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1

Associação Propagadora Esdeva


Centro Universitário Academia - UniAcademia
Curso de Psicologia
Artigo

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE SELF NA PSICOLOGIA


DE CARL GUSTAV JUNG 1

Paulo Bonfatti2
Jorge Gomes Júnior3
Manuela Emiliano Blanco4
Rosane Martins Xavier5
Verônica Calderano Rezende6

RESUMO:
Esse artigo é resultado de estudos e trocas de saberes desenvolvidos pelo Grupo de
Estudos Junguianos do Centro Universitário Academia (Uniacademia). Este grupo é
composto por discentes, egressos, profissionais, pesquisadores e alunos de outras
instituições, com intuito aprofundar seus conhecimentos sobre a Psicologia Analítica
de Carl Gustav Jung. O tema a ser tratado será o Self que é considerado um
importante conceito na teoria junguiana. Através de uma revisão bibliográfica, tem -se
como objetivo compartilhar e fomentar algumas reflexões em relação ao Self assim
como ampliar e organizar as discussões realizadas no grupo e, também, fomentar a
divulgação dessa teoria psicológica.

Palavras-chave: Self. Arquétipo. Jung. Psicologia Analítica.

BRIEF CONSIDERATIONS ON THE SELF CONCEPT IN CARL GUSTAV JUNG'S


PSYCHOLOGY

ABSTRACT:
This article is the result of studies and exchanges of knowledge developed by the
Jungian Studies Group of the Centro Universitário Academia (Uniacademia). This

1
Esse artigo foi elaborado pelo Grupo de Estudos Junguianos que conta com o apoio do Centro de
Extensão e Pesquisa do Centro Universitário Academia (UNIACADEMIA).
2
Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, psicólogo, professor e coordenador do Grupo de
Estudos Junguianos do Centro Universitário Academia (UNIACADEMIA).
3
Psicólogo e membro do Grupo de Estudos Junguianos do Centro Universitário Academia
(UNIACADEMIA).
4
Graduanda em psicologia e membro do Grupo de Estudos Junguianos do Centro Universitário
Academia (UNIACADEMIA).
5
Graduanda em psicologia e membro do Grupo de Estudos Junguianos do Centro Universitário
Academia (UNIACADEMIA).
6
Graduanda em psicologia e membro do Grupo de Estudos Junguianos do Centro Universitário
Academia (UNIACADEMIA).
2

group is composed of students, graduates, professionals, researchers and students


from other institutions, in order to deepen their knowledge of Analytical Psychology by
Carl Gustav Jung. The theme to be addressed will be the Self, which is considered an
important concept in Jungian theory. Through a bibliographic review, the objective is
to share and encourage some reflections in relation to the Self as well as to expand
and organize the discussions held in the group and, also, to promote the dissemination
of this psychological theory.

Key words: Self. Archetype. Jung. Analytical Psychology.

1 INTRODUÇÃO

Carl Gustav Jung nasceu em 26 de julho de 1875 em Kesswil, na Suíça,


mudando anos mais tarde para a Basiléia, onde cresceu e concluiu seus estudos no
curso de Medicina, direcionando para a área da psiquiatria. Em 1900, ao concluir sua
formação, Jung deixa Basiléia para ocupar o cargo de segundo assistente no Hospital
Burghölzli, de Zurique (SILVEIRA, 1981), construindo uma carreira acadêmica e
clínica trabalhando ao lado do diretor Eugen Bleuler, também psiquiatra, que já
desenvolvia pesquisas extremamente importantes sobre a esquizofrenia. Através de
suas experiências neste hospital psiquiátrico, Jung pôde realizar diversas
investigações, inicialmente com intuito de esclarecer a respeito do funcionamento das
doenças mentais, através de uma exploração do inconsciente (SILVEIRA, 1981),
propondo um pensamento dialético, aberto a interpretações, refinamentos e
amplificações (CLARKE,1993).
Em seu percurso acadêmico e clínico, Jung compreendia que a psique era
afetada e constituída não apenas pelos acontecimentos pessoais do passado em que
a personalidade seria determinada apenas pelas experiências vividas durante os
primeiros anos de vida. Além disso, pelas próprias metas, esperanças e aspirações
futuras que poderiam ser modificadas ao longo da vida do indivíduo, uma vez que não
há como compreender os eventos e comportamentos psicológicos sem passar pelos
domínios da alma. Essa perspectiva tem relação com sua compreensão da dimensão
psíquica do inconsciente (SILVEIRA, 1981)
O inconsciente na concepção junguiana é descrito como:

[...] conteúdos mentais que são inacessíveis ao ego [...], e também, como [...]
um lugar psíquico com seu caráter, suas leis e f unções próprias [...],
entretanto, seus conteúdos não eram apenas o que foi reprimido por não ser
3

socialmente aceito, mas também [...] como um lugar central da atividade


psicológica (SAMUELS; BANI; PLAUT, 1988, p. 104).

Ademais, na compreensão junguiana a respeito do inconsciente há duas


dimensões do mesmo. A primeira, o inconsciente pessoal, que estaria um pouco
“abaixo” da consciência contendo lembranças, impulsos, desejos, percepções e
outras experiências da vida do indivíduo que foram suprimidas ou esquecidas que
podem, com algum esforço, ser trazidas ao nível consciente. A segunda, em um nível
mais “embaixo” do inconsciente pessoal, estaria o inconsciente coletivo – um
substrato psíquico coletivo da humanidade. Nesse último estaria armazenado as
experiências vinculadas às vivências universais da raça humana. (JUNG, 2017)
. Essa concepção de uma dimensão psíquica coletiva é específica da teoria de
Jung. Esse autor afirma que o inconsciente coletivo é “[...] universal; e também porque
seus conteúdos podem ser encontrados em toda parte, o que obviamente não é o
caso dos conteúdos pessoais.” (JUNG,1978, p. 77)
Como corolário dessa instância psíquica coletiva, Jung postulou também a
existência de arquétipos que seriam possibilidades herdadas de representações
psíquicas semelhantes. Essas representações, chamadas de imagens arquetípicas,
seriam as manifestações dos arquétipos e poderiam ser observadas em diversas
manifestações psíquicas. (JUNG, 2014).
Os arquétipos e suas manifestações estão inseridos no inconsciente coletivo
desde os primórdios da humanidade (SILVEIRA, 1981), eles consistem em
determinantes naturais da vida mental que levam o indivíduo, em determinadas
situações, a agir de modo semelhante aos ancestrais que enfrentaram situações
similares. As experiências arquetípicas normalmente se concretizam na forma de
emoções que se associam aos acontecimentos importantes da vida e do
desenvolvimento do ser humano como nascimento, adolescência, casamento, morte
e outras situações significativas.
Todavia, o que se observa é que o conceito de arquétipo por vezes não é bem
compreendido. De acordo com Jung, esse conceito
4

[...] dá ensejo a muitos mal-entendidos e, por isso, presume-se ser de difícil


compreensão – se dermos ouvidos à crítica negativa. [...] Meus críticos, com
raras exceções, não procuram dar-se ao trabalho de ler o que venho dizendo,
e atribuem-me, entre outras coisas, a opinião de que o arquétipo é uma idéia
[sic] hereditária. Preconceitos parecem mais cômodos que a verdade (JUNG,
2012, p. 115)

De tantos mal-entendidos, Jung é enfático ao afirmar em distintos momentos


que arquétipo

[...] naturalmente não se trata de idéias [sic] hereditárias, e sim de uma


predisposição inata para a criação de f antasias paralelas, de estruturas
idênticas, universais, da psique, que mais tarde chamei de inconsciente
coletivo. Dei a estas estruturas o nome de arquétipos. Elas correspondem ao
conceito biológico do “pattern of behavior”. (JUNG, 1986, p.145).

De acordo com Stein, indo além, instinto e arquétipo se interrelacionam:

No mapa de Jung, a psique é uma região que está localizada no espaço entre
a pura matéria e o puro espírito, entre o corpo humano e a mente
transcendente, entre o instinto e o arquétipo. [Essas imagens arquetípicas]
[...] penetram na consciência sob a f orma de intuições, visões, sonhos,
percepções de impulsos instintivos, imagens, emoções e ideias. (STEIN,
2006, p. 96)

A concepção de arquétipo pode levar a pensar, equivocadamente, em uma


dimensão metafísica ou transcendente. Distante disso, Jung forjou seu conceito ao
investigar semelhantes manifestações artísticas, delírios, alucinações, sonhos de
pacientes, conceitos filosóficos, mitologias, símbolos e rituais religiosos em diferentes
culturas em tempos e espaços distintos (JUNG, 2014)
Apesar da perspectiva de Jung acerca dos arquétipos ser mais fenomenológica
que causal infere, como já dito, que eles podem ser correlacionados às experiências
significativas da humanidade.
Dessa forma, Jacobi resgata uma das possíveis etimologias da palavra
arquétipo:
[...] “arque”, significa início, origem, causa e princípio, mas representa
também a posição de um líder, de uma soberania e governo (portanto, uma
espécie de “dominante”); a segunda parte “tipo”, significa batida e o que é
produzida por ela, o cunhar de moedas, figura, imagem, retrato, prefiguração,
modelo, ordem, norma [...] transf erido ao seu sentido mais moderno é
amostra, f orma básica, estrutura primária (algo que jaz no “f undo” de uma
série de indivíduos “parecidos”, quer sejam seres humanos, animais ou
vegetais) (SCHMITT apud JACOBI, 1990, p.51-52)
5

Entre tantos arquétipos existentes o Self pode ser considerado de grande


significado e importância pois afeta não só a integração como também diversos
processos e aspectos da psique (JUNG, 1978). Justamente sobre esse arquétipo que
se pretende discorrer7.

2. OS ASPECTOS MÚLTIPLOS E PARADOXAIS DO SELF

O se pode depreender é que mesmo o Self tendo grande relevância nos


fenômenos psíquicos dentro da concepção junguiana da psique. Ele possui
dificuldade de ser estabelecido objetiva e conceitualmente.

2.1 UM CONCEITO DE DIFÍCIL APROXIMAÇÃO

Uma das primeiras questões que se apresenta é uma diversidade de grafias e


denominações relacionadas a um mesmo termo. Bonfatti (2007) aponta que há
variações derivadas da palavra originária do alemão Selbst : Self vertido para o inglês,
si mesmo, Si mesmo, si-mesmo e Si-mesmo. Essas variantes, talvez, nos apontem
para percebermos a multiplicidade e paradoxalidade do conceito 8.
Bonfatti (2007) aponta criticamente acerca da dificuldade conceitual de
diversos termos ao longo da obra de Jung. Em relação ao conceito de Self, não vê de
forma diferente pois Jung parecer transitar conceitual e epistemologicamente de forma
diversa ao longo de sua obra.
Por outro lado, de acordo com Jung, seria apenas um nome para um fator
psíquico empírico, porém, muitas vezes, incognoscível (JUNG, 1991b). Mais que isso,
um conceito-limite que se manifesta através de um amplo simbolismo associado à
totalidade. Desta forma, como se verá adiante, apesar de não aceitar que suas
concepções possam ser questionadas por um viés filosófico, o Self é definido por
Jung, filosoficamente, como um “conceito limite, algo como a ‘coisa-em-si’ de Kant”
(JUNG, 1991b, p. 197).
O que se depreende da coisa em si, utilizada por Kant (KANT, 1994), é que ela

7
Para um maior aprofundamento acerca do conceito de arquétipo na teoria junguiana ver (BONFATTI;
NOGUEIRA; TELLES; SOUSA, 2018).
8
Apesar da palavra Self já ser utilizada em outras linhas teóricas da psicologia, optou-se por utilizá-la
também pelo fato de Si-mesmo ou si-mesmo em português causar certa confusão ao ser
compreendida na língua portuguesa de uma forma auto reflexiva egoica.
6

[...] remete a algo que existe em si mesmo, diferentemente do fenômeno que


se apresenta. É algo que não é passível de ser objeto de conhecimento
científ ico, por ser inacessível ao conhecimento humano. Isso ocorre por
encontrar-se numa instância que extrapola os limites das estruturas do
próprio ato cognitivo (BONFATTI, 2007, p.83)

Ao longo da construção de sua concepção de Self, Jung explicitou a dificuldade


na tentativa de uma definição mais precisa. Nesse sentido, fala de sua “obscuridade”
(JUNG, 1991b, p.197), de sua incognoscência, seu aspecto paradoxal (JUNG, 1990,
pp. 200, 260, 268), “absoluto” (JUNG, 1983, p.157), seu caráter “indefinível” e
“indescritível” (JUNG, 1991b, p. 29-31). Enfim, um Self que é algo de difícil
compreensão (JUNG, 2002, p. 350) por um viés exclusivamente racional.
Diante dessas dificuldades, Jung procurou sustentar e ratificar sua ideia de Self
como algo empírico em diversos momentos de sua obra (JUNG, 1990; JUNG, 1991a).

Todavia, esse limite epistemológico traçado por Jung ao longo de seus textos
parece ser afetado, quando o mesmo afirma que o Self, “na verdade”, seria um
conceito “empírico em parte” (JUNG, 1991a, p.443).
Pelo que foi visto até então, o que se pode depreender é que a concepção de
Self apresenta a dificuldade conceitual que Bonfatti (2007) problematiza nos escritos
de Jung.
Esta situação se apresenta de forma mais evidenciada quando se aproxima das
características do Self, apontadas por Jung, não só de indissociabilidade com a
imagem de Deus (imago dei) (JUNG, 1990) (JUNG, 1983), como também de
intangibilidade, inefabilidade, incomensurabilidade, incognoscibilidade (JUNG,
1991b), atemporalidade, incorruptibilidade, eternidade (JUNG, 2012) e
transcendência (JUNG, 2002). O que chama a atenção é que essa ideia se baseia na
perspectiva daquilo que Jung classificou de “empírico em parte” (JUNG, 1991a, p.
443).
Mesmo sendo algo também empírico, mas de complexa interface conceitual e
epistemológica, Jung identifica o Self como uma “hipótese” ou “postulado” (JUNG,
1991a, p443)
Numa passagem de Aion, Jung diz que o Self é um fator psíquico de que só se
pode ter uma
7

[...] idéia [sic] satisfatória [...] a partir de uma experiência mais ou menos
completa [...] [que] trata de fatos e [...] o chamado conceito, neste caso, não
é mais do que uma descrição ou definição resumida desses fatos. [...] Não se
trata do conceito, mas sim de uma palavra, de uma ficha de jogar que só tem
importância e aplicação por representar a soma das experiências que,
lamentavelmente [diz Jung], não posso transmitir aos meus leitores [...]
Sempre que meu método é aplicado [, af irma Jung], descrição da natureza
dessas experiências e o método de obtê-las], são confirmadas as minhas
indicações referentes aos fatos. [E finaliza,] na época de Galileu qualquer um
poderia ver as luas de Júpiter, se se desse ao trabalho de usar o telescópio
por ele inventado. (JUNG, 1990, p. 61-64)

Infere-se que esse aspecto por vezes intangível, talvez se dê pelo fato do Self
ser algo que transita nos campos da consciência e do inconsciente.
Nesse aspecto, Pieri aponta que o Self,

[...] denota o conjunto complexo dos fenômenos psíquicos de um indivíduo.


[...] de um lado, reúne os objetos da experiência e, portanto, os f enômenos
da consciência e os conteúdos e os fatores conscientes, do outro pressupõe
aquilo que ainda não se encontra no âmbito da consciência e, portanto, os
conteúdos e os fatores do inconsciente, ou seja, os fenômenos daquela outra
parte da psique que permanece ainda incognoscível e não delimitável.
(PIERI, 2002, 462, grif o do autor)

Pieri (2002) ainda afirma que na literatura junguiana são muitos os usos
do termo Self (que ele chama de Si-mesmo) e procura salientar as principais
definições. Para esse autor, o Self se apresenta e se define

[...] como lei moral do indivíduo; [...] como estado psíquico, razão pela qual
se f ala de um contínuo e constante confronto com o Eu; [...] como estado
psíquico que se produz dentro do processo psíquico; [...] como Eu objetivo;
[...] como f ator subjetivo, razão pela qual se f ala de percepção intuitiva do
Selbst e do mundo complexivo, e se verif icam duas precisas antinomias; a
primeira é a do Selbst/mundo e a segunda é a do Eu/Selbst. [...]; como fundo
da estrutura psíquica complexiva. [...] Como f ato coletivo e universal e,
contemporaneamente como o elemento psíquico mais estranho e externo à
consciência; [...] como produto dos contínuos processos psíquicos de
dif erenciação e integração, ou seja, como resultado dos choques e novos
conf inamentos contínuos entre homem e o mundo; [...] como resíduo
indeterminado de uma originária discriminação psíquica jamais completa , à
qual seríamos remetidos se dentro do processo psíquico viesse a se tronar
necessária uma redefinição de si próprio em relação ao outro diferente de si;
[...] como processo de centração psíquica, complementar à tendência à
decomposição psíquica das partes da psique; [...] coo símbolo da união
tensional dos pares de opostos, razão pela qual se f ala de uma conjunção
não sintética dos opostos, e se é remetido a procedimentos lógicos e
psicológicos e psicológicos de tipo antinômico e paradoxal. (PIERI,2002, p.
462).
8

Numa tentativa de definição amadurecida diante tantas possibilidades teóricas


e conceituais acerca do Self Jung, em 1958, acrescentou uma definição sobre o Self
que não estava nas oito edições anteriores do livro Tipos Psicológicos (JUNG,
1991a) publicado inicialmente em 1921.
No prefácio da nona edição desse livro publicado em 1960, seus editores
escrevem que no

[...] último capítulo, Jung dedicou-se às definições dos conceitos psicológicos


mais usados. Contém uma def inição de Selbst (si-mesmo) que o autor
f ormulou para este volume e que, nas edições anteriores, ainda configurava
sob o conceito de Eu9. Mas o conceito assumiu importância tão central na
obra de Jung que foi necessário dar-lhe definição própria. (JUNG, 1991a, p.
15)

Nessa busca de uma definição, em relação à questão da experiência, Jung


afirma, como já sinalizado aqui, que o Self é um “conceito empírico” que denomina
“[...] o âmbito total de todos os fenômenos psíquicos no homem. Expressa a unidade
e totalidade da personalidade global” (JUNG, 1991a, p. 442).
Por conter a consciência e o inconsciente, sua perspectiva empírica é parcial.
Pois, “[...] engloba o experimentável e o não-experimentável, respectivamente o ainda
não experimentado.” (JUNG, 1991a, p. 443).
Assim, sua dimensão psicológica transcendente reside nessa composição
dupla que resulta numa entidade psicológica “[...] que só pode ser descrita em parte e
que, de outra parte, continua irreconhecível e indimensionável.” (JUNG, 1991a, p.
443).

2.2 REPRESENTAÇÕES DO SELF

Análogo às distintas funções ou definições apontadas, encontra-se


representações diversas do Self. Uma das representações mais salientadas são as
de totalidade e de centralidade.
Jung entende o Self como arquétipo central da ordem e da totalidade em que
consciente e inconsciente formariam essa totalidade (JUNG, 1978). Na mesma

9
Aqui, mais uma vez, depara-se com as dificuldades de uma aproximação conceitual mais clara e
precisa dentro da obra de Jung como sinaliza Bonfatti. Esse último autor problematiza essa questão
não só relacionada ao Self, mas também aos conceitos de Arquétipo e Inconsciente coletivo
(BONFATTI, 2007).
9

direção de raciocínio, também Von Franz descreve o Self como centro organizador de
onde parte a ação reguladora do sistema psíquico. Sua ação remete às características
de invenção, ordenação ou fonte de imagens oníricas. Ainda segundo essa autora, há
um aparente paradoxo estrutural e dinâmico do Self ser o núcleo e ao mesmo tempo
a totalidade psíquica se distinguindo consideravelmente do Ego (FRANZ, 2017).
Franz ainda aponta o Self como fator de orientação íntima, se distinguindo da
personalidade consciente, no qual a possível apreensão dos conteúdos informativos
pode se dar por via de fantasia, visões e dos sonhos de cada pessoa. Caso o Ego se
atente a essas orientações e mensagens, elas irão auxiliar naquilo que se chamou de
processo de individuação – que seria um processo de crescimento psíquico10 . Nesse
processo, o ego continuaria sendo o centro da consciência, mas não o centro da
personalidade que seria, então, o Self (FRANZ, 2017).
De acordo com Samuels, Bani e Plaut “[...] o Self é o centro dessa totalidade,
como o ego é o centro da mente consciente, portanto o relacionamento ego-Self é um
processo incessante (SAMUELS; BANI; PLAUT, 1988, p.193).
Diante desses aspectos, Jung aponta que essa perspectiva de ser a totalidade
e, ao mesmo tempo, ser um centro ordenador e norteador é muitas vezes observado
nas representações da imagem de Deus (imago dei) (JUNG, 1983), especialmente
nos sistemas monoteístas (BONFATTI, 2000a).
Cumpre aqui fazer um esclarecimento, pois essa perspectiva causa certa
confusão aos incautos que fazem recortes descontextualizados da Psicologia analítica
apesar de Jung ser taxativo:

Tenho sido acusado diretamente de alimentar tendências “f ilosóficas” (ou


mesmo “teológicas”), querendo-se dizer com isso que eu pretendo explicar
cada coisa “f ilosoficamente, e que minhas concepções f ilosóficas são
“metaf ísicas”. Se eu utilizo certos materiais f ilosóficos, religiosos ou
históricos, é tão somente com a finalidade de apresentar as conexões
psíquicas. Se, neste contexto, emprego o termo e conceito de Deus ou a
noção, também metafísica [...] é porque se trata de imagens que existem na
alma humana desde os seus primórdios. (JUNG, 2013, p. 231, grifo do autor)

10
Individuação seria “[...] uma pessoa tornar-se si mesma, inteira, indivisível, e distinta de outras
pessoas ou da psicologia coletiva [...]. Este é um conceito chave na contribuição de Jung para as
teorias do desenvolvimento da personalidade. Como tal, está inextrincavelmente entrelaçado com
outros, sobretudo Self [...]. O termo ‘individuação’ foi adotado por Jung através do filósofo
Schopenhauer, porém, reporta-se a Gerard Dorn, um alquimista do século XVI.” (SAMUELS,
SHORTER, PLAUT, 1988, p. 107-108)
10

Assim do ponto de vista psicológico, Jung entende a realidade de Deus “[...]


como um símbolo unificador e transcendente capaz de reunir fragmentos psíquicos
heterogêneos ou unir opostos polarizados.” (SAMUELS, SHORTER, PLAUT, 1988, p.
98). Opostos psíquicos esses que apontam para o Self enquanto uma totalidade
psíquica.
Em outra passagem Jung é mais enfático em uma necessária delimitação
epistemológica:

É por causa, naturalmente, da eterna confusão entre objeto e imago que não
se pode f azer uma distinção entre “Deus” e “imago de Deus”, e, por isto,
pensa-se que, ao f alarmos da “imagem de Deus”, ref erimo-nos ao próprio
Deus e o interpretamos em sentido “teológico”. Não cabe à Psicologia
enquanto ciência, supor uma hipostasiação da imago de Deus. Deve, porém,
respeitando os fatos, contar com a existência de uma imagem de Deus. [...]
Também é claro que a imagem de Deus , por exemplo, corresponde a um
determinado complexo de fatos psicológicos e representa , assim, uma dada
grandeza com a qual podemos operar. Mas saber o que Deus é em si mesmo
constitui um problema que f oge à competência de qualquer psicologia.
Lamento ter que repetir semelhantes evidências (JUNG, 2013, p. 231-232,
grif o nosso)

Compreende-se assim que as religiões são psicologicamente criações


humanas e o Self por conter os opostos, ser o centro e a totalidade psíquica
responsável por todos os processos psíquicos (BONFATTI, 2000a) “[...] é uma base
psicológica para a concepção de Deus. Deus se serve dela (base psicológica) como
seu veículo (e) a Psicologia pode averiguar esta base. Para além disso, é a Teologia
que tem a palavra” (JUNG, 1985, p. 274)11 .
Outras representações do Self ligadas ao aspecto de ser um centro e uma
totalidade são observadas e, se tratando de possíveis imagens ligadas ao Self
percebe-se que essas imagens são profusas.
Jung diz que empiricamente o Self aparece

[...] em sonhos, mitos e contos de f adas, na f igura de “personalidades


superiores” como reis, heróis, profetas, salvadores etc. ou na f igura de
símbolos de totalidade como o círculo, o quadrilátero, a quadratura circuli
(quadratura do círculo), a cruz etc. Enquanto representa uma complexio

11
Bonf atti (2000a) problematiza que psicologicamente a visão unilateral de uma divindade judaico-
cristã luminosa, espiritual, masculina e boa seria incompleta do ponto de vista da totalidade do Self.
Faltar-lhe-ia os aspectos sombrios, telúricos, femininos e maléficos para ser de fato uma totalidade.
Dessa forma, uma representação mais adequada do Self seria a união das representações
psicológicas de Deus e o Diabo. Em outra obra, Bonfatti (2000b) ainda problematiza sobre a questão
do mal não só como realidade psíquica mas também como complexo cultural brasileiro em religiões
neopentecostais.
11

oppositorum, uma união dos opostos, também pode manif estar-se como
dualidade unif icada, como por exemplo, o tao, onde concorrem o yang e o
yin, como irmão em litígio, ou como o herói e seu rival (dragão, irmão inimigo,
arqui-inimigo, Fausto e Mefisto etc.).(JUNG, 1991a, p.443)

Mais adiante Jung continua afirmando que o Self “[...] aparece como um jogo
de luz e sombra, ainda que entendido como totalidade e, por isso, como unidade em
que se une os opostos. Já que este conceito não é explícito - tertium non datur –
também é transcendente por esta mesma razão.” (JUNG, 1991a, p.443)
Sem ter a pretensão de esgotar suas várias representações, observa-se
imagens com estruturas geométricas como o círculo, o quadrado ou a estrela. Essas
formas aparecem em sonhos normalmente sem chamar a atenção para si, entretanto,
trazem recursos o bastante para mobilizar a consciência do eu como pessoas
sentadas em volta de uma mesa redonda, quatro objetos dispostos num ambiente
quadrado, a planta de uma cidade em forma de estrela (STEIN, 2006)
Neste grupo, os números ganham importância, especialmente o número quatro
e seus múltiplos porque remetem a estrutura da quaternidade. Para Jung, a tríade é
um estado transicional para a quaternidade, ou seja, é uma expressão parcial ou
incompleta do Self 12 (STEIN, 2006). Jung diz que

[...] mesmo o conceito filosófico ou matemático mais rigorosamente definido,


que sabemos só conter aquilo o que nele colocamos, ainda é mais do que
pressupomos. É um acontecimento psíquico e, como tal, parcialmente
desconhecido. Os próprios algarismos usados para contar são mais do que
julgamos ser: são, ao mesmo tempo, elementos mitológicos [...]. (JUNG,
2017, p. 47).

As imagens orgânicas bem como as inorgânicas fazem parte das múltiplas


representações que podem obter presença simbólica para expressar a atuação do
Self. No primeiro grupo, pode-se destacar entre muitas outras imagens as árvores e
flores. Já no segundo grupo, destaca-se imagens de lagos e montanhas. (STEIN,
2006) (JUNG, 1991b).
Outras imagens que ganham distinção de representação são as pedras
preciosas como diamantes e safiras, gemas que obtêm uma apreciação significativa.

12
O que ref orça a problematização feita por Bonfatti (2000a) sobre a imagem psicológica trinitária da
imago dei no cristianismo. Pois o que se observa é que o Self se manifesta em representações
quaternárias. Para um maior aprofundamento dessa questão ver o texto de Jung “Tentativa de uma
interpretação psicológica do dogma da Trindade” (JUNG, 1983).
12

E, similarmente as imagens dos castelos, igrejas, vasos e recipientes. E, a notória


imagem da roda. Especialmente, aquelas que se apresentam com um centro e raios
que são traçados do centro para fora e, enfim, formando um aro circular (STEIN, 2006)
ou espiral (JUNG, 1991b).
Visto que o Self pode se representar também de figuras humanas, essas
surgem consideradas com uma elevada maturidade psíquica envolvendo a
consciência do Ego. Tais imagens como os pais, tios, príncipe, princesa, rei, rainha.
Sendo que os paradoxos são bem característicos do Self como o masculino e
feminino, velho e criança, poderoso e indefeso, grande e pequeno (STEIN, 2006).
(JUNG, 1991b).
Outra representação de experiência do Self seria de numinosidade.O que se
pode depreender é que termo numinoso “[...] ocorre na psicologia analítica como
sinônimo de fascinosum para indicar o caráter com que uma coisa, cujo sentido é
ignorado ou ainda não conhecido, se transforma em força que fascina a consciência
do sujeito [...]” (PIERI, 2002, p. 347). De acordo com Bonfatti (2007), na maioria das
vezes, a categoria de numinoso é a experiência que a consciência tem do
inconsciente.
Segundo Jung, seria “[...] uma existência ou um efeito dinâmico não causados
por um ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano,
mais sua vítima do que seu criador. (JUNG, 1983, p.3)
De acordo com Jung, o Self também se apresenta numinosamente fascinante
e impactante.

[...] não é uma idéia [sic] f ilosófica já que não afirma sua própria existência,
isto é, não se hipostasia. Intelectualmente significa apenas uma hipótese.
Mas seus símbolos empíricos possuem muitas vezes significativa
numinosidade (por exemplo, o mandala), isto é, um valor apriorístico (por
exemplo, “Deus é círculo...”, a tetraktys pitagórica, a quaternidade etc.),
demonstrando, pois, ser uma representação arquetípica que se distingue de
outras representações do gênero por assumir uma posição central
correspondente à importância de seu conteúdo e numinosidade. (JUNG, 1991
a, p. 443 grifo do autor)

3.CONSIDERAÇÕES FINAIS
13

O que se tentou explicitar nesse brevíssimo texto sobre o Self na Psicologia


analítica de Carl Gustav Jung, foi tentar realizar uma formulação mais sistematizada
de uma ideia de difícil aproximação conceitual.
Nesse sentido, observou-se que o Self, vinculado diretamente ao conceito de
arquétipo e inconsciente coletivo, tem em sua estrutura e dinâmica psíquica aspectos
paradoxais por engendrar todos os processos psíquicos. Pois, ao mesmo tempo em
que é uma meta a ser buscada, é o centro e o todo da esfera psíquica que contém os
opostos.
Metaforicamente, é o arquétipo central de uma psique que não está vinculada
aos conceitos nem de tempo e nem de espaço.
Além de poder ser compreendido com as qualidades atribuídas à imago dei ele
se manifesta em múltiplas representações ligadas à individuação numa perspectiva
não só totalizadora, e por vezes numinosa, como também agregadora de opostos,
organizadora, orientadora, central e nuclear. Aspectos que podem também ser
representados em manifestações simbólicas oníricas, geométricas e religiosas.
Diante de uma concepção de Self com tantas variações e possibilidades, não
se teve a pretensão de esgotá-lo em seu conceito, significado, estrutura e dinâmica.
Mas sim, fazer uma aproximação inicial e trazer possibilidades de problematizações a
partir de um grupo de Estudos que se dispõe a aprofundar na psicologia de Jung.

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JUNG E A
INDIVIDUAÇÃO*

NILDO VIANA**

Resumo: o presente artigo apresenta uma análise da concepção junguiana sobre o desenvol-
vimento da personalidade e uma breve consideração sobre esse processo e a formação social
do indivíduo tal como é entendido por outros autores. Assim, após uma síntese da concepção
de Carl Gustav Jung, que remete ao problema da individuação, a comparamos com a con-
cepção oriunda da sociologia e outras abordagens que tratam do fenômeno da socialização.
Disso resulta uma perspectiva crítica da análise junguiana, sem descartar o conjunto de
suas contribuições. O maior problema da análise de Jung é, simultaneamente, o seu grande
mérito: a análise da mente como totalidade psíquica. Essa concepção tem como problema a
autonomização da psique humana, o que a desliga do social, sendo este o determinante da
mente humana. O mérito foi ter focalizado o universo psíquico do ser humano, desde que
entendamos não como ele o fez, como autonomização, e sim como foco. Desta forma, compre-
endendo como foco e não autonomia, podemos usar a concepção junguiana para compreender
o fenômeno psíquico.

Palavras-chave: Jung. Individuação. Socialização. Mente. Personalidade

A
obra de Carl Gustav Jung é uma das mais importantes no interior da psicanálise.
A psicanálise, fundada por Freud, teve um desenvolvimento que promoveu algumas
cisões internas, sendo que a cisão de Adler foi a primeira que gerou forte impacto e
toda uma corrente psicanalítica distinta da freudiana e a de Jung, a segunda que gerou uma
nova tendência no interior da psicanálise1. Após a colaboração com Freud e o rompimento,
Jung desenvolve uma nova concepção psicanalítica que abrange um grande número de teses,

* Recebido em: 21.06.2017. Aprovado em: 19.12.2017.


** Pós-Doutor pela USP. Doutor em Sociologia (UnB). Professor da Faculdade de Ciências
Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFG). E-mail: nildoviana@
ymail.com
486 DOI 10.18224/frag.v27i4.5706 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 4, p. 486-494, out./dez. 2017.
termos, temas. No interior da vasta produção intelectual de Jung escolhemos o tema da
individuação, não só por considerar que é um tema fundamental para a psicanálise, mas
também por ser uma questão central no pensamento junguiano.
No curto espaço que temos para desenvolver a nossa análise da concepção junguiana,
teremos que ser sintéticos e nos limitarmos aos aspectos essenciais. O presente artigo é compos-
to por duas partes: uma que visa expor a concepção junguiana e outra que visa refletir sobre ela.
Após uma breve síntese da análise junguiana da individuação, trabalhando com sua terminolo-
gia e explicação do desenvolvimento da personalidade, passaremos para uma análise crítica da
mesma, explicitando elementos para uma psicanálise orientada criticamente e tendo a sociedade
como pressuposto, ou seja, abordando o processo de individuação e desenvolvimento da per-
sonalidade no interior do conjunto das relações sociais. Esse último procedimento tem como
principal aspecto o reencontro entre individuação e socialização, o indivíduo e a sociedade.

JUNG E O DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE

A obra de Jung e sua análise da individuação remetem para vários construtos, entre
os quais inconsciente pessoal, inconsciente coletivo, persona, sombra, anima, animus, etc. e que
formam uma concepção do desenvolvimento da personalidade. Segundo Jung (1978, p. 49):

Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade’


entenderemos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também
que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo. Podemos, pois, traduzir ‘individuação’ como
‘tornar-se si mesmo’ (Verselbstung) ou ‘o realizar-se do si mesmo’ (Selbstwerwirklichung).

O processo de individuação não é algo simples. É um processo complexo e permeado


por fases e dificuldades. Antes da individuação ocorre a alienação. As várias possibilidades de de-
senvolvimento do indivíduo podem ser denominadas “alienações do si-mesmo” (JUNG, 1978).
Essas alienações são “modos de despojar o si-mesmo de sua realidade, em benefício de um papel
exterior ou de um significado imaginário”, que, “em ambos os casos, verifica-se uma preponde-
rância do coletivo” (JUNG, 1978, p. 49). No entanto, a individuação é um movimento para
a realização, ou melhor, para a autorrealização. “Todo ser tende a realizar o que existe nele em
germe, a crescer, a completar-se. Assim é para a semente do vegetal e para o embrião do animal.
Assim é para o homem, quanto ao corpo e quanto à psique” (SILVEIRA, 1983).
Assim, podemos dizer que existem duas tendências no interior da psique humana:
alienação e individuação. O processo de individuação é um processo conflituoso e por isso
não é linear. O indivíduo para se tornar específico e inteiro, precisa passar pelo confronto
entre inconsciente e consciência, através do conflito e da colaboração, que gera o amadureci-
mento através dos diversos componentes da personalidade (SILVEIRA, 1983). Ele significa
a tendência instintiva no sentido de realizar sob forma plena as potencialidades humanas
inatas2. A individuação possui algumas fases, sendo que a primeira é a retirada da máscara, ou
do que Jung denomina persona.

A individuação obrigava a abandonar a confortável segurança da identificação do


quem-eu-sou com o-que-eu-faço, nossos papeis familiares, pessoais e sociais, a que
Jung chamava a persona ou máscara social. Por exemplo, a persona de Jung era ser um

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia,v. 27, n. 4, p. 486-494, out./dez. 2017. 487


médico ou psiquiatra. A dissolução dessa persona era necessária para o desenvolvimento
porque ela não passa de um segmento da psique coletiva. Tal máscara apenas estimula
nossa individualidade, mas não a exprime. Descobrimos, na análise, que o que pen-
samos ser individual e exclusivo em nós é, na verdade, coletivo, um falso sistema do
Self interiorizado (STAUDE, 1995, p. 106).

Ao superar o papel social que constitui a persona, que cumpre a função de um


sistema de defesa, o indivíduo se defronta com o lado obscuro da psique humana: a sombra.
Ela faz parte da personalidade total do indivíduo e é aquilo que não aceitamos em nós, o
que consideramos repugnante, o que reprimimos e projetamos sobre os outros. Embora a
sombra seja um conjunto de componentes diferenciados (fraquezas, imaturidade, complexos
reprimidos, forças maléficas) considerados negativos, ela também possui “traços positivos”
(JUNG, 1987): qualidades não desenvolvidas por razões externas ao indivíduo ou então falta
de energia suficiente para superá-las (SILVEIRA, 1983).

Trazemos em nós o nosso passado, isto é, o homem primitivo e inferior com seus apetites
e emoções, e só com um enorme esforço podemos libertar-nos desse peso. Nos casos de
neurose, deparamos sempre com uma sombra consideravelmente densa. E para curar-se
tal caso, devemos encontrar um caminho através do qual a personalidade consciente e a
sombra possam conviver (JUNG, 1987, p. 81).

A sombra remete ao inconsciente pessoal3 e este é uma camada que é de natureza


pessoal, sendo “aquisições derivadas da vida individual e em parte por fatores psicológicos”
(JUNG, 1978, p. 11). É parte integrante da personalidade e se diferencia do inconsciente co-
letivo, que possui elementos de ordem impessoal, coletiva, formado por “categorias herdadas”
ou “arquétipos” (JUNG, 1978).
Um último elemento que Jung reconhece na formação da personalidade é, no sexo
masculino, a confrontação com a anima, e, no sexo feminino, a confrontação com o animus.
Em cada homem existe “uma minoria de gens femininos que foram sobrepujados pela maioria
de gens masculinos” (SILVEIRA, 1983) e a anima é a representação psíquica dessa minoria de
gens femininos, constituindo uma feminilidade inconsciente no homem. Ela também expressa
a experiência milenar do homem com a mulher (formando a imagem da mãe, que é transposta
para a namorada, esposa ou amante). Da mesma forma, em cada mulher existe “uma minoria
de gens masculinos” também sobrepujados por uma maioria de gens femininos e o animus é
sua representação no psiquismo feminino. O animus se manifesta como “intelectualidade mal
diferenciada e simplista” (SILVEIRA, 1983). O animus também expressa a experiência milenar
da mulher com o homem, formada, principalmente, na imagem do pai, transferida depois para
o professor, o ator, o esportista ou o líder político. Após essa confrontação, quando há a supera-
ção das personificações da anima e do animus, o inconsciente se altera e emerge o self. Esse é o
núcleo mais interior da psique e aparece nos sonhos masculinos como o sábio, mestre espiritual,
filósofo e nos sonhos femininos como sacerdotisa, deusa mãe ou deusa do amor.

O self (si mesmo) não se revela apenas através de personificações humanas. Sendo uma
grandeza que excede de muito a esfera do consciente, sua escala de expressões estende-se
de uma parte ao infra-humano e de outra parte super-humano. Assim, seus símbolos po-

488 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 4, p. 486-494, out./dez. 2017.


dem apresentar-se sob aspectos minerais, vegetais, animais; como super-homens e deuses.
Também sob formas abstratas. A denominação de self não cabe unicamente a esse centro
profundo, mas também à totalidade da psique. O reconhecimento da própria sombra,
a dissolução de complexos, liquidação de projeções, assimilação de aspectos parciais do
psiquismo, a descida ao fundo dos abismos, em suma, o confronto entre consciente e
inconsciente, produz um alargamento do mundo interior do qual resulta que o centro da
nova personalidade, construída durante todo esse longo labor, não mais coincida com o ego.
O centro da personalidade estabelece-se agora no self, e a força energética que este irradia
englobará todo o sistema psíquico. A consequência será a totalização do ser, sua esferificação
(abrundung). O indivíduo não estará mais fragmentado interiormente. Não se reduzirá a
um pequeno ego crispado dentro de estreitos limites. Seu mundo agora abraça valores mais
vastos, absorvidos do imenso patrimônio que a espécie penosamente acumulou nas suas
estruturas fundamentais. Prazeres e sofrimentos serão vivenciados num nível mais alto de
consciência. O homem torna-se ele mesmo, um ser completo, composto de consciente e
inconsciente incluindo aspectos claros e escuros, masculinos e femininos, ordenado segundo
o plano de base que lhe for peculiar (SILVEIRA, 1983, p. 99-100).

É nesse momento que se conclui o processo de individuação. Caso não ocorra, o


estágio anterior fixado gera neuroses e outros processos limitativos do desenvolvimento da
personalidade. O encontro com o self, o núcleo da personalidade, possibilita a integração da
totalidade da personalidade4.

JUNG, PERSONALIDADE E SOCIEDADE

A breve descrição da concepção junguiana do desenvolvimento da personalidade é


fundamental para realizarmos um confronto entre sua abordagem e a de outros psicanalistas,
focalizando a questão da sociedade. O campo perceptivo de Jung é a mente humana enquan-
to que a sociologia tem a sociedade como domínio temático, assim como a antropologia se
dedica à cultura e outras ciências humanas outros aspectos da sociedade (ciência política,
historiografia, economia, etc.).
O que Jung denomina “individuação” é um processo psíquico no qual a sociedade
pouco aparece. Erich Fromm também discute o processo de individuação, mas o faz mostran-
do não apenas o desenvolvimento do universo psíquico individual, pois apresenta também
que se trata de um processo social (FROMM, 1981). É esse processo que possibilitou algumas
críticas ao pensamento junguiano:

Jung considerava a ‘individuação’ e a ‘coletividade’ como um par de opostos. Críticos


de Jung objetaram quanto ao fato de que ele não tinha um senso de sociedade, de que a
individuação só é possível quando o indivíduo obtém sua individuação às custas de um
trabalho equivalente em benefício do coletivo, da sociedade. Só os que pagaram seu preço
à sociedade por iniciativa própria podem atingir os níveis mais elevados da individuação
(STAUDE, 1995, p. 107).

Aqui temos a sociedade (ou “coletividade”) aparecendo e um questionamento rea-


lizado por alguns ao pensamento de Jung. A sociedade, segundo Staude, é um par oposto ao
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia,v. 27, n. 4, p. 486-494, out./dez. 2017. 489
processo de individuação. Como observamos anteriormente, a individuação é conquistada
superando a persona, ou seja, o que alguns sociólogos e psicólogos chamariam de “papeis
sociais”. Essa oposição requer uma compreensão crítica da sociedade. Contudo, Jung não
demonstra possuir uma análise mais profunda da sociedade5 e nem do impacto dessa sobre os
indivíduos. O impacto do social sobre o individual é um dos principais temas da sociologia e
em alguns autores aparece com o nome de socialização. O processo de socialização, abordado
por vários sociólogos, é inverso ao de individuação, no sentido junguiano.
No processo de socialização observamos como o indivíduo se torna um ser social.
Esse fenômeno pode ser visto sob formas distintas. Ele pode ser percebido através de uma
concepção dualista da natureza humana, que seria, por um lado, egoísta, e, por outro, social,
e por isso a socialização visa tornar o indivíduo um ser social e adaptá-lo à sociedade (DUR-
KHEIM, 1974). Também pode ser considerado um processo que tem a incumbência de for-
mar o ser social, mas, simultaneamente, para determinado lugar na sociedade (dependendo
da classe social, entre outras divisões sociais), para determinada forma histórica de socieda-
de (a sociedade escravista ou feudal geram indivíduos diferentes adaptados a elas). Assim, a
incumbência universal da socialização é formar o ser social, é um processo de humanização.
A incumbência histórico-particular é para ele se preparar para viver em determinada socieda-
de e determinada posição no seu interior (VIANA, 2011).
Aqui nos deparamos com a posição junguiana. A oposição entre indivíduo e so-
ciedade é relativa, depende de cada sociedade histórica particular, e por isso a sua tese uni-
versalista é problemática, pois, retirando as diferenças que atribui ao oriente e ocidente, que
fica no nível mental (JUNG, 1986), não apresenta uma percepção da evolução histórica da
humanidade, as formas de sociedade, as características fundamentais da sociedade moderna.
Estas ficam ausentes em sua análise (VIANA, 2002). O único processo social mais relevante
que Jung reconhece na sociedade moderna é a especialização e profissionalização, que gera a
persona, e a racionalização, que gera o sufocamento do inconsciente (JUNG, 1988)6.
Assim, a crítica a Jung pelo fato dele desconsiderar a responsabilidade social do in-
divíduo, é equivocada e Staude está correto nesse aspecto. Contudo, a crítica mais profunda
segundo a qual a sociedade e o processo de constituição social do indivíduo está ausente, bem
como a concreticidade desse processo, não é respondida. Um exemplo pode esclarecer isso.
A discussão sobre anima e animus, em Jung, é problemática por universalizar algo que, mes-
mo tendo um elemento universal, não é totalmente universal. A ideia de existência de gens
femininos e que isso explicaria o pendor sentimental do homem e a existência de gens mas-
culinos que explicaria o pendor racional das mulheres é algo que as informações produzidas
por antropólogos e sociólogos demonstram ser equivocado. A antropóloga Margareth Mead,
mostra, ao analisar três tribos indígenas, três formas de manifestação de temperamento de
homens e mulheres, sendo que uma é igual à nossa sociedade (e, portanto, de acordo com o
esquema junguiano), outra é o contrário (as características consideradas, em nossa sociedade,
femininas são desenvolvidas pelos homens e as masculinas pelas mulheres), e uma terceira na
qual ambos os sexos revelam um equilíbrio entre ambas (MEAD, 1988)7.
Isso significa que existe uma socialização diferencial entre os sexos e dentre os aspec-
tos diferenciais estão o “temperamento” ou os “ethos sexuais”. A constituição de ethos sexuais
rígidos é um elemento que pode gerar desequilíbrios psíquicos e Jung está correto em colocar
a necessidade de “confrontação” do homem com a anima e da mulher com o animus, pois são
potencialidades humanas que a socialização diferencial tolhe em cada um deles, pois ambos
490 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 4, p. 486-494, out./dez. 2017.
possuem capacidades intelectuais e racionais, bem como sentimentais. Esse mesmo processo
também existiu em outras sociedades, sob formas diferentes, devido ao processo histórico e
se reproduz na sociedade moderna. Logo, nada tem a ver com “gens masculinos” ou “gens
femininos”, não é uma questão genética ou orgânica e sim sociocultural, bem como não é
algo universal.
O que a análise histórica e social deve levar em conta, e assim contribuir com essa
discussão, é o grau em que cada um desses processos (racionalização, no sentido junguiano
da palavra, e sentimentalizacão) são introjetados pelos indivíduos e são um obstáculo para
o desenvolvimento de sua personalidade (no sentido junguiano, ou seja, sob forma integral).
É, nesse sentido, Jung está novamente correto ao observar o excessivo racionalismo da socie-
dade que ele chama de “ocidental”. O sufocamento dos sentimentos é algo muito intenso na
sociedade moderna e as explosões sentimentais são a resposta, muitas vezes violenta, e que
explica aspectos da modernidade.
Sem dúvida, uma compreensão mais profunda da sociedade e uma percepção mais
ampla da formação social do indivíduo seria fundamental para reconhecer que muitas carac-
terísticas humanas consideradas “universais” são, na verdade, produtos sociais e históricos8.
Elementos universais existem, mas mesmo estes podem ser reprimidos (o que é problemático
e fonte de desequilíbrios psíquicos) e assumirem distintas formas dependendo da sociedade
e da época. A sombra, que Jung considera parte da psique humana, pode ser concebida não
como algo universal e natural, sendo mais histórico e tendo a ver com as relações sociais e
a vida individual no interior dessas (VIANA, 2002), sem descartar a ação das “dicotomias
existenciais” (FROMM, 1978).
Da mesma forma, os elementos biológicos existem e são atuantes sobre o universo
psíquico individual, bem como os sociais, tal como apontados por Freud e Adler, respectiva-
mente. O próprio Jung reconhece9, embora não seja nosso objeto aqui. Essa ressalva é impor-
tante para que não se confunda nossa posição, pois o ser humano é um biossociopsíquico, o
que constitui sua complexidade. Freud enfatizou alguns aspectos, Adler outros, bem como
Rank, Fromm, Horney, entre outros, enfatizaram aspectos diferentes do ser humano, espe-
cialmente seu constituição social e cultural.
Nesse contexto, a psicanálise, no seu conjunto, permite a constituição de uma
percepção integral do ser humano, a partir da assimilação crítica das principais contribui-
ções psicanalíticas existentes. Uma concepção totalizante de ser humano é fundamental e a
contribuição de Jung, que aponta para a percepção de fenômenos psíquicos relativamente
autônomos10, segundo ele, traz importantes reflexões que podem ajudar o projeto de uma
reconstituição do ser humano como totalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista o que foi colocado no decorrer do presente texto, a psicologia analí-
tica de Jung aparece como um importante capítulo na história da psicanálise. Outras verten-
tes diferenciadas tentaram adaptar o legado de Freud ao desenvolvimento de novas tendências
ideológicas, como o estruturalismo (LACAN, 1992) e o existencialismo (MAY, 1974), além
das anteriormente citadas. Esse processo aponta para o reconhecimento de que, entre todas
as abordagens psicanalíticas, a de Jung ocupa um lugar fundamental, ao lado de Freud, Adler,
Fromm e outros.
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia,v. 27, n. 4, p. 486-494, out./dez. 2017. 491
Uma das principais contribuições de Jung é o processo de individuação, foco de
nossa análise. O processo de individuação é explicitado na perspectiva do indivíduo em seu
processo de formação, o que teria, como processo determinante, o processo de socialização,
pensado na perspectiva social. Foi por esse motivo que apresentamos a concepção junguiana e
depois a comparamos com outras concepções, oriundas da sociologia e outras áreas do saber,
para recompor a totalidade que é o desenvolvimento da personalidade.
A nossa conclusão é a de que grande parte das análises de Jung é útil para um de-
senvolvimento da psicanálise, retirando o seu “invólucro místico”, tal como colocou Marx
em relação a Hegel (MARX, 1988). Assim, a contribuição de Jung deve ser reconhecida, mas
criticamente. Somente dessa forma é possível haver um discernimento sobre o que contribui
com a compreensão do universo psíquico dos seres humanos e o que é descartável. A abor-
dagem crítica é fundamental, mas também o cuidado para não jogar a criança fora da bacia
junto com a água suja. O que fizemos aqui foi a retenção da criança e o descarte da água suja.
E uma das grandes contribuições de Jung, a nosso ver, é o seu foco analítico na psi-
que humana e sua dinâmica própria. O problema ocorre em sua autonomização do psiquis-
mo, o que pode ser corrigido com sua inserção numa totalidade mais ampla que é a sociedade.
Alguns termos junguianos precisam se integrados ao processo analítico da mente humana,
como persona, sombra, entre outros. Para isso se tornar mais sólido é fundamental a releitura
de Jung e de seu significado no interior da história da psicanálise. Essa é a nossa conclusão e
que promove um amplo programa de pesquisa a ser realizado no futuro.

JUNG AND THE INDIVIDUATION

Abstract: this article presents an analysis of the Jungian conception about the development of per-
sonality and a brief consideration about this process and the social formation of the individual as
understood by other authors. Thus, after a synthesis of the conception of Carl Gustav Jung, which
refers to the problem of individuation, we compare it with the conception coming from sociology
and other approaches that deal with the phenomenon of socialization. This results in a critical pers-
pective of the Jungian analysis, without discarding the set of its contributions. The major problem
of Jung’s analysis is, at the same time, his great merit: the analysis of the mind as a psychic totality.
This conception has as its problem the autonomization of the human psyche, which disconnects it
from the social, which is the determinant of the human mind. The merit was to have focused the
psychic universe of the human being, provided we understand not how he did it, as autonomiza-
tion, but as focus. In this way, understanding as focus and not autonomy, we can use the Jungian
conception to understand the psychic phenomenon.

Keywords: Jung. Individuation. Socialization. Mind. Personality.

Notas

1 A psicanálise adleriana, bastante citada por Jung, pois seu rompimento e estruturação de uma interpretação
psicanalítica distinta da de Freud, ganhou um espaço que acabou se perdendo com o passar dos anos. Apesar
da psicanálise de Adler ter trazido conceitos fundamentais para a psicanálise, como a de “complexo de
inferioridade”, a historiografia da psicanálise não lhe faz a devida justiça, pois apesar de aparecer em capítulos
de livros sobre história da psicanálise, a profundidade e importância de sua contribuição não é levada em

492 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 27, n. 4, p. 486-494, out./dez. 2017.


devida conta. Embora Adler e Jung tenham sido os primeiros e mais importantes dissidentes de Freud, esses
“desviacionistas de 1912” (THOMPSON, 1976) logo foram seguidos por outros: “nos inícios de 1920,
quatro outros discípulos de Freud ou se afastaram ou de qualquer modo discordaram em vários aspectos
com o movimento principal, nomeadamente Otto Rank, Wilhelm Stekel, Sandor Ferenczi (que, no entanto,
nunca rompeu completamente com Freud) e Wilhelm Reich” (BROWN, 1963, p. 49).
2 A individuação não é “sinônimo de perfeição” e também não significa individualismo ou egoísmo, tendo
mais o sentido de “completar-se”, aceitando o fardo de conviver com tendências opostas oriundas de sua
natureza sob forma consciente (SILVEIRA, 1983). “a acusação de individualismo é um insulto banal,
quando é dirigida ao desenvolvimento natural da personalidade” (JUNG, 1991, p. 179).
3 “A sombra coincide com o inconsciente freudiano e com o inconsciente pessoal junguiano” (SILVEIRA,
1983, p. 92).
4 Apesar de algumas interpretações diferentes, como a de Maroni (1998), é esse o processo que caracteriza
o desenvolvimento da personalidade em sua forma ideal, na perspectiva junguiana. Assim, o self pode ser
compreendido como núcleo e como totalidade da personalidade: “o self (Selbst) tem dupla definição: a)
como totalidade da personalidade; b) como arquétipo do centro da personalidade, arquétipo da orientação
e do sentido” (MARONI, 1998, p. 109).
5 Isso é comum na psicanálise, que é absolutamente compreensível, pois não é o campo perceptivo de
análise dos psicanalistas. Por outro lado, isso faz parte do próprio problema identificado por Jung, ou
seja, a persona e o apego à profissão, que, enquanto forma de especialização (inclusive intelectual, o que é
legitimado pela divisão de “objetos de estudo” das diversas ciências particulares), não só limita o indivíduo
no desenvolvimento da sua personalidade, mas também no desenvolvimento de sua consciência. Assim,
a psicanálise, por possuir uma compreensão limitada da sociedade, o que pode ser visto em Freud, Adler,
Jung e até mesmo na chamada “escola culturalista” (Horney e outros) e “freudomarxista” (Reich, Fromm,
etc.), que oferecem uma especial atenção aos problemas sociais e ao contexto social e cultural. Freud, o
fundador da psicanálise, nunca desenvolveu estudos mais profundos sobre a sociedade, sendo que quando
tratava dessa, suas referências eram psicólogos e não sociólogos e outros pesquisadores que tratam mais
diretamente dessa questão, e isso pode ser visto em sua abordagem da origem de determinados fenômenos
sociais na qual parte de mitos e lendas ao invés do processo histórico real, tal como sua análise da origem do
incesto (FREUD, 1974).
6 É justamente essa especificidade histórica que permite alguns autores julgar que a individuação (também
traduzida como “individualização”) é produto da sociedade capitalista: “O processo de ‘individualização’
tem, pois, as suas raízes nas relações de produção do modo de produção capitalista” (CARDOSO e
CUNHA, 1987). No entanto, consideramos que o mais correto é considerar que a individuação assume uma
característica específica na sociedade capitalista, que é tanto real (autonomia relativa do indivíduo) quanto
meramente discursiva (individualismo).
7 Não nos referimos aqui à questão da sexualidade, muito mais complexa, e que remeteria a diversas pesquisas,
com suas divergências analíticas, e sim ao modo de ser de homens e mulheres, ou “ethos sexuais”, que
também é um fenômeno biossociopsíquico.
8 No interior da psicanálise essa necessidade de abordar a socialização já foi sentida e uma primeira tentativa
de abordá-la mais sistematicamente já foi realizada (LORENZER, 2001).
9 Segundo Jung: “tenho plena consciência dos méritos de Freud, e não tenho intenção alguma de diminuí-
los. Sei, inclusive, que o que ele diz se adapta a um grande número de pessoas, e é possível afirmar que tais
pessoas têm exatamente o tipo de psicologia que ele descreve. Adler, cujo ponto de vista era completamente
diverso, também tem um grande número de seguidores, e estou convencido de que muitos têm uma
psicologia adleriana. Também tenho os meus – não são tão numerosos quanto os de Freud – pessoas que,
presumivelmente, têm a minha psicologia. Chego a considerar minha contribuição como minha própria
confissão subjetiva. É a minha psicologia que está nisso, meu preconceito que me leva a ver os fatos da minha
própria maneira. Mas espero que Freud e Adler façam o mesmo, e confessem que suas ideias representam
pontos de vista subjetivos. Desde que admitamos nosso preconceito estaremos realmente contribuindo para
uma psicologia objetiva” (apud. MARONI, 1998, p. 18-19). No entanto, não é possível concordar com
essa autora, pois a afirmação da existência de “psicologias múltiplas” em Jung e que isso estaria em acordo
com uma posição nietzschiana de crítica de noção da verdade, entra em contradição com a realidade. As
críticas de Jung, especialmente em relação a Freud, deixa isso relativamente claro: “não consigo ver onde
Freud consegue ir além de sua própria psicologia e como poderá aliviar o doente de um sofrimento do qual

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o próprio médico padece” (JUNG, 1989, p. 325). Da mesma forma, a multiplicidade de “psicologias” (que,
no caso, quer dizer “tipos psicológicos”) podem gerar diferentes pontos de vista subjetivos, mas somente
reconhecendo isso, como a psicologia junguiana, é que se pode chegar a uma psicologia objetiva, como faz
Jung. Por conseguinte, a abordagem junguiana está distante do relativismo. Esse é um procedimento psíquico
comum nos seres humanos e, tal como Jung, Freud fez o mesmo: “da mesma forma que a investigação de
Adler trouxe algo de novo à psicanálise – uma contribuição à psicologia do ego – e cobrou por esse presente
um preço demasiado alto jogando fora todas as teorias fundamentais da análise, assim também Jung e
seus seguidores prepararam o caminho para a sua uta contra a psicanálise, presenteando-a com uma nova
aquisição” (FREUD, 1978, p. 80).
10 A “autonomia do inconsciente”, ou da psique humana (JUNG, 1987), é uma das teses de Jung e que
ele utiliza para entender o fenômeno religioso, sob forma distinta de Freud e daqueles que ele denomina
“materialistas”.

Referências
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CARDOSO; CUNHA, T. Do Mito Coletivo ao Mito Individual. In: O Mito Individual do
Neurótico. 2. ed. Lisboa: Assírio e Alvim, 1987.
DURKHEIM, É. As Regras do Método Sociológico. 6. ed. São Paulo: Nacional, 1974.
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FREUD, S. A História do Movimento Psicanalítico. In: Textos Escolhidos. São Paulo: Nova
Cultural, 1978.
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JUNG, C. G. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1978.
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LACAN, J. Escritos. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
LORENZER, A. Bases para una Teoria de la Socialización. Buenos Aires: Amorrortu, 2001.
MARONI, A. Jung: O Poeta da Alma. São Paulo: Summus, 1998.
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SILVEIRA, N. Jung: Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
STAUDE, J. R. O Desenvolvimento Adulto de C. G. Jung. São Paulo: Cultrix, 1995.
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2002.
VIANA, N. Introdução à Sociologia. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

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PERSPECTIVA. TEOLÓGICA.ADERE.A. UMA. LICENÇA. CREATIVE. COMMONS


ATRIBUIÇÃO. 4.0. INTERNACIONAL. –. (CC. BY. 4.0. )

DOI:. 10.20911/21768757v55n1p189/2023

EXPERIÊNCIA PSICOLÓGICA E MÍSTICA DO SI-MESMO


NA MODERNIDADE

Psychological Experience and Mysticism of Self in Modernity

Marco Heleno Barreto *

RESUMO: O. artigo. explora. a. possibilidade. de. se. pensar. um. lugar. para. a. mística.
do. Si-mesmo. em. consonância. com. as. coordenadas. que. defi.nem. a. forma. de. cons-
ciência. prevalente. na. modernidade.. Para. tanto,. toma-se. um. ideologema. comum.
encontrado. no. pensamento. de. três. autores. que. representam. o. espírito. da. moder-
nidade. –. Feuerbach,. Nietz.sche. e. Jung. –. e. apresenta-se. uma. interpretação. sob. a.
perspectiva. da. mística. do. Si-mesmo.. Em. seguida,. a. posição. assim. estabelecida. é.
utilizada para interpretar a dimensão mística presente em um fragmento concreto
de.experiência.psicológica.contemporânea..Consolidando.a.articulação.entre.Mística.
do. Si-mesmo. e. experiência. psicológica,. abre-se. espaço. para. um. fecundo. diálogo.
na. zona. fronteiriça. envolvendo. teologia,. fi.losofi.a. e. psicologia.
PALAVRAS-CHAVE:. Modernidade.. Mística. do. si-mesmo.. Feuerbach.. Nietz.sche..
Jung.

ABSTRACT: This.paper.explores.the.possibility.of.thinking.a.place.for.the.mysti-
cism.of.Self.within.the.constitutive.requirements.of.the.modern.form.of.conscious-
ness.. It. takes. a. common. idea. found. in. the. works. of. three. representative. thinkers.
of. Modernity. –. Feuerbach,. Nietz.sche. and. Jung. –. ,. and. interprets. it. in. the. light. of.
the. mysticism. of. Self.. Then. the. perspective. thus. established. is. used. in. order. to.
interpret the mystical dimension present in a concrete fragment of contemporary
psychological.experience..The.strengthening.of.the.conexion.between.Mysticism.of.
Self.and.psychological.experience.opens.a.fertile.dialogical.space.in.the.borderland.
comprising. Theology,. Philosophy. and. Psychology.
KEYWORDS:. Modernity.. Mysticism. of. Self.. Feuerbach.. Nietz.sche.. Jung.

*. Faculdade. Jesuíta. de. Filosofi.a. e. Teologia,. Belo. Horizonte,. Minas. Gerais,. Brasil.

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023 189


Introdução

T alvez não seja impróprio dizer que a experiência analítica, em que pese
a enorme diversidade de versões e pressupostos com que se apresenta
no panorama conturbado do “século psicológico”, pode ser compreendida
como uma modalidade contemporânea do conhecimento de si mesmo
que, de suas origens gregas até a hora avançada da revolução psicanalí-
tica, conheceu variadas e contrastantes formas. Cabe ressaltar a dimensão
existencial do “conhece-te a ti mesmo”, que, como lembra Paul Ricoeur
(RICOEUR 1960, p. 331), não se reduz a um aumento da circunscrição
reflexiva do eu consciente, por ser essencial e indissoluvelmente vincu-
lada a uma transformação qualitativa do sujeito, pela qual se cumpre a
máxima do “torna-te o que és”: um convite imperativo a situar-se melhor
na existência.

Ricoeur, em sua seminal conclusão de La symbolique du mal, à qual dá o


kantiano título de “o símbolo dá a pensar”, propõe à filosofia uma apos-
ta e uma tarefa, no âmbito da realização existencial do “conhece-te a ti
mesmo”: “Eu aposto que compreenderei melhor o homem e os laços que
unem o ser do homem com o ser de todos os demais seres seguindo as
indicações do pensamento simbólico” (RICOEUR, 1960, p. 330). O herme-
neuta francês via no símbolo “uma hierofania, uma manifestação do laço
que une o homem ao sagrado” (1960, p. 331), não sendo, portanto, um
simples revelador da consciência do eu (ou do eu consciente). Atribuindo
ao símbolo a função existencial de enraizamento do ser humano no mundo,
mediante a ordenação de suas experiências profundas, Ricoeur descortina
a implicação metafísica de sua concepção de símbolo: “O símbolo nos
faz pensar que o Cogito está no interior do ser, e não o contrário” (ibid.).
Assim sendo, refletindo pela via do símbolo o filósofo francês enfatiza
o duplo caráter metafísico e existencial do “conhece-te a ti mesmo”, e o
vincula a um laço entre o homem e o sagrado. Não sem razão, portanto,
Sônia Viegas – admirável filósofa brasileira, de saudosa memória—via em
Le symbole donne a penser um alcance quase místico.1

Em um estudo a quatro mãos sobre a experiência do Si-mesmo, Olivier


Lacombe e Louis Gardet conjugam o aspecto metafísico e o aspecto mís-
tico da experiência de autoconhecimento, também apontados por Ricoeur:
“Será necessário, mas suficiente, com efeito, que a experiência de si se
apreenda em profundidade como experiência do ser que eu sou, para que
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o nível empírico seja transcendido e que nós tenhamos de falar de uma


experiência pelo menos virtualmente metafísica, e não de um simples ‘vi-
vido’ de consciência” (GARDET; LACOMBE, 1981, p. 162).2 Sublinhemos

1
Comunicação pessoal.
2
Para uma magistral exposição acerca das relações entre mística e metafísica na tradição
ocidental, ver VAZ, 2000.

190 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023


que se trata de uma experiência, que se amplia em uma forma de vivência
especial, metafísica em sua estrutura e mística em seu teor. Talvez pudés-
semos traduzir a “experiência do ser que eu sou” como aquela do “êxtase
que está associado a estar vivo” (CAMPBELL, 1988, p. 6), tomando êxtase
no duplo sentido de passagem mais além de tudo o que não é essencial
a nosso Si-mesmo (o fundo incomunicável de nossa existência pessoal) e
passagem mais além do nível racional discursivo (GARDET; LACOMBE,
1981, p. 74). Pois o intelecto por si só não desvela as profundidades on-
tológicas do sujeito – daí a necessidade, segundo Ricoeur, da mediação
incontornável do símbolo. Assim, há “uma espécie de apofatismo exigido
pela maneira como nós nos apreendemos como sujeito. (...) A mística do
Si-mesmo encontra precisamente seu lugar de ancoragem nesse ponto cego
do conhecimento espontâneo de nós mesmos” (GARDET; LACOMBE, 1981,
p. 166-167). A este ponto cego refere-se justamente a noção psicológica
de inconsciente, que, portanto, confere à experiência do autoconhecimento
uma potencialidade mística.

Já em 1964, em um ensaio sobre o ateísmo moderno, Jean Lacroix entrevia


exatamente a possibilidade de uma mística ateia de caráter individual e
psicológico, baseada na experiência dos aspectos noturnos da personalidade
humana, em que a noite mística é transformada em um radical não-saber e
é vivida mediante uma abertura integral, lúcida e sincera ao desconhecido
(LACROIX, 1964, p. 54). Não é difícil perceber aqui a referência à noção
princeps da experiência analítica, que nas memórias de Jung receberia o
nome de “confronto com o inconsciente” (JAFFÉ, 1982, p. 152-176). Na
verdade, aquilo que Jean Lacroix vislumbrava já se cumpria efetivamente
no interior de uma das linhas heréticas do movimento psicanalítico no
século XX, a partir da experiência fundacional de Jung, muito embora a
experiência junguiana não possa ser adequadamente compreendida como
essencialmente ateísta.

Em sua leitura desse fenômeno cultural, Lacroix afirmava: “A descoberta


de si em suas maiores profundezas é o seu próprio fim, mesmo se ela não
chega senão ao vazio, ao desnudamento e à solidão” (LACROIX, 1964,
p. 54). Tal experiência pode legitimamente ser qualificada como mística,
entendendo-se a experiência mística como um ápice da experiência religiosa
ou experiência do sagrado, desde que assinalemos à experiência religiosa,
implícita ou explicitamente, uma referência ao absoluto. A experiência
explícita do absoluto, que define tal ápice, conhece basicamente três mo-
dalidades: mística da graça sobrenatural (que tem Deus como termo de
referência), mística cósmica (cujo termo de referência é o Todo do uni-
verso encarado como totalidade una) e mística da alma (que se refere ao
Si-mesmo, entendido como “centro próximo de referência absoluta para
cada consciência” [GARDET; LACOMBE, 1981, p. 28]). As duas últimas
modalidades são místicas naturais ou da imanência, e podem, embora
não obrigatoriamente, se inscrever em um horizonte ateísta. Das duas,

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a que nos interessa aqui é a mística da alma.3 É a ela que se refere Jean
Lacroix ao apontar a forma de mística que percebia emergir no interior
do ateísmo moderno.

Para podermos falar de uma mística do Si-mesmo, é preciso que este


“centro próximo de referência absoluta para cada consciência” seja pensa-
do e afirmado como distinto da própria consciência e a ela relativamente
transcendente; no entanto deve guardar com ela relação dialética de uni-
dade na diferença – caso contrário não se poderia falar rigorosamente de
uma referência absoluta para a consciência (a mística da alma não poderia
ser uma modalidade de experiência do absoluto, pois este ficaria neces-
sariamente relativizado por uma alteridade simples, não dialética, entre
consciência ou eu consciente e Si-mesmo). Além disso, o Si-mesmo deve
ser afirmado como desconhecido para a consciência, com relação à qual
ele é um centro próximo de referência absoluta. Em outros termos: para
o eu consciente, o Si-mesmo é inconsciente.

Pois bem: meu objetivo aqui será simplesmente fundamentar a percepção


de Jean Lacroix a respeito de uma mística moderna, de caráter individual e
psicológico, apontando para um ideologema4 ou esquema comum, presente
no pensamento de três autores representativos da modernidade: Ludwig
Feuerbach, Friedrich Nietzsche e Carl Gustav Jung. Apesar de articulado
de formas reconhecidamente distintas no contexto próprio de cada um
dos pensadores, esse ideologema comum apresenta uma base para se
compreender a mística do Si-mesmo aludida por Lacroix (embora no caso
de Nietzsche e de Jung, pelo menos, a qualificação de ateísmo seja discu-
tível, problemática). Enfatizo, então, que não pretendo oferecer nenhuma
contribuição à compreensão de Feuerbach, Nietzsche ou mesmo Jung, e
por isso abstenho-me de uma referência mais aprofundada à literatura
secundária sobre esses três pensadores. Apenas aproprio-me livremente de
um elemento semelhante em seus escritos, com a finalidade de, a partir de
tal elemento ou ideologema, pensar a mística do Si-mesmo ou mística da
alma segundo certas condições particulares, a saber: seu caráter individual,
psicológico e referido à noção de inconsciente. Essas condições permitem
sancionar a inscrição da mística do Si-mesmo no interior do horizonte mais
amplo da mentalidade moderna, na medida em que esta modalidade de
mística, podendo ser compreendida sem referência à categoria da trans-
cendência (que a princípio parece estruturalmente interditada na forma
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3
Para uma apresentação e breve discussão de um exemplo contemporâneo de mística ateia
do Todo (na experiência pessoal do filósofo francês André Comte-Sponville), veja-se BAR-
RETO, 2016, p. 547-553.
4
Um ideologema é um “componente irredutível, dentre outros, de uma convicção, fé, ideal,
idealização” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, s.v.). Utilizo o termo aqui, sem
qualquer conotação crítica ou negativa, para designar este componente tal como aparece no
contexto dos pensamentos dos autores abordados.

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moderna de consciência), tem como exigência mínima a afirmação de uma
autotranscendência na imanência. Saliente-se, por fim, que, admitindo a
mística do Si-mesmo níveis ou formas distintos, não se pretende aqui uma
abordagem compreensiva, mas tão somente uma apreciação sobre um de
seus níveis, ao qual a mentalidade moderna não se mostra avessa: o nível
da experiência psicológica. Por este mesmo motivo, não abordarei aqui
a questão, muito mais problemática, da possível articulação entre mística
do Si-mesmo e mística da graça sobrenatural.5

1 Feuerbach

Ludwig Feuerbach representa a verdadeira matriz do ateísmo ocidental


moderno, que tem como caráter distintivo o fato de ser um ateísmo de
talhe antropológico. Isso significa que o lugar atribuído a Deus na consci-
ência religiosa e na teologia passa a ser interpretado como nada mais do
que humano.6 Tal é a conhecida redução da teologia à antropologia, um
dos pilares do pensamento feuerbachiano. Como diz Feuerbach, em uma
formulação lapidar: “O ser absoluto, o Deus do Homem, é a sua própria
essência” (FEUERBACH, 2007, p. 38).7

Nesta sentença, que traduz o cerne da ideia central do filósofo de Landshut,


fala-se da essência do Homem (Wesen; em outras passagens Feuerbach utiliza
“gênero”, Gattung). Pois bem: em Feuerbach há uma diferença explícita
entre o indivíduo concreto e a sua essência real, e a religião é explicada
como o resultado de uma alienação, operada pela projeção inconsciente dos
atributos da essência humana em entidades divinas. Ora, tal diferença não
é simplesmente abolida após o esclarecimento proposto por Feuerbach (o
reconhecimento daquela projeção, com a consequente supressão da alie-
nação religiosa correspondente). Ela é constitutiva da condição humana,
possuindo assim um caráter ontológico.8 Isso tem amplas consequências

5
Para a meditação das diferenças notáveis entre os vários tipos e níveis da mística perma-
necem valiosos os Études sur la Psychologie des Mystiques, de Joseph Maréchal (MARÉCHAL,
1938). Reitere-se aqui que, ao tratar do vasto e complexo tema da experiência mística, enfoco
apenas a modalidade da mística do Si-mesmo e, nesta, apenas uma versão que permite a
aproximação com certos fenômenos que se manifestam na experiência psicológica.
6
Por isso em A essência do cristianismo Feuerbach preferia a designação de sua posição pelo
termo antropoteísmo.
7
Não sem razão, Max Stirner ironiza Feuerbach, chamando-o de “ateu piedoso”, por ter
simplesmente mudado o absoluto de lugar, sem eliminar a própria categoria do absoluto.
8
Ao contrário de Freud, portanto, a religião para Feuerbach não é uma ilusão neurótica
de caráter infantil, mas uma alienação ontologicamente fundada. Corrigir a alienação não
significa abolir a religião tout court, mas transformá-la em uma nova forma de relação com a
realidade. Observe-se que o termo “projeção” não é usado por Feuerbach, mas o fenômeno
constitutivo da consciência religiosa corresponde ao que essa noção descreve.

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023 193


para a questão da religião a partir de um enfoque de inspiração feuerbachia-
na. Tomemos um fragmento póstumo de Feuerbach, onde a mesma ideia
central ganha uma formulação algo diferente:
O homem se encontra conscientemente sobre um fundamento inconsciente (...);
ele chama seu a seu corpo, e este lhe é, não obstante, absolutamente estranho;
(...) em sua própria casa é ele estrangeiro; desgostos e prazeres, dores e alegrias
o afetam e, não obstante, ele não é dono nem proprietário; está colocado em
alturas vertiginosas, enquanto que a seus pés se abre um abismo insondável;
não sabe nem de seu começo nem de seu fim (...) Ele é não-ele mesmo [Nicht-
-Selbst] e ele mesmo [Selbst]; o não-eu [Nicht-Selbst] é a base, o fundamento da
religião (...) Ele [o homem consciente, Selbst/mhb] tem em seu poder somente
o resultado, não o princípio nem as premissas. Ele vê, ouve, sente, pensa tão
necessariamente como o sol brilha e a flor floresce. Ele pertence à natureza: é
um produto necessário” (FEUERBACH, 1960, p. 306).

Eis aí o ideologema a que me referi na introdução: trata-se da articulação


entre dois polos do sujeito (Selbst e Nicht-Selbst), que postula uma relação
de alteridade ou diferença entre consciência (atribuída ao Selbst) e fundamento
inconsciente (Nicht-Selbst), e estabelece uma vinculação deste fundamento
ao corpo, que é uma extensão da natureza. Essa diferença é afirmada como
sendo a base da religião: a experiência religiosa, interpretada a partir desse
ideologema, seria a relação de autotranscendência entre Selbst e Nicht-Selbst.
A consciência religiosa ingênua e alienada (inconsciente de seu próprio
fundamento) chamaria o Nicht-Selbst de “Deus”, mas na verdade (segun-
do a redução proposta em Feuerbach) tratar-se-ia apenas de um “abismo
insondável” humano e imanente, sobre o qual o eu consciente, sujeito da
experiência religiosa, estaria posicionado. Então, se a diferença entre o eu
individual e sua essência material corpórea (ou entre Selbst e Nicht-Selbst)
fosse afirmada como sendo estrutural e insuprimível – e ao que tudo indica
Feuerbach assim pensava – e, estaria estabelecida a condição para uma
inexaurível relação entre os dois polos subjetivos, entre o eu consciente e
seu fundamento inconsciente, seu “centro próximo de referência absoluta”,
para falarmos como Gardet e Lacombe. Tal seria o espaço para se pensar
uma forma peculiar de experiência religiosa no interior mesmo de uma
posição ateia (ou “antropoteísta”) de consciência. E, segundo as coordenadas
estruturais desse espaço, abrir-se-ia a possibilidade de uma mística ateia,
por meio de um mergulho sem limites no “abismo insondável” ou nas
próprias profundezas do homem, como assinalava Jean Lacroix, ao termo
do qual, na consumação mística da experiência religiosa ateia, a diferença
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de si a si mesmo, entre o eu e seu fundamento corporal inconsciente, seria


momentaneamente suprimida, e nesse caso verificar-se-ia a experiência
mística do Si-mesmo,9

9
Pela pertença do corpo (Nicht-Selbst) à natureza, com a qual ele está em continuidade,
seria possível pensar também a modalidade da mística do Todo. Mas não desenvolverei
aqui essa possibilidade.

194 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023


Cabe enfatizar que o próprio Feuerbach não desenvolveu nem se interessou
por esta potencialidade religioso-mística implícita em seu ideologema. Em
lugar de considerar alguma forma de experiência mística “antropoteísta”,
ele aponta para a sua nova filosofia e para a política como substitutos da
religião (FEUERBACH, 2002, p. 13-18): a essência humana seria o norte
segundo o qual se orientaria a ação política, visando realizar neste mundo
e na comunidade humana a integralidade do modo humano de ser. O
homem assume a responsabilidade por seu próprio destino, pela solução
de seus problemas, pela realização de seus desígnios. Se ampliarmos o
pano de fundo da política (termo muito comprometido com a exclusivi-
dade da vita activa em sua inserção na exterioridade das situações sociais
e coletivas) para considerarmos o campo das relações intersubjetivas em
geral, encontraremos a temática da relação Eu-Tu, ausente em Marx, que
iria ser lida por Martin Buber em Feuerbach. Esta temática é uma das
contribuições mais valiosas que o filósofo de Landshut faz à problemática
filosófica subsequente, tornando-o um verdadeiro precursor das correntes
personalistas posteriores (CABADA CASTRO, 1975, p. 40-41).

No entanto, em Feuerbach o “tu” interno permaneceu inexplorado em


todas as suas demais virtualidades, entre elas a de uma modalidade de
experiência mística aqui apontada. Jean Lacroix percebia uma inspiração
aristocrática e nietzschiana na mística ateia que ele pressentia emergir no
século XX. Por outro lado, as virtualidades do “Tu” (Nicht-Selbst) interno
feuerbachiano, negligenciadas devido à predominância do engajamento
político, coincidem com outro aspecto do pressentimento de Lacroix:
“poder-se-ia mostrar que uma espécie de percepção pura e imediata do
sensível, uma espécie de comunhão com o dado infrarracional constitui
hoje, no interior do ateísmo, uma verdadeira reação contra suas formas
muito políticas ou muito sociais e podem se desenvolver amanhã em um
verdadeiro misticismo ateu” (LACROIX, 1964, p. 55).

Como quer que seja, é importante assinalar, para além do que Feuerba-
ch efetivamente pensou, que o espaço da relação Eu-Tu é indispensável
para a realização existencial do “conhece-te a ti mesmo”, que não se dá
simplesmente em uma clausura do sujeito abstratamente desligado de
suas experiências no mundo humano. Por isso, a relação religiosa indivi-
dual, psicológica, ateísta e mística na solidão do confronto entre Selbst e
Nicht-Selbst pressupõe todo o conjunto da inserção do sujeito no campo
essencial das relações humanas.

2 Nietzsche

Em uma famosa passagem de Assim Falou Zaratustra, Nietzsche apresenta


o mesmo ideologema que recolhemos em Feuerbach, embora com uma

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023 195


nomenclatura invertida (o que no fragmento póstumo de Feuerbach é
designado como Selbst aparece aqui como Ich/Eu, e o que em Feuerbach
é denominado como Nicht-Selbst é aqui denominado Selbst):
O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma
guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.
Instrumento do teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual
chamas ‘espírito’, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão.
‘Eu’ [Ich] – dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior – no que não queres
acreditar – é o teu corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu.
(...)
Instrumentos e brinquedos, são os sentidos e o espírito; atrás deles acha-se,
ainda, o [Si mesmo]. O [Si mesmo] procura também com os olhos dos sentidos,
escuta também com os ouvidos do espírito.
E sempre o [Si mesmo] escuta e procura: compara, subjuga, conquista, destrói.
Domina e é, também, o dominador do eu.
Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano,
poderoso, um sábio desconhecido – e chama-se o [Si mesmo]. Mora no teu
corpo, é o teu corpo. (NIETZSCHE, 1983, p. 51)10

A coincidência patente entre os elementos do fragmento póstumo de


Feuerbach e da passagem de “Dos desprezadores do corpo” em Nietzsche
leva-nos a dar crédito à afirmação de Étienne Gilson de que há Feuerbach
em Nietzsche (GILSON, 1979, p. 17). Por outro lado, a articulação do ideo-
logema no contexto do pensamento nietzschiano é absolutamente original.
Embora por si só os elementos do ideologema permitissem pensar uma
modalidade de mística do Si-mesmo da mesma forma que fizemos com
Feuerbach (e em conformidade com o pressentimento de Jean Lacroix), a
articulação dessa ideia de uma relação entre eu consciente e Si-mesmo/
corpo (um “sábio desconhecido”, portanto inconsciente ou “subconscien-
te”) a outra noção capital do autor de Assim falou Zaratustra descortina
um panorama que nem remotamente foi considerado pelo autor de A
essência do Cristianismo.

Paul S. Loeb mostra, à luz de uma cuidadosa explicação acerca da coerên-


cia interna da ideia do eterno retorno do mesmo em Nietzsche, como o eu,
que, nos quadros desta ideia, renasce eternamente para repetir exatamente
a mesma experiência vital, pode se comunicar consigo mesmo em ciclos
numericamente distintos dentro da recorrência eterna de sua vida:
ARTIGOS / ARTICLES

Dada a concepção de tempo em Nietzsche, portanto, há relações psicológicas


substanciais entre meus eus numericamente distintos [mas que fazem uma ex-
periência vital absolutamente idêntica, de acordo com a ideia do eterno retorno
do mesmo/mhb]. Além disso, (...) há interessantes relações epistêmicas entre

10
Tradução modificada (o tradutor optou por verter o alemão Selbst – Si-mesmo – por “ser
próprio”). A passagem encontra-se em “Dos desprezadores do corpo”.

196 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023


esses eus. Como a minha vida é para mim um anel fluindo incessantemente
para frente no qual o ponto final volta eternamente para se tornar o ponto de
partida, posso me lembrar de eventos que ainda jazem à frente em meu atual
viver aquela [mesma, idêntica/mhb] vida. Portanto, a fonte de minha certeza
premonitória é minha certeza mnemônica (...). De fato, como minha vida é
eternamente recorrente, sou capaz de imprimir em minha memória mensagens
que estarão enterradas no subconsciente de meu eu mais jovem e que se ma-
nifestarão sob a forma de sonhos, visões, presságios e vozes premonitórias. A
voz que eu escuto é, pois, minha própria voz futura lembrando-me de minha
vida eternamente recorrente. (LOEB, 2010, p. 28)

Como exemplo em Assim falou Zaratustra, Loeb interpreta a visão enigmática


que Zaratustra tem de um pastor adormecido, em cuja boca insinua-se uma
serpente, que morde sua garganta e o sufoca. Então Zaratustra grita-lhe
para morder a cabeça da serpente, cortá-la e cuspi-la fora. Ora, exatamen-
te esta mesma situação acontecerá mais tarde com o próprio Zaratustra.
Loeb então afirma que o pastor na visão é um símbolo do futuro eu de
Zaratustra (LOEB, 2010, p. 158). Mas a própria visão premonitória indica,
de acordo com os pressupostos da interpretação de Loeb, que há um outro
sujeito se comunicando ao próprio Zaratustra por meio da visão mesma:
o próprio eu eternamente recorrente de Zaratustra que, no entanto, para
o Zaratustra que recebe ou sofre a visão naquele momento específico de
sua experiência vital, tem o estatuto de um outro que não deixa de ser ele
próprio (Zaratustra), ou mais simplesmente de um Si-mesmo.11

Eis aí a estrutura fundamental implicada na ideia de eterno retorno do


mesmo, que nos autoriza a interpretar a experiência do Si-mesmo, em sua
escansão nietzschiana, conforme a modalidade da mística da alma estudada
por Gardet e Lacombe. De fato, em sua acurada análise da extraordina-
riamente complexa trama de Assim Falou Zaratustra Loeb mostra convin-
centemente que, ao atingir a perfeição e pleno amadurecimento pessoais,
Zaratustra declara-se finalmente independente de discípulos e herdeiros,
e então mergulha “em solitária comunhão com sua própria alma” (LOEB,
2010, p. 146). Tal seria o ápice místico de toda a experiência de Zaratustra,
no qual a unificação a si mesmo se consuma, e então ocorre a morte de

11
Seria possível objetar que aqui não se trata do Si-mesmo/corpo, tal como apresentado na
passagem de “Dos desprezadores do corpo”, mas do eu (Ich) recorrente de Zaratustra que
detém, em virtude de sua experiência passada completa, o conhecimento que comunica ao eu
(Ich) atual de Zaratustra – no caso, a ideia do eterno retorno do mesmo. Mas de onde esse
eu teria recebido tal ideia? À luz da concepção de Nietzsche de que as ideias e descobertas
filosóficas são formadas por inspiração a partir dos instintos fundamentais do Homem, que
desempenham o papel de gênios ou daimones (NIETZSCHE, 1974, p. 14-16), a resposta é
clara: essa sabedoria instintiva pertence àquele “sábio desconhecido”, o Si-mesmo, que “mora
no teu corpo, é o teu corpo”. Portanto, o eu recorrente de Zaratustra seria o porta-voz do
Si-mesmo, na verdade sendo indistinguível deste, em virtude de já ter se iniciado em sua
sabedoria instintiva. Vale lembrar que Nietzsche interpreta a experiência dos “místicos de
toda a espécie” como proveniente da mesma inspiração instintiva (ibid.).

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023 197


Zaratustra, que é indissoluvelmente o momento de seu renascimento para
um novo ciclo dentro da eterna repetição de sua vida.
Segundo Olivier Lacombe, “o ato de reminiscência (...) pelo qual presente
e passado são unidos, o passado que não é mais e o presente que é, esse
ato assume de repente um valor ontológico. O tempo é superado pela me-
mória que permite ao eu profundo se revelar; o Si-mesmo se experimenta
em sua verdadeira duração supratemporal” (GARDET; LACOMBE, 1981,
p. 37). Lacombe apresenta esta reflexão a partir da interpretação de uma
passagem de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, nela vendo
a mesma estrutura temporal (ou supratemporal) da experiência mística
do Si-mesmo: uma breve “experiência de imortalidade”. Tal percepção
espiritual “se refere ao eu profundo, absoluto, imortal, por oposição ao
eu superficial entregue às ‘vicissitudes... e à brevidade da vida’, a qual
fornece no máximo simples ocasiões às manifestações excepcionais do eu
essencial” (GARDET; LACOMBE, 1981, p. 37).
Com uma pequena reflexão podemos mostrar a inteira convergência da
posição de Olivier Lacombe com a interpretação de Nietzsche proposta
por Paul S. Loeb. Pois dentro da ideia do eterno retorno do mesmo, a
distinção simples, unidirecional e linear entre passado, presente e futuro
queda fortemente relativizada, uma vez que o que foi (passado, em um
ciclo prévio da recorrência eterna da vida) retornará (futuro, no ciclo
atual e em ciclos futuros da mesma recorrência eterna da vida), e assim
a memória pode ser a fonte da certeza premonitória de algo que ainda
jaz no futuro relativo ao presente atual do eu “jovem”, como assinalou
Loeb (LOEB, 2010, p. 28). Em suma: memória (associada ao passado)
torna-se indistinguível de premonição (associada ao futuro). A enigmática
visão de Zaratustra sobre o pastor e a serpente revela-se premonitória a
posteriori no presente da mesma situação vivida pelo próprio Zaratustra
algum tempo após a visão; e no presente da mesma situação ergue-se a
memória da visão passada. A circularidade temporal do eterno retorno do
mesmo faz com que a linha do futuro e a linha do passado sejam uma
única e mesma linha.12 Consequentemente, vale para Nietzsche o mesmo
que Lacombe identifica em Proust e, mais universalmente, na mística
do Si-mesmo (e vice-versa): o “eu profundo” (que aqui designamos por
“Si-mesmo”) se revela no ato de reminiscência (que, como foi dito, em
Nietzsche é igualmente um ato de premonição, dependendo do ponto de
vista em que seja considerado na linha – circular – da experiência vivida).
ARTIGOS / ARTICLES

Assim, creio ser legítimo afirmar que o pensamento de Nietzsche oferece


um modelo para a interpretação da experiência do Si-mesmo em pers-
pectiva moderna, e o estudo de mística comparada de Gardet e Lacombe
permite-nos apontar no modelo nietzschiano a mesma estrutura presente

12
Veja-se o capítulo 3 (“The dwarf and the gateway”) em LOEB, 2010.

198 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023


na modalidade da mística da alma. E uma vez que o Si-mesmo é o pró-
prio corpo, esse “sábio desconhecido” que age por meio de seus instintos,
dominando e fazendo o eu, também a inspiração nietzschiana na mística
ateísta vislumbrada por Jean Lacroix fica justificada.

3 Jung

A memória, como vimos, possui uma potencialidade espiritual que se efe-


tiva na mística do Si-mesmo. Na psicologia analítica de Carl Gustav Jung
essa memória será referida à noção de inconsciente coletivo, e a concepção
junguiana de Si-mesmo designará tanto o homólogo do “centro próximo
de referência absoluta” para o eu consciente na experiência psicológica
do processo de individuação, como a totalidade psíquica consciente-
-inconsciente. Jung estabelecerá a fenomenologia típica dos “símbolos do
Si-mesmo”, identificáveis no simbolismo religioso, nos mitos, bem como em
certas produções psicológicas de indivíduos modernos.13 O Si-mesmo, na
concepção junguiana, na medida em que representa a totalidade humana
(Feuerbach diria: a essência do Homem), põe em movimento o processo
de individuação (o movimento de “tornar-se o que se é”), constituindo-se
em sua meta ou finalidade:
Qualquer que seja per se o significado da totalidade humana, do Si-mesmo,
empiricamente este Si-mesmo é uma imagem da meta da vida, produzida
espontaneamente pelo inconsciente, independentemente dos desejos e temo-
res da consciência. Representa a meta do homem total, a realização de sua
totalidade e individualidade com ou sem o consentimento de sua vontade.
(JUNG, 1969, § 745)

Na experiência psicológica específica observada e descrita por Jung, o Si-


-mesmo frequentemente aparece em sua alteridade relativa ao eu consciente,
e pode tanto ameaçá-lo, abalando sua sensação de segurança narcísica,
quanto arrebatá-lo para aquela experiência mística de um momento de
eternidade que, como vimos, Olivier Lacombe atribui à presença do “eu
profundo”. Daí o entusiasmo com que Jung acolheu e assimilou a descrição
da experiência do sagrado por Rudolf Otto como sendo a experiência do
numinoso, que exerce um duplo impacto sobre o sujeito: tanto pavoroso
(tremendum) quanto fascinante (fascinosum). A descrição de Otto ajustava-

13
É sumamente interessante a interpretação psicológica que Jung propõe para o fenômeno
contemporâneo dos discos voadores, nele vendo uma atividade do espírito moderno compen-
satória à sua fragmentação, à sua totalidade perdida em função de seu desenraizamento
histórico e estrutural, derivado da ruptura radical com os laços da tradição. Os discos vo-
adores, entendidos apenas como imagens psíquicas coletivas, seriam justamente símbolos
do Si-mesmo, da totalidade que se opõe compensatoriamente à fragmentação esquizoide de
nosso mundo. (JUNG, 1970a)

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023 199


-se perfeitamente à observação psicoterapêutica do Si-mesmo por Jung, e
a partir de então ele passa a se referir à experiência do Si-mesmo como
tendo uma tonalidade afetiva numinosa.

Baseado nas formas típicas de manifestação do Si-mesmo por relação ao


eu consciente, Jung não hesita em considerar o arquétipo da totalidade
humana como sendo igualmente uma “imagem psicológica de Deus”, e
justifica-se assim:
[‘Deus’] é o nome pelo qual designo todas as coisas que atravessam de ma-
neira violenta e temerária o meu caminho voluntariamente traçado, a todas
as coisas que perturbam meus pontos de vista, planos e intenções subjetivos
e que mudam o curso de minha vida para melhor ou para pior. De acordo
com a tradição, chamo o poder do destino neste aspecto positivo ou negativo,
visto que sua origem está além de meu controle, ‘Deus’, um ‘Deus pessoal’,
pois meu destino significa na verdade eu mesmo, particularmente quando ele
se aproxima de mim na forma da consciência moral como uma vox Dei com a
qual posso até mesmo conversar e discutir. [Carta de 05/12/1959, a M. Leonard]
(JUNG, 1976a, p. 525)14

Jung insiste no caráter experiencial, psicologicamente constatável do Si-


-mesmo, e assinala sua ambiguidade irredutível empiricamente:
‘Si-mesmo’ é algo que podemos verificar psicologicamente. Nós experimentamos
‘símbolos do Si-mesmo’, que não se deixam distinguir dos ‘símbolos de Deus’.
Não posso provar que o Si-mesmo e Deus sejam idênticos, embora na prática
pareçam idênticos. Em última análise, a individuação é um processo religioso
que exige uma atitude religiosa correspondente—a vontade do eu submete-se
à vontade de Deus. Para evitar mal-entendidos desnecessários, digo ‘Si-mesmo’
em vez de Deus. Empiricamente também é mais correto. [Carta de 15/06/1955,
a Hélène Kiener] (JUNG, 1976a, p. 265)

Não abordarei aqui os problemas espinhosos levantados para a coerência


teórica e epistêmica da psicologia analítica em virtude da problemática
noção do Si-mesmo como totalidade humana e da indistinção empírica
entre símbolos do Si-mesmo e símbolos de Deus.15 Atendo-me a meu
propósito de pensar uma base psicológica para a mística do Si-mesmo
em chave moderna, vale dizer, antropológica, retenho apenas o significa-
do de Si-mesmo como totalidade humana. Este significado está presente
em uma passagem de Jung na qual se encontra o mesmo ideologema
ARTIGOS / ARTICLES

14
Lembre-se de passagem que, na antropologia teológica, que pensa o ser humano enquan-
to imago Dei, há uma correspondência (devidamente pensada respeitando a categoria da
transcendência divina) entre o ser humano e Deus. Na cristologia dogmática este problema
é referido ao tema da “comunicação dos idiomas”, e é por esta via que talvez pudesse ser
encaminhada a reflexão ulterior a respeito das relações entre mística do Si-mesmo e mística
da graça sobrenatural, segundo uma perspectiva cristã.
15
Remeto o leitor ao capítulo “Sobre Deus, Homem e mal no pensamento de C.G. Jung”,
in BARRETO, 2012, p. 153-190.

200 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023


anteriormente desentranhado em Feuerbach e Nietzsche, ainda que com
uma dicção própria:
No campo da medicina, as fantasias são coisas reais que o psicoterapeuta tem
que levar em conta muito seriamente de fato. Em última análise, o corpo hu-
mano também é constituído da matéria do mundo e é nela que as fantasias se
tornam manifestas; de fato, sem ela as fantasias não poderiam ser experiencia-
das. Sem essa matéria, elas seriam como uma espécie de padrão cristalino em
uma solução na qual o processo de cristalização ainda não tivesse começado.
Os símbolos do Si-mesmo emergem na profundeza do corpo e expressam a sua
materialidade tanto quanto a estrutura da consciência discriminadora. O símbolo
é, portanto, um corpo vivo, corpus et anima (...) A singularidade da psique nunca
pode concretizar-se integralmente, e só pode ser concebida aproximativamente,
embora ela continue sendo a base absoluta de toda consciência. As ‘camadas’
mais profundas da psique perdem sua singularidade individual na medida em
que retrocedem cada vez mais na obscuridade. Quanto mais ‘baixas’, isto é, com
a aproximação dos sistemas funcionais autônomos, tornam-se gradativamente
mais coletivas, até que se universalizam e se extinguem na materialidade do
corpo, isto é, nas substâncias químicas. O carbono do corpo é simplesmente
carbono. Consequentemente, ‘no fundo’ a psique é simplesmente ‘mundo’. (...)
no símbolo o próprio mundo está falando. (JUNG, 1968, §§ 290-291)

Nesta passagem fica mais clara a unidade do Si-mesmo, que abrange


corpo e consciência discriminadora. É esta unidade que garante a pos-
sibilidade de uma experiência mística de unificação do eu consciente
com o Si-mesmo. O enraizamento corporal do Si-mesmo, já assinalado
em Feuerbach e Nietzsche, abre-se em Jung a uma continuidade entre o
psíquico e o material, base de sua doutrina da sincronicidade que, não
sem bons fundamentos, é interpretada como “experiência espiritual” por
Roderick Main (MAIN, 2007). De passagem, observe-se que o ideologema
na versão de Jung, assim como no fragmento póstumo de Feuerbach,
permite corroborar a afirmação de Gardet e Lacombe a respeito de que
“Mística do Si-mesmo e mística do Todo se apresentam como a sístole
e a diástole da mística de imanência da qual elas constituem variações,
desde que – bem entendido – a experiência em causa seja suficientemente
radical e despojada para merecer o epíteto de mística, e que não se trate
apenas de algum ‘sentimento’ de coloração mais ou menos panteísta”
(GARDET; LACOMBE, 1981, p. 31).
Jung sabia que a individuação, que, como citado anteriormente, ele considera
um processo religioso em que a vontade do eu submete-se à vontade de
“Deus” (o Si-mesmo), implicava uma referência ao Absoluto, ou, para usar
a expressão de Gardet e Lacombe, que o Si-mesmo era um centro próximo
de referência absoluta para a consciência. Pensando na dimensão ética da
individuação, Jung afirma: “Quando sua própria consciência colide com [a
religião ‘oficial’ e a moralidade cívica], têm início suas decisões éticas mais
pessoais, com a plena consciência de sua liberdade criativa em observar o
código moral ou não” (JUNG, 1970b, § 870). A decisão ética de seguir a

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023 201


própria consciência (vox dei) significa justamente, para Jung, a livre sub-
missão da vontade do eu à “vontade de Deus” (a direção que o Si-mesmo
sinaliza para a individuação na experiência simbólica, o chamado ou vocação
a “tornar-se o que se é”). Isso significa que a individuação é simultânea e
indissoluvelmente uma experiência ética e religiosa.16 O “tormento da deci-
são ética”, que Jung afirma ser “simbolicamente representado pela luta de
Jacó com o anjo” (JUNG, 1970b, § 869), descortina a referência ao absoluto:
Aí é onde começa sua ética mais pessoal: no confronto sério com o Absoluto,
no tomar um caminho condenado pela moralidade vigente e pelos guardiões
da lei. E apesar disso pode-se sentir que nunca se foi mais fiel a sua natureza
e vocação mais íntimas, e portanto nunca se esteve mais próximo ao Absoluto,
porque somente a pessoa e o Onisciente viram a situação concreta pelo lado
de dentro, por assim dizer, ao passo que os juízes e os condenadores a veem
somente pelo lado de fora. (JUNG, 1970b, § 869)

A referência da interioridade do Si-mesmo ao absoluto, de acordo com a


perspectiva que apresentei na introdução, qualifica certas formas ou mo-
mentos da experiência da individuação, tal como a concebe Jung (confronto
com o Si-mesmo), como uma experiência que pode possuir valência religiosa
e mística. Nesses momentos marcantes e excepcionais do confronto com
o Si-mesmo, inscritos no processo de individuação, não se trata de um
mero acontecer psíquico, no qual o eu consciente pode estar inadvertida-
mente—isto é, inconscientemente—enredado em uma situação arquetípica
comum, sem, portanto, ser afetado pelo sentimento numinoso característico
da experiência do sagrado. A experiência desse sentimento pressupõe a
percepção consciente de algo estranho, no sentido do alemão Unheimlich,
a presença de uma alteridade que é o próprio numen—justamente aquilo
que Jung remete à categoria psicológica do Si-mesmo. Trata-se então de
um encontro, no verdadeiro sentido da palavra.17

No entanto, pode causar surpresa o fato de que, a despeito de atribuir


ao processo de individuação uma valência religiosa, e insistir tanto sobre
o caráter numinoso da assim chamada experiência imediata, Jung não
privilegie de modo algum os momentos místicos stricto sensu, psicologi-
camente falando. Opondo-se à tendência de muitos de seus “discípulos
e herdeiros” de buscar uma espécie de atalho para a experiência do Si-
-mesmo, sob a forma de uma espécie de fuga mística do mundo, Jung
insiste no imperativo da inserção mundana do processo de individuação,
ao escrever a um discípulo indiano:
ARTIGOS / ARTICLES

O seu ponto de vista parece coincidir com aquele dos nossos místicos medie-
vais, que tentaram dissolver-se em Deus. Vocês todos parecem interessados

16
Para a exposição da unidade entre a dimensão ética e a dimensão religiosa no pensamento
de Jung, ver BARRETO, 2018, p. 21-40.
17
Ver adiante o exemplo ilustrativo que apresento.

202 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023


em como voltar para o Si-mesmo, em vez de procurar o que o Si-mesmo quer
que façam no mundo, onde – pelo menos por enquanto – estamos colocados,
presumivelmente para determinado fim. O universo não parece existir com a
finalidade única de a pessoa negá-lo ou dele fugir. Ninguém pode estar mais
convencido da importância do Si-mesmo do que eu. Mas, como um jovem
não fica na casa de seu pai, mas vai para o mundo, assim eu não olho para
trás para o Si-mesmo, mas o recolho a partir de múltiplas experiências e o
reconstituo novamente. O que deixei para trás, aparentemente perdido, eu o
encontro em tudo o que me acontece no caminho e o recolho, reconstituindo-
-o de certo modo.18 (...) Embora o Si-mesmo seja minha origem, é também a
meta de minha busca. Quando ele era minha origem, eu não conhecia a mim
mesmo, e quando eu de fato aprendi sobre mim mesmo, eu não conhecia o
Si-mesmo. Tenho que descobri-lo em minhas ações, onde inicialmente ele apa-
rece sob estranhas máscaras. Esta é uma das razões pelas quais devo estudar
o simbolismo, caso contrário arrisco-me a não reconhecer meus próprios pais
quando os encontrar de novo após os muitos anos de minha ausência. [Carta
de 22/11/1954, ao prof. Arvind U. Vasavada] (JUNG, 1976, p. 195-196)19
Da mesma forma, e com mais ênfase ainda, Jung responde a um corres-
pondente beneditino, que lhe escrevera a propósito da meta mística unitiva
supostamente implicada como finalidade do processo de individuação:
Por mais que eu possa segui-lo no processo de ‘tornar-se inteiro e santo’, ou
individuação, não posso subscrever suas afirmações sobre o ‘eu em completa
posse de si mesmo’ e o amor universal que tudo reveste, embora elas aproxi-
mem o senhor perigosamente do ideal do Yoga: nirdvandva (livre dos opostos).
Sei que esses momentos de liberação cintilam no decurso do processo, mas eu
os evito, porque sempre sinto em tal momento que me livrei do fardo de ser
humano, e que ele cairá sobre mim com peso redobrado. [Carta de 28/03/1955,
ao padre Lucas Menz] (JUNG, 1976a, p. 238)

E, tomando categoricamente distância da aspiração de Nietzsche pelo


Übermensch (que em perspectiva junguiana é interpretado como homólogo

18
Sobre o “tornar-se o que se é”, em perspectiva nietzschiana, Oswaldo Giacoia Júnior afirma
que ele jamais se plenifica, pois o Si-mesmo “só pode ser recuperado parcialmente, como
peças—e de maneira oblíqua, necessariamente desfigurada—em etapas privilegiadas do
caminhar” (GIACOIA JR, 2012, p. 264-265). Em perspectiva junguiana, a “maneira oblíqua,
necessariamente desfigurada” com que se recuperam as “peças” do Si-mesmo significa que
essa recuperação é necessariamente mediada pelos símbolos. O “tornar-se o que se é” é, pois,
uma experiência simbólica.
19
“Originalmente todos nós nascemos de um mundo de totalidade, e nos primeiros anos
de vida ainda estamos completamente contidos nele. Ali temos todo o conhecimento sem o
saber. Mais tarde nós o perdemos, e chamamos progresso quando o relembramos novamente”
[Carta de 22/7/1939, a M.R. Braband-Isaac] (JUNG, 1973, p. 275). Sublinhe-se aqui, mais uma
vez, o caráter fundamental do ato de reminiscência, que se diferencia de uma recordação
ordinária tanto pela intensidade quanto pela qualidade do que é rememorado, indicando a
presença do “eu profundo”. Jung diria que essa qualidade da reminiscência aponta para o
caráter arquetípico da experiência, que é então qualificada como religiosa, uma experiência
do Si-mesmo “em sua verdadeira duração supratemporal”, segundo a expressão de Olivier
Lacombe, “experiência imediata” segundo Jung, o que permite inscrevê-la na modalidade
da mística do Si-mesmo.

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023 203


ao Si-mesmo), Jung afirma: “Nós somos sempre humanos, e não deverí-
amos esquecer nunca que carregamos todo o fardo de sermos somente
humanos” (JUNG, 1976b § 169). Em relação à meta da individuação, Jung
escreve a um correspondente: “Em última instância nós todos ficamos
presos em algum lugar, pois somos todos mortais e permanecemos sendo
apenas uma parte do que somos enquanto totalidade. A totalidade que
podemos alcançar é muito relativa” [Carta de 11/05/1956, a Rudolf Jung]
(JUNG, 1976, p. 297).

Além disso, e desfazendo um equívoco muito comum acerca de sua


concepção do processo de individuação, Jung dá ênfase à necessidade do
contexto intersubjetivo, da relação humana Eu-Tu como condição necessária
para a individuação:
O ser humano que não se liga a outro não tem totalidade, pois só pode alcan-
çar a totalidade através da alma, e a alma não pode existir sem o seu outro
lado, que é sempre encontrado em um ‘Tu’. A totalidade é uma combinação
de Eu e Tu, e estes mostram ser partes de uma unidade transcendente cuja
natureza só pode ser captada simbolicamente (...) Não se trata evidentemente
de síntese ou identificação de dois indivíduos, mas da união consciente do eu
com tudo aquilo que foi projetado no ‘Tu’. Portanto, a totalidade é o produto
de um processo intrapsíquico, que depende essencialmente da relação de um
indivíduo com um outro. Estar relacionado abre o caminho para a individuação
e a torna possível. (JUNG, 1966, § 454 e nota 16)

Na mesma linha, Jung reforça a dupla condição da individuação, e aponta


para os perigos correspondentes:
A individuação tem dois aspectos principais: em primeiro lugar, é um proces-
so interior e subjetivo de integração, e em segundo lugar é um processo de
relação objetiva igualmente indispensável. Um não pode existir sem o outro,
muito embora seja ora um, ora o outro desses aspectos que prevaleça. Esse
duplo aspecto possui dois perigos correspondentes. O primeiro é o perigo de o
paciente usar as oportunidades de desenvolvimento espiritual que emergem da
análise do inconsciente como um pretexto para se evadir das responsabilidades
humanas mais profundas, e para afetar uma ‘espiritualidade’ que não resiste à
crítica moral; o segundo é o perigo de que tendências atávicas possam ganhar
ascendência e rebaixar a relação a um nível primitivo. Entre esta Cila e aquela
Caribdis há uma passagem estreita, e tanto a mística cristã medieval quanto a
alquimia muito contribuíram para a sua descoberta. (JUNG, 1966, § 448)

Pode-se ver, portanto, como a individuação, entendida como “tornar-se


ARTIGOS / ARTICLES

o que se é”, como realização pessoal da totalidade humana, aquela “uni-


dade transcendente cuja natureza só pode ser captada simbolicamente”
(Si-mesmo), é consistentemente vinculada por Jung à exigência de inser-
ção do sujeito no campo essencial das relações humanas, e em especial
da relação Eu-Tu, em consonância com o que assinalei ao desenvolver a
compreensão da experiência religiosa a partir de Feuerbach. Também em
Nietzsche o processo existencial de “tornar-se o que se é”, cadenciado por

204 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023


experiências pessoais marcantes e indeléveis, não se realiza na clausura
solipsística do Eu, pressupondo antes o outro ou os outros que compõem
necessariamente o espaço da existência comum e da comunicação da própria
experiência (GIACOIA JR, 2013, p. 271). Por outro lado, diferenciando-se da
fúria com que o leão nietzschiano destrói os valores tradicionais, Jung diz
que a ruptura dos laços com a comunidade e suas convicções e costumes
transmitidos pela tradição priva a consciência de suas raízes instintivas,
já que tais convicções e costumes “estão profundamente arraigados nos
instintos” (JUNG, 1945, § 216). (Lembremos que “instintos” remetem em
Jung a “inconsciente coletivo”.) A perda de raízes, por seu turno, “provoca
uma hybris na consciência, que se manifesta por uma exagerada autoestima,
ou por um complexo de inferioridade” (ibid.).

De toda forma, a mística do Si-mesmo, tomada no nível em que apresenta


caráter individual e psicológico, guarda profundas relações com a comu-
nidade humana, não devendo ser entendida de modo reducionista como
a realização isolada de um indivíduo excepcional. Novamente Jung: “o
processo natural da individuação produz uma consciência da comunida-
de humana, justamente porque nos faz perceber o inconsciente, que une
todos os homens e é comum a toda a humanidade. A individuação é o
‘tornar-se um’ consigo mesmo, e ao mesmo tempo com a humanidade,
já que somos uma parte da humanidade” (JUNG, 1945, § 227). Não por
acaso, segundo a avaliação de Jung, a mística cristã medieval e a alquimia
(que é uma disciplina espiritual, e não meramente uma química pré-
-científica) perceberam os perigos da vivência espiritual mística. Situando
a psicologia analítica na esteira dessa tradição espiritual ocidental, Jung
lerá nos testemunhos tradicionais a experiência psicológica do Si-mesmo
no processo de individuação, e, inversamente, reconhecerá no processo
de individuação em indivíduos modernos a dimensão religiosa e mística
de que falam os testemunhos tradicionais, oferecendo então uma versão
psicológica e moderna da mística do Si-mesmo.

4 Um exemplo concreto ilustrativo

Para ilustrar o exposto, é apresentada agora brevemente uma vinheta ex-


traída de minha prática clínica.20 Um jovem de 22 anos, num quadro de
depressão profunda e angústia igualmente exponencial, afetado também
por sintomas neuróticos comuns, procura-me para fazer um tratamento
analítico. Não tem uma vida religiosa, nem temas religiosos lhe inte-
ressam—sua formação religiosa limita-se àquele tão comum e mal feito
catecismo de infância, logo abandonado ou soterrado pelas experiências

20
O paciente autorizou-me a usar o material que se segue.

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023 205


e saberes próprios da posição moderna de consciência, que nada têm a
ver com a fé religiosa. Sua posição na vida poderia ser descrita como a
de um ateísmo prático. Em meio ao processo analítico, para sua surpresa
e minha também, ele tem um sonho estranho e desconcertante:
Estou em minha casa, sozinho. De repente, sinto uma presença invisível no
ambiente: trata-se da fonte da vida de todo o universo. A princípio sou tomado
de um pavor indescritível, como se eu fosse enlouquecer ou ser destruído por
aquela presença; depois, aos poucos o pavor se converte em fascínio.21 Sentindo
todo o cansaço com minha vida fracassada e pequena, anseio ardentemente
por me dissolver naquela fonte de toda vida. Então ouço uma voz, com que
essa presença invisível se dirige a mim, e sei que é a voz do Cristo, que me
pergunta em tom manso e amoroso: ‘Será que você não entende que tem de
ser assim?’ Então compreendo, num átimo de iluminação, que eu deveria
preservar minha vida, permanecer neste mundo, mesmo em meio às dores,
sofrimentos e fracassos, pois aqui era o lugar que aquela fonte de toda vida
me assinalava como o espaço para viver a minha vida.

A situação deste jovem gravemente deprimido assemelha-se àquela vivida


por São Silvano do Monte Athos: este monge sofre o tormento angustia-
do de perceber a distância abissal entre o ideal de uma vida perfeita na
santidade e a situação frustrante em que vive efetivamente no mundo, a
distância entre o infinito do desejo e a mediocridade de sua realização,
que faz o mundo se lhe afigurar como o próprio inferno. É então que
Cristo lhe aparece e lhe diz: “Permaneça no inferno, mas não desespere.”
(DUQUOC, 1994, p. 133 [651]) A simples presença mística dessa palavra
sinaliza um sentido que recobre o próprio tormento do santo. O inferno
não se desfaz, mas a partir desse instante místico o desespero pode recuar.
A diferença fundamental entre o jovem e o monge santo é que o primei-
ro não tem uma vida religiosa. Por isso, o teor de seu sonho místico é
inesperado e surpreendente.22 Além disso, no caso do jovem a palavra
mística não assumiu a forma do imperativo, uma orientação que é uma
ordem, mas sim a forma de uma pergunta endereçada à compreensão, que
por isso mesmo respeita radicalmente a liberdade do rapaz deprimido e
angustiado.23

21
O tremendum et fascinans que Rudolf Otto atribui à experiência do sagrado/numinoso.
22
A propósito da interpretação místico-religiosa de sonhos e outros fenômenos psicológicos,
ver KELSEY (1996), WHITE (1953) e MESEGUER (1956).
ARTIGOS / ARTICLES

23
Jung diz que não devemos sucumbir nem ao bem nem ao mal: “Quando se toca no mal,
corre-se o risco de se sucumbir a ele. Ora, o homem, de um modo geral, não deve sucum-
bir nem mesmo ao bem. Um pretenso bem ao qual se sucumbe perde seu caráter moral,
não porque tenha se tornado um mal em si, mas porque determina consequências más,
simplesmente porque se sucumbiu a ele. Qualquer que seja a forma que revele o excesso
a que nos entregamos, como o álcool, a morfina ou o idealismo, é nociva. Nunca devemos
sucumbir à sedução daquilo que é prejudicial. (...) Nada pode poupar-nos do tormento da
decisão ética.” In JAFFÉ, 1982, p. 284-285.

206 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023


A experiência mística do jovem atormentado poderia legitimamente receber
uma interpretação de acordo com os pressupostos da mística da graça so-
brenatural. Apoiando-se no fato de a voz ouvida ser reconhecida como a
voz de Cristo, um teólogo poderia evocar a conhecida passagem de Paulo
na epístola aos Gálatas (Gl 2, 20: “Eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo que
vive em mim”), bem como salientar a percepção de que aquela presença
era a fonte da vida de todo o universo, e assim reconhecer na experiência
do rapaz uma genuína manifestação do Deus cristão.

Já uma interpretação a partir dos pressupostos de Feuerbach divergiria


apenas ao reduzir a presença invisível à manifestação da própria essência
humana, que se comunica ao eu consciente deprimido com os resquícios
de sua alienação religiosa infantil; quanto ao detalhe da presença invisível
ser a fonte da vida de todo o universo, ele poderia ser contemplado pela
mudança de foco do segundo momento do pensamento de Feuerbach,
em que a noção de essência humana passa a ser subsumida na noção de
natureza (tal como no fragmento póstumo apresentado anteriormente),
ultrapassando-se assim o refúgio subjetivista do momento estritamente
antropológico, e assim teríamos uma posição hermenêutica substancialmente
análoga àquela implicada na versão do ideologema em Jung.

A interpretação conforme a matriz nietzschiana veria no sonho místico a


intervenção do Si-mesmo que “domina e é também o dominador do eu”,
o eu se manifestando aqui como o sonhador no momento em que sonha, e
este eu nada mais seria do que uma recorrência mais jovem daquele mesmo
Selbst, ainda em processo de atingir a plena consciência de sua relação com
a vida. Usando de um estratagema inteligente, o Si-mesmo fala a si próprio
como eu onírico com a voz de Cristo, o que poderia significar, em uma
perspectiva nietzschiana, que o jovem eu ainda não está maduro para se
defrontar com todas as consequências e responsabilidades existenciais da
“morte de Deus” e do “mais abissal dentre os pensamentos”, que de início
abalou até mesmo o próprio Zaratustra/Nietzsche—a ideia do eterno retorno
do mesmo. E, note-se, a intervenção da voz no sonho místico promove a
afirmação plena da vida, que inclui as dores e sofrimentos que afligem o
jovem sonhador, opondo-se à “morte” prematura e ansiada da dissolução
na fonte da vida: ainda não se cumpriram neste ciclo da recorrência da
vida no sonhador as condições para a solitária e plena comunhão mística
com a própria alma. O Si-mesmo opõe-se ao niilismo suicida, guiado pelo
niilismo extático do eterno retorno do mesmo (LOEB, 2010, p. 165).

E um enfoque junguiano limitar-se-ia a considerar o impacto numinoso-


-terapêutico da experiência mística do Si-mesmo, deixando ao curso do
processo de individuação no rapaz a definição acerca dos rumos que sua
experiência religiosa poderá tomar: seria um chamado à reconstrução de
uma posição cristã a partir dos escombros de uma fé perdida, uma resti-
tuição do vínculo interrompido ou mal feito com a tradição? Seria apenas

Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023 207


uma momentânea recordação de uma posição passada (como acontece
com Fausto, no instante em que vai cometer suicídio), destinada a ser
abandonada em definitivo posteriormente? São questões que somente a
própria vida poderá responder ao sonhador.

Conclusão

Poderíamos dizer, com Olivier Lacombe, que a experiência mística aqui en-
focada significa, em última análise, “uma experiência suprassensível centrada
sobre o existir do Si-mesmo, em seu despojamento, não de uma intuição
metafísica contemplando as riquezas inteligíveis da essência da alma, nem
de uma investigação curiosa sobre os fenômenos da intimidade psicológica”,
uma “enstase do ato de conhecer no ato de existir” (GARDET; LACOMBE,
1981, p. 161). É importante frisar que uma experiência deste tipo não é o
resultado de uma técnica qualquer, mas brota de uma espontaneidade que
não é passível de ser submetida a controle. Tal espontaneidade adensa-se
em instantes excepcionais, em que a sensação habitual de um fluxo contínuo
horizontal do tempo sucessivo é subitamente atravessada pela verticalidade
própria que Gaston Bachelard atribuía ao instante poético (BACHELARD,
1986, p. 183-189), e que podemos estender à totalidade “supratemporal”
da experiência mística (lembrando que o místico não permanece em êxtase
indefinidamente: a experiência ocorre dentro do tempo).

A questão acerca de um aprofundamento ulterior da unidade ontoló-


gica experimentada na mística do Si-mesmo não pode ser tratada aqui.
Ela deságua, em última instância, no espinhoso problema do possível
ultrapassamento da dimensão da imanência na direção de um plano de
transcendência que fosse o fundamento último daquela dimensão. Tal
aprofundamento está fora de questão em Feuerbach e Nietzsche. Em
Jung, a temerária postulação metafísica do “arquétipo em si”, noumenon
irrepresentável e transcendente, distinto da ideia arquetípica, deixa intac-
ta, segundo ele, a “transcendência da premissa teológica” (JUNG, 1976a,
p. 23 [Carta de 30/08/1951, ao dr. H]), mas a sobriedade da sua cautela
cética consegue prevalecer e proibir a tematização de tal transcendência
dentro do espaço epistemológico próprio da psicologia. Assim, em última
análise a versão psicológica da mística da alma só pode oferecer o fato
incontestável da vivência psíquica do Si-mesmo, com todo o seu possível
ARTIGOS / ARTICLES

e convincente impacto “numinoso”. A crença suplementar a respeito do


sentido ou referente último dessa vivência não pode ser garantida indubi-
tavelmente por nenhum dos três contextos de pensamento trabalhados em
minha exposição. Nos três casos, temos uma decisão teórica que instrui
a respectiva interpretação da experiência, com consequências existenciais
diretas, e não uma demonstração da necessidade dos respectivos pressu-
postos. Em Feuerbach, o reducionismo implicado na tese de que Deus nada

208 Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 55, n. 1, p. 189-211, Jan./Abr. 2023


mais é do que a projeção da essência humana representa uma flagrante
transgressão ao interdito metafísico que, por outro lado, ele mesmo subs-
creve; em Nietzsche, a ideia do eterno retorno do mesmo, a despeito de
sua coerência interna, permanece sendo uma hipótese hermenêutica (ou
“perspectiva”) oferecida a seus “discípulos e herdeiros”: é perfeitamente
possível recusá-la sem contradição, e assumir outra perspectiva acerca da
experiência do Si-mesmo e de sua respectiva interpretação; e em Jung, o
ceticismo epistêmico previne o ônus de ter de assumir uma tese que não
pode ser garantida pela simples vivência psicológica—donde a falácia ou, no
melhor dos casos, o mal-entendido implicado na famosa resposta de Jung
a John Freeman, quando indagado sobre se acreditava em Deus: “I don’t
need to believe. I know.” Como demonstrei em outro lugar (BARRETO,
2012, p. 131-151), o “conhecer”/”saber” na resposta de Jung reduz-se à
vivência ou experiência imediata dos símbolos psicológicos do Si-mesmo,
experiência que não é nem imediata, rigorosamente falando, nem suficiente
para estabelecer a existência de Deus como referente real do símbolo do
Si-mesmo, vale dizer: da imagem psicológica de Deus.

Portanto, as abordagens dos três pensadores aqui examinados, quando


aplicadas para a compreensão da experiência mística, só podem legiti-
mamente se restringir ao nível das místicas da imanência, em especial à
mística do Si-mesmo.

O ideologema que recolhi nos escritos de Feuerbach, Nietzsche e Jung per-


mite, por um lado, pensar teoricamente o espaço subjetivo segundo uma
forma condizente com as exigências constitutivas da mentalidade moderna
(ou do Zeitgeist novecentista), e, por outro, iluminar uma prática em que o
conhecimento de si mesmo se revela como uma forma de espiritualidade,
que inclui momentos excepcionais pelos quais a experiência contemporâ-
nea do “conhece-te a ti mesmo” pode ser descrita como análoga às outras
experiências que um estudo de mística comparada (subtítulo do livro de
Gardet e Lacombe sobre a experiência do Si-mesmo) refere à modalidade
da mística da alma ou do Si-mesmo.

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Artigo submetido em 08.12.2022 e aprovado em 20.03.2023.

Marco Heleno Barreto é doutor em filosofia pela UFMG (2006) com pós-doutorado em
teologia pela FAJE (2011). Participa do Grupo de Pesquisa Rephil (FAJE) e do Grupo GEDII
(Gabinete de Estudos da Informação e do Imaginário, UFMG). Orcid.org/0000-0003-1487-2486
E-mail: [email protected]
Endereço: Av. Afonso Pena, 4273 / sala 403 — Serra
30130-008 Belo Horizonte – MG

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Meia-Idade, Individuação e Organizações

M EIA -I DADE , I NDIVIDUAÇÃO E


O RGANIZAÇÕES 1
Fernando C. Prestes Motta (in memorian)*
Ana Paula Paes de Paula**

R ESUMO

O objetivo deste artigo é analisar como a crise de meia-idade afeta os indivíduos e as


organizações. Para realizar esta análise, partimos da interpretação realizada por
Carl Gustav Jung sobre a meia-idade e o processo de individuação. Neste sentido,
abordamos os principais conceitos junguianos associados ao fenômeno, enfatizando
os arquétipos sombra, anima, animus e self. Em seguida, utilizamos estes conceitos e
arquétipos para avaliar como os dilemas da crise de meia-idade e o conflito entre as
dimensões masculinas e femininas dos indivíduos afetam a dinâmica organizacional.

ABSTRACT

T his article tries to analyze the effect of middle age crisis in the individuals and the
organizations. In this direction, we based on interpretation of Carl Gustav Jung
about the middle age and the individuation process. In this sense, we analyze the
Jung´s concepts related to phenomenon emphasizes the shadow, anima, animus
and self archetypes. After, we utilize this concepts and archetypes to evaluate as the middle
age crisis dilemmas and the conflict between masculine and feminine dimensions of individuals
affects the organizational dynamics.

* Prof. EAESP/FGV
** Profa. UFMG
1
Ficam registrados nossos agradecimentos à Elaine Maria Castro de Paula, psicóloga junguiana, que
realizou uma crítica do artigo contribuindo para o seu desenvolvimento.

o & s - v.12 - n.34 - Julho/Setembro - 2005 17


Fernando C. Prestes Motta (in memorian) &
Ana Paula Paes de Paula

INTRODUÇÃO
De vossa paciência, possuireis vossas almas

E
Lucas 21,19

xecutivos e executivas costumam atingir o ápice de suas carreiras na idade


madura. Depois de anos de trabalho e sacrifícios pessoais, afinal se alcança
o status e a estabilidade financeira almejados. No entanto, a recompensadora
sensação de “ter chegado lá” nem sempre é duradoura e, em geral, é acom-
panhada de um intenso questionamento das próprias escolhas e mesmo do sen-
tido da vida, que é típico da crise de meia-idade. Por outro lado, nos dias de hoje,
o ambiente competitivo e instável alimenta dúvidas em relação ao conforto desta
posição, contribuindo para intensificar ainda mais os conflitos internos.
Assim, a despeito da consolidação de sua posição profissional, os homens
tendem a buscar mais desafios e excitação, exibindo uma pungente nostalgia da
adolescência e dos impulsos de vida. Mulheres bem sucedidas, por sua vez, ten-
dem a se culpar pelas renúncias realizadas na vida pessoal e pelas posturas mais
agressivas que foram necessárias à preservação de seu espaço profissional. Além
disso, aquelas que adiaram a maternidade começam a se sentir cada vez mais
pressionadas pela cobrança social e pelo “relógio biológico”.
Estes dilemas, que atravessam o ego das pessoas maduras, repercutem
inevitavelmente no cotidiano organizacional: os padrões comportamentais associa-
dos à crise de meia-idade podem alterar as dinâmicas grupais e gerar conflitos.
Em geral, os problemas emocionais causados pela crise de meia-idade são consi-
derados a partir de uma perspectiva individual, tendo sido, sistematicamente, es-
tudados por psicanalistas de diversas vertentes.
Neste artigo, nosso objetivo é partir da interpretação realizada por Carl
Gustav Jung sobre a crise de meia-idade para discutir como o fenômeno afeta,
também, as organizações. Para Jung, esta crise está diretamente relacionada ao
processo de individuação, que, segundo ele, nem todas as pessoas conseguem
completar com êxito. Na visão do autor, um processo de individuação bem sucedi-
do resulta em uma psique cada vez mais consciente e capaz de reconciliar opostos
em tensão, como por exemplo as características masculinas e femininas. Ao alcan-
çar este equilíbrio, o indivíduo vai de encontro ao “si mesmo”, ao self, que é o
arquétipo junguiano que simboliza uma personalidade superior, representada pela
sacerdotisa, pela mãe-terra, pela deusa da natureza ou do amor para as mulhe-
res e pelo guardião, pelo velho sábio, pelo espírito da natureza para os homens,
entre outros inúmeros símbolos.
Na primeira parte do artigo, discutiremos como a crise de meia-idade, as
filosofias orientais, o sentido de religiosidade e a alquimia medieval influenciaram
a visão junguiana a respeito do processo de individuação. Na segunda parte,
demonstraremos como o processo de individuação está relacionado com uma re-
conciliação dos opostos: a confrontação da Sombra, o apaziguamento de Anima e
Animus e o encontro com o Self. Nestas duas primeiras partes, recorremos, princi-
palmente, às obras de Carl Gustav Jung (1971; 1979; 1990) e de sua discípula
Marie Louise Von Franz (1975; 1992) para sistematizar os conceitos e as idéias
fundamentais utilizadas neste artigo. Na terceira parte, abordaremos a tensão
entre a dinâmica organizacional e o processo de individuação, gerada pelo
desequilíbrio de opostos, enfatizando o conflito entre os aspectos masculino e
feminino neste contexto. Para finalizar, apresentaremos nossas conclusões, abrindo
possibilidades para futuras discussões e pesquisas.

18 o & s - v.12 - n.34 - Julho/Setembro - 2005


Meia-Idade, Individuação e Organizações

CRISE DE MEIA-IDADE, PROCESSO DE


INDIVIDUAÇÃO E SELF
Reconciliar os opostos no seu próprio íntimo foi uma questão que ocupou
Carl Gustav Jung durante toda a sua vida. Como estudante, lutava para saber
como conciliar sua necessidade pessoal de subjetividade e a objetividade das
ciências que o atraíam. Os seus pacientes esquizofrênicos mostraram-lhe o mes-
mo problema, já que precisavam de seus mitos delirantes, ao mesmo tempo em
que buscavam aptidão para se relacionar com o mundo exterior.
Posteriormente, vieram ao seu encontro com Adler e Freud – o introvertido
e o extrovertido. Apesar de perceber que ambos estavam certos, Jung também
notava que seus pontos de vista entravam em conflito, vendo-se em uma situação
na qual parecia necessário adotar uma posição sem privilégio do subjetivo ou do
objetivo, da extroversão ou da introversão, do bem ou do mal. O homem e a
mulher eram carne e espírito, masculino e feminino, razão e emoção, santos e
pecadores. O funcionamento da psique, para Jung, vinha de uma energia que se
originava da tensão entre esses opostos.
Por volta do final da Primeira Guerra Mundial, Jung, da mesma forma que
outras pessoas criativas, saiu de uma crise de meia-idade, desenvolvendo um
sentido de aceitação e propósito. Jung havia começado a pintar e a desenhar e
nessa época seus trabalhos tinham se alterado: as imagens de pessoas deram
lugar a padrões abstratos, circulares, divididos em quatro ou em algum múltiplo
desse número. Mais tarde, Jung descobriu que seus padrões circulares asseme-
lhavam-se muito às mandalas que são utilizadas para meditação no Oriente.
Para Jung, seus desenhos pareciam simbolizar a realização de um novo equi-
líbrio mental, um equilíbrio entre forças opostas que antes dilaceravam seu psiquismo.
O longo caminho para essa nova integração recebeu o nome de processo de
individuação e os padrões de mandala expressados passaram a simbolizar um cen-
tro psíquico novo, o Self, ou si-mesmo. Jung, então, aponta o ego como a parte
consciente da psique e o Self como a totalidade absoluta da psique, na medida em
que representa a integração entre consciente e inconsciente. Segundo Marie Von
Franz (1975; 1992), o Self significa o centro organizador do qual emana a ação
reguladora da psique no sentido do desenvolvimento de uma personalidade mais
ampla e amadurecida, um impulso íntimo de crescimento. Este pode ser vislumbra-
do por meio da interpretação dos sonhos, pois na visão de Jung, se observarmos
continuamente os sonhos de um indivíduo, seremos capazes de reconhecer pa-
drões e simbolismos que marcam o seu processo de individuação.

SEGUNDA METADE DA VIDA

O processo de individuação é central na psicologia analítica, isto é, na psico-


logia de Carl Gustav Jung. Acreditamos que a primeira coisa a ser dita sobre este
processo é que ele dificilmente fará muito sentido para aqueles que ainda não
atingiram a meia-idade, considerada por Jung como o período que abrange a faixa
etária entre os 35 e 40 anos. No passado, os freudianos procuravam não aceitar
como pacientes pessoas na meia-idade, ou mais velhos. De um modo geral, o
interesse de Freud recaia sobre neuróticos que, na visão de Jung, têm um ego
fraco e são, excessivamente, dominados pelo inconsciente.
Os pacientes de Jung, por sua vez, possuíam egos fortes: eram pessoas muito
bem adaptadas socialmente, bem sucedidas e com uma notável capacidade intelec-
tual. No entanto, dois terços delas haviam alcançado a meia-idade e, em geral, sofriam
de falta de sentido e de propósito em suas vidas. Na visão de Jung, isto é causado
pela suas dificuldades de realizar um processo fundamental para a individuação: en-
trar em contato com as demandas do inconsciente e confrontá-las com as decisões
conscientes, procurando escolher a qual destas partes da psique obedecer.

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Ana Paula Paes de Paula

Estabelecer-se no mundo, cortar os vínculos com a infância que nos ligam


aos pais, arranjar um parceiro sexual e iniciar uma nova família constituem, para
Jung, a tarefa do indivíduo na primeira metade da vida. Em termos junguianos,
esta tarefa pode ser simbolizada pela mitologia do herói. Segundo outro discípulo
de Jung, Henderson (1992), a função específica deste mito é desenvolver no indi-
víduo a consciência do ego. Que sucede, porém, quando o herói consolida estas
conquistas? Em boa parte dos mitos, o herói é morto ou se sacrifica. Osíris, depois
de haver estabelecido seu reino no Egito, é morto: tendo ressurgido, prefere rei-
nar nos Campos Elísios egípcios que voltar à Terra. Jesus Cristo é sacrificado na
cruz, sendo transportado, depois de sua ressurreição, a um “reino que não é
deste mundo”. Para Jung, a morte ou sacrifício dos heróis simboliza a conquista da
maturidade, uma forma de renascimento pelo processo de individuação, quando
se entra em contato com um “outro mundo”, o Self.
Para Freud, o ego era a parte mais importante da personalidade, ao contrá-
rio de Jung, para quem o ego deveria abrir-se ao contato com o centro organizador
da psique (Self). É interessante notar que o último capítulo de “Símbolos de Trans-
formação” foi objeto de grande hesitação por parte de Jung. Esse capítulo, intitulado
“O Sacrifício”, diz respeito à morte do herói. “O Sacrifício” traz a noção de que o
homem, talvez, seja uma criatura que necessite retirar parte de seu investimento
emocional na procura de objetivos mundanos de poder e de felicidade sexual, em
favor de uma meta espiritual para além deste mundo.
É interessante que Freud não aceitasse tal noção, considerando-se que
afirmou, quando contava apenas quarenta e um anos, que a excitação sexual já
não tinha nenhuma utilidade para ele e que a busca da verdade havia se tornado
a grande meta da segunda metade da sua vida. De alguma maneira, esta busca
também podia ser considerada espiritual, segundo o pensamento de Jung. Entre-
tanto, para Freud, esta renúncia era uma sublimação, uma substituição do desejo
mundano por um ideal, enquanto que para Jung seria uma parte essencial do
desenvolvimento da psique humana.
Na visão de Jung, uma certa unilateralidade acompanha as façanhas heróicas
da primeira metade da vida. O bem sucedido e atarefado homem de negócios é tão
determinado em sua busca de riquezas e poder que não tem tempo para o cultivo
de sua vida interior. Já o intelectual, embora seja aparentemente mais introspectivo,
pode ficar, da mesma forma, divorciado das fontes de sentimento e emoção.
É justamente quando alguns êxitos são alcançados, isto é, no período da
meia-idade, que o homem começa a questionar o significado da vida, indagando-se
se não haveria alguma coisa mais para se conquistar. Para Jung, se ele quiser alcan-
çar a serenidade e a harmonia interior, iniciando uma nova fase criativa em sua vida,
ele deverá voltar-se para o seu inconsciente, a fim de descobrir as renúncias que,
conscientemente, realizou para obter o sucesso, reavaliando algumas escolhas.
Dessa forma, tanto o indivíduo que buscava acirradamente o poder, tanto
intelectual como racional, necessita corrigir o seu desenvolvimento, baseado, prin-
cipalmente, em decisões conscientes, ouvindo o que o seu inconsciente tem a
dizer. A maneira de se fazer esta correção consiste em recuperar e procurar com-
preender as produções espontâneas do inconsciente, tal como elas se expressam
nos sonhos, nos devaneios e nas fantasias, nas coincidências (que na terminolo-
gia junguiana chama-se sincronicidade) e no simbolismo. Uma das técnicas reco-
mendadas por Jung para isto, para além da interpretação dos sonhos com auxílio
terapêutico, é uma forma de meditação chamada imaginação ativa, por meio da
qual o indivíduo reflete sobre seus próprios sonhos para tentar captar as mensa-
gens do inconsciente.

INDIVIDUAÇÃO: TAOÍSMO E ALQUIMIA

Como vimos, os pacientes pelos quais Jung mais se interessou eram pessoas
desencantadas com as metas de honra, poder, riqueza, fama e mulheres. Na sua

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Meia-Idade, Individuação e Organizações

visão, esta frustração era decorrência da falta de consciência da necessidade de


dar vazão ao desenvolvimento psíquico em busca da integração ou totalidade.
Para ele, tendo alcançado essa meta, a pessoa se via fora do alcance dos
envolvimentos emocionais violentos, chegando a uma consciência desligada do
mundo, uma espécie de preparação para a morte.
A consciência que acompanha a realização dessa nova integração é, em
essência, uma atitude de aceitação. O indivíduo pára de violentar sua natureza
mais íntima, que está abrigada no inconsciente. O sacrifício de algumas metas
mundanas do ego e a aceitação dos sinais emitidos pelo inconsciente, no que se
refere a novas ações, significa que o indivíduo reconhece que está trabalhando o
desenvolvimento de seu Self e atingindo um novo patamar psíquico.
Jung compara este contato com o inconsciente a uma experiência religiosa, na
qual o indivíduo “serve ao seu Deus interior”. Tal como as pessoas religiosas têm a
atitude “servir a Deus” através da inclinação para prestar atenção a tudo que ocorre
e aceitar estes acontecimentos, o indivíduo deveria estar alerta ao que o seu incons-
ciente tenta dizer pela via dos sonhos, dos sintomas neuróticos e da sincronicidade.
Posto que o encontro com o Self é uma espécie de experiência religiosa, ana-
lisar pessoas na segunda metade da vida, ajudando-as neste encontro, tornou-se
para Jung um tipo de jornada espiritual. Durante sua auto-análise, Jung tinha final-
mente descoberto o que vinha procurando desde a infância, o seu próprio mito, que
dera propósito e valor à sua vida, que incluía valores cristãos, embora não de um
cristianismo convencional, e que terminou por resultar em uma missão terapêutica
que o ajudou a reconciliar aspectos conflitantes de sua própria natureza.
Jung, então, descobriu no processo de individuação um contato com o seu
eu interior que passou a apoiar sua vida e cujo resultado final é a formação de
uma personalidade integrada, de uma personalidade plenamente responsável e
desenvolvida: o “yang” e o “yin”, como os taoístas chamam, o masculino e o femi-
nino equilibrados. Em 1928, o sinólogo Richard Wilhelm, a quem o Ocidente deve
também a tradução do I Ching, encaminhou a Jung um texto chamado “O Segredo
da Flor de Ouro”. Trata-se de um material taoísta antiquíssimo que descreve o
processo de desenvolvimento da personalidade de um modo que agrada a Jung.
Em um determinado momento este livro afirma:
A Flor de Ouro é o Elixir da Vida, (Gin Dan, cujo significado literal é esfera
de ouro, pílula de ouro). Todas as transformações da consciência espiri-
tual dependem do coração. Reside aqui uma magia secreta, a qual, ape-
sar de ser perfeitamente exata, é fluida, exigindo uma extrema inteligên-
cia e lucidez, assim como um extremo aprofundamento e tranqüilidade
(JUNG; WILHELM, 1992, p.99).
Mais tarde, Jung encontrou uma confirmação adicional para suas opiniões
na alquimia medieval. Antes de Jung, a alquimia costumava ser repudiada e inter-
pretada como uma superstição pré-científica, que produziu uma coleção incompre-
ensível de receitas duvidosas, voltadas para a transformação de metais pouco
valiosos em ouro. No entanto, os alquimistas, de modo geral, eram pessoas sérias
que empreendiam experimentos de natureza química.
O fato de não haver ainda uma ciência química que explicasse o que se
passava nesses experimentos, os levou a buscar analogias entre sua experiência
humana e o que viam em laboratório. Para os alquimistas, a combinação de duas
substâncias que não chegavam a ser semelhantes recebia o nome de “casamen-
to” e a produção de uma nova substância a partir dessas duas era descrita como
“nascimento”. Uma das grandes preocupações dos alquimistas era com a perfei-
ção da matéria, tida como análoga à perfeição do homem que seguisse à risca os
mandamentos de Deus.
Tendo a ciência avançado no século XVII, tais idéias ficaram insustentáveis
e a alquimia dividiu-se em dois ramos: a química e a filosofia da religião. Essa
classificação cartesiana substituiu o encontro entre o objetivo e o subjetivo que
se passava no laboratório e nos próprios alquimistas. Jung, evidentemente, con-

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centrou-se nesse segundo aspecto, considerando a alquimia um processo psíqui-


co que se passa no interior do alquimista. As mudanças e novas combinações
químicas, segundo esta visão, são lidas como as mudanças internas da persona-
lidade. Foi essa visão que lhe possibilitou identificar na alquimia a metáfora do
processo de individuação. De acordo com Franz (1992), a busca da pedra filosofal
pelos alquimistas simboliza esta tentativa de encontro com o Self, pois a pedra
simboliza uma existência pura tal como é este nosso centro psíquico, que consoli-
dado nos permite analisar com critério as emoções, os sentimentos, as fantasias e
o pensamento discursivo do ego consciente.

O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO E
SEUS ARQUÉTIPOS

No comentário sobre “O Segredo da Flor de Ouro”, Jung descreve como seus


pacientes reagiram a conflitos que pareciam insolúveis. Mostra que um conflito
aparentemente impossível de se resolver pode ser solucionado pela sua “ultra-
passagem”: o desenvolvimento de um “novo nível de consciência”. Diz Jung que
um interesse mais amplo ou mais elevado pode surgir no horizonte do paciente,
fazendo com que o insolúvel perca toda sua urgência. Isto não acontece por lógi-
ca: o conflito se dissipa no confronto com um anseio vital novo e mais forte.
Um certo grau de renúncia é necessário para alcançar esse novo nível de
desenvolvimento psíquico, que é o desprendimento do indivíduo em relação às
suas próprias emoções. Neste caso, quando um afeto atormenta e abala uma
pessoa, há uma consciência superior que a impede de se identificar com ele. Essa
consciência encara o afeto enquanto objeto e é capaz de dizer: “eu sei que sofro”.
Jung não nos fornece exemplos daquilo que entende por problema insolú-
vel. Storr (1973) nos dá um desses exemplos, tirado da prática psicoterapêutica.
Na meia-idade, um homem de padrões éticos elevados, que vive com sua mulher
um casamento razoavelmente estável, apaixona-se perdidamente por uma jo-
vem: é a mais avassaladora emoção de toda sua vida. Fugir com ela significará
violentar seus padrões de justiça, moralidade e lealdade. Permanecer com a famí-
lia significará violentar a si mesmo. Negar uma coisa ou outra é inútil, já que se
conseguisse expulsar a jovem de sua vida, entraria em uma depressão inevitável,
passando a agredir a sua família.
Este tipo de situação é bastante comum e, geralmente, é resolvido pela
permanência no lar, mantendo-se o homem infeliz, ou pela saída deste, manten-
do-o em estado de culpa, isto é, igualmente infeliz. Segundo Franz (1992), é pre-
ciso notar que impulso para a individuação pode se manifestar de uma forma vela-
da, oculta em uma paixão arrebatadora que se sente por alguém. Jung acredita
que se estiver consciente disto, o homem que enfrenta o problema insolúvel pode
ser capaz de se desprender dos dois grupos de emoções, encontrando uma nova
saída: o conflito poderá ser resolvido pelo “desenvolvimento de um novo nível de
consciência”, ou seja, em um nível simbólico.
No caso citado, o homem deveria diferenciar a jovem da imagem que está
projetando nela, isto é, perceber a natureza inconsciente da sua paixão
avassaladora. Se ele for capaz de ver a jovem tal como ela é, poderá, então,
reconhecer a projeção de seus próprios aspectos femininos, ou seja, a imagem
que se origina do interior de sua própria psique. Isto posto, estará aberto o cami-
nho para um processo interno de desenvolvimento, que envolve diálogos com
figuras arquetípicas. Não é mais a mulher do mundo externo que se apresenta
como resposta, como propósito e significado da vida: a significação emocional
emerge de seu mundo interno e, assim, põe-se em movimento o processo de
individuação.
Entretanto, nem todas as pessoas podem percorrê-lo. Na juventude, as
paixões podem ser fortes demais para que o conflito seja contido e uma solução

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Meia-Idade, Individuação e Organizações

unilateral talvez seja a única resposta. Todavia, Jung estava, principalmente, inte-
ressado em pacientes de meia-idade em processo de individuação e pessoas ro-
bustas no plano psíquico, capazes de sofrer o conflito e conter as emoções
dissonantes: somente quando alguém consegue tolerar os opostos em seu íntimo
poderá alcançar uma solução simbólica.
Para Jung, as dificuldades nas relações interpessoais são, geralmente, atri-
buíveis aos “mundos interiores” dos envolvidos: as imagens desse mundo inte-
rior são projetadas em outras pessoas e criam dificuldades. É por essa razão
que a tarefa principal de qualquer espécie de análise consiste em identificar es-
tas imagens e descobrir algum meio de lidar com elas. É por esta razão que a
maioria das análises que se propõem a lidar com o inconsciente, sejam elas
freudianas ou junguianas, estão muito mais preocupadas com as soluções sim-
bólicas, que ocorrem no interior da própria psique, do que com as ações dos
pacientes no mundo externo.
Geralmente essas soluções simbólicas exigem um alto grau de desprendi-
mento de sentimentos que somente será viável se o homem subordinar a sua
subjetividade a uma meta mais elevada. Para Jung, as pessoas que possuem uma
fé viva em algum credo religioso, freqüentemente, conseguem isto, pois em face
de tal conflito, têm uma autoridade superior para quem se voltar, um conjunto de
regras às quais se subordinar e uma promessa de redenção.
No entanto, existem muitas pessoas que não aceitam nenhum credo religioso
ou não acreditam em Deus. Deveria então existir no ser humano alguma “imagem
virtual”, uma aptidão psíquica para Deus, um arquétipo: algo que permita que ele
se sinta como o deus egípcio Osíris. Lê-se no livro dos mortos: “juntei-me a mim
mesmo, tornei-me inteiro e completo; renovei a minha juventude; sou Osíris, o
Senhor da Eternidade.”
Jung entendia a psique humana como parte de um inconsciente coletivo,
que transcendia os limites do tempo e do espaço. Os arquétipos compreendem
um dos aspectos mais significativos e distintivos de sua obra. Para Jung, os arqué-
tipos desempenham um papel central e crítico que liga o indivíduo ao inconsciente
coletivo. No plano mais geral, os arquétipos são vistos como padrões que estruturam
os pensamentos e, dessa maneira, também organizam o mundo. Uma boa parte
dos escritos de Jung foi dedicada a explicar os arquétipos, já que não era possível
uma definição inequívoca. De qualquer modo, Jung dedicou muito tempo e energia
procurando demonstrar que os arquétipos são universais e que estavam divorcia-
dos do tempo. Assim, podem ser encontrados nos sonhos, nos mitos e nas idéias,
tanto do homem primitivo, quanto do antigo e moderno.
Não há um número finito de arquétipos ou, pelo menos, Jung não procurou
listá-los. Os arquétipos mais freqüentemente citados são: herói, que analisamos
anteriormente, pai, mãe, Sombra, Anima, Animus e Self. Para Jung, quando nos
encontramos com o mundo externo, os arquétipos nos orientam: eles também
são cruciais para que possamos compreender as relações entre os lados conscien-
te e inconsciente da psique. De acordo com Franz (1992), o processo de
individuação envolve, principalmente, os seguintes arquétipos, que examinare-
mos a seguir: Sombra, Anima, Animus e Self.

SOMBRA

Na concepção natural primitiva, a alma não é bem uma unidade, mas um


complexo múltiplo indeterminado. As representações de todos os povos sobre as
almas ou espíritos que habitam as pessoas expressam esse fato. Essas almas ou
se apoderaram do indivíduo, ou passaram a habitá-lo antes ou durante o nasci-
mento. Por vezes, os primitivos as consideram espíritos dos antepassados, ou da
tribo a qual a pessoa pertence. Outras vezes, elas são consideradas espíritos da
mata, que habitam animais e passam a fazer parte de uma determinada pessoa.
Nas crenças populares, contos de fadas e mitos, os gigantes, os anões bons e

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maus, as fadas e os magos e, com muita freqüência, os espíritos dos mortos e de


animais possuem um significado parecido.
A origem dessas representações está na experiência direta de cada indiví-
duo. Todos conhecem estados e emoções que despertam impulsos, sentimentos,
pensamentos e imagens que nos parecem estranhos. Às vezes, essas emoções
são completamente opostas aos nossos pontos de vista e intenções, de tal forma
que parecem emanar de um ser com existência própria. Também a atividade do
sonho e da fantasia são outras fontes dessas representações. Como já vimos, o
eu consciente, ou ego, é para Jung apenas um aspecto da psique, pois algumas
aparições não podem ser esclarecidas a não ser nas regiões da alma externas à
consciência do eu, que estão reunidas sob a denominação de inconsciente.
Jung lida de forma muito aprofundada com a pesquisa da estrutura do in-
consciente e daquilo que constitui seus conteúdos, fazendo uma distinção entre o
inconsciente pessoal e o inconsciente impessoal ou coletivo. O pessoal contém
tudo o que foi adquirido na existência do indivíduo, isto é, tudo o que foi esqueci-
do, reprimido e percebido, pensado e sentido subliminarmente. O impessoal ou
coletivo origina-se da estrutura cerebral herdada: são os contextos mitológicos,
os motivos e imagens que surgem a qualquer momento sem que haja uma relação
específica com grupos sociais ou culturas.
De acordo com Jung, a psique humana é permeada por um jogo antagônico
entre a atitude consciente e a Sombra, que é seu oposto. É na integração destes
opostos na busca da totalidade que temos uma das chaves para o processo de
individuação. Isto envolve a aceitação de qualidades que conflitam com o ideal do
ego e que, por vezes, confrontam valores culturais e morais, mas é uma condição
importante para buscar o auto-conhecimento, pois é a parte inconsciente de nos-
sa personalidade.
Segundo Franz (1992), quando o homem não conhece seu lado sombrio está
iludido de sua verdadeira natureza e costuma ser adepto do recurso de projetar no
outro e no mundo as qualidades que não reconhece em si mesmo. Em geral, são
características e atitudes que criticamos nos outros, ou não aceitamos que alguém
reconheça em nós. Elegemos, então, um “bode expiatório” que passa a carregar a
nossa culpa e, também, a marca que não admitimos em nosso padrão de ego.
A Sombra, no entanto, pode conter forças vitais e positivas, devendo ser
confrontada, pois sinaliza alguma deficiência que precisamos superar, ou um as-
pecto significativo da vida que devemos aceitar. A existência da Sombra é um dos
motivos pelos quais o processo de individuação envolve sofrimento e digestão de
algumas verdades amargas. Por outro lado, é importante perceber que problemas
morais, difíceis e confusos não são provocados apenas pela Sombra, mas também
pelos arquétipos Animus e Anima.

ANIMUS, ANIMA E SELF

Estes arquétipos se revestem de um grande significado, pois pertencem à


personalidade e estão firmemente enraizados no inconsciente coletivo, servindo
como uma espécie de elo entre consciente e inconsciente. Devemos entender cada
um deles como personalidades internas que apresentam propriedades que faltam
à externa, que é consciente e manifesta: elas constituem características femininas
no homem (Anima) e masculinas na mulher (Animus).
Estas características estão presentes nos indivíduos, mas incomodam na
adaptação ao mundo externo, pois, em geral, não encontram espaço para se ex-
pressar na personalidade que exibimos para as outras pessoas. Além disso, es-
sas figuras não são determinadas somente pela respectiva estruturação no sexo
oposto, pois, também, são condicionadas pela experiência com indivíduos do sexo
oposto e pela imagem coletiva que a mulher tem do homem e vice-versa. Não são
apenas imagens, nem apenas experiências e sim essências que intervêm na vida
individual como se fossem um “estranho”, que por vezes é prestativo, mas outras
vezes é incômodo e até destrutivo.

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Meia-Idade, Individuação e Organizações

A anima é o feminino no homem, da mesma forma que o animus é o mascu-


lino na mulher, e para que estes opostos se equilibrem, de alguma forma precisam
ser integrados à personalidade que manifestamos para o mundo:
Num homem, a anima encontra expressão, principalmente, na forma de
humores e ênfases emocionais, positivos ou negativos, específicos; de
fantasias eróticas; de impulsos; de inclinações e de incentivos emocio-
nais para a vida. O animus da mulher, por seu turno, assume antes a
forma de impulsos inconscientes da ação; de súbita iniciativa; de
enunciação autônoma de opiniões; de razões ou convicções (VON FRANZ,
1975, p.61).
A personalidade possui, assim, componentes contrasexuais que servem de
ponto de apoio no relacionamento com os indivíduos do sexo oposto, mas, tam-
bém, constituem fonte de todo tipo de dificuldades no relacionamento entre ho-
mens e mulheres. Os primeiros tendem a se irritar com o Animus das mulheres e
estas, de forma análoga, irritam-se com a Anima dos homens. Essas dificuldades,
que aparecem nos relacionamentos afetivos, tendem a emergir, também, nos agru-
pamentos humanos, entre os quais as organizações:
Se se retirarem esses fatores psíquicos contrasexuais inconscientes, por
assim dizer, dos objetos nos quais são projetados, integrando-os à cons-
ciência, o inconsciente vai revelar uma personalidade superior que nos
homens costuma ter as características do “mestre”, do velho sábio mági-
co, do semideus; nas mulheres, as da cortesã, da grande mãe, da velha
sábia, ou de uma deusa que é Kore e Deméter ao mesmo tempo (VON
FRANZ, 1975, p. 61).
Para Von Franz (1992), isto ocorre quando o indivíduo confrontou-se, longa
e seriamente, com a sua anima ou o seu animus, transformando-os em uma com-
panheira, ou companheiro interior. Inicia-se, assim, uma jornada interior repleta
de possibilidades criativas: em geral, o homem, ou a mulher, descobrem novos
aspectos de sua personalidade e aptidões que desconheciam.
Neste ponto, o homem, ou a mulher, estarão capacitados a aceitar suges-
tões de seu inconsciente, sobretudo aquelas que contradizem as opiniões de sua
anima ou animus, que então assume uma nova forma simbólica, representada
pelo arquétipo Self. O Self corresponde à “aptidão psíquica para Deus”, que nos
auxilia a equilibrar a sexualidade, a vontade de poder e as demais compulsões do
mundo. É uma imagem psíquica interior que costuma ser representada pelo Ho-
mem Cósmico, que é bissexual em uma referência à reconciliação dos elementos
masculino e feminino.

ORGANIZAÇÕES E INDIVIDUAÇÃO
Até o presente momento, discutimos como Jung interpreta a crise de meia-
idade e o processo de individuação. Na literatura organizacional, são escassas as
referências ao uso de arquétipos junguianos para entendimento dos comporta-
mentos no trabalho (BOWLES, 1993; HANZE, 1994; AURELIO, 1995; MORGAN, 1996;
CARR, 2002; ZANETTI, 2002). Nesta última seção, faremos uma tentativa deste
tipo de análise discutindo como o processo de individuação é vivenciado no âmbito
das organizações, enfatizando dois pontos: 1) a tensão entre a dinâmica
organizacional e o processo de individuação, que contrapõe os arquétipos do he-
rói e do Self, além de confrontar o indivíduo com a sua Sombra; e 2) a tensão
entre o masculino e o feminino, ou seja, entre os arquétipos Animus e Anima.

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DINÂMICA ORGANIZACIONAL VERSUS


PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO

Tal como descrito por Jung, o processo de individuação envolve o sacrifício


do herói, sua morte para o nascimento do velho ou velha sábia. Algumas interpre-
tações, também, vêem neste processo uma renúncia dos aspectos materiais da
existência e das paixões, que prepara o indivíduo para o seu desligamento do
mundo. A crise de meia-idade atinge o indivíduo justamente quando suas metas
mundanas estão em questionamento e, para Jung, a superação deste conflito
interno envolve uma atitude quase religiosa de aceitação das perdas e do porvir.
Confrontado com sua Sombra, este indivíduo também está buscando entender
e aceitar aspectos negligenciados da sua personalidade. O arquétipo Sombra não
afeta somente indivíduos passando pela meia-idade, sendo, em geral, responsável
por uma variada gama de conflitos no âmbito das organizações, pois envolve, justa-
mente, a tendência à critica de características que não se aceita e a intolerância do
reconhecimento destas mesmas características pelos pares. Estes conflitos, em ge-
ral, contribuem para afetar as boas relações no trabalho e o clima organizacional,
pois dificilmente os indivíduos os percebem como resultado de problemas mal-resolvi-
dos em relação à sua própria psique e os projetam nos seus colegas de trabalho.
Por outro lado, é importante salientar que a dinâmica organizacional tal como
se apresenta, atualmente, se encontra na contramão do processo de individuação,
pois no ambiente organizacional se enfatizam muito mais os aspectos mundanos
da existência, uma vez que os indivíduos disputam posições de poder, sendo mo-
vidos pela competição, os desejos e as ambições. Mesmo que já tenham alcança-
do a maturidade profissional, os indivíduos continuam a sofrer pressões pelo de-
sempenho excelente. Atualmente, estas características estão sendo exacerbadas
pela contratação de funcionários mais jovens e pelo culto da figura do executivo
ideal, que, em geral, está associada a uma série de requisitos materiais que sim-
bolizam o sucesso: boa aparência, domínio de línguas e tecnologias, título de MBA
e visão voltada para resultados e futuro.
O perfil deste que podemos chamar indivíduo S.A. (WOOD JR.; PAES DE PAULA,
2002) é facilmente identificado com o arquétipo do herói, pois sua personalidade
deve possuir virtudes combativas como ousadia, antecipação constante das pos-
sibilidades futuras, recusa em satisfazer-se com o que quer que seja e esforço
perpétuo para se ultrapassar. Por outro lado, este perfil, também, incorpora uma
tendência de adaptação às mudanças ambientais e aos padrões de comporta-
mento ditados pela indústria do management (MICKLETHWAIT; WOOLDRIDGE,
1997): seu objetivo é o sucesso e para isto ele procura muito mais “conseguir o
melhor de si” do que “estar dentro de si”.
Assim, o indivíduo S.A. exerce o mito do heroísmo na busca de afirmação do
seu ego, enquanto que o ser em processo de individuação está se distanciando
deste arquétipo. Este necessita que o herói morra simbolicamente para que pos-
sa dar lugar ao velho ou velha sábia, estreitando-se o caminho em direção ao Self,
que representa uma psique centrada e equilibrada. Por esta razão, não é de se
surpreender que o indivíduo em crise de meia-idade enfrente uma grande
ambivalência em relação ao seu papel na organização: como ele pode se encaixar
em um ambiente em que todos esperam e procuram por jovens heróis? Não raro
ele passa a viver uma nostalgia da adolescência, enfrentando um grande conflito
interno, que o divide entre o herói do passado e o homem ou mulher madura que
está tentando alcançar um novo patamar de seu desenvolvimento psíquico.

MASCULINO E FEMININO

Analisando sob um outro aspecto, o processo de individuação também conflita


com a dinâmica organizacional no que se refere ao desequilíbrio entre os opostos

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Meia-Idade, Individuação e Organizações

masculino e feminino. No âmbito dos estudos organizacionais há uma significativa


produção sobre relações de gênero e diversidade nas organizações, que aborda
a questão do patriarcalismo e de como o estereótipo de homem que, encontramos
na maior parte das culturas humanas, afeta as organizações (HEARN, J.; PARKIN,
1983; COLLINSON; COLLINSON, 1989; MILLS; TANCRED, 1992; ALVESSON; BILLIG,
1992; BELLE, 1994; PERREAULT, 1994; GHERARDI, 1995; CALÁS; SMIRCICH, 1998;
NKMO, S. M.; COX JR, T., 1998). No Brasil, os estudos seguem esta mesma linha de
pensamento e podemos destacar os seguintes artigos: Castro (1998); Bahia; Ferraz
(1999); Oliveira; Oliveira; Dalfior (2000); Silva; Vilas Boas; Brito (2001) e Cramer;
Brito; Cappelle (2002).
Pelo menos no mundo ocidental, espera-se que os homens sejam lógicos,
racionais, agressivos, exploradores, estratégicos, independentes, competitivos,
líderes e tomadores de decisão. Das mulheres espera-se que sejam intuitivas,
emocionais, submissas, empáticas, espontâneas, cooperativas, estimuladoras e
companheiras leais. Tais padrões e imagens socialmente compartilhados também
integram a cultura das organizações, sendo bastante difícil modificá-los. Por outro
lado, as relações entre homens e mulheres costumam ser moldadas por estes
referenciais, definindo expectativas de comportamento.
Além disso, há que se considerar que a maior parte das organizações, prin-
cipalmente as empresariais, possuem características nitidamente masculinas
(COLLISON; COLLISON, 1989; CALÁS; SMIRCICH, 1998; NKOMO; COX JR, 1998).
Em boa parte delas, predominam a racionalidade e critérios como eficiência,
agressividade, vigor e orientação para decisões, que são valores normalmente
tidos como masculinos. Na dinâmica organizacional, isto contribui para desequili-
brar o “jogo de forças” em favor da dimensão masculina, estimulando o Animus
das mulheres que buscam garantir o seu espaço profissional. Como vimos, nos
homens a Anima desencadeia impulsos emocionais e eróticos, e nas mulheres, o
Animus intensifica o lado racional e pró-ativo.
As dificuldades que aparecem, neste processo, são esperadas: os compor-
tamentos advindos do Animus na mulher conflitam com as suas dimensões femini-
nas e podem intensificar os dilemas que circundam a meia-idade. Assim, exacerba-
se o sentimento de culpa pelo tempo subtraído da convivência familiar e as co-
branças em relação ao seu papel como mães, que podem ser agravados pela
escolha de uma maternidade tardia. Outras conseqüências deste processo são,
também, previsíveis: se as mulheres não se “masculinizam”, estão fora do “jogo”;
caso o façam, são criticadas por “tentar desempenhar um papel de homem”. As-
sim, irritações de parte a parte podem emergir a qualquer momento e os resulta-
dos são disfunções comportamentais, como o assédio moral e sexual, além de
discriminações e outros tipos de sabotagem.
A literatura (BELLE, 1994; PERREAULT, 1994) também demonstra que, de um
modo geral, o espaço conquistado pelas mulheres no mercado de trabalho ainda
está em processo de consolidação, pois apesar dos estereótipos tradicionais es-
tarem passando por uma considerável mudança, eles ainda vigoram em muitas
empresas, uma vez que, também, permeiam a sociedade. Além disso, as estrutu-
ras de oportunidades são, geralmente, segmentadas de modo a favorecer a con-
quista masculina de postos de prestígio e poder. Geralmente os cargos gerenciais
mais altos não costumam ser reservados às mulheres e nem aos homens que não
se adequam aos padrões habitualmente valorizados.
Os atributos masculinos continuam a ser mais enfatizados que os femininos,
até mesmo porque o atual contexto de competição econômica e profissional favo-
rece este viés. Em alguns casos, há uma discriminação aberta, e, até mesmo,
assédio sexual, mas normalmente a discriminação é mais sutil, pouco visível aos
olhos dos próprios executivos homens, que a negariam prontamente. Do ponto de
vista junguiano, percebe-se que aos conflitos da crise de meia-idade somam-se
os conflitos entre os aspectos masculino e o feminino no ser humano.

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Fernando C. Prestes Motta (in memorian) &
Ana Paula Paes de Paula

CONCLUSÃO
A análise, anteriormente realizada, demonstrou que a dinâmica
organizacional e o processo de individuação parecem ser regidos por lógicas
conflitantes. Isto de certa forma justifica porque alguns executivos e executivas,
ao alcançarem a meia-idade, desejam e, por vezes realizam, uma mudança radical
em suas carreiras, como abrir um negócio próprio, fazer consultoria como autôno-
mos, atuar na área acadêmica, ou mesmo mudar de profissão.
Apesar disso, é preciso considerar que o processo de individuação e a atua-
ção no contexto organizacional não são mutuamente excludentes, pois ao atingir
um novo nível de consciência psíquica o indivíduo pode, também, solucionar seus
conflitos e ambivalências em relação à organização decidindo por uma permanên-
cia na mesma. Sob um outro ponto de vista, uma visão melhor dimensionada so-
bre a importância das características relacionadas aos arquétipos do velho sábio
ou da velha sábia, em sua maior proximidade com o Self no indivíduo que se en-
contra na meia-idade, poderia ajudar a redefinir o papel deste indivíduo na orga-
nização, uma vez que, também, seriam valorizadas suas habilidades de sênior e
conselheiro.
Por outro lado, é importante frisar que o entendimento do processo de
individuação, talvez, possa contribuir para a melhoria das relações interpessoais
nas organizações, na medida em que o indivíduo for chamado a refletir e a amadu-
recer certos aspectos de sua personalidade. As energias desencadeadas pelo
processo de individuação, também, podem alterar positivamente a dinâmica
organizacional, pois conduzem à busca de um equilíbrio que tem um grande po-
tencial criativo, por trazer à tona características negligenciadas ou desconhecidas
da personalidade de cada indivíduo.
No que se refere à integração dos opostos, a exemplo das pessoas, toda
organização, por mais masculina que pareça, possui uma dimensão feminina que
não deve ser desconsiderada: não há masculinidade e feminilidade, mas masculi-
nidades e feminilidades, e estas, também, estão presentes na esfera
organizacional. Seguindo o pensamento jungiano, além de reconhecer as diferen-
ças, é fundamental que se perceba a importância da complementariedade entre
as dimensões masculina e feminina nas organizações.
Conforme sugerem alguns recentes estudos realizados no Brasil, estas di-
mensões se completam (MASCARENHAS; VASCONCELOS; VASCONCELOS, 2004) e,
embora as práticas e discursos organizacionais reforcem as assimetrias de gêne-
ro, isto não ocorre sem resistências, pois existe um movimento de mudança no
que se refere ao quadro de perpetuação da dominação masculina sobre o femini-
no nas organizações (BRITO; CAPELLE; BRITO; MELO, 2004). Considerando que
as organizações hoje são permeadas por uma enorme diversidade cultural, o equi-
líbrio sugerido por Jung pode gerar insights para constituir relações mais saudá-
veis e integradas.
No Tai Chi chinês, o continente de opostos sugere este equilíbrio: o mascu-
lino e o feminino, a terra e o céu, a noite e o dia, o negro e o branco são contidos
por uma forma redonda. Porém, em Lao-Tsé, encontramos: “Havia algo sem forma,
porém completo;/ Existente antes do céu e da terra; / Sem som, sem substância,/
De nada dependente, imutável, Impregnando tudo, inquebrantável./ Pode-se
considerá-lo a mãe de todas as coisas sob o céu”. O sábio sugere que éramos um
e nos dividimos em opostos. Assim, nosso maior desafio é dialogarmos com as
diversidades para atingirmos um maior equilíbrio, de modo que a relação entre os
opostos em nós possa estar mais próxima de uma unidade harmoniosa.

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Meia-Idade, Individuação e Organizações

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IMAGEM SELF PLOTINO JUNG CONFLUÊNCIAS 23

IMAGEM E SELF EM PLOTINO E JUNG: CONFLUÊNCIAS

IMAGE AND SELF IN PLOTINUS AND JUNG: CONFLUENCES

Rafael RAFFAELLI1

RESUMO

São analisadas algumas confluências teóricas entre Plotino e Jung,


tendo por base os conceitos de imagem e de self (si-mesmo). Plotino é
considerado como o descobridor do inconsciente e suas idéias sobre a
alma são uma referência básica para a história da psicologia e da
psicanálise. Embora não seja habitualmente incluída entre as influências
teóricas de Jung, a filosofia plotiniana possui diversos pontos em comum
com a psicologia analítica. O conceito de imagem, de importância capital
para a teoria junguiana, é altamente altamente relevante em Plotino, o
qual propõe uma psicologia do imaginário, quer dizer, um estudo da
alma através das imagens. Em relação ao conceito de self, o próprio
Jung destaca as intuições de Plotino nesse campo. Jung atribui também
a Plotino a primeira formulação do conceito de unus mundus (mundo
uno).
Palavras-chave: imagem, self, Plotino, Jung.

ABSTRACT

Some of the theoretical confluences between Plotino and Jung are


analyzed, based on the concepts of image and self. Plotinus is considered
as the discoverer of the unconscious and his ideas about the soul are a
basic reference for the history of psychology and psychoanalysis. Although
it is not habitually included among Jung’s theoretical influences, the
Plotinian phylosophy possesses several points in common with analytical
psychology. The concept of image, of capital importance for the Jungian
theory, is also highly important in Plotinus, which proposes a psychology
of the imaginary, that is, a study of the soul through the images. In relation

(1)
Doutor em Psicologia Titular UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina.
Endereço: Caixa Postal 815 - CEP: 88010-870 - Florianópolis-SC - Tel.: (048) 962-8802
E-mail: [email protected]

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24 R. RAFFAELLI

to the concept of self, Jung himself highlights Plotinus’ insights on that


field. Jung also attributes to Plotinus the first formulation of the concept of
unus mundus (united world).
Key-words: image, self, Plotinus, Jung.

Plotino (205-270) é o último filósofo da em 1835. (cf. Bréhier in Plotino, 1993:


tradição helenística e o principal representante I,XLIII)
da corrente filosófica neoplatônica, que vai Em 1919, Jung utiliza pela primeira vez o
exercer uma influência marcante no termo arquétipo, diferenciando-o de suas
pensamento ocidental. imagens fenomênicas, como algo
Suas asserções acerca da alma são irrepresentável em seu conteúdo último, como
referências básicas para o estudioso da história “formas do instinto”. Procura entendê-lo como
da psicologia e da psicanálise, pois suas um conceito psicossomático, que uniria corpo
idéias repercutiram posteriormente na obra de e alma, instinto e imagem, evitando a idéia que
teóricos do porte de Freud e Jung. as imagens arquetípicas fossem consideradas
Pois Plotino é considerado por alguns meros reflexos dos impulsos biológicos. Em
autores (Schwyzer, 1960; Hillman, 1981) como 1934, ele define os arquétipos (archetypoi)
o “descobridor do inconsciente” e o seu conceito como os princípios básicos do inconsciente.
de psyque como similar ao de inconsciente Para Jung o arquétipo é uma aptidão
coletivo. imaginária da psique, que reaviva imagens
E dentre as teorizações junguianas a coletivas de significância biológica e histórica
respeito do inconsciente coletivo a noção que como “categorias herdadas”. (vide
surge como central é a de arquétipo. Jung,1981:127;VII,220)
O arquétipo para Jung é a parte herdada Os arquétipos também se evidenciam
da psique, que manifesta-se como padrões nas experiências básicas ou universais da
imagéticos do inconsciente coletivo. Pode ser vida (nascimento, ritos de passagem,
entendido como o correspondente do casamento, maternidade/paternidade, morte)
inconsciente coletivo aos complexos do e estão configurados na vida interior da psique
inconsciente individual, como imagens através de imagens como a Persona, a Sombra,
atratoras de significado. a sizígia Anima/Animus, a Grande Mãe e o
A teoria junguiana sobre os arquétipos Self (Selbst) ou Si-mesmo, embora possam
inicia-se em 1912, quando relata a surgir em infinitas configurações possíveis.
manifestação de imagens primordiais em Esses padrões arquetípicos permanecem
pacientes e em sua auto-análise, cujas latentes até que um evento crítico ou uma
temáticas centrais repetiam-se nos mitos de conjunção de fatores o atualizem, liberando
diversas culturas. Foi influenciado pelas idéias uma força que magnetiza a psique. Os afetos
do historiador neoplatônico Friedrich Creuzer liberados polarizam a vontade, dinamizando o
(1771-1858), como ele mesmo coloca: eu (ego), conferindo-lhe um objetivo irreprimível.
“O acaso me conduziu ao Simbolismo e Os períodos de crise são os mais suscetíveis
Mitologia dos Povos Antigos, de Friedrich ao surgimento das imagens do inconsciente
Creuzer, e esse livro me entusiasmou”. (Jung, coletivo.
1975:145) As qualidades dos arquétipos surgem
Creuzer foi também editor das Enéadas espontaneamente nos símbolos, nos mitos e
de Plotino (Plotini Opera omnia), obra impressa nas religiões, aparecendo na psique individual

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IMAGEM SELF PLOTINO JUNG CONFLUÊNCIAS 25

como imagens oníricas, delírios, êxtases e na As imagens são qualificadas como


arte. Mas sempre como imagens. Daí o papel primordiais quando apresentam conteúdos
vital da imaginação em Jung. arcaicos, isto é, estabelecem relações de
“A imagem é uma expressão concentrada significado com motivos mitológicos que são
da situação psíquica como um todo(...) tanto partilhados por toda a Humanidade. Seriam
inconsciente quanto consciente.” (Jung, “engramas” mnêmicos resultantes da
1991:418; VI,829) condensação de processos similares que
decorreram ao longo da evolução humana e,
Na conceituação junguiana, o eu pode por isso, podem ser encontrados em todas as
ser entendido como um repositório de imagens
culturas de todas as épocas.
que se agrupam por significado, oriundas tanto
da percepção quanto da memória, formando “A imagem primordial é, portanto,
um complexo de idéias e sentimentos que expressão condensada do processo vivo.”
conferem uma unidade e identidade (Jung, 1991:420; VI,834)
pragmáticas ao self, em especial nas relações Para Jung, a imagem primordial é a
sociais. Mas essa unidade é composta de origem da idéia, conceito generalizador que
imagens cambiantes que não possuem está na base dos demais conceitos racionais.
realidade em si, o que equivale a dizer que o eu Esse princípio racional é, então, uma expressão
é uma solução de compromisso entre as codificada da imagem primordial.
imagens prevalentes (sensoriais ou “A imagem primordial é preâmbulo da
mnemônicas) num determinado momento. idéia, é sua terra-mãe.” (Jung, 1991:420;
“Apesar da aparente unidade do eu, trata- VI,835)
se evidentemente de um fator altamente O símbolo surge através da condensação
compósito e variado, constituído de imagens das idéias derivadas das imagens primordiais,
provindas das funções sensoriais que integrando razão e sentimento. Por isso o
transmitem os estímulos tanto de dentro como processo simbólico não é um fato meramente
de fora; consiste igualmente em um imenso intelectual, alegórico, mas antes um mediador
aglomerado de imagens resultantes de entre os conteúdos inconscientes e a
processos anteriores. (...) Por esta razão não consciência. Além disso, o símbolo propicia o
falo simplesmente do eu, mas de um complexo desenvolvimento do auto-conhecimento, pois
do eu.” (Jung, 1982:265; VIII/2,611) sintetiza toda uma experiência de vida pessoal
dentro de uma representação ou imagem
Todas as percepções que chegam ao eu,
analógica, que pode ser interpretada
chegam como imagens. Essas imagens são
comparadas com as imagens mnêmicas e analiticamente. Entretanto, seu conteúdo não
agrupadas segundo o sentido prevalente ao eu é unívoco, pois não existem imagens que
possam ser interpretadas a priori. A diversidade
ou complexo do eu, como Jung prefere
cultural implica numa diversidade simbólica e
denominar. A partir desse ponto ela pode ser
a dinâmica psíquica dos indivíduos atribui
conceituada, ou seja, tornar-se objeto do
valoração diferenciada às simbologias. Símbolo
pensamento abstrato. A linguagem é, por sua
é aquilo que possui o potencial de alterar a
vez, a expressão da imagem em palavras.
dinâmica do eu, isto é, desconectá-lo das
“Mas o que acontece na medula espinhal suas imagens habituais e reconectá-lo a um
é transmitido ao eu que percebe, em forma de outro patamar de consciência, liberando um
imagem ou cópia que podemos expressar quantum de afeto. Desse modo, o símbolo
através de um conceito ou de um nome.” remete a um arquétipo ou imagem primordial,
(Jung. 1982:163; VIII/2,435,607) que transcende a consciência, e a imagem,

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como o significante do arquétipo, é a expressão os Gnósticos (Plotino,1993:II,9), que


da natureza da alma. demonstra - ao menos no sentido crítico - a
“O si-mesmo pode certamente tornar-se convivência das duas correntes filosóficas. O
um conteúdo simbólico da consciência, mas é ponto central da discordância seria a
também, sem dúvida, transcendental como justificativa da origem do mal aventada pelos
grandeza inevitavelmente superior à gnósticos, que procederia do próprio Demiurgo;
consciência.” (Jung, 1982:161;IX,264) enquanto que Plotino, como a filosofia cristã,
afirmava Deus (Uno) como o Bem Supremo,
As Idéias (eide) platônicas são sendo o mal alheio a Ele.
consideradas habitualmente a base do conceito
de imagem primordial, somando-se às noções Nossa tarefa, então, é analisar os
kantianas sobre as categorias perceptivas a conceitos de imagem e de self segundo Plotino,
priori, bem como ao conceito de idéia ou comparando-os com a conceituação de Jung,
protótipo em Schopenhauer, como o próprio sem a preocupação de buscar exclusivamente
Jung relata em sua obra Tipos Psicológicos. as possíveis influências do primeiro sobre o
(vide Jung, 1991:421-422; VI,836-840) segundo, mas antes as confluências no plano
conceitual de ambas as teorias. Pois muitas
Atribue-se, também, a origem desse das intuições de Plotino - um reconhecido
conceito a Fílon de Alexandria, ao Corpus
mestre espiritual e místico - são, de alguma
Hermeticum, à Dionísio Aeropagita (primitivae
forma, complementares às de Jung, embora
formae), a Santo Agostinho (ideae principales)
sigam caminhos muito diversos. Plotino -
e, ainda, a Jakob Burckhardt (imagens
egípcio de nascimento, mas habitante de Roma
primordiais). Mas, apesar dessas possíveis
- é um filósofo cujas inquietudes remetem a
influências, Jung chega a definir os arquétipos uma tentativa de síntese entre Platão e
como as idéias platônicas embasadas Aristóteles, sendo provavelmente influenciado
empiricamente. (vide Jung,1981:57;VII,101 e
pelo hinduísmo e pelos mistérios de Ísis que
Jacobi,1986:39-52)
Apuleio nos relata no Asinus Aureus (Asno de
Entretanto, apesar de não ser mencionada Ouro).
explicitamente, a filosofia plotiniana aproxima-
Já Jung é médico de formação,
se da psicologia junguiana quanto à questão
psicanalista rompido com a ortodoxia
da imaginação e do si-mesmo (self). Pois
freudiana, psicólogo empírico por auto-
Plotino já emprega o termo arquétipo
definição, mas cuja imaginação foi tomada
(arcetupon) num sentido propriamente
pelos mesmos símbolos que guiaram o
psicológico, ao supor que a elevação do self
pensamento dos antigos. Essa busca junguiana
das imagens aos arquétipos é a meta do ser,
pela natureza da alma através dos sonhos,
que atingiria, assim, o não-ser. (vide
dos relatos clínicos e da mitologia comparada
Plotino,1993:VI,9,11)
é similar à empreendida pela filosofia plotiniana
É relevante também o fato de Plotino ter pela via da noesis. Vale dizer que Plotino viveu
sido incluído por alguns historiadores - seguindo no momento de maior sincretismo e
o ponto de vista histórico-religioso e uma miscigenação cultural e étnica do Império
metodologia fenomenológica - entre os Romano, no início de sua decadência como
gnósticos (cf. Torrents, 1990). A ligação dos poder unificador, onde todas as tendências
gnósticos com a obra junguiana é consabida, mitológicas, esotéricas, filosóficas e religiosas
pois a Gnose e a Alquimia foram as duas se uniam e se degladiavam, onde o cristianismo
maiores fontes de material analítico de Jung monoteísta começa a mostrar sua força,
(cf. Segal,1995). Por outro lado, encontramos impondo-se ao paganismo politeísta que
nas Enéadas uma diatribe entitulada Contra agonizava.

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IMAGEM SELF PLOTINO JUNG CONFLUÊNCIAS 27

Plotino atribui um papel fundamental para são as imagens, que persistem na memória
a imaginação na vida psíquica, pois a mesma mesmo após do desaparecimento das
constitui-se no aspecto distintivo de toda sensações que as causaram.
experiência consciente, isto é, propriamente Para Plotino a alma é a expressão ativa
humana. da Inteligência que cria o universo sensível
Propõe, desse modo, uma psicologia (kosmos aisthetos) como uma imagem
imagética, um estudo da alma através de suas (eidolon) de si mesma, que assim se
imagens. Os epicuristas já postulavam que a reconhece:
alma sensível é basicamente imaginação, a “L’âme (...) est une image de
faculdade sem a qual não haveria a experiência l’Intelligence; comme la parole exprimée est
consciente; para eles os pensamentos são l’image du verbe intérieur à l’âme, ainsi elle est
derivados das sensações provocadas pela ação le verbe de l’Intelligence et l’activité selon
de um “gerador de imagens” (apud Diógenes laquelle l’Intelligence émet la vie pour faire
Laércio, X, 33-34 in Brun, 1991:31). Dado o subsister les autres êtres.” (Plotino, 1993;
primado epistemológico atribuído à aisthesis V,1,3)
(sensação ou percepção), entende-se a
relevância do conceito de prolepsis Plotino supõe que a hyle (matéria
inteligível) é eidolon (imagem) ou eikon (reflexo)
(antecipação ou prenoção), visando
da alma, na acepção platônica (vide
estabelecer parâmetros para a formação de
Plotino,1993:III,9,3; V,2,1). Com isso aponta
imagens. A diferença básica é que para Plotino
para um primado da alma sobre a matéria, pois
as sensações não são critério de verdade e,
a matéria corpórea é uma imagem da matéria
por isso, as imagens são emanações de uma
realidade transcendente que ele denomina inteligível refletida na alma. Assim, toda
Nous (Inteligência). Similarmente, para os cognição opera através de imagens, que têm
seu princípio e seu destino na alma, e a
estóicos a Razão (logos) impregna o universo
imaginação é a intermediária entre o
tal como a alma impregna o corpo, quer dizer,
pensamento e a natureza (vide
é a sua força ativa. Para eles, o corpo produz
Plotino,1993:IV,4,1).
sensações que são apreendidas pela razão
como imagens das coisas; na imaginação Em Jung, o conhecimento também é
(phantasia) as coisas e os pensamentos uma função imagética:
coincidem por estarem submetidos ao mesmo “Todo conhecimento espiritual é uma
princípio racional, que é a simpatia cósmica imagem e uma imaginação.” (Jung, 1983:550;
(sympatheia), conceito que Plotino incorporou XI,889)
à sua filosofia. Entretanto, a apreensão ou a A imagem, para Jung, é a condição do
ação de captar (katalepsis) uma imagem ainda pensamento consciente, possuindo um
é tomada como critério de verdade, o que conteúdo representacional específico radicado
continua a ser oposto à epistemologia no inconsciente, que só pode ser reconhecido
plotiniana. Quanto às imagens, partilham todos pela psique justamente através da imagem
da conceituação de Aristóteles, para o qual a que o representa. Mas, em última análise, as
imaginação (phantasia) funciona como um imagens seriam produtos dos processos
intermediário entre a percepção (aisthesis) e o corticais e da ação biológica autônoma.
pensamento intuitivo (noesis). Apesar dos “Emprego a palavra imagem, aqui,
antagonismos epistemológicos irreconci- simplesmente no sentido de representação.
liáveis, eventualmente todos poderiam Uma entidade psíquica só pode ser um
concordar que a imaginação é um movimento conteúdo consciente (...) precisamente quando
anímico derivado da percepção, cujo resultado possui a qualidade de imagem. Por isto chamo

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de imagens a todos os conteúdos conscientes inferior é a physis, a natureza que trabalha


porque são reflexos de processos que ocorrem inconscientemente.
no cérebro.” (Jung, 1982:264; VIII/2,608) “L’être, dont la vie est perceptible à nos
Para Plotino, mesmo a capacidade sens, est composé d’êtres qui vivent
racional - a parte racional da alma - é vista imperceptiblement pour nous.” (Plotino, 1993:
como uma imaginação conceptual. Essa IV, 4, 36)
particularidade é que torna o homem um ser Na visão de Jung:
racional, sua capacidade de apreender o “O arquétipo é natureza pura, não
pensamento discursivo e transmití-lo numa deturpada e é a natureza que faz com que o
linguagem convencional. homem pronuncie palavras e execute ações
A atividade da imaginação manifesta-se de cujo sentido ele não tem consciência.
como um poder de apreensão que distingue o (Jung, 1982:147; VIII/2,412)
próprio (o sujeito) do outro (o objeto) de modo Para Plotino, a percepção (aisthesis)
a torná-lo uma parte de si (da alma) como uma humana requer a produção de uma imagem.
imagem (eidolon). Essa imagem é produzida pela psyque, que
“Car il ne peut y avoir de pensée sans unifica as sensações particulares (táteis,
visuais, auditivas, etc.). Dessa forma cria-se a
altérité et identité.” (Plotino, 1993; V,1,4)
consciência, como lugar de um conteúdo
As potencialidades inatas podem então psíquico sintetizado numa imagem, que permite
manifestar-se como uma expressão do Nous à alma distinguir seu objeto no tempo e no
(Inteligência), que assim se auto-conhece. As espaço.
três hipóstases (princípios ou realidades) em
De modo semelhante, cria-se uma
Plotino são a Alma do Mundo (psyque tou
imaginação conceptual cuja atuação é
pantos), a Inteligência (nous) e o Uno (hen). A
faculdade cognitiva humana é um atributo da analítica, quer dizer, disseca a unificação
alma agregada ao corpo, que por sua vez é sensorial através do emprego de conceitos
uma imagem do Nous, que por seu turno é uma racionais.
imagem do Uno, que é ‘projetada’ sobre o A consciência humana, então, é formada
mundo sensível através da alma. Desse modo, por essas duas imaginações acopladas, que
o mundo natural é a imagem de seu Criador e funcionam como um espelho do real. No
a própria matéria (hyle) é uma imagem do ser entanto, essa imagem especular só é
(on). Essa imagem está em contínua perceptível na total imobilidade, o que equivale
transformação, pois o Uno é um devir que está a dizer que é o movimento que turva o reflexo
para além do tempo cronológico e da própria da razão.
eternidade. (Plotino, 1993:I,8,3; III,7,11;V,1,3;
“Telle l’image dans un miroir, quand sa
V,8,12)
surface polie et brillante est immobile; le
Essa seria a contribuição de Plotino à miroir est là, une image se produit; (...) Il en
ontologia de Platão e Aristóteles, que est de même dans l’âme; si cette partie de
entendiam a eternidade como permanência. nous-mêmes dans laquelle apparaissent les
Para Plotino a eternidade é a vida do Nous e o reflets de la raison et de l’intelligence n’est
Uno, como princípio gerador, a transcende. point agitée, ces reflets y sont visibles; alors
(cf. Aubenque,1981) non seulement l’intelligence et la raison
Para estabelecer uma conexão entre alma connaissent, mais en outre l’on a comme une
que conhece e o seu objeto, ele introduz o connaissance sensible de cette action.”
conceito de apreensão consciente, cujo limite (Plotino, 1993: I,4,10)

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IMAGEM SELF PLOTINO JUNG CONFLUÊNCIAS 29

Essas idiossincrasias do sujeito que “Percebemos apenas as imagens que


percebe segundo seus próprios limites também nos são transmitidas indiretamente, através
é reconhecida por Jung. de um aparato nervoso complicado. (...) A
“A consciência é algo semelhante à conseqüência disto é que aquilo que nos parece
percepção e, como esta, também está sujeita como uma realidade imediata consiste em
a condições e a limites (...) pois dependem imagens cuidadosamente elaboradas e que,
(...) da condição do sujeito que percebe.” por conseguinte, nós só vivemos diretamente
(Jung, 1983:553; XI,891) em um mundo de imagens. (...) Nós somos
subjugados por um mundo que foi criado
Para Plotino, um poder de imaginação é
por nossa psique.” (Jung, 1982:332-333; VIII/
necessário para a vida anímica como elo à
2,745-747)
atuação conjunta dessa dupla faculdade
humana de captar o mundo material como Por conseguinte, a consciência humana
é o acompanhamento de uma sensação ou
essência perceptiva (eide aistheta) e de pensá-
pensamento por uma imagem, isto é, toda
lo segundo conceitos como essência racional
cognição é propriamente imaginária.
(eide noeta), faculdade essa que cria
(percebendo e analisando) seus objetos. Devido Devido a isso, a consciência na filosofia
a isso, o conhecimento humano enquanto plotiniana é descrita como parakolouthein
razão discursiva (dianoia) nunca atinge a (seguir junto), enfatizando a dualidade entre a
verdade (aletheia), não constituíndo-se numa imaginação e o objeto imaginado, permitindo o
ciência (episteme), sendo basicamente uma auto-conhecimento. Assim, a vida psíquica só
questão de opinião (doxa). A noesis é uma é possível através da intermediação da
unidade entre o sujeito e o objeto que é só imaginação.(cf. Warren, 1966)
captável através da sua imagem como logismos Entretanto, Plotino afirma que nem todo
(raciocínio ou pensamento discursivo). (cf. pensamento é imagético, pois existem
Peters, 1983) pensamentos racionais inconscientes. A
necessidade de imagens é uma característica
O processo pelo qual a alma toma
da apreensão consciente e não engloba todos
consciência formando uma imagem é
os pensamentos. Só os pensamentos
denominado antilepsis ou ‘apreensão
conscientes necessitam transformar-se em
consciente’. Esse processo ocorre tanto em
imagens para serem pensados. E, para o
relação à percepção quanto à intuição. A
pensamento discursivo, as imagens são
atividade antiléptica ou imagética é o centro da
conceituais e não pictóricas, diversamente
ação humana cotidiana, permitindo ao homem
das imagens advindas da sensação.
separar-se do seu entorno e agir como um
indivíduo, um sujeito atuando sobre objetos. Nesse sentido, como já nos referimos,
segue a formulação aristotélica, na qual a
Aquilo que nos distingue dos animais é a
imaginação (phantasia) é o elo unindo sensação
dianoia ou razão discursiva. Todavia, não temos e pensamento.
consciência nem de todos nossos
“Si [comme le dit Aristote] une image
pensamentos, nem de nossas funções
accompagne toute pensée (...) le langage, en
corporais ou rotineiras. Então a consciência
la développant et en la faisant passer de l’état
só é recuperada por uma imagem mnêmica.
de pensée à celui d’image, reflète la pensée
“La mémoire des choses sensibles comme um miroir. (...) Car autre chose est de
appartient donc à l’imagination.” (Plotino, 1993: penser, autre chose de percevoir sa pensée.
IV,3,29) Nous pensans toujours; mais nous ne
Em Jung: percevons pas toujours notre pensée, parce

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30 R. RAFFAELLI

que le sujet qui reçoit les pensées reçoit A unidade ou mônada (monas) é semelhante
aussi, alternativement, les sensations.” ao Uno e sempre igual a si mesma. O movimento
(Plotino, 1993: IV,3,30) da alma é ocasionado pelas razões seminais
Plotino distingue, assim, o pensamento (logoi spermatikoi), que são a causa das
de sua apreensão consciente pois estamos diferenças individuais. A finalidade da alma -
sempre pensando mas nem sempre de todas as almas - é efetuar a regressão ao
apreendemos (conscientemente) o que Uno através da Inteligência. (cf. Bréhier,
pensamos, ou seja, a alma humana pensa 1977:173)
(inconscientemente) sem dar-se conta do que “L’âme (...) ne se fragmente pas pour
pensa. animer par chacune de ses parties chaque
Essa é a concepção encampada partie du corps; mais toutes les parties vivent
posteriormente por Leibniz, que ecoa sobre a par l’âme toute entière, elle est toute présente
psicanálise freudiana e também em Jung: partout, semblable, par son unité et son
omniprésence, au père qui l’a engendrée
“A psique não coincide com a
[l’Intelligence].” (Plotino, 1993; V,1,2)
consciência, mas (...) funciona
inconscientemente à semelhança ou Para Jung existe a possibilidade de um
diversamente da parte capaz de se tornar conhecimento que ultrapasse os limites
consciente.” (Jung, 1984:110; VIII/2,362) espácio-temporais. O seu conceito de unus
mundus (mundo uno), que apóia a noção de
Isso significa que o ser humano só está
correspondência acausal ou sincronicidade,
consciente quando uma imagem está presente,
afirma igualmente a relação intrínseca entre o
tanto de um objeto sensível ou inteligível. A
uno e o múltiplo. Em sua última grande obra,
imaginação é o que nos faculta separar o
Mysterium Coniunctionis, Jung cita Plotino
sujeito da consciência dos objetos, senão
como uma das origens desse conceito. (Jung,
cairíamos na atividade natural (biológica) 1985:292; XIV/2,416)
inconsciente, incapaz de elevar-se além das
aparências sensoriais até a intuição (noesis) Essa mesma referência já havia sido
das formas primeiras. colocada em seu texto Sincronicidade:

Essa diferenciação entre percepção e “Também, segundo Plotino, as almas


apercepção e o reconhecimento da existência individuais se acham ligadas por uma relação
de pensamentos inconscientes está mútua de simpatia ou antipatia, na qual a
amplamente de acordo com as concepções distância não exerce nenhuma influência.”
junguianas. Para Jung, esses pensamentos (Jung, 1986:58; XVIII,917)
agrupam-se em imagens segundo seus Nessa concepção, a consciência possui
significados, em função das finalidades a que uma dupla função cognitiva e espiritual.
se propõem, visando o auto-conhecimento: “Os arquétipos (...) são correspondentes
“Posso afirmar que se trata de ‘processos complementares do ‘mundo exterior’ e, por
nucleares’ significativos na psique objetiva, isso mesmo, possuem caráter ‘cósmico’. Daí
de certas imagens de meta que o processo se explica sua numinosidade e,
psíquico parece propor a si mesmo por ‘ser concomitantemente, seu ‘caráter divino’.”
orientado para um fim’.” (Jung, 1994:233-234; (Jung, 1982:186-187; IX/2,305)
XII,328) Jung reconhece que existe um
Em Plotino, alma é una na sua pensamento primordial - comparável, talvez, à
multiplicidade, pois cada ser é idêntico a Inteligência plotiniana - inerente à espécie
todos os demais seres e o todo está em tudo. humana, que foi construído e desenvolvido
Logo, pode-se afirmar que ‘tudo está em tudo’. durante a evolução do Homem. Esse

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IMAGEM SELF PLOTINO JUNG CONFLUÊNCIAS 31

pensamento foi expresso e memorizado em ainda hoje encontramos na base dos símbolos
imagens, que funcionam como guias da psique, mandálicos dos sonhos.” (Plotino,
como um verdadeiro fio de Ariadne rumo ao En.VI,8,1;VI,9 in Jung, 1982:209; IX/2,342)
centro do labirinto. Para Plotino, o self noético ou imanente
“Há um pensamento nas imagens (noetike kai psychike), a fonte da vida, não
primordiais, nos símbolos, que são mais necessita imaginação pois é auto-consciente.
antigos que o homem histórico e nascidos A tarefa última da consciência é tornar-se
com ele desde os tempos mais antigos e, inconsciente num patamar superior de
eternamente vivos, sobrevivem a todas as conhecimento, onde a distinção imagética
gerações e constituem os fundamentos da entre sujeito e objeto foi superada e finalmente
nossa alma. (...) Para mim, as imagens integrada. A fragmentação do self é total no
primordiais são como órgãos psíquicos.” (Jung, nível da physis, onde encontra-se num estado
1982:352; VIII/2,794) de inconsciência de seu potencial cognitivo.
Esses ‘órgãos psíquicos’ são - seguindo- Para superá-la, surge a sunaisthesis como a
se a metáfora - as ‘antenas’ da psique humana unidade cognitiva básica motivada pela
coletiva, arcabouço de todo imaginário criado simpatia cósmica (sympatheia) que une o
pela humanidade, pela qual captam-se e universo num todo integrado. (cf. Warren,1964)
atualizam-se as imagens. “Car l’intelligence est à la fois une partie
No que se refere ao arquétipo central, o de nous-mêmes et un être supérieur auquel
self ou si-mesmo, Jung cita um extenso trecho nous élevons.” (Plotino, 1993: I,1,7)
de Plotino em apoio às suas idéias: Na interpretação de Jung, a
“Encontramos uma concepção paralela conscientização das imagens primordiais, que
[à natureza psicológica do si-mesmo] em atuam de forma inconsciente ou pré-
Plotino (cerca de 205-270). Assim, diz ele em consciente, é que permite ao homem
suas ‘Enéadas’: ‘Sempre que uma alma se reconhecer sua própria humanidade:
conhece, sabe que seu movimento natural “Existem arquétipos pré-conscientes que
não se processa em linha reta, pois sofreu um nunca foram conscientes. (...) Só quando o
desvio; mas sabe que descreve um movimento homem possui a capacidade de ser consciente
circular em torno de seu princípio interior, em é que se torna verdadeiramente homem.” (Jung,
torno de um centro. Mas o centro é aquilo de 1982:147; VIII/2,412)
onde procede o círculo. A alma, portanto,
E essa humanidade reflete-se em tudo o
movimentar-se-á em torno de seu centro, isto
que a psique pode abarcar:
é, em torno do princípio de onde ela procede.
Ela manter-se-á presa a ele; movimentar-se-á “O si-mesmo surge em todas as formas,
em direção a ele, como deveriam fazer todas das mais elevadas às mais ínfimas, uma vez
as almas. Mas só as almas dos deuses se que tais formas ultrapassam as fronteiras da
movimentam em direção a ele, e por isso são personalidade do eu, à maneira de um
deuses, pois tudo o que se acha unido a esse ‘daimon’ (demônio socrático).” (Jung, 1982:216;
centro é, em verdade, deus, ao passo que o IX/2,356)
que se acha afastado dele é o homem, o Para Plotino o Nous mantém a alma
homem sem unidade, o homem animal’. Nesta humana permanentemente ligada ao kosmos
concepção, o ponto é o centro de um círculo noetos (universo inteligível), mas como a
que é produzido, de algum modo, pela atenção está distraída pelos objetos sensíveis
deambulação da alma em torno dele. Mas o ela não dá-se conta disso. Quer dizer, embaixo
ponto é o ‘centro de todas as coisas’; é uma da atividade consciente cotidiana continua a
imagem de Deus. É esta a concepção que operar inconscientemente o self imanente, o

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32 R. RAFFAELLI

inteligível que habita em cada ser. elle voit par elle le Dieu suprème.” (Plotino,
Ontologicamente essa operação pode ser 1993: I,8,2)
descrita como a unidade entre sujeito e objeto A consciência poderia ser entendida,
numa realidade existencial, fornecendo as então, como um jogo de espelhos onde a
bases epistemológicas para uma abordagem fidelidade da imagem seria uma função da
cognitiva da divindade. Assim, o Uno não é um clareza da superfície reflexiva. (cf. Plotino,
ser, mas antes um processo unificador que 1993: VI,9,7-9)
nada é em si, apesar de ser em si todos os
seres. (Plotino, 1993:V,1,6; VI,8; VI,9) “Il faut que, contemplant cet Un qui est
en lui-même comme à l’intérieur d’un
O self imanente pode tornar-se cônscio sanctuaire, et qui reste immobille au delà de
para o homem, que assim cumpre uma dupla tout, nous contemplions les images qui déjà
finalidade: alça a alma humana ao nível do tendent vers l’extérieur (images stables), ou
Nous e, ao mesmo tempo, permite que o Nous plutôt la première image qui s’est manifestée.
tome consciência de si mesmo. A palavra a (...) Tous les êtres d’ailleurs, tant qu’ils
descrever o self é alternadamente psyche ou subsistent, produisent nécessairement autour
anthropos, isto é, a realidade ontológica e a d’eux, de leur propre essence, une réalité qui
consciência humana. O self possui um tend vers l’extérieur et dépend de leur pouvoir
dinamismo cognitivo perpétuo e surge para o actuel; cette réalité est comme une image
homem como imago Dei, ou seja, a imagem de des êtres dont elle est née.” (Plotino,
Deus espelhada na consciência. 1993:V,1,6)
“L’âme aussi est animée d’un mouvement A realidade é criada pelo ser como uma
éternel. (...) Il est donc nécessaire, pour que imagem na qual ele se insere. Enquanto que
nous percevions la présence de ces actions, para Plotino a crença em Deus é o resultado
de tourner nos perceptions vers l’intérieur de natural do pensamento que alcança a
nous-mêmes, et d’y maintenir notre attention.” contemplação da verdade (aletheia), o que
(Plotino, 1993:V,1,12) interessa a Jung é demonstrar a realidade
Em Jung também encontramos o empírica desses fenômenos e desvinculá-los
pressuposto de um movimento: de toda crença religiosa. Jung também
“O processo inconsciente como que se diferencia a imagem de Deus de Deus mesmo,
move em espiral em torno de um centro(...). embora por razões diversas das de Plotino.
Poderíamos talvez dizer(...)que o centro - em Diz ele:
si mesmo incognoscível - age como um imã “O que se pode é constatar que o
sobre o material e os processos disparatados simbolismo da totalidade psíquica coincide
do inconsciente, capturando-os pouco a pouco com a imagem divina, embora não se possa
em sua teia de cristal.” (Jung, 1994:230; XII,326) demonstrar que uma imagem divina é o próprio
Para Plotino esse centro é Deus. E ele Deus ou que o si-mesmo substitui Deus.”
define Deus como “he tou me noein riza”, a (Jung, 1982:188; IX/2,308)
‘impensável raiz da alma’ e, assim, encontrar Além da separação dos pressupostos
a si mesmo é conhecer sua origem na teológicos dos psicológicos, Jung dicotomiza
contemplação da imagem do Uno, refletida no a possível interpretação do significado do self
self através da Inteligência (Nous).(cf. Warren, em teses materialistas ou espiritualistas:
1964) “Numa interpretação materialista
“En dehors de l’Intelligence et autour poder-se-ia afirmar que o ‘centro’ nada mais é
d’elle circule l’âme; elle regarde en l’Intelligence do que aquele ponto em que a psique se torna
et, en la contemplant jusque dans son intimité, incognoscível, por ser lá que se funde com o

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IMAGEM SELF PLOTINO JUNG CONFLUÊNCIAS 33

corpo. Numa interpretação espiritualista, plotiniana afasta-se da concepção de Jung,


inversamente, afirmar-se-ia que o si-mesmo pela sua crença na divindade como um Bem
nada mais é do que o espírito, o qual anima a absoluto.
alma e o corpo, irrompendo no tempo e no Para Plotino, porém, essa discussão
espaço através desse ponto criativo.” (Jung, sobre a origem do mal, como todo
1994:233; XII,327) conhecimento discursivo, é só uma parte do
Para Jung o self pode ser compreendido processo - a parte inferior - da busca intuitiva
como a imagem da totalidade da psique, como pelo conhecimento da alma, que vai além do
seu centro e também como símbolo dessa humano:
unidade, abrangendo consciente e inconsciente “Donc il y a une double connaissance de
e o próprio eu. soi-même; ou bien l’on connaît la nature de la
O self, como o arquétipo central, seria pensée discursive de l’âme; ou bien on la
um princípio unificador da personalidade, dépasse, et l’on se connaît como être conforme
conferindo um sentido às ações do indivíduo e à l’intelligence; c’est par elle qu’on se connaît
integrando-as num todo coerente, como o non plus comme homme.” (Plotino, 1993: V,3,4)
lapis alquímico. Para ele a alma é de natureza inteligível,
Por outro lado, o self é também uma que funciona como um veículo para todos os
imago Dei, isto é, uma imagem de Deus. Essa seres, não é uma exclusividade humana. A
imagem seria um símbolo da unidade e da ordem do universo é mantida pela ação racional
transcendência do universo, a qual realiza a da alma, sendo ela o verdadeiro princípio do
síntese de todas as oposições. mundo. Ela gira ao redor de um ponto central,
Por isso, Jung recupera a formulação circularmente, e anima a natureza,
escolástica: possibilitando o movimento e, assim, criando
“‘Deus est circulus cuius centrum ubique, a physis ou o mundo natural. O Uno cria o
circunferentia vero nusquam’ [Deus é um círculo cosmos sem sair de si mesmo, através da
cujo centro está em toda parte e cuja periferia processão ou emanação (proodos), e o cosmos
não está em lugar algum].” (Jung, 1982:144; retorna ao Uno por meio da conversão ou
IX/2, 237, n.113) retração (epistrophé), num movimento perpétuo
que não possui uma gênese no tempo. (cf.
Por conduzir à síntese dos opostos, o
Brun,1991)
self carrega uma conotação tanto do bem
(Deus como encarado pelas religiões “Elle est comme le centre dans un cercle:
monoteístas), como do mal, quer dizer, a tous les rayons tirés du centre à la circonférence
divindade maligna e destruidora (o Demônio). laissent pourtant le centre immobile, bien
Devido a essa enantiodromia (relação entre qu’ils naissent de lui et en tiennent leur être; ils
opostos), o símbolo do self é em geral um participent du centre, et ce point indivisible est
quatérnio ou quaternidade. Assim, o símbolo leur origine; mais ils s’avancent au dehors,
cristão da divindade, a Trindade, complementa- bien qu’ils y restent attachés.” (Plotino, 1993:
se com o Demônio, o quarto elemento. IV,2,1)
“Coincidentia oppositorum (coincidência Jung associa essa noção às concepções
dos opostos), por meio da qual se exprime a alquímicas:
divindade do si-mesmo.” (Jung, 1985: 142;
“Na filosofia neoplatônica a alma mantém
XIV/1, 171)
uma relação nítida com a forma esférica. (...)
Nesse sentido, como anteriormente Como no Timeu de Platão, a ‘anima mundi’
observado em relação aos gnósticos, a filosofia bem como a ‘alma do corpo’ tem para os

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alquimistas a forma esférica.” (Jung, 1994:93; Para Plotino e Jung, então, a consciência
XII,109, n.41) é dependente da imaginação que, por sua vez,
Plotino incorpora essa noção platônica é direcionada pelas funções corporais e pela
na sua filosofia: atenção. O centro subjetivo do ser humano -
aquilo que denominamos eu - nada mais é que
“Comme notre corps est une partie de
uma função do imaginário. Os processos
l’univers, ainsi notre âme est une partie de
inconscientes estão fora de seu acesso e as
l’âme de l’univers”. ( Platão, Filebo:30 in Plotino,
imagens são as únicas chaves de
1993: IV,3,2). compreensão.
Para Plotino, a psyche tou pantos ou
As imagens partem de um centro - que é
anima mundi possui uma parte voltada à o centro da própria alma - que reflete o self.
contemplação (theoria) e a outra ligada à ação
Esse self é inconsciente e só é apreendido
(praxis) que é a própria natureza (physis).
pelo esforço concentrado da atenção. Mas
Mas, ao contrário de Platão, a Alma do Mundo
quanto à contemplação da imagem de Deus, é
plotiniana é a responsável pela produção do
como se o centro do eu se sobrepussesse ao
mundo sensível que transcorre no tempo, que
centro do universo e, assim, não houvesse
assim ganha um estatuto de realidade (embora mais sentido na separação entre sujeito e
no seu mais baixo nível), não sendo mera
objeto. Quem contempla é o próprio self,
fantasmagoria, pois a própria matéria espelha
através da nossa consciência, alcançando a
o ser.
“raiz da alma”. (vide Plotino,1993:VI,9,10)
Portanto, a alma é una e múltipla e Por isso, na experiência do dia a dia o
atende à demanda divina por auto-conhe- self é reduzido à manutenção do corpo,
cimento. ocupando-se da sensação e do pensamento
“Notre âme est chose divine; elle est em termos de sujeito e objeto localizados em
d’une nature différente de l’être sensible; elle um espaço e um tempo determinados, quer
est telle que l’âme universelle.” (Plotino, dizer, reduz-se a um eu (ego) que responde a
1993:V,1,10) um nome em função de sua inserção social.
Jung reconhece nessas formulações um Mas sua raiz é atemporal e, assim, o eu
eco de suas próprias teorias: subsiste apenas na phantasia (imaginação),
“A alma do mundo, portanto, que constitui como um núcleo de imagens da alma derivadas
o princípio dominante de toda a physis, possui da percepção e da memória.
uma natureza trina e, visto como para Platão Para ambos, o self é concebido segundo
o mundo é um segundo Deus, a alma do uma imago Dei, uma imagem de Deus, embora
mundo constitui uma imagem revelada e Jung tenha o cuidado de diferenciar o campo
desdobrada de Deus.” (Jung, 1983:126; XI,187) da Psicologia do da Teologia, o que é
Contudo, diversamente de Platão e impensável em Plotino.
Plotino, Jung vê nessa noção apenas uma Quanto à anima mundi, a alma do mundo,
outra imagem de totalidade e não uma embora exista uma discordância sobre a
substância ‘pensante’ ou ‘consciente’ questão de sua substancialidade, poderia ser
autônoma: interpretada como uma noção similar à de
“A alma ou o espírito do mundo, constitui inconsciente coletivo, como memória coletiva
uma projeção do inconsciente. (...) A ‘alma’ e das imagens primordiais.
o ‘espírito’, isto é, a psique em geral é, em si Certamente a base biológica e empírica
e por si, totalmente inconsciente enquanto da teoria junguiana não se coaduna ao
substância.” (Jung, 1982:133; IX,219) espiritualismo de base mística da filosofia

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 19, n. 1, p. 23-36, janeiro/abril 2002


IMAGEM SELF PLOTINO JUNG CONFLUÊNCIAS 35

plotiniana, mas os pressupostos essenciais REFERÊNCIAS


são os mesmos. Pois muitos dos argumentos
biológicos em Jung surgem como uma maneira AUBENQUE, P.(1981) Plotino e o
de conferir aos seus conceitos uma roupagem neoplatonismo. In: Châtelet, F. (org.).
mais aceitável ao empirismo dominante, não História da Filosofia 1: A filosofia pagã. Rio
sendo premissas necessárias para as suas de Janeiro: Zahar.
teorias.
BRÉHIER, E. (1977) História da Filosofia.
Assim, podería-se dizer que o campo de v.1/2. São Paulo: Mestre Jou.
estudos privilegiado da psicologia junguiana é
a análise das imagens arquetípicas e que a BRUN, J. (1981) O Neoplatonismo. Lisboa:
base de seu método é a intuição, ou seja, o Edições 70.
pensamento noético aplicado às configurações . (1991) Epicure et les
simbólicas. épicuriens. Paris: PUF.
E se a dianoia (pensamento discursivo)
presente nas Enéadas sobreviveu por tantos HILLMAN, J. (1981) Estudos de psicologia
séculos foi devido às suas grandes intuições. arquetípica. Rio de Janeiro: Achiamé.
Seus ensinamentos chegaram até nós como JACOBI, J. (1986) Complexo, arquétipo,
algo vivo. Seus reflexos estão não só nas símbolo na psicologia de C.G.Jung. São
idéias de Jung, mas também num sem número Paulo: Cultrix.
de correntes filosóficas e crenças religiosas
ou esotéricas. JUNG, C.G. (1975) Memórias, sonhos,
reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
E o conceito para o qual os dois autores
confluem é o de self, cuja abrangência .(1981) Estudos sobre psi-
ultrapassa o âmbito da análise da cologia analítica. Petrópolis: Vozes.
personalidade, envolvendo questões
epistemológicas fundamentais, pois seria .(1982) Aion. Estudos sobre
o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis:
também o centro do cosmos.
Vozes.
Dessa forma, tanto para Plotino como
para Jung, o homem privado de imagens é um .(1983) Psicologia da reli-
estranho para si mesmo, inconsciente de sua gião ocidental e oriental. Petrópolis: Vozes.
existência, incapaz de aperceber sua .(1984) A natureza da
constituição íntima. psique. Petrópolis: Vozes.
Tal asserção - paradoxalmente - vale
.(1985) Mysterium
tanto para o homem de alma embrutecida -
coniunctionis. 2v. Petrópolis: Vozes.
num sentido negativo - quanto para o sábio que
na contemplação do Absoluto, refletido em .(1986) Sincronicidade.
seu self, perde sua consciência e se une à Petrópolis: Vozes.
totalidade do cosmos - tomada no aspecto
.(1991) Tipos psicológicos.
positivo.
Petrópolis: Vozes.
Nesse último caso, a atenção (phrontis)
concentrada produz uma espécie de .(1994) Psicologia e
alquimia. Petrópolis: Vozes.
inconsciência que separa o homem superior
de suas imaginações, como uma força psíquica PETERS, F.E. (1983) Termos filosóficos
que o conduz a níveis mais elevados de gregos. Um léxico histórico. Lisboa:
conhecimento. Fundação Calouste Gulbenkian.

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 19, n. 1, p. 23-36, janeiro/abril 2002


36 R. RAFFAELLI

PLOTINO. (1993) Ennéades. 6v. Trad. Plotin, Genebra: Fondation Hardt,


E.Bréhier. Paris: Les Belles Lettres. 342-378.

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