Cartilha
- Parte 2 -
Função Social da Polícia
1. O que é a polícia?
A polícia moderna é uma invenção recente do ocidente, decorrente de uma insatisfação
popular, resultado da formulação e reconhecimento dos direitos civis, iniciado no século
XVIII. A Polícia é pensada como instituição universal e neutra que visa à promoção da
paz e da ordem pública utilizando meios pacíficos, embora tenha como recurso o uso ou
ameaça do uso legítimo da força física.
O início do século XIX é o marco do surgimento das polícias modernas. A data exata é
1829, com a criação da Polícia Metropolitana de Londres por Sir Robert Peel.
A experiência cotidiana inglesa com as instituições responsáveis pela ordem social, ou
seja, o exército e as polícias privadas, despertou nos indivíduos a preocupação de criar
uma força pública, profissional, paga, com legitimidade e sem estar vinculada a
interesses particulares. Ela deveria estar voltada para atender as demandas da sociedade,
e não, como a polícia francesa, que era direcionada para a proteção do Estado.
É importante ressaltar que os princípios norteadores desta polícia são, basicamente, os
mesmos que orientaram as discussões sobre policiamento comunitário no final do
século XX.
Versão resumida dos nove princípios de Sir Robert Peel
(Fundador da Polícia Metropolitana de Londres – 1829)
A missão fundamental da polícia é a prevenção do crime e da desordem, e não a
repressão.
A capacidade da polícia de cumprir o seu dever depende da aprovação de sua ação pelo
público.
Para obter e conservar o respeito e a aprovação do público, a polícia deve poder contar
com sua cooperação voluntária na tarefa de assegurar o respeito das leis.
O grau de cooperação do público com a polícia diminui na mesma proporção em que a
necessidade do uso da força aumenta.
É pela demonstração constante de sua ação imparcial, e não quando ela cede aos
caprichos da opinião pública, que a polícia obtém o apoio da população.
A polícia não deve recorrer à força física a menos que ela seja absolutamente necessária
para fazer cumprir a lei ou para restabelecer a ordem e, mesmo assim, somente após ter
constatado que seria impossível obter esses resultados pela persuasão, conselhos ou
advertências.
A polícia deve manter com o público uma relação fundada na idéia de que a polícia é o
público e o público é a polícia.
A polícia deve se limitar ao exercício estrito das funções que lhe são confinadas e se
abster de usurpar, mesmo em aparência, aquelas que competem ao poder judiciário.
A prova da eficácia da polícia é a ausência de crimes e de desordem e não a
manifestação visível de sua ação.
2. Papel e atuação
A polícia moderna surge (na Inglaterra) para atender a sociedade. Por definição, a
sociedade é heterogênea, ou seja, é composta por indivíduos e grupos sociais diferentes.
É a partir da experimentação das especificidades, visões de mundo e interesses
diferentes entre os indivíduos que uma sociedade democrática vai sendo construída. Os
conflitos decorrentes destes encontros e divergências resultam na construção de
consensos sobre o que é admitido e o que não é.
O conflito, desta forma, é parte de uma ordem social democrática, e o papel da polícia é
preservar a ordem estabelecida pela sociedade, nunca impor uma ordem. Assim, existe
uma relação direta entre atuação da polícia moderna e a consolidação da democracia.
Nestes termos, cabe à polícia preservar a ordem, fazer a lei ser respeitada e prestar
serviço à comunidade.
A polícia é uma força comedida com o monopólio do uso da força, que tem de atuar
dentro da legalidade e legitimidade, ou seja, a ação policial tem que ser legal e possuir o
consentimento dos cidadãos.
Embora o exército também possua legitimidade para o uso da força, a orientação para as
suas ações possui características inadequadas para a intervenção de conflitos na
sociedade. O exército é uma força estruturada para o combate, que vê o outro como um
inimigo a ser vencido. Desta forma, ele não precisa construir legitimidade da sua
atuação porque o seu poder é imposto.
DIFERENÇAS ENTRE POLÍCIA MODERNA E EXÉRCITO
POLÍCIA EXÉRCITO
Uso da força física comedida combatente
Campo de atuação Interno (conflitos civis) Externo (guerra)
Subordinação Consentida Imposta
3. Mecanismos de controle
A construção de instituições policiais em consonância com um Estado Democrático de
Direito implica a construção de mecanismos de controle da sua atividade. Ou seja, o
controle sobre as polícias é parte integrante do processo de conquista e consolidação da
democracia.
O controle sobre o trabalho policial pode ser interno – como as corregedorias – ou
externo – como as ouvidorias.
3.1. Corregedorias de Polícia – controle interno
Normalmente as polícias possuem mecanismos formais e informais próprios para fazer
o controle sobre a sua atuação. Para além disto, as Polícias Militares e as Polícias Civis
possuem, cada qual, um órgão interno, denominado Corregedoria, encarregado da
investigação de crimes e infrações administrativas e disciplinares envolvendo policiais,
no qual o cargo de corregedor é ocupado por um policial da corporação, escolhido e
subordinado ao comandante da Polícia Militar ou ao chefe da Polícia Civil.
A Corregedoria da Polícia Militar ou a Corregedoria da Polícia Civil são responsáveis
por fazer a investigação preliminar, que é sigilosa, das denúncias recebidas, seja através
da própria vítima ou testemunha, seja do comandante, delegado, Ministério Público,
Ouvidoria de Polícia, Disque-denúncia ou meios de comunicação.
Ao verificar a veracidade da denúncia, é feita uma sindicância e aplicada a penalidade
correspondente para faltas de natureza administrativa; ou, se for um crime, abre-se o
inquérito policial para ser encaminhado para o Ministério Público que o transformará
em ação penal civil ou militar.
Embora tenha a função de investigar, na prática, a Corregedoria encaminha boa parte
das denúncias à unidade que o policial acusado trabalha, para que esta faça a
investigação e remeta as conclusões à Corregedoria.
3.2. Ouvidorias de Polícia – controle externo
As primeiras ouvidorias no Brasil foram criadas nos estados de São Paulo, em 1995;
Pará em 1996; Minas Gerais, em 1997; Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, em 1999.
Embora as Ouvidorias sejam uma experiência recente no Brasil, já é possível perceber
os limites de sua atuação: possuem pouca independência e autonomia, poucos recursos
financeiros, insuficiente número de funcionários e funcionam freqüentemente no
próprio prédio da Secretaria de Segurança.
O cargo de ouvidor é exercido por uma única pessoa com o auxilio de uma equipe
composta por dois assessores policiais (um civil e outro militar), assessores jurídicos,
psicólogas, assistente social, atendente, freqüentemente estagiário de direito, e, às vezes,
um assessor de informática e um de imprensa. O ouvidor é indicado pelo governador,
por escolha pessoal ou através de lista tríplice encaminhada pelos Conselhos Estaduais
dos Direitos da Pessoa Humana, para um mandato de dois anos.
A Ouvidoria, no Brasil, não tem autonomia para investigar por conta própria. Ela recebe
as queixas dos cidadãos relacionadas a policiais e repassa para a própria polícia para
investigar.Assim as queixas são encaminhadas para as corregedorias de polícia para que
esta investigue e responda. Não existe um prazo legal para esta resposta. O que a
Ouvidoria pode, e freqüentemente faz, é pedir para a Corregedoria aprofundar a
investigação caso o resultado não seja satisfatório. Mas a relação entre Ouvidoria e
Corregedoria não tem sido tranqüila.
O relacionamento das ouvidorias com as polícias civil e militar, e com as suas
respectivas Corregedorias, está longe de poder ser definido como de cordialidade e
cooperação. Em geral, é marcado por tensões, conflitos e desconfianças mútuas. As
Ouvidorias acusam as Corregedorias de maquiar investigações para salvaguardar o
nome das polícias. As Corregedorias, por sua vez, acusam as Ouvidorias de lhe
enviarem numerosas denúncias improcedentes e mal fundamentadas, que com
freqüência seriam fruto de tentativas de vingança contra policiais.
Além da Ouvidoria, a Constituição de 1988 deu ao Ministério Público a atribuição do
controle externo das polícias, inclusive através do acompanhamento da investigação
realizada pelas Corregedorias em casos de denúncias de tortura e crimes. Na prática,
porém, salvo exceções de grupos militantes, o Ministério Público, mesmo ocupando um
lugar privilegiado devido a sua autonomia frente aos Poderes Executivo e Judiciário,
não tem exercido o seu papel de controle externo.
4. O policial como o outro: polícia x sociedade?
Cotidianamente, a polícia atua quando alguma coisa que não deveria estar acontecendo,
acontece; e sobre a qual alguém tem que fazer alguma coisa, agora e bem. Ela
experimenta toda a diversidade e acaso, vivenciando as situações mais inusitadas e
interagindo com os mais diversos grupos.
Entretanto, as polícias militares, nas décadas de 60 e 70, tiveram uma atuação voltada
para a segurança do Estado, ao invés de ter uma preocupação com o cidadão que era
colocado sob vigilância, devido a uma possível orientação política contrária aos
interesses do Estado. Da experiência durante a Ditadura, propagou-se o medo da polícia
pela classe média. O que só alargou os segmentos sociais que viam a polícia como fonte
de arbitrariedade e truculência. Se atualmente, não existe o medo do confronto policial
por conta das orientações políticas. Existem outros medos. Nas classes trabalhadoras, a
polícia continua sendo identificada como origem da violência.
Embora estas representações não se traduzam no comportamento e atuação de muitos
policiais, o certo é que a relação polícia e sociedade possui uma história conturbada de
suspeitas, violações de direitos, torturas, chacinas, corrupção e extorsão. O resultado
disto é uma instituição com baixo índice de credibilidade diante da sociedade. Seja qual
for a classe social, existe um desconforto decorrente do encontro com a polícia – nunca
se sabe o que pode acontecer. E, se não existe confiança, como cooperar com o trabalho
policial?
Por outro lado, em uma sociedade onde as relações pessoais – os “conhecidos”, os
parentes e o “você sabe com quem está falando”– freqüentemente dão a medida da
aplicação da lei, a lógica do trabalho policial torna-se sem previsão. A polícia oferece
um tratamento desigual aos indivíduos, no mesmo sentido que a sociedade se percebe
como desigual.
A POLÍCIA NO BRASIL
Em 8 de março de 1808, aportam no cais no Rio de Janeiro, o rei D. João VI, a família
real e uma comitiva de 10.000 a 15.000 pessoas – fora os militares – dispostos a
transformar a colônia em um “novo império”. Os portugueses recém chegados
encontraram uma população hostil e perigosa e com o espaço público na cidade
ocupado por escravos africanos como nunca tinham visto em sua pátria. Para manter a
ordem, o rei cria, em 10 de maio de 1808, a Intendência Geral de Polícia da Corte e do
Estado do Brasil, a exemplo do que já existia em Portugal desde 1760, e que por sua vez
foi baseado no modelo francês. A Intendência tinha a responsabilidade pelas obras
públicas e o abastecimento da cidade, segurança, ordem pública, vigilância da
população, a investigação dos crimes e a captura dos criminosos. Ela é considerada a
origem das polícias civis estaduais.
Em 13 de maio de 1809, para dar suporte a Intendência, D. João VI cria a Guarda Real
de Polícia, que originou as atuais polícias militares. A Guarda foi criada como uma
força policial de tempo integral, com uma organização militar e com a função de manter
a ordem e perseguir criminosos. Subordinada à Intendência de Polícia, a Guarda Real
foi autorizada a funcionar com 218 homens, mas sempre teve dificuldade em completar
o efetivo pelos baixos salários.
Passando ao longo dos anos por diversos momentos de atribuição e transformação, em
1969, através de decretos, o policiamento ostensivo fardado passa a ser atribuição
exclusiva das Polícias Militares, marcando o seu retorno à função de policiamento num
contexto de ditadura militar, que significou o controle de multidões e operações de
choque de manifestações civis e o “caça às bruxas”. Em 1970, através do Decreto-Lei
66.862/70, as Polícias Militares recebem a determinação para se incorporarem ao
serviço de informações e contra-informações do Exército, contaminando, desta forma, a
sua atividade de policiamento, com a preocupação de produzir informação contra um
“inimigo” interno. Neste momento, se desenhou o modelo de polÍcia que vigora até
hoje, ou seja, de duas organizações policiais estaduais de ciclo incompleto. Uma polícia
– militar – com o papel de policia fardada e ostensiva; e outra – civil – com atribuição
judiciária e investigativa.
Mas o que significa “ciclo incompleto”? A expressão indica que, ao invés de uma única
instituição policial desempenhar as funções de investigação e policiamento ostensivo,
estas se encontram divididas em duas polícias, que devem operar, portanto, em caráter
de cooperação. A polícia militar realiza o policiamento ostensivo uniformizado; é a
polícia do “antes e durante” que vemos diariamente nas ruas. A polícia civil é judiciária,
ou seja, opera depois do evento ocorrido, no registro e investigação dos crimes
cometidos. A primeira é de caráter essencialmente preventivo, partindo do pressuposto
de que sua presença ostensiva inibe as ações criminais e de desordem pública. A
segunda é, por definição, repressiva, pois opera no pós-fato, sobre as conseqüências das
ações em sua investigação.
No Rio de Janeiro, em 1983, como conseqüência das eleições diretas para o governo do
Estado, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro passa a ser comandada por um
oficial da Polícia Militar e não mais por um oficial do Exército. No ano seguinte, as
mulheres passaram a ser admitidas na PMERJ. A Constituição de 1988 expressa estas
mudanças ao considerar a segurança pública como dever do Estado, mas direito e
responsabilidade de todos os indivíduos (Constituição Federal, art. 144).
Desta forma, a década de 1980 marca o início de um processo de redefinição do papel
das policiais, em especial a Polícia Militar, e, como transformação, isto não ocorre sem
contradições e conflitos.
A Constituição de 1988 e as Polícias
Cada polícia, no Brasil, tem a sua estrutura e funções definidas pela Constituição.
Assim, cabe a:
Polícia Federal
Apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens,
serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas,
assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou
internacional e exija repressão uniforme (art. 144, §1°, inciso I);
Prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o
descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas
respectivas áreas de competência (art. 144, §1°, inciso II);
Exercer as funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras (art. 144, §1°, inciso III);
Exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União (art. 144, §1°,
inciso IV);
Polícia Rodoviária Federal
Fazer o patrulhamento ostensivo das rodovias federais (art. 144, §2°);
Polícia Ferroviária Federal
Fazer o patrulhamento ostensivo das ferrovias federais (art. 144, §3°);
Polícias Civis
Exercer a função de polícia judiciária e realizar a apuração de infrações penais, exceto
as militares (art. 144, §4°);
Polícias Militares
A elas cabem o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (art. 144, §5°),
sendo que a polícia militar, juntamente com os corpos de bombeiros militares, são
forças auxiliares e reservas do Exército (art. 144, §6°)
A Polícia Militar
A Polícia Militar (PM) tem como base a hierarquia e a disciplina. Ela é organizada
militarmente seguindo um modelo inspirado no Exército Brasileiro. Como no Exército,
a PM possui Estado Maior, cadeias de comando, batalhões, companhias, tropas,
destacamentos, regimentos etc, e o efetivo é distribuído hierarquicamente em
graduações ou patentes militares. É conhecida como polícia ostensiva, isto é, aquela
responsável por atuar na “manutenção da ordem e da paz pública”.
8. Sistema judiciário criminal brasileiro
As polícias – especialmente as militares – representam a parte mais visível das
organizações responsáveis pela segurança pública. Desta forma, vale a pena tentar
compreender o sistema judiciário criminal brasileiro para, assim, entender como atuam
as polícias civis.
No Brasil, o sistema judiciário criminal envolve diferentes instituições – polícias, o
ministério público, o judiciário e o sistema prisional – com diferentes princípios de
organização. É bem difícil compreender estas instituições como um único sistema
coerente porque cada instituição atua de uma forma e um sistema, pressupõe-se, é
composto por elementos inter-relacionados que operam com a mesma lógica. Desta
forma, pode-se falar em subsistemas dentro do sistema judicial criminal. Têm-se, então,
o da polícia, o do processo judicial propriamente dito, o do Tribunal do Júri e o do
Juizado Especial Criminal.
8.1. O inquérito policial
A Polícia Civil é uma polícia judiciária, isto significa dizer que ela transforma o fato
social, trazido pela PM ou por um denunciante, em fato jurídico. O inquérito policial
pode ser conduzido pela Polícia Civil sem que o acusado saiba exatamente como e
porque está sendo investigado e sem espaço formal para que ele possa se defender.
Porém, se o acusado tiver condições financeiras, ele poderá ter um advogado para seu
suporte nos processos que envolvem o inquérito, e se não tiver passará por este percurso
sem assistência jurídica.
A questão é que o conteúdo do inquérito policial – “a verdade” do inquérito – pode, e
freqüentemente é, levado em consideração no processo judicial para o “livre
convencimento” do juiz. Até porque nem a magistratura nem o Ministério Público
possuem equipe para fazer investigações. E, embora exista a presunção da inocência –
onde todo mundo é inocente até que se prove o contrário – na prática, verifica-se o
contrário: o indiciado já é olhado como culpado, tendo que provar a sua inocência.
Assim, no término do inquérito policial, tendo provas, o delegado indicia o acusado
para o Ministério Público.
8.2. O Processo judicial
O Ministério Público é uma instituição do Poder Judiciário e tem como uma de suas
funções promover a ação pública (CF, art. 129, inciso I), assim com exercer o controle
externo da polícia (CF, art. 129, inciso VII). Cabe ao Ministério Público iniciar o
processo penal na esfera do judiciário, através da denúncia feita pelo promotor. Nesta
etapa, há a ampla defesa e o contraditório – que consiste respectivamente, na
possibilidade de usar todos os recursos para a defesa e na oposição de teses entre a
defesa e a acusação.
Assim, o réu apresenta a sua defesa – na qual pode mentir – ao juiz que decide de
acordo com o seu “livre convencimento”, pressupondo que o julgamento do juiz é
neutro, racional e imparcial na sua busca pela verdade real. Este procedimento favorece
o que foi escrito no processo e no inquérito, a interpretação pessoal do magistrado e o
caráter implícito dos acontecimentos.
O Estado possui múltiplas funções, que podem ser classificas em três grupos: funções
legislativas, funções executivas e funções judiciárias. Os Estados democráticos
contemporâneos têm essas funções organizadas em três órgãos distintos e independentes
que chamamos de Poderes, assim tem- se o Poder legislativo, o Poder Judiciário e o
Poder Executivo.
8.3. O Julgamento pelo Tribunal do Júri
Nos crimes intencionais contra a vida humana, ao proferir a sentença, o juiz
impronuncia ou pronuncia o réu. No último caso, o réu tem o seu nome inscrito no rol
dos culpados. No julgamento pelo tribunal do júri, o réu será julgado por jurados
escolhidos por sorteio de uma lista anual de nomes. Os jurados não podem discutir o
caso entre si e o voto é secreto conforme a consciência de cada um.
8.4. Juizados Especiais Criminais – JECrim
O JECrim foi criado pela Constituição de 1988 e regulamentado pela Lei 9.009/95, a
fim de dar rapidez ao processo judicial e desafogar a Varal Criminal, julgando os crimes
de menor potencial ofensivo. Assim, o processo seria mais rápido, com menos
formalidade e a sentença refletiria um consenso entre as partes.
9. O COTIDIANO DO POLICIAL
A atividade de policiamento faz com que os policiais passem a pertencer ao cenário
urbano. Tanta naturalização da sua farda, gesto e fala não significa conhecer estas
pessoas: quem são, como vivem, o que sentem.
Antes de tudo, é importante ressaltar que as Polícias Militares possuem uma
segmentação interna fruto de uma dupla entrada na polícia. Ou seja, o interessado em
entrar na PM pode fazer concurso para praça – que exige o ensino fundamental
completo – ou para oficial, que é semelhante a um vestibular, exigindo do candidato o
ensino médio completo. Isto faz com que exista uma lógica para os praças e outras para
os oficiais.
A maior parte do efetivo da PMs é formada pelos praças – soldado, cabo e sargento. Na
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, 91,1% do efetivo é composto
pelos praças, que são os responsáveis pelo policiamento, na sua maioria jovens de 18 a
34 anos de idade.
As Policiais militares, tradicionalmente, têm recrutado os seus trabalhadores dos
segmentos populares da sociedade, que vêem na carreira militar – tanto nas forças
armadas como na polícia – uma possibilidade de estabilidade profissional e ascensão
social, embora a insatisfação pelos vencimentos das PMs seja freqüente.
Em 2001, devido à greve de corporações de cinco estados (Paraná, Pará, Pernambuco,
Rio Grande do Sul e Alagoas) e de mobilizações reivindicatórias em outros cinco
(Amazonas, Distrito Federal, Espírito santo, Goiás e São Paulo) por aumento de
salários, o jornal O Globo fez um panorama dos salários dos policiais militares no
Brasil, no qual mostrou o retrato da má remuneração a uma atividade extremamente
importante para a construção da democracia. Naquele momento, houve o
reconhecimento da “baixa remuneração” dos policiais pelo então chefe do Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência da República. Passados cinco anos, a
insatisfação dos salários – ainda que velada – continua.
10. O dia-a-dia e as condições de trabalho
As PMs são basicamente compostas por indivíduos da classe média baixa, enfrentando,
desta forma, dificuldades estruturais decorrente da baixa remuneração, sendo a moradia
uma questão crucial para muitos policiais.
Devido à falta de recursos, alguns policiais têm de morar em áreas urbanas dominadas
pelo tráfico de drogas. O resultado disto não poderia ser mais cruel: ou o policial tem de
esconder sua profissão, ficando constantemente a tensão de sua profissão ser descoberta
pelos bandidos; ou ele terá de se mudar para um local considerado seguro e/ou que
desconhecem a sua profissão.
Algumas vezes, a necessidade de abandonar o local em que nasceu e cresceu se estende
a seus familiares também. Esta expulsão não significa só uma mudança de endereço,
mas o rompimento dos laços de amizade e solidariedade construídos ao longo de uma
vida. A reportagem de O Globo do dia 28 de maio de 2006 ilustra esta realidade.
Realizada após os ataques a policiais e bombeiros paulistas que resultaram na morte de
46 policiais e civis e de pelo menos 80 suspeitos ou autores dos ataques, a reportagem
intitulada “A Farda Sumiu do Varal” aborda o medo de ser policial atualmente. Dentre
os vários relatos, há o de um oficial que confessa o seu medo objetivado na
impossibilidade de estender a sua farda lavada para secar no varal.
Se há o medo em casa, o trajeto entre a casa e o trabalho também merece uma série de
precauções do policial como não andar fardado, evitar pegar ônibus e esconder a sua
carteira funcional. O confronto em transportes coletivo tem sido responsável por mortes
de policiais militares devido à reação a assaltos, ou quando o bandido percebe que um
indivíduo é policial e tenta assassiná-lo. Os números do Rio de Janeiro ilustram esta
afirmação chegando a uma média de 4,8% entre os anos de 2001 e 2003 de incidência
de fatalidade de policiais militares no horário de folga em transportes coletivos.
A parte do efetivo alocado na atividade-fim (policiamento ostensivo) trabalha em
escala, embora existam variações regionais. É comum – principalmente para os que
trabalham em viaturas – a escala “24/72 quebrada”, ou seja, trabalha 12 horas de dia
descansa 24 horas, trabalha 12 horas à noite e descansa 48 horas. O seu tempo “vago”,
freqüentemente, é ocupado com o trabalho em uma segunda atividade. Assim, este
tempo é utilizado para “complementar renda” fazendo “bico”, principalmente em
segurança privada. No final das contas, além de trabalhar na polícia por mais de 40
horas semanais, o tempo restante é ocupado em uma outra atividade, ou ainda em
escalações para fazer policiamento em eventos esporádicos como jogos de futebol,
shows em lugares públicos e festas populares como Copa do Mundo, Revéillon,
carnaval... O impacto desta dupla jornada é sentido tanto na saúde do policial quanto no
seu desempenho profissional como servidor público.
Chama também a atenção o fato de ser durante a folga do policial que há a maior
incidência de mortes, o que não pode ser dissociado da prática do “bico”. Em alguns
casos, pode-se considerar como fatores que contribuem para este número o fato de o
policial entrar em confronto sozinho, sem equipamento apropriado e sem apoio
logístico. Outro número que chama atenção é decorrente da relação entre grau
hierárquico e vitimização. Entre 1995 e 1997, 93,9% dos policiais mortos ou feridos
eram praças (sargento, cabo e soldado), sendo que 44,3% eram soldados.
Há pouca atenção social e política à questão da vitimização dos policiais tanto no
trabalho quanto na folga. A falta de preocupação com a segurança e saúde ocupacional
destes trabalhadores, acarreta neles a sensação de que são desprovidos de qualquer
direito, o que é expresso na máxima: “polícia não tem direitos humanos, eles só existem
para os bandidos”.
A soma do período do trabalho de policiamento com a jornada no segundo emprego, e o
alto nível de estresse que estas atividades agregam, com o passar do tempo, faz com que
policiais recorram a medicamentos e substâncias químicas para controlar o cansaço e o
sono. Depoimentos de PMs dão conta disso e também do uso abusivo de bebidas
alcoólicas e psicotrópicos como um recurso para lidar com a fadiga e o estresse
profissional.
Caso se olhe para os motivos de afastamento temporário na PMERJ se pode ver também
que o ritmo e o tipo de trabalho faz com que existam seqüelas na saúde do policial. 12%
dos pedidos de afastamento são decorrentes de problemas de saúde, sendo 10,0%, 1,0%
e 1,0% relativos às “licenças para tratamento de saúde” em geral, as “licenças para
tratamento de incapacidade física parcial” e as “internações hospitalares”,
respectivamente. Nestes percentuais estão incluídos os afastamentos motivados pelas
vitimizações sofridas e os demais solicitados por conta dos problemas de saúde
confirmados pela perícia médica.
As queixas dos PMs, em particular dos praças em relação às “condições de trabalho”,
são rotineiras e fazem parte do repertório de dificuldades que eles dizem enfrentar no
cumprimento de suas atribuições. Quando se reportam às precárias “condições de
trabalho” eles estão também se referindo aos meios e processos de trabalho, os quais
potencializariam os riscos de vitimização e de “pegar (determinadas) doenças”. O
contato com ambientes insalubres dentro e fora das instalações policiais, os turnos
desgastantes, o sobre-empenho da mão de obra policial, a tensão e o estresse resultantes
das atividades policiais e da pressão política pela produção crescente de resultados
mensuráveis e visíveis (como as prisões e apreensões), são freqüentemente apontados
como indicativos de uma organização e gestão deficitária do trabalho policial ostensivo
que careceria de perspectivas e investimentos adequados.
É com este cenário em mente que os PMs da ponta da linha questionam a sua segurança
no trabalho e mencionam os “problemas de saúde” que acreditam estarem mais
expostos. Suas falas referem-se, principalmente, a um conjunto amplo de doenças
identificadas como “de coração” e de “fundo nervoso”. Casos de hipertensão, pressão
alta, ansiedade, paranóia, neurose, descontrole emocional, gastrite, úlcera, micoses,
alergias, câimbras, dores na coluna e nos músculos são muito relatados e, em boa
medida, correspondem às doenças mais notificadas.
Segundo pesquisas, poucas organizações policiais militares desenvolvem programas
visando a redução de estresse e tratamento de transtornos mentais. Quando existe,
também há por parte da tropa uma resistência ao tratamento psicológico e psiquiátrico,
que geraria a discriminação de seus colegas de trabalho, bem como a possibilidade de
acautelamento de sua arma, o que significaria o afastamento de sua atividade de
policiamento. Acredita-se, desta forma, que exista uma subnotificação de registros de
“transtornos mentais”, sendo tratados através de assistência social.
De forma geral, uma conversa com um policial nunca é sem impacto quando este tenta
passar um pouco do que é a sua vida, como é conviver com estes vários mundos, os
tipos sociais e as moralidades que a natureza do trabalho policial exige. Muitas vezes
em falas exageradas e cênicas, o policial tenta chamar para si a atenção do seu
interlocutor para os seus dramas cotidianos, que estão relacionados a nossa busca pela
construção de uma ordem social menos violenta. E que afinal, o policial é um ser
humano tendo que lidar com todas as contradições e demandas da vida social.
Continua...