas fenícias (...) estavam ligadas a uma concepção absolutamente pagã
de Deus, do homem e do mundo. Desprovidos como estavam de motivos morais,
nenhum dos seus crentes poderia alcançar uma concepção espiritual da Divindade ou
uma noção elevada dos fins da humanidade. (...) Não me cabe a mim explicar o
contraste (com as noções hebraicas de divindade); cabe sim àqueles que, orientados
por uma falsa filosofia da Revelação, apenas vêem no Velho Testamento o resultado
das tendências gerais das religiões semíticas. Os meus trabalhos não me permitem
aqui adoptar esse ponto de vista infirmado pelas numerosas semelhanças de pormenor
entre os contos e os ritos hebraicos e pagãos; porque todas estas semelhanças
concretas não fazem mais que por em evidência os contrastes entre as duas tradições
no plano espiritual (...) (J. S. Black e G. Chrystal, p. 536)

Isto quanto à esmagadora inferioridade das religiões dos vizinhos de Israel e dos
Semitas pagãos. No que respeita às religiões semitas pagãs, elas possuem essencialmente
duas características: uma demonologia abundante que desperta o medo e relações estáveis
e reconfortantes com o deus da comunidade. Os demônios são o elemento primitivo
rejeitado por Israel; as relações morais e estáveis com Deus constituem a verdadeira
religião.

Se é verdade que o selvagem se sente rodeado por inumeráveis perigos que


não compreende e que assim identifica como inimigos invisíveis ou misteriosos
dotados de poderes superiores aos do homem, já não é verdade que a religião se funde
numa tentativa de apaziguar estes poderes. Desde o princípio, a religião, dado que
distinta da magia e da feitiçaria, era um assunto de família. Dirigia-se aos parentes e
aos amigos que podiam de facto zangar-se com a sua gente durante algum tempo, mas
que podiam sempre conciliar-se, desde que não fossem inimigos da família ou
membros renegados da comunidade. (...) Só nos momentos de dissolução social (...) é
que a superstição mágica baseada no simples terror ou os ritos destinados a apaziguar
os deuses estrangeiros invadem a esfera da religião tribal ou nacional. Em tempos
melhores, a religião da tribo ou do Estado não se confunde com as superstições locais
ou estranhas, com os ritos mágicos que o terror selvagem pode ditar ao indivíduo. A
religião não é uma relação arbitrária entre cada indivíduo e um poder sobrenatural. É a
relação de todos os membros da comunidade com um poder que zela pelo bem-estar
desta comunidade. (Religion of the Semites, p. 55)

Não há dúvida de que este julgamento sobre a relação entre a moral e a religião
primitivas encontrou, durante a década de 1890, um acolhimento favorável. Operava uma
combinação feliz entre o novo idealismo moral de Oxford e a antiga revelação. Robertson
Smith dedicara-se à interpretação moral da religião. As suas teses eram compatíveis com as
de Oxford e a prova disso é que Bailliol lhe ofereceu um lugar logo que foi demitido da
cadeira de hebraico na universidade de Aberdeen.
Smith estava convencido de que o Velho Testamento se manteria por cima da
contenda e que sairia incólume dum exame científico, por mais rigoroso que fosse. Podia
mostrar com uma erudição incompatível que todas as religiões primitivas eram a expressão
de formas e de valores sociais. E uma vez que os conceitos religiosos de Israel eram
indiscutivelmente de um grande valor moral, que ao longo da história deram lugar aos
ideais cristãos e que estes, por sua vez, abandonaram o catolicismo em favor do
Protestantismo, o sentido da evolução não colocava dúvidas. Deste modo, a ciência não
contradizia a tarefa dos cristãos, antes constituía um dos seus suportes essenciais.
Tendo definido a magia como um resíduo da evolução, os antropólogos
encontraram-se perante um problema irresolúvel. Por um lado, a magia era um rito que

17
não fazia parte do culto votado ao deus da comunidade; por outro, era um rito do qual se
esperava um resultado automático. Num certo sentido, a magia era para os hebreus o que
o Catolicismo era para os Protestantes: um culto ridículo e irracional, ritos desprovidos de
sentido, cujos participantes esperavam ver resultados sem ter havido uma experiência
íntima de Deus.

Na sua primeira conferência, Robertson Smith sublinhava o contraste entre


a inteligente interpretação calvinista das Escrituras e aquela, mágica, dos Católicos
Romanos que sobrecarregavam o Livro com elementos supersticiosos. Nesta mesma
conferência, Smith declarava sem rodeios:

Desde o princípio ou quase, a Igreja Católica afastou-se da tradição


apostólica elaborando uma concepção do Cristianismo que se resume numa série de
enunciados de princípios abstractos e imutáveis; a sua aceitação intelectual bastava
para determinar toda a existência de homens que nunca tinham estabelecido relações
pessoais entre si e Cristo. (...) Contrariamente ao que afirmavam os Católicos, as
Sagradas Escrituras não são «um fenômeno divino onde cada letra é dotada das
riquezas redentoras que são a fé e o conhecimento». (J. S. Black e G. Chrystal, pp. 126-
127)

Os biógrafos de Smith sugerem que ao associar a magia e o Catolicismo, ele queria


incitar os seus adversários protestantes irredutíveis a adoptarem uma atitude mais corajosa
face à Bíblia. Fossem quais fossem os motivos deste escocês, é um fato que o estudo
comparado das religiões herdou uma antiga discórdia sectária do valor religioso do
formalismo ritual. Chegou o momento de mostrar que essa interpretação emocional e
parcial dos ritos arrastou a antropologia para uma das suas perspectivas teóricas mais
estéreis: a preocupação estreita de indagar sobre a eficácia dos ritos. Desenvolveremos este
tema no capítulo IV. Robertson Smith estava perfeitamente certo ao sublinhar que, ao
longo da sua história, os cristãos tenderam para considerar o rito no seu aspecto mais
formal, pelo prisma da sua eficácia. Mas, por duas vezes, as suas suposições evolucionistas
induziram-no em erro. A prática mágica, no sentido de um rito de eficácia automática,
não é um sinal de primitivismo e o contraste que ele próprio notava entre a religião dos
apóstolos e a de um Catolicismo mais tardio deveria tê-lo esclarecido neste ponto. É
igualmente falso que apenas as religiões evoluídas tenham um conteúdo altamente moral.
Espero demonstrá-lo nos capítulos seguintes.
Robertson Smith exerceu uma grande influência em dois homens, Durkheim, por
um lado, e Frazer, por outro, que o interpretaram cada um à sua maneira. Durkheim
pegou na sua tese central e abriu perspectivas fecundas no estudo das religiões comparadas.
Frazer pegou num tema menor e acessório e conduziu o estudo das religiões a um beco
sem saída.
Durkheim reconheceu a sua dívida para com Robertson Smith em Elementary
Forms of Religious Life (p: .61). Toda a obra é consagrada ao desenvolvimento da idéia que
germinara em Smith de que os deuses primitivos são parte e parcela da comunidade, de
que as suas formas exprimem precisamente, os pormenores da sua estrutura e os seus
poderes punem e recompensam em seu nome. Na vida primitiva,

a religião consistia numa série de actos e de observâncias cuja realização


correcta era necessária e desejável para se obter o favor dos deuses ou para evitar a sua
cólera, e cada membro da sociedade participava de um modo definido nestas

18
observâncias, quer em virtude de ter nascido dentro da família e da comunidade quer
em virtude de ter adquirido este ou aquele estatuto no seio dessa família e dessa
comunidade. (...) A religião tinha por objectivo não a, salvação das almas; mas a
preservação da sociedade e a garantia do seu bem-estar. (...). Todo indivíduo entrava,
pelo nascimento, em relações pré-estabelecidas com certos deuses e com os seus
congêneres; e a sua religião, que é a parte da conduta determinada pelas suas relações
com os deuses, era simplesmente um segmento do esquema geral de comportamento
que lhe estava prescrito consoante a sua posição na sociedade. (...) A religião antiga
não é mais que um aspecto da ordem social geral que regula tanto os deuses como os
homens.

Assim escreveu Robertson Smith (pp. 29-33). Não fora o seu estilo e o uso do
imperfeito e isto poderia ter sido escrito por Durkheim.
Achei muito útil, para compreender Durkheim, saber que ele se encontrou
inicialmente envolvido numa controvérsia com os ingleses, como sugere Talcott Parsons
(1960). As lacunas da filosofia política inglesa, sobretudo de Herbert Spencer, incitavam
Durkheim a levantar mais uma vez o problema da integração social que tanto o
preocupava. Não podia subscrever a teoria utilitarista segundo a qual a psicologia
individual bastaria para explicar o desenvolvimento da sociedade. Durkheim queria
demonstrar que era necessário algo mais, uma obrigação comum para com um conjunto
de valores comuns, uma consciência colectiva para se compreender a natureza da
sociedade. Na mesma altura, outro francês, Gustave le Bon (1841-1931) embrenhava-se
na mesma tarefa de corrigir as teses de Bentham que então prevaleciam. Para este efeito,
elaborou uma teoria da psicologia das massas que Durkheim parece ter utilizado
livremente. Compare-se a descrição que Durkheim faz da emoção arrebatadora que se
desprende das cerimônias totêmicas com a descrição de Gustave le Bon do «espírito das
massas», influenciável, emotivo, heróico ou selvagem. Mas para convencer os ingleses do
seu engano, Durkhein dispunha, de um argumento melhor presente na obra de outro
inglês.
Durkheim adoptou sem reservas a definição que Robertson Smith fez da religião
primitiva: uma igreja estabelecida que exprime os valores da comunidade. Aceitou a
distinção de Robertson Smith entre os ritos que fazem parte do culto aos deuses da
comunidade e os outros ritos. Como Smith, qualificou-os de ‘mágicos’ e definiu a magia e
os mágicos como crenças, práticas e pessoas que se encontram à margem da comunhão da
igreja e que por vezes lhe são hostis. Seguindo Robertson Smith e talvez também Frazer
(porque os primeiros volumes do Golden Bough apareceram antes da publicação, em
1912, das Formas Elementares da Vida Religiosa), admitiu que os ritos mágicos
correspondiam a uma forma de higiene primitiva:

As coisas que o mágico recomenda que se mantenham separadas são aquelas


que, por causa das suas propriedades características, não podem ser misturadas ou
confundidas sem perigo. Trata-se de máximas utilitárias, das primeiras formas de
interdições higiênicas e médicas. (p. 338)

Deste modo se confirmava a distinção entre o contágio e a verdadeira religião. Mas


como as regras de pureza não estavam no centro das suas preocupações, Durkheim não
lhes prestou mais atenção do que Robertson Smith.
Qualquer estudioso que delimite arbitrariamente o seu objecto encontra-se em
dificuldades. Ao distinguir uma categoria de separações que atribuía à higiene primitiva,
de uma outra categoria que atribuía à religião primitiva, Durkheim minava os

19
fundamentos da sua própria definição de religião. Nos primeiros capítulos, compendia e
rejeita as definições de religião que não o satisfazem: as que faziam apelo ao mistério e ao
medo e também a de Tylor, que identificava a religião com a crença em realidades
espirituais. Durkheim adopta de seguida dois critérios que supõe coincidentes: o primeiro,
vimo-lo já, é a organização comunitária dos homens no culto da comunidade; o segundo
é a distinção entre o sagrado e o profano. O sagrado é o objecto de adoração da
comunidade e pode ser reconhecido nas regras que exprimem o seu carácter
essencialmente contagioso.
Quando insiste na ruptura completa entre o sagrado e o profano, entre os
comportamentos seculares e os religiosos, Durkheim abandona Robertson Smith. Este
afirmava, ao contrário e com insistência (p. 29 e s.), que não existe «separação entre a
esfera religiosa e a vida corrente». Uma oposição total entre sagrado e profano parece ter
sido um passo necessário na teoria durkheimiana da integração social e exprimia outra
oposição, agora entre o indivíduo e a sociedade. Durkheim projecta a consciência social
para além e acima dos membros individuais da sociedade, para uma outra entidade ao
mesmo tempo exterior e poderosamente constrangedora. Vemos também Durkheim
insistir no facto de as regras de separação caracterizarem o sagrado, diametralmente oposto
ao profano. Os seus argumentos levam-no então a perguntar por que razão o sagrado é
contagioso. Responde referindo-se à natureza fictícia, abstracta, das entidades religiosas.
Elas não são mais do que idéias despertadas pela experiência da sociedade, idéias colectivas
projetadas para o exterior, meras expressões de valores morais. Não possuem bases
materiais. São pois, em última análise, desenraizadas, fluidas, capazes de se fundirem
noutras experiências. É da sua natureza estarem sempre em perigo de perder o seu carácter
distintivo e necessário. O sagrado precisa de estar forçosa e continuamente delimitado por
interdições. O sagrado deve sempre ser visto como contagioso porque as relações que se
estabelecem com ele se exprimem obrigatoriamente nos ritos de separação e de
demarcação e na idéia de que é perigoso , ultrapassar certos limites.
Mas aqui surge uma pequena dificuldade. Se o contágio caracteriza o sagrado, em
que difere então da magia, não sagrada, mas também caracterizada pelo contágio? Que
forma de contágio é esta que não é gerada pelo processo social? Por que assimilar as
crenças mágicas à higiene primitiva e não à religião primitiva? Estes problemas não
interessaram Durkheim. Ele seguiu a via traçada por Robertson Smith separando a magia
da moral e da religião e assim ajudou a transmitir-nos uma confusão de idéias sobre a
magia. Desde então, os estudiosos não cessaram de meditar numa definição satisfatória das
crenças mágicas e de se interrogar sobre a mentalidade dos povos que as subscrevem.
Sabemos agora que a visão durkheimiana de comunidade social era demasiado
unitária. Devemos começar por reconhecer que a vida comunitária é muito mais complexa
do que ele julgara. Depois, descobrimos que a sua teoria segundo a qual os rituais são
símbolos de processos sociais é válida para dois tipos de crenças – religiosas e mágicas –
relativas ao contágio. Se tivesse pressentido que as regras a que chamava higiênicas são
também dotadas de um simbolismo social, teria sem dúvida afastado a categoria da magia.
Voltaremos a este tema, pois não poderemos desenvolvê-lo sem primeiro fazer tábua rasa
de uma série de idéias preconcebidas derivadas, também, de Robertson Smith.
Frazer não se interessou pelas implicações sociológicas da obra de Robertson Smith
nem pelo seu tema principal. Optou por agarrar-se à magia, resíduo que Robertson Smith
rejeitara casualmente, por assim dizer, da sua definição de verdadeira religião. Ele mostrou
que as crenças mágicas tinham uma certa regularidade e que podiam ser classificadas.
Concluiu, após o exame, que a magia não era um conjunto de regras para evitar qualquer

20
contaminação obscura. Os actos mágicos destinavam-se ora a procurar benefícios, ora a
evitar o mal. E portanto, os comportamentos que Robertson Smith classificava como
“supersticiosos” não se limitavam às regras de pureza. Todos estes comportamentos
pareciam estar dominados pela noção de contágio, bem como pela crença de que os
carácteres podem ser transmitidos por simpatia ou semelhança. Em virtude das chamadas
leis da magia, o mágico pode mudar o rumo dos acontecimentos entregando-se a actos
miméticos ou dando livre curso às forças contagiosas. Estudando a magia, Frazer
contentou-se em escrever as condições em que uma coisa pode simbolizar outra. Se não
estivesse convencido de que os selvagens pensam segundo princípios inteiramente
diferentes dos nossos, não teria talvez aceite de ânimo leve ver na magia um acto
simbólico. Poderia então ter dado as mãos a Durkheim e à escola francesa de sociologia e
estabelecido, nos dois lados do canal da Mancha, um diálogo mais frutífero para o
pensamento inglês do século XIX. Em vez disso, dedicou-se à tarefa de pôr ordem, aliás de
forma superficial, nas pressuposições evolucionistas implícitas de Robertson Smith:
destinando â cultura humana três estádios de desenvolvimento.
A magia era o primeiro estádio, a religião o segundo, a ciência o terceiro. O seu
argumento obedece a uma espécie de dialéctica hegeliana; a magia, que ele considerava
como ciência primitiva, era vencida pelas suas próprias insuficiências e suplementada pela
religião, forma de fraude perpetrada pelos políticos e pelos padres. Da tese (a magia)
emergia a antítese (a religião), e a síntese (a ciência moderna e eficaz) substituía, ao mesmo
tempo, a magia e a religião. Este esquema de evolução, muito em voga na altura, não
assentava sobre nada de concreto. Frazer baseava-se apenas nalgumas suposições
correntemente admitidas na época em conversas de salão. Acreditava-se, de facto, que o
requinte moral era um sinal de civilização avançada. Supunha-se também que a magia
nada tinha a ver com a moral nem com a religião. Foi com estes elementos que Frazer
pintou a imagem dos nossos antepassados. A magia dominava o seu espírito. O universo, a
seus olhos, era movido por princípios impessoais, mecânicos. Procurando
desajeitadamente a fórmula que lhes permitiria controlá-los, os nossos antepassados
tropeçavam por acaso nalguns princípios justos mas, o mais das vezes, a confusão mental
de que eram vítimas levava-os a crer que as palavras e os sinais lhes poderiam servir de
instrumentos. A magia seria a conseqüência da incapacidade dos primeiros humanos para
distinguir as suas próprias associações subjectivas da realidade exterior, objectiva. A sua
origem baseava-se, pois, num engano. Não existiam dúvidas de que o selvagem era um
pateta crédulo.

Deste modo, as cerimônias que em muitas terras se destinam a apressar o fim


do Inverno a prolongar o Verão são, num certo sentido, uma tentativa de criar um
mundo novo, de «remodelá-lo para que corresponda melhor ao íntimo desejo dos
homens». Mas se nos colocarmos no lugar dos velhos sábios que usavam meios tão
fracos para realizar propósitos tão desmesuradamente vastos, teremos de despojar-nos
da nossa concepção moderna da imensidão do Universo e da pequenez e
insignificância do lugar que o homem nele ocupa. (...) Para o selvagem, as montanhas
que delimitam o horizonte , visível, ou o mar que se estende ao seu encontro, são o fim
do mundo. Os seus pés nunca o levaram para além destas estreitas fronteiras... Sobre o
futuro quase não pensa e do passado conhece apenas o que lhe for transmitido,
oralmente, pelos seus antepassados. A idéia de que um mundo assim circunscrito no
espaço e no tempo nasceu dos esforços ou da vontade de um ser como ele não provoca
grande abalo na sua credulidade; e pode, sem muita dificuldade, imaginar que ele

21
próprio é capaz de repetir cada ano a obra da criação com os seus sortilégios e
encantamentos. (Spirits of the Corn and of the Wild, II, p. 109)

É difícil perdoar a Frazer a sua auto-satisfação, o seu desdém não disfarçado pelas
sociedades primitivas. O último capítulo de Taboo and the Perils of the Soul intitula-se «A
nossa dívida para com os Selvagens». Possivelmente, foi introduzido em resposta a
correspondentes que o pressionaram a reconhecer a sabedoria e a profundidade filosófica
das culturas primitivas que conheciam.
Frazer apresenta interessantes extractos destas cartas nas suas notas, mas as suas
idéias preconcebidas impediram-no de os levar em linha de conta. O capítulo em questão
simula um elogio à filosofia dos selvagens; mas como Frazer não nos oferece nenhuma
razão para respeitar idéias cujo carácter infantil, irracional e supersticioso acabava de
demonstrar, somos levados a crer que o seu elogio é apenas de fachada. Será possível
demonstrar uma condescendência mais pomposa?
No fim de contas, as nossas semelhanças com os selvagens são muito mais
numerosas do que as nossas diferenças. (...) Ao cabo e ao resto, aquilo que chamamos de
verdade é apenas a hipótese que se pensou ser mais eficaz. Assim, reexaminando as
opiniões e as práticas de idades e raças mais rudes que as nossas, faremos bem em olhar os
seus erros com indulgência, pois são passos em falso inevitáveis dados em busca da
verdade...
Frazer teve adversários que, no seu tempo, receberam alguma atenção. Mas, em
Inglaterra, triunfou incontestavelmente. Ainda hoje, a edição abreviada de Golden Bough é
vendável e ainda hoje se profere regularmente uma Frazer Memorial Lecture. O seu
sucesso deve-se à grande simplicidade das suas idéias, à incansável energia com que
publicava volume após volume e sobretudo a um estilo luxuriante que lhe permitiu atingir
um público tão vasto. Quase todas as obras então consagradas às civilizações antigas
contêm uma série de alusões ao primitivismo e ao critério que o define: a superstição
mágica sem conteúdo ético.
Assim, reconhecem-se em Cassirer, falando do Zoroastrismo, estes temas tirados do
Golden Bough:

Até a natureza assume novas formas, por ser vista exclusivamente através do
espelho da vida moral. A natureza (...) é concebida como sendo o domínio da lei e
daquilo que é lícito. Na religião de Zoroastro, a natureza é descrita pelo conceito de
Asha. Asha é a sabedoria da natureza que reflecte a sabedoria do seu criador, Ahura
Mazda, o «Senhor sábio». Esta ordem universal, eterna, inviolável, governa o mundo e
determina todos os fenómenos singulares: o trajecto do Sol, da Lua, das estrelas, o
crescimento das plantas e dos animais, o percurso dos ventos e das nuvens. Tudo isto
é mantido e preservado, não por meras forças físicas, mas pela força do Bem (...); o
sentido moral substituiu e suplantou o sentido mágico.

Ou, para considerar um exemplo mais recente, eis o Professor Zaehner observando
pesarosamente que os textos de Zoroastro menos truncados não têm qualquer interesse,
pois apenas contêm regras relativas à pureza:

(...) Só no Videvdat, com as suas aborrecidas prescrições sobre a pureza


ritual e a sua listagem das punições impossíveis para crimes ridículos, os tradutores
parecem dominar, pouco mais ou menos, o texto. (pp. 25-26)

22
É certo que Robertson Smith nada avançou; mas poderemos ter a certeza, passados
setenta anos, de que não quis ir mais longe? Os especialistas do Velho Testamento supõem
geralmente que os povos primitivos apenas retêm, dos seus rituais, o carácter mágico, isto
é, mecânico, utilitário. «Israel, nos seus primórdios, quase não distinguia o que chamamos
de pecados voluntários e involuntários contra Deus» (Osterley e Box). «Para os Hebreus
do século V a.C.», escrevia o Professor James em 1938, «a expiação era apenas um
processo mecânico que consistia na eliminação da impureza material». A história dos
Israelitas é algumas vezes apresentada como uma luta entre os profetas – que proclamavam
uma comunhão íntima, interior, entre Deus e o povo– e este povo, sempre sujeito a recair
na magia primitiva para a qual está particularmente predisposto quando em contacto com
outras culturas mais primitivas que a sua. O paradoxo é que a magia parece por fim
triunfar no Código Sacerdotal. Se a magia, nas suas manifestações primeiras e tardias, é a
crença na eficácia adequada do rito, então ela deixa de ser o critério para a definição do
primitivo. Esperava-se que a própria palavra desaparecesse das obras consagradas ao Velho
Testamento. Mas assim não aconteceu e encontramo-la ao lado de tabu e de mana. Estes
três termos enfatizam o que distingue a religião israelita do paganismo semítico. Eichrodt
emprega-os com particular à vontade (pp. 438, 453):

Fizemos já alusão aos efeitos mágicos atribuídos aos ritos e às formas de


expiação na Babilónia. Isto torna-se mais claro quando recordamos que a confissão
dos pecados faz parte do ritual de exorcismo e que tem eficácia ex opere operato. , (p.
166)

Adiante cita os salmos 40,7 e 69,31 que, segundo ele, «se opõem à tendência –
inerente ao sistema do sacrifício – para fazer do perdão um processo mecânico». De novo
supõe (p. 119) que os conceitos religiosos dos primitivos são «materialistas». Grande parte
desta obra, aliás impressionante, assenta na suposição de que os rituais que funcionam ex
opere operato são primitivos, anteriores no tempo aos rituais que simbolizam estados
interiores do espírito. Mas o autor parece sentir por vezes um desassossego que lhe
infunde, talvez, o pouco fundamento da sua tese.

Kipper, o mais comum dos termos que designam a expiação, incita-nos


também a seguir este caminho, se o sentido original da palavra for “ímpar” como
parecem testemunhá-lo os termos análogos babilônicos e assírios. Aqui, o conceito
fundamental de pecado traduz a ideia de impureza material; e o sangue, substância
sagrada dotada de um poder miraculoso, deve automaticamente lavar a nódoa do
pecado. (p. 162)

Depois ocorre-lhe uma ideia que, tomada a sério, faria escrever muitas páginas:

Mas uma vez que a palavra derivada, de origem árabe, e que significa
«cobrir», parece igualmente possível, pode bem ser que se trate de cobrir a
culpabilidade, de a dissimular aos olhos da pessoa ofendida por meio de uma
separação. Neste caso, o acto de expiação teria, ao contrário, um carácter pessoal. (p.
162)

Eichrodt deixa-se assim enternecer pelos babilónicos — talvez também eles


fizessem uma ideia do que é a verdadeira religião interior; talvez a experiência religiosa de
Israel não estivesse isolada no meio da magia pagã circundante.

23
As mesmas conjecturas dominam as interpretações da literatura grega. Evocando a
vida social e as crenças da época de Homero, o Professor Finley, recorreu a um critério
moral para distinguir os primeiros elementos destas crenças dos elementos mais tardios
(pp. 147, 151, 157).
Por seu lado, um erudito helenista francês, Moulinier, dedica-se ao estudo
aprofundado das noções de puro e de impuro no pensamento grego. Contrariamente a
Robertson Smith, Moulinier é um homem imparcial e, se adoptarmos os critérios
correntes em antropologia, os seus trabalhos, empíricos, são excelentes. Não parece que os
Gregos se tenham preocupado muito com a poluição ritual no período descrito por
Homero (supondo que este período existiu). Só depois aparecem noções deste género
expressivas no teatro grego clássico. O antropólogo, fraco em erudição clássica, gostaria de
ter uma orientação especializada que lhe dissesse que crédito dar a este autor, pois a sua
obra é estimulante e, para o leigo, convincente. Mas eis que um crítico inglês do Journal of
the Hellenic Studies condena sem apelo o nosso autor pela sua ignorância da «antropologia»
que se fazia no século XIX:

(...) O autor encontra-se inutilmente em desvantagem. Parece não conhecer


nada da grande massa de dados comparativos disponíveis a quem quer que deseje
estudar a pureza, a poluição e a purificação. (...) Alguns modestos conhecimentos de
antropologia ter-lhe-iam bastado para saber que uma noção tão antiga como a de
poluição do sangue derramado pertence a um tempo em que a comunidade era o
universo inteiro. (...) Quando ele emprega, na página 277, a palavra «tabú», é apenas
para mostrar que não compreendeu devidamente o seu , sentido. (H. J. Rose, 1954)

Em contrapartida, um outro crítico, que não insiste sobre os contestáveis


conhecimentos em matéria de antropologia, recomenda sem reservas a obra de Moulinier
(Watmough).
Poderíamos multiplicar as citações dispersas que reunimos ; aqui ao acaso. Elas
mostram quão vazia tem sido a influência de Frazer. Marcou profundamente a própria
antropologia. Desde que escolheu como problema interessante no estudo comparado das
religiões as crenças falsas na eficácia da magia, os antropólogos britânicos prostraram-se
respeitosamente perante esta questão, embora tivessem há muito rejeitado as hipóteses
evolucionistas que a tornavam interessante para Frazer. Quanto aos antropólogos,
continuam a gratificar-nos com exposições esclarecidas sobre a relação entre a magia e a
ciência — exibições virtuosísticas de erudição respeitantes a um problema cuja
importância teórica não é demonstrada.
No conjunto, a influência de Frazer tem sido funesta. Herdou de Robertson Smith
um tema periférico e perpetuou uma divisão deplorável entre a religião e a magia.
Disseminou uma ideia preconcebida e errada sobre a concepção primitiva do universo que
se regeria por símbolos. Enfim, acreditou e fez acreditar que a religião primitiva nada tem
a ver com a moral. Antes de abordar o tema da poluição ritual, precisamos de corrigir estas
ideias preconcebidas. Porque os antropólogos fragmentaram assim uma experiência
humana única, o estudo da religião comparada não parou de tropeçar em mistérios
impenetráveis. Nesta obra, tentaremos reunir alguns dos fragmentos.
Em primeiro lugar, não esperaremos compreender o fenômeno religioso limitando-
nos a estudar as crenças em seres espirituais, mesmo que refinemos esta fórmula. Em
certos momentos da nossa pesquisa, necessitaremos talvez de examinar todas as crenças
conhecidas noutros seres: fantasmas, antepassados, demónios e fadas. Mas seguindo
Robertson Smith, não suporemos que, tendo catalogado toda a população espiritual do

24
universo, captamos a essência da religião. Em vez de construir definições exclusivas,
tentaremos comparar as diferentes concepções que os povos têm acerca do destino e do seu
lugar no universo. Em segundo lugar, enfim, não podemos esperar entender as ideias dos
outros sobre o contágio, sagrado ou secular, antes de nos confrontarmos com as nossas.

25
CAPÍTULO III

AS ABOMINAÇÕES DO LEVÍTICO
A poluição ritual é um fenómeno isolado. Só existe por referência a uma ordenação
sistemática das ideias. Seria, pois, um erro considerar isoladamente cada uma das regras
relativas à poluição numa cultura que não a nossa. As noções de poluição apenas fazem
sentido no contexto de uma estrutura total do pensamento cuja pedra angular, os limites,
as margens e os movimentos internos estão ligados uns aos outros pelos ritos de separação.
Para ilustrar esta tese, peguemos num velho e venerável enigma que ainda hoje
desconcerta os especialistas da Bíblia: as abominações do Levítico e, particularmente, as
suas prescrições alimentares. Por que são o camelo, a lebre e o texugo impuros? Por que
serão alguns gafanhotos, mas não todos, impuros? Por que é a rã pura, enquanto o rato e o
hipopótamo são impuros? Porquê meter no mesmo saco os camaleões, as toupeiras e os
crocodilos? (Lev. XI, 27.) Que têm eles em comum?
Para ajudar o leitor a seguir a argumentação, citemos primeiro ; os versículos do
Levítico e do Deuteronómio1.
Deut XIV

Não comerás coisa alguma abominável. 4 Eis os animais que comereis: o boi,
o cordeiro, a cabra, a gazela, 5 a corça, o gamo, o antílope, o búfalo e a cabra montês. 6
Comereis de todos os animais que têm a unha e o pé fendidos, e que ruminam. 7 Mas
não comereis daqueles que somente ruminam ou somente tenham a unha e o pé
fendidos, tais como o camelo, a lebre, o coelho, que ruminam mas não têm a unha
fendida: tê-los-eis por impuros. 8 Igualmente o porco, que tem a unha fendida mas não
rumina: tê-lo-eis por impuro. Não comereis de suas carnes, nem tocareis nos seus
cadáveres.

9 Dentre os animais que vivem que vivem nas águas, eis os que podereis
comer: Comereis os que têm barbatanas e escamas; 10 mas tudo o que não tiver
barbatanas nem escamas, tereis por impuro e não comereis.

11 Comereis de todas as aves que são puras. 12 Eis as que não podereis comer:
a águia, o falcão e o abutre, 13 o milhafre e toda a variedade de falcão, 14 toda a espécie
de corvo, 15 a avestruz, a andorinha, a gaivota e toda a variedade de gavião, 16 o mocho,
a coruja, o açor, 17 o caburé, o abutre, o ibis, 18 a cegonha e toda a variedade de garça, a
poupa e o morcego: 19 Tereis por impuro todo o insecto volátil: não comereis deles. 20
Mas comereis de toda a ave pura.

Lev. XI

2 Entre todos os animais da terra, eis os que podereis comer: 3 podereis


comer todo o animal que tem a unha fendida e o casco dividido, e que rumina. 4 Mas
não comereis aqueles que só ruminam e não têm a unha fendida, ou só têm a unha
fendida mas não ruminam. A estes, tê-los-eis por impuros: tal como o camelo, que
rumina mas não tem o casco fendido. 5 E como o coelho igualmente, que rumina mas

1
O tradutor recorreu à Bíblia Sagrada traduzida dos originais hebraico, aramaico e grego, mediante a versão
francesa dos Monges Beneditinos de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico de São Paulo; São Paulo:
E ditora Ave Maria, 1961, 3.ª edição.

35
não tem a unha fendida; tê-los-eis por impuros. 6 E como a lebre também, que rumina,
mas não tem a unha fendida; tê-la-eis por impura. 7 E enfim, como o porco, que tem a
unha fendida e o pé dividido, mas não rumina; tê-lo-eis por impuro. 8 Não comereis de
sua carne e não tocareis nos seus cadáveres: vós os tereis por impuros.

9 Entre os animais que vivem na água, eis os que podereis comer: podereis
comer todos os que têm barbatanas e escamas, nas águas, no mar e nos rios. 10 Mas
tereis em abominação todos os que não têm barbatanas nem escamas, nas águas. nós
mares e nos rios, entre todos os animais que vivem nas águas e entre todos os seres
vivos que nelas se encontram. 11 A estes, tê-los-eis em abominação: não comereis de
sua carne e tereis em abominação os seus cadáveres. 12 Tudo o que nas águas não tem
barbatanas nem escamas, tê-los-eis em abominação.

13 Entre as aves, eis as que tereis em abominação e de cuja carne não


comereis, porque são uma abominação: 14-19 a águia, o falcão e o abutre, o milhafre e
toda a variedade de falcão, toda a espécie de corvo, a avestruz, a andorinha, a gaivota e
toda espécie de gavião, o mocho, a coruja e o ibis, o cisne, o pelicano, o abutre, a
cegonha, toda a variedade de garça, a poupa e o morcego.

20 Todo o volátil que anda sobre quatro pés vos será uma abominação. 21
Todavia, entre os insectos voláteis que andam sobre quatro pés, podereis comer
aqueles que, além de seus quatro pés, têm pernas para saltar sobre a terra. 22 Eis, pois,
os que podereis comer: toda espécie de gafanhoto, de locusta, de gafanhoto devorador
e de grilo. 23 Qualquer outro volátil tendo quatro pés vos será uma abominação. 24
Tornar-vos-eis imundos se os tocardes; se alguém tocar os seus cadáveres será impuro
até à tarde, 25 e aquele que levar os seus cadáveres lavará suas vestes e será impuro até
à tarde.

26 Tereis por impuro todo animal que tem a unha fendida mas que não tem o
pé dividido e não rumina; se alguém o tocar será imundo. 27 Tereis também por
impuros todos os quadrúpedes que andam sobre as plantas dos pés; se alguém tocar os
seus cadáveres será impuro até à tarde; 28 e aquele que levar os seus cadáveres lavará
suas vestes e será impuro até à tarde. Tereis estes animais por impuros.

29 Entre os animais que se movem sobre a terra, eis os que tereis por
impuros: a toupeira, o rato e toda a variedade de lagarto, 30 o musaranho, a rã, a
tartaruga, a lagartixa e o camaleão. 31 Tais são os répteis que tereis por impuros; quem
os tocar mortos será impuro até à tarde. 32 Todo objecto sobre o qual cairem os seus
cadáveres será impuro...

41 Todo animal que se arrasta sobre a terra vos será uma coisa abominável:
não se comerá dele. 42 Não comereis animal algum que se arrasta sobre a terra, tanto
aqueles que se arrastam sobre o ventre como aqueles que andam sobre quatro ou mais
pés: tê-los-eis em abominação.

Estes dois textos foram interpretados de duas maneiras: ou bem que estas regras são
desprovidas de significação e arbitrárias porque disciplinares e não doutrinais; ou bem que
se trata de alegorias das virtudes e dos vícios. Maimônides —que pensava que as
prescrições religiosas não são, no conjunto, simbólicas — escrevia:

A Lei que impõe que se façam os sacrifícios é evidentemente de grande


utilidade. (...) Mas ignoramos porque é que um oferece um cordeiro, outro um carneiro
e porque é que um número determinado de cada deve ser oferecido. Aqueles que se
esforçam por encontrar a causa destas regras minuciosas são a meu ver insensatos.

36
Médico e vivendo na Idade Média, Maimónides predispunha-se a acreditar que as
prescrições alimentares tinham uma sólida base fisiológica; mas já afastamos, no segundo
capítulo, a interpretação médica do simbolismo. Para uma versão moderna da tese de que
as prescrições alimentares são morais e disciplinares e não simbólicas, vejam-se as notas de
Epstein sobre o talmude babilónico e também a sua história, muito popular, do Judaísmo
(1959, p. 24):

Estas duas séries de leis têm um objectivo comum: (...) a santidade. Os


preceitos positivos destinam-se a promover no crente o culto da virtude e também
daquelas qualidades delicadas que distinguem o ser verdadeiramente religioso do ser
moral; os preceitos negativos, ao contrário, têm por fim combater o vício e suprimir as
outras tendências e instintos que conduzam ao mal e que constituem um obstáculo à
procura da santidade. (...) As leis religiosas negativas têm também finalidades
educativas, entre as quais figura, em primeiro lugar, a interdição de comer a carne de
certos animais considerados impuros. Esta lei não tem nada de totémico. As Escrituras
associam-na expressamente ao ideal de santidade. O seu verdadeiro fim é incitar os
israelitas à autodisciplina, a primeira condição da santidade.

De acordo com The Dietary Laws in Rabbinic and Patristic Literature, do Professor
Stein, a interpretação moralista remonta ao tempo de Alexandre, o Grande, e da influência
helénica na cultura judaica. No primeiro século da nossa era, Aristeias declarava na sua
carta, não apenas que as leis mosaicas são uma boa disciplina que «impede os judeus de se
entregarem a acções irrefletidas ou injustas.>>, mas também que elas coincidem com
aquilo que prescreve a razão natural para que se possa levar uma vida moral. Assim, a
influência helénica permite às interpretações médicas e morais reunirem-se. Filon
sustentou que Moisés tinha precisamente por princípio de selecção a escolha das melhores
carnes:

O legislador proibiu severamente todos os animais da terra, do mar ou do


céu cuja carne é a mais delicada e a mais gorda, como a do porco e a dos peixes sem
escamas, pois sabia que estes alimentos são uma armadilha para o mais ignóbil de
todos os sentidos, o gosto, e que levam à gula.

E aqui Filon leva-nos directamente para a interpretação médica:

(...) um mal perigoso para o corpo e para a alma, porque a gula provoca a
indigestão, fonte de doenças e de enfermidades.

Segundo outra corrente de interpretação, na esteira de Robertson Smith e de


Frazer, os especialistas anglo-saxónicos do Velho Testamento tendem a dizer
simplesmente que as prescrições são arbitrárias porque irracionais. Nathaniel Nicklem, por
exemplo, escreve:

Os comentadores costumam dar demasiada atenção ao porquê de tais e tais


criaturas e de tais e tais estados ou sintomas serem impuros. Tratar-se-á de
prescrições higiénicas primitivas? Ou serão certas criaturas e certos estados impuros
por representarem ou ilustrarem determinados pecados? Podemos afirmar que a noção
de impureza não tem como base a higiene nem nenhuma tipologia. Estas regras não
podem ser racionalizadas. Sem dúvida que têm origens diversas e que remontam à pré-
história (...)

37
R. Driver (1895) escreveu:

Porém, o princípio que determina a distinção entre os animais puros e


impuros não está especificado; de que princípio se trata? Tem-se discutido muito em
torno desta questão. Parece que ainda ninguém encontrou uma explicação única que
abarque os diferentes casos: o mias provável é que estejam em causa vários princípios.
Pode ser bem que alguns animais tenham sido proibidos devido à sua aparência
repulsiva ou aos seus hábitos imundos, outros por razões sanitárias; noutros casos, o
motivo da interdição é certamente de ordem religiosa. Poderia ser o caso de certos
animais, como a serpente na Arábia, que se acreditava ser animada por seres sobre-
humanos ou personagens demoníacas; talvez ela desempenhasse um papel
sacramental nos ritos pagãos de outras nações; a proibição seria, então, uma forma de
protesto contra estas crenças.

P. P. Saydon retoma os mesmos argumentos em Catholic Commentary on Holy


Scripture (1953), onde reconhece a sua dívida para com Robertson Smith e Driver. Parece
que certos aspectos da religião dos hebreus — que Robertson Smith considerava
primitivos, irracionais ou inexplicáveis — foram considerados como tal até aos nossos
dias. Ninguém os examinou seriamente.
Escusado será dizer que não se trata de interpretações, pois os nossos autores negam
que estas regras tenham um sentido. Na realidade, mascaram o seu embaraço recorrendo a
uma linguagem erudita. Apenas Micklem o reconheceu, a propósito do Levítico:

Os capítulos de XI a XV são talvez os menos atraentes de toda a Bíblia. Há


neles muitos elementos que parecem ao leitor de hoje desprovidos de sentido ou
mesmo repugnantes. Abordam a «impureza» ritual no que respeita aos animais (11), >
ao nascimento (12), doenças da pele e vestes sujas (13), aos ritos de purgação para as
doenças de pele (14), à lepra e às variadas secreções do corpo humano (15). Tais
assuntos não têm interesse a não ser para o antropólogo. Que relações pode tudo isto
ter com a religião?

Pfeiffer, que adopta, no geral, uma posição crítica face aos aspectos eclesiásticos e
jurídicos da vida de Israel, sustentava com autoridade a tese de que as prescrições do
Código Sacerdotal são largamente arbitrárias:

Eram precisos padres-juristas para imaginar uma religião teocrática onde a


lei divina regulamente ao pormenor e, portanto, arbitrariamente, as obrigações
sagradas de um povo em relação ao seu Deus. Desta forma, os padre juristas
santificavam o formalismo, suprimiam da religião os idéias morais de um Amós e as
ternas emoções de um Osea e reduzïam o criador universal ao estatuto de um déspota
inflexível. (...) As duas noções fundamentais que caracterizam as suas leis derivadas de
costumes imemoriais são a santidade física e o decreto arbitrárïo — concepções
arcaicas que os profetas reformadores haviam afastado a favor da santidade espiritual
e da lei moral. (p. 91)

Talvez seja verdade que os homens da lei tendem a pensar de uma maneira precisa
e codificada. Mas será que codificariam puros absurdos, decretos arbitrários? Pfeiffer
queria sustentar as duas teses ao mesmo tempo insistindo na rigidez jurídica dos padres
autores das interdições e, para justificar a sua tese de que as regras são arbitrárias,
comentava a grande desordem que reina neste capítulo. A meu ver, arbitrariedade é o que
menos se pode encontrar no Levítico. Esta é também a opinião do Rev. Prof. H. J.

38
Richards. A crítica atribui o Levítico aos padres, cuja preocupação dominante era a ordem.
Estamos então no direito de procurar outra interpretação.
Quanto à tradição de que as regras são alegorias de virtudes e vícios, o Professor
Stein remonta-a à mesma influência de Alexandria sobre o pensamento judaico (p. 145 e
s.). Citando a carta de Aristeias, Stein refere que o sumo-sacerdote Eleazar

admitia que a maioria das pessoas acha incompreensíveis as restrições


alimentares da Bíblia. Se Deus é o criador de todas as coisas, porque hão-de as suas leis
ser tão severas ao ponto de excluirem certos animais nos quais nem sequer se deverá
tocar (128)? Na sua primeira resposta, associa as restrições alimentares ao perigo da
idolatria. (...) Na sua segunda resposta, procura refutar alguns ataques específicos por
meio de exegese alegóricas. Todas as leis relativas a alimentos proibidos têm a sua
razão profunda. Se Moisés cita o rato e a doninha, não é pór ter grande consideração
por eles (143). Pelo contrário, os ratos são particularmente odiosos porque
destrutivos; e as doninhas, o próprio símbolo da maledicência, concebem pelo ouvido
e dão à luz pela boca (164). É mais provável que estas leis sagradas tenham sido
decretadas em nome da justiça, para acordar em nós pensamentos devotos e para
formar o nosso carácter (161-168). Por exemplo, os pássaros que os judeus podem
comer são todos mansos e puros e só vivem à base de milho. O que não é o caso dos
pássaros selvagens e carnívoros que atacam os cordeiros e as cabras e até os seres
humanos. Qualificando-os de impuros, Moisés exortava os fiéis a não fazerem mal aos
fracos e a desconfiarem do seu próprio poder (145-148). As alusões aos animais
fissípedes simbolizam o seguinte preceito: em cada uma das nossas acções devemos
dar provas de superioridade moral e aspirar ao Bem. (:..) A ruminação é o símbolo da
memória.

O Professor Stein cita depois as alegorias que Filon evoca para interpretar as
prescrições dietéticas:

Os peixes com barbatanas e escamas que são admitidos pela Lei simbolizam
a resistência e o autocontrolo, ao passo que os peixes interditos se deixam levar pela
corrente, incapazes de resistir à força do rio. Os répteis que serpenteiam arrastando-se
pelo ventre simbolizam as pessoas que se entregam à satisfação das suas paixões e dos
seus desejos cúpidos. Ao contrário, os animais que rastejam mas que têm patas para
saltar são puros, pois simbolizam o sucesso que coroa o esforço moral.

O Cristianismo apressou-se a seguir a tradição alegórica. Barnabé, na sua epístola


do século primeiro da nossa era, quer convencer os judeus de que a sua lei havia sido
cumprida. Considera que os animais puros e impuros correspondem a diferentes tipos de
homens, que a lepra simboliza o pecado, etc. Um exemplo mais recente deste tipo de
raciocínio encontra-se nas notas do Bispo Challoner à Bíblia de Westminster escritas em
princípios deste século:

As patas fendidas e a ruminação simbolizam a distinção entre o bem e o mal


e a meditação na lei de Deus; onde uma destas faltar, o homem está impuro. De
maneira semelhante, os peixes sem barbatanas e escamas eram considerados impuros:
são as almas que não se elevaram pela oração e que não estão revestidas com as
escamas da virtude. (Nota ao versículo 3)

Trata-se menos de interpretações que de comentários piedosos, pois o argumento


não é coerente nem geral. Estes exegetas dão-nos uma explicação diferente para cada
animal e não existe limite para o número de explicações possíveis.

39
Segundo outra tradição que remonta à carta de Aristeias, as interdições alimentares
dos israelitas destinam-se a proteger este povo das influências estrangeiras. Maimónides
estava convencido de que lhes era proibido cozer o cabrito no leite da sua mãe porque isso
era um rito religioso entre os Cananeus. Mas esta tese não explica tudo, pois não está
provado que os israelitas tenham rejeitado sistematicamente todos os contributos das
religiões estrangeiras e inventado algo de verdadeiramente original. Maimónides adopta a
tese segundo a qual algumas prescrições entre as mais misteriosas da Lei têm por fim fazer
uma ruptura total com os costumes pagãos. Os israelitas estavam assim proibidos de vestir
tecidos de linho e lã misturados, de plantar árvores diferentes juntas, de ter relações sexuais
com os animais, de cozer carne em leite, simplesmente porque estes actos figuravam entre
os ritos dos seus vizinhos pagãos. Até aqui, muito bem: as leis deviam impedir a
propagação dos rituais pagãos. Mas, nesse caso, por que se permitiam algumas práticas
pagãs? E não só se permitiam, como ainda — no caso do sacrifício, prática corrente entre
os pagãos e os Israelitas — lhes era dado um lugar absolutamente central na religião. A
resposta de Maimónides em The Guide to the Perplexed é esta: o sacrifício é um ritual de
transição, lamentavelmente idólatra, mas necessário, pois os Israelitas não podiam ser
afastados abruptamente do seu passado ímpio. É uma afirmação espantosa para um
erudito rabínico e, aliás, Maimónides não a manterá nas suas obras mais sérias: pelo
contrário, considerará o sacrifício como o acto mais fundamental da religião judaica.
Maimónides teve, pelo menos, o mérito de estar consciente do seu ilogismo que, de
resto, acabaria por conduzi-lo a uma contradição. Mas os estudiosos que lhe sucederam
parecem ter ficado satisfeitos retomando a teoria da influência estrangeira e alterando-a
aqui e ali segundo as necessidades do momento. O Professor Hooke e os seus colegas
demonstraram que os Israelitas se apropriaram de certos estilos de culto cananeus e que
estes tinham muitos pontos em comum com a cultura mesopotâmica (1933). Mas
representar Israel ora como uma esponja ora como um repelente nada explica, enquanto
não se perceber por que motivo absorveu este elemento estrangeiro e repeliu aquele. Que
interesse tem repetir que o Levítico proibe cozer o cabrito no leite da sua mãe e copular
com as vacas porque estes actos são ritos de fertilidade entre os seus vizinhos estrangeiros
(1935), quando sabemos que os Israelitas adoptaram outros ritos estrangeiros? Ainda não
discernimos quando é que a metáfora da esponja é correcta ou errada. Eichrodt deixa-nos
também perplexos quando recorre a este mesmo argumento (pp. 230-231). É claro que
nenhuma cultura surge do nada. Os israelitas absorveram numerosos contributos dos seus
vizinhos, mas não quaisquer uns. Certos elementos da cultura estrangeira eram
incompatíveis com os princípios de ordenação (patterning) sobre os quais construíam o seu
universo; outros eram compatíveis. Zaehner sugere a este respeito que a abominação
judaica dos animais que rastejam pode ter vindo do Zoroastrismo (p. 162). Seja qual for o
fundamento histórico da teoria de que os judeus adoptaram alguns elementos estrangeiros,
veremos que, pelo próprio ordenamento da sua cultura, esta abominação era à partida
compatível com os princípios gerais sobre os quais fundavam o seu universo.
Nenhuma interpretação que trate isoladamente as interdições do Velho
Testamento é válida. A única abordagem correcta é esquecer a higiene, a estética, a moral,
a revulsão instintiva e mesmo os Cananeus e os magos zoroástricos. Há que partir dos
textos. Cada injunção é precedida por um mandamento: Sereis santos. Devemos também
procurar neste mandamento a razão destas injunções. Existe certamente uma oposição
entre a santidade e a abominação que trará uma nova luz a todas as restrições particulares.
A santidade é o atributo de Deus. A sua raiz significa: separar (set apart). Esta
palavra terá outros sentidos? Qualquer pesquisa sobre a cosmologia deveria começar pelo

40
estudo das noções de poder e de perigo. No Velho Testamento, a benção é a fonte de
todos os bens e a recusa da benção é a fonte de todos os perigos. A graça divina torna a
terra fértil e, portanto, a vida dos homens possível. Que mais significa? Deveremos iniciar
qualquer pesquisa cosmológica buscando os princípios do poder e do perigo.
Por meio da benção, a obra de Deus é essencialmente criar a ordem graças à qual
prosperam os assuntos humanos. Deus promete que as mulheres, o gado e os campos serão
férteis para aqueles que respeitem a sua aliança e observem todos os preceitos e todas as
cerimónias (Deut XXVIII; 1-14). Quando Deus recusa a sua benção e quando se
desencadeia a sua maldição, há esterilidade, peste e confusão. Porque Moisés disse:
Deut XXVIII

15 Mas se não obedeceres à voz do Senhor, teu Deus, se não praticares


cuidadosamente todos os seus mandamentos e todas as suas leis que hoje te prescrevo,
virão sobre ti e te alcançarão todas estas maldições:16 Serás maldito na cidade e
maldito nos campos. 17 Serão malditas tua cesta e tua amassadeira; 18 será maldito o
fruto de tuas entranhas, o fruto do teu solo, as crias de tuas vacas e de tuas ovelhas. 19
Serás maldito quando entrares e maldito serás quando saires.

20 O Senhor mandará contra ti a maldição, o pânico e a ameaça em todas as


suas empresas, até que sejas destruído e aniquilado sem demora, por causa da
perversidade de tuas acções e por me teres abandonado. 21 O Senhor mandar-te-á a
peste, até que ela te tenha apagado da terra em que entrarás para a possuir. 22 O
Senhor te ferirá de fraqueza, febre e inflamação, febre ardente e secura, carbúnculo e
mangra, flagelos que te perseguirão até que pereças. 23 O céu que está por cima de ti
será de bronze, e o solo será de ferro sob os teus pés. 24 Em lugar da chuva necessária
à tua terra, o Senhor dar-te-á pó e areia, que cairão do céu sobre ti até que pereças.

Fica então claro que estes preceitos, positivos e negativos, são considerados eficazes
e não apenas expressivos: observá-los atrai prosperidade, desobedecer-lhes chama o perigo.
Podemos assim considerar estas prescrições como semelhantes, a este respeito, aos tabús
rituais dos primitivos que correm perigos se os transgridem. Preceitos e cerimónias
assentam na noção de santidade divina que os homens devem alcançar na sua própria vida.
Trata-se então de um universo no seio do qual os homens prosperam conformando-se à
santidade e perecem quando se desviam dela. Se não dispuséssemos de outros indícios,
bastar-nos-ia, para compreender a noção de santidade hebraica, examinar os preceitos
pelos quais os homens com ela se conformam. Ela não é evidentemente sinónimo de
bondade no sentido humanitário de uma bondade abraçando todos os homens. A justiça e
a bondade são sinais de santidade, e são parte dela, mas não a esgotam.
Sabendo-se que a raiz desta palavra significa estado de separação, a ideia de
santidade compreende também a de totalidade, de plenitude (completeness). O Levítico faz
muitas alusões à perfeição física. A Lei exige-a a todas as coisas presenteadas ao Templo e a
todas as pessoas que dele se aproximam. Os animais oferecidos em sacrifícios não podem
ter deformidades, as mulheres têm de ser purificadas após o parto, os leprosos devem estar
separados dos outros homens e, uma vez curados, ser ritualmente lavados antes de
entrarem no Templo. Todas as secreções corporais são consideradas poluentes e
interditam o acesso ao templo. Os padres só podem entrar em contato com a morte
quando um de seus parentes próximos morreu. Mas o sumo-sacerdote não poderá nunca
ter contacto com a morte.

Lev. XXI

41
17 Dize a Aarão o seguinte: Homem algum da tua linhagem, por todas as
gerações, que tiver um defeito corporal, oferecerá o pão de seu Deus. 18 Desse modo,
serão excluídos todos aqueles que tiverem uma deformidade corporal: cegos, coxos,
mutilados, pessoas de membros desproporcionados, 19 ou tendo uma fractura do pé
ou da mão, 20 corcundas ou anões, os que tiverem uma mancha no olho, ou a sarna, um
dartro, ou os testículos quebrados. 21 Homem algum da linhagem de Aarão, o
sacerdote, que for deformado, oferecerá os sacrifícios consumidos pelo fogo...

Quem aspira a ser padre deve, por outras palavras, ser um homem perfeito. Esta
noção de plenitude física tão frequente encontra-se na vida social e em particular no
acampamento dos guerreiros. A cultura israelita alcança o seu apogeu na oração e no
combate. O exército não pode vencer sem a benção divina e o acampamento deve ser
santo se quiser conservar a benção. Há que preservar o acampamento, bem como o
Templo, longe de todas as impurezas. As secreções corporais interditam o acesso tanto ao
acampamento como ao Templo. Um guerreiro que tenha sofrido uma excreção corporal
durante a noite deve permanecer o dia seguinte fora do acampamento e retornar ao
crepúsculo, depois de se ter lavado (Deut XXIII, 10-15). Em suma, a ideia de santidade
exprimia-se de um modo exterior, físico, na exigência da integridade do corpo considerado
como um receptáculo perfeito.
O significado da noção de integridade, de totalidade, estende-se num contexto
social, até significar a ideia de perfeição. Uma vez iniciados, os assuntos importantes não
devem ficar incompletos. Se não estiver «inteiro», nesse sentido, o guerreiro não pode
combater. Antes da batalha, os capitães devem interrogar os seus soldados nestes termos:

5 ...Há alguém entre vós que tenha edificado uma casa e não a tenha ainda
inaugurado? Que esse volte para a sua casa, não suceda que morra no combate e um
outro venha a habitar primeiro do que ele a sua casa. 6 Há alguém entre vós que tenha
plantado uma vinha e não tenha ainda gozado de seus frutos? Que esse volte para a sua
casa, não suceda que pereça no combate e outro venha a colher os primeiros frutos. 7
Há alguém que tenha desposado uma mulher e não a tenha ainda recebido? Que esse
volte para a sua casa, não suceda que morra no combate e outro a despose.

É verdade que não encontramos nestas linhas a menor alusão à lógica da poluição.
Não se diz que um homem com um projecto pela metade em mãos está poluído, como
estaria um leproso. O versículo seguinte, aliás, aconselha os medrosos a voltarem para casa
para evitar que o seu medo se propague. Mas outros versículos afirmam que um homem
não deve pôr as mãos na charrua e depois abandoná-la. Pedersen vai ao ponto de afirmar:

Em todos estes casos, um homem começou uma tarefa importante sem a ter
terminado (...) e contudo, uma nova totalidade nasceu. Aquele que abre
prematuramente uma brecha nesta totalidade, isto é, antes de ela ter atingido a sua
maturidade ou de ter sido acabada, corre o risco de cometer um pecado grave. (vol. III,
p. 9)

Se seguirmos Pedersen, os homens devem ser corajosos, fisicamente íntegros e ter


concluído todas as suas tarefas para merecerem a benção e a vitória no combate. O Novo
Testamento faz eco deste texto na parábola do homem que dá um grande festim e cujos
convidados se desculpam provocando a sua cólera (Luc. XIV, 16-24, Mat. XXII: Ver M.
Blach e H. H. Rowley, 1962, p. 836). Um dos convidados comprara uma nova quinta,
um comprara dez bois que ainda não pusera a trabalhar e o último desposara uma mulher.

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De acordo com a Lei antiga, cada um teria podido justificar validamente a sua recusa
referindo-se ao capítulo XX do Deuteronómio. Porém, esta parábola vem confirmar a tese
de Pedersen segundo a qual é mau interromper uma obra em curso. tanto na vida civil
como na vida militar.
Outros preceitos desenvolvem a ideia de perfeição, de plenitude, noutra direcção.
O corpo humano e a obra que se empreendeu são as metáforas através das quais é preciso
ver a perfeição e a integridade do indivíduo e das suas obras. A santidade estende-se, ainda
segundo outros preceitos, às espécies e às categorias. Os híbridos e outros desalinhavos são
abominações.

Lev. XVIII

23 Não terás comércio com um animal, para te contaminares com ele. Uma
mulher não se prostituirá a um animal: isto é uma abominação.

A palavra «perversão» é um erro significativo do tradutor. O original, em hebraico,


é tebhel, que significa «mistura» ou «confusão». O mesmo tema aparece no Levítico XIX,
19:

Guardareis os meus mandamentos. Não juntarás animais de espécies


diferentes. Não semearás o teu campo grãos de espécies diferentes. Não roupas tecidos
de duas espécies de fios.

Todas estas injunções são precedidas pelo mandamento:

Sereis santos porque eu sou santo.

Podemos concluir que a integridade é típica da santidade. Esta exige igualmente


que os indivíduos se conformem à classe a que pertencem e que não haja confusão entre os
diferentes grupos de objectos.
Encontraremos esta última prescrição elaborada noutra série de preceitos. Ser santo
é distinguir cuidadosamente as categorias da criação, é idear definições justas, é ser capaz
de discriminar e de ordenar. É assim que todas as regras relativas à moral sexual são
exemplos de santidade. O incesto e o adultério (Lev. XVIII, 6-20) são contrários à
santidade porque se opõem à ordem. A moral não entra em conflito com a santidade, mas
a santidade consiste mais em separar aquilo que deve estar separado do que em proteger os
direitos dos maridos e dos irmãos.
Deparamos no capítulo XIX com outra série de actos adversos à santidade. Deste
capítulo transparece a ideia de que a santidade é ordem e não confusão, de que a rectidão e
a fraqueza são santas, de que a contradição e a falsidade se opõem à santidade. O roubo, a
mentira, o falso testemunho, as vigarices nos pesos e nas medidas, todas as espécies de
hipocrisias — tais como falar mal do surdo (e presumivelmente sorrir-lhe na cara), odiar
do fundo do coração um irmão (enquanto presumivelmente se lhe fala com simpatia) —
são sem dúvida exemplos de contradições entre o que parece e o que é. Muito se diz
também, neste capítulo, sobre a generosidade e o amor, mas estas são injunções positivas e
aqui só nos interessam as injunções negativas.
Eis-nos agora em condições de compreender as prescrições sobre as carnes puras e
impuras. Ser santo é ser total, ser uno; a santidade é unidade, integridade, perfeição do

43
indivíduo e dos seus semelhantes. Para as prescrições alimentares basta desenvolver a
metáfora no mesmo sentido.
Comecemos pelos rebanhos de gado, camelos, carneiros e cabras, que eram o
sustento dos Israelitas. Estes animais eram considerados puros, na medida em que quem
lhes tivesse tocado não precisava de purificar-se antes de aceder ao Templo. O gado, tal
como a terra habitada, recebe a benção de Deus, torna-se fértil e integra-se na ordem
divina. O dever do lavrador é guardar esta benção. Por um lado, tem de preservar a ordem
da criação. Daí a interdição que pesa sobre os híbridos, sejam eles plantas, animais ou
tecidos (misturas de lã e de linho). Em certa medida, o homem estabeleceu uma aliança
com a sua terra e os seus animais, da mesma maneira que Deus celebrou com ele uma
aliança. Os homens respeitavam o primogénito do seu gado e obrigavam-no a cumprir o
Sabá. Os bovinos são literalmente domesticados como os escravos. Para que disfrutem da
benção, urge integrá-los na ordem social. A diferença entre o gado e os animais selvagens é
que estes não têm nenhuma aliança que os proteja. É possível que os Israelitas, como
outros povos pastores, não apreciassem a caça. Os Nuer do Sudão meridional desprezam
aqueles que dela vivem. Só um pastor pobre pode ser impelido a comer carne bravia. Seria
pois errado, parece-me, avaliar os Israelitas como um povo ávido de carnes proibidas e que
achava tantas restrições uma maçada. Driver tem certamente razão em crer que as
prescrições alimentares ratificam a posteriori um estado de facto. Os ungulados fissípedes e
que ruminam são a carne por excelência de um povo pastor. Se é obrigado a comer caça,
exige que ela possua os traços distintivos dos ungulados e que seja, assim, da mesma
espécie geral. Este é o tipo de casuística que permite aos judeus caçar antílopes, cabras e
carneiros selvagens. Tudo isto seria muito claro se o jurista autor destes livros, não tivesse
achado por bem estatuir sobre alguns casos limites. Alguns animais, como a lebre e o
damão, parecem ruminar na medida em que rangem constantemente os dentes. Mas não
tendo as patas fendidas são considerados proibidos, tal como os animais que têm as patas
fendidas mas não ruminam, como o porco e o camelo. Notemos que a única razão
apresentada pelo Velho Testamento para evitar o porco é a ausência dos dois traços
distintivos do gado. Nada é dito sobre os seus hábitos sujos nem do facto de ele comer
imundices. Como o porco não fornece leite nem couro nem lã, não existe nenhuma razão
para o cevar a não ser a sua carne. E se os israelitas não criassem o porco, não conheceriam
seus hábitos. Parece-me que originalmente não era visto como poluente, pela simples razão
de que, enquanto javali, não pertence à classe dos antílopes, no que está em pé de
igualdade com o camelo ou o damão, tal e qual como se diz no Livro.
Depois destes casos limite terem sido discutidos, os autores apresentam a lista das
diferentes criaturas segundo vivam na água, no ar ou na terra. Não estão em causa os
princípios que se aplicavam ao porco, à lebre e ao damão. Estes são impuros por terem um
mas não os dois traços característicos do gado. Não posso pronunciar-me sobre os
pássaros, pois, como vimos, não são descritos mas nomeados e a tradução dos seus nomes
levanta dúvidas. Mas, de um modo geral, apenas são puros os animais que se conformam
por inteiro à sua classe. As espécies impuras são aquelas que são membros imperfeitos da
sua classe ou cuja classe desafia o esquema geral do universo.
Para compreender este esquema precisamos de regressar ao Génesis e à Criação,
onde descobrimos uma primeira classificação de conjunto: a tripla distinção entre a terra,
as águas e o firmamento. O Levítico retoma este esquema e atribui a cada elemento os
animais adequados. Ao firmamento, as aves voadoras com duas pernas. À água, os peixes
escamosos que nadam com barbatanas. A terra, os animais de quatro patas e que saltam ou
caminham. Qualquer grupo de criaturas que não obedeça ao modo de locomoção que lhe

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é atribuído no seu elemento é contrário à santidade. O indivíduo que entre em contacto
com um destes animais, fica desautorizado a entrar no Templo. Assim, tudo o que vive na
água sem barbatanas nem escamas é impuro (XI, 10-12). O texto não menciona os
caracteres predatórios e necrófagos. Os únicos critérios de pureza num peixe são as
escamas e a sua propulsão por meio de barbatanas.
As criaturas de quatro patas que voam (XI, 20-26) são impuras. Qualquer criatura
que possua duas pernas e duas mãos mas que ande como um quadrúpede é impura (XI,
27). Segue-se um inventário (V, 29) que foi objecto de muitas discussões. A acreditar em
certas traduções, este inventário reuniria precisamente as criaturas dotadas de mãos em
lugar de patas anteriores mas que, perversas, usam as mãos para caminhar: a doninha, o
rato, o crocodilo, o musaranho, vários tipos de lagartos, o camaleão e a toupeira (H.
Danby, 1933), cujas patas anteriores se assemelham estranhamente a mãos. Mas este traço
distintivo desapareceu no texto da New Revised Standard Translation, que emprega a
palavra <<patas>> ao invés de mãos.
Os últimos animais impuros são os que se arrastam, que rastejam ou fervilham
sobre a terra. Este modo de locomoção é explicitamente oposto à santidade (Lev. XI, 41-
44). Driver e White usam o termo «fervilhação» para traduzir o hebraico shérec, que se
aplica tanto aos seres que pululam nas águas como aos que fervilham na terra. Quer se
trate de deslizar, de se arrastar, de rastejar ou de fervilhar, este movimento é sempre
indeterminado. E se as principais categorias de animais são definidas pelo seu tipo de
movimento, então a «fervilhação», movimento que não é adequado a nenhuma classe
particular, desafia a classificação de base. Os bichos que pululam ou fervilham não são
nem peixes, nem aves, nem animais de abate. As enguias e os vermes vivem na água, mas
não como os peixes; os répteis vivem na terra, mas não como os quadrúpedes; alguns
insectos voam, mas não como os pássaros. Todos estes seres não participam em nenhuma
ordem. Relembremos, a este propósito, a profecia de Habacuc:

Pois tu assimilas os homens aos peixes do mar, às coisas que rastejam e não
têm chefe. (I, V, 14)

O verme é o protótipo e o modelo das criaturas que fervilham. Tal como os peixes
pertencem ao mar, os vermes dizem respeito ao reino da sepultura, da morte e do caos.
O caso dos gafanhotos é interessante e consistente. A prova de que são puros e, por
consequência, comestíveis é dada pelo modo como se movem sobre a terra. Se rastejam
são impuros. Se saltam são puros (XI, v, 21). O leitor do Mishnah notará que a rã não está
na lista das coisas que rastejam e que não tem nada de impuro (H. Danby, p. 722). Na
minha opinião, se a rã não está incluída na lista é porque salta. Se os pinguins vivessem no
Próximo Oriente, imagino que seriam considerados impuros, como pássaros sem asas. Se
partindo desta hipótese reconstituíssemos a lista dos pássaros impuros, talvez viéssemos a
descobrir que são anómalos porque nadam e mergulham tão bem como voam ou que,
duma maneira ou doutra, não se parecem completamente com as aves.
É certo que não seria correcto afirmar que «Sereis santos» significa apenas «Estareis
à parte». Moisés queria que o povo de Israel guardasse na memória os mandamentos de
Deus:

18 Gravai, pois, profundamente em vosso coração e em vossa alma estas


minhas palavras: prendei-as às vossas mãos como um sinal, e levai-as como uma caixa
frontal diante de vossos olhos. 19 Ensinai-as aos vossos filhos, falando delas quando

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estiverdes em vossa casa, ou em viagem, quando vos deitardes ou levantardes. 20
Escreve-as nas ombreiras e nas portas de tua casa...

Se a interpretação proposta dos animais interditos estiver correcta, então as


prescrições alimentares eram como sinais que a cada momento inspiravam a meditação na
unicidade, na pureza e na plenitude de Deus. Estas regras de evitamento permitiam aos
Homens exprimir materialmente a santidade em cada encontro com o reino animal e a
cada refeição. A observância das prescrições alimentares seria, assim, uma parte
significativa do grande acto litúrgico que era o reconhecimento de Deus e a sua adoração,
acto que culminava no sacrifício no Templo.

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