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Epistemologias Feministas e Desafios na Ciência

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Revista Psicologia para America Latina, n. 36, p.

251-263, noviembre 2021 251

EPISTEMOLOGIAS FEMINISTAS, PSICOLOGIA SOCIAL E


PÓS-COLONIALISMO: APROXIMAÇÕES E DESAFIOS
Andréa Moreira Lima
Centro Universitário UNA

Resumo
O artigo apresenta o campo das epistemologias feministas, discutindo as principais críticas feministas ao modelo de ciência
tradicional. Trata-se de uma revisão bibliográfica narrativa realizada a partir do levantamento e análise de textos clássicos e con-
temporâneos sobre a temática. Inicialmente, são discutidos os impactos da parcialidade de gênero na construção e consolidação
de hipóteses e teorias científicas. Em seguida, são apresentadas contribuições advindas da psicologia social crítica feminista e
das perspectivas pós-colonialistas na interpretação da produção do conhecimento científico, destacando iniciativas políticas e
acadêmicas para a ampliação da participação e da representatividade das mulheres na ciência, com foco no contexto latino-
-americano. Apesar dos desafios ainda existentes para a superação da desproporcionalidade de gênero na ciência, as perspectivas
feministas têm favorecido o alargamento gradativo da representatividade das mulheres na produção científica, contribuindo para
o enfrentamento das desigualdades de gênero em todas as suas amplitudes.
Palavras-chave: epistemologias feministas; gênero; feminismos; psicologia social; pós-colonialismo.

Feminist Epistemologies, Social Psychology


and Postcolonialism: Approaches and Challenges

Abstract
The text presents the field of feminist epistemologies, discussing the main feminist critiques of traditional science model. It is
a narrative bibliographical review based on the collection and analysis of classical and contemporary texts on the subject. / It is
a narrative review based on the collection and analysis of classical and contemporary texts on the subject. Initially, the impacts
of gender bias in the construction and consolidation of scientific hypotheses and theories are discussed. Next, the contribu-
tions of critical feminist social psychology and post-colonial studies in the interpretation of scientific knowledge are analysed,
presenting political and academic initiatives to broaden the participation and representation of women in science, focusing on
Latin American context. Despite the challenges still remaining in overcoming gender disproportionality in science, feminist per-
spectives have favoured a gradual expansion of women representation in scientific production, contributing to tackling gender
inequality in all its dimensions.
Keywords: feminist epistemologies; gender; feminisms; social psychology; postcolonialism.

Epistemologías Feministas, Psicología Social


y Poscolonialismo: Enfoques y Desafíos

Resumen
El texto presenta el campo de las epistemologías feministas, discutiendo las principales críticas feministas al modelo de la ciencia
tradicional. Se trata de una revisión de literatura realizada a partir de la recopilación y análisis de textos clásicos y contemporá-
neos sobre la temática. Inicialmente, son discutidos los impactos de la parcialidad de género en la construcción y consolidación
de hipótesis y teorías científicas. A continuación, se realizan los análisis de las contribuciones de la psicología social feminista
e de la teoría poscolonial en la interpretación de la producción del conocimiento científico, presentando iniciativas políticas y
académicas para la ampliación de la participación y de la representatividad de las mujeres en la ciencia, mirando en contexto
latinoamericano. Pese a los desafíos que aún existen para la superación de la desigualdad de género en la ciencia, las perspectivas
feministas han favorecido el agrandamiento gradual de la representatividad de las mujeres en la producción científica, contribu-
yendo de esta manera para el enfrentamiento de las desigualdades de género en todas sus amplitudes.
Palabras clave: epistemologías feministas; género; feminismos; psicología social; poscolonialismo.
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Introdução quais nem sempre podem ser interpretados como uni-


versais ou empiricamente justificáveis.
Em certa medida, as formulações de Kuhn abriram
A epistemologia pode ser definida como o estudo caminho para o desenvolvimento das epistemologias
do conhecimento. Em uma acepção mais restrita e con- feministas. As análises por ele realizadas mostraram que
temporânea, o termo designa o estudo dos princípios existem fatores históricos e sociais, internos à própria
e das características da ciência (Steup, 2018). Dessa ciência, que devem ser considerados nas análises episte-
forma, a expressão “epistemologia feminista” se refere mológicas da ciência. As epistemólogas feministas, por
a uma perspectiva que analisa a ciência a partir de mar- sua vez, expandiram essa análise, apresentando argu-
cadores sociais, com foco na influência das questões de mentos sobre a existência de fatores históricos e sociais
gênero na produção científica. que, externos à própria ciência, influenciam a produção
A filosofia da ciência, ao longo da primeira metade do saber (Longino, 2003; Bandeira, 2008).
do século XX, esteve dominada por escolas que ten- Sendo assim, uma análise crítica da produção
taram compreender a ciência estritamente a partir dos científica necessita de uma abertura para a problemati-
seus aspectos metodológicos. Os positivistas lógicos,
zação das influências de marcadores sociais na ciência.
por exemplo, interessados na demarcação entre ciência
A partir dessa perspectiva, o presente artigo analisa
e não ciência (metafísica), compreenderam as teorias
o campo das epistemologias feministas, destacando
científicas como conjuntos de enunciados que podem
as principais críticas feministas à ciência para, então,
ser verificados ou confirmados pela observação empí-
articular o campo das epistemologias feministas às
rica (Ayer, 1975).
contribuições da psicologia social crítica feminista e
Crítico aos positivistas, Karl Popper defendeu
das teorias pós-colonialistas na análise da produção do
que o caráter científico de uma teoria repousa não na
conhecimento científico.
possibilidade de verificação de seus enunciados, mas
na sua possibilidade de produzir hipóteses que podem
ser testadas e que, portanto, sejam passíveis de refuta-
Método
ção, caso incorretas (Popper, 2013). Embora se tratem
de projetos epistemológicos distintos, esses dois
modelos compreenderam a ciência a partir de uma O presente artigo trata-se de uma revisão biblio-
perspectiva internalista: isto é, ambos postulavam que o gráfica narrativa, realizada a partir do levantamento e
conhecimento científico é alcançado a partir da apli- análise de textos científicos clássicos e contemporâneos
cação de um método de características supostamente sobre as epistemologias feministas, a psicologia social
únicas e universais. crítica feministas e as teorias pós-coloniais.
Em contraponto, Thomas Kuhn compreendeu a A revisão de literatura narrativa é um tipo de
ciência a partir de uma perspectiva externalista, analisando revisão ampla apropriada para apresentar o “estado da
as condições históricas da produção científica (Oliva, arte” de um determinado assunto (Brum et al., 2015),
2003). Kuhn (1997) identificou que não existe um realizada a partir da análise de livros, artigos científicos
método científico único que, ao ser aplicado, garanti- e demais documentos. A revisão narrativa é também
ria a concessão do rótulo de ciência ao conhecimento conhecida como “revisão crítica” (Noronha & Ferreira,
produzido. Em suas pesquisas sobre as Revoluções 2000), pelo fato de depender do julgamento de valor do
Científicas ocorridas ao longo da história de diversas autor sobre a relevância dos trabalhos selecionados para
disciplinas, Kuhn destacou que a adesão a uma nova a análise (Rother, 2007); sendo assim, por seu caráter
teoria não depende, somente, do fato da teoria ter sido qualitativo, não tem objetivo de permitir a reprodução
formulada ou confirmada a partir da aplicação de um sistemática dos seus resultados.
determinado conjunto de regras científicas. A adoção No processo de seleção das fontes de pesquisa,
de uma teoria depende, também, dos valores que per- foram identificados trabalhos clássicos e contemporâ-
meiam e orientam uma dada comunidade científica, os neos que permitissem responder às seguintes perguntas:

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1) Quais são as críticas das epistemologias feministas da antropologia no estudo de fósseis de hominídeos,
às epistemologias ditas tradicionais? 2) Qual é a impor- visando a reconstrução da história do desenvolvimento
tância do debate acerca das epistemologias feministas da espécie humana (Zihlman, 1981).
para o campo da psicologia social crítica feminista? 3) No seu início, os estudos produzidos por essa dis-
Como as teorias pós-coloniais podem contribuir para ciplina destacavam que o bipedalismo – a postura ereta
situar o debate acerca das epistemologias feministas no dos seres humanos, única entre os hominídeos atuais
contexto latino-americano? –, o desenvolvimento da linguagem e o uso de instru-
Os resultados das análises dos textos foram sis- mentos de pedra teriam sido desenvolvidos a partir
tematizados em sessões específicas, considerando as das exigências da caça, entendida como uma prática de
perguntas que nortearam a busca e identificação dos responsabilidade dos homens. Desse modo, as teorias
artigos. Nos resultados da pesquisa, são apresentadas sugeriam a importância e predominância do papel social
críticas feministas à concepção tradicional de ciência, dos primeiros hominídeos homens no desenvolvimento
apresentando e discutindo exemplos clássicos da crí- das características marcantes da espécie humana, há
tica feminista à ciência. Em seguida, na discussão, são mais de três milhões de anos (Zihlman, 1981).
levantadas algumas das consequências da desproporção Com a entrada de mulheres nessa ciência, sur-
de homens e mulheres na ciência, algo que repercute giram teorias alternativas, como a teoria da mulher
na inferiorização da figura das mulheres nestes espa- coletora. As novas pesquisadoras desse campo argu-
ços. Posteriormente, discute-se as aproximações entre mentaram que a prática da colheita exigiu a ampliação
a psicologia social crítica feminista e as epistemologias da cooperação social e, com isso, o desenvolvimento da
feministas, situando o debate no contexto latino-ameri- linguagem, a criação e o uso de ferramentas de pedra,
cano a partir das teorias feministas pós-coloniais. gerando maior necessidade de utilização das mãos, algo
que teria propiciado o desenvolvimento do bipedalismo
(French, 2007).
Resultados Dessa maneira, as práticas sociais das primeiras
hominídeas mulheres teriam sido mais importantes
para o desenvolvimento das características marcantes
Uma crítica feminista à interpretação da espécie humana: pois, enquanto o sucesso na caça
tradicional da ciência exigiria o silêncio e o isolamento, a técnica da colheita
Em geral, as epistemólogas feministas concor- exigia a interação e a comunicação. Ou seja, a inserção
dam que o conteúdo das hipóteses científicas pode de mulheres na paleantropologia culminou na produ-
ser influenciado pela proporção de homens e mulhe- ção de novas hipóteses acerca da história da espécie
res na ciência. Ou seja, essas teóricas entendem que a humana. Segundo argumentam as epistemólogas
existência de mais pesquisadores homens do que pes- feministas, essas novas hipóteses não surgiram alea-
quisadoras mulheres altera a escolha dos problemas que toriamente, mas eram o resultado direto do aumento
são considerados como cientificamente relevantes e, do número de mulheres na comunidade científica,
também, a descrição e a explicação desses fenômenos. demonstrando como a desproporção entre homens
Essa posição contraria a concepção clássica segundo e mulheres na ciência pode culminar no desenvolvi-
a qual os atributos pessoais do(a) pesquisador(a) não mento de hipóteses científicas divergentes e parciais
influenciam a produção ou os resultados da pesquisa (Longino, 1990).
(French, 2007). A apresentação supracitada não objetiva chegar a
A argumentação de que a proporção de homens uma conclusão sobre qual dessas teorias – a do homem
e mulheres afeta o conteúdo das hipóteses científicas caçador ou a da mulher coletora – é a correta. O exem-
pode ser exemplificada por dois casos clássicos, oriun- plo e a discussão mostram que há uma correlação
dos de disciplinas científicas distintas. O primeiro, entre a proporção de mulheres e homens na ciência e
extraído da paleoantropologia, um campo de saber o que se produz de hipóteses e interpretações cientí-
científico que articula as disciplinas da paleontologia e ficas a partir dessa (des)proporcionalidade. Ou seja, o

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exemplo sinaliza que a disparidade de gênero na ciên- Discussão


cia pode resultar no surgimento e na consolidação de
vieses. Nessa direção, Longino (1990) afirma que a
proporcionalidade entre homens e mulheres serviria Consequências recentes da parcialidade de
à produção de uma ciência mais objetiva e, ao mesmo gênero na ciência
tempo, mais comprometida com a eliminação de vieses Grande parte das pesquisadoras epistemólo-
interpretativos. gas argumentaram que o conhecimento não pode
O segundo exemplo de desproporcionalidade de ser dissociado do tempo e lugar de sua produção
gênero na ciência diz respeito ao desenvolvimento da (Harding, 1987, 1993; Haraway, 1988; Keller, 1984;
primatologia, disciplina que estuda a ordem dos pri- Longino, 1999). Dessa forma, argumentavam que as
matas, tais como gorilas, orangotangos e chipanzés. hierarquias de gênero – representada na dominação
Entre as décadas de 1930 e 1950, os primatologistas masculina e na subalternidade feminina – têm influên-
identificaram uma grande diferença entre o compor- cias diretas na forma como a ciência é construída e
tamento sexual de machos gorilas e de fêmeas gorilas, organizada. Os estudos dessas pesquisadoras aponta-
apontando o domínio dos machos e a subserviência vam, por exemplo, a existência de um silenciamento
das fêmeas. Os estudos, desenvolvidos por cientistas das vozes femininas e uma ausência e/ou invisibilidade
homens, destacavam que os machos primatas apre- das mulheres nas pesquisas, algo que permitiu questio-
sentavam maior variedade no comportamento sexual, nar os princípios tradicionais da ciência: a objetividade
mantendo relações sexuais com muitas fêmeas, ao passo e a universalidade.
que estas, submissas, apresentavam pouca variabilidade Conforme destacam essas autoras, há diferenças
de parceiros sexuais e eram seduzidas, justamente, pelo históricas entre o papel social da mulher e do homem
comportamento agressivo e dominador dos machos na ciência, e os estudos de gênero mostram como essas
(French, 2007). diferenças conduzem ao desenvolvimento de pesquisas
A partir da década de 1970, com o aumento do que desconsideram o gênero feminino. Tal parcialidade
número de mulheres na primatologia, as hipóteses se de gênero pode ser exemplificada: 1) pela a diferença
modificaram substancialmente. Novas observações da proporção de homens e mulheres na ciência; 2)
passaram a sugerir que o comportamento sexual das pelos problemas que são priorizados pela comunidade
fêmeas primatas não era tão homogêneo quanto havia científica; e 3) pela condução da investigação cientí-
sido descrito. Quer dizer, as cientistas descreveram que fica (Keller, 1984). A seguir, serão discutidos alguns
os comportamentos das fêmeas primatas também apre- exemplos atuais que destacam essas três formas de par-
sentavam variabilidade, embora fossem variações mais cialidade de gênero na ciência.
sutis, por exemplo, na construção de estratégias para No campo da área da saúde sexual e reprodu-
determinar o macho dominante do grupo, o que mos- tiva, por exemplo, as pesquisas sobre medicamentos
trava que as fêmeas eram tão ativas quanto os machos para contracepção têm contribuído para que o planeja-
na definição de um grupo. Contudo, os pesquisadores mento familiar seja considerado como responsabilidade
homens, imersos em uma visão social distorcida acerca exclusiva da mulher. Dos diversos métodos contra-
dos papeis de gênero, não perceberam adequadamente ceptivos existentes, apenas três são destinados ao uso
esse fenômeno (Haraway, 1989). Como se nota, as masculino: o preservativo, a vasectomia e coito inter-
mudanças de hipóteses postuladas na primatologia tam- rompido. Enquanto a pílula anticoncepcional feminina
bém estavam relacionadas ao aumento do número de é comercializada desde o início dos anos 1960, uma
mulheres na comunidade científica. pílula contraceptiva masculina foi desenvolvida apenas
Posteriormente, outras pesquisadoras feministas a partir de 2006 e, mesmo assim, ainda não se encontra
apresentaram e discutiram novas influências da despro- disponível no mercado. Ou seja, quando as pesquisas
porcionalidade de gênero na ciência. Em síntese, elas na área da sexualidade e reprodução se referem à res-
questionaram o lugar de invisibilidade social da mulher ponsabilização, as pesquisas têm como foco o público
na ciência, conforme será discutido a seguir. feminino; entretanto, quando as pesquisas se referem

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a questões relativas ao desejo ou ao prazer sexual, elas Mulher e ciência: contribuições de uma
têm o público masculino como foco prioritário – afinal, psicologia social crítica feminista
desde 1998 são comercializados medicamentos para o As mulheres continuam sub-representadas na
tratamento de disfunções sexuais masculinas, ao passo ciência, representando apenas 28% do total de cien-
que apenas em 2015 foi desenvolvido um medicamento tistas do mundo, com pequenas variações a depender
similar para mulheres, cuja comercialização ainda não do país observado (Organização das Nações Unidas
foi aprovada. para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2017, p. 10).
Um exemplo adicional é o fato de que grande Além disso, apenas um em cada cinco países alcançou
parte das pesquisas médicas e farmacêuticas, princi- a paridade de gênero no âmbito científico. Na maioria
palmente aquelas realizadas em laboratório, possuem dos países, as mulheres estão concentradas nas ciências
o sexo masculino como único padrão para seus
humanas e sociais, principalmente nas áreas relativas ao
estudos. Até a década de 1990, as mulheres eram
cuidado, como psicologia, pedagogia e enfermagem,
desconsideradas em 80% dos testes de medicamentos
permanecendo sub-representadas nas ciências exatas,
para hipertensão, embora elas fossem igualmente
em carreiras de engenharia e tecnologia.
acometidas por este problema. Por isso, as pesquisa-
Pesquisas atuais têm corroborado o fato de que o
doras feministas denunciaram que os resultados dos
viés de gênero impossibilita as mulheres a alcançarem
testes não poderiam ser generalizados para as pacien-
uma posição melhor nas universidades. Moss-Racusin
tes femininas, o que resultou no questionamento da
et. al. (2012) realizaram um estudo com 127 professo-
validade de muitos estudos sobre medicamentos car-
res(as) de Biologia, Química e Física recrutados em seis
diovasculares, inclusive, pelas próprias agências de
universidades pertencentes a três diferentes regiões
saúde (French, 2007).
geográficas dos Estados Unidos, todas classificadas
Na área da Psicologia, essa parcialidade de gênero
como grandes universidades de pesquisa. Os(as) pro-
pode ser constatada nos experimentos realizados com
animais: geralmente, utilizam-se animais machos nas fessores(as) submetidos ao estudo foram solicitados a
pesquisas. O argumento para essa escolha é a exis- avaliarem candidatos(as) para um cargo de gerente de
tência de uma maior variação hormonal nas fêmeas, laboratório. Os(as) docentes acreditavam que estavam
durante o ciclo menstrual, o que resultaria em com- avaliando um(a) aluno(a) real e precisavam fornecer
portamentos mais instáveis. Ou seja, a experimentação um feedback sobre as credenciais curriculares destes(as)
com animais machos é uma escolha pautada pela sim- estudantes. Contudo, o currículo apresentado para a
plificação do objeto de estudo (Shansky, 2019). Nessa avaliação dos(as) professores(as) era o mesmo, com
lógica, o macho se torna a norma e a fêmea um desvio exceção do gênero. Metade dos(as) professores(as)
da norma. Porém, se os organismos das fêmeas são recebeu aleatoriamente o currículo com um nome
mais complexos, devido a uma maior variação hor- masculino (John), enquanto a outra metade recebeu
monal, por que não estudar o organismo das fêmeas aleatoriamente um currículo com um nome femi-
e, depois, extrapolar os resultados para organismos nino (Jennifer). Os aspectos avaliados nos currículos
ditos mais estáveis, nesse caso, os machos? Estabelecer foram a competência do(a) estudante e a probabilidade
como foco um organismo mais “estável” pode, na ver- de o(a) contratarem para o cargo; além disso, os(as)
dade, prejudicar o entendimento científico acerca da professores(as) deveriam estabelecer um salário inicial
amplitude e da complexidade do objeto de estudo da para o(a) candidato(a).
Psicologia, a subjetividade. Os resultados mostraram que os(as) professo-
Os casos mencionados demonstram que, muitas res(as) consideraram as estudantes com nome feminino
vezes, normas que são preconizadas como exemplos como menos competentes e qualificadas do que os estu-
de rigor e objetividade revelam, na verdade, as prefe- dantes com o nome masculino, apesar das competências
rências de uma tradição. Nesse caso, uma tradição que curriculares serem idênticas. Os(as) professores(as)
desconsidera o gênero feminino e reproduz uma hierar- também ofereceram às estudantes do gênero feminino
quização entre homens e mulheres na ciência. um salário anual médio significativamente menor do

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que aquele ofertado aos candidatos com nome mascu- científicas opressoras que têm gerado a subalternização
lino (Moss-Racusin et. al., 2012). e a estigmatização das mulheres cientistas, propondo
Além disso, embora os professores de ambos os análises historiográficas que reconstruam a história do
sexos tenham relatado gostar mais da candidata do sexo reconhecimento e visibilidade da mulher ao longo da
feminino, esse fator não teve influência sobre a percep- história da ciência para o rompimento do mito de que
ção da competência da candidata, o que mostra que as mulheres não possuem competência cognitiva como
os(as) docentes foram influenciados(as) por estereó- os homens.
tipos culturais sobre a falta de competência científica Diversas pesquisas sobre gênero, como aquelas
das mulheres1 (Moss-Racusin et. al., 2012). Ou seja, a realizadas pela Organização Internacional do Trabalho
pesquisa mostrou que, nas universidades pesquisadas, – OIT (Oelz, Olney & Tomei, 2013) ou pelo Instituto
existem tendências sutis contra estudantes do sexo Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2012),
feminino, o que pode contribuir para a sub-representa- apontam a existência de desigualdades de gênero no
ção das mulheres na ciência, particularmente nos níveis mercado de trabalho, no Brasil. Segundo o IBGE
mais elevados. (2012), os salários das mulheres brasileiras permanecem
Uma pesquisa realizada pela National Academies 28% inferiores aos dos homens. Tal realidade é repro-
of Sciences, Engineering, and Medicine (2018) destacou duzida, também, nas áreas profissionais relacionadas ao
que a maioria das mulheres que estudam ou lecionam cuidado, por exemplo, na Psicologia.
nas áreas de Ciências, Engenharia e Medicina já foram Dados publicados pelo Conselho Federal de Psi-
cologia (CFP), em 2013, e pelo Conselho Regional
submetidas a situações de assédio sexual ou traba-
de Psicologia de Minas Gerais (CRP/MG), em 2015,
lhista. Devido a tais violações de direitos, a UNESCO
apontam que 89% dos profissionais da psicologia, no
e a ONU Mulheres estabeleceram o “Dia Internacional
país, são mulheres. Contudo, com relação à atuação
das Mulheres e Meninas na Ciência”, no dia 11 de feve-
no ensino superior, nos cursos de graduação em Psi-
reiro, para dar visibilidade ao fato de que as mulheres
cologia, a situação se inverte. No universo pesquisado
sofrem diversos obstáculos ao longo de suas trajetórias
pelo CFP, 8,2% dos homens indicam ter como princi-
educacionais na ciência, por exemplo: os estereótipos
pal local de atuação a Universidade, enquanto apenas
impostos pela sociedade, frequentemente reproduzi-
4,37% das mulheres psicólogas relatam ocupar esse
dos no contexto escolar; as dificuldades para lidar com
espaço (Yamamoto, Oliveira & Costa, 2013). Assim,
a dupla jornada de trabalho, isto é, para conciliar os embora as mulheres não estejam sub-representadas
estudos e/ou a atividade profissional com as responsa- nesse universo, sendo numericamente a maioria dos
bilidades relativas ao cuidado da casa e da família; e os profissionais universitários em Psicologia, a diferença
preconceitos enfrentados ao escolherem determinados da proporcionalidade entre homens e mulheres que
campos de estudo e atuação. atuam na área científica é menor do que a existente nos
Ainda com relação à falta de reconhecimento e outros segmentos da Psicologia, o que corrobora a esta-
visibilidade das mulheres que atuam na ciência, é rele- tística de que quanto mais prestigioso o cargo, menor a
vante ressaltar que a invisibilidade da mulher possui participação feminina (Lima, 2020).
uma dimensão política e historiográfica. Há uma ten- Além disso, as psicólogas brasileiras enfrentam
tativa de sustentar a crença de que as mulheres sempre problemas relacionados ao trabalho e à sua remuneração
estiveram ausentes na ciência, mesmo com todas as evi- desigual e, também, com relação à desigual distribui-
dências de suas contribuições ao longo da história (Lino ção do cuidado com os filhos e do trabalho doméstico,
& Mayorga, 2016). Por isso, conforme ressalta Rago não se distinguindo, portanto, “das mulheres com as
(1998), é necessário investigar as origens das práticas quais, como profissionais da psicologia, atendem, inte-
ragem ou, de alguma forma, têm contato” (Lhullier &
1
Em um estudo similar, psicólogos se mostraram mais propen- Roslindo, 2013, p. 49). Por isso, a importância de dis-
sos a contratarem um candidato a emprego para uma Faculdade de
Psicologia quando o currículo do(a) candidato(a) tinha um nome cutir, para além das mulheres cientistas, também sobre
masculino, em vez de feminino (Steinpreis, Anders, & Ritzke, 1999). as mulheres psicólogas inseridas nas diversas áreas de

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atuação da Psicologia, em suas interseccionalidades o pensamento descolonial é um movimento de


de raça/etnia, orientação sexual e demais marcadores rompimento com o colonialismo, isto é, uma ruptura
sociais de desigualdades, visando a estruturação de polí- para com as normas e valores herdados do processo de
ticas de valorização do trabalho feminino, em toda a sua colonização de nações e povos. O “pensamento deco-
diversidade. lonial”, em contraponto, ressalta uma permanência,
Na atualidade, os encontros entre as epistemolo- mesmo que sutil, de aspectos colonizadores nas rela-
gias feministas e a Psicologia social tem cada vez mais ções humanas e instituições sociais, os quais necessitam
contribuído para construção de uma perspectiva crítica serem destacados, problematizados e superados2.
sobre a ciência psicológica (Lima et al., 2019). No Bra-
sil, tais mudanças podem ser localizadas desde a crise Ao pensar a partir das margens, o trabalho dos
da Psicologia Social na década de 1970, influencia- pesquisadores na tradução cultural, ou transcul-
das, também, pelas mudanças de paradigma científico tural, atravessam fronteiras, ao estabelecer uma
no âmbito internacional. Conforme Borges (2014), a crítica em relação à imposição de hierarquias, pre-
Psicologia Social Crítica foi construída a partir da insa- sumidamente universais e essencializantes, que
tisfação com a ciência tradicional, por meio de teorias excluem determinados grupos sociais, estigmati-
e metodologias críticas que permitiram pensar a psi- zados e marcados simbolicamente e socialmente
cologia de forma reflexiva, sobre a produção de seus como inferiores. Desde o século XVI, os colo-
conhecimentos e impactos na sociedade, buscando, nizadores impuseram essa maneira de pensar,
assim, uma ciência comprometida com a mudança
utilizando o poder religioso e militar, assim como
social em prol da equidade de gênero, sexualidade, raça,
outras formas de exploração que perduram na
classe e demais marcadores sociais que atravessam os
contemporaneidade, símbolo da dominação do
modos de subjetivação.
Ocidente sobre o resto do mundo (Jardim &
Assim, a partir do momento em que as psicólogas
Cavas, 2017, p. 89).
sociais, juntamente com as epistemólogas feministas,
colocaram como pauta prioritária a desconstrução do
No presente estudo, o termo “pensamento pós-
viés androcêntrico e da lógica patriarcal ainda vigente
-colonial” é utilizado para demarcar as influências das
na psicologia tradicional, seja pela ausência e/ou invisi-
perspectivas de pensamento que defendem o rompi-
bilidade das mulheres psicólogas nos espaços de poder,
mento para com as práticas e os saberes colonizadores,
seja pela forma periférica de tratamento das teorias
feministas na área, começou-se a abrir caminho para independentemente das especificidades destas perspec-
uma Psicologia Social Crítica feminista (Nogueira & tivas. Por isso, mais do que diferenciar tais conceitos,
Neves, 2004). importa compreender como o pensamento pós-colo-
nial contribui para o desenvolvimento das chamadas
Epistemologias do Sul (Fanon, 2010; M. Santos, 2006;
Contribuições do feminismo pós-colonial para B. Santos, Menezes & Nunes, 2005; B. Santos, 2009;
a produção do conhecimento científico Quijano, 2009; Nunes, 2009; Spivak, 2010) e, con-
As epistemologias feministas têm se desenvolvido,
sequentemente, para os avanços das epistemologias
também, a partir da aproximação e articulação com o
pensamento pós-colonial. Ou seja, para além das pro- 2
O debate sobre o pensamento decolonial teve origem a
blematizações acerca da epistemologia tradicional, essas partir de estudos que davam maior destaque para as expe-
perspectivas têm questionado as epistemologias domi- riências e saberes produzidos na América Latina, ainda tão
nantes produzidas no hemisfério Norte global. inferiorizados frente ao eurocentrismo e às influências do
pensamento pós-estrutural e pós-moderno. Tais estudos
Os termos “pensamento descolonial”, “pen-
foram impulsionados por intelectuais latino-americanos que
samento decolonial” e “pensamento pós-colonial” se articularam em torno de pesquisas que problematizavam
têm sido utilizados ora como sinônimos, ora demar- a permanência de aspectos do pensamento colonial em dife-
cando especificidades analíticas. Para Ballestrin (2013), rentes níveis da vida pessoal e coletiva (Balestrin, 2013).

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feministas pós-coloniais (Anzaldua, 2004; Ballestrin, Walsh (2009) problematiza a postura moderna
2013, 2017; Curiel, 2009; Segato, 2012; Walsh, 2009). de colonialidade que insiste em manter o conheci-
De forma geral, o pensamento pós-colonial mento científico hegemonicamente masculino, branco,
é um processo de luta contínua pela produção de europeu ou norte-americano como os únicos saberes
construções alternativas de saber. Trata-se de uma esco- legítimos e capazes de produzir verdades sobre a vida
lha teórico-política de rompimento com os conteúdos humana. A autora ressalta que essa lógica esteve pre-
epistemológicos que contribuem para construção de sente no processo dominante da globalização por meio
instituições e relações sociais de opressões, por meio da ilusão da construção de um mundo homogêneo em
de marcadores sociais ou pelas configurações geopo- direção ao progresso. Por isso, compreender os femi-
líticas ainda tão desiguais. Nesse sentido, Walsh (2009) nismos pós-coloniais, ainda tão pouco visibilizados no
destaca a importância de sustentar um posicionamento Brasil, significa dar reconhecimento à produção de teo-
contínuo de transgressão dos saberes hegemônicos rias e de práticas de mulheres periféricas do mundo.
ultrapassados e da insurgência de novos saberes que Lugones (2014) afirma que descolonizar o gênero
ampliem a representatividade das diversas vozes que significa compreender a opressão de mulheres subal-
têm produzido saberes. Contudo, Ballestrin (2013) ternizadas pelo atravessamento dos marcadores sociais
adverte que o pensamento pós-colonial não deve ser de colonização, racialização, exploração capitalista
interpretado como uma recusa ao saber produzido no e heterossexualismo. Dessa forma, à medida que são
Norte global, mas como a sua ampliação: desconstruídas as lógicas de opressões, também são
desconstruídos os modos de subjetivação e de inter-
O processo de decolonização não deve ser subjetividades que agenciam as mulheres colonizadas.
confundido com a rejeição da criação humana Contudo, algumas autoras questionam até que ponto a
realizada pelo Norte Global e associado com produção acadêmica feminista tem conseguido, de fato,
aquilo que seria genuinamente criado no Sul [...]. produzir ontologias pós-coloniais apropriadas às dife-
Ele pode ser lido como contraponto e resposta
rentes vozes acadêmicas, tornando as mulheres sujeito
à tendência histórica da divisão de trabalho no
e não apenas objeto da fala. Ou seja, em que medida
os saberes produzidos pelas mulheres têm conseguido
âmbito das ciências sociais (Alatas, 2003), na
descolonizar o próprio feminismo, ampliando a luta em
qual o Sul Global fornece experiências, enquanto
prol da pluralidade das mulheres?
o Norte Global as teoriza e as aplica [...]. Essa
Segundo essas teóricas, os avanços dos movimen-
busca tem informado um conjunto de elabora-
tos feministas devem ser uma estratégia permanente
ções denominadas Teorias e Epistemologias do
para o efetivo enfrentamento das relações de poder-
Sul (Ballestrin, 2013, p. 108-9).
-saber que deslegitimam determinadas experiências
– sobretudo as experiências das mulheres periféricas,
Resende (2014) esclarece que o pensamento pós-
isto é, aquelas perpassadas por diversos marcadores de
-colonial é um processo de superação histórica do
opressão social (Anzaldua, 2005; Curiel, 2007, 2009;
colonialismo, uma continuidade das lutas anticoloniais
Mayorga, Coura, Miralles, & Cunha, 2013; Wittig, 2006).
que resultaram na independência política das antigas
A partir das contribuições do pensamento pós-
colônias. Esse pensamento supõe uma subversão do
-colonial é possível pensar nas estratégias feministas
padrão de poder colonial, em uma tarefa de descons-
para a construção de saberes que tenham como ponto
trução e reconstrução de outras formas de poder e
de partida não apenas o rompimento com a parciali-
conhecimento. Portanto, o que está em questão não é dade de gênero, mas também o rompimento com a
a desvalorização do conhecimento já produzido, mas a parcialidade de raça/etnia, classe, orientação sexual,
tentativa e o cuidado de dar visibilidade às contribuições territorialidade, entre outros3. De acordo com Matos
teóricas e práticas produzidas nas periferias do mundo
acadêmico, sobretudo pelas mulheres – ampliando, 3
O feminismo descolonial ou, ainda, feminismos do sul,
com isso, a representatividade nas ciências e profissões. tem sido defendido por acadêmicas feministas aliadas aos

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(2010), a proposta de construção de uma teoria polí- incentivando tanto as meninas quanto os meninos a se
tica feminista a partir do Sul global está baseada no inserirem nos espaços de poder e de participação social,
reconhecimento de uma “quarta onda” dos movimen- âmbitos privilegiados para a formação do empodera-
tos e estudos feministas na América Latina, em um mento e da ampliação das representatividades.
movimento de reconhecimento de um “feminismo
difuso” que engloba de forma horizontal diversos
feminismos, como o negro, o acadêmico, o lésbico, o Considerações Finais
masculino etc.
Algumas atividades de visibilidade da mulher na
O presente estudo realizou uma exposição crítica
ciência brasileira têm sido realizadas, em diversas uni-
das epistemologias feministas, tanto do ponto de vista
versidades do Brasil, protagonizadas por estudantes e
das suas questões centrais quanto das especificidades
pesquisadoras. Tais ações podem ser analisadas a par-
do contexto latino-americano – mais especificamente,
tir das pesquisas realizadas por Bandeira (2008) e Rago
o brasileiro. Para tal, foram destacadas evidências cien-
(1998), as quais apontam atividades semelhantes como
tíficas e reflexões teórico-políticas que denunciam
estratégias para ampliar as possibilidades do fazer cien-
a desproporcionalidade de gênero na ciência e seus
tífico, sempre articulado aos processos socioculturais
impactos na produção do conhecimento.
existentes – no caso, processos ainda permeados polí-
A pesquisa culminou na problematização da rela-
tica e simbolicamente pela presença masculina.
ção de saber-poder desigual entre os países do Norte e
As estratégias de efetivação de uma epistemologia
do Sul global, especificamente, na produção da ciência.
feminista pós-colonial não se referem apenas ao âmbito
Foi apontada a importância do reconhecimento dos
universitário. Bolzani (2017) destaca a relevância da
aportes produzidos pelas pesquisadoras feministas, as
construção de projetos governamentais que incentivem
quais têm dado visibilidade aos saberes pós-coloniais
as crianças e as adolescentes a se inserirem no mundo
para a compreensão da complexidade humana e de
científico. Nesse sentido, entende-se que a escola tem
suas relações.
um papel fundamental para a desconstrução de uma
A conquista de um espaço verdadeiramente
cultura que educa as meninas reproduzindo valores
democrático na agenda acadêmica ainda é um grande
relativos à passividade e ao cuidado como inerentes ao
desafio, devido à ausência de um lugar social efetivo
gênero feminino, enquanto os meninos são incentiva-
para produções científicas voltadas para uma pers-
dos à competição e ao desenvolvimento do raciocínio
pectiva feminista que discuta as hierarquias patriarcais
lógico-abstrato.
articuladas ao modo de fazer ciência. Contudo, grada-
Por isso, para a superação desse modelo sexista de
tivamente, as perspectivas feministas têm favorecido
educação, faz-se importante o desenvolvimento de pro-
a ampliação da representatividade da produção cientí-
jetos político-pedagógicos que despertem nas crianças e
fica, no contexto latino-americano, contribuindo para
adolescentes – independentemente do gênero – a curio-
o enfrentamento das desigualdades de gênero em todas
sidade pelo universo do saber e da ciência. Além disso,
as suas amplitudes. Nesse sentido, a Psicologia Social
no contexto social mais amplo, é preciso romper com
Crítica, na sua perspectiva feminista, tem se mostrado
a divisão sexista do trabalho e das relações humanas,
como um arcabouço teórico-metodológico propício a
movimentos e lutas das mulheres. Porém, os feminismos ocupar o lugar de uma ciência que é produzida por e
latino-americanos são plurais e independem das teorizações para todas as pessoas.
acadêmicas. As experiências vivenciadas pelas mulheres da Desconstruir as opressões impostas às vozes
América Latina, Centro-América e Caribe não são idênticas. subalternizadas das mulheres pesquisadoras pode ser
Ainda assim, é possível destacar semelhanças nas desigualda-
o caminho para avançar nos processos de descoloni-
des e injustiças historicamente perpetuadas pelas estruturas
políticas, sociais, culturais e econômicas, as quais permitem zação dos saberes e poderes hegemônicos. Para tal,
refletir sobre as múltiplas identidades, necessidades, reivindi- torna-se necessário questionar as percepções e ideo-
cações e interesses feministas (Matos, 2010). logias preconceituosas que dificultam a participação

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Sobre a autora:

Andréa Moreira Lima


Psicóloga pelo Centro Universitário Newton Paiva. Mestra e Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal
de Minas Gerais, com estágio de doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal.
Integrante da Diretoria Ampliada da Associação Brasileira de Psicologia Social – ABRAPSO Regional Minas Gerais.
Professora do Centro Universitário UNA, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3629-2856
E-mail: [email protected]

Contato com a autora:

Rua Geraldo Menezes Soares, 624 – Apt. 501, Bairro Sagrada Família
Belo Horizonte-MG, Brasil
CEP: 31030-440
Telefone: +55 (31) 9 9199-8222

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