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Museus e Museologia: Conceitos e Relações em Retrospectiva: January 2020

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Museus e museologia: conceitos e relações em retrospectiva

Chapter · January 2020

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4 authors, including:

Mariana Rigoli Mell Siciliano


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Federal University of Rio de Janeiro
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322

iuseus e Museologia: conceitos e relações em retrospectiva


Mariana Rigolf', Mell Siciliano”, Yago Freitas, Teresa Scheiner

Introdução

Estudar conceitos e suas relações é uma das atividades sob as quais se


concentram, frequentemente, os esforços teóricos de um campo. Em metáfora, cada
conceito representa as colunas e vigas, que sustentam a casa, ou ainda as pedras, que
sustentam a ponte. São fundamentais para que a construção se mantenha sólida e
firmemente erguida. Especificamente no campo da Museologia, construção sob a qual se
dedica este trabalho, é mister que tais alicerces sejam não apenas conhecidos, mas
compreendidos em sua relevância para a manutenção do campo; afinal, é sobre bases
consistentes que as teorias devem ser debatidas e expandidas.
Desta maneira, propõe-se neste capítulo um caminho sobre esta ponte do
conhecimento, através do qual serão descritos marcos da produção teórica desenvolvida
ao longo dos séculos XX e XXI, revisitando conceitos basilares da Museologia. Através
desta jornada, serão apresentadas as contribuições de autores fundamentais, atuantes
em instâncias de grande relevância como o ICOFOM (Comitê Internacional para a
Museologia) e ICOFOM LAM (Subcomitê Regional do ICOFOM para a América Latina e
Caribe).

Dividido em três partes, o texto apresenta em sua primeira seção, sob o título de
Museus e Museologia, as origens da ideia de Museus e a gênese da Museologia. São
explorados temas como o mito de origem, templo das musas, perpassando pela
museografia para então culminar na museologia. A seguir, na parte Il, intitulada
Museologia, Musealidade e Musealização são tratadas questões próprias destes
conceitos fundamentais para o campo, abordando definições e relações entre os termos.
Por fim, na terceira e última parte, Museologia e ética na contemporaneidade, são
abordadas questões práticas referentes ao papel do ICOM (Conselho Internacional de
Museus), ICOFOM e ICOFOM LAM nos impasses éticos da atualidade.

Membros destes órgãos, como Zbynék Zbyslav Stránsky e Vinos Sofka, originários
do leste europeu e com desenvolvimentos teóricos ímpares; André Desvallées e François
Mairesse, franceses que contribuem de forma rica e sistemática na atualidade; e Tereza
Scheiner e Nelly Decarolis, brasileira e argentina, respectivamente, com produções

* Bacharel em Artes e Design pela UFJF, Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio
UNIRIO/MAST. E-mail: rigolimariana Bemail. com
? Bacharel em Biblioteconomia e Gestão de Unidades de Informação pela UFRJ, Mestre em Ciência da Informação
IBICT/UFRJ, Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio UNIRIO/MAST. E-mail:
melisiciianodemail.com
* Bacharel em Arquivologia pela UFBA, Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio

4 Museóloga pelo MHN (0156-I, Corem 2º. Região), Geógrafa pela UERJ, Mestre e Doutora em Comunicação pela
ECO/UFRJ. Professora e Coordenadora do Doutorado, Programa de pós-graduação em Museologia e Patrimônio — PPG-
PMUS, UNIRIO/MAST. Coordenadora, NUCLEM — Núcleo de Estudos e Pesquisas em Museologia, Patrimônio e
Desenvolvimento, UNIRIO/CCH. Criadora e Consultora Permanente - ICOFOM LAM.
323

fundamentais não apenas na museologia global, mas pelo reconhecimento e aplicação de


uma museologia feita por e para a América Latina e Caribe, inclusive na condição de
fundadoras do ICOFOM LAM, são exemplos da base teórica dos conceitos fundamentais
ao campo utilizados.

Assim, a proposta de uma retrospectiva se fundamenta, justamente, pelo olhar ao


futuro: é o caminho já percorrido que proporciona os fundamentos —- e os
questionamentos — para um caminhar da Museologia e dos Museus na direção de um
amanhã em desenvolvimento.

| - Museus e Museologia

Ao explorar os alicerces desta ponte, é impossível não falar sobre a gênese do que
hoje conhecemos por museus. As primeiras iniciativas surgiram ainda na Antiguidade,
nas chamadas pinacotecas (pinakothéke), local onde pinturas, estátuas e objetos ficavam
expostos ao público. Ao valorar estas obras como patrimônio cultural, acrescenta-se que
na Idade Média, a Igreja exerceu papel de destaque na formação de grandes coleções no
mundo ocidental, resultado de doações de fiéis e de clérigos, além de aquisições e
encomendas (SHAH, 2007).
Entre os séculos XVI e XVII, os gabinetes de curiosidades, formados por obras de
arte, exemplares botânicos, minerais e de animais, instrumentos tecnológicos da época,
dentre uma infinidade de possibilidades, constituíam uma “coleção” de artefatos, por
assim dizer, curiosos e exóticos, muitas vezes trazidos das expedições realizadas no
período das grandes navegações e adquiridos sem critérios preestabelecidos. Todavia,
durante muito tempo “existia em quase todas as civilizações certo número de lugares, de
instituições e de estabelecimentos que se aproximavam mais ou menos diretamente
daquilo que [chamamos de museu]” (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013, p. 65). Este modelo
é considerado como o precursor dos museus, e que até hoje habita o imaginário das
pessoas. No entanto, Desvallées e Mairesse (2013, p. 64) notam que “a forma e as
funções do museu variaram sensivelmente ao longo dos séculos. Seu conteúdo
diversificou-se, tanto quanto a sua missão, seu modo de funcionamento ou sua
administração”.
Com o passar dos anos, precisamente no século XVII, o museu consolidou-se
como o modelo mais próximo das instituições que vemos hoje. O primeiro museu público
a surgir nestes moldes, em 1683, foi o Ashmolean Museum, fruto da doação da coleção
de Elias Ashmole por seu sobrinho John Tradescant à Universidade de Oxford. Em 1793,
após a Revolução Francesa, o governo revolucionário abre as portas do Louvre, contando
com sua coleção para finalidades culturais e de entretenimento e acessível ao povo.
4
Para encontrar a fundação deste paradigma é necessário recorrer à mitologia
grega, com o mito de origem, que traz o Mouseion, ou “Templo das Musas”, lugar onde
Calíope (poesia), Clio (história), Polimnia (pantomina: expressão por meio de gestos),
Euterpe (música), Terpsicore (dança e poesia musicada), Érato (lírica coral), Melpómene
(tragédia), Talia (comédia) e Urânia (astronomia e/ou matemática), filhas de Zeus e
Mnemosyne, habitam e se manifestam. Este templo, ou lugar musealizado, seria o local
onde as musas falavam através das pitonisas e também o local de culto ao objeto e ao
espaço físico, carregando de sentido a preocupação com a sua preservação, uma vez
324

tratar-se de “um relicário, um local de guarda das coisas sagradas” (SCHEINER, 1999, p.
128).
Os museus então começam a se desenvolver tendo como modelo esta ideia de
templo, e dele nascem âmbitos de estudo com a finalidade de compreender seus
processos. A Museologia surge como uma prática nos museus, de saberes e fazeres
inerentes às instituições, a esses templos dedicados à documentação, conservação,
pesquisa e comunicação da memória e da formação de identidades. É através destas
práticas que o homem é capaz de lutar contra a finitude e a escuridão do esquecimento.
Importante dizer que o esquecimento pode ser uma escolha, principalmente quando se
produz um discurso hegemônico. Retornaremosa este ponto mais adiante, mas por ora,
é importante entender que estes fazeres relativos aos museus, aos quais a Museologia se
dedica em um primeiro momento, são ferramentas de preservação dos objetos, estes
como o ponto central desta área.

Durante o segundo quarto do século XX, estudos acerca de obras e objetos, seus
meios de apresentação, observações in loco e descrições dos museus eram a maioria dos
documentos produzidos, não podendo ser considerada uma produção sistemática de um
universo, apenas de casos particulares. Então, em 1934, acontece a primeira Conferência
Internacional de Museologia, organizada pelo Ofício Internacional de Museus, dedicada à
arquitetura e à gestão de museus. Segundo Maroevic (MAROEVIC, 2007 apud SOARES,
2009, p. 34), este é o momento em que se separam as abordagens museográficas e
conceitual — museológica — do trabalho nos museus. Essa cisão parte da proposta do
museólogo francês Georges Henri Riviere ao trazer uma delimitação dos termos,
distinguindo-os entre o que seria a teoria, relacionada a questões conceituais e
científicas da museologia; e a prática museológica, referente à dita museografia, isto é, a
“escrita do museu” ou atividades técnicas.

Ao prosseguir no tempo da museologia, nos anos de 1960 houve uma “crise do


museu” (SOARES, 2009, p. 34), quando alguns autores e artistas declaram sua “morte”.
Este foi um momento fortuito que colaborou, nos anos 1970 e 1980, para uma mudança
de visão, para a renovação de ideias e o aprofundamento da reflexão museológica. Esta
movimentação foi um dosprincipais alimentos para a Nova Museologia, assim como
as ideias teóricas trazidas à tona a partir da reflexão iniciada no leste
europeu desde 1968, quando os museus desta região já demonstravam
grande preocupação com a sua profissionalização, tendo a Museologia
como disciplina destinada a realizar este objetivo (MAIRESSE, 2007
apud SOARES, 2009, p. 34).

Pois é Zbynéek Stránsky, museólogo tcheco, que propõe uma mudança de


paradigma na Museologia: o museu como fenômeno. Para compreender este conceito,
Tereza Scheiner (2015) traz uma reinterpretação, justamente, do mito de origem do
templo das musas, uma vez que as filhas de Zeus e Mnemoósyne, não têm uma morada
fixa. Elas representam a “palavra-cantada”, expressão poética da oralidade. Elas mantêm,
pelo cantar, “tudo o que será e é e já foi”. O museu, por conseguinte, não é o espaço
físico, mas sim o espaço de personificação das ideias, de recriação do mundo por meio da
memória.
325

É nesta acepção, do museu como instância simbólica, como instante relacional


entre homem e coleção, entre o Homem e a realidade, que se dá o fenômeno.
Adequando-se a este contexto, o movimento da Nova Museologia emerge
transformando as perspectivas até então desenhadas: é o momento em que os olhos da
Museologia, habituados a olharem para dentro de si e para dentro dos museus,
expandem suas órbitas para ver o que está fora. O homem. Se antes a Museologia tinha
seu foco voltado ao objeto, agora o objeto primeiro de seus estudos é o ser humano e a
construção das relações para com sua memória, identidade, referências e a própria
posição diante da sociedade e do Real, podendo entender-se como uma Museologia
ativa.

Curioso pensar como, justamente, o Real e a sociedade se relacionam


intimamente, e por si só, com a conjuntura museológica e dos museus. Ora, se o museu
apresenta em suas exposições e canais comunicacionais recortes do Real, ele mostra
realidades. O Real, sendo um universal filosófico, é impossível de ser representado
plenamente dentro de apenas um contexto, ou dentro de uma única narrativa
apresentada através de uma coleção de objetos que já passaram por escolhas no
processo de musealização. É por isso que, em se tratando de um recorte, o que é
apresentado é uma realidade, um simulacro, uma dobra do Real. E a realidade, sendo
assim, é a expressão de uma sociedade específica em um momento específico. Portanto,
o museu — assim como a sociedade — está em constante mutação.

Ao entender que o museu, bem como a museologia, está no seio da sociedade e


são Os sujeitos, os indivíduos, que os constroem, supera-se a ideia de museu-templo e
assume-se o museu-fórum”, onde a participação da comunidade deve ocorrer em várias
instâncias intra e extramuros. Esta é a proposição da Museologia Crítica, que desde os
anos de 1970 preconiza que a museologia tradicional, assim como seus princípios
básicos, são um produto da sociedade nas quais são criados, ou seja, definidos pelo
contexto histórico, político e econômico no qual os museus e os museólogos estão
imersos. Apresenta um modo de repensar a construção/reconstrução,
apresentação/representação e comunicação de uma mensagem que implica em certa
noção de identidade e cultura (NAVARRO, 2006), mas também de pertencimento, auto
reconhecimentoe criação de afetos”, sempre tomando o Homem como o centro.
É sob esta concepção que podemos retomar a ideia da Museografia, recorrendo à
própria etimologia da palavra. Grafia, do grego gráphein, significa escrever, descrever,
desenhar. Ora, se a Museografia é a escrita do museu, como proceder para que a
sociedade (formada em sua diversidade por sujeitos especializados e não especializados
nesse “alfabeto”) possa fazer a leitura desse texto dos museus? Ou como diria Marília
Xavier Cury (2005), ler esta “poesia das coisas”?
Como vem se repetindo ao longo do caminhar da Museologia, as organizações
dedicadas aos museus e à museologia têm elevado as discussões em busca da construção
e, posteriormente, do posicionamento da Museologia como campo. Esta seara de estudo
já foi referida como “ciência aplicada” e “ciência auxiliar”. Entretanto, a partir dos anos

º A ideia de museu-fórum, pode-se dizer, também já foi superada na contemporaneidade. É possível pensar sob
acepções de museu-laboratório, museu como experiência, como lugar de encontros, dentre outros, mas
principalmente "como um processo, em contínuo devir" (DE VARINE apud SCHEINER, 2007).
$ No sentido filosófico como afecção, que faz emocionar.
326

1970, com a Nova Museologia, ganha caráter transdisciplinar e culmina, ao fim do século
XX, sendo compreendida como campo disciplinar em construção. Stránsky (apud
SCHEINER, 2007) ainda lembra que para que a Museologia se desenvolva, é fundamental
abordar os "paradigmas emergentes da ciência contemporânea". Scheiner conclui que:
é justamente o trabalho com os novos paradigmas que permitirá aos
teóricos implementar a Museologia como campo disciplinar emergente:
não como subsidiaria de outros campos ou ciências, ou como colagem
de traços constitutivos da história, da filosofia, das ciências naturais
e/ou sociais, mas como disciplina específica, que ganha corpo e forma
nas interseções entre os demais campos do conhecimento” (SCHEINER,
2007, p.4)

Tais mudanças são significativas e necessárias para o desenvolvimento da área e


podem ser percebidas, também, a partir da análise das diversas definições de museu e
suas transformações no decorrer do tempo.
Em 1948, o ICOM — International Council of Museums — criado em 1946,
apresenta a seguinte definição para o termo museu: "inclui todas as coleções abertas ao
público de objetos artísticos, técnicos, científicos, à exclusão de bibliotecas, salvo se
mantidas permanentes em sala de exposição” (BAGHLI et al. apud ALVES; SCHEINER,
2012).
Já em 1951, o conceito é alargado, trazendo informações referentes às atividades
ligadas à preservação, comunicação e exposição das coleções ao público, e ainda,
considerando a possibilidade de tornar semelhante aos museus - nesse momento
designados como “estabelecimentos permanentes” -, as bibliotecas públicas e arquivos
que mantém salas de exposições de longa duração, demonstrando assim a centralidade
da exposição nas atividades.

Mais tarde, em 1965, é acrescentada a ideia de museu como "instituição a serviço


do homem e seu desenvolvimento”. Na contemporaneidade tem sido enfatizada esta
questão institucional utilizada nas definições de museu do ICOM, uma vez que se parte
da ideia do museu instituição, e não do museu como fenômeno, marco teórico
amplamente aceito e que não necessariamente necessita de um espaço instituído para
que se deem as relações.

Com o passar dos anos, o ICOM definiu e redefiniu o conceito de Museu,


baseando-se em novos conhecimentos revelados nas constantes mudanças no fazer
museológico. Desvallées (2007 apud ALVES; SCHEINER, 2012) indica que, apesar dessas
alterações, algumas funções devem estar sempre interligadas a estas definições, sendo
elas: preservar, explorar, identificar, pesquisar, estudar, documentar, comunicar e
educar. Além disso, outra considerável variante é a criação de novos modelos conceituais
de Museu.
Se hoje é possível afirmar que Museu “é um conceito polissêmico, que designa a
relação entre o humano e o Real, em pluralidade e relatividade” (SCHEINER, 2007), a
Museologia pode ser considerada o campo do conhecimento dedicado ao estudo e
análise do Museu, inclusive nas múltiplas conexões existentes entre o ser humano e o
Real, representadas nos diferentes modelos de museus. O museu tradicional, cuja base
conceitual é o objeto, não é posto em obsolescência a partir do museu de território,
327

trazido pela Nova Museologia nos anos de 1970 e cuja base conceitual é o patrimônio. É
exatamente neste lugar simbólico que se dá a multiplicidade e a diversidade de meios,
com ênfase também ao museu virtual que tem sua base conceitual na informação, em
um aspecto teórico-prático. Alicerçal reiterar que, no âmbito teórico, o museu interior e
o museu global também são reconhecidos em sua imaterialidade, apresentados com suas
bases conceituais na emoção e na biosfera, respectivamente, e que conferem
completude à busca de se abordar o Real.

Ainda no tocante às diversas mutações conceituais, a criação do ICOFOM LAM em


1989 iniciou um processo de deslocamento da visão, tradicionalmente eurocêntrica, para
uma museologia feita e pensada por e para a América Latina e o Caribe, partindo da ótica
regional e suas especificidades, mas de imensa contribuição para a teoria museológica
global com sua produção sistemática. Vale ressaltar a grande influência da Mesa de
Santiago de 1972 e o alinhamento com o paradigma holista, que culminou, em 1992,
com a adesão oficial aos conceitos de Museu como fenômeno e meio ambiente integral,
como é possível observar no documento do | Encontro Regional do ICOFOM LAM de
1992:
y teniendo también en cuenta: que el medio ambiente debe ser
considerado en forma total, cultural y natural; que los temas con él
relacionados pueden también ser tratados por los museos - cualquiera
sea su tipologia - ya sea en forma directa o indirecta; que la institución
museo es un fenómeno social dinámico que se presenta de diversas
maneras, acorde con las características y necesidades de la sociedad em
que se encuentra (ICOFOM LAM, 1992).

Martin Schãrer desenha uma definição própria, após desconstruir, palavra a


palavra, as possibilidades apresentadas até então. O autor afirma o museu como “um
lugar em que as coisas e os valores que se ligam e a elas são salvaguardados e estudados,
bem como comunicados enquanto signos para interpretar os fatos ausentes” (SCHARER,
2007 apud DESVALLÉES, 2013). Além do exposto, os museus possuem papel fundamental
para a construção das identidades e na associação das diversidades, uma vez que
“Museologia e Museus têm caminhos entrelaçados, responsabilidades recíprocas e
cumplicidade no que tange a função social” (BRUNO, 20086,p. 7).
Conclui-se, portanto, que a Museologia pode ser entendida como um campo
disciplinar específico, independente, de caráter científico-filosófico, tendo o museu
(fenômeno) e a musealidade (valor) como objetos de estudo. Tal campo opera por meio
de uma metodologia específica, a metodologia da museologia, com uma terminologia
própria, e faz frequentes interfaces com outros campos (SCHEINER, 2015).

II - Museologia, Musealidade e Musealização

A definição proposta anteriormente por Schãrer aborda pontos indiscutivelmente


importantes para os estudos dos museus e da museologia, por exemplo, “coisas”,
“valores”, “salvaguardados”, “estudados”, “signos”, “interpretação”. A partir destes
termos levantados, mostra-se a necessidade de permear pela seara dos museus
relacionando-os a conceitos fundamentais como musealização e musealidade.
328

Ao examinar o termo musealização, qualifica-se que, em uma definição mais


asséptica, seria a “ação de musealizar” ou de “tornar-se museu”, diferenciando-se da
Museificação, que pejorativamente se refere a uma ideia de “petrificação ou
mumificação de um lugar vivo” (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013, p. 57). A musealização, de
forma geral, pode ser entendida como a operação que transforma o objeto extraído de
uma realidade em objeto de museu. Em 1970,Stránsky propõe o termo musealia ” para
designar os objetos de museu, ou ainda aqueles objetos que passaram pelo processo de
musealização.

Neste sentido, é caro reiterar que o objeto de museu, pela acepção filosófica, não
é uma realidade por si só ou em si mesmo, mas “um produto, um resultado ou um
correlato” (Ibid., p.68), “ele designa aquilo que é colocado ou jogado (ob-jectum, Gegen-
stand) em face de um sujeito, que o trata como diferente de si, mesmo que este se tome
ele mesmo como objeto”. É por esta lógica que o objeto se diferencia da coisa, que
possui um caráter funcional ou utilitário.

A musealização, portanto, é um processo ou conjunto de processos (também


entendidos por etapas) que se inicia com a separação” ou suspensão” da coisa de seu
contexto de origem, com a finalidade de serem estudadas como índices da realidade a
que pertenciam, transmitindo um testemunho autêntico. Essa separação resulta em um
tipo de substituição, já que o objeto separado de sua realidade original é um substituto
da realidade que ele testemunha. Desta maneira, leva-se a uma perda de informações
quando o contexto original é evacuado. Por esta razão, a musealização, como processo
científico, compreende o conjunto de atividades do museu: preservação, pesquisa e
comunicação. Dentro da preservação, o processo de seleção precisa ser pensado,
inclusive sob uma ótica da gestão de acervos, para que a escolha e a aquisição de
determinado objeto seja coerente com os posicionamentos e narrativas a que o museu
se propõe, rejeitando a ideia de um depósito sem critérios para a absorção das
realidades, e aplicando uma ideia de musealização ativa e consciente dos resultados que
o museu busca alcançar nas atividades posteriores. Segundo Araújo e Granato,
Destaca-se aqui que o processo de musealização deve ter um caráter
ativo, na medida em que investiga a realidade, sendo baseado na coleta
ativa, voluntária e não passiva, como a simples aceitação de doações de
objetos antigos. Uma musealização ativa pressupõe o exercício e inter-
relacionamento de todas as funções do Museu. É importante perceber
que, sendo um processo intimamente ligado à relação do indivíduo com
objetos, a musealização tende a se caracterizar por um processo
dinâmico, dependente da natureza do museu e dos critérios de seleção
adotados (ARAÚJO; GRANATO,2017, p. 248).

Sendo assim, este processo pode ser entendido como a operação de retirada de
um determinado artefato do seu local de origem, dando a ele um status de “objeto de
museu”. Entretanto, para que isso ocorra é necessário o desenvolvimento de um
conjunto de atividades do museu, ou seja, tais artefatos devem ser submetidos a

? Em musealia utiliza-se o plural neutro: a musealia, as musealia.


8 MALRAUX, 1952 apud DESVALLEES; MAIRESSE, 2013.
9 DEOTTE, 1986 apud DESVALLEES; MAIRESSE, 2013.
329

parâmetros específicos de proteção, documentação, estudo e interpretação (SCHEINER,


2015).
Em sentido amplo, elas se desenvolvem na preservação, com as ações de
seleção, aquisição, gestão e conservação; na pesquisa, por meio da catalogação e na
comunicação, mediante exposições e publicações. Sob outro olhar, elas podem, ainda, se
desenvolver pelos atos de selecionar, indexar e apresentar ao público o que foi
transformado em “objeto de museu” (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013, p. 57-58).

Desvallées e Mairesse propõem ainda que “o ato da musealização desvia o museu


da perspectiva do templo para inscrevê-lo em um processo que o aproxima do
laboratório” (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013, p. 58). E é sob esta ótica que Bruno Brulon
levanta a questão da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade na Museologia
quando diz que “hoje, o campo museal não se vê mais fragmentado ou compartimentado
cartesianamente pelas disciplinas, mas integrado segundo uma cadeia de apropriações
sobre objetos e discursos que leva alguns autores a pensarem em '“canibalismos
disciplinares” (BRULON, 2015). Isso se dá em razão de que muitas das categorias de
classificação da museologia (e sua documentação) são baseados em parâmetros de
outras disciplinas, como a etnografia, as ciências e as artes que
foram responsáveis não apenas por criar nomenclaturas ou categorias
classificatórias no seio das instituições, como também eram elas que
criavam os próprios objetos de museus ao nomeá-los e classifica-los
(sic). Tal reflexão permite identificar como as formas de classificar
estavam atreladas a uma museologia específica, ligadas aos sistemas de
organização do conhecimento moderno (Ibid., 2015).

O fato de, na contemporaneidade, privilegiar-se o valor das experiências dos


sujeitos a partir da interpretação individual sobre os objetos, se deu através de duas
ocorrências. Primeiramente, o novo sentido conferido ao objeto artístico pela arte
contemporânea, reordenando valores e sentidos; em segundo, o advento dos
ecomuseus, que a partir dos anos 1970, se voltam para a “musealização das relações
humanas com seu meio” (Brulon, 2015). Nestes casos, as categorias classificatórias
instituídas até então são desestabilizadas, sendo atravessadas por experiências que não
são capazes de comportar.
Dado este cenário abrangente, Tomislav Sola, em 1992, defende uma perspectiva
patrimonial que abarque, também, os objetos de museu, alargando o campo
investigativo da museologia e reconhecendo-a como campo disciplinar fundador de uma
“ciência do patrimônio”: a Heritology ou Patrimoniologia.
Também contribuíram na esfera da musealização Peter van Mensch que via o
objeto de museu como suporte da informação; e Ivo Maroevié, para quem a museologia
é uma disciplina científica dentro Ciência da Informação e que estuda a musealidade por
meio dos objetos de museu ou musealia.

Ora, como já foi citado anteriormente, o que seria a musealidade? Sobre o que
trata o objeto de estudo da museologia a que os autores se referem e toma um caráter
impar no entendimento de conceitos como museu, museologia e musealização?
330

O termo musealidade, atribuído por Stránsky por volta dos anos 1970-1980,
significa o valor específico do objeto a partir do momento em que é extraído de seu
contexto de origem e visa designar o caráter axiológico do objeto na medida em que se
torna musealia. Ou seja, tal processo ocorre, quando a coisa é retirada da sua conjuntura
original e se transforma em objeto de museu. Para o autor, a musealidade é o objeto de
estudo da Museologia.

Em meados da década de 1990, Maroevic diz que a musealidade é “o significado


de um objeto que nos dá o motivo de sua musealização” (MAROEVIC apud SCHEINER;
ALVES, 2012). Neste momento, o conceito de musealidade é entendido como o processo
que permite os objetos serem musealia ou viver dentro de um contexto museológico. Tal
pensamento desdobra-se com base em reflexões complexas acerca da convergência do
patrimônio cultural e museu, trazendo então, uma nova conceituação que aborda não
apenas os objetos de museu, mas também suas características imateriais, como dito, a
partir da acepção do que motivou os processos de musealização. Nesse sentido,
Maroevic apresenta uma nova visão, na qual
a musealidade representa a propriedade que tem um objeto material
de documentar uma realidade, através de outra realidade: no presente,
é documento do passado, no museu é documento do mundo real, no
interior de um espaço é documento de outras relações espaciais.
(MAROEVIC apud SCHEINER; ALVES, 2012, 2012).

No entanto, existe neste lugar um segundo ponto de secção, uma vez que o
pensamento de Stránsky é corroborado por Desvallées e Gregorova. Scheiner, por sua
vez, expande essa concepção ao dizer que a musealidade é “um valor atribuído a certas
“dobras” do Real” (Scheiner, 2012) partindo das relações estabelecidas com o tempo, o
espaço e a memória inseridos nos sistemas de pensamento e valoração de cada cultura.
Ou seja, para esta autora, a musealidade não reside no objeto: não é uma condição pré-
existente incluída nos registros material e imaterial das atividades da natureza e do
homem. A musealidade é um valor específico, identificado, reconhecido e atribuído por
indivíduos ou grupos para esses registros de valor, sendo preexistente, portanto, à
musealização (Scheiner, 2015), reiterando o que para Maroevic (1997) é “a descoberta e
a outorga da musealidade” é conferida pelo homem (Scheiner & Alves, 2012).
Segundo van Mensch, sob a ótica de uma patrimoniologia, há o deslocamento
conceitual do “objeto” para o “valor” e da “musealia” para “patrimônio” Neste sentido, é a
memória que cria o sentimento de identificação com o patrimônio, e a identidade é parte
da musealidade (apud Ceravolo, 2004, p. 254). Porém, os museus são capazes de
expressar ou confirmar identidades, com mais eficiência, no entanto, através do
conteúdo da musealia, ou seja, sua musealidade. Sendo assim, “a missão da Museologia
é interpretar cientificamente a relação entre o humano e a realidade, e fazer-nos
entender a musealidade em seu contexto histórico e social” (MuWOP 1, 1980 apud
SCHEINER, 2007).
Assim sendo, Tereza Scheiner propõe em sua contribuição ao livro Vers une
redéfinition du musée, organizado por Desvallées e Mairesse, a seguinte definição:
Museu é um fenômeno ou acontecimento, identificável por meio de
uma relação muito especial entre o humano, o espaço, o tempo e a
331

memória, a que denominaremos Musealidade. A base conceitual do


Museu é a espontaneidade: sem criação, não há Museu (SCHEINER, In:
DESVALLÉES; MAIRESSE (Orgs.), 2007).

Portanto, é razoável afirmar que tanto o conceito, quanto a percepção (e, por
conseguinte, a definição) de musealidade estão em processo, suscetíveis a mudanças e
alterações no tempo e no espaço, e bem como os museus, de acordo com os sistemas e
realidades das diferentes sociedades. Para tal, Museologia, Musealidade e Musealização
estão intimamente relacionados, e seus significados se retroalimentam e nutrem um
vasto e profícuo campo de estudos e discussões.

Uma vez aproximados, estes conceitos são fundamentais para a compreensão e


enriquecimento de debates acerca de questões éticas que incluem museus, museologia,
seus estudiosos e profissionais na contemporaneidade. As demandas emergentes nesta
área do conhecimento, e da própria ação museal, extrapolam os limites de passado,
presente e futuro, e alcançam os dilemas das narrativas, das histórias e das memórias,
tendo seu despertar no interior dos museus.

III - Museologia e ética na contemporaneidade: questões emergentes e o papel


do ICOM e do ICOFOM

A ética é uma disciplina filosófica que se debruça sobre os valores que guiam a
conduta humana tanto na esfera pública, como na privada. No âmbito dos museus, pode
ser definida, nas palavras de Desvallées e Mairesse (2013, p. 40), “como o processo de
discussão que visa a determinar os valores e os princípios de base sobre os quais se apoia
o trabalho museal”.
Desvallées e Mairesse (2013, p. 40) olham a ética em museus sob dois prismas. O
primeiro seria a ética como guia de conduta desses espaços. Nesse sentido, existiriam
dois tipos de museu. Aqueles voltados a uma ideia de mundo onde a realidade é
submetida a uma ordem que representa um ideal a ser alcançado (são aqueles museus
que preconizam a coleção), e aqueles voltados para uma ideia de mundo desordenado,
sujeito a mudanças, e longe, portanto de qualquer orientação estável (seriam os museus
voltados para a sociedade, onde as questões sociais se sobrepõem ao culto às coleções).

Outro entendimento do conceito de ética seria a ideia da museologia como ética


museal, uma vez que é a museologia que decide o que deve ser um museu bem como os
fins aos quais ele deve estar submetido (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013, p. 42).

Gregorová (1981, apud SOARES, 2007, p. 7-8) já havia observado, nos anos 1980,
que o elo entre a Ética e a Museologia é um fator preponderante na relação entre o
sujeito e a realidade; com isso, o ponto de vista ético foi incorporado na teoria referente
ao museu. A autora afirma ainda que a falta de trocas científicas entre as áreas
acarretaria numa visão do museu apenas como depósito de objetos. Apesar dessa
constatação, discussões acerca da conduta dos profissionais atuantes e dos valores e
princípios norteadores da área, já haviam sido realizadas desde quando se buscou uma
profissionalização do museu e institucionalização da Museologia.
332

É nesse mesmo período que o ICOM elabora e adota seu Código de Ética. Este
documento apresenta a regulamentação de padrões éticos para museus, e reflete, de
modo geral, os princípios adotados pela comunidade internacional de museus e seus
profissionais (ICOM, 2010).
O Código de Ética representa uma norma mínima para museus.
Apresenta-se como uma série de princípios fundamentados em
diretrizes para práticas profissionais desejáveis. Em alguns países, certas
normas mínimas são definidas por lei ou regulamentação
governamental. Em outros países, as diretrizes e a definição de normas
profissionais mínimas são estabelecidos sob forma de credenciamento,
habilitação ou sistemas de avaliação e/ou reconhecimento público
similares. Quando estas normas não são definidas em nível local, as
diretrizes de conduta estão disponíveis no Secretariado do ICOM, no
Comitê Nacional ou no comitê internacional competente. Este código
pode igualmente servir de referência às nações e às organizações
especializadas ligadas aos museus, para desenvolvimento de normas
suplementares (ICOM, 2010).

Tal documento é organizado em oito capítulos. São eles: (1) Os museus


preservam, interpretam e promovem o patrimônio natural e cultural da humanidade; (2)
Os museus mantêm acervos em benefício da sociedade e de seu desenvolvimento; (3) Os
museus mantêm referências primárias para construir e aprofundar conhecimentos; (4)
Os museus criam condições para fruição, compreensão e promoção do patrimônio
natural e cultural; (5) Os recursos dos museus possibilitam a prestação de outros serviços
de interesse público; (6) Os museus trabalham em estreita cooperação com as
comunidades das quais provêm seus acervos, assim como com aquelas às quais servem;
(7) Os museus funcionam de acordo com a legislação; e (8) Os museus atuam com
profissionalismo, ressaltando ainda que a adesão ao ICOM implica a aceitação do Código
de Ética para museus.
Importante rememorar que o ICOM é um órgão que nasce em 1946 em um
contexto pós Segunda Guerra Mundial, e tem grande atribuição nos debates do campo.
Nos seus primeiros anos, por exemplo, liderou discussões em temas como a função
educacional dos museus, exposições, a circulação internacional de bens culturais e a
conservação e restauração desses bens. No final dos anos 1970, após uma breve crise, o
conselho retoma suas atividades com mais tônica. É nesse período que o ICOM estende
suas atividades à América Latina, Ásia e África, e adota o mencionado Código de Ética
(ICOM, 2019b).
Mais recentemente outras questões se tornaram o foco de discussão. Tanto que,
na Conferência Geral em 2007, o ICOM reafirma seu compromisso com práticas éticas
em museus, debatendo questões como: tráfico ilícito de bens culturais, prevenção de
riscos e restituição de bens culturais às comunidades de origem (ICOM, 2010).

No que tange ao tráfico ilícito de bens culturais, por exemplo, o ICOM


desenvolveu as Red Lists, o International Observatory of Illicit Traffic in Cultural Objects e
a série One Hundred Missing Objects. As Red Lists são um elenco de bens culturais
considerados mais vulneráveis ao tráfico ilícito, com o objetivo de auxiliar a identificação
de objetos roubados e/ou contrabandeados. Essa base de dados é disponibilizada às
333

polícias nacionais e a INTERPOL, assim como às autoridades aduaneiras, museus, casas


de leilão e galerias (“ICOM Red Lists”, 2018). O International Observatory of lllicit Traffic
in Cultural Objects é uma plataforma de cooperação; tem como objetivo compartilhar
informações sobre o tema e promover a cooperação na luta contra o tráfico ilícito (ICOM,
2019c). Já a série One Hundred Missing Objects compila uma seleção de objetos
roubados de coleções públicas ou saqueados de sítios arqueológicos, acompanhados de
trechos das leis dos países em questão, explicitando a natureza ilícita da exportação e
comercialização desses objetos (ICOM, 2005).
Quanto à prevenção de riscos, o conselho adere ao International Council of the
Blue Shield (ICBS), bem como cria, em 2002 o Museum Emergency Program (MEP). O
MEP se ocupa e age em capacitar os profissionais de museus a dar respostas eficientes a
todos os tipos de desastres e emergências, como terremotos, furacões, inundações,
destruição em guerras e incêndios, por exemplo. Busca identificar e desenvolver medidas
preventivas através de abordagens educacionais que combinem teoria e prática. Já o
ICBS foi fundado em 1996, e é muitas vezes descrito como o equivalente cultural da Cruz
Vermelha. O Blue Shield visa proteger os patrimônios em caso de conflitos armados e
desastres naturais, bem como oferecer apoio pós-crise. Tem como membros fundadores
o ICOM, o International Council on Archives (ICA), a International Federation of Library
Associations and Institutions (IFLA) e o International Council on Monuments and Sites
(ICOMOS) (ICOM, 2019).
Por fim, o ICOM tem feito esforços em debater sobre restituição de bens culturais
às comunidades de origem (devido a saques, roubos, tráfico ilícito etc.) e a
inalienabilidade das coleções. Este tema foi, inclusive, o tópico abordado pelo Simpósio
do ICOFOM dentro da Conferência Geral do ICOM em 2010, cujo tema principal foi
Harmonia Social. Os resultados dos debates, com seus diversos pontos de vista, foram
publicados no ISS 39: Deaccession and return of Cultural Heritage: a new global ethics.
No prefácio, Nelly Decarolis (2010, p.5) ressalta que existem muitas maneiras
pelas quais os museus e seus profissionais podem contribuir para a harmonia social,
porém sempre pautados por comportamentos éticos, respeitando a visão de cada
indivíduo sobre sua identidade social e cultural. As discussões foram pautadas visando
responder a três perguntas: (1) Desalienação e a restituição são mesmo problema? (2) Os
museus têm direito a desalienar? (3) Os museus têm o dever de devolver os bens
culturais aos proprietários anteriores?

Em outro texto no mesmo documento, Mairesse (2010, p.13) afirma que a


questão da desalienação é no mínimo controversa, já que, por definição, as coleções de
museu são inalienáveis. Relembra ainda que, de acordo com o código de ética do ICOM,
todo o dinheiro ou quaisquer outros benefícios obtidos em caso de desalienação devem
ser usados em benefício da coleção.

Porém, esse debate perpassa outras questões além da financeira: a restituição de


bens culturais. Como relembra Scheiner (2010, p. 31), os museus têm uma relevância
ética para o reforço do diálogo intercultural. Nas palavras da autora:
Reconhecer que importantes objetos culturais, incorporados como
coleções de museus, podem (ou devem) ser restituídos a suas culturas
de origem ou a seus descendentes, é um ato de coragem e modéstia.
Como resultado, poderemos promover nossa própria cultura, ser capaz
334

de criar nossa própria cultura, poder sustentar nossa própria cultura.


Não há harmonia possível dentro do abuso social e cultural; como
profissionais, sabemos o quanto isso tem a ver com o conceito de
patrimônio e o desenvolvimento de museus. (SCHEINER, 2010, p. 31)

Assim como a exemplo do ISS 39, os ICOFOM Study Series dedicam-se a pesquisar,
debater e propor reflexões acerca da teoria museológica e suas questões emergentes, O
que inclui também a ética da profissão e do campo do conhecimento em suas pautas,
sempre alinhados às demandas contemporâneas. Dito isto, é possível comprovar o uso
do termo “ética” desde a primeira edição da série, o ISS 01 de 1983 (p. 15). Como
resultados dos encontros promovidos pelo órgão, tais escritos refletem que a ética e a
legalidade das ações envolvendo museologia são preocupações legítimas e recorrentes
nas comunicações, que possuem grande alcance no meio a qual se referem. Como
exemplo, cita-se o ISS 10 de 1986 com o texto "Museology and identity. The ethics of
exhibition" (GANSLMAYR, 1986, p. 101-105), o ISS 33a de 2001, com o texto "Museology
and contemporary ethics” (SHAH, 2001, p. 120-122) e o ISS 33 Supplement, com o texto
"On ethics, museums, communication and Intangible Heritage” (SCHEINER, 2004, p. 70-
77) - revelando que o ICOFOM está sensivelmente afinado com o status global da
museologia e os pleitos despontantes.

Faz-se importante apontar que os autores citados ao longo deste texto têm
contribuições ativas e significativas na produção do ICOFOM. Enfatiza-se, neste
momento, os autores vinculados ao ICOFOM LAM, que como dito, apresentam um olhar
descentralizado e especializado sobre a realidade de nosso continente, tão singular em
suas sociedades, culturas e manifestações. As contribuições feitas por ambos os órgãos
são fundamentais para o desenvolvimento de ações, políticas, estudos e
aprofundamentos científicos acerca de indagações contemporâneas, justamente, por
oferecerem pareceres altamente gabaritados, reconhecidos e chancelados pelos
profissionais e estudiosos vinculados aos Conselhos.
A seriedade de tais questões torna claro que a ética e a conduta profissional no
trabalho em museus não são questões triviais, mas envolvem as complexidades de cada
sociedade e suas realidades, identidades e culturas, bem como o entendimento da
importância integral da memória e do patrimônio. No entanto, o respeito e a percepção
do Outro como igual sempre serão caminhos éticos para a solução de questões que
envolvem disputas, principalmente para evitar apagamentos históricos ou
descaracterizar as narrativas dos povos.

Consideraçõesfinais

As dinâmicas do tempo se dão de maneira voraz, e a museologia, em especial, por


tratar justamente da memória como um testemunho da humanidade, apresenta uma
dinâmica que mistura passado, presente e futuro em uma lógica onde ética e
originalidade, tradição e vanguarda necessitam andar de mãos dadas.
Percorrer os múltiplos caminhos da museologia é tarefa laboriosa, mas pela qual
os pesquisadores precisam estar sempre envolvidos e instigados. É neste tipo de
caminhada que se torna possível estabelecer conexões e determinar as bases para novas
335

propostas. É um exercício de contemplação e ação, de usufruir enquanto se constrói, de


caminhar e erigir.

Neste capítulo, o esforço concentrou-se em reconhecer estas pedras conceituais,


a forma como foram esculpidas, posicionadas e relacionadas às demais, pois são elas que
podem demonstrar como é possível seguir semeando o conhecimento e concretizando as
teorias e práticas solidamente.

Enquanto inovar parece ser a palavra de ordem na contemporaneidade - seja em


políticas, metodologias, práticas ou teorias - urge salientar que não é possível promover
e provocar a inovação sem que os alicerces sejam firmes e bem fundamentados. E,
ademais, bem conhecidos por aqueles que se dedicam ao campo. Em uma metáfora à
ponte, cabe dizer, mais uma vez, que este não é um mero caminhar sobre o passado,
mas sobre as pedras alicerçais da museologia. São elas que amparam a jornada da
construção do conhecimento.

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