Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 212
20 de julho de 2013
[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.
Boa noite a todos, sejam bem-vindos.
Temos aqui a continuação do texto [do livro] de Jean Brun, Filosofia e
Cristianismo1, que ainda vai nos ocupar por pelo menos mais duas aulas, creio
eu. Então vamos lê-lo e comentá-lo. Eu repeti a última sentença do fascículo
anterior.
“Estamos portanto aqui em presença de teorias da salvação pelo conhecimento,
idéia que se reencontra no coração da gnose. Nada é mais claro, a esse
respeito, do que o apócrifo Evangelho segundo Tomás, onde se pode ler: ‘O
Reino está dentro de vós e fora de vós. Quando conhecerdes, então sereis
conhecidos e sabereis que sois vós o filho do Pai-Vivente; mas, se vos acontece
de não vos conhecerdes, então estais na pobreza e sois vós a pobreza.’ 2”
É evidente que nesta perspectiva o conhecimento que o sujeito adquire de si
mesmo coincide em gênero, número e grau com o conhecimento que Deus tem
dele, ou seja, na medida em que nos conhecemos, sabemos algo do que Deus
sabe de nós. Porém, é claro que identificar as coisas de modo [a achar] que
pelo simples autoconhecimento o indivíduo já adquire como que um olhar
divino foi um grande engano, mas que tem um fundo de verdade que mais
tarde se tornará claro nas Confissões de Santo Agostinho, em que, de fato, é
Deus que revela Agostinho a ele próprio. Mas não quer dizer que Deus possa
fazer isso integralmente; ninguém pode ter um conhecimento integral de si
mesmo, pelo simples fato de que sua vida não acabou. Isso quer dizer que
enquanto o sujeito está vivo, pode continuar se transformando, e por mais que
tenha consciência de si mesmo, tem coisas que ele ignora simplesmente
porque elas não aconteceram ainda ou porque aquele aspecto seu não se
manifestou, de modo que seu autoconhecimento profundo só coincide muito
parcialmente e é somente um fragmento do Deus sabe dele.
De fato, seria preciso levar em conta o seguinte: o conhecimento que Deus tem
das coisas não é como o nosso; nosso conhecimento é puramente mental, ao
passo que o pensamento de Deus é realidade, é um pensamento criador, Ele
1
Traduzido por Olavo de Carvalho do original Philosophie et Christianisme (L'Age d'Homme,
Québec, 1988). [As notas feitas pelo revisor da transcrição, como é o caso desta, serão
designadas por “N.R.”, as marcadas como “N.T.” são as notas do tradutor, e as que não
receberem designação são do autor do texto das citações.]
2
L’Évangile selon Thomas, logion III, présentation et commentaire de Philippe de Suarez, 2e.
éd. revue, Marsanne, Éditions Metanoia, 1975, p. 5.
2
cria as coisas pela Sua Palavra. Isso se observa logo no começo da Bíblia,
quando Deus fala “Faça-se a luz”, e então a luz aparece — eu quero ver
alguém fazer isso. Logo, o nosso conhecimento é uma pura representação da
realidade, não é a realidade, e basta isso para que [ele] seja necessariamente
um conhecimento deficiente em comparação com o conhecimento divino,
evidentemente. Porém, esse conhecimento é o único adequado ao ser humano.
Por exemplo, nós podemos conhecer do universo um número infinito de coisas
que não podemos alcançar e muito menos fazer. Então, a proporção entre a
medida do conhecimento humano e a do conhecimento divino é
incomensurável, não só quantitativamente, mas também qualitativamente. O
conhecimento divino é outra coisa; ele não é aquilo que nós chamamos de
conhecimento.
Quando a Bíblia fala por exemplo da “árvore da vida” e da “árvore do
conhecimento do bem e do mal”, trata-se evidentemente do conhecimento
divino do bem e do mal, o qual não é o nosso conhecimento. Deus determina o
que é bem e mal. Na verdade, a ambição de comer da árvore do conhecimento
e conhecer o bem e o mal não é simplesmente [a de] adquirir o discernimento
do bem e do mal — isso é uma capacidade humana natural —, mas [a de]
adquirir o poder de determiná-los.
Muito bem, continuemos:
“Todavia, esse acesso à verdade, no qual o homem se faz agente da sua própria
libertação ao encontrar em si mesmo o meio de se curar de si, (...)”
Isto é, o homem é ao mesmo tempo a doença, o meio de cura, a cura e a
futura saúde.
“(...) implica um conhecimento iniciático árduo, e numerosos são os que,
prisioneiros da caverna, ignorantes satisfeitos ou bárbaros irrecuperáveis, não
chegam ao desenvolvimento supremo.
Seria totalmente diferente caso essa verdade fosse definida pelo homem em
função de uma luz acessível a todos. O acesso à verdade cederia então lugar a
uma instauração da verdade por um saber universalmente comunicável.”
Com “instauração” ele quer dizer que bastaria declarar a verdade para ela
estar ao alcance de todos, ao passo que no outro caso — na perspectiva grega
— havia um elemento secretivo, havia um véu cuja retirada podia ser muito
trabalhosa. A verdade, por existir fora e também dentro do homem, era
acessível a ele; embora ela o transcendesse de algum modo, ele poderia, à
medida dela, crescer até abarcá-la.
“A essa tarefa consagrou-se o humanismo de Descartes. Com ele a iniciação
não comunicável se apaga em favor de um método que toma como ponto de
partida que ‘a razão está inteira em cada um’ 3. A verdade vai, assim, sair do
santuário, onde permanecia oculta aos olhos dos profanos, para vir habitar
entre os homens ao tornar-se obra do entendimento.
3
Descartes, Discours de la Méthode, 1a. parte.
3
Mas, se se trata de ‘bem conduzir sua razão e buscar a verdade nas ciências’,
nem por isso a busca que visa a instaurar a verdade deixa de começar por uma
reflexão do homem sobre o homem, o qual chega a isso por uma ‘inspeção do
espírito’.”
Essa via não é muito diferente daquela concebida pelos gregos — [a de] um
autoconhecimento que revelará a verdade —, só que a verdade [aqui] não é
tida como um segredo, como algo que está oculto e precisa ser desocultado,
mas como uma obra normal da inteligência humana, a qual está, como diz o
próprio Descartes, em parte com ironia e em parte a sério, “igualmente
repartida entre todos os homens”.
“O mista, que no santuário esperava que a verdade lhe fosse revelada, cede
lugar ao homem que ‘permanece o dia inteiro fechado sozinho numa estufa’
(...)”
Como [era o caso] do próprio Descartes.
“(...) e que tomou a resolução de estudar-se a si mesmo. Mas esse homem vai,
ele também, trabalhar em esculpir a sua própria estátua; ele vai raspar, limpar,
remover o supérfluo e endireitar o que era oblíquo.”
Só que em vez de fazê-lo no curso de um processo iniciático, ele o fará pelo
simples exame racional da situação.
“Pois tal é mesmo o trabalho de abordagem ao qual se consagra Descartes na
primeira Meditação, onde ele se entrega a uma autodepuração que, através da
dúvida, deve conduzi-lo a descobrir o indubitável.”
Descobrir o caminho desde a dúvida até a certeza.
“À difícil démarche iniciática segundo a via ascendente praticada por Plotino,
corresponde a laboriosa operação de ascese intelectual que permite a
Descartes chegar às evidências fundadoras. Descartes vai em direção ao
verdadeiro; sem que isso tenha algo a ver com um subjetivismo qualquer, (...)”
Ou seja, o que ele pretende descobrir dentro de si não é apenas a verdade da
sua alma, mas verdades universais que estão depositadas, segundo ele, em
todas as almas humanas.
“(...) ele aí vai partindo dele próprio e sem sair dele; a tal ponto que, fechando
os olhos, tapando os ouvidos e desviando-se de todos os sentidos, Descartes
chega a pensar que o mundo não é talvez senão ‘ilusão e engodo’ por meio dos
quais um ‘gênio mau’ pega de surpresa a nossa credulidade.”
Durante algumas aulas4 que dei aqui [0:10] e também no livrinho que estou para
lançar chamado Visões de Descartes5, eu tento demonstrar que, ao contrário
4
O professor Olavo introduz o episódio que narrará a seguir do sonho de Descartes
caminhando em direção à capela do colégio La Flèche na Aula 76, ministrada em 25 de
setembro de 2010. [N.R.]
5
Olavo de Carvalho, Visões de Descartes: Entre o Gênio Mal e o Espírito da Verdade (Vide
Editorial, Campinas, 2013). [N.R.]
4
do que a maior parte dos intérpretes de Descartes entendeu até agora, o
“gênio mau” não é uma figura de linguagem, não é um truque ou um recurso
literário que Descartes usou para expor os problemas dos quais estava
tratando, mas era o problema central dele. Ele diz que estava num estado de
dúvida atroz com relação a tudo aquilo que havia aprendido dos jesuítas no
colégio de La Flèche, e que por isso mesmo foi levado a tentar essa via da
dúvida radical por um processo, digamos, homeopático, ou seja, [o de]
eliminação da dúvida pela intensificação dela própria. É o que mais tarde Viktor
Frankl chamará de “método da hiper-reflexão”, que consiste em o indivíduo,
atormentado por uma dúvida, ampliá-la até ela se tornar insuportável e
desaparecer sozinha. Só que o método que Descartes usa não consiste em
duvidar disso ou daquilo, mas em colocar praticamente tudo em dúvida,
inclusive a existência do mundo, dele mesmo, etc. etc., e eu me pergunto se a
simples dúvida em determinados pontos doutrinais específicos que ele
aprendeu poderia levá-lo a criar e a adotar um método tão radical.
Eu também enfatizo que o método da dúvida radical tem dentro de si uma
contradição psicológica insuperável: pode-se duvidar disso ou daquilo, mas
duvidar do conhecimento no próprio ato de conhecer é realmente impossível.
Para isso, seria preciso se desidentificar do “eu cognoscente”, mas este é o
único que se tem, [portanto] não é possível sair dele para julgá-lo desde fora.
Pode-se, depois que se conhece uma coisa, colocá-la em dúvida, mas não se
pode conhecer e colocar em dúvida esse conhecimento no mesmo ato, porque
isso implicaria negar-se a si mesmo enquanto sujeito cognoscente. Embora
Descartes diga que faz isso, ele não o faz efetivamente.
Então, esse método da dúvida hiperbólica, segundo eu o entendi, não poderia
ser explicado por uma simples dúvida intelectual; seria preciso algo mais
profundo que sugerisse a Descartes a necessidade de um tratamento radical —
um tratamento cirúrgico, por assim dizer —, e o que eu vi foi que naquele
período ele estava de fato num estado de dúvida religiosa muito profunda. Na
Holanda, ele conviveu muito com os protestantes, participando de um exército
protestante e depois de um exército católico, e existem suspeitas de que lá ele
fosse um agente secreto dos jesuítas, o que também não sei, mas é evidente
que se ele o fosse, seria obrigado a levar uma vida dupla, o que não é muito
favorável à estabilidade e à tranqüilidade mental. Então eu vi que Descartes
estava realmente vivendo um drama, que não sabia no que acreditar.
No primeiro dos dois períodos em que esteve na Holanda, Descartes
certamente recebeu o impacto da influência protestante, e embora ele sempre
declarasse sua fé católica, suas idéias não conferem com ela, como veremos
daqui a pouco. O fato dele interpretar aqueles três sonhos que teve na
Alemanha (eu não lembro exatamente em que ano, mas acho que foi em
16116) como se fossem uma mensagem divina revela uma conclusão que
nenhum discernimento dos espíritos justifica, porque os sonhos são confusos,
nebulosos, não têm nada de revelador, ao contrário, parecem um
encobrimento, uma série de disfarces, e a interpretação que Descartes lhes dá
depois [só] introduz novos disfarces. Por exemplo, quando ele vê aquele verso
6
Na verdade, Descartes teve seus três sonhos em 10 de novembro de 1619. [N.R.]
5
“Sim e não” no livro do poeta Ausonius 7, diz que isso é o “sim” e o “não”
pitagóricos, a oposição pitagórica entre a verdade e o erro. Mas o poeta
Alsonius não tinha nada de pitagórico, ele era um poeta campestre que só
falava de flores, de vacas etc. De onde Descartes tirou esse elemento
pitagórico? Evidentemente não foi do próprio sonho, mas de uma interpretação
superposta. Entretanto, o “sim” e o “não” podem ser vistos como a expressão
de uma dúvida moral ou religiosa: Eu sigo isto ou aquilo? Na verdade, aquilo
expressava o próprio estado de dúvida de Descartes.
Na mesma época, ele encontra a peça de Plauto, O Anfitrião, na qual já está
colocado com mil e tantos anos de antecedência o tema do engodo universal e
o tema do cogito, da consciência que o “eu” tem de si mesmo como garantia
contra a dúvida universal. Descartes encontra isso pronto numa peça, repete
esse argumento e jamais cita a fonte. O argumento do “gênio mau” aparece
para ele como a primeira formulação séria da dúvida integral, e ele o recebe
pronto. Então, o “gênio mau” não é de maneira alguma um artifício, ele é o
próprio problema, ele é a dúvida universal. Não é que Descartes já havia
formulado todo o problema da dúvida universal e depois encontrou o gênio
mau: ele o encontrou na peça de Plauto, e foi como se ele encontrasse ali a
descrição do seu próprio estado interior, e portanto a primeira formulação do
problema da dúvida universal. Isso está lá no meu livrinho, que deve sair daqui
a uns meses.
“É portanto justo na ocasião de uma iluminação interior que são descobertas as
‘sementes de verdade’ (...)”
Notem que no primeiro sonho, Descartes se vê empurrado por um vento em
direção a uma Igreja para rezar. O vento é tão forte que ele sente que não
consegue caminhar direito, seu pé direito falha e ele tem de se apoiar mais no
esquerdo. O Dr. Freud estudando esse sonho disse, com muita razão, que o pé
esquerdo é geralmente o símbolo daquilo que está errado, que é pecaminoso,
que deve ser evitado de alguma maneira. Assim, já se vê no sonho de
Descartes sua consciência de culpa [de] que ele está fazendo algo errado. Ele
está resistindo ao vento que o impele à Igreja, mas interpreta o vento como
uma força demoníaca; ele inverte o sentido, porque, afinal de contas, o que
pode haver de mau num vento que está empurrando um católico à Igreja para
rezar? Não há nenhum elemento maligno aí, mas há certamente o medo, e
Descartes associa então esse medo à consciência de culpa que ele tem dos
seus pecados. Mas que grandes pecados poderiam ter sido esses? É verdade
que ele teve um caso amoroso com a empregada e teve uma filha ilegítima —
que depois ele batizou —, mas isso foi muito mais tarde. Naquela época, eu
não considero que ele estivesse cometendo grandes pecados exteriores que
pudessem justificar esse estado de temor a ponto de fugir de Deus. Só podia
ser um pecado interior, que seria o próprio estado de dúvida, a contaminação
protestante, as dúvidas teológicas. Só podia ser de um estado interior que ele
estava falando.
7
O verso é o que inicia a Écloga 4 do Eclogarum Liber (O Livro das Éclogas) do poeta romano
Ausonius (c. 310 – c. 395). O verso em latim diz: “Est et Non cuncti monosyllaba nota
frequentant.” (Em tradução livre: "Sim" e "não": eis os familiares monossílabos que todos usam
constantemente). [N.R.]
6
No segundo sonho, Descartes aparece fechado num quarto, e esse detalhe é
importante: o quarto evidentemente simboliza sua própria mente. No primeiro
sonho, alguém lhe oferece um melão, e os melões, na literatura francesa da
época, eram um símbolo de tudo o que existe de mais delicioso no mundo.
Descartes diz que esse melão, esse objeto de prazer, era para ele a solidão
meditativa — poder se afastar de todo mundo e ficar fechado no quarto
investigando a verdade. No segundo sonho, então, ele está fechado no seu
quarto, e ali se sente protegido contra o vento. Mas se o quarto é a mente [0:20]
e o vento é o símbolo mais tradicional do Espírito Divino, é óbvio que [o
significado do sonho é que] o indivíduo se fecha na sua mente fugindo do
Espírito Divino. O Dr. Freud dizia que esse é o que se chama de “sonho vindo
do alto”, que não quer dizer uma inspiração divina, mas um sonho que oferece
automaticamente a sua interpretação na própria formulação da história, a
própria narrativa já tem um significado auto-evidente. Só que Descartes
inverte esse significado: ele é o homem que é impelido pelo Espírito Divino e
[que] se refugia d’Ele no seu próprio quarto, onde tem o prazer de ficar
pensando e onde então aparecem várias luzinhas, e estas são as tais
“sementes de verdade” que ele diz ter descoberto.
“(...) ‘sementes de verdade’ que as escórias das quais as haviam recoberto os
sentidos e os nossos preceptores haviam tornado irreconhecíveis.
Assim, doravante a verdade é aquilo que o homem compreende graças à ‘luz
natural’ que está nele e à qual ele pode ter acesso após ter transposto os
obstáculos que a mascaravam.”
Vejam que o tema da máscara ainda existe, só que no contexto grego arrancar
os véus que mascaram a realidade impunha uma série de exercícios ascéticos,
uma série de práticas iniciáticas, um guiamento por um mestre etc., mas aqui,
para Descartes, basta ao indivíduo sentar e examinar a coisa à luz da sua
própria razão, e ele mesmo, através desse exame crítico, removerá as
máscaras que encobrem a verdade.
“Em conseqüência, aqui também pode-se dizer que a verdade é aquilo a que
chega ‘o pensamento que se pensa [a si próprio]’, (...)”
Notem bem que Aristóteles havia descrito a mente divina como noesis noeseos
— o conhecimento do conhecimento, e evidentemente nós também podemos
ter algum conhecimento do conhecimento, podemos tomar consciência da
nossa atividade conhecedora, o que nos torna, de alguma maneira, análogos a
Deus. Mas uma analogia é uma síntese de semelhanças e diferenças, não é
uma igualdade de maneira alguma. Aí há sobretudo uma diferença de
proporções.
“(...) já que ‘tudo aquilo que sabemos claramente ser verdade é verdade’ 8, (...)”
Eu até coloquei como epígrafe do [meu] livrinho o haicai de Antonio Machado
que diz: "En mi soledad he visto cosas muy claras que no son verdad”. Essa
8
Descartes, Principes de la Philosophie, I, 10.
7
identificação da clareza e do sentimento de evidência com a verdade
propriamente dita é um passo de ousadia extraordinária que Descartes dá.
Ainda falta demonstrar que tudo o que parece claro é verdade, porque uma
coisa é o sentimento de evidência, outra coisa é uma evidência forçosa, e a
clareza não tem absolutamente nada a ver com isso. Às vezes aquilo que é
mais evidente pode ser muito difícil de perceber.
“(...) e que o cogito, primeira idéia clara e distinta, foi descoberto mediante um
retorno do espírito a si mesmo.”
O espírito sozinho, sem nenhuma ajuda divina particular e sem a necessidade
de nenhum processo iniciático, descobre dentro de si uma verdade fundante, a
partir da qual pode então construir por si próprio todo um universo do
conhecimento que deve coincidir em princípio com os universos de
conhecimentos construídos por todos os outros seres humanos, já que a razão
é a mesma e igual em todos.
“Essa verdade instaurada pelo homem a partir das idéias claras e distintas não
tem senão de se desdobrar segundo aquelas ‘longas cadeias de razões todas
simples e fáceis das quais os geômetras costumam servir-se para chegar às
suas mais difíceis demonstrações’.”
Ou seja, dadas algumas premissas iniciais — e a primeira delas é a certeza do
“eu” por si mesmo —, o resto se segue por dedução, [como] na construção de
uma demonstração geométrica.
“Pode-se, desde então, construir o edifício da ciência e da técnica, graças às
quais nos tornaremos ‘como que senhores e possuidores da natureza’.
Eis-nos portanto em presença, não mais de uma filosofia da contemplação, mas
de uma filosofia da ação.”
Isso é fundamental. No sentido grego, a verdade tinha uma acepção
contemplativa; ela era algo que existia e a qual veríamos. Em Descartes, já não
se vê a verdade; a premissa fundante é apreendida e dela constrói-se o
restante da verdade, e essa construção, que é a do universo das ciências e das
técnicas, dá o poder de ação sobre o mundo exterior. Na época de Descartes, a
tendência de passar de um conhecimento enquanto contemplação e visão a
um conhecimento enquanto domínio técnico é geral. Isso é observado em
Bacon, Galileu, Newton, em praticamente todo mundo.
“No entanto, quaisquer que sejam as suas diferenças, uma e a outra conduzem
a uma autodivinização do homem; (...)”
Só que aqui a autodivinização é um pouco diferente. Nos dois casos
evidentemente é o próprio homem que se salva a si mesmo de sua condição
terrestre, mas no primeiro caso há uma transformação interior do homem em
Deus, [ou seja], pelo conhecimento do conhecimento o homem adquire uma
visão que coincide com a visão que o próprio Deus tem dele e, portanto, se
transfigura em Deus. No outro caso, a autodivinização é a transformação do
homem em “senhor e possuidor da natureza”; o homem, depois de ter feito
8
esse trajeto interior de Descartes, adquire a ciência, mediante a qual domina a
natureza externa e então adquire uma posição semelhante à de Deus. Trata-se
de autodivinização nos dois casos, mas eles não só têm meios diferentes como
também sentidos diferentes. No primeiro caso, ela é apenas uma
transformação interior; no segundo, é o exercício de um poder sobre o mundo
material.
“(...) pois a verdade racional, ao libertar-nos do erro, mas também da culpa, nos
assegura da nossa salvação, já que ‘basta bem julgar para bem fazer’.”
Esta é uma das grandes ilusões da filosofia daí por diante: a de que quem erra,
quem pratica o mal, o faz porque não tem o conhecimento efetivo da
realidade, quando, evidentemente, qualquer pessoa com alguma prática da
vida moral sabe que o conhecimento não é de maneira alguma suficiente para
melhorar sua conduta ou para impedir que ela erre ou peque. Ao contrário: o
conhecimento é justamente o começo do problema, não sua solução.
“Os teólogos que acusaram Descartes de pelagianismo enxergaram com muita
clareza; (...)”
Pelagianismo é uma heresia que negava o pecado original e, portanto, negava
a necessidade da Providência Divina. [Segundo ela] o homem poderia de certo
modo salvar-se a si mesmo, exatamente como na perspectiva helênica.
“(...) tal como no platonismo, no aristotelismo e no plotinismo — em suma,
como no helenismo —, estamos lidando aqui com uma filosofia da salvação pelo
conhecimento (e a coisa será ainda mais nítida no spinozismo). Mas esta é
reforçada por uma filosofia da salvação pela ação, ao passo que em Plotino a
ação não era senão ‘a sombra da contemplação’.”
No século XX, toda essa escola tradicionalista, de René Guénon, Frithjof Schuon
etc., fará o possível para restaurar a idéia da superioridade da contemplação
sobre a ação e condenará a civilização Ocidental praticamente inteira, a partir
da modernidade, por ter privilegiado a ação. Acontece que essa é uma
discussão que se dá dentro de um campo que está abalizado eminentemente
pela idéia da salvação pelo conhecimento, embora Guénon e Schuon usem
freqüentemente uma linguagem religiosa. Mas, [0:30] bem analisadas as coisas,
o capítulo decisivo dessa transformação é a iniciação. É preciso entrar numa
organização iniciática, passar por certos rituais, para de certo modo repetir a
experiência plotiniana e transformar-se em Deus de alguma maneira. A raiz
gnóstica é comum à duas linhagens, não de forma explícita, mas em todo caso
[ela] está ali. Uma delas leva a idéia do domínio sobre a natureza, e portanto
ao predomínio da ação — o mundo do Doutor Fausto, o homem cáustico que
quer o domínio do mundo —; a outra volta as costas ao mundo para
transformar-se em Deus. Esses dois problemas são puramente gnósticos; é,
como se diz, uma briga interna.
“Desde então, a instauração da verdade pelo homem se prolongará no afã de
instaurar uma hipernatureza construída pela mão do homem.”
9
É evidente que é nesta hipernatureza que vivemos hoje; vivemos em uma rede
de equipamentos técnicos de toda a sorte sem a qual não sobreviveríamos
nem por vinte minutos. Como dizia Lévi-Strauss, entre o ser humano [de] hoje
e a natureza existe uma “almofada” sociocultural e civilizacional que lhe
impede o acesso direto à natureza. A própria idéia atual de natureza já é a de
uma natureza vista pela lente da técnica, de duas maneiras: ou ela é vista
como matéria-prima para a transformação técnico-industrial das coisas em
objetos humanos, ou é vista como um depósito misterioso de um
conhecimento sacro que teria sido abandonado há muito tempo. Nos filmes de
Hollywood, [por exemplo] não há um índio que não seja um sábio [detentor de]
“segredos iniciáticos”; os brancos são sempre uns idiotas que só têm o poder
técnico, de maneira que Deus está sempre do lado dos índios. Se é assim, eu
não entendo porque eles sempre perdem as guerras. Se eles têm um
conhecimento superior, diretamente divino, então deveriam ter algum
predomínio, a não ser que Deus [lhes] tenha virado as costas.
No entanto, é claro que essa visão da natureza como templo é ambígua; a
natureza sob certos aspectos é um templo e um sinal dos céus, mas por outro
lado ela também é um inferno. Então, essa espécie de divinização da natureza
tem de ser levada com muito cuidado. É claro que na civilização técnica há
uma tentação muito grande de divinizar a natureza [e de] achar que tudo nela
é bom, quando o fato é que, na perspectiva cristã, a queda não foi só a do
homem: o universo inteiro caiu.
Com a ideologia da Nova Era, a idéia de encantamento pela natureza e do
retorno a ela chegou a tal ponto que pessoas passaram a criar ursos e tigres
em casa — e depois foram comidos por eles, evidentemente. Já dizia Simone
Weil: “Estar no inferno é acreditar por engano que está no céu”; [essas
pessoas pensam] que retornaram à natureza, e agora estão todas peladas,
andando juntos aos animais — bom, ficar pelado [até] facilita a coisa, [já que] o
urso não vai ter de digerir a roupa delas; assim como se depena uma galinha
para comer, tirar a roupa facilita o serviço do urso.
“Logo, o homem deverá assegurar o crescimento da Árvore do Conhecimento,
da qual fala implicitamente a carta-prefácio dos Princípios da Filosofia [de
Descartes], a fim de poder construir um universo à sua medida e fazer-se ele
mesmo um demiurgo.”
Essa idéia de construir uma cidade perfeita, onde todos os problemas estarão
resolvidos, todos terão segurança e tudo o mais do que precisam, vai fazendo,
progressivamente, [com] que o problema do bem e do mal seja transferido da
escala moral humana para a escala administrativa. Eu me lembro, por
exemplo, quando começaram aquela campanha no Paraná: “Não dê esmolas
na rua; dê à Prefeitura, e ela as distribuirá”. Fazer o bem se torna uma
ocupação da prefeitura, e ninguém tem mais de assumir a responsabilidade
pessoal por isso. É evidente que nessa mesma medida a estrutura político-
administrativa se torna a grande mestra da humanidade, e toda a autoridade
moral é transferida para a administração pública. O comunismo é exatamente
isto: o Estado e o Partido têm toda a autoridade moral, a consciência individual
humana já não tem nenhuma e Deus foi abolido, e isso evidentemente cria um
10
problema muito maior do que o que havia antes. Este é um dos temas
permanentes da filosofia de Jean Brun: o sofrimento que retorna duplicado
após cada remédio que o ser humano inventa; ele resolve um problema e cria
outro pior, porque em todos os casos está apostando ou na sua salvação por si
mesmo ou na criação de um paraíso terrestre por força da administração e do
domínio técnico. Hoje, essa tendência está mais forte do que nunca, porque
muita gente acredita que é possível eliminar a violência humana através de
modificações genéticas ou através de substâncias químicas. Só que a
administração dessas modificações genéticas e dessas substâncias químicas
vai estar na mão de uma classe governante que então se tornará onipotente
sobre as outras pessoas e eliminará o livre-arbítrio delas. Não será preciso
sequer reprimir a liberdade delas desde fora, porque o próprio livre-arbítrio já
terá sido eliminado geneticamente. Será criado então um poder francamente
demoníaco, e certamente isso trará muito mais sofrimento do que toda a
criminalidade, todas as doenças e todas as loucuras [de antes].
“Todavia, a instauração da verdade, na qual havia trabalhado Descartes,
perfilava-se sobre o fundo de uma regionalização desta última.”
Esse é outro tema importantíssimo. Com “regionalização” Jean Brun quer dizer
que não se busca mais a verdade em toda a parte, em todo o universo;
circunscreve-se um pedaço [dela], e diz-se que só esse pedaço, ou essa região,
ou esse tipo de verdade é que interessa, o resto fica entre parênteses ou é
abolido. De fato, a partir da consagração e do sucesso obtidos pelas ciências
físicas entre os séculos XVII e XVIII, vai se criando cada vez mais a idéia de que
somente as verdades que são acessíveis a esse método interessam; as outras
ou são deixadas por conta da fantasia de cada um ou são realmente negadas.
Logo, a verdade não se refere mais ao campo total da experiência humana ou
ao universo inteiro, mas só a um pedacinho [deles]. Isto quer dizer que o
método escolhido passa a definir os limites e as fronteiras da verdade. Não é
que exista, fora e dentro do homem, uma realidade que está em aberto, que
está para ser investigada em todas as direções: ao contrário, o método recorta
o objeto à sua imagem e semelhança.
Por exemplo, quando uma nova ciência é fundada, o que se faz exatamente?
Como é que os objetos de uma ciência são unificados e separados dos objetos
de outras ciências? Imaginem, em primeiro lugar, que há um certo conjunto de
objetos que obedecem a uma certa regularidade ou constância. [0:40] Essa
hipótese é anterior à ciência, mas de acordo com ela o cientista recorta os
objetos e passa o resto da vida trabalhando dentro disso. Ou seja, a
delimitação inicial do terreno da ciência tem como pressuposto a [própria] lei
fundamental dela, que por sua vez jamais será testada, pois a ciência só pode
investigar aquilo que já foi determinado anteriormente por esta mesma lei
fundante. Isso é praticamente o mesmo que dizer que toda e qualquer ciência
é fundada em um engodo inicial que, na medida em que não desminta as
experiências obtidas de acordo com aquele mesmo método e desde que
continue a ser aplicado coerentemente, deve resultar em alguma possibilidade
de ação sobre aqueles objetos considerados tão somente naqueles aspectos
que foram recortados. Essa ação, evidentemente, será eficiente caso a
premissa inicial não tenha sido desmentida pelas observações subseqüentes.
11
Acontece que os objetos de qualquer ciência não são objetos concretos, mas
abstratos; se o cientista selecionou um aspecto pelo qual vai vê-los e os
separou dos demais aspectos que não fazem parte dessa ciência, é evidente
que ele não está lidando com objetos concretos de experiência, mas com uma
seleção abstrativa, e portanto a ação que ele exercerá sobre esses objetos
também será abstrativa, pois incidirá somente sobre aqueles aspectos que
foram selecionados de início. As demais conseqüências que existem fora
daquela ciência não são da conta dela, e ela não tem de responder por isso.
Se, por exemplo, a aplicação de um certo tratamento para resolver
determinado problema médico tenha conseqüências econômicas e sociais
devastadoras, não se pode culpar a ciência médica, ela não tem nada a ver
com isso. Ela alegará que é apenas a ciência médica, não a ciência econômica.
Portanto, essa regionalização vai não só tornando proibitivos universos inteiros
da realidade, como também cria um tipo de ação sobre o mundo que jamais
pode responder pelas suas conseqüências. Por um lado, as aplicações técnicas
serão eficientes, mas [por outro lado elas] serão seletivas. Acontece que o
universo real e o ser humano real não são seletivos; ninguém existe só sob o
aspecto da sua fisiologia, ou da sua identidade social, ou da sua posição na
História, ou do seu aspecto espiritual: o ser humano é tudo isso junto, não há
como separá-lo. Qualquer ação que incida seletivamente sobre um de seus
aspectos terá conseqüências sobre todos os outros, mas ninguém responderá
por elas, porque cada ciência só pode responder por um deles. Mais ainda: é
impossível que a soma e a articulação progressiva de todos esses aspectos
cheguem a constituir uma “superciência” universal. Ainda que se somem todas
as ciências e se criem as “interciências”, o objeto com o qual se está lidando
será abstrato, porque a própria definição inicial de cada ciência já foi um
recorte, e se se está somando recortes, não se está partindo de uma realidade
em aberto e estudando-a, mas lidando desde o início com uma realidade
recortada e fechada. Este é, por assim dizer, o pecado original das ciências
modernas.
Além disso, é evidente que cada ciência se considerará a si própria como a
“rainha das ciências”; o ponto de vista dela será sempre o ponto de vista
superior para aqueles que a praticam, e isto cria uma deformidade mental
terrível. É claro que a análise filosófica tem, entre outras funções, a de
desmantelar esses quadros ilusórios de impressões criados pela autoridade
científica. [Aqui], não estou levando em conta sequer os interesses econômicos
que sustentam a profissão científica e que têm um peso enorme. Estou falando
só do aspecto teórico e intelectual da coisa, que já pressupõe um pecado
original, sem contar qualquer desvio ocasionado por fatores sociológicos.
“Pois ‘as sementes de verdade’ que o espírito descobriu nele mesmo nasceram
com ele, mas não nasceram dele: (...)”
Neste ponto, Descartes reconhece: o espírito humano descobre a verdade
universal, mas ele não a cria. Ele só cria do edifico das ciências para adiante.
“(...) elas são inatas e constituem ‘a marca de Deus na Sua obra’.”
12
Descartes elabora o famoso raciocínio de que o homem descobre que tem
dentro de si noções como identidade, causa e efeito etc. que ele mesmo não
poderia inventar e que sabe que não as inventou, que foi Deus que pôs nele
essas idéias. Mas há aí um outro problema: se Deus colocou no homem a
noção da identidade, então o cogito, a descoberta do “penso, logo existo”, não
é possível sem ela. Logo, essa presença ou essa ação divina no homem é um
pressuposto do cogito, e portanto o cogito não é um princípio fundante, mas a
conclusão de um princípio anterior. Se ele é apenas uma conclusão, como pode
ser ele o princípio de construção de todas as ciências? É por isso mesmo que
Descartes reconhece que precisa de dois princípios: o primeiro é o cogito e o
segundo são as idéias inatas que Deus colocou nele. Só que depois de ter
confessado a teoria das idéias inatas, Descartes não retroage sobre o cogito
para examiná-lo à luz dela. O cogito e a ação divina que inoculou no ser
humano o senso de identidade pelo qual ele chegou ao [próprio] cogito são
nivelados como se fossem dois princípios diferentes e independentes entre si,
quando na verdade não são.
[Esse] é um erro que não está dado no famoso cogito de Santo Agostinho, em
que ele constata que sabe que é e que existe, embora não saiba por que
existe. No cogito de Agostinho, Deus é um princípio fundante do próprio cogito,
[do que Agostinho deduz que] sabe que existe porque Deus lho faz saber, ao
colocar nele a identidade. Já em Descartes, primeiro há o cogito, ao qual ele
chega sem ter sequer de passar pela idéia de Deus, e depois há o
reconhecimento das idéias inatas. Só que entre elas ele não teria como deixar
de incluir a identidade, que é a condição de possibilidade do próprio cogito.
Então não há dois princípios — o cogito e Deus — só há um, que é Deus, e
desse princípio nasce o cogito.
Em Descartes, o cogito e Deus são duas premissas — e não é possível construir
um silogismo sem ter duas premissas —; a premissa maior é o cogito, e a
premissa menor são as idéias inatas ou a ação divina, e a partir delas ele vai
construindo todo o seu universo das ciências, ao passo que no cogito
agostiniano não era possível a construção do universo das ciências, porque não
havia duas premissas, só havia uma, que era o próprio Deus, e portanto a
construção da ciência seria um segundo problema a ser resolvido. A partir da
hora que Descartes coloca os dois princípios, eles se tornam as duas
premissas, das quais pode-se começar a construir silogismos — não sei se eu
estou explicando isso muito depressa.
“Além disso, a verdade instaurada pelo entendimento humano é filha daquelas
‘verdades eternas’ que Deus estabeleceu ‘na natureza assim como um rei
estabelece leis no seu reino’9; [0:50] elas perpetuam-se na ‘criação contínua’,
elas são ‘inatas em nossos espíritos’ 10 e o nosso entendimento não pode senão
inclinar-se diante delas, permanecendo passivo em relação a elas 11. É preciso,
portanto distinguir a compreensão, pela qual abarcamos pelo pensamento, e o
conhecimento, pelo qual somente tocamos uma coisa pelo pensamento. 12
9
Descartes, Carta a Mersenne, 15 de abril de 1640.
10
Mentibus nostris ingenita, ibid.
11
Intellectio proprie mentis passio est, A Regius, maio de 1641.
12
A Mersenne, 25 de maio de 1630.
13
Há, em conseqüência, uma presença de Deus em nós, como mostra o exercício
da nossa vontade, que é infinita, ativa e livre, (...)”
Segundo Descartes, evidentemente.
“(...) e uma distância de Deus a nós, como a testemunha o uso do nosso
entendimento, que é passivo e limitado.”
Ora, isso não corresponde à experiência humana. [Em primeiro lugar], a nossa
vontade nem sempre é livre, ela é parcialmente livre, ou problematicamente
livre, porque o ser humano sempre opera em cima de instintos e paixões que
não controla. Descartes entende as paixões apenas como erros do
entendimento, quando na verdade elas têm uma existência e uma função por
si. Em segundo lugar, ele diz que a vontade prova a nossa identidade com
Deus porque temos a vontade livre, e que os limites do entendimento provam
a nossa distância de Deus, porque não sabemos tudo.
“Na inadequação entre nossa vontade e nosso entendimento situa-se a
possibilidade de erro. Por um lado, esse erro é a marca da nossa grandeza,
pois é a contrapartida do risco a que nos expõe o exercício da nossa liberdade;
por outro lado, ele é o sinal da nossa fraqueza, pois provém de não sermos
Deus.
O homem é portanto realmente possuidor da verdade, mas não é o seu criador;
há nele ‘sementes de ciência’ como [sementes de fogo] num sílex; os filósofos
as extraem pela razão13; se o homem instaura verdades, ele não pode fazê-lo
senão a partir de verdades mais altas.
O Deus de Descartes é ‘pura inteligência’, e em conseqüência Descartes não diz
que Deus seja amor; por essa via ele intelectualiza Deus, abrindo
inconscientemente a porta a teodicéias e a teologias racionais.”
Teodicéia é a justificação de Deus. Esse gênero se tornou muito comum —
Leibniz, [por exemplo], escreveu uma teodicéia —, e até hoje surgem
discussões como: “Se Deus existe, por que Ele tolera o mal no mundo?”, e daí
por diante, e seguem-se páginas e páginas de justificações.
“Eis por que a filosofia de Descartes não é uma filosofia trágica; não há nenhum
lugar nela para a Paixão do Cristo; quanto às paixões dos homens, elas
emanam de conflitos de idéias e de uma simples biopsicologia. Quando
Descartes escreve ‘Estou como que no meio entre Deus e o Nada’ 14, ele situa-se
nos antípodas daquilo que essa fórmula poderia significar num Pascal.”
Em Pascal, esse elemento do “nada” está presente em nós e é marca
permanente de nossa insuficiência. Pascal não acredita de maneira alguma
que a nossa vontade seja infinita. A idéia de uma vontade infinita é
absolutamente incoerente, porque só podemos desejar aquilo que de algum
modo conhecemos. Como não podemos conhecer tudo, então a nossa vontade
13
Olympiques, em: Œuvres Philosophiques, ed. F. Alquié, Paris, Garnier, 1963, t. I, p. 61.
14
Meditação Quarta.
14
já está limitada na base pela seleção dos seus objetos. Se essa vontade não
pode ser totalmente livre, ela também não pode ser infinita.
“E isso tanto mais porque, se Descartes reconhece o poder de Deus e escreve:
‘O Senhor fez três maravilhas: as coisas do nada, o livre-arbítrio e o Homem-
Deus’15, ele aproxima a tal ponto o homem de Deus que está bem perto de
identificar um ao outro. Pois, se Deus fez as coisas do nada, o sonho tecnicista
de Descartes incita-o a dizer que o homem poderá, por sua vez, fazer outra
coisa com aquilo que Deus criou.”
A permanente modificação da natureza a partir daí se alastra até realmente
criar uma hipernatureza.
“Ademais, se Deus fez o livre-arbítrio, esse livre-arbítrio torna cada um de nós
tão livre, que lhe dá a possibilidade de dizer ‘Não’ a Deus mesmo, já que ‘esse
livre-arbítrio [...] nos torna de algum modo semelhantes a Deus ao fazer-nos
senhores de nós mesmos’16. Eis por que Descartes não fala de Deus que se fez
homem pela kenosis, (...)”
Kenosis é o total auto-sacrifício de si feito por Cristo.
“(...) ele fala do Homem-Deus, (...)”
E não do Deus-Homem. Muito característico, não é?
“(...) parecendo atribuir ao homem a capacidade de se instaurar como Deus, e
passando assim sob silêncio a Encarnação, a Paixão e a Ressurreição, que não
lhe servem de nada.”
Esses fatos da história sacra estão ausentes do universo de Descartes, mesmo
porque não seria possível chegar a eles pela via do cogito. Se existe o cogito e
existem as idéias eternas, praticamente todos os problemas já estão
resolvidos, é só uma questão de tempo, de permitir que o universo das ciências
vá crescendo. Não haveria lugar aí para uma intervenção salvadora de Deus
sobre os homens, porque ela só tem sentido se não existe nenhuma
possibilidade de o homem salvar-se a si mesmo. Se os problemas humanos
fundamentais tivessem solução na própria escala humana e terrestre, para que
Deus iria sacrificar-se e submeter-se a toda aquela humilhação?
Devemos entender portanto que, se houve sacrifício na perspectiva cristã, é
porque os esforços humanos são vãos, que, a rigor, nada terá jamais solução
na escala terrestre e que esse mecanismo de criar mais problemas e mais
sofrimentos quanto mais domínio o homem pretende ter adquirido sobre a
realidade jamais cessará. Podemos entender a profundidade e a seriedade
disso doutrinalmente, mas humanamente falando, como experiência pessoal, é
muito difícil entender, porque na vida terrestre estamos continuamente
acossados por problemas e sofrimentos que temos de enfrentar e de superar
de qualquer jeito; não há escapatória senão lutar nessa escala. Saber
antecipadamente que os esforços humanos para aliviar certos problemas
15
Olympiques, t. I, p. 63.
16
Le Passion de l’Âmt, 3ª parte, art. 152.
15
criarão outros problemas maiores e que isto jamais terá solução é uma idéia
que, se entrar no indivíduo muito prematuramente, produzirá nele um
desencorajamento terrível. Só lhe restará duas saídas: virar santo
instantaneamente ou desistir. Esse terrível desafio só poderá ser assimilado e
enfrentado no decorrer da existência, é uma coisa para se pensar por muito
tempo e ser confirmada de novo e de novo, até que se comece a entender
realmente o que diz o Cristo sobre acumular tesouros no céu, não aqui; é
tomar providências para uma outra vida, o que implica começar a agir com
uma motivação totalmente diferente da que se tinha antes. O indivíduo não
precisa mais ser movido pela esperança terrestre porque tem uma outra; tudo
o que ele fazia por esperança, passará a fazer por um dever de caridade.
Esta é uma mudança fundamental no ser humano: passar a agir não por ter
efetiva esperança de que tais ou quais problemas serão resolvidos na escala
terrestre, mas por ser um dever de amor ao próximo. A eficiência dos remédios
propostos já não é tão importante quanto o simples fato de estar se esforçando
pelo próximo. Na medida em que o indivíduo age não pela esperança terrestre,
mas por amor ao próximo, aquilo que não tiver efeito terrestre terá efeito
celeste. Mas é até possível que pela intervenção da Providência as ações dele
adquiram uma eficácia maior do que [aquela que] poderia ser obtida pelo
simples encadeamento [1:00] técnico de causas e efeitos. Por vezes, uma ação
pequena, se empreendida com vistas ao amor ao próximo, e não à sede
irrefreável de mudar as coisas, pode até mudar as coisas — não porque seu
agente vai mudá-las, mas porque Deus vai. Nesse sentido a ação se torna uma
forma de prece e a prática da verdadeira caridade. Essa é uma mudança
fundamental que, quando começa a acontecer, muda tudo. Entretanto, dentro
da nossa civilização técnica, essa mudança é bastante incompatível com a
educação e com a cultura, e, ao contrário, a única forma de bem conhecida é a
ação técnica sobre a natureza ou sobre a sociedade para criar um mundo
melhor, mais justo etc. Isso passa a ser o bem em si, e esse bem,
evidentemente, é condicionado à eficácia técnica; em vez de ser uma prece, é
portanto uma ação que, para ser boa, tem de prescindir da prece, tem de ser
ela mesma o topo da moral e das virtudes.
Tudo isso foi inaugurado por Descartes. Até que ponto ele tinha consciência
disso eu não sei, mas o fato é que o mundo tal como ele o descreve é o mundo
onde a razão técnica impera sobre a realidade, constrói todo um universo e
exerce nele uma liberdade quase divina. Porém é evidente que essa liberdade
se transforma quase que automaticamente em sujeição. Diz-se normalmente
que a ciência e a técnica dão poder de ação à humanidade, mas isso é
absolutamente falso: elas dão poder a alguns homens, que passam a agir
sobre outros homens. Não há nenhuma conquista científica e técnica que não
concentre o poder na mão daqueles que terão os meios técnicos e científicos
de agir, e que portanto tire esse poder da mão dos outros, o que quer dizer que
aquilo que antes o sujeito sofria por efeito de sua fragilidade natural, agora
passa a sofrer por efeito de sua fragilidade social, por assim dizer, estando
inerme na mão de poderes descomunais e incontroláveis.
Por exemplo, a capacidade de matar aumentou na modernidade a um ponto
que Júlio César ou Gengis-Khan jamais poderiam ter imaginado. E a capacidade
16
do controle pelo conhecimento e pela informação aumentou [a um ponto] não
digo que Júlio César poderia ter pensado, mas aumentou além do que qualquer
pessoa nos anos 50 do século passado poderia ter pensado. Outro exemplo é o
grampo universal, a história de que todas as conversações telefônicas estão
sendo gravadas e processadas em computador, e conforme apareçam certas
palavras, haverá uma segunda rodada de exames até que se identifiquem
aqueles que podem ser os inimigos do povo. Há alguns anos, a possibilidade de
ouvir conversas a distância simplesmente não existia e passou a existir. Um
agente do FBI pode estar a dois quilômetros daqui e ouvir o que estamos
falando. São possibilidades que apareciam somente em sonho, se tanto, e que
[agora] colocam as pessoas comuns num estado de total inermidade.
Comparem, por exemplo, a conspiração contra Júlio César — meia dúzia de
pessoas que não o agüentavam mais por ele ser um ditador [planejaram e]
deram-lhe umas facadas — com o acesso que se tem [hoje em dia] a um
governante. Simplesmente não há acesso. Pior: o governante não é
necessariamente quem manda; existe por trás dele sempre um esquema que o
representa e que ninguém sabe qual é. Nos anos 60, o sociólogo esquerdista C.
Wright Mills escreveu um livro chamado A Elite do Poder, no qual ele mapeou
pela primeira vez a sociedade americana tentando descobrir quem mandava
nela — não quem estava no governo, quem exercia o cargo nominal, mas
quem efetivamente tomava as decisões. Ele viu que essa elite do poder era
altamente ramificada, incluindo clubes, igrejas, famílias, e que [ela] não
poderia ser descrita em termos apenas do poder político nominal, o que
obviamente é uma verdade. Hoje em dia, um mapeamento desses seria quase
impossível, pela vastidão e complexidade da coisa. É muito fácil dizer, por
exemplo que quem manda [no mundo] é o Grupo Bildeberg ou esta ou aquela
família, mas isto são metonímias. Eu, por exemplo, quando falo do grupo
Bildeberg estou consciente de que [isso] é uma metonímia, de que não
conheço a rede inteira e [de] que estou designando um monte de entidades e
pessoas desconhecidas pelo nome de uma que conheço.
Freqüentemente imaginamos o camponês medieval como o suprassumo do
sujeito que está dominado, escravizado, que está por baixo; no entanto, ele
tinha total conhecimento de quais eram as fontes de poder na sua sociedade, e
ele tinha com essas pessoas uma proximidade física. Algumas sociedades
modernas ainda têm esse resíduo arcaico. Estudem, por exemplo, o
assassinato do rei da Arábia Saudita. Ele ainda abria as portas do castelo e
dava audiências para o povo, que falava com ele, reclamava o que queria, fazia
suas reivindicações, e um desses deu uma facada no rei 17, uma situação que no
mundo Ocidental só se observava até a Idade Média. Já na entrada da
modernidade, o rei vai se tornando uma figura cada vez mais inacessível. Hoje
em dia, se alguém pedir uma audiência com o presidente da república — de
qualquer república — vai ter a vida vasculhada, vai ser revistado e não irá à
presença dele [nem] com um palito de fósforo. Ademais, em geral, cometer um
atentado e remover o governante não quer dizer mudar a situação, porque
todo o esquema por trás dele continua presente e pode facilmente substituí-lo
por outro até pior.
17
Faisal da Arábia Saudita (1906–1975) foi na verdade baleado à queima-roupa por Faisal bin
Musaid, filho de seu meio-irmão. [N.R.]
17
Isso quer dizer que não há meios de ação política física como [os] tinham os
assassinos de Júlio César, ou como tinha o próprio camponês medieval. Existe
um famoso livro de George Coulton, o grande historiador da Idade Média na
Inglaterra, que mostra a convivência diária do senhor feudal com os seus
camponeses. Ele andava no meio deles, às vezes algum camponês tomava
carona na garupa do seu cavalo, de modo que ele poderia a todo momento ser
acertado por uma paulada ou [sofrer] uma facada, [porque] estava à
disposição das pessoas. Então, a distância entre o homem comum e poderoso
não era tão grande. [1:10] Também há o fator realçado por Carrol Quigley, que
eu até mencionei num artigo 18, que é o tipo de armas que existem à disposição:
quando as armas são de fácil manejo e acesso, existe uma espécie de
democratização da sociedade, mas quando as armas se tornam
demasiadamente complexas e caras, predomina o sistema hierárquico, [pois]
só os de cima têm aquelas armas, o que é exatamente o caso de hoje.
Tudo isso é o mundo cartesiano. A ilusão de que a “humanidade” aumenta o
seu domínio técnico tem de ser derrubada, pois não é a humanidade [que
aumenta], e sim meia dúzia de pessoas que se torna cada vez mais
inacessível. Mais ainda: à medida que esse edifício da ciência se torna [mais]
complexo e se fecha num código grupal, num código corporativo quase
inacessível ao profano, não é que não se pode interferir nele: não se pode
sequer entendê-lo. O indivíduo levaria anos para entender o que tal ou qual
grupo de cientistas está falando. No livro O Sonho de Descartes, que é só sobre
as matemáticas, os autores19 mostram que os chefes dos departamentos de
matemática das grandes universidades freqüentemente não tem condições de
entender os projetos de pesquisa dos seus subordinados, porque eles
precisariam ter um treinamento naquelas especialidades, e como não tem,
aprovam ou desaprovam [os projetos] a esmo ou na base da amizade, da
influência etc.
No entanto, embora a idéia do controle sobre a natureza implique de certo
modo, por um lado, a hierarquização do poder, o aumento da distância entre
governantes e governados — tomando “governantes” não no sentido oficial,
mas no sentido genérico —, por outro lado ela alimenta também uma situação
caótica na qual a própria classe governante não sabe muito bem o que está
fazendo. A distância é grande, mas o controle não é tão grande [assim], isto é
importante: a máquina controla quem está embaixo, mas não tem muito
controle sobre ela mesma, e é por isso que eu não acredito nessa teoria dos
“senhores do mundo”, dos “mestres do universo” etc. Eles mandam
relativamente. Não se esqueçam, por exemplo, que o projeto de governo
mundial era para estar implantado nos anos 80 do século passado e não está
até agora; as coisas não vão tão bem e não são tão fáceis assim. Além [disso],
há o fato de que não sabemos qual dos três projetos globalistas em
competição vai ganhar, e quem está em cima também não sabe.
Continuando:
18
“Quigley e as armas” (17 de fevereiro de 2000, disponível em:
http://old.olavodecarvalho.org/textos/quigley.htm). [N.R.]
19
Philip J. Davis e Reuben Hersh. [N.R.]
18
“As Luzes do século XVIII quiseram despojar o cartesianismo da teologia oculta
que nele se encontrava, (...)”
Ainda havia um resto de teologia em Descartes.
“(...) buscando fazer do homem o possuidor da verdade a título completo e
suprimindo dele toda distinção entre compreensão e conhecimento, a fim de
dar ao homem a possibilidade de se entronizar como criador da história e, por
isso mesmo, do mundo.
Nesse processo, duas obras particularmente representativas desempenharam
um papel capital: Da Busca da Verdade, de Malebranche, e o Ensaio sobre o
Entendimento Humano, de Locke. Esses dois autores foram lidos, estudados,
citados por todos os philosophes20 do século XVIII; eles representavam
momentos históricos essenciais porque vinham inserir-se na démarche
metafísica em busca, primeiro, de apropriar-se da verdade para poder, em
seguida, construí-la.
Malebranche, grande admirador do mecanicismo cartesiano, terminará por
preferir o mecanicismo da Natureza ao finalismo criacionista, o que, em nome
do seu ocasionalismo, o levará a pensar que ‘Deus parece bem mais ‘admirável’
na conduta que a física e a biologia nos revelam do que naquela da qual nos
fala a Escritura’21.”
O funcionamento do universo segundo leis mecânicas mostrava Deus sob um
aspecto muito mais admirável do que todos os milagres da Bíblia.
“De nada adiantará Malebranche afirmar que sua teoria da visão em Deus não
deve ser tomada por uma visão de Deus, (...)”
Conhecemos as coisas através de Deus, mas isso não abarca e não repete a
visão que o próprio Deus tem das coisas, como no caso helênico.
“(...) nem por isso essa teoria do conhecimento deixa de levá-lo a ler tão bem
em Deus, que, nas Meditações Cristãs, ele chega até a fazer o Verbo mesmo
falar.”
Ele põe palavras da boca de Jesus Cristo! Nicolas Malebranche sabe como Jesus
Cristo pensa, e Jesus Cristo fala de acordo com os pensamentos dele...
“Malebranche não hesita a estender seu mecanicismo à totalidade do projeto
divino e à distribuição da Graça, (...)”
Ou seja, a Graça também obedece às leis da natureza.
“(...) o que implica que ele tenha podido apreender os desígnios de Deus e as
razões da Sua conduta.
20
“Philosophe”, entre aspas no original, ou philosophes no meio de um texto vernáculo designa
os literatos e agitadores de idéias das décadas que precederam a Revolução Francesa. [N.T.]
21
F. Alquié, Le Cartésianisme de Malebranche, Paris, Vrin, 1974, p. 293.
19
A distinção feita por Descartes entre compreender e conhecer desaparece
portanto; a transcendência de Deus esfuma-se, (...)”
Tão logo [Ele é] conhecido, já está compreendido, não é?
“(...) a verdade torna-se aquilo que o homem descobre ao fim da sua busca e
que ele termina por possuir plenamente. De tal modo que a célebre fórmula: ‘A
fé passará, mas a inteligência subsistirá eternamente’ 22 — a qual significava,
para Malebranche, que um dia seríamos admitidos a possuir de novo
aquela Inteligência que, antes da queda, nos permitia coincidir com o Verbo
divino, ao passo que hoje devemos nos contentar em crer nas verdades que
outrora compreendíamos — essa fórmula, portanto, será facilmente
‘secularizada’ pelos racionalistas, os quais afirmarão que os dois futuros
utilizados por Malebranche relevam ambos da história.”
Quando Malebranche diz: “A fé passará, mas a inteligência subsistirá
eternamente”, existem três nuances aí: a primeira supõe que precisamos da fé
porque não temos o conhecimento direto de Deus. Como dizia São Paulo, “A fé
é o conhecimento das coisas ainda não vistas” 23, mas quando forem vistas, não
se trata mais de fé e sim de conhecimento. Em segundo lugar, a fé é uma
necessidade, uma atitude, puramente humana, ela não existe em Deus, que
não precisa ter fé em si mesmo. Então a inteligência que subsistirá
eternamente é a inteligência de Deus, é o próprio Verbo divino. Quando o
Cristo diz: “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de
passar”24, essas palavras e esse Verbo já existiam antes da criação do mundo e
continuarão existindo depois da extinção dele. O terceiro sentido, [é o de que]
a fé, historicamente, será superada pelo reino da inteligência. Aí entra,
evidentemente, a presunção gnóstica de obter o conhecimento e prescindir da
fé.
Mas isso só nos acontece parcialmente; [há] algumas coisas que já
entendemos perfeitamente e que já estamos vendo com os olhos da cara nas
quais não precisamos ter fé. Isso não quer dizer que não continuarão existindo
milhões de objetos aos quais só teremos acesso pela fé. Por exemplo, o
paralítico que Jesus fez andar estava todo entrevado, quando Jesus chega e
[lhe] fala: “Levanta-te e anda”, e surpreendentemente ele levantou e saiu
andando. Depois que isso aconteceu, ele não precisou mais ter fé; sua fé lhe
salvara antes, depois, não. Ou será que ele estava andando só pela fé? Ele
acreditou que estava andando ou andou realmente? Antes, ele acreditava que
poderia vir a andar, mas depois ele não apenas creu que estava andando, mas
andou de fato, conhecendo esse fato por experiência direta e não mais como
um objeto de fé. Porém, foi só isso que ele ficou sabendo. Por exemplo, ele
poderia ter pensado que se Jesus o fez andar, então Ele poderia fazer também
o cego ver; aí já haveria fé, porque ele não sabia disso. Um item passara da
esfera da fé para a esfera do conhecimento, mas e todos os demais? O resíduo
[de fé] sempre continuaria [existindo]. [1:20]
22
Malebranche, Traité de Morale, I, ch. II, §11.
23
“Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que se não
vêem.” Epístola aos Hebreus, 11:1 (ACR). [N.R.]
24
Evangelho de Mateus, 24:35. [N.R.]
20
“Daí por diante, eles trabalharão para mostrar que toda crença não é senão
credulidade, todo misticismo mistificação obscurantista e se esforçarão para
instaurar um reino da Razão, fazendo da verdade científica a única luz capaz de
esclarecer o homem nos seus pensamentos e nos seus atos.”
Descartes ainda concede alguma função a Deus ao afirmar que o homem pode
chegar, por si mesmo, à primeira certeza indubitável, que é a certeza do
cogito. A essa certeza, ele soma as verdades inatas — as verdades eternas que
Deus pôs em sua mente —, e com elas constrói o mundo do conhecimento.
Então Deus ainda tem uma função que o homem não pode desempenhar, que
é a função de injetar na cabeça humana as verdades eternas. Mas, a partir de
Malebranche e de Locke, isso já não é mais preciso.
“A verdade torna-se assim posse exclusiva do homem, e isso tanto mais
facilmente que Locke, partindo em guerra contra o inatismo cartesiano (...)”
Inatismo quer dizer a teoria das idéias inatas, das idéias eternas.
“(...) no qual ele via um retorno a superstições ultrapassadas, fazia do homem o
puro produto das suas aquisições individuais e específicas, obtidas a partir da
experiência sensível, a única capaz de mobiliar a tábula rasa do espírito.”
Locke dizia que nascemos com o espírito, a inteligência e a consciência
absolutamente vazios — uma “tábua rasa”, como ele dizia, uma folha de papel
em branco na qual as impressões sensíveis vão registrando progressivamente
as várias formas, e estas, na memória, vão formando os conceitos gerais, e
assim por diante. Tudo vem da experiência, que imprime em nós as formas
com as quais vamos construindo gradativamente os conceitos gerais. Essa
teoria não apenas está errada como é absolutamente impossível, porque essa
acumulação de impressões sensíveis que vão construir os conceitos gerais se
dá pela comparação de semelhanças e diferenças, e por qual critério são
separadas as semelhanças e diferenças? Quais semelhanças e quais diferenças
são notadas? Todo objeto é semelhante a algum outro sob certo aspecto e
diferente sob outro aspecto. O número de semelhanças e [de] diferenças é
absolutamente infinito; se não houvesse um princípio de seleção, seria
impossível criar o primeiro conceito geral. Portanto, temos de voltar àquilo que
dizia Leibniz: “Nada está no intelecto que primeiro não esteja nos sentidos,
exceto o próprio intelecto” — isto é, a capacidade de fazer essas
aproximações, de notar semelhanças e diferenças. Dizer que a inteligência
humana é uma tábua rasa é o mesmo que dizer que nascemos não só sem
nenhum conhecimento como também sem nenhuma capacidade. Isso é
obviamente impossível. Locke é uma das inteligências mais precárias que a
história da filosofia conheceu; pensando bem, ele era realmente um coitado
que não é para ser levado muito a sério.
“O homem, portanto, não se encontrava mais ligado a uma Transcendência, à
qual ele teria devido as ‘sementes de verdade’ que estavam nele; ele se
tornava o simples resultado das suas relações com o mundo exterior. Daí por
diante, era possível falar de uma natureza humana, como o fará Hume no seu
Tratado, cujo estudo poderia relevar do método experimental (nada mais
21
instrutivo, sob esse aspecto, do que o subtítulo ‘Ensaio para introduzir o método
experimental nos assuntos morais’).”
Partindo da base estabelecida por Locke, Hume mostra que tudo aquilo que o
intelecto é capaz de juntar não vem da experiência — ele contesta o Locke
nesse aspecto —, mas, como ele só acredita no que vem da experiência, para
ele não vir da experiência é o mesmo que não existir. Por exemplo, sobre a
noção de causa Hume diz que [só] vemos fatos em seqüência, não vemos a
causa deles. No famoso exemplo da bola de bilhar, [em que] uma bola vem
rolando, bate na outra e a esta sai rolando, não vemos causa nenhuma, só
vemos o movimento da primeira bola e [o] da segunda; foi a nossa inteligência
que juntou os dois objetos. Só que em vez de concluir que existem idéias
inatas, que conectam os elos da experiência, ele diz que não existem provas
de que causas existem, porque ele só acredita nos dados da experiência. A
condição intelectual da possibilidade da experiência acaba sendo negada, em
Hume, pela própria experiência. Se a experiência é o único critério da verdade
e não há nenhum critério racional anterior, então o que quer que a razão
conecte para além do que foi dado na experiência só pode ser fictício — o que
é afirmado por Hume, com o agravante de que ele diz que embora [isso] seja
fictício, para que a sociedade não desabe e consiga viver, é preciso acreditar
nisso por fé. A negação da fé em Deus termina portanto numa exigência de fé
em praticamente tudo! Tudo agora se torna objeto de fé, e todos os nossos
conhecimentos não têm mais fundamento racional, só subsistem por uma fé
que é necessária para a subsistência da sociedade humana.
“A verdade vinha ‘por fim’ descer do Céu à Terra, o homem se dava não
somente por seu único possuidor, mas também por seu único instigador [ou
criador]. E isso tanto mais facilmente porque a noção de vontade geral fazia
cada vez mais a figura de um oráculo infalível para definir a verdade.”
É claro que se não temos as idéias inatas — a estrutura racional inata que nos
permite orientar-nos no mundo da experiência —, e se a própria experiência
tomada como critério último acaba por abolir essa capacidade intelectiva
prévia, então dependemos apenas da fé, que nos vem da “vontade geral”,
afirmada por todo mundo, e na qual, [só] por isto, teremos de acreditar
também. Isso teve e continua tendo conseqüências terríveis à sociedade
humana. É aterrorizante o nível de credulidade a que as grandes massas
urbanas chegaram já neste século 21, confirmando novamente o que dizia G.
K. Chesterton: não é que o sujeito que deixa de acreditar em Deus não acredita
em nada: ele acredita em tudo — acredita em Barack Obama, em Dilma
Rousseff, em qualquer porcaria que lhe digam. É curioso que esse mesmo
fenômeno coexista com a sensação de estar no topo da civilização, das luzes e
da inteligência.
“Essa linha de força desdobra-se até o humanismo sartreano. Sartre, com
efeito, via no Deus cartesiano, criador das verdades eternas, ‘o mais livre dos
deuses que o pensamento humano forjou’ 25.”
25
J.-P. Sartre, Situations I, p. 331: “La liberté cartésienne”.
22
Ou seja, o ser humano inventou um “Deus” que lhe injetou as idéias eternas.
Seria o caso de perguntar com base em quais idéias eternas ele teria
inventado esse Deus. Eu [também] me pergunto, por exemplo, como o ser
humano poderia ter inventado, a partir da experiência sensorial, a noção de
infinitude.
“Mas, no cartesianismo, o homem não é livre senão para o erro; é preciso que,
doravante, ele se torne livre para o verdadeiro [segundo Sartre], que ele
‘recupere aquela liberdade criadora que Descartes colocou em Deus’ (...)”
Em Descartes Deus ainda era o fundamento da liberdade humana; agora,
existe a liberdade humana e esta inventa Deus. É claro que isso é apenas um
jogo de palavras, um truque, uma maneira de dizer. Não há sequer uma
maneira de expor racionalmente essa idéia; [1:30] só se pode escrever, dizer
isso, mas há como expor isso como uma experiência humana real.
“(...) a fim de assegurar a base essencial do humanismo existencialista: o
homem é o ser cujo aparecer faz com que verdades existam.”
Ou seja, é o aparecimento do homem que inaugura essa dimensão chamada
“verdade”, mas ela é de fato apenas inventada.
“Mutatis mutandis, a atitude de Kant ante o problema da verdade pode ser
comparada à de Descartes. O humanismo kantiano faz do verdadeiro aquilo que
o homem pode instaurar por uma experiência definida, ao mesmo tempo, por
um realismo empírico que a limita àquilo que provém das intuições sensíveis e
pelo idealismo transcendental que a unifica graças às categorias do
entendimento capazes de torná-la compreensível.”
Por um lado, temos a experiência sensível, o universo dos objetos a que temos
acesso, além da qual não podemos ir, e temos, por outro lado, as categorias da
razão, como causa, identidade etc., que são as mesmas em todos os seres
humanos e que tornam esses objetos compreensíveis. Ao contrário de
Descartes, Kant não [se] coloca sequer o problema da origem e do porquê da
existência dessas categorias, tratando-as como uma espécie de muro no qual
esbarramos e [além] do qual não podemos ir.
“A partir daí desenvolve-se uma teoria do conhecimento independente de todo
fundo teológico, ciosa de denunciar as imposturas a que conduzem os
devaneios da razão e de dar fundamentos seguros, talvez definitivos, à ciência
que o homem tem por missão instaurar.”
Só que a experiência, segundo Kant, só nos chega sob o aspecto de
estimulações caóticas, e são as estruturas inatas da própria percepção e da
razão que dão formato ao mundo. Portanto, tudo aquilo que podemos conhecer
é o que essas formas a priori da intuição e do entendimento moldaram; se
existe algo para além delas, não podemos saber. A regionalização do
conhecimento chega aqui ao auge. De outro modo, só conhecemos aquilo que
a nossa própria mente criou, e temos um acordo mútuo, porque as estruturas a
priori da intuição e da razão são as mesmas em todos os seres humanos; se
estamos enganados, estamos todos enganados juntos, e o que existe para lá
23
do nosso engano geral não interessa e não pode ser conhecido. Aqui, o
predomínio do método sobre o objeto chegou ao auge: só existe na verdade o
método, e toda ciência não é senão esse método e as conseqüências do qual
ela tirou.
“A tarefa da crítica é mostrar que o problema da verdade é doravante assunto
do homem mesmo.”
O maior problema de Kant é que para ele só existe a comunidade humana e
aquilo que ela imagina, aquilo que ela pensa, aquilo que ela acha que sabe.
“O conhecimento da verdade não pode ser fundado nem no Céu, como o crêem
os teólogos, nem sobre a terra como o pensam os empiristas, ele não pode sê-lo
senão ao nível do homem, (...)”
O empirismo depende das estruturas a priori da intuição e do entendimento e
por elas já está limitado. Então o empirismo por si mesmo não prova nada
além daquilo que a comunidade humana pode reconhecer.
“(...) com o qual, para o qual e pelo qual a verdade vem ao mundo. Pois o
entendimento do homem é mensurans, (...)
É mensurante: ele dá a medida. Voltamos à idéia de que o homem é a medida
de todas as coisas.
“(...) já que a operação de conhecimento consiste em fazer as coisas girarem
em torno dele. O homem é portanto instaurador e possuidor da verdade, esta
não tendo nada a ver com algum mistério ao qual o homem não pudesse ter
acesso senão parcial.
Todavia, tal como o cartesianismo, mas de maneira diversa, a crítica kantiana
procede a uma regionalização da verdade; (...)”
É o famoso tema das “perguntas proibidas” de Eric Voegelin: só podemos
conhecer certas coisas, e não faz sentido investigar as que estão para além
delas, porque [elas ou] não existem ou não interessam.
“(...) pois, se para Kant a verdade é humana, ela não é senão humana; eis
porque ele compara o país do entendimento a uma ilha fora da qual ninguém
deve se aventurar. Assim é porque o homem não conhece senão em função de
dados imutáveis que ele não pode modificar (...)”
Que são a estrutura da intuição — tempo e espaço — e do entendimento — as
categorias da razão: identidade, causalidade, etc.
“(...) e que constituem a sua natureza, dados dos quais Kant se propõe fazer o
inventário, desenhar o mapa ou descrever a anátomo-fisiologia. Dados, aquelas
duas camadas do conhecimento, que são a sensibilidade e o entendimento;
dados, aquelas duas formas a priori da sensibilidade, que são o tempo e o
espaço; dados, aquelas doze categorias do entendimento.”
24
E isso é tudo. Tudo isso é dado, o homem não pode modificá-lo; ele já veio
assim, essa é a natureza dele, e tem de operar só dentro disso.
“Dados que nos levam a esbarrar num a priori anterior a toda experiência e a
todo conhecimento verdadeiro, mas que os condiciona.”
Esse a priori é imutável, é um muro além do qual não podemos ir. Então,
estamos limitados, por um lado, por essas estruturas a priori e, por outro, pela
experiência.
“Esses dados a priori são constatáveis e inventoriáveis, mas é impossível
‘justificá-los’ por um genetismo qualquer. 26”
Ou seja, não podemos perguntar a origem nem tentar [encontrar] uma
justificação dessas coisas.
“Eis porque as distinções entre o fenômeno e a coisa-em-si, entre conhecer
(erkennen) e pensar (denken) são fundamentais, pois conduzem a uma
regionalização da verdade. Kant é assim levado a comparar o mundo a um livro
fechado27, a convidar-nos a cultivar o nosso jardim 28 (...)”
“Cultivar o nosso jardim” é a conclusão da narrativa de Voltaire do indivíduo
[que] sai em busca do conhecimento, não encontra nada e diz: “Agora, não vou
[mais] me ocupar com essas grandes questões, vou cuidar do meu jardim”.
“(...) em vez de querer construir uma torre que subisse até o céu 29, e a incitar-
nos a uma ‘sabedoria negativa’30.
Para Kant, o homem é portanto realmente portador de sentido mas não é
criador do Sentido; ele não poderia ser o autor dos dados que o constituem e é
por isso que Kant denuncia todos os genetismos do indivíduo ou da espécie que
desejariam fazer do homem o produto das suas aquisições e o autor dos seus
arquivos ontológicos.”
Aí entra curiosamente a crítica antecipada que Kant faz de uma possível teoria
da evolução. Ele diz que o homem tem essa estrutura, é dela que ele entende
tudo, inclusive a sua própria origem, e [ele] não tem como contar a origem
dela. Não dá para saber como e por que o homem ficou assim.
“A verdade definida pelo homem perfila-se portanto sobre o fundo de uma
Verdade fundadora à qual ele não poderia ter acesso, a despeito de todas as
pretensões dos empiristas ou das dos sonhadores da razão.”
********************************************************************************
*************
26
Kant, Critique de la raison pure, Anal. trans., 3e section, §21, remarque I.
27
Kant, Sur l’insuccès de tous les essais philosophiques de théodicée (1971), in: Kant, Pensées
successive sur la théodicée et la religion, Paris, Vrin, 1931, traduction de P. Festugière, p. 150.
28
Kant, Sonhos de um Visionário.
29
Kant, Critique de la raison pure, Méthodologie transcendantale, début; Kant se souvient
probablement de Luc, XIV, 28.
30
Kant, Sur l’insuccès..., p. 148; Le conflit des faculties, X.
25
Aluno: No início do curso, o senhor enfatizou a importância do chamado
“adestramento da linguagem e do imaginário”. Temo, entretanto, que todo
esse esforço de leitura seja frustrado em razão de uma deficiência de base,
decorrente do método de alfabetização a que fui submetido. Nesse sentido, em
vídeo recente, o senhor enfatizou esse problema ao salientar que a mera
aquisição de cultura superior não pode corrigir as deficiências de base que
estão na nossa apreensão auditiva dos fonemas. Como devo operar a correção
dessa deficiência?
Olavo: Eu acho essa pergunta absolutamente crucial. Eu não sei exatamente
como resolvê-la, mas acho que voltar a treinar certas habilidades que você
adquiriu quando era muito pequenininho, muito antigamente, é sempre
possível, só que você vai fazer isso muito mais rápido do que faria naquela
época. Um pouquinho de treinamento do método fônico ou do método silábico 31
já lhe daria uma inteira reconquista dessas capacidades que foram frustradas
ao longo do processo [1:40] de alfabetização pelo método socioconstrutivista.
Em todo caso, eu [lhe] sugeriria uma consulta a quem entende mais disso, que
é o professor Luiz Carlos Faria da Silva. Eu não tenho o e-mail dele agora, mas
acho que se você buscar esse nome no Google, acabará encontrando-o e acho
que ele responderia a sua questão. Tente isto.
Eu acho inclusive que seria interessante aqueles que estão na profissão
criarem cursos para a recuperação de pessoas educadas pelo
socioconstrutivismo. Aqueles daqui que são professores de idiomas,
professores de português, que dominam o método silábico e conhecem o outro
método, e são capazes de fazer uma comparação [entre eles], poderiam
arriscar uma técnica para isso. Eu acho que seria muito útil, porque de fato
esse método socioconstrutivista entrava a inteligência das pessoas.
Um aluno faz aqui um monte de perguntas que não sei responder, mas vou
citar algumas:
Aluno: Ainda estou por volta da Aula 50 do curso e, tomando os temas de
experiências extracorpóreas e afins, tenho algumas dúvidas. Tomando o
cérebro como uma espécie de freio da percepção do real que impede os seres
humanos de perceber a inteligência de forma plena, seria plausível a hipótese
de que indivíduos com deficiência mental e lesão cerebral, estariam com os
seus freios mais agudos em relação ao cérebro humano? (...)
Olavo: Não sei. Mas esse é um tema para o resto de sua vida.
Aluno: (...) Se sim, seria possível que indivíduos com deficiência mental
estivessem de alguma forma cientes do ambiente da realidade no qual estão
31
Nota do Revisor: Grandes alfabetizadores, como é o caso do prof. Carlos Nadalim, aluno do
próprio Olavo, desaconselham esse método. Na gravação, parece que o professor, quando fala
“método fonético”, quer se corrigir e diz depois “método silábico”. Será que ele se confundiu?
De todo modo, articulei-os com a conjunção alternativa, já que são métodos diferentes.
26
inseridos, estando limitados em suas capacidades de expressar isso para as
demais pessoas? (...)
Olavo: Não só de expressar, certamente, mas [também] de processar até o
nível de transformar essas percepções num instrumento de ação prática. Isso
certamente acontece.
Aluno: (...) No caso de drogas como o LSD, o que acontece? Pessoas afirmam
aguçar as suas percepções. Entretanto, num caso assim, parece que ocorre ao
contrário, que os freios aplicados pelo cérebro na percepção da realidade se
intensificam. (...)
Olavo: Isso é verdade. O LSD não abre as portas da percepção: ele realmente
estupidifica.
Aluno: (...) Acredito que assim o sujeito drogado daria muito mais foco para as
criações da sua própria mente, devido ao fato de que as percepções da
realidade param de lhe chegar como antes. Seria uma hipótese válida?
Olavo: Eu acho que é perfeitamente válida. Mas essas duas últimas perguntas
independem da primeira, que eu acho tremendamente espinhosa, e você terá
de investigar isso por si mesmo. Eu, sinceramente, não sei.
Aluno: Gostaria de fazer uma pergunta que não tem nada a ver com a aula —
pelo menos não até onde posso perceber —: O que o senhor acha do
argumento cosmológico Kalam, hoje muito explorado pelo William Lane Craig,
em debates com ateus?
Olavo: O argumento diz que, em última análise, tudo o que existe tem de ter
uma causa, e que, de causa em causa, é possível remontar a uma causa
primeira. Eu acho que esse, como todo e qualquer argumento, tem um alcance
muito limitado; acho que a ciência da argumentação é algo derivado. Só se
argumenta em favor de algo que já se sabe, quer dizer, o argumento não é
uma maneira de alguém alcançar conhecimento, mas de persuadir um outro
ou até persuadir a si mesmo. Eu acho que o argumento em si é válido se suas
premissas forem aceitas. Mas as premissas são tantas, e isso depende de tanta
coisa; depende inclusive do esclarecimento do que é a noção de causa, [o] que
já é um bicho de sete cabeças.
E é por isso mesmo que eu não creio que a arte da argumentação ou da prova
seja importante numa formação filosófica. O importante é a aquisição daqueles
sete passos da técnica filosófica que eu descrevi. Provar as coisas para outros
não é uma ocupação filosófica. Nós estamos aqui tentando compreender a
verdade, então o que nos interessa não é provar nada, é analisar, descrever e
tentar compreender a experiência tal como ela nos aparece. A argumentação e
a prova são coisas absolutamente secundárias. Isso não quer dizer que eu não
aprecie tecnicamente William Lane Craig, que é um artista, um sujeito fabuloso
na arte da prova. O que digo é que eu, pessoalmente, não me interesso muito
por ela, embora eu tenha até escrito alguma coisa a respeito. Se você estudar
27
o meu livrinho32 sobre a Teoria dos Quatro Discursos, vai ver que a prova
analítica está muito afastada da experiência. A prova exige uma série de
operações abstrativas, que vão recortando o objeto até especificá-lo [como]
um objeto quase que puramente mental cujas raízes na experiência estão
muito remotas.
Aluno: No começo da aula foi dado como exemplo de distinção entre
conhecimento humano e divino o seguinte fato: quando Deus diz “Luz”, ao
contrário do homem, é a própria luz que surge e não apenas um símbolo
sonoro — ainda que, claro, Deus também possa se comunicar por símbolos
sonoros. Sabendo, pois, que a palavra de Deus é a própria expressão da
realidade, quando [ela] diz que o homem não poderia comer do fruto da árvore
[do conhecimento] do bem e do mal, deve-se interpretar que comê-lo é
simplesmente impossível? (...)
Olavo: Eu acho que essa interpretação está certíssima. Comer da árvore [do
conhecimento] do bem e do mal é uma ilusão: não é possível adquirir o
conhecimento do bem e do mal tal como Deus o tem. Por mais que se comam
todos os frutos da árvore, a [própria] árvore inteira e [até] a raiz, não se
chegaria a isso. Quando Deus disse: “Não comerás dessa árvore”, foi o mesmo
que ter dito que comer dela é impossível ou será inoperante, não vai funcionar,
[ou] vai funcionar até em sentido contrário.
Aluno: (...) Resumindo, o pecado original é o delírio humano de conceber a
realidade como se fosse criação sua, isto é, como se ele, o homem, fosse o
próprio Deus. (...)
Olavo: Essa foi [justamente] a promessa da serpente: “Sereis como deuses”.
Aluno: (...) Resta-me apenas compreender melhor como esse pecado original,
essa queda, se manifesta no universo.
Olavo: O aluno quer saber como a queda do homem degradou o universo em
torno. Eu não tenho resposta para isso, mas parece que à pergunta “Para
quem Deus fez o mundo?” o Catecismo da Igreja Católica responde: “Para o
homem”. Nesse sentido, o homem é a medida do universo, o universo todo foi
feito para ele. Portanto, se ele cai, a medida de tudo também cai.
Aluno: Estou pesquisando o pensamento de Leibniz e me chamou a atenção a
tensão entre a perspectiva neoplatônica e a integração dos dogmas da teologia
cristã. Como o senhor veria isso? Há possibilidade de integração de ambas?
Parece que há uma contradição estrutural nos pontos de partida de ambas.
Olavo: Qualquer coisa da filosofia antiga que se tente integrar ao Cristianismo
vai sempre esbarrar num obstáculo que não é de ordem teórica, mas de ordem
temporal e histórica. O que separa o cristianismo do helenismo não é uma
diferença doutrinal, é que um houve acontecimento de proporções cósmicas
entre um e o outro: o nascimento, vida, paixão, morte [e ressurreição] de
32
Olavo de Carvalho, Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro
Discursos (Topbooks, Rio de Janeiro, 1996). [N.R.]
28
Nosso Senhor Jesus Cristo. Então, estamos falando de universos que são
incomensuráveis, e, como tais, acho difícil dizer que existe [entre eles]
contradição ou afinidade. Eu acho que não existe nem uma coisa nem a outra.
Trata-se da experiência humana analisada sem a notícia da presença do Cristo
e depois analisada com ela. Há uma diferença entre os dados que estão à
disposição; não é questão de opinião ou de doutrina: há um dado faltante na
filosofia grega, e portanto não tem sentido fazer uma comparação doutrinal
entre experiências diferentes. [Isso] seria o mesmo que perguntar o que Dante
achava da América; ele não sabia que a América existia. O que ele disse pode
ser compatível ou não com a existência dela, mas não se pode julgar o
pensamento dele com base nisso, vai ter de se entender cada um dentro da
perspectiva da sua própria experiência. É o que diz Paul Friedländer: toda
doutrina tem por trás uma experiência real, e é esta experiência que interessa.
Eu não sei se ficar discutindo e compatibilizando doutrinas é totalmente inútil;
para fins de governo, por assim dizer, para tomar [uma] decisão papal, para
baixar um dogma pode ser muito importante, mas filosoficamente esse não é o
caminho. [1:50]
Assim como eu não me interesso por argumentos, eu não me interesso por
doutrinas. Levou tempo para que eu entendesse isso. Eu gastei muito tempo
lutando com doutrinas, e embora não tenha sido um tempo totalmente
perdido, se quando eu tinha vinte anos alguém tivesse me avisado que, ao ler
um texto, eu não ficasse jogando só com as idéias e com a formulação
doutrinal dele, mas procurasse entender qual é a realidade vivida a que o
indivíduo estava se referindo, [isso] já teria adiantado muito o meu expediente.
Por isso mesmo eu estou lhes avisando que o que interessa não é
compatibilizar doutrinas, mas entendê-las como [a] expressão de experiências
humanas. Nós todos estamos no mundo, dele temos uma experiência
relativamente limitada, e então tiramos algumas conclusões, mas estas vão
sempre depender da experiência originária. Além disso, às vezes, por trás de
uma doutrina errada que o sujeito formula pode haver uma experiência muito
valiosa e muito profunda, e é nela que interessa chegar.
Por sua vez, a idéia de Leibniz era conciliar todas as doutrinas possíveis. Ora,
nenhuma doutrina pode se compatibilizar com outra que seja formulada de
uma maneira diferente dela no próprio plano doutrinal: ou se cria uma terceira
doutrina que abranja as duas ou coloca-se as duas no próprio contexto maior
da experiência de onde elas emergiram — é só assim que se pode
compatibilizá-las. A primeira dessas operações — a tentativa de formular, a
partir de duas doutrinas opostas, uma terceira que as compatibilize — pode
criar novas e novas dificuldades doutrinais, como de fato acontece. Eu [lhe]
aconselho simplesmente a não fazer isso, [mas] a fazer operação contrária:
tentar justificar as duas [doutrinas] em função da experiência, ou seja, você
não vai afirmar a validade universal incondicional dessa ou daquela [doutrina],
mas vai obter a raiz de sua validação humana; dentro do horizonte de
experiência e de consciência que estava à disposição dos sujeitos [que a
formularam], eles entenderam melhor ou pior [as coisas].
Aluno: O senhor disse várias vezes que na infância se sentia burro, parecia que
todo mundo estava entendendo tudo e o senhor nada. (...)
29
Olavo: Mas isso era batata! E o meu filho Davi também tinha o mesmo
problema, ele achava que os irmãos eram inteligentíssimos e que ele era uma
besta quadrada. Ele era tão inteligente quanto [os outros], mas nada tirava
dele essa impressão.
Aluno: (...) Eu me sinto assim com relação à religião, principalmente. Muitas
vezes quando eu abro o Facebook, vejo um sujeito lá dando cinco passos para
se tornar um católico de verdade, enquanto eu não estou conseguindo nem
mais visitar os Sacramentos. Todas as vezes que tento me orientar, seja com
um padre, seja no site do Padre Paulo, seja estudando diretamente no
Catecismo ou em Santo Tomás de Aquino, eu fico mais e mais confuso. Quanto
a outros assuntos, eu suporto até bem o estado de dúvida, mas quando o
assunto é religião, não posso deixar de me lembrar de eu ir para o inferno e da
possibilidade de morrer a qualquer momento. E isso, sinceramente, me
apavora. Gostaria de perguntar ao Senhor: diante disso, por onde eu começo a
entender pelo menos o elementar da doutrina moral da Igreja? E como eu
posso aplicar, em uma situação em que mesmo tendo um diretor espiritual é
perigoso, o conceito geral em casos particulares com certa segurança?
Olavo: Eu não tenho solução para isso, mas tenho um arranjo prático que eu
mesmo fui elaborando. Eu não confio no entendimento que tenho das coisas;
em vez de buscar o entendimento, eu simplesmente freqüento os
Sacramentos: confesso, comungo e deixo o problema para Deus. Eu não posso
cumprir séria e eficazmente uma norma moral cujo alcance me escapa, cuja
aplicação na vida diária ultrapassa o meu entendimento, mas vou fazendo
aquela parte que entendo, que ficou clara para mim e que sinto que domino.
No mais, confesso, comungo e peço para Deus dirigir a minha conduta de
maneira que eu mesmo nem perceba, porque se eu perceber, vou querer dar
palpite e posso estragar tudo. Não sei se posso arriscar, não gosto de palpite
nisso, mas talvez o miolo, a essência mesma do Cristianismo seja o indivíduo
se deixar guiar sem pretender dominar a situação. Isso que é a kenosis, o
sacrifício total da alma perante Deus, ou como [disse] Nossa Senhora: “Que se
faça em mim segundo a tua Vontade” 33. [Diga a Deus:] “Eu sei qual é a tua
Vontade? Não. Então, Senhor, por favor, faze-me fazer o que queres que eu
faça, mesmo que eu não perceba.” Ou seja, você entrega a direção para Ele e
O deixa dirigir. Faça isso insistentemente. Sempre que começar a pensar muito
— será que é assim, será que é assado —, pare e reze: “Ó meu Senhor, não
estou entendendo nada, então, por favor, dirige-me, e se puderes me fazer
entender, faze-me; se não, faze [com] que eu vá agindo da maneira que seja
mais compatível com o teu desejo, levando em conta as minhas fraquezas, os
meus desejos, etc.”.
Geralmente o sujeito acha que ele primeiro precisa entender o cristianismo
todo para depois passar a praticar tudo”, mas não é assim. Se o cristianismo
fosse uma doutrina a ser aplicada, ele seria como o aristotelismo, o platonismo,
o marxismo ou o regulamento do Clube de Regatas Tietê, em que se estuda o
regulamento e começa a praticá-lo. Mas o cristianismo não é isso: ele é uma
33
Evangelho de Lucas, 1:38. [N.R.]
30
coisa real, que acontece, e acontece na comunhão. A comunhão muda as
coisas de uma maneira inimaginável. O mais importante é continuar indo aos
Sacramentos; mesmo que você não esteja entendendo nada, se você sabe o
que é confessar e o que é comungar, faça-o, isto é o essencial. Se a comunhão,
a Eucaristia é o centro do cristianismo, então esteja lá. No resto, peça que
Deus o guie. Siga o preceito do Padre Pio: reze e não se preocupe.
Você diz que tem medo do inferno. Eu lhe digo: procurar muito essa coisa é
que traz risco [de levar] ao inferno. O inferno está cheio de teólogos, e o céu
está cheio de pecadores. Não espere praticar tudo e ficar bonito. Você quer a
sua perfeição aos seus próprios olhos? Mas se você não sabe o que é a
perfeição, o que Deus está querendo de você, como vou praticá-la? Então, não
peça a perfeição, peça apenas o perdão: peça ao Senhor que o que quer que
você tenha feito, quando chegar o último momento, Ele lhe lembre de pedir
perdão. E pedir perdão é simples, mas é radical. Jesus explicou a Maria Valtorta
que para ser perdoado é preciso perdoar todo mundo. Para fazê-lo, você tem
de abdicar até da presunção de ter tido razão contra os outros. No meu caso,
quando chegar a hora da minha morte, direi que eu achei que tinha razão
contra Paulo Ghiraldelli, mas [vou ter de admitir que] só quem tem razão é o
Senhor, eu não sei se eu tinha. Faça isso, meu filho, que vai dar certo. Estou
ensinando o caminho mais leve, que é o que eu mesmo sigo. Isso não é a
doutrina, não é ensinamento doutrinal, não sou um representante da Igreja,
sou apenas o último e mais vagabundo membro, mas o que estou falando é
sincero, e espero que isso funcione [para você]. Tem funcionado para mim, e
espero que funcione na “hora H” também.
Sentir-se burro em relação ao cristianismo é a melhor coisa do mundo. É uma
grande oportunidade que Deus está lhe dando. Ele só quer que você confesse
e comungue, Ele não está fazendo questão de que você entenda nada. O
cristianismo não é uma doutrina, é um fato da realidade, é um acontecimento
histórico que aconteceu e que continua acontecendo. A doutrina é uma
expressão parcial, limitada e altamente problemática deste fato. Se você
estudar a história dos concílios, vai ver que a doutrina causava brigas em que
as pessoas terminavam matando umas às outros. Se elas, que estudaram
tanto, ficaram em dúvida a ponto de se matarem, como eu vou me orientar no
meio disso? [2:00] Esqueça a doutrina; você [só] vai se preocupar [com ela] se
tiver a infelicidade de ser um teólogo, [o] que é uma responsabilidade muito
grande. E mesmo que você seja um grande teólogo, quando chegar na prática,
você pode analisar as coisas errado e fazer a coisa errada.
Eu mesmo tenho um artigo34 de 2009 que fala sobre o globalismo católico, em
que eu analiso uma encíclica do Papa Bento XVI na qual ele, partindo de
premissas universalmente válidas da doutrina cristã, em seguida interpreta
errado os fatos e chega a conclusões erradas. A autoridade papal é infalível em
matéria de moral e doutrina, mas não em matéria de análise da realidade, de
compreensão histórica. O raciocínio tem duas premissas: a doutrina cristã —
isso o Papa sabe — e o conhecimento dos fatos. Se ele falhar na segunda, a
conclusão será errada; são necessárias duas premissas certas. [Isso] quer dizer
34
“Um globalismo cristianizado?” (Diário do Comércio, 10 de julho de 2009, disponível no link:
http://wpress.olavodecarvalho.org/um-globalismo-cristianizado/). [N.R.]
31
que até o Papa pode errar e dar um conselho errado, por estar baseado numa
doutrina certa mas numa visão errada dos fatos. Então, o problema do
Cristianismo não é a compreensão da doutrina, não é a sua teologia; ninguém
vai ser absolvido ou condenado por sua teologia, mas pela comunhão, pela
confissão, pelo pedido de perdão e pelo perdão oferecido aos outros — faça
isso todo dia.
Às vezes o pessoal reclama e acha que sou muito bravo porque falo umas
coisas horríveis para as pessoas. Se eu estivesse bravo, eu não conseguiria
dizer nada contra elas. É porque primeiro eu as perdoei que eu penso: “O que
devo fazer com esse sujeito? Devo lhe dar umas palmadas para [ele]
aprender”. Aí eu dou. Mas se eu estivesse realmente com raiva, não
conseguiria fazer nada.
Aluno: Frei Leonardo Boff tem 70 livros escritos, ele diz que é cristão e tem
algumas coisas [em] que acho que ele se contradiz. Ele é um intelectual?
Olavo: Não: o Leonardo Boff é um empulhador, é um vigarista em toda a linha.
Ele não acredita numa única palavra que fala, diz qualquer coisa que pareça
bem à platéia e à sua corriola. Ele é um puxa-saco do próprio movimento a que
pertence e tenta agradar a turminha do seu próprio clube, é só isto que ele faz.
Isto não é uma atividade intelectual.
Esses dias, no Facebook — onde eu estou tentando colocar umas opiniões ao
menos como rascunho para depois desenvolvê-las —, houve uma discussão em
que um cidadão disse que era contra a esquerda, mas que devia-se respeitar a
“liberdade das idéias”. Bom, deve-se respeitar o direito de o sujeito expressar
a sua opinião, mas onde [ele vai] expressar essa opinião? Em casa, para sua
mulher, para sua mãe e seu pai, no botequim, conversando com os amigos? Ou
[deve-se respeitar] o direito de ele posar em público e ter todos os meios de
difusão — televisão, editoras, jornais, etc.? O acesso aos meios de difusão não
é um direito, é uma conquista que deve ser baseada no mérito. Todo mundo
tem o direito de emitir uma opinião, mas não em qualquer lugar nem por
quaisquer meios de difusão.
Quando se conversa com essa gente, não se trata de refutar as idéias dela,
mas de questionar o direito que ela tem de ocupar a posição pública de
intelectual, porque, antes de ser um intelectual público, o indivíduo precisa
aprender a ser um intelectual em privado: precisa fazer trabalhos intelectuais,
científicos, filosóficos ou artísticos sérios, que ninguém conheça durante anos,
para [só] depois de ter provado sua qualidade real [poder] aparecer em
público. Aristóteles passou vinte anos estudando na Academia de Platão, e
ninguém o conhecia [antes disso]. Depois disso é que ele abriu o Liceu. Eu
mesmo, que não sou um exemplo para ninguém, acabei dando um exemplo
disso: eu publiquei meu primeiro livro com 48 anos de idade depois de ter dado
muitos cursos privados, [de] ter escrito, pesquisado e descoberto muitas
coisas. Eu não era um intelectual público, eu era intelectual privado,
totalmente desconhecido, e aí, como se diz, eu testei as minhas forças para ver
se merecia falar para um público maior.
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Portanto, o que se deve contestar não são as idéias dessas pessoas, mas sua
presença na vida intelectual. É preciso escorraçá-las da vida intelectual,
dizendo que são vigaristas, farsantes, que estão enganando todo mundo, que
não têm qualificação para entrar no debate intelectual. E digo mais: é preciso
expulsá-las da vida intelectual não por um decreto administrativo, porque
demiti-las simplesmente por não gostar delas seria o procedimento da
ditadura, isso não se deve fazer, mas num confronto cara a cara, deixando-as
tão envergonhadas, tão inibidas, quebrando a autoconfiança delas de tal modo
que elas fiquem quietinhas [por] anos a fio. Então, não se trata de discutir
idéias, nem [de] discutir o indivíduo pessoalmente, mas discutir a sua função
pública, a sua qualificação para estar ali. Naquele debate entre mim e o senhor
Alaor Caffé, eu não sabia quem era ele, ouvi o que ele tinha a dizer, e só no
final, a partir do que ele disse, eu lhe falei: “O senhor não tem qualificação
para discutir isso. Vá para casa e fique quieto”. É isso que a gente tem de
fazer. E com o senhor Leonardo Boff é a mesmíssima coisa: eu não sou contra
as idéias dele, eu sou contra a presença de pessoas desse tipo na vida
intelectual.
Aluno: Há cerca de dois anos, descobri através de um amigo a Igreja Ortodoxa
Oriental. Comprei vários livros, participei algumas vezes da Liturgia numa
paróquia ortodoxa grega e li vários textos e livros, entre os quais a biografia do
Padre Seraphim Rose. Quase me converti, mas não cheguei a fazê-lo,
principalmente porque a minha esposa, que sempre foi mais religiosa do que
eu, não compartilhou da minha simpatia pela ortodoxia.
Olavo: Vou [lhe] responder com uma frase que eu ouvi de Frithjof Schuon —
contra o qual eu tenho mil motivos de queixa, mas [que] de vez em quando
dizia umas coisas extraordinárias —: mudar de religião é como mudar de
planeta; você não muda realmente. Então, fique onde está. Só se muda de
religião num caso realmente sério.
Aluno: Quando você citou aquele verso de Antonio Machado, eu lembrei de
uma aula antiga deste Seminário em que você dizia que existem certos
símbolos que encontramos numa pesquisa ou na própria realidade que servem
como uma chave explicativa para determinadas coisas, e naquele momento
temos a exata sensação de que estamos entendendo tudo, aquilo tem um
efeito luminoso no nosso entendimento, e muitas vezes aquilo é um engano.
Por exemplo, muitos jovens, e eu mesma vivi essa experiência, quando
entendem a luta de classes que Marx explica, imaginam estar entendendo tudo
naquele momento, e, na verdade, estão no maior engano, há muitas instâncias
superiores àquelas que vão explicar tudo, senão tudo, muito mais, e, no
entanto, pensamos que estamos entendendo a realidade.
Olavo: Qualquer coisa que passe pela nossa cabeça, qualquer opinião que
pensemos e da qual tenhamos uma intuição, nunca tem o alcance dessas
supostas grandes descobertas. A todas as grandes descobertas da humanidade
havia misturado um princípio [2:10] de erro. Toda grande descoberta é parcial,
limitada e destinada a ser corrigida — isto é inevitável e será sempre assim.
Todas as nossas piores ilusões, os piores erros da humanidade são produtos da
mente. Por isso ela tem de estar muito dócil à própria realidade, que não foi
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criada por nós e que não podemos abarcar. O que quer que descubramos, sabe
o que [devemos] fazer em seguida? Esquecer, deixar para o dia seguinte e
entregar para Deus, deixando que Ele vá trabalhando em nós.
Quando freqüentamos a comunhão, o que o Padre fala quando põe a hóstia na
nossa boca? “Isto é a minha opinião”? Foi isto que Jesus Cristo falou: “Isto é a
minha opinião. Esta é a minha doutrina”? Não, [Ele falou]: “Isto é o meu corpo
e meu sangue”, ou seja, é algo que se passa não na mente, mas na realidade
carnal, e isso é o que nos transforma e que é o centro de tudo — e na verdade
é só isso que interessa; as nossas idéias vêm e passam. Por isso eu vejo muito
pouco valor nessas grandes explicações doutrinais. Temos a nossa mente para
conseguirmos nos orientar no campo dos fatos que estão acessíveis a nós, e
mesmo aí erramos.
Eu já lhes contei que quando eu tinha 15 anos de idade, descobri a Lei dos Três
Estados; depois descobri que era de Comte, e que estava errada. Uma meia
dúzia de decepções deste tipo me levaram a olhar essas descobertas com
muito menos expectativa. Por exemplo, você lembrou a questão da luta de
classes. Paul Lafargue, que era genro de Karl Marx, disse que quando ouviu a
teoria da luta de classes, foi como se escamas caíssem de seus olhos. Muito
bem, este é o primeiro sentimento de concordância que você tem com uma
idéia, o que não mostra nem se você entendeu a idéia, mostra apenas que
você gostou dela e que portanto você tem a aptidão de compreendê-la. Se
você aprofundá-la e compreendê-la, logo vai ver as limitações dela. Tudo o que
dizemos tem de ser acompanhado desse sentimento de limitação, de modo
que o nosso diálogo possa perdurar e ser útil de alguma maneira, que é o
máximo de pretensão que podemos ter.
Eu quero avisar que o curso “Introdução à Filosofia de Eric Voegelin” 35 já está à
venda para download. Em breve colocaremos à venda em DVD, como faremos
também [com] os outros cursos. Quando o sujeito faz um download, fica com
medo de perdê-lo, então, para garantir, [pode] comprar o DVD. Este curso já
está à venda para download, e em breve colocaremos outros.
Também quero lembrar do curso que darei de 30 de setembro a 5 de outubro,
que se chama “Sociologia da Filosofia” 36. Inscrições com o misterioso sr. Eduy
(
[email protected]; telefone: (041) 9650-9671/3209).
Transcrição: Aline Ribeiro Borges, Tamas Souza, Evandro Santos de
Albuquerque e Jussara Reis de Abreu.
Revisão: Pedro Arthur Carlos de Lima
35
Curso em 6 aulas gravadas entre os dias 27 de abril a 2 de maio de 2009, disponível para
aquisição no link: https://www.seminariodefilosofia.org/produto/introducao-a-filosofia-de-eric-
voegelin/. [N.R.]
36
Curso também em 6 aulas, disponível em:
https://www.seminariodefilosofia.org/produto/sociologia-da-filosofia/. [N.R.]