Capacidades Estatais e Finanças Municipais
Capacidades Estatais e Finanças Municipais
ARTIGO: SOBRE DESCONEXÕES E HIATOS: UMA ANÁLISE DE CAPACIDADES ESTATAIS E FINANÇAS PÚBLICAS EM MUNICÍPIOS BRASILEIROS
PALAVRAS-CHAVE: gestão municipal, receitas próprias, despesas correntes, capacidades estatais, federalismo.
1
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
2
Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, PB, Brasil
3
Universidade Federal da Bahia, Escola de Administração, Salvador, BA, Brasil
ISSN 2236-5710 Cadernos Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, v. 23, n. 76, set./dez. 2018, 312-336
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Eduardo José Grin - Alex Bruno do Nascimento - Fernando Luiz Abrucio - Antônio Sérgio Araújo Fernandes
ABSTRACT
The municipal political, administrative and financial autonomy, enshrined in the Federal Constitution
of 1988, was based on the assumption that decentralization would expand democracy and fiscal ef-
ficiency. The article analyzes the relationship between public management and municipal fiscal per-
formance with theoretical support in the literature on state capacities, considering four dimensions
- administrative, technical, institutional and political - to support the definition of explanatory variables.
Administrative capacity assesses organizational structure - number of public employees per capita,
conducting bids and serving citizens - to perform essential public services and functions. Technical
capacity addresses the skills to formulate and manage policies and depends on the qualification of
human resources and municipal planning, for example. Institutional capacity addresses the power to
legislate on regulations that affect the behavior of social and economic actors, and influence local fis-
cal performance (eg, master plan, zoning law and improvement contribution rate). Political capacity
analyzes how the municipal government establishes channels of dialogue to deal with social demands
through public policy councils and inter-municipal consortia. Each dimension generated a hypothesis
tested by a multivariate regression with robust errors. The study contributes to the literature by high-
lighting the difficulties and limitations of state capacities in municipalities to influence the improvement
of its fiscal management. In face of economic, financial and institutional gaps, qualifying its state ca-
pacities continues to be a hiatus and a disconnection to be filled in the Brazilian Federation.
KEYWORDS: Municipal management, own source revenue, current expenditure, state capacity, feder-
alism.
RESUMEN
La autonomía política, administrativa y financiera municipal, consagrada en la Constitución Federal de
1988, se apoyó en que la descentralización ampliaría la democracia y la eficiencia fiscal. El artículo
analiza la relación entre la gestión pública y el desempeño fiscal municipal con soporte teórico en la
literatura sobre capacidades estatales, considerando cuatro dimensiones —administrativa, técnica,
institucional y política— para determinar la definición de las variables explicativas. La capacidad ad-
ministrativa evalúa la estructura organizativa —número de servidores per cápita, realizar licitaciones
y atender a los ciudadanos— para ejecutar funciones y servicios públicos esenciales. La capacidad
técnica se ocupa de las habilidades para formular y gestionar políticas y depende de la calificación
de los recursos humanos y de la planificación municipal, por ejemplo. La capacidad institucional trata
del poder para legislar sobre regulaciones que afectan el comportamiento de los actores económicos
e que influencian el desempeño fiscal local (por ejemplo, plan director, ley de zonificación urbana y
tasa de contribución de mejora). La capacidad política analiza cómo el gobierno municipal establece
canales de interlocución para lidiar con demandas sociales por medio de consejos de políticas públi-
cas y consorcios intermunicipales. Cada dimensión generó una hipótesis probada por una regresión
multivariada con errores robustos. El estudio contribuye a la literatura al evidenciar las dificultades y
limitaciones de capacidades estatales municipales para influir en la mejora de su gestión fiscal. En
vista de las vacíos económicos, financieros e institucionales municipales, calificar sus capacidades
estatales sigue siendo un hiato y una desconexión a ser completada en la Federación brasileña.
PALABRAS-CLAVE: Gestión municipal, ingresos propios, gastos corrientes, capacidades estatales,
federalismo.
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gestão fiscal. O trabalho assume a descen- que maiores níveis de capacidade estatal
tralização e a autonomia municipal como um manejada pelos governos geram mais recur-
contexto comum a todos os municípios, mas sos para definirem suas agendas com auto-
essa não é base explicativa utilizada, pois nomia perante constrangimentos sociais e
teoricamente se apoia na literatura sobre políticos. Mas essa visão geral é insuficiente,
capacidades estatais. O argumento central pois capacidade estatal precisa ser aborda-
é simples: sendo os municípios autônomos da de maneira multidimensional (Cingolani,
administrativa, política e financeiramente, 2013; Grin, 2012).
quanto mais desenvolvidas forem suas ca-
pacidades estatais, maior será sua associa- Nessa linha, o conceito possui quatro di-
ção com a performance fiscal. A pesquisa mensões: a) capacidade administrativa: es-
analisa o desempenho fiscal com base em trutura organizacional para executar funções
fatores explicativos de ordem local contro- essenciais e a prestação de serviços públi-
lado por variáveis socioeconômicas, demo- cos; b) capacidade técnica: habilidades para
gráficas, econômicas e políticas municipais formular e gerenciar políticas; c) capacidade
e transferências intergovernamentais. Essa institucional: definição de “regras do jogo”
proposição geral será testada por meio de relativas a regulação econômica e compor-
quatro hipóteses derivadas das dimensões tamento político dos atores sociais; d) capa-
do conceito de capacidade estatal. cidade política: estabelecimento de canais
legítimos e eficazes para lidar com deman-
Para tratar desse tema e analisar o objeto das sociais (Grindle, 1996). Putnam (2006)
da pesquisa, o artigo está assim organiza- também utiliza o conceito de maneira mul-
do, além desta introdução: a primeira seção tidimensional ao propor 12 indicadores para
revisa a literatura sobre capacidades esta- avaliar “capacidades institucionais”, pois “a
tais, enfatizando tratar-se de um conceito eficácia de uma instituição depende de sua
multidimensional, com ênfase para as di- capacidade de conduzir bem seus negócios
mensões administrativa/técnica e política/ internos” (p. 79).
institucional; a segunda parte aborda os
procedimentos metodológicos e o desenho Capacidade política e institucional e ca-
da pesquisa, que se apoia em uma regres- pacidade administrativa e técnica definem
são multivariada para testar quatro hipóte- as possibilidades de “poder infraestrutural”
ses; a terceira seção discute os resultados (Mann, 1984) para o Estado implementar
e analisa como variáveis independentes de suas ações junto à sociedade. Por isso, im-
capacidade estatal municipal afetam as vari- porta identificar os aspectos essenciais da
áveis dependentes relativas a gestão fiscal; efetividade burocrática, responsáveis por ge-
e a última seção apresenta as conclusões rar coesão administrativa (coerência interna)
da pesquisa. e as formas pelas quais o Estado atua junto
à sociedade (conexão externa). A capacida-
CAPACIDADES ESTATAIS: DIMENSÕES de transformadora do Estado depende desse
ESTRUTURANTES duplo modo de agir que Evans (1995) chama
de autonomia inserida.
Há uma abundante literatura argumentando
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cher (2010), recursos são necessários para cional, visando analisar as conexões entre
alcançar os objetivos das políticas públicas. Estado e atores sociais, e, por essa razão,
Governos mais capacitados nesse quesito são chamadas de “capacidades geradoras
terão mais sucesso em atingir seus fins. A de arranjos societais” (Kjaer et al., 2002). O
capacidade estatal, portanto, torna-se sinô- caráter “relacional” transcende as capacida-
nimo de expertise para governar e imple- des administrativas e burocráticas (Cingo-
mentar políticas (Cárdenas, 2010; Geddes, lani, 2013; Evans, 1995; Skowroneck, 1984;
1994). Tobelem, 1992). Portanto, seria equivocado
tomar como sinônimos capacidade adminis-
Com base no exposto, é importante desta- trativa e capacidade estatal, pois o espaço
car três fatores sobre o papel das estruturas das políticas públicas é inerentemente rela-
administrativas e técnicas do Estado: orga- cional entre Estado e sociedade (Repetto,
nizacional, processual e intelectual (Sikkink 2004). Na mesma linha, seguem Gomide e
& Wolfson, 1993; Skowroneck, 1984). O pri- Pires (2014): a dimensão política trata das
meiro mede a magnitude da administração habilidades da burocracia estatal em expan-
pública (número de servidores públicos); a dir os canais de interlocução e negociação
segunda, a infraestrutura institucional (es- com atores sociais.
pecialização técnica e institucional em ati-
vidades-chave); o terceiro enfatiza a gestão Não se trata de controle social, mas, sim, da
de pessoal (carreira, desenvolvimento de coordenação de atividades em conjunto com
perícia técnica e estabilidade de emprego). organizações civis e econômicas. Capacida-
Altos níveis na alocação desses três atribu- de política significa que governos produzem
tos garantem eficiência administrativa para políticas em cooperação com grupos sociais
o aparato estatal implementar seus objeti- organizados (Evans, 1995; Hilderbrand &
vos (Sikkink & Wolfson, 1993). Grindle, 1997; Weiss, 1998). Resultados das
políticas públicas dependem de instituições
Para este estudo, essas dimensões de aná- externas ao Estado, mas que o influenciam
lise são úteis para discutir se a autonomia fortemente. Esses arranjos de mediação ins-
administrativa consagrada na CF de 1988, titucionalizada servem para que o Estado
em um contexto de descentralização de po- cumpra sua função de filtro na relação com a
líticas, foi acompanhada da modernização sociedade (O’Donnell, 2009). Essa dimensão
da gestão municipal. Sobretudo, se “capa- é mais do que eficiência ou eficácia burocrá-
cidades centrais” como arrecadação tribu- tica e mais próxima da accountability gover-
tária própria, cadastros atualizados do ISS, namental, pois depende da vontade política
planta genérica de valores para a cobran- do Estado de promover essa dinâmica rela-
ça do IPTU e quantidade de servidores per cional, que também pode ser estendida para
capita podem ser associadas com a perfor- outros formatos de cooperação horizontal,
mance fiscal municipal. como consórcios.
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nal, que estabelece vínculos com atores não quatro hipóteses, visando testar todas as di-
estatais para ampliar a capacidade de ação mensões do conceito:
da sociedade (Bertranou, 2012). Trata-se de H1: Quanto mais fortalecidas as capacida-
unificar em um modelo analítico profundida- des administrativas, maior o desempenho
de institucional (capacidade de regulação fiscal municipal.
por meio da ação das burocracias estatais) H2: Quanto mais capacitada tecnicamente
e imersão (relações com os atores sociais) for a gestão municipal, mais resultados se-
(Weiss, 1998). rão obtidos na sua administração financeira.
H3: Municípios com maior desenvolvimen-
Nesta investigação, essas dimensões são to institucional possuem uma performance
úteis para analisar como os municípios va- mais qualificada na sua gestão fiscal.
lem-se de sua autonomia politica como ente H4: Instâncias de controle social e a parti-
federativo para definirem “regras do jogo”, cipação em consórcios intermunicipais am-
como a legislação que influencia o compor- pliam a capacidade política municipal e afe-
tamento de atores sociais (plano diretor, taxa tam positivamente sua administração fiscal.
de contribuição de melhorias e lei de zone-
amento urbano, por exemplo, que impactam Teoricamente, as quatro hipóteses expres-
sua gestão fiscal). Quanto à capacidade de sam as dimensões do conceito de capaci-
constituir arranjos institucionalizados de co- dade estatal, visando preencher uma lacuna
operação e mediação, a CF de 1988 e nor- nos estudos sobre os municípios brasileiros.
mas infraconstitucionais exigem a implan- Nesse sentido, propõe-se um modelo de
tação de arenas de pactuação com atores análise que pode ser replicado em outras
socias (como são os conselhos de políticas investigações, enfocadas em explicar como
públicas) e facultam organizar fóruns hori- fatores políticos, técnicos, administrativos
zontais de relações intergovernamentais e institucionais influenciam a performance
(como são os consórcios intermunicipais). da gestão municipal. Ademais, a análise e
mensuração das capacidades estatais de
Com base na revisão da literatura e sua as- governos subnacionais é uma área em que
sociação com as características municipais, se faz necessário introduzir avanços meto-
o argumento teórico é simples: quanto mais dológicos (Cingolani, 2013).
as localidades dispuserem de capacidades
estatais, mais qualificada será a sua ges- O Quadro 1 associa cada hipótese com a
tão fiscal. Essa proposição se desdobra em literatura e os resultados esperados.
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Escolaridade formal em três Número absoluto de Positivo (Evans & Rauch, 2014; Ged-
Escolaridade
níveis: fundamental, médio e MUNIC IBGE 2014 servidores em cada des, 1994; Marenco, 2017; Sikkink,
servidores
superior ou mais faixa de escolaridade 1991; Skowronek, 1984)
Positivo
Computadores Computadores com acesso Variável categórica
MUNIC IBGE 2014
ligados na internet total ou parcial à internet (1-todos; 2- Parte)
(Bowman & Kearney, 1988).
Procedimentos de licitação Variável categórica Positivo (Sikkink & Wolfson, 1993;
Licitação MUNIC IBGE 2014
on-line (0 e 1) Skowroneck, 1984)
Ouvidoria e siste-
Procedimentos de atendimen- Variável categórica
ma de atendimen- MUNIC IBGE 2014 Positivo (Bowman & Kearney, 1988).
to ao cidadão on-line (0 e 1)
to ao cidadão
Instrumento administrativo
Cadastro imobiliá- Variável categórica Positivo (Geddes, 1994; Grindle,
que organiza a cobrança do MUNIC IBGE 2015
rio informatizado (0 e 1) 1997)
IPTU
Instrumento administrativo
Cadastro ISS Variável categórica Positivo (Geddes, 1994; Grindle,
que organiza a cobrança do MUNI CIBGE 2015
informatizado (0 e 1) 1997)
ISS
Planta genérica Instrumento administrativo
Variável categórica Positivo (Cárdenas, 2010; Kjaer et
de valores infor- que define parâmetros da MUNIC IBGE 2015
(0 e 1) al., 2002)
matizada cobrança do IPTU
Variável categórica
Instrumento que define diretri-
Planejamento (1 = não possui, 2 =
zes sobre o o desenvolvimen- MUNIC IBGE 2015 Positivo (Grindle, 2006)
urbano com outro órgão e 3
to urbano
= órgão exclusivo)
Instrumento administrativo
Lei de Zoneamen- Variável categórica Positivo (Geddes, 1994; Grindle,
para a divisão urbana da ci- MUNIC IBGE 2015
to Urbano (0 e 1) 1996; Kocher, 2010)
dade e seus respectivos usos
Instrumento que define regras
residenciais, comerciais, in- Variável categórica Positivo (Grindle, 2006; Kjaer et al.,
Plano Diretor MUNIC IBGE 2015
dustriais e outras para o espa- (0 e 1) 2002)
ço urbano
Instrumento que regras para
projeto, licenciamento, exe- Variável categórica Positivo (Evans, Rueschmeyer, &
Código de obras MUNIC IBGE 2015
cução e manutenção de obras (0 e 1) Skcopol, 2002)
e edificações
Instrumento que define a co-
Taxa de contri- Variável categórica
ISSN 2236-5710 brança de contribuição de me- MUNIC IBGE 2015 Cadernos Gestão Pública e Cidadania, São Paulo,
Positivo (Evansv. 23,et
n. al.,
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buição (0 e 1)
lhorias dos cidadãos
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Na H1, a única variável com significância pública, mas possui efeito estatístico em um
(p < 0.01) em todos os modelos que tes- só modelo para as duas variáveis. O mesmo
tam receitas próprias e despesas correntes ocorre com a variável atendimento ao cida-
é servidores per capita, com sinal positivo, dão na página da internet (ouvid). Portanto,
tal como esperado pela teoria. Número de nem todas as ferramentas de comunicação e
computadores é relevante estatisticamente tecnologia da informação influem nos resul-
em dois modelos não completos (p < 0.05 e tados da gestão fiscal.
p < 0.10, respectivamente), o que reduz sua
relevância explicativa. Licitação por internet Os resultados estão em linha com a literatu-
licit aumenta transparência e controle, o que ra, que destaca a provisão e magnitude dos
possivelmente influi na redução da despesa servidores públicos como essenciais para
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avaliar capacidades estatais. Por outro lado, ser avaliado: educação formal de servidores
o desenvolvimento organizacional (novas públicos importa, mas modernização geren-
estruturas administrativas e recursos mate- cial não responde ao que se passa com as
riais e tecnológicos) não mostra a mesma receitas próprias e a despesa corrente em
capacidade explicativa. Na dimensão de nível local. Quanto aos valores per capita
capacidade administrativa, um hiato e uma de convênios, e com menos importância o
desconexão: a oferta de mão de obra ex- planejamento urbano, com ênfase quando
plica a performance fiscal municipal, o que ele está em uma área exclusiva, observa-
não ocorre com a utilização de dispositivos -se que, em linha com a teoria, o desen-
organizacionais e tecnológicos. Tendo a li- volvimento de perícia e habilidade técnica
teratura como referência, observa-se que, associam-se à qualidade da gestão fiscal.
no caso dos municípios brasileiros, não se Portanto, H2 confirma-se parcialmente.
pode afirmar que ambas as variáveis cami-
nhem juntas para explicar seus resultados A H3 analisa o efeito das capacidades insti-
fiscais. Assim, H1 confirma-se parcialmente. tucionais na gestão fiscal, e constata-se que
apenas a variável plandir apresenta signifi-
Quanto à H2, todos os níveis de escolari- cância estatística (p < 0.01 em todos os mo-
dade formal são significativos a 0.01 em to- delos da variável despesa corrente). Contu-
dos os modelos que testam as duas variá- do, as demais variáveis relativas ao poder de
veis independentes. Assim, algum acúmulo enforcement do governo local para regular
de educação formal, ainda que não seja de o comportamento dos atores econômicos e
formação universitária, mostra-se essencial sociais não são estatisticamente relevantes.
para explicar os resultados fiscais, o que se Há um hiato e uma desconexão explicativa
associa com a discussão da literatura sobre entre o conjunto dos instrumentos de gestão
a existência de competência técnica e exis- do espaço urbano.
tência de servidores qualificados. Cadastros
informatizados para a cobrança do IPTU e Todavia, chama atenção que plandir possua
ISS não são estatisticamente significan- sinal negativo em dois modelos que testam
tes. Valores per capita obtidos por meio de a variável receita própria, o que contraria a
convênios com o governo federal importam literatura. O que pode explicar esse resulta-
para explicar a performance das duas va- do é que mais controle sobre a utilização do
riáveis. Planejamento urbano é estatistica- território pode desestimular investimentos
mente significante apenas em dois modelos privados que trazem receitas, mas que não
para a variável despesa corrente. são permitidos pela legislação. Assim, mais
regulação não necessariamente se associa
Conforme a literatura, especialização, for- com mais ingressos próprios. A associa-
talecimento dos sistemas administrativos e ção negativa dessa variável com a despesa
orçamentários e gestão da informação são corrente é coerente: regras sobre a gestão
instrumentos centrais para qualificar as ca- urbana reduzem o custo da ação governa-
pacidades técnicas. Porém, essas variáveis mental para solucionar problemas. Aqui há
não explicam o resultado fiscal municipal, outra desconexão, pois difere a maneira
de modo que há outro hiato e desconexão a como plandir explica os resultados de recei-
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tas e despesas municipais. Com efeito, H3 ca é positiva com a variável receita própria
confirma-se parcialmente. (p<0.01), pois faz sentido associar boa per-
formance dessa variável com mais capacida-
A análise da H4 evidencia que capacidades de da economia local. No caso da despesa,
políticas importam para explicar o desem- ainda que menos relevante estatisticamente,
penho fiscal. Conselhos de políticas, como o sinal negativo indica que menos qualida-
esperado pela literatura, possuem sinal po- de educacional amplia os gastos públicos.
sitivo e são estatisticamente significantes Sobre o Índice de Gini, a desigualdade de
(p<0.01) em todos os modelos. O mesmo renda impacta as duas variáveis, pois tanto
vale para a participação em consórcios in- a obtenção de ingressos próprios e a admi-
termunicipais, mas com maior incidência nistração das despesas afetam os serviços
na variável das despesas correntes, o que públicos para atender a população.
é explicável pela economia de escala gera-
da (por exemplo, compras de medicamentos Variáveis de ordem política, ainda que não
na área da saúde). Nessa hipótese, não se sejam estatisticamente representativas, ali-
verificam hiatos e desconexões, o que refor- nham-se com a literatura (Hibbs, 1977), que
ça sua capacidade explicativa. Conforme a argumenta serem partidos de direita fiscal-
literatura, instrumentos de accountability e mente mais responsáveis, pois sua ênfase
arranjos institucionalizados de interlocução em políticas sociais é menor. Constata-se o
com atores sociais e intergovernamentais sinal positivo da variável IM=1 na associação
mostram-se robustos para explicar os resul- com ambas as variáveis. Para os partidos de
tados fiscais. Assim, H4 confirma-se total- esquerda (IM = 3), o sinal é negativo, como
mente. esperado, dado o suposto teórico de serem
menos orientados para resultados fiscais
Quanto às variáveis de controle, observam- ao priorizarem políticas de welfare state. Os
-se resultados estatisticamente importantes. dados suportam essa afirmação, pois muni-
Tamanho populacional é um proxy para eco- cipalidades governadas por partidos de es-
nomia de escala, que, como esperado pela querda possuem um pior desempenho fiscal
literatura, possui sinal positivo em todos os do que administrações de partidos de centro.
modelos. Assim, localidades maiores tanto
arrecadam mais como gastam mais. O mes- Por fim, a variável depfin mostra-se estatis-
mo argumento explicativo serve para a va- ticamente importante apenas para a despe-
riável pibpercap, o que está alinhado com sa corrente (p<0.05). Assim, transferências
as expectativas de associação positiva com federais não podem ser desconsideradas na
o desempenho fiscal: ganhos maiores com realidade fiscal dos municípios. Como espe-
extração de impostos e maior disponibilida- rado, quanto maior a dependência financei-
de de recursos para gastar. ra federal, mais positiva a associação com
as despesas correntes. Essa constatação
Em relação às variáveis saúde (mort e mães se aproxima da literatura sobre a tese da
adolescentes), não se verifica nenhum efei- “preguiça fiscal” (Peterson, 1994): maiores
to estatístico. Quanto ao ideb2015, coeren- transferências de recursos fiscais associam-
te com a literatura, a associação estatísti- -se com menos estímulos para qualificar a
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