UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
ENTREATOS: A CANÇÃO CRÍTICA NO TROPICALISMO E MANGUEBEAT
CARLOS GOMES DE OLIVEIRA FILHO
RECIFE/PE – 2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
CARLOS GOMES DE OLIVEIRA FILHO
ENTREATOS: A CANÇÃO CRÍTICA NO TROPICALISMO E MANGUEBEAT
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Comunicação da
Universidade Federal de Pernambuco
como requisito para obtenção do grau de
mestre em Comunicação.
Orientador: Prof. Dr. Jeder Silveira
Janotti Júnior
RECIFE/PE – 2016
Catalogação na fonte
Bibliotecário Jonas Lucas Vieira, CRB4-1204
O48e Oliveira Filho, Carlos Gomes de
Entreatos: a canção crítica no tropicalismo e manguebeat / Carlos
Gomes de Oliveira Filho. – Recife, 2016.
169 f.
Orientador: Jeder Silveira Janotti Junior.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco,
Centro de Artes e Comunicação. Comunicação, 2016.
Inclui referências e anexos.
1. Canção crítica. 2. Tropicalismo. 3. Manguebeat. 4. Estética. I. Janotti
Junior, Jeder Silveira (Orientador). II. Titulo.
302.23 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2016-198)
CARLOS GOMES DE OLIVEIRA FILHO
ENTREATOS: A CANÇÃO CRÍTICA NO TROPICALISMO E MANGUEBEAT
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Comunicação da
Universidade Federal de Pernambuco
como requisito para obtenção do grau de
mestre em Comunicação.
Aprovado em: 29/04/2016
Banca examinadora:
___________________________________________________
Professor Dr. Jeder Janotti Jr. (PPGCOM/UFPE) – Orientador
___________________________________________________
Professora Dra. Angela Prysthon (PPGCOM/UFPE) – Examinador
___________________________________________________
Professor Dr. Ricardo Postal (PPGL/UFPE) – Examinador
para minha mãe-mãe que se chama maria,
minha tia-mãe que se chama neide
e mia senhora francesa, desde as letras.
AGRADECIMENTOS
Prouni, Curso de Letras da Faculdade São Miguel, colegas e professores, PPGCOM-
UFPE, funcionários da secretaria, CNPq, LAMA e colegas de grupo,
Estudantes de Jornalismo da UFPE, na disciplina Comunicação e Música, colegas de
classe da pós, Laís, Ludimilla, Antonio, professores da pós, Angela, Thiago, Cristina,
Nina, PPGL e o professor da pós Ricardo Postal,
Professor e orientador deste trabalho, Jeder Janotti Jr,
Édipo, Juva, Jéssica e Victor de Almeida quando a pesquisa ainda era projeto,
Jomard e Paulo Marcondes por suas leituras.
ENTRE (ATOS)
Constatamos (sem novidade) o marasmo cultural da província. (Por que insistimos em
viver há dez anos da Guanabara e há um século de Londres? Por fidelidade
regionalista? Por defesa e amor às nossas tradições?)
(J.M.B.)
ISMOS
Eu gostaria de fazer uma canção de protestos de estima e consideração,
mas essa língua portuguesa me deixa louco rouco.
(C.V.)
BEATS
Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um
núcleo de pesquisa e produção de ideias pop.
[...]
Imagem símbolo, uma antena parabólica enfiada na lama.
(Z.Q.)
CANÇÕES CRÍTICAS
Eu, brasileiro, confesso. Sou eu um transistor?
Ê, bumba-yê-yê-boi. Bumba meu rádio.
da-da da-da-da-da
mangue mangue mangue mangue
RESUMO
A proposta da dissertação é analisar comparativamente as canções dos movimentos
tropicalismo e manguebeat. Para tanto, utilizaremos o conceito de canção crítica, no
qual a música brasileira, sobretudo a partir da bossa nova, teve papel central nos debates
culturais e políticos do país, tendo a canção o impulso de revelar discursos críticos
diante da sociedade. A canção crítica presente no tropicalismo e manguebeat pôs em
questão o establishment, a noção de tradição e vanguarda, a indústria cultural, a poética
da canção e seu efeito discursivo, a relação entre estética e política, dentre outros
subtemas. Assim, o corpus será formado a partir de canções dos álbuns Tropicália - Ou
Panis et Circencis (1968), de vários autores, Caetano Veloso (1967;1969), de Caetano
Veloso, Gilberto Gil (1968;1969), de Gilberto Gil, Grande Liquidação (1968), de Tom
Zé, Os Mutantes (1968; 1969), dos Mutantes, Gal Costa (1968), de Gal Costa, Da lama
ao caos (1994) e Afrociberdelia (1996), de Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ),
Samba esquema noise (1994) e Guentando a Ôia (1996), de mundo livre s/a. A
variedade no recorte de gêneros, como o samba, bolero, marcha, baião, bossa nova e
rock comentados criticamente pelo tropicalismo; e no manguebeat a apropriação do
maracatu, coco, ciranda, embolada, hip-hop, soul music, samba e punk rock, pretende
demonstrar como os gêneros através da canção crítica podem ser acionados de modo
diverso em seus aspectos midiáticos, estéticos e culturais.
Palavras-chave: Canção Crítica. Tropicalismo. Manguebeat. Estética.
ABSTRACT
This article develops a comparative analysis about songs of tropicalismo and
manguebeat movements. Therefore, we use the concept of critical song, in which
brazilian music, especially from the bossa nova, played a central role in the cultural and
political debates of the country, with the song the impulse to reveal critical discourses
on society. The critical song present in tropicalism and manguebeat calls into question
the establishment, the notion of tradition and vanguard, the cultural industry, the poetic
song and its discursive effect, the relationship between aesthetics and politics, among
other subtopics. The corpus will be formed from songs album: Tropicália - Ou Panis et
Circencis (1968), several authors, Caetano Veloso (1967;1969), by Caetano Veloso,
Gilberto Gil (1968;1969), by Gilberto Gil, Grande Liquidação (1968), by Tom Zé, Os
Mutantes (1968; 1969), by Mutantes, Gal Costa (1968), by Gal Costa, Da lama ao caos
(1994) and Afrociberdelia (1996), by Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ), Samba
esquema noise (1994) and Guentando a Ôia (1996), by mundo livre s/a. Thereby the
purpose of this study is a critical analysis about variety of genres in tropicalism, with
samba, bolero, marcha, baião, bossa nova and rock; and the appropriation of maracatu,
coco, embolada, hip-hop, soul music, samba and punk rock in manguebeat. We analyze
how this genres through critical song can be triggered in different ways in their media,
aesthetic and cultural aspects.
Keywords: Critical Song. Tropicalism. Manguebeat. Aesthetics.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11
2. DAS VANGUARDAS .............................................................................................. 18
2.1 ENTRE ISMOS E BEATS: A ANTROPOFAGIA QUE NOS UNE ........................................... 18
2.2 (NEM) SÓ A ANTROPOFAGIA NOS UNE........................................................................ 20
2.3 OSWALD CANIBAL: “SÓ ME INTERESSA O QUE NÃO É MEU. ....................................... 23
2.4 “TROPICÁLIA” & “MANGUEBIT”: “TUPI, OR NOT TUPI THAT IS THE QUESTION.” ...... 27
3. DAS CANÇÕES CRÍTICAS .................................................................................. 32
3.1 O LUGAR DA CANÇÃO/CRÍTICA ................................................................................. 32
3.2 CANÇÕES CRÍTICAS TROPICALISTAS (ESTÉTICA ......................................................... 36
3.3 & POLÍTICA) OU “PANIS ET CIRCENSES” .................................................................... 38
3.4 A CANÇÃO QUE SE EXPANDE ..................................................................................... 40
3.5 O COMPOSITOR CRÍTICO ........................................................................................... 42
3.6 PERFORMAR CANÇÕES............................................................................................... 44
4. DOS GÊNEROS DESLOCADOS .......................................................................... 49
4.1 DESCONSTRUINDO GÊNEROS .................................................................................... 49
4.2 SOM UNIVERSAL, SOM LOCAL ................................................................................... 55
4.3 SONORIDADES, DISTENSÕES ..................................................................................... 60
4.4 PALAVRAS CANTADAS, PALAVRAS ........................................................................... 67
5. ENTREATOS ........................................................................................................... 74
5.1 CAMINHANDO CONTRA O VENTO. ANDANDO POR ENTRE OS BECOS ............................ 75
5.2 MODERNIZAR O PASSADO. Ê, BUMBA-YÊ-YÊ-BOI ....................................................... 78
5.3 GIRA, CIRANDA. VOU DANÇAR UMA CIRANDA PRA BEBER ............................................ 84
5.4 EU TENHO FEITO SAMBA PESADO. ATENÇÃO PARA O REFRÃO. .................................... 87
5.5 DEBAIXO DA LAMA. NUM DIA DE SOL ........................................................................ 95
5.6 RIOS, PONTES & UMA LUA OVAL DA ESSO .............................................................. 102
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 113
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 117
ANEXO A ...................................................................................................................... 121
Manifesto Pau-Brasil.................................................................................................... 121
Manifesto Antropófago ................................................................................................. 124
Manifesto Tropicalista: Porque somos e não somos tropicalistas ............................... 127
II Manifesto Tropicalista: Inventário do nosso feudalismo cultural............................ 128
Caranguejos com Cérebro ........................................................................................... 130
Quanto vale uma vida ................................................................................................... 131
Texto da contracapa por Caetano Veloso (1967) ........................................................ 135
ANEXO B ...................................................................................................................... 136
1. Das vanguardas ........................................................................................................ 136
2. Das canções críticas ................................................................................................. 137
3. Dos gêneros deslocados ........................................................................................... 139
4. Entreatos................................................................................................................... 147
11
1. INTRODUÇÃO
A distância temporal e geográfica que separa a criação dos principais álbuns dos
artistas envolvidos no tropicalismo e manguebeat, por si só já seria suficiente para criar
uma primeira dificuldade para a análise comparativa. No entanto, é justamente por
aceitar tais condições históricas que a reflexão torna-se importante como
problematização não só dos movimentos culturais em si, mas mesmo das condições de
produção em torno desses artistas. Esses dois atos da música brasileira criaram fraturas
decisivas para o desenvolvimento da música produzida no país, sobretudo pelo desejo
de ruptura que as canções ensejaram perante o contexto cultural em que se inseriam.
Não se trata, nessa pesquisa, de apenas apontar semelhanças e excluir diferenças;
pelo contrário, ao analisarmos as canções de modo fragmentário, sem evidenciarmos
cronologias, análises descritivas ou apenais contextuais, reforçaremos que a articulação
entre modos de criação díspares podem nutrir chaves de reflexão para quem deseja fazer
do estudo comparativo um método importante para a compreensão da música popular ao
longo da história, sobretudo daquele vinculado às canções como objetos de análise.
Compreendendo as canções como objetos vivos, passíveis de observações acerca
dos seus aspectos de ordem externa e interna, na relação entre o contexto de produção, a
canção dentro de um álbum, dentro de um movimento, e seu aspecto interno, ou seja,
arranjo, melodia, ritmo, harmonia, procurar-se-á pôr em comparação os elementos
críticos expandidos das próprias canções, e não a propriamente analisar canção com
canção. Com esse método, acreditamos evitar binarismos e dualidades que o corpo a
corpo entre as canções do tropicalismo e manguebeat poderiam despertar.
Portanto, não interessa à pesquisa colocar a fortuna crítica sobre os movimentos
lado a lado, dar ordem cronológica aos fatos históricos e evidenciar paralelismos
superficiais. A busca será pela fricção crítica que a audição das canções proporcionará,
mas sem perder de vista o que fazem delas canções críticas, e, sobretudo, o que essas
canções significaram para a construção estética que firma os movimentos tropicalismo e
manguebeat, sem, no entanto, perder o foco do contexto cultural dos movimentos, no
intuito de evitar falsas premissas ou mesmo aceitar filiações ou relações de débito e
créditos entre os movimentos. Numa analogia com a literatura, compreendemos que:
Essa nova história literária não é uma tentativa de preservar e transmitir um
cânone ou uma tradição de pensamento; ela mantém uma relação
12
problemática e questionadora com a história e a crítica literária
(HUTCHEON, 1991, p. 125).
Portanto, entre atos históricos distintos procuraremos “problematizar” tais relações e
não limitar criticamente os movimentos através de uma linha do tempo que filiem os
movimentos sobre um mesmo espaço de criação e crítica.
Os estudos culturais sobre a canção brasileira têm se firmado plurais, assim como é
a própria natureza da música produzida no país. De tal modo, as mais diversas áreas do
conhecimento são tomadas como escopo crítico para que seja possível delinear um
caminho coerente às análises que diferentes pesquisadores empreendem no campo da
música. Relativamente novo, o conceito de canção crítica, cunhado pela pesquisadora
Santuza Cambraia Naves1, é um instrumento valioso para a compreensão do que se
tornou a canção brasileira, sobretudo a partir do final dos anos 1950, período que
compreende o início da bossa nova, com o surgimento de compositores e intérpretes
como João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes.
A partir da bossa nova, os anos 1960 eclodem com a popularização dos festivais de
música transmitidos na tevê, bem como a passagem crucial para a cultura brasileira do
movimento tropicalista, que a partir de posicionamentos profundamente críticos, pôde
refletir sobre a música produzida até então, a indústria cultural, os meios midiáticos e,
sobretudo, o momento político em que passava o país, atravessado pela ditadura militar.
A canção crítica presente nos álbuns produzidos a partir da bossa nova é produto da
reflexão advinda dos compositores e músicos que passariam a comentar e debater
questões sociais, culturais e políticas nos próprios objetos artísticos que produziam,
“[...] a música popular tornou-se, sobretudo a partir da Bossa Nova, o veículo por
excelência do debate intelectual, operando duplamente com o texto e com o contexto,
com os planos interno e externo.” (NAVES, 2010, p. 20-21). Portanto, as canções
refletiam de modo mais decisivo questões contextuais, agindo num duplo sentido
construído a partir de aspectos formais (letra, melodia, harmonia, instrumentação,
arranjo etc.) e de conteúdo (enunciado, discurso etc.). “Internamente, [...] o compositor
1
Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, 1997;
mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional – PPGAS/UFRJ, 1988; Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília – UnB,
1978. Realizou pesquisas sobre música popular e sobre o pensamento cultural no Brasil desde a década
de 1980, tendo se dedicado aos seguintes temas: música popular e modernismo; música popular na década
de 1960 (Bossa Nova, MPB e tropicalismo); projeto cultural de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e
dos construtivistas; sonoridades contemporâneas.
13
passou a atuar como crítico no próprio processo de composição; externamente, a crítica
se dirigiu às questões culturais e políticas do país.” (Idem).
Essa dupla caracterização fazia com que o entendimento das canções não pudesse se
dar por completo sem a compreensão do contexto cultural, social e político em que elas
eram produzidas; ou seja, dos autores que as produziam: os seus discursos,
posicionamentos estéticos e políticos, além da relação entre produção e consumo e de
outros aspectos extrínsecos à obra, relacionados na integração entre “arte e vida”
(idem). Produzir canções sob o crivo da censura, perseguição policial, prisões e exílios
ou autoexílios, mexia profundamente tanto no processo de composição quanto na
produção em si dos álbuns e apresentações musicais desse período.
O Chico Buarque de “A banda” não é o mesmo de “Cálice” ou “Roda viva”, como
as canções bossa-novistas do primeiro disco de Caetano Veloso e Gal Costa, Domingo
(1967), soam pálidas e descontextualizadas de seu tempo se comparadas com os álbuns
tropicalistas posteriores a 1967, os quais recheados de provocações e críticas das mais
diversas. Não só na parte discursiva das letras, mas, sobretudo, em seus aspectos
formais. Entenda-se, provocação e crítica a todo o aparato estilístico que existia em
torno dos músicos e compositores do movimento tropicalista.
Não era apenas a canção, o objeto em si – formal, sua estrutura –, que formava esse
aparato, mas a performance dos músicos no palco, cenário, figurino, capas dos discos,
escolha do léxico presente nas letras, irreverência aos cânones, entre outros
procedimentos que caracterizavam a estética do movimento tropicalista, pois não
bastava ouvir as canções, era preciso vê-las. Desse modo, com a canção e os
compositores atuando nos debates intelectuais, a música brasileira ganhava importância
vital para o entendimento da cultura produzida no país.
Da primeira pulsão crítica que se desenvolveu com mais vigor no período do
movimento tropicalista, a música brasileira encontrou, posteriormente numa outra
geração de artistas localizados à margem da indústria musical, uma proposição crítica,
estética e política passível de comparação. Se num primeiro momento a tradição pôde
ser revirada do avesso a par duma construção estética propositiva para a música
brasileira, os artistas, intelectuais e demais participantes do movimento manguebeat –
no início dos anos 1990, na cidade do Recife –, colocaram em questão muitas das
exigências críticas que eram também a vez e a voz do tropicalismo, ainda que
resguardadas as diferenças históricas e as estratégias e poéticas empreendidas em cada
um dos momentos. Como que num entreato, o intervalo entre o aparecimento do
14
tropicalismo e do manguebeat é um interessante elo para refletirmos sobre a canção
brasileira crítica como poética e estética, essa que se expanda para além dos aspectos
puramente formais.
No encontro possível das movimentações que se transformaram em movimentos,
como veremos nos dois casos, no capítulo “das vanguardas”, refletiremos como o
pensamento de Oswald de Andrade no manifesto antropófago pode ser compreendido
como elo crítico entre os dois movimentos. Assim, ao dar foco às canções,
procuraremos distender a partir de suas camadas poéticas e sonoras como recursos da
linguagem característicos da antropofagia – a colagem e a paródia – também estiveram
presentes no tropicalismo e manguebeat. No entanto, não trataremos a antropofagia
como uma filiação estática dos movimentos, visto que os artistas e seus diferentes
contextos culturais apresentaram formas também distintas de “devorar”. Portanto, ao ter
em conta essa visão conceitual, procuraremos demonstrar como as trajetórias de
construção dos movimentos são incorporadas por referências anteriores, ainda que não
de forma deliberada.
As canções (críticas) estarão presentes de forma fragmentária neste e demais
capítulos, numa tentativa de tornar a análise delas uma tarefa crítica que perpasse todas
as fases da dissertação, ou seja, desfazendo-se da divisão entre capítulos teóricos e
analíticos; no entanto, temos em vista que serão nos primeiros capítulos que o apuro
com a teoria e conceitos abordados terá maior presença, para que assim a reflexão sobre
um maior número de canções e suas temáticas, sobretudo no capítulo final, de modo
comparativo, possa ser mais precisa.
No capítulo “das canções críticas”, aprofundaremos o conceito de canção crítica, de
Santuza Cambraia Naves. Para isso, partiremos das noções de estética e política
presentes nas canções tropicalistas que desaguam justamente no período decisivo para a
música brasileira, em que “texto” (a canção) e contexto têm papéis semelhantes no jogo
de forças da cultura brasileira, sobretudo para os artistas que produziam sob a ditadura
militar brasileira.
A partir dessas reflexões, mais restritas ao caso do tropicalismo, como exemplo
originário e de maior tensão, partiremos para os aspectos performáticos presentes nessas
canções e em como elas se relacionam crítica e esteticamente com as canções do
manguebeat. Alguns casos emblemáticos de canções de ambos os movimentos irão ser
trazidos à tona para a discussão sobre essas performances da canção crítica, que é como
estamos nos reportando.
15
No capítulo “dos gêneros deslocados”, abordaremos como as canções do
tropicalismo e do manguebeat recorrem a deslocamentos dos modos mais recorrentes
em que alguns gêneros musicais estão presentes na música brasileira. De tal modo,
gêneros desprestigiados por certas noções de gosto, como o brega, a música romântica,
a jovem guarda, o rock, ou expressões culturais populares também marginalizadas,
como o maracatu, coco, embolada ou mesmo das culturas urbanas, como as do hip-hop,
foram criticamente reconstruídas pelos músicos, que com isso, desarticularam posições
estanques dentro da própria MPB, com suas ressalvas – sobretudo nos anos 1960 – ao
que era estrangeiro, ou no caso de Pernambuco, da preservação museificada de ritmos,
gêneros e criações populares, enquadradas dentro de um lugar específico, como peça
turística, ou de exposição em lugares também estanques ou festas periódicas, como as
do Carnaval ou São João, por exemplo.
O que os artistas fizeram foi justamente embaralhar as noções de gênero musical
que ocupavam espaço em algumas dessas formas de criação musical, ou como os
gêneros eram analisados e enquadrados criticamente pela imprensa. Como veremos, o
deslocamento dos gêneros encontrou espaço de reflexão e criação crítica tanto no
tropicalismo quanto no manguebeat. Portanto, será com exemplos dessas
transformações que conduziremos as análises comparativas desse capítulo.
Por fim, o capítulo “entreatos”, apesar de toda a dissertação trazer a canção
misturada pelos conceitos e teorias que envolvem a reflexão sobre canção crítica,
estética, gênero e demais abordagens, nesse capítulo, algumas das proposições
ensaiadas durante toda a pesquisa, especialmente nesta parte, serão confrontadas mais
diretamente, com vistas para reflexões sobre a construção estética dos movimentos a
partir das próprias canções, o lugar de reinvenção dos gêneros musicais, a percepção das
transformações das cidades, espaços e sua violência que desagua nas letras, assim como
a presença de um eu-lírico que caminha, anda por entre essas cidades, lugares,
contextos culturais, políticos e sociais.
Os subtítulos desse capítulo são todos construídos através das próprias canções de
ambos os movimentos, e revelam uma indicação da análise crítica dos temas que serão
tratados em cada um deles, como em: “Caminhando contra o vento. Andando por entre
os becos”, das canções “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, e “Manguetown”, de
CSNZ, ou “Rios, pontes & Uma lua oval da ESSO”, das canções “Rio, pontes &
overdrives”, de Chico Science e Zero Quatro, e “Paisagem Útil”, de Caetano; nestas
canções, vemos apresentadas as reflexões sobre os compositores como sujeitos críticos
16
a se moverem no Brasil dos anos 1960, em um contexto de ditadura militar, e na Recife
culturalmente tradicionalista, transformando-se em cosmopolita nos anos 1990, pelo
menos na ambição de um pequeno grupo de músicos, conectados com outras vozes,
vivendo essa contradição, reinventando sua “manguetown”; e, por fim, retirando da
cidade suas palavras, seu caos, sua textualidade, e trazendo para dentro da canção outras
contradições que sobrevivem entre rios ou na presença da “lua oval da ESSO”, como
paisagem real e simbólica das canções e da cultura brasileira deslocadas de um lirismo
do cancioneiro popular para uma lírica mais fragmentária, provocadora e irônica, do
tropicalismo.
Apesar das titulações deste capítulo colocarem em conexão duas canções,
naturalmente outras músicas terão espaço para a análise em cada subtítulo, já que não se
tratará de vincular a análise em: canção do tropicalismo versus canção do manguebeat,
mas distender suas miradas críticas, poéticas e estéticas como pulsão para o estudo
comparado em música.
É importante ressaltar, como base introdutória, que o conceito de canção crítica nos
pareceu importante como instrumental teórico para pormos em diálogo as canções de
ambos os movimentos, o que não impedirá de articularmos outros conceitos que
vislumbramos apropriados para lidarmos com o corpus escolhido, vista a multiplicidade
de vozes e poéticas que se insurgem das canções, mesmo que abarcadas dentro de um
escopo, ainda que maleável, mas definido naquele pertencente ao recorte temporal do
tropicalismo e manguebeat. Com a percepção de que o número de canções é bastante
abrangente, é fato que muitas delas ou não serão mencionadas nesta pesquisa, ou serão
citadas de forma superficial, tendo em vista a limitação de tempo e extensão do próprio
trabalho.
No entanto, acreditamos que as canções presentes nos capítulos representem as
referências mais singulares para a análise crítica, histórica, cultural e comparativa que o
diálogo entre as canções, poéticas e movimentações analisadas possam suscitar. Com
isso, procuraremos desenvolver reflexões acerca das relações entre estética e política, da
performance na música e do lugar do gênero musical nas canções retratadas. Essas
questões são postas a partir do arcabouço teórico tratado na pesquisa, numa tentativa de
retirar das canções os aspectos críticos mais relevantes para o que é proposto na
dissertação.
Assim sendo, a partir desse método, a história e a música do tropicalismo e
manguebeat, apesar do “entreato(s)” que os separam, ao mesmo tempo como distinção
17
entre tempos/atos distantes e como ligação inventiva entre o intervalo/entreato que
vincula esses dois atos da música brasileira, procuraremos refletir sobre como narrativas
fragmentárias podem alçar certos pontos de convergência.
A nossa intenção será o de desfazer alguns nós críticos enquanto amarramos outros
nós; logo, entre atos, ismos, beats e canções críticas, procuraremos alargar a fortuna
crítica sobre os estudos comparados de música, sobretudo aqueles vinculados a períodos
históricos distintos.
18
2. DAS VANGUARDAS
2.1 Entre ismos e beats: a antropofagia que nos une
Em sua origem, esboços de ideias, primeiras canções, o que viria a se tornar
movimento cultural – já que abrange e ultrapassa as fronteiras exclusivas da música –,
pelas ações dos principais participantes do tropicalismo e manguebeat; uma vez
rascunhadas de forma despretensiosa as ideias, quando largam das mãos dos criadores,
assumem, em muitas das vezes, formas inesperadas. O não dito – silencioso, escondido
–, pela intepretação do outro, acaba revelando aspectos que os artistas anteriormente não
enxergavam, imersos os quais estavam em seus processos de criação.
A canção “Tropicália2” é composta por Caetano Veloso sem título, mas mesmo
sem batismo, uma vez no mundo, encontra diálogo com uma exposição de mesmo nome
do artista visual Hélio Oiticica3. Antropofagia e Oswald de Andrade são “batismos” que
o compositor só viria também a conhecer posteriormente. Mas é com o artigo “A
cruzada tropicalista4”, do jornalista Nelson Motta, que pela primeira vez o ismo passa a
ser associado a “Tropicália”.
“Manguebit5” é a canção que abre o primeiro disco da banda mundo livre s/a,
composição de Fred Zero Quatro. Na canção, os versos “Manguebit – Manguebit” são
acelerados como refrão-manifesto, antecedidos pela pergunta: “Se a terra é um rádio,
qual é a música?”. Num segundo plano, o backing vocal como num coro ecoa
“Mangue” e o expande para fora da canção. Do lado de fora há a diversidade conceitual
do termo “Mangue6”, representada pelo release escrito por Zero Quatro, distribuído à
imprensa, transformado posteriormente em manifesto, com suas três partes que se
complementam; de título “Caranguejos com cérebro”, as três partes são: “Mangue - O
conceito”, “Manguetown - A cidade” e “Mangue - A cena”, com seus mangueboys e
2
In: Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Phillips, 1967.
3
Depoimento de Oiticica escrito em 4 de março de 1968: “Tropicália é a primeiríssima tentativa
consciente, objetiva, de impor uma imagem objetivamente ‘brasileira’ ao contexto atual da vanguarda e
das manifestações em geral da arte nacional. (COELHO; COHN, 2008, p. 99, grifo do autor).
4
Publicado no jornal Última Hora em 05 de fevereiro de 1968.
5
In: Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo: Banguela Records, 1994.
6
Os principais participantes do manguebeat divergem do lugar/ocasião onde Chico Science cunhou o
termo, mas concordam que “Mangue” surge primeiramente como “batida”, groove ou sonoridade que
Chico Science “encontrou” após um(a) ensaio/jam session entre as bandas Loustal (da qual ele fazia
parte) e o grupo Lamento Negro, de influência samba reggae, com presença da percussão em sua
sonoridade.
19
manguegirls, variações de uma mesma ideia. No entanto, bit transformasse em beat,
como no caso do ismo do tropicalismo, pela escrita da imprensa7.
A pretensa superficialidade da comparação dos casos ismo e beat, aproximados
pela leitura da imprensa, revelam características bem mais profundas. São estes casos
que transformaram midiaticamente as movimentações em movimentos. Como também
se transformaram textos de contracapa, releases, entrevistas etc. em outras formas de
manifesto, e por eles foram cobrados, por seus discursos (implícitos ou explícitos), os
artistas envolvidos.
Atuando estrategicamente, os músicos envolvidos com o tropicalismo8
criaram uma espécie de modus operandi, cuja regra era abrir espaço para a
renovação dos postulados críticos e criativos da canção brasileira, em
particular, e da produção cultural, em geral. Encamparam de forma eficaz o
ismo decorrente do nome “diluidor” [...] utilizando-o simultaneamente como
escudo e aríete. (COELHO, 2010, p. 11, grifos do autor).
Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado em vários pontos da
cidade um núcleo de pesquisa e produção de ideias pop. O objetivo é
engendrar um “circuito energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos
mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem
símbolo, uma antena parabólica enfiada na lama.9
O que é tropicalismo: posição de radicalidade crítica e criadora diante da
realidade brasileira hoje; vanguarda cultural como sinônimo de militância, da
instauração de novos processos criativos, da utilização da “cultura de massa”
(radio, tv, etc.) com a finalidade de desmascarar e ultrapassar o
subdesenvolvimento através da explosão de suas contradições mais agudas;
“ver” com olhos “livres”10.
Os melhores exemplos de música contemporânea inspirada nas estratégias da
Tropicália são provenientes do Recife, no Nordeste do Brasil. Nos anos 90,
Recife deu origem ao mangue beat, um movimento musical que combinava
7
“A designação manguebeat veio de uma leitura em princípio equivocada por parte da imprensa que
entendeu beat, do inglês ‘batida’, mas que se popularizou por se remeter a um rótulo usado pela indústria
fonográfica e por seus criadores terem perdido para a mídia o controle do próprio conceito a partir de sua
divulgação.” (VARGAS, 2007, p. 61, grifo do autor).
8
Vale ressaltar que o autor desenvolve uma distinção crítica entre tropicália e tropicalismo musical, a
primeira identificada pelo conceito de “tropicália” do artista visual Hélio Oiticica, e a segunda pelas ações
desenvolvidas pelos músicos Caetano, Gil, Tom Zé, Rogério Duprat, Torquato Neto, Mutantes, entre
outros; por conseguinte, uma “cultura marginal” ou “marginália” se desenvolveria posteriormente (Cf.
COELHO, 2010).
9
Primeiro manifesto “Caranguejos com Cérebro”, escrito por Fred Zero Quatro. Trecho retirado no
tópico “Mangue – a cena”, in: Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro: Sony
Music, 1994.
10
“II manifesto tropicalista: Inventário do nosso feudalismo cultural”. Publicado originalmente em
exposição individual de Raul Córdula na Oficina 154, Olinda, em 1968. São signatários Jomard Muniz de
Britto e Aristides Guimarães (PE), Alexis Gurguel (RN), Anchieta Fernandes (RN), Caetano Veloso
(BA), Carlos Antônio Aranha (PB), Celso Marconi (PE), Dailor Varela (RN), Falves da Silva (RN),
Gilberto Gil (BA), Marcus Vinícius de Andrade (PB), Moacyr Cirne (RJ) e Raul Córdula Filho (PB). In:
Clarissa Diniz; Gleyce Kelly Heitor; Paulo Marcondes Soares. (Org.). Crítica de Arte em Pernambuco:
Escritos do Século XX. 1ed. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012.
20
as formais locais do baião, da embolada e do maracatu com elementos de
heavy metal, rap, funk e reggae. (DUNN, 2009, p. 240).
Tropicália, tropicalismo, mangue, manguebit, manguebeat ou demais variações
do termo são partes do jogo midiático que se impõem nas tensões entre crítica e criação.
Movimentar-se por esses locais de fala, na medida da comparação, sugerem atritos de
vários tipos, já que em diferentes oportunidades, os próprios participantes divergem,
vide suas próprias concepções de grupo, movimento, cena musical etc., quanto ao que
os aproxima e os afasta – em ambos os casos – como movimentos culturais que
conjugam de conceitos passíveis de comparação. Assim sendo, quando nos referirmos
aos movimentos culturais usaremos as terminações ismo e beat; do outro modo,
“Tropicália” e “Manguebit” como canções emblemas das movimentações transformadas
em movimentos. Apesar que, posteriormente durante essa dissertação, apresentemos
outras canções que guardam essas características de canção-manifesto, sem serem
nomeadas com a titulação que viria a designar os movimentos por nós analisados.
De tal modo, pôr lado a lado as duas canções-manifesto citadas para refletir
sobre as concepções culturais que são intrínsecas a elas, assim, passíveis de comparação
e diálogo, mas que extrinsecamente são contaminadas por obras de origens diversas. É
desse diálogo que a antropofagia será para nós um elemento importante, sobretudo pelos
recursos da linguagem, presentes na colagem e paródia, que estão o tempo todo em
contato com a estética de ambas as canções e movimentos. Com isso em vista, optamos
por fragmentar a análise das canções “Tropicália” e “Manguebit” por todo o capítulo.
Uma referência ao modo telegráfico, fragmentário, como também se constroem essas
canções e os manifestos de Oswald de Andrade.
2.2 (nem) só a antropofagia nos une11
O tropicalismo e o manguebeat apresentam confluências que nos permitem
traçar alguns paralelos, como: “A atitude de romper com as amarras impostas por uma
visão estreita das raízes nacionais na arte, de se deixar contaminar por elementos
culturais e tecnológicos contemporâneos [...].” (VARGAS, 2007, p. 79), já que tomam
para si as mais diversas formas artísticas e as reinventam, sobretudo ao refletirem o
11
Excerto de: “Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”, que
abre o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, publicado originalmente na Revista de
Antropofagia, Ano I, No. I, em maio de 1928.
21
formato canção, o mercado, a tradição e o contexto histórico e cultural em que se
inserem: “De um lado havia o desejo de ruptura com a tradição, e de outro, a reinvenção
crítica e cultural dessa mesma tradição.” (CARVALHO; FABRÍCIO; FISCHER;
CONTIER, 2003, p. 136). Apesar da distância temporal e dos diferentes contextos
históricos, políticos e culturais que separam esses dois movimentos, essa tomada de
atitude pode ser percebida por ambos.
Segundo Andrade, o tropicalismo atua
[...] num espaço intersemiótico da criação, em que coexistem
simultaneamente diferentes linguagens (poesia e música, canto e fala, música
e gesto, poesia e dança, corpo e voz, gesto e roupa). (Idem, 2002, p. 41).
Para Herom Vargas, a inter-relação de linguagens também está presente no manguebeat,
“[...] com ecos no cinema, moda, artes plásticas, dança e literatura [...].” (Idem, 2007, p.
17). Estas canções permitem ao crítico ultrapassar os aspectos formais da canção (letra e
música) para compreender como elas interagem com outras linguagens.
Assim sendo, nesta análise, será preciso levar em conta os contextos
constitutivos em torno desses dois momentos, como atos da música brasileira, ambos
fundamentais para a compreensão da música brasileira moderna, por não estarem presos
a uma forma musical, mas abrangerem aspectos sociais, políticos e, consequentemente,
culturais; assim, mantiveram um diálogo com o campo cultural que os rodeavam e que
dele se nutriam para a criação de seus trabalhos.
Ao mesmo tempo, o clima cultural e político dos anos 1960 exigia a
retomada crítica da tradição. Neste processo, passado, presente e futuro eram
alinhavados pelos vários projetos estéticos-ideológicos que marcaram o
nascimento da MPB. (NAPOLITANO, 2007, p. 140).
O arco de tempo entre o disco-manifesto Tropicália - Ou Panis et Circencis
(1968) e os primeiros esboços dos manifestos dos articuladores do manguebeat – e a
consequente ebulição cultural que viria a ocorrer na movimentação da cena cultural
recifense – se põe como entreato de uma mesma atitude de repensar os modelos de
criação e produção em vigor e, com isso, de perceber o modo como ambos engendraram
musicalmente os gêneros musicais que tomaram como escopo criativo, o que também é
fonte indispensável para análise das canções. Muitas vezes é nos gêneros musicais que a
colagem e a paródia se fazem mais presentes.
22
Os campos de atuação de ambos os movimentos ultrapassaram possíveis limites
musicais e aglutinaram ao redor de si diferentes propostas estéticas e sonoras, imersos
num vasto caldeirão de influências, bem como diferentes tipos de arte passaram a
dialogar com eles, como as artes visuais, literatura e cinema. Por isso, concordamos
com Luiz Tatit, na afirmação de que
[...] a canção brasileira converteu-se em território livre, muito frequentado
por artistas híbridos que não se consideravam nem músicos, nem poetas, nem
cantores, mas um pouco de tudo isso e mais alguma coisa. (Idem, 2004,
p.12).
Nas letras do grupo Chico Science & Nação Zumbi, por exemplo, o diálogo se
dá com a poesia oral e a prosódia dos cantadores, emboladores, com a poesia marginal,
o rap e sua crueza, coloquialidade e violência, sobretudo nas imagens poéticas que cria.
É possível, portanto, estabelecermos conexões através das letras de compositores
do tropicalismo e do manguebeat, desde a visão da cidade em “Marginália II12”, letra de
Torquato Neto: “Aqui, o Terceiro Mundo/ Pede a bênção e vai dormir/ [...] Aqui é o fim
do mundo/ Aqui é o fim do mundo”, com “Antene-se13” , de Chico Science:
“Entulhados à beira do Capibaribe/ Na quarta pior cidade do mundo”; à passagem pela
mesma urbe em “Alegria, Alegria14” , de Caetano Veloso: “Caminhando contra o vento/
Sem lenço, sem documento/ No sol de quase dezembro/ Eu vou”, com
“Manguetown15”, de Chico Science: “Andando por entre os becos/ Andando em
coletivos/ Ninguém foge ao cheiro sujo/ Da lama da manguetown”, em que na primeira
passagem, elementos como “sol” e “vento” ironicamente iluminam e atrapalham o
caminho, enquanto a trajetória da segunda canção é impregnada pelo “cheiro sujo da
lama”, ambas as trajetórias revelam falsas liberdades, de quem trafega sob a ditadura
militar (Brasil dos anos 1960) e o caos urbano (Recife dos anos 1990). Assim como as
repetições textuais de “Sem lenço, sem documento” e “Andando por entre os becos/
Andando em coletivos” reforçam o estado de falsa liberdade proporcionada pelos dois
períodos históricos dos movimentos analisados.
12
De Gilberto Gil e Torquato Neto, in: Gilberto Gil. Gilberto Gil. Rio de Janeiro: CBD/Philipis, 1968.
13
In: Chico Science & Nação Zumbi. Da Lama ao caos. Rio de Janeiro: Sony Music, 1994.
14
In: Caetano Veloso. Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Phillips, 1967.
15
In: Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music, 1996.
23
Além dessa comparação sobre o aspecto discursivo das letras, também podemos
operar analiticamente com as canções de modo não restrito ao corpo musical, mas
abrangendo diferentes vertentes de análise; assim como
[...] a estética tropicalista opera com um conceito unificador, fazendo então
com que música, letra, arranjos, imagem artística, capas de disco, cenários e
outros elementos mantenham entre si uma correspondência estreita (NAVES,
2010, p. 97).
No manguebeat, essa abrangência para a análise é nítida na concepção das capas
dos álbuns, na identidade cultural do mangueboy, seu vocabulário, figurino, como bem
define Vargas, “Os termos diversidade e cena trazem uma implicação ainda maior. Na
prática, traduzem um potencial de abertura à hibridação estética e cultural que percorre
o Mangue”. (Idem, 2007, p.89)
Como vimos, é possível estabelecer diferentes relações estéticas entre os
movimentos. Porém, é preciso deixar claro que há também muitas diferenças entre as
obras dos artistas, em face dos contextos particulares dos mesmos, que influem de modo
decisivo em suas poéticas e nas suas posições artísticas. No entanto, tais diferenças não
impedem que possamos estabelecer uma posição crítica que aponte convergências de
ordem estética, com vistas à análise comparativa, ou seja, existir diferenças nos
movimentos não inviabiliza a comparação crítica, só denota que as produções dos
movimentos têm singularidades próprias, mesmo que atentemos para características
estéticas que em determinados pontos os aproximem, sem com isso estabelecer uma
filiação direta entre eles, ou mesmo uma relação hierarquizada entre os movimentos.
A seguir, através dos manifestos de Oswald de Andrade, mostraremos como a
questão do canibal se faz presente em ambos os movimentos, no recurso de linguagem
da colagem e paródia, caraterística da antropofagia, também presente na análise das
canções-manifesto, como estamos nos referindo às faixas “Tropicália” e “Manguebit”.
2.3 Oswald canibal: “Só me interessa o que não é meu.16
Lei do homem. Lei do antropófago.” Aforismo inquietante que desde sua
aparição pôde servir como ferramenta crítica a favor da assimilação, mais uma vez
16
O título deste tópico abre aspas com excerto do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, e fecha
as aspas da citação já no corpo do texto. O desvio do padrão foi feito para manter discursivamente título e
corpo numa mesma frase-ideia, como originalmente ela foi escrita.
24
crítica, das formas culturais aparentemente longínquas. Com o enfrentamento do
pensamento de proteção nacionalista que aflorava na cultura brasileira de início do
século XX, Oswald de Andrade ainda no Manifesto da Poesia Pau-Brasil pôde
equilibrar “a floresta e a escola17” e alinhavar a poesia de exportação advinda desse
equilíbrio, não mais importando acriticamente a “consciência enlatada18”, mas pela
proposição da “[...] língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica.19”,
ironicamente dando face à “[...] contribuição milionária de todos os erros. Como
falamos. Como somos. 20”. Segundo Benedito Nunes, no Manifesto Pau-Brasil, Oswald:
[...] tende para uma estética do equilíbrio. Ele pretende realizar, na expressão,
o mesmo acordo harmonioso que se produziria na realidade, graças a um
processo de assimilação espontânea, entre a cultura nativa e a cultura
intelectual, entre “a floresta e a escola.” (Idem, 1979, p. 33).
Com a antropofagia, ainda segundo o autor (NUNES, 1979), Oswald não chegou
a abandonar essa tentativa de conciliação entre ambas as culturas. Com o segundo
manifesto, o poeta intensifica e aprofunda – com ainda mais sabor – as ideias de
incorporação e assimilação através do rito antropofágico, como metáfora, da devoração
das tendências literárias estrangeiras, sobretudo os da vanguarda europeia, como o
Dadaísmo, Surrealismo e Futurismo, enquanto toda a deglutição gerasse como resultado
a autonomia intelectual do país. Para Boaventura (1985), acerca do processo de
montagem, a antropofagia pode ser compreendida como “[...] uma verdadeira bricolage
construída com elementos da tradição cultural brasileira e europeia, em especial da
Vanguarda histórica.” (Idem, 1985, vii, grifo da autora).
Nesses termos, tanto os artistas do tropicalismo quanto os do manguebeat
devoraram referências nacionais e estrangeiras na concepção de suas obras. Ao
realizarem isto, o fizeram de modo crítico, selecionando e reconstruindo ao seu modo as
referências que assimilavam.
Os tropicalistas se sentiam particularmente atraídos pela noção de
antropofagia de Oswald, como uma estratégia de devorar criticamente as
tecnologias e os produtos culturais estrangeiros a fim de criar uma arte, ao
mesmo tempo, local e cosmopolita. (DUNN, 2009, p. 96).
17
Excerto do Manifesto Pau-Brasil, publicado originalmente no Correio da Manhã, em 18 de março de
1924.
18
Idem.
19
Idem.
20
Idem.
25
[...] ambos os movimentos, cada um em sua época, se colocaram a favor da
atualização da música popular brasileira, por meio de algum tipo de conexão
entre alguns gêneros mais tipicamente nacionais e informações
internacionalizadas da música pop. (VARGAS, 2007, p.80, grifo do autor).
Dessa forma, “devorar” criticamente é um ponto central, linha mestra, que
norteou as ações de ambos os movimentos. No entanto, mesmo separados por várias
décadas, havia sempre, nos dois casos, uma linha de frente defensiva a combater as
ideias e os resultados (canções, discos, performance) dos atores desses movimentos.
Segundo Jomard Muniz de Britto,
[...] em todas essas manifestações culturais que já passaram pelo Brasil uma
tendência hegemônica é o nacional-popular. [...] E esse nacional-popular na
sua manifestação erudita seria o Armorial, e na sua manifestação pop seria o
manguebeat. Antes disso, o Ariano fez o Armorial para defender a cultura
brasileira desta “praga tropicalista”. (apud VARGAS, 2007, p.84).
Ainda no período do surgimento do tropicalismo até o início do manguebeat, o
Armorial, representado, principalmente, pelo escritor Ariano Suassuna21, esteve fincado
cultural e politicamente sobre Pernambuco. Assim, o choque e as tensões geradas pelo
projeto tropicalista, mais que naturalmente, apesar de seus variados contextos, também
se fariam presentes no caso Pernambucano do manguebeat. Como configura este trecho
de entrevista do músico Fred Zero Quatro:
Há no Recife uma hegemonia de certa estética regionalista, folclórica,
tradicionalista, que é totalmente sufocante. [...] A política cultural dominante
em Recife sempre foi essa, de folclorizar, de estagnar ou então de cercar pelo
erudito, como faz o Movimento Armorial. Ele se julga o proprietário da
cultura popular regional. Ninguém mais pode beber nessa fonte. (apud
VARGAS, 2007, p.60).
Aproximados pela concepção antropofágica que Ariano Suassuna repudia,
Jomard Muniz e Zero Quatro se afastam quando o tema envolve as aproximações
críticas entre o tropicalismo e o manguebeat. Um dos autores dos manifestos “Porque
somos e não somos tropicalistas” e “Inventário do nosso Feudalismo Cultural”,
publicados em 1968 com adesão de artistas ao tropicalismo, do Nordeste do país,
inclusos Caetano e Gil, Britto, em entrevista a Herom Vargas (2007), considera que o
manguebeat está abrigado pela ideia do nacional-popular que também está presente no
Armorial, com a presença conceitual do “[...] ecossistema, mangue, lama, raiz, terra,
21
O escritor foi secretário de Cultura do Estado de Pernambuco durante o governo de Miguel Arraes, de
1994 a 1998.
26
Nordeste, Pernambuco, a diversidade, a biodiversidade. [...] Porque eles são muito
políticos do ponto de vista ecológico.” (VARGAS, 2007, p.84), já o tropicalismo tinha
como proposta “[...] arrebentar, sobretudo no plano da expressão cultural, com essas
ilusões do nacional-popular [...].” (Idem).
Zero Quatro rechaça, pelo menos a princípio, comparações entre os movimentos,
pois seria o mesmo que comparar hippie com punk, apesar de uma mesma linhagem
contracultural, teriam propostas finais diferentes. No entanto, no segundo manifesto,
“Quante vale uma vida”, assinado em colaboração com Renato L., aproxima, no que é
mais distante, dado o arco de tempo, os movimentos a partir dos contextos das cidades
do Recife e Salvador:
Se o caso é especular sobre o que pode acontecer daqui em diante, o mais
oportuno seria tentar identificar na história do Pop, fatos ou situações
semelhantes que possam servir de exemplos. Em se tratando de movimentos
de cultura Pop; gerados em focos isolados; situados na periferia do mercado;
e com reconhecimento mundial, os fenômenos mais correlatos ao Mangue
Beat que se tem notícia - ainda que os estágios de desenvolvimentos sejam
distintos - são a Jamaica pós-Bob Marley e Salvador pós-tropicalismo. (apud
LIRA, 1994, p. 196)
Entre ismos e beats devorados, por seus movimentos especulares, de ambos os
lados, nas posições que assumem, concordamos com Vargas quando afirma que a
comparação pode ser “[...] medida pelo caráter experimental e antropofágico de ambos.”
(VARGAS, 2007, p.84), representado majoritariamente pelas canções e álbuns que
compuseram, como veremos nas interpretações das canções. No entanto, os tropicalistas
e os artistas do manguebeat, vide suas próprias características poéticas e estéticas, irão
devorar, ainda que criticamente, de maneiras também distintas.
27
2.4 “Tropicália” & “Manguebit”: “Tupi, or not tupi that is the question22.”
(manifesto) Eu organizo / Eu oriento / Eu inauguro
(coro) da-da da-da-da-da
(manifesto) Sou eu um transistor? / Recife é um circuito? /
O país é um chip? / Se a terra é um rádio, / qual é a música?
(coro) mangue mangue mangue mangue
23
(canibal) Somos concretistas.
Na tradição, a paródia, segundo Boaventura, “de exercício pobre, derivativo,
crítica banal, transforma-se em mecanismo influente na dinâmica da criação.” (Idem,
1985, p. 23). Na antropofagia, mais precisamente, na Revista de Antropofagia, “[...] a
paródia na revista processa-se pelo mecanismo de incorporação de textos
diversificados.” (Idem). Os autores usam de “[...] citações, colagens, antianúncios,
anticomunicados, trechos truncados)” (Idem).
O comportamento paródico da Vanguarda é resumido em duas vertentes:
primeira, naquela detectada por Bakhtin no discurso carnavalesco,
caracterizado pela profanação do objeto e pela sua renovação; segunda, no
comportamento cinicamente dessacralizante que profana o objeto apenas para
negá-lo. (Idem)
Profanar o objeto para em seguida operar sua renovação são procedimentos
característicos dos dois movimentos. Sua profanação se dá não apenas do ponto de vista
textual, mas sobretudo pela sonoridade que carregam em suas canções. Há um
componente estético-discursivo que serve como base conceitual, mas é no campo da
composição, do jogo sonoro, da manipulação criativa de sons, gêneros, arranjos,
sonoridades, instrumentos etc. que a paródia se revela, ou seja, não como
dessacralização do objeto para negá-lo, mas como reinvenção de suas bases
aparentemente fixas.
Sobre o recurso da colagem, ainda no caso da antropofagia, Boaventura
considera difícil perceber os limites entre esse procedimento e a citação, muitas vezes
eles se confundem, principalmente quando “[...] a citação é destituída do seu sentido
tradicional [...]” (ibidem, p.57). Tendo como ideia a teoria de Bakhtin, “[...] as citações,
22
Excerto do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade.
23
Epígrafe telegráfica no corpo do texto, os dois primeiros versos são de “Tropicália”, os dois seguintes
de “Manguebit”, e o último do manifesto antropófago de Oswald de Andrade.
28
mesmo quando mantidas as aspas, configuram-se como intertexto [...] (idem)”. No caso
das canções, esse intertexto é produzido principalmente no campo da sonoridade. Os
gêneros musicais ganham flexibilidade e se articulam para produzir um efeito novo,
esse efeito é o que caracteriza a estética tropicalista e a manguebeat. Não que haja um
“som” que se possa descrever e enquadrar os movimentos, mas a falta de rotulação, a
livre escolha de ingredientes, a mistura, o experimento é o que dá unidade a essa
estética, “[...] auto-deleitando-se pelas antíteses do arcaico e do moderno, do cafona e
do eletrônico.” (BRITTO, 1992, p. 62).
As canções “Tropicália” e “Manguebit” assumem a característica de manifestos,
primeiramente, por carregarem os nomes pelos quais ficaram conhecidos os
movimentos culturais, segundo, por ambas abrirem os álbuns que fazem parte dos
batismos do tropicalismo e do manguebeat. Juntam-se a Caetano Veloso (1967) e
Samba Esquema Noise (1994), respectivamente, de Caetano e mundo livre s/a, os
seguintes álbuns de 1968, Grande Liquidação, de Tom Zé e o disco-manifesto
Tropicália - Ou Panis et Circencis, de vários autores, além dos discos solos homônimos
de 1968 e 1969, de Gilberto Gil e Os Mutantes, e Gal Costa (1968), de Gal Costa, e
Caetano Veloso, de Caetano, de 1969 . Da lama ao caos (1994), de Chico Science &
Nação Zumbi, representa com o álbum do mundo livre s/a a estreia em disco do
movimento na década de 1990. Juntam-se a esses discos, Afrociberdelia (1996), de
CSNZ, e Guentando a ôia (1996), do mundo livre s/a.
Afora as canções-manifesto escolhidas para comparação, haveria a possibilidade
de muitas outras cumprirem esse papel. A escolha justamente por essas duas se dá pelo
seu caráter simbólico, como as que nomeiam o movimento. Mesmo com suas variações
que figuram entre os ismos e beats, como demonstrado anteriormente.
Tropicália é música inaugural; constitui a matriz estética do movimento.
Pressupõe um projeto interpretação cultural e um modo de construção que
são de ruptura. Em linguagem transparente, configura um painel histórico que
resulta em metaforização do Brasil. (FAVARETTO, 2007, p. 63, grifo do
autor).
A primeira canção do álbum de estreia do MLSA trata de procedimentos e
propostas do manguebeat [...] De imediato, o ouvinte de Samba Esquema
Noise entra em contato com alguns valores da cena. Mas aqui o foco é a
produção e a circulação midiáticas da música massiva. Signos da técnica e
artefatos elétricos são mobilizados em metáforas [...]. (LIMA, 2007, p. 124,
grifo da autora).
29
Há em ambas as canções o desejo de refletir sobre os espaços urbanos, os projetos de
nação, nas imagens imponentes da invenção-revolução que é Brasília, ovacionada
parodicamente por Caetano, e na cidade do Recife, sua reinvenção através da metáfora
do mangue, em contraponto ao declínio social derivado do fracasso político e cultural da
cidade nos anos 1990. Duas imagens-metáforas dos espaços. Uma projetada no país,
num contexto de ditadura militar, outra no caso particular (mas que se repete em muitas
capitais) da capital pernambucana.
No encarte do disco da mundo livre s/a, a banda faz questão de se posicionar, e
nesse trecho deixa claro que a banda/estética/canções esteve “[...] dez anos sendo
concebida e testada clandestinamente em condições precárias num lugar fétido chamado
Recife, esgoto esquecido da civilização pós-industrial”24. Apatia desfeita pela
eletricidade, potência elevada pelas novas tecnologias, informações, transmissão, bits,
rádio, país:
Sou eu um transistor?
Recife é um circuito?
O país é um chip?
Se a terra é um rádio,
qual é a música?25
A resposta explode como berro que esperou dez anos para ser dado:
“Manguebit” e se afirma pelo eco “Mangue” a ser ouvido por toda a cena musical da
cidade, do país. A eletricidade, tecnologia, se firma também pela sonoridade
predominantemente rocker, com levadas rítmicas da guitarra em ska, originária da
Jamaica, com a junção entre o rock (na designação da estética punk) com o samba, já
transformado, de Jorge Ben: sambalanço, samba reggae etc., como o título do álbum da
mundo livre s/a já evidencia como paródia de Samba Esquema Novo, lançado por Jorge
Ben em 1963. Artista com o qual o tropicalismo tem bastante ligação. Alguns críticos
consideram que Jorge fez na prática, e muito antes, o que os tropicalistas procuraram
fazer num duplo enunciado entre conceito e prática.
Caetano faz de sua canção uma resposta irônica ao ufanismo em torno do projeto
Brasília/Brasil. Repleto de colagens, sobretudo nas repetições ao final dos refrãos que
mudam em cada estrofe: “Viva a bossa-sa-sa/ Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça”, encontramos
aqui a “escola” e a “floresta” de Oswald, equilibrados entre o país moderno, da bossa
nova, e o arcaico, da palhoça. A bossa nova surge no mesmo período que Brasília,
24
In: Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo: Banguela Records, 1994.
25
(Idem).
30
ambas promessas de futuro que não se concretizam. Muitas das canções do manguebeat
denunciavam as condições de vida dos bairros periféricos da cidade, repleto de favelas,
“palhoças”. Essa dualidade, moderno/elétrico, contrasta, em ambos os casos, com o
arcaico, a “palhoça”. “dada-dada-dada” ecoa ao final da canção de Caetano como
referência ao Dadaísmo, assim fazemos o caminho de volta do tropicalismo-
Antropofagia-Dadá. O arranjo é grandiloquente, orquestrado por inúmeras idas e vindas,
repleto de suspensões. Soa parodicamente como um Hino Nacional às avessas, como as
canções do manguebeat precisaram criticamente soar como hinos oficiosos da cidade do
Recife.
No entanto, não deixa de ser irônico que a indústria cultural brasileira tenha
tornado o tropicalismo um de seus principais cânones culturais, ou como em
Pernambuco o manguebeat tenha sido institucionalizado pelo Estado, replicando suas
cores, mas relegando suas críticas.
O tropicalismo foi uma árvore de mil frutos. Digo isso sem orgulho, sem
remorso. Os frutos pecos e podres se espalharam pelo chão e ninguém melhor
instalado para sentir-lhes o fedor do que os fuçadores de raízes [...]26
O tropicalismo manguebeat foi uma árvore de mil frutos. Digo isso sem
orgulho, sem remorso. Os frutos pecos e podres se espalharam pelo chão e
ninguém melhor instalado para sentir-lhes o fedor do que os fuçadores de
raízes [...]27
Estar na indústria cultural, ou estar no Estado, como anticorpos dentro do corpo político
e estético que se constituem, foram os modos de ser do tropicalismo e manguebeat,
ainda que os “frutos pecos e podres” possam revelar intermináveis sabores, ou seja,
modos de ser/estar.
De todo modo, as canções como objetos de reflexão estão todas à disposição
para análises culturais das mais diversas. O que temos procurado nessa pesquisa é
problematizar como épocas tão distintas podem se conectar através de uma análise
comparativa do modo como artistas, movimentações e, por fim, como as canções
constituem um elo importante para a música brasileira, no caso específico das canções
advindas dos momentos-movimentos localizados nos anos 1960 e 1990.
Canções como crítica, estética, política, performance e gênero são alguns dos
nossos pontos de comparação. Como veremos, numa tentativa de estabelecer algumas
26
Texto de Caetano Veloso de junho de 1972. (apud FRANCHETTI; PÉCORA, 1981, p. 47)
27
Intervenção nossa. (Idem).
31
questões de análise, as canções permanecerão entre os capítulos, de forma fragmentária,
telegráfica, à la Oswald.
32
3. DAS CANÇÕES CRÍTICAS
3.1 O lugar da canção/crítica28
No campo da reflexão cultural sobre a música popular brasileira, chega a ser
contraditório o amplo espaço que os estudos sobre a música alcançaram nas mais
diferentes áreas acadêmica do país, se contrastarmos essa visibilidade com o
esvaziamento do debate cultural nas mídias impressas de grande circulação, sobretudo a
dos jornais impressos. Cursos de pós-graduação em Letras, Comunicação, Ciências
Sociais, Antropologia, História, entre outros, têm tido na música brasileira um vasto
campo de possibilidades para o desenvolvimento crítico. Seria mais que natural que
temas desenvolvidos nessas pesquisas nutrissem as pautas das mídias impressas. Não é
o que costuma acontecer.
A pesquisadora e antropóloga Santuza Cambraia Naves (1952-2012) foi uma das
pesquisadoras que dedicou boa parte de sua produção ao estudo da música popular no
país. A autora publicou diversos ensaios acadêmicos sobre o tema. São destaques dessa
produção a tese de doutorado Violão Azul: Modernismo e Música Popular (1998), e os
livros Da Bossa Nova à Tropicália (2001), A MPB em Discussão – Entrevistas (2006) e
Canção Popular no Brasil: a canção crítica (2010), em que a autora desenvolve o
conceito de canção crítica, segundo o qual, a partir do período da Bossa Nova, os
artistas desenvolveram suas obras articulando aspectos contextuais aos formais das
canções, tornando-se além de compositores, também intelectuais, pois diante de tal
articulação, se viam imersos nos debates culturais e políticos, mas não somente como
discurso crítico, essa “atuação” se dava, sobretudo, no próprio corpo composicional,
[...] O compositor popular passou a operar criticamente no processo de
composição, fazendo uso da metalinguagem, da intertextualidade e de outros
procedimentos que remetem a diversas formas de citação, como a paródia e o
pastiche. E ao estender a atitude crítica para além dos aspectos formais da
canção, o compositor popular tornou-se um pensador da cultura. (NAVES,
2010, p. 20).
Com isso, a percepção da autora era a de que os músicos atuavam como críticos
culturais e políticos a partir dos próprios objetos artísticos que produziam. Para os
últimos procedimentos estilísticos que caracterizam a canção crítica, os músicos do
28
Este tópico é uma ampliação do texto “Canção crítica contemporânea”, publicado na 1ª edição da
revista Outros Críticos em janeiro de 2014.
33
movimento tropicalista se valeram do pastiche, colagem e paródia nos discos que
compuseram e na forma como fundiram os gêneros musicais; de muitas maneiras, suas
atitudes implicaram em comentários críticos sobre a cultura e política da época. Tanto é
que o tropicalismo foi rejeitado por setores da esquerda e direita da sociedade. O
implícito do tropicalismo não conseguia, num primeiro momento, ser captado como
crítica, apenas como alienação (na concepção de que influenciar-se por elementos da
cultura estrangeira é “alienar-se” intelectualmente), sobretudo se colocarmos essas
canções em confronto com a “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo
Vandré, rotulada nesse período como “canção de protesto” ou “música de protesto”.
Segundo Afonso Romano de Santanna,
Graças ao clima criado pelos governos liberais a partir de 1950, com a subida
de Getúlio, especialmente no governo de João Goulart (1961-1964),
desenvolveu-se um tipo de atividade intermediária entre a arte e a política.
Esse tipo de produção continuará mesmo depois de 1964, sob outras formas,
até que em 1968 se deixe substituir pelo tropicalismo. (Idem, 1986, p. 223).
O tropicalismo surge, entre 1967 e 1968, como um projeto estético-político, ao
mesmo tempo, de cisão (contra as defesas da cultura nacionalista) e de fusão (com o
aparato tecnológico, indústria cultural, influência da música e cultura estrangeira), no
qual colocava tudo em questão, inclusive as suas próprias ações. Antes panfletária,
binária, com suas defesas e ataques duais: nacional ou estrangeiro, moderno ou cafona,
experimental ou popular; a canção brasileira encontra na estética tropicalista o lugar da
criação e da crítica convergindo entre si, enquanto a “música de protesto” reflete
somente àquele período, ingenuamente a serviço de gritos unilaterais (mesmo que
contra a ditadura), mas sem perceber as sutilezas que envolvem o contexto cultural e
política da época. De tal modo, a “música de protesto” ensaiava sacralizar a música
brasileira, o tropicalismo e sua “canção crítica” tiraram a canção de sua zona de
conforto estética e política:
[...] entre a racionalidade do mercado e o comprometimento político e entre a
experimentação formal e o apelo às massas. [...] Os músicos tropicalistas
foram únicos, contudo, ao explicitar as tendências conflitantes da
participação voltada aos interesses cívicos, do sucesso profissional e do
experimentalismo estético em um mercado emergente para a música pop.
(DUNN, 2009, p.58).
Embebidos por essa relação entre estética e política, compreendemos, ao
compararmos e diferenciarmos “música de protesto” de “canção crítica”, “[...] que a
34
própria noção de arte política (ou arte crítica) tenha que ser ressignificada para além da
‘arte engajada’, para além do panfleto, para além de modelos ‘pedagógicos’29.” É contra
esses modelos totalizantes, inclusos a noção de educar ou instruir o povo com arte
(panfletária), existente no período em algumas ações do Centro Popular de Cultura, que
“[...] tinha como missão aumentar a consciência política por meio de atividades
educativas e culturais voltadas para as massas” (DUNN, 2009, p. 20), que os músicos
tropicalistas se insurgiram no período em que a música brasileira vivia o impasse entre
as conquistas estéticas da bossa nova (também crítica, sobretudo no plano formal) e a
valorização do nacional-popular contra a influência estrangeira.
Ainda anterior ao tropicalismo, a pesquisadora Santuza Cambraia Naves identificou
na bossa nova a eclosão para o que denominaria como canção crítica, tendo na tríade
Jobim-Moraes-Gilberto, cada qual à sua maneira, um tipo de reflexão sobre a música
popular produzida naquele momento. Tom Jobim para as harmonias, pondo a canção
brasileira num patamar até então nunca alcançado, em quando se dá o encontro
equidistante entre a erudição e o popular; Vinicius de Moraes dando à letra o tom
coloquial, na melodia que se faz sem excessos, de quem canta no tom da conversa,
distante da grandiloquência dos cantores de rádio de outrora, mas com uma poética
simples e precisa; João Gilberto, por sua vez, fazendo uma releitura particular do samba,
firmou uma estética a que se convencionou chamar de bossa nova, não como
movimento musical/cultural, mas como estilo musical. Tocar bossa nova era, sobretudo,
tocar à maneira de João Gilberto.
João Gilberto incorporou repertórios tradicionais, recriando, rítmica e
harmonicamente, sambas de diversos autores por meio da fusão com o jazz.
Por outro lado, ele rompeu com os gêneros associados ao excesso em várias
de suas manifestações na música popular, como o "exibicionismo operístico"
(expressão cunhada por Augusto de Campos, 1968) e os arranjos que
recorriam a orquestrações grandiosas.30
Essas conquistas se deram, sobretudo no plano formal, nos aspectos intrínsecos ao
objeto-canção.
Na obra de Naves, a gênese da canção brasileira vai da modinha ao samba, a canção
crítica da bossa nova ao tropicalismo, com suas quebras, reconstruções e reaberturas
29
PRYSTHON, Angela. A exceção e a regra, a exceção na regra. Apontamentos sobre estética e
política. Revista Outros Críticos, ed. 06, dezembro de 2014.
30
NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália: contenção e excesso na música popular.
Rev. bras. Ci. Soc. vol.15 n.43 São Paulo, 2000.
35
para o excesso. Mas a canção crítica continua pelas demais décadas. Mesmo a se pensar
em fim da canção, ou da canção como a concebemos culturalmente; diante desse
movimento, o compositor passou a ser também um pensador de sua época, a refletir
sobre a música, os contextos culturais que a envolvem, bem como reflexões culturais e
políticas de cada período, principalmente nos anos de chumbo, articulando, como a
autora afirmava, “arte e vida.” (NAVES, 2010, p. 20).
De fato, é notório que palavras como censura, debate, provocação, crítica, tradição,
modernidade, fizessem parte do vocabulário dos músicos dos anos de 1960-70, como
pontos de contestação. Se àquela altura o debate cultural tinha impulso decisivo nos
discos, e em alguns jornais, revistas e demais publicações da época, tendo a tevê e rádio
papéis de destaque, vide os festivais da canção e alguns programas musicais; hoje, é
concedido ao leitor comum (não acadêmico) o agendamento pautado pelo excesso de
informações de releases, escassez de caracteres e pela falta de ousadia nas pautas. Com
isso, há, cada vez mais, uma separação entre nichos de leitores.
Diante desse panorama, vale a pergunta: A quem interessa que os estudos
acadêmicos fiquem restritos somente às academias? Que o que sobre para os leitores de
jornais e revistas de grande circulação sejam retalhos de reflexões? Mesmo a internet,
em muitos casos, apenas reproduz os modelos da mídia massiva. Em todo caso, as
exceções não minimizam os problemas da regra.
Dado o contraditório da extensa produção acadêmica que não chega às ruas, dos
jornalistas reféns de uma política editorial predatória, refletir sobre uma canção crítica
evocada da obra de artistas contemporâneos pode funcionar como uma nova forma de
reflexão cultural. Compositores como críticos no processo de composição, na
disseminação de sua obra, em cada letra ou fusão rítmica, não seria o pior dos mundos
se isso ocorresse com maior frequência. De todo modo, acompanhar os músicos
contemporâneos que se utilizam de procedimentos criativos que dialogam com o
conceito de canção crítica não é tarefa das mais fáceis, pois escorregadia, passível de
erros ou precipitações, como é, aliás, quase toda a reflexão sobre o contemporâneo, por
isso mesmo fascinante.
Com essas ressalvas em conta, analisaremos a seguir como a estética das canções
críticas do tropicalismo se estabelecem como crítica, elas mesmas atuando como obras
de arte nessa dupla enunciação entre criação e crítica.
36
3.2 Canções críticas tropicalistas (estética31
O número de canções que podem ser atribuídas como tropicalistas é bastante
variado e de quantidade imprecisa. Não há consenso entre pesquisadores ou mesmo dos
próprios artistas onde começa e termina o tropicalismo. Como evento programático do
movimento, o disco-manifesto Tropicália ou panis et circencis (1968) é o que aglutina,
como síntese, o que os artistas criticamente debatiam e produziam sobre a música
brasileira enquanto movimento tropicalista. O álbum conta com a participação de
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa, Os Mutantes, Nara Leão, o maestro e
arranjador Rogério Duprat, e os poetas e letristas Torquato Neto e Capinam. Segundo
Favaretto (2007), a estética tropicalista
[...] se singulariza por integrar sua forma e apresentação recursos não
musicais – basicamente a mise en scène e efeitos eletrônicos (microfone, alta-
fidelidade, diversidade de canais de gravação, sonoridades estranhas) que
ampliavam as possibilidades do arranjo, vocalização, apresentação. (idem,
pp. 32-33, grifo do autor).
A integração entre aspectos formais (da canção), visuais e performáticos caracterizaram
as primeiras aparições dos tropicalistas nos programas de auditório, festivais, entrevistas
e posteriormente em suas apresentações. A presença de Caetano Veloso com um grupo
argentino de iê-iê-iê – como eram conhecidas as bandas de música pop com influência
anglo-americana – portando guitarra elétrica, por si só já era uma afronta ao
establishment cultural da época, na edição de 1967 do festival de música da Record.
Assim como a apresentação de Gilberto Gil, no mesmo festival, com o grupo de rock Os
Mutantes. Ao mesmo tempo, em que a presença da sonoridade elétrica se impunha
como estética para as canções dos músicos tropicalistas, também se afirmava como
atitude crítica e política perante o universo intelectual, sobretudo da esquerda, na defesa
da “verdadeira música brasileira”, contra a importação cultural. Esse duplo, estético e
político, esteve presente a todo o momento na trajetória dos músicos do tropicalismo.
De tal modo, o tropicalismo assumiu os lugares da tradição para num mesmo
golpe possui-lo e despedaçá-lo. Incorporou à sua estética os comuns partilhados pelos
músicos de sua geração, mas desfez a par de pequenas rupturas as dicotomias de bom
gosto e mau gosto, belo e grotesco, refinado e cafona, nacional e internacional, protesto
31
Para manter em diálogo as noções de estética & política como unidade, entre os tópicos 2.2. e 2.3.
escolhemos quebrar formalmente a norma, deixando o sinal de parênteses em aberto, que se fechará
justamente no título do tópico seguinte.
37
e alienação, para criar um lugar exclusivo, partilhado pelos músicos que se sentiam
atraídos por essas posições críticas, em que canções não cabem apenas na forma
acabada de seu corpo, ou como meros instrumentos panfletários, mas como a música se
expande para além de seus limites ou fronteiras estéticas definidas, até então, pela
música popular brasileira. Com isso, “o movimento faz questão de desconstruir a
oposição mais fetichizada de todas as existentes no período: a que se faz entre o
‘nacional’ e ‘autêntico’, de um lado, e o ‘alienígena’ e ‘descaracterizador’, de outro.”32.
Como estética, “o tropicalismo efetuou a síntese de música e poesia, relação que
vinha se fazendo desde o modernismo, embora raramente conseguida, pois a ênfase
recaía ora sobre o texto ora sobre a melodia” (FAVARETTO, 2007, p. 32), inclusive
com adesão crítica do poeta concretista Augusto de Campos, que considerava que os
músicos
[...] deglutem, antropofagicamente, a informação do mais radical inovador da
Bossa Nova. E voltam a pôr em xeque e em choque toda a tradição musical
brasileira, bossa-nova inclusive, em confronto com os novos dados do
contexto universal. (Idem, 2015, p.56).
Com isso, deglutir ao modo oswaldiano era característica cerne para a construção da
linguagem que viria a se estabelecer nas canções tropicalistas. Mas é preciso deixar
claro que não havia homogeneidade formal de uma determinada canção como
tropicalista. Assim, “corpo, voz, roupa, letra, dança e música tornaram-se códigos,
assimilados na canção tropicalista, cuja introdução foi tão eficaz no Brasil que se tornou
uma matriz de criação para os compositores que surgiram dessa época.”
(FAVARETTO, 2007, p. 35).
Por esse tipo de construção estética na música popular, segundo Augusto de
Campos, os tropicalistas resultaram numa “[...] música ao mesmo tempo de ‘produção e
consumo’, ou de ‘produssumo’ como diria Décio Pignatari.” (Idem, 2015, p.56), e dessa
maneira foram além e incomodaram, de maneira mais profunda e crítica, “[...] mais do
que muitos protestistas ostensivos, logo assimilados pelo Sistema.” (Idem), como
comparamos, anteriormente, na separação crítica entre a arte panfletária (música de
protesto) e a arte crítica (canção crítica).
32
NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália: contenção e excesso na música popular.
Rev. bras. Ci. Soc. vol.15. n.43. São Paulo, 2000.
38
3.3 & política) ou “Panis et circenses”
A estética crítica e política do tropicalismo encontra nas intervenções artísticas
do grupo Os Mutantes, intérpretes da faixa “Panis et circenses”, de Caetano e Gil,
presente no disco-manifesto dos tropicalistas, uma dobra crítica. Ao mesmo tempo em
que os Mutantes partilham do mesmo espaço crítico criado pelas obras e compositores
do movimento tropicalista, sobretudo pela participação dos músicos no disco-manifesto
já citado e em colaboração em canções como “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil, ou
“Eles”, de Caetano Veloso, ambas lançadas nos discos solos desses compositores,
também inventam um lugar exclusivo no ambiente efervescente do final dos anos 1960,
para a cultura brasileira.
Canções como a própria “Panis et Circenses”, também lançada no disco solo dos
Mutantes, e “Baby”, de Caetano Veloso, quando interpretadas pelo grupo ganham a
condição de co-autoria, tamanha é a dose de invenção a que os músicos empreendem
em interpretar essas músicas, por já, bastante caracterizadas como “canções
tropicalistas”. Esse lugar exclusivo, presente nos álbuns solos que o grupo lançou no
mesmo período do tropicalismo, revela que mesmo dentro desse movimento, os
Mutantes foram capazes de realizar com suas intepretações uma espécie de crítica da
crítica, ao mesmo tempo de partilha e de exclusividade. Essa condição é uma das
características que tornam o movimento tropicalista heterogêneo nas obras e propostas
estéticas desenvolvidas durante o processo de construção do movimento. Olhar mais de
perto para os Mutantes é perceber esse jogo de contrários, ora conscientes, como
estética, conceito a ser defendido, ora inconsciente, revelado do processo criativo a que
ambos os músicos estavam envolvidos, com referências do tropicalismo, rock inglês,
música erudita, vanguarda artística e outras artes.
Na canção “Panis et circenses”, no álbum de estreia dos Mutantes de 1968, a
abertura musical do programa “Repórter Esso” é inserida na gravação, diferentemente
da mesma gravação, no disco-manifesto do grupo tropicalista. Com a inserção, os
Mutantes ironicamente estabelecem um comentário crítico ao lugar que a canção já
ocupava, como representação da imobilidade política de parte da sociedade em plena
ditadura militar, das “[...] pessoas na sala de jantar”, que “são ocupadas em nascer e
morrer”, como enfatiza a letra da canção. A chamada de abertura ao invés de noticiar o
comum, o diário, de uma família na “sala de jantar”, tem sua expectativa quebrada pela
sonoridade dos Mutantes. Eles próprios como ocupantes dessa simbólica “sala de
39
jantar”. A colagem que coloca o ouvinte nessa “casa brasileira” volta justamente ao
final da canção, com barulhos de talheres, vozes, um som musical (e bastante usual) de
valsa ao fundo, pequenas risadas e comentários triviais. Com os Mutantes, há o
encontro dessas duas colagens, ao passo que no disco-manifesto, somente a última
colagem havia sido produzida. A ideia de dobra crítica ou crítica da crítica pode ser
compreendida nesse tipo de abordagem, já que acrescenta à música uma nova camada
que dialoga com a gravação anterior.
O arranjo da canção mantém o lugar estético dos Mutantes, no que conhecemos
do encontro entre Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, mas cresce na contribuição
do maestro Rogério Duprat, com os arranjos orquestrais em que concebe a faixa. Com
base estética do rock, sobretudo o inglês, Beatles como principal referência,
O rock, porém, é apenas um de toda uma variedade de elementos díspares. Os
tropicalistas lançam mão dos mais diversos textos e — o que é mais
importante — os trabalham através de um exercício de metalinguagem, por
meio da paródia ou do pastiche. Mas, mesmo valendo-se de procedimentos
parodísticos e, portanto, críticos, não se trata de uma crítica corrosiva; a
tradição costuma ser tratada com carinho: com "amor e humor", como diria
Oswald de Andrade.33
A faixa, o modo como é concebido o seu arranjo, revela uma aproximação com o álbum
Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, lançado um ano antes dos
Mutantes. A quebra de expectativa gerada pelo confronto entre gêneros musicais
aparentemente díspares, orquestrações guiadas pela síntese guitarra, baixo e bateria, o
tratamento vocal, suas várias vozes em convergência, combinam o interesse do grupo
em dizer suas canções em diálogo com essas propostas inovadoras da música pop do
final dos anos 1960.
Fazer da estética a massa a ser moldada de diferentes maneiras para a digestão e
deglutição, ao espírito da antropofagia de Oswald de Andrade, transformou a política
pelas cores e gestos circenses num emaranhado sensível e heterogêneo de lugares por
onde a música dos tropicalistas caminhou. Os Mutantes, com suas canções e suas
canções apropriadas de outrem, souberam muito bem captar o espírito da época e
resolver estética e politicamente o que a “arte engajada” apenas engatinhou em suas
pretensões, para uma arte realmente crítica. Os Mutantes, assim como os demais
33
NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália: contenção e excesso na música popular.
Rev. bras. Ci. Soc. vol.15. n.43. São Paulo, 2000.
40
tropicalistas, afirmaram-se críticos e anárquicos numa mesma medida. Pão como
estética e circo como política.
A seguir, procuraremos demonstrar, através da relação mais próxima entre as
canções tropicalistas e do manguebeat, como ambas se expandem para fora do lugar
formal da “canção”, aquela preconcebida entre a junção de letra e música, mas que se
firma como performatizada por variadas desconstruções.
3.4 A canção que se expande
Canções carregam em seu corpo uma relação dialógica entre letra e música. Mas
uma aparente divisão entre a palavra e o som se desfaz ao passo que refletimos como
essa relação está intrinsecamente ligada. Ser canção pressupõe essa relação. Há um
jogo, um ir e vir, entre o que se forma na força discursiva das palavras, seus significados
construídos ao longo do tempo, ou como aqueles que são desfeitos e reconstruídos com
o intuito de tirar a palavra de seu habitat natural, cotidiano, ou pela natureza dos sons
que se incorporam às palavras.
São modos de incorporação, a melodia, harmonia, timbres etc. No entanto, há um
caráter extrínseco que expande a canção para além de seus aspectos estritamente
formais. A composição se desfaz de suas amarras, de seus códigos – os consagrados
pelas formas rígidas de uma partitura ou melodia – e se agarra sem pudor ao modo
como a intérprete a enxerga no mundo.
A canção natural se desfaz na dicção acelerada, balanço de braços, cores, olhos
vivos de Carmem Miranda na tela do cinema. A canção natural é domada pela precisão
de João Gilberto, sentado, invisível, “homem curvado sobre o violão, como se fosse
foice34”. É transformada pelo violão e voz irregulares, por isso mesmo impactantes, de
Nelson Cavaquinho e Cartola; ouvi-los é também vê-los ao redor doutras vozes que
fizeram por revelar um lugar “Rio de Janeiro” a partir de um modo singular de criar
melodias e harmonias. Estes sambas. Modos de cantar inventam cidades, decerto.
Mais tarde, jovens muito rapidamente ocupam o eixo da nova indústria musical da
canção brasileira e provocam, até então, de forma pálida, a cisão entre o nacional e o
internacional. Fronteiras são postas como defesa da cultura brasileira. De um lado, o
violão domesticado – lição mal compreendida pela segunda geração da bossa nova – e
34
Verso do poeta Wallace Stevens, em “The Man with the Blue Guitar” (1937). Tradução de Paulo
Henriques Britto.
41
do outro, os não menos domesticados da Jovem Guarda. Em ambos os casos, as canções
permanecem em expansão, o opaco formal dos violões contrasta com o brilho
comportado das guitarras. MPB e Jovem Guarda como guardiões de uma mesma forma
de domesticar a cultura. “Contra todos os importadores de consciência enlatada35”.
Lição antropofágica que passa distante de ambas as visões.
Mas de outro modo, a expansão da canção brasileira, no final dos anos 1960,
entra em confronto com essas visões dualistas da cultura brasileira. Nesse contexto, o
tropicalismo emerge criticamente amparado conceitualmente por Oswald de Andrade,
José Celso Martinez Corrêa, Hélio Oiticica, Glauber Rocha, Augusto de Campos, entre
outros artistas e suas formas de produção cultural, ambas postas em tensão. Também
cabe Carmen Miranda, Luiz Gonzaga e a estilização do Nordeste, o brega, cafona, os
cantores e cantoras de rádio. Mas tendo João Gilberto como filtro estético e crítico.
Cabem as contribuições da música erudita de São Paulo, como no diálogo entre o
maestro Rogério Duprat e a banda Os Mutantes. Achado estético que desconstruíra boa
parte do repertório comportado do cancioneiro brasileiro, com isso,
[...] a estética tropicalista recorre muito a elementos visuais e performáticos e
as diversas formas de citação, como a paródia e o pastiche, sobretudo através
dos arranjos. (NAVES, 2010, p. 96).
Assim, é possível continuar seguindo a cronologia da canção que se espalha para
além de seus aspectos formais. Do tropicalismo ao manguebeat nos pomos num
entreato. De tal modo, pomos em contato as canções – seus aspectos críticos,
performáticos e de linguagem – desses movimentos, por compreendermos que, em
ambos os casos, há um paralelo fortemente ligado ao modo como esteticamente os
artistas propuseram a pensar a canção brasileira para além das fronteiras do
local/nacional, ou como performar canções é o lugar de reinvenção e releitura crítica e
criativa da canção popular brasileira que se expande para além de suas formas
canonizadas.
Com isso, será importante refletirmos como a partir dos conceitos de canção
crítica – e na sua variação para compositor crítico – e performance as canções de ambos
os movimentos dialogam esteticamente na construção de um discursivo reflexivo sobre
a música brasileira.
35
Excerto do “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade, publicado originalmente na Revista de
Antropofagia, Ano I, No. I, em maio de 1928.
42
3.5 O compositor crítico
A canção “Samba Esquema Noise36”, do homônimo álbum da mundo livre s/a,
de 1994, é um balbucio sobre a felicidade carregada de lances de dados37 e dedilhados
de violão. O canto é falado, a letra é discurso e ironia, imperativa e contraditória. Ao
redor da voz e violão, sons desajustados, ruidosos, barulhos e barulhos, criam uma
textura por onde um piano passeia com uma melodia usual.
A faixa é o outro lado do espelho agressivo, imponente e transgressor da canção
“Manguebit” (“dá pra entender?”38), que ao contrário dessa, é a faixa que abre o álbum,
ainda mais simbólica, por carregar no título a nomeação que viria ter o movimento
cultural manguebeat.
Enquanto “Manguebit” abre-se como canção-manifesto, a outra é um pesar do
mundo e em (quase) nada significa ou se caracteriza pelo “mangue” ou “estética
mangue”, entendida, de modo geral, pela pluralidade crítica de sonoridades, poéticas e
discursos que dialogavam o local e o internacional. A par disso, a mundo livre s/a
escolhe despedir-se em seu álbum de estreia com essa “suíte” destrambelhada. Com a
máxima, explorar ou deixar-se ser explorado, cantam:
Esta é a única e
verdadeira moral do Mundo
Livre (dá pra entender?)39
Se a canção “Livre iniciativa”, do mesmo álbum, já bradava o grito-manifesto
‘samba esquema noise’, na voz do compositor Fred Zero Quatro, com sua sonoridade
híbrida de cavaquinho, guitarras e percussão, de uma música brasileira ao mesmo tempo
samba e punk; o ruído melódico e narrativo que cala o primeiro disco da banda distorce
o lugar comum (e crítico) do que deveria se afirmar como “mangue”.
Por isso, nem sempre será possível dar conta das nuances criativas e poéticas
que envolvem a composição e performatividade das canções dos principais discos do
período do manguebeat, compreendidos entre 1994 e 1996, quando foram lançados os
36
De Zero Quatro, in: Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo: Banguela Records, 1994.
37
“A felicidade (como a morte)/ é como um concurso milionário da TV./ Existe um infinito globo/ Com
bilhões de bolinhas/ Girando em algum lugar./ A cada instante uma deusa/ retira um número, que pode/
ser o meu.” (excerto da letra de “Samba Esquema Noise” )
38
“Samba esquema noise”, In: Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo: Banguela Records,
1994.
39
(Idem).
43
discos da mundo livre s/a e de CSNZ, sem contar os artistas “ao redor do mangue”,
como a Mestre Ambrósio, ao mesmo tempo dentro e fora do “mangue”, como conceito
estético.
Mesmo dentro dos álbuns e suas palavras-conceito como ‘recife’, ‘cidade’,
‘satélite’, ‘aratu’, ‘caranguejo’, ‘lama’, ‘mangue’, ‘rio’, ‘ponte’, ‘tecnologia’, ‘bit’,
‘samba’, ‘embolada’, ‘maracatu’, algumas canções assumem um outro aspecto crítico
dentro da própria noção de crítica que permeia as canções do manguebeat. De dentro
das palavras-chaves que simbolizavam e permeavam o imaginário poético do
manguebeat, havia sempre canções que escapavam a certas condições, máscaras, cercas.
Construir cercas e deixar espaços abertos é um pouco a chave para se entender como
entrar e sair de movimentos culturais deva ser sempre esse lugar de ação e contração.
Justamente por essa condição, esse jogo de aprisionamento e fuga, é que
explorar as possibilidades estéticas que aproximam e distanciam os artistas do
manguebeat, como foram os do tropicalismo, mostra-se extremamente instigante para
quem deseja sair dos lugares binários de análise e reflexão sobre música. Visto que
imaginar estéticas ‘mangue’ e ‘tropicalistas’ como lugares estanques, não fará jus
justamente ao que essas movimentações, posteriormente categorizadas pela crítica como
movimentos culturais, trouxeram de ruptura e invenção.
Sobre o principal compositor da mundo livre s/a, a pesquisadora Santuza Cambraia
Naves considera que: “A plena consciência que Fred mostra com relação às suas
escolhas o coloca na condição de compositor crítico.” (NAVES, 2010, p. 148, grifo
nosso). Assim como o conceito de canção crítica, também se torna passível expandi-lo
para a noção de compositor crítico.
Portanto, não seria possível ouvir Samba Esquema Noise sem ter em conta o
contexto de produção em que o álbum foi feito e lançado, bem como perceber que as
canções críticas oriundas deste disco trazem componentes de contestação, provocação e
tensão desde o objeto-canção, o álbum como lugar que abriga esses objetos e o contexto
cultural e político da cidade do Recife e do cenário brasileiro para a música popular e
pop em meados dos anos 1990. Todas essas questões foram postas em reflexão pelos
músicos e artistas envolvidos nos lançamentos dos principais trabalhos do manguebeat.
Assim como está presente no período tropicalista com o uso da guitarra, de gêneros
menosprezados ou considerados cafonas pela crítica e público (ou mesmo por músicos
da época), as alfaias postas ao lado dos instrumentos elétricos (guitarra e baixo) do
grupo CSNZ, ou ainda o cavaquinho ruidoso empunhado violentamente por Fred Zero
44
Quatro, simbolizavam um lugar não apenas de possibilidade sonora, mas também como
posicionamento político e estético dentro do contexto de estagnação da cultura
produzida em Pernambuco, sobretudo pelo desprezo aos artistas do interior do estado,
folclorizados e à margem do mercado de música, pelo menos aquele mercado em que os
músicos do manguebeat começariam a circular,
[...] é importante observar que os instrumentos musicais utilizados atuam
também como alegorias: não é só a sonoridade específica do instrumento que
é relevante, mas também o que ele significa e representa no contexto em que
é utilizado. (NAVES, 2010, p. 97).
Com isso, observamos que a canção crítica parte de um aspecto interno, ou seja, do
processo de composição, na escolha de instrumentos, sonoridades, equipamentos,
timbres, texturas, modos de gravação, mixagem, gêneros musicais etc. e de aspectos
externos às canções, dado que portar guitarras no final dos anos 1960, no contexto
brasileiro, e retomar a gêneros e instrumentos da cultura popular em diálogo com
formas não habituais a esses gêneros, como o rock, hip-hop, música eletrônica, para a
cultura pernambucana, colocam os artistas de ambas as movimentações numa postura de
reflexão e embate frente às posições conservadoras, mesmo que separados por tantos
anos.
A canção produzida pela mundo livre s/a e CSNZ, por exemplo, se expande para
além do próprio objeto e são críticas em todas as suas etapas de produção, assim como:
[...] a canção tropicalista não é mais o artefato completo, totalmente contido
na unidade música-letra, que fora a canção bossa-nova, pois ela só se
completa com elementos externos – arranjo, interpretação, até mesmo capa
de disco” (NAVES, 2010, p. 98).
É com essa reflexão que apresentaremos, no último tópico deste capítulo, como os
artistas do tropicalismo e manguebeat performaram canções através de seus manuseios
críticos sobre a linguagem das obras que compuseram.
3.6 Performar canções
Empreender uma escrita reflexiva sobre as canções dos álbuns primordiais do
tropicalismo e manguebeat, como vimos, requer explorar diferentes nuances, arquear
lugares e modos de escuta e percepção que possam dar conta de todo o aparato estético
45
que circunda essas canções. Distender letras, melodias, ritmos, gêneros, performances,
poéticas, visualidades, discursos são sempre pontos de partida possíveis, vide a
variedade de recortes críticos que são passíveis de análise. Um desdobramento dessa
condição crítica, em nosso caso, é duplamente complexo, visto que a nossa análise se
dará pelo caminho da comparação.
Como vimos mostrando, há diferentes formas de agenciarmos caminhos para a
reflexão das canções dos dois movimentos; por momento, escolhemos destrinchar sobre
como a performance da linguagem (das canções), ou as canções performatizadas,
vislumbram um lugar de descoberta e invenção, proeminente crítica, para a canção
brasileira.
A noção de performance vinculada primordialmente ao teatro e artes visuais,
tem na música o lugar cênico do palco como proposição imediata, estreitamente ligada
às primeiras noções sobre esse conceito. Segundo a autora Ruth Finnegan,
[...] uma canção – ou um poema oral – tem sua verdadeira existência não em
algum texto duradouro, mas em sua performance: realizada em um tempo e
espaço específicos através da ativação da música, do texto, do canto [...] de
objetos materiais reunidos por agentes co-criadores em um evento imediato.
(Idem, 2008, pp. 23-24).
Esta concepção coloca em evidência a necessidade cênica da canção posta ao vivo,
numa apresentação musical, em contato com um público, na interação entre as canções
interpretadas; no qual cada interpretação, ou performance, é em si mesma uma
“verdadeira existência” vinculada a um determinado “tempo e espaço” tornando letra,
melodia, harmonia, ritmo etc. partes que em movimento têm seus sentidos postos em
vivência, transformados como objetos deslocados de uma partitura ou mesmo de uma
gravação em disco. Assim, o contato com o público por meio da performance sempre
dará um novo sentido à canção.
As canções “Coração Materno”, de Vicente Celestino, gravada por Caetano
Veloso no disco-manifesto Tropicália - Ou Panis et Circencis (1968), e “Maracatu
Atômico”, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, gravada por Chico Science & Nação
Zumbi no álbum Afrociberdelia (1996), foram reconstruídas de seus lugares de origem
com uma mirada essencialmente crítica, ao que, sonora e esteticamente, comportam-se
como elos fundamentais para compreendermos como ambos os artistas-movimentos
reavivam as canções, por meio da performatividade da linguagem, e dão a estas
intepretações um viés crítico.
46
Tendo em vista a noção de performance como espaço cênico, compreendemos
como os aspectos visuais e corporais foram de suma importância para o tropicalismo e o
manguebeat; de um lado os parangolés de Helio Oiticica, as roupas coloridas,
extravagantes perante a MPB de terno e gravata; do outro lado, toda a construção
simbólica do mangueboy, representada primeiramente por Chico Science, no uso de
chapéu de palha oriunda do coco de roda, assim como outras vestimentas típicas do
maracatu, como calças e bermudas em chita, coloridas, e o símbolo do caranguejo
presente em gestos, roupas e diferentes projetos gráficos.
Afora essa percepção da presença de um corpo e de um palco que performatizam
esses artistas juntamente com suas canções e movimentos para além do próprio objeto-
canção, músicas como “Coração Materno” e “Maracatu Atômico” apresentam uma
outra linha especialmente interessante para refletirmos sobre a ideia de performance da
linguagem destas canções.
Originalmente identificadas pelas performances de Vicente Celestino, Gilberto
Gil e Jorge Mautner; com arranjos notadamente críticos, os artistas do tropicalismo e
manguebeat performam as canções através do modo como reinterpretam as músicas,
tornando-as suas como autoria que se firma através da reinvenção dessas canções por
força da reestruturação da linguagem das mesmas.
A esse modo, o poeta Afonso Romano de Santanna afirma que
O intérprete ordinário reduz todas as músicas ao mínimo múltiplo de sempre,
à esperada e prevista interpretação. A interpretação de Caetano é crítica. Ele
chega a co-autor devido à maneira como reinventa as canções. [...] Ele não
está apenas cantando suas músicas, mas ressoando a música de sua geração e
do passado, deglutindo e recompondo. (SANTANNA, 1986, pp. 110-111).
Assim, a dramática “Coração Materno”, na voz grandiloquente e estilizada de
Celestino, posta no álbum tropicalista, com arranjo de Rogério Duprat; na voz de
Caetano, logo em sua abertura, que mantém a estética dramática, na utilização de
arranjos de cordas em diálogo narrativo com a tensão que a letra que Caetano
canta/conta, os tiros de canhão ouvidos na gravação são colocados lado a lado com a
sonoridade também tensa da história trágica de um filho que arranca o coração da mãe
para dar como prova de amor à amada, mas que no “Coração Materno” de Tropicália o
arranjo se comporta num duplo, pois ao mesmo tempo em que se faz como singular,
está o tempo todo remetendo ao arranjo original, como numa paródia sobre o arranjo da
música anterior.
47
No entanto, essa paródia não é dessacralizante, mas traz a música criticamente
considerada cafona, ultrapassada, para um lugar de movimento. O drama da narrativa, o
tom grandioso, é o drama paródico da violência política, social e cultural, ou seja,
Caetano, se não cria, pelo menos intensifica e caracteriza nitidamente na
música popular brasileira a figura do cantor-autor-crítico. Já não se trata de
dar vazão a sentimentos e emoções dentro das normas musicais e literárias
mais ou menos estabelecidas. Trata-se de formular uma nova linguagem
dentro da aparência da linguagem usual. (SANTANNA, 1986, p. 109).
Portanto, ao deslocar a linguagem usual do cancioneiro popular, representado
pela estética musical de Vicente Celestino, para o projeto estético tropicalista, Duprat e
Caetano performam a linguagem da canção para alcançarem o efeito crítico desejado.
Assim, voltamos ao lugar da antropofagia como espécie de origem formadora do
tropicalismo.
De tal modo, por exemplo, “cada música que retoma é uma recriação e um
descentramento. Assim, a ‘Asa Branca’ de Caetano difere da de Luiz Gonzaga. [...]
Cada música de cada cantor exige desse cantor sempre um outro canto.” (SANTANNA,
1986, p. 110), assim como tal descentramento também está presente na recriação da
canção “Maracatu Atômico”, por Chico Science & Nação Zumbi.
O compositor Jorge Mautner considera que “a gravação de Chico Science com a
Nação Zumbi representa a reinterpretação magnífica de toda uma geração do século 21.
Na interpretação de Chico Science, há uma ênfase em direção da ideologia ecológica
[...]40”. A própria expressão “maracatu atômico” encontra eco em versos como
“maracatu psicodélico/ capoeira da pesada/ bumba meu rádio/ berimbau elétrico”, da
canção “Etnia”, do mesmo álbum, Afrociberdelia, ao pôr em evidência esses lados
aparentemente contraditórios, como ser “maracatu” e ao mesmo tempo “psicodélico”,
ser “capoeira” e “da pesada”, e assim por diante. Com isso, desfaz certas posições
estanques e recoloca os ritmos e diferentes expressões artísticas num mesmo espaço de
contrição com outras linguagens.
Os versos que se seguem: “bumba meu rádio/ berimbau elétrico”, são
especialmente interessantes por manterem diálogo crítico com a canção tropicalista
“Geléia geral”, de Gilberto Gil e Torquato Neto, no qual se lê: “Ê,/ bumba-yê-yê-yê/ É a
mesma dança, meu boi”. Com ela, assim como na canção “Etnia”, a expressão cultural
40
Disponível em: <http://infograficos.estadao.com.br/especiais/20-anos-manguebeat/maracatu-atomico-e-
a-reinvencao-de-uma-geracao.html>. Acesso em 05.10.2015
48
do bumba meu boi está também ligada ao contemporâneo grito “yê-yê-yê”, advindo do
“yeah, yeah, yeah”, da música pop anglo-americana, sobretudo os Beatles, mas no caso
brasileiro, ao colocar no mesmo verso-canção o folclore e a jovem guarda.
Representações do nacional e do internacional, ou seja, sendo diferentes, são “a mesma
dança, meu boi”.
Ao empreendermos esse olhar sobre os versos dessas canções, sob o ponto de
vista da performance da canção, temos em conta que:
A ‘letra’ de uma canção em certo sentido não existe a menos e até que seja
pronunciada, cantada, trazida à tona com os devidos ritmos, entonações,
timbres, pausas; [...] Analisar uma canção enquanto performance evita
perguntas sobre o que vem, ou o que deveria vir, primeiro, [...] ela se realiza
nas especificidades de sua materialização em performance.” (FINNEGAN,
2008, pp. 24)
Portanto, a sonoridade do grupo Chico Science & Nação Zumbi presente no
deslocamento empreendido na sua recriação da música original, gravada por Gilberto
Gil em 1973 no disco Cidade do Salvador, e por Jorge Mautner em seu disco
homônimo de 1974, se faz por uma presença do maracatu relido pelos músicos,
sobretudo na abertura da faixa, com a voz de Chico acompanhada apenas pela percussão
característica do maracatu: “no início os sons frenéticos típicos do maracatu rural,
sobretudo do gonguê, ganzás e chocalhos” (VARGAS, 2007, p. 164), ao que se
pronuncia a palavra “atômico”, a potência sonora ao mesmo tempo local e internacional,
se faz constante pela presença dos outros instrumentos que caracterizariam a
musicalidade da Nação Zumbi, no usufruto de estéticas e sonoridades diversas na
construção de um lugar de fala próprio, um que esteja sempre disposto a se deslocar ou
descentrar, como comentamos anteriormente. Com essas potências presentes no arranjo
da canção, a autoria de Chico Science & Nação Zumbi está compreendida pela força
que a performance do grupo dá a essa canção.
Por performatizar a canção, os músicos criticamente movem a canção para o
mesmo ambiente estético em que as outras músicas foram construídas no álbum, dando
novo sentido ao “maracatu atômico” inventado por Mautner, Jacobina e Gil nos anos
1970.
Vinte anos depois, maracatus, bumba meus bois, capoeiras e berimbaus tornam-
se de outros modos atômicos, abrindo novas passagens a partir de diálogos
eminentemente críticos entre artistas de gerações distintas.
49
4. DOS GÊNEROS DESLOCADOS
4.1 Desconstruindo gêneros
Uma das principais características que fizeram do tropicalismo e manguebeat
movimentos com uma grande marca de singularidade foi a capacidade dos artistas em se
conectarem sem prurido a uma enorme variedade de sonoridades. O aspecto
experiencial presente na forma como arranjos, instrumentação, ritmos, timbres, entre
outros elementos dão forma à sonoridade da canção, é bastante presente nas canções de
ambos os movimentos. O que culminaria num modo particular de tratar os gêneros
musicais.
No tropicalismo, por exemplo, a influência dos Beatles e do rock inglês, sobretudo
do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, de 1967, acrescenta a essa
informação, a presença da Banda de Pífanos de Caruaru, que o músico Gilberto Gil
conheceu durante turnê em Pernambuco, antes mesmo da eclosão do tropicalismo. Esse
duplo presente nas bandas do “Sgt. Pepper” e dos Pífanos de Caruaru, como junção
crítica entre o pop inglês e o folk do Nordeste do Brasil, foi de suma importância, assim
como outros gêneros mais localizados nessa região do país, como o baião, frevo, coco,
ciranda, forró, entre outros, para o vasto campo de influências que viria a caracterizar o
tropicalismo.
A presença desse aspecto aglutinativo das sonoridades também é gérmen do
manguebeat, sobretudo pela proposição de Chico Science; ainda nas primeiras
experimentações com a Loustal, o músico já afirmara: “O ritmo chama-se mangue. É
uma mistura de samba-reggae, rap, ragamuffin e embolada41”. A noção de “mangue”,
não como um ritmo específico, mas como uma movimentação, ou cena, mais
abrangente, já foi explicitada em capítulos anteriores. O que nos interessa,
especificamente, é compreender como o músico apreende ritmos tão diversos, e de
localidades também distantes.
Um dado importante para a vertente em torno das sonoridades está na noção de
grupo ou banda, presente, principalmente, na experimentação dos Mutantes e da Nação
Zumbi, pela “incorporação” em som das ideias e composições que circulavam entre os
artistas dos dois movimentos. Essas bandas deram corpo sonoro a muitas das ideias
41
“Sons negros no Espaço Oásis”, publicada pelo Jornal do Commercio de 15 de junho de 1991.
(TELES, 2000, p. 264).
50
firmadas pelos compositores, ao que idealizadas, nas mãos das bandas assumiam novos
lugares. No manguebeat, a sonoridade do grupo Nação Zumbi, de tão reveladora do
lugar que os músicos construíram musicalmente, acabou por vincular para certa parcela
do público e da crítica, ainda a primeira noção do termo “mangue”, aquela vinculada
estritamente a uma ideia de “ritmo”. Como se “mangue” fosse um gênero musical
fechado, na vinculação entre percussão e instrumentos elétricos.
Sobre a relação da música com essa variedade, a respeito do tropicalismo, o
pesquisador Christopher Dunn considera que:
As manifestações musicais da Tropicália não propunham um novo estilo ou
gênero. A música tropicalista envolvia, em vez disso, uma colagem de
diversos estilos. Novos e antigos, nacionais e internacionais. Em um nível, a
música tropicalista pode ser entendida como uma releitura da tradição da
música popular brasileira à luz da música pop internacional e da
experimentação de vanguarda. (DUNN, 2009, p. 19).
Assim como nas canções e álbuns do manguebeat, presente nos trabalhos de Chico
Science & Nação Zumbi e da mundo livre s/a, convivem de forma libertadora ritmos,
estilos e gêneros dos mais diversos, de origem local ou internacional. De tal modo, a
concepção em torno da “releitura da tradição” pode ser percebida em ambos os casos. O
que mudará são os lugares de acesso da tradição, dos gêneros, da relação entre o local e
o internacional, em suma, cada artista criará suas próprias condições de acesso,
construirá sua própria teia de referências. Assim, deixamos evidente que tropicalismo e
manguebeat não firmam uma unidade de gênero, não constituem, eles próprios, gêneros
musicais, mas articulam criticamente, cada qual à sua maneira, gêneros musicais
distintos.
Portanto, os lugares de acesso da tradição são de suma importância, visto que
tropicalistas e manguebeats tiveram que romper com visões redutoras acerca,
principalmente, dos ritmos mais tradicionais, presentes na música brasileira. Sobretudo
pela deliberada integração desses ritmos com informações que vinham de outros
lugares. “A integração da música pop contribuiu para ressaltar o aspecto cosmopolita,
urbano e comercial do tropicalismo e, ao mesmo tempo, comentar o arcaico na cultura
brasileira.” (FAVARETTO, 2007, p. 47).
No caso mais específico do manguebeat, o modo como Chico Science & Nação
Zumbi incorporaram os ritmos mais tradicionais da música pernambucana, foi o que
causou maiores rupturas com modelos culturais pré-estabelecidos, ligado às oligarquias
51
culturais, ao “arcaico”, ao que cercava em si mesmo estéticas como as presentes no
maracatu (de baque solto e baque virado42), coco, ciranda, entre outros. É importante
ressaltar que a noção de gênero musical parte de relações que são construídas em larga
escala, entre diversos atores: músicos, público, mídia; em que cada gênero pode
compreender significados diferentes, já que não se tratam de lugares estáticos.
Segundo Janotti Jr. (2006, p. 58), “[...] reconhecemos parte dos produtos que
circulam no campo da comunicação a partir de sua rotulação”, assim, quando ouvimos
um disco ou uma música isolada, por exemplo, tendemos a naturalmente, a partir de
nosso conhecimento de mundo e dos indícios que a obra revela, identificar certos
aspectos que os qualifiquem em determinada rotulação, seja a partir de parâmetros
discursivos ou propriamente musicais.
No entanto, como observa Fiske apud Janotti Jr. (2006, p. 59): “É difícil isolar as
características precisas de um determinado gênero e obter uma lista finita de todos os
diferentes gêneros”. Assim, ao analisarmos as canções dos movimentos tratados, na
forma como engendram os gêneros, os reconstroem,
Torna-se necessário esclarecer então que, antes de ser um operador duro, que
ignora as especificidades de cada materialização do eixo paradigmático em
uma determinada manifestação midiática, a abordagem dos gêneros é
dinâmica o suficiente para dar conta dos rótulos e de suas manifestações
particulares. (Idem).
Assim, compreenderemos que “o gênero midiático é definido então por elementos
textuais, sociológicos e ideológicos” (Ibidem, p. 63), com isso, “um gênero musical
dentro da cultura midiática é uma tendência para o investimento de determinadas
valorações” (Idem).
Ao pormos em perspectiva as canções dos inúmeros álbuns produzidos pelos
artistas – dentro do recorte crítico estabelecido nessa pesquisa – a própria titulação de
algumas faixas já revela uma intenção por parte dos compositores em vincular aquela
música a determinado ritmo, estilo ou gênero.
Em faixas de CSNZ, como “Coco Dub (Afrociberdelia)”, do disco Da lama ao
caos (1994), ou nas instrumentais “Quilombo Groove” e “Baião Ambiental Dub”, de
Afrociberdelia (1996), a nomeação coloca lado a lado rotulações aparentemente
42
“Há basicamente dois gêneros de maracatu. O mais tradicional e conhecido é o nação, ou de baque
virado. [...] O baque virado significa toque dobrado, porque é um maracatu tocado com mais de um
bombo, ou alfaia, dentro outros instrumentos de percussão. O outro gênero é o rural, ou de baque solto,
tocado com apenas uma alfaia e outros instrumentos de percussão”. (VARGAS, 2007, p. 116).
52
díspares, mas que pelo caminho da experimentação encontram sentido a par das
proposições estéticas que firmam a sonoridade do manguebeat. Sobretudo pelo caminho
da desconstrução dos gêneros musicais, como vemos tratando aqui. Ou seja, a
articulação dos gêneros comunga com uma ampliação dos mesmos, num embate contra
as rotulações que aprisionam determinados gêneros musicais em características sonoras
restritas.
Lado a lado, o coco, como dança de roda, cantiga e caracterizada musicalmente
nas regiões Norte e Nordeste, com uso essencialmente de instrumentos de percussão,
mais o dub, artificialmente manipulado com recursos eletrônicos, de origem jamaicana e
notadamente com forte influência do reggae, combinados, originam o mote da
experiência que tanto evidenciam esse lugar de desconstrução a que refletimos como
originário tanto das canções tropicalistas quanto das do manguebeat. O subtítulo
“afrociberdelia”, descrito pelo escritor Braúlio Tavares, no encarte do disco seguinte de
Chico Science & Nação Zumbi, de mesmo nome, já indicava em uma das alíneas do
texto: “a) Mistura criativa de elementos tribais e high-tech [...]”, que o “tribal e high-
tech” poderiam conviver criativamente sob o mesmo espaço sonoro.
De construção hipnotizante, sob a condução da percussão e recortado por
samplers, colagens e vozes-motes à parte da letra, a música tem na reverberação dos
sons da guitarra e seus efeitos que ecoam numa crescente de elementos, o seu aspecto de
espiral, circular, como repetição que varia minimamente a cada giro. O eco da guitarra é
o que circula o coco, enquanto o ritmo da percussão cumpre o papel hipnótico, que
conecta todos os elementos. “caos”, “imprevisibilidade”, “não-linear”, ou “música
quântica?”, pergunta-se na letra da música, por fim.
Não é à toa que essa experiência, “mistura criativa” ou “afrociberdelia” encerra
Da lama ao caos erguendo uma ponte para o álbum seguinte. As faixas instrumentais
“Quilombo Groove” e “Baião Ambiental Dub” aprofundam esse tipo de experiência de
modos complementares.
“Quilombo Groove” tem na percussão sua condução mestra, como referência à
música de matriz africana. A presença da guitarra, seus riffs, peso e distorção apoiam o
ritmo que “explode” em diversos momentos da música com uma presença mais
marcante das alfaias. Assim, o “groove” é essa junção entre o guia rítmico percussivo e
os cortes ligeiros dos riffs de guitarra. Ao final, o silêncio da guitarra é tomado pela
presença solitária e constante da batida da alfaia. Tal articulação torna suscetível
criticamente o trânsito entre gêneros musicais globalizados em convergência com ritmos
53
e instrumentação local. Esse trânsito desloca as noções rígidas de música pop e
regional, concebendo a partir de sua desconstrução de arquétipos a transitoriedade
poética que caracteriza o grupo.
Na canção “Bat Macumba”, na gravação de Gilberto Gil, em Tropicália - Ou
Panis et Circencis (1968), e no registro dos Mutantes no seu disco homônimo de 1968,
alcança-se esse elemento “hipnotizante”, de sonoridade espiral, ao unir um dado “tribal
e high-tech”. O pesquisador Favaretto considera que essa
é a única música que, nos três discos tropicalistas, realiza a proposta
concreto-antropofágica, de modo intencional. Realiza uma superposição dos
códigos verbal, sonoro e visual, com referências culturais sincréticas: Batman
(os quadrinhos, e por extensão a indústria cultural); macumba (elemento
cultural brasileiro); iêiêiê (música jovem, proveniente do rock).
(FAVARETTO, 2007, pp. 111-112).
Sobre o aspecto visual a que se refere o autor, que tem ligação estreita com a poesia
concreta, sobretudo no seu aspecto verbivocovisual, a asa construída por Augusto
Campos para a letra de “Bat macumba” transforma-a visualmente o que as intenções
dos tropicalistas se derem no plano musical. Abaixo, a transcrição de Campos para a
canção:
batmacumbaieiê batmacumbaobá
batmacumbaieiê batmacumbao
batmacumbaieiê batmacumba
batmacumbaieiê batmacum
batmacumbaieiê batman
batmacumbaieiê bat
batmacumbaieiê ba
batmacumbaieiê
batmacumbaie
batmacumba
batmacum
batman
bat
ba
bat
batman
batmacum
batmacumba
batmacumbaieiê
batmacumbaieiê ba
batmacumbaieiê bat
batmacumbaieiê batman
batmacumbaieiê batmacum
batmacumbaieiê batmacumba
batmacumbaieiê batmacumbao
batmacumbaieiê batmacumbaobá43
43
(CAMPOS, 2015, p. 288).
54
Como nos outros casos, nas outras canções analisadas aqui, o que nos interessa é
refletirmos como os gêneros musicais referenciados nas próprias titulações, ou mesmo
as rotulações que fazem referência a culturas de matriz africana, como os casos do
“quilombo” e da “macumba”. Aqui percebemos como “coco”, “dub”, “baião”, “groove”
ou mesmo o “bat”, da canção tropicalista, são rotulações que não se restringem a fixar a
sonoridade num lugar único, mas servem sim, como pontos de partida para a construção
de sonoridades, em suma, ao jogar com estas rotulações, os artistas experimentam em
suas canções e músicas instrumentais a desconstrução como poética, resultando numa
poética híbrida, no qual execução, performance, instrumentação, canto etc. estará
sempre em deslocamento com alguma visão redutora que se possa ter sobre determinado
gênero musical.
Tendo em vista a presença da guitarra como “elemento narrativo”, ou seja, aquele
que conduz a “narrativa” da canção, os casos de “Bat Macumba”, na gravação dos
Mutantes, e das faixas de Chico Science & Nação Zumbi, nesse tópico mostradas, são
mais passíveis de comparação, visto que riffs, solos a par de efeitos e distorções são os
fios condutores da música. A letra de “Bat Macumba”, de Caetano e Gil, está mais a
serviço da rítmica, ou seja, a letra se presta mais à forma estritamente em diálogo com a
sonoridade da música. Há uma aparência caótica, de multiplicidade de vozes, sons,
timbres, que encontra diálogo em “Coco Dub”, por exemplo.
Já o aspecto “hipnotizante”, “espiral”, que refletimos no caso do “coco” em
consonância com o “dub”, na faixa de Da lama ao caos, tem eco na “[...] marcação
rítmica de tambor que, pela sua repetição, funciona como uma fórmula encantatória,
semelhante ao que ocorre na macumba” (FAVARETTO, 2007, p. 112), como aponta o
pesquisador, ao analisar a gravação de Gilberto Gil (com participação do Mutantes) no
disco-manifesto Tropicália.
De tal modo, podemos refletir que esse jogo de desconstrução dos gêneros era uma
atitude crítica e criativa tanto dos músicos do tropicalismo quanto do manguebeat.
Gêneros reconstroem outros gêneros, ritmos desdobram-se em outros, estilos são
lugares de constante migração. Procuraremos demonstrar no decorrer deste capítulo
como as proposições entre som universal e local são reconstruídas nas canções críticas
aqui analisadas, e em como em consequência disto as sonoridades das músicas
percorrem direções diversas, ao passo que, pelo forte diálogo entre letra e melodia, estas
canções conjurem estéticas tão distintas.
55
4.2 Som universal, som local
As expressões “som universal”, “música pop”, “cultura de massa”, “indústria
cultural”, “cultura local”, “som local”, entre outras, relacionadas entre si como
conceitos a serem construídos e, ao mesmo tempo, desconstruídos pelos movimentos
aqui retratados, compuseram de modo decisivo as narrativas críticas e criativas que
formaram o tropicalismo e manguebeat. Ao redor dessas concepções, canções, discos,
fortunas críticas, debates, entrevistas e outras formas de produção foram desenvolvidas
a par das proposições estéticas advindas das canções (críticas) dos artistas dos dois
movimentos.
Ainda no gérmen do que viria a se chamar “tropicalismo”, o poeta Augusto de
Campos, autor dos primeiros artigos e ensaios sobre os músicos tropicalistas, observava
que: “Esse movimento, que ainda não tem nome definido, vai incorporando novos
dados informativos: som universal, música pop, tropicalismo, música popular
moderna.” (CAMPOS, 2015, p.188).
A ideia de uma música ao mesmo tempo “brasileira” e “universal”, que se
conectasse com a “música pop”, sobretudo anglo-americana, onde figuravam artistas
como os Beatles, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Bob Dylan, entre outros, tornava-se uma
primeira chave de leitura para a estética tropicalista. De tal modo, como vemos
demonstrando neste trabalho, ao estabelecermos uma relação entre os movimentos,
entendemos sob esse aspecto que:
A tentativa de universalizar esses elementos nacionais, com o intuito de
mostrar e criar uma nova cena para o mundo, conectando o Brasil com o
cenário pop mundial, estabelece um diálogo com as manifestações artísticas
que trouxeram à tona um Brasil cosmopolita como o Movimento
Antropofágico e a Tropicália. (LEÃO, 2002, pp. 18-19).
Enquanto no tropicalismo a efervescência da “música pop” como um dado novo criava
uma tensão entre os artistas do período, no manguebeat essa tensão se dava na conexão
entre o “local” da geografia específica de Pernambuco, com o “universal” presente nas
referências dos principais participantes do manguebeat. Assim,
Recuperando o elo perdido (e uma certa independência vital e muitas vezes
franca oposição) em relação ao tropicalismo, Chico Science & Nação Zumbi,
por exemplo, em Da lama ao caos, mistura ritmos brasileiros como o
maracatu, a ciranda ou o coco com o samba, com música eletrônica, hip hop
e rock. As letras do Nação Zumbi frequentemente tentam essa equação entre
56
o local (as especificidades de viver numa cidade particularmente
subdesenvolvida de um país subdesenvolvido, as gírias e os mitos recifenses)
e o universal (as relações com a tecnologia, as imagens metropolitanas).
(PRYSTHON, 2004, p. 43)
Além do mais, o manguebeat reterritorializou as sonoridades com que lidava,
visto que ritmos oriundos do litoral, da zona rural, ou mesmo de músicas mais
características da periferia das cidades, como no diálogo com o rap (no contexto mais
amplo do hip-hop) se imbricavam entre si, proporcionando a desterritorialização com
uma possibilidade poética mais abrangente, que configuraria, por fim, a partir da
associação com adereços, vestimentas, trajes, acessórios, uma estética de geografia
extensa, ou de geografias que se entrecruzam. Por um contexto histórico e cultural
diferente, o tropicalismo esteve centrado nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo,
com a presença de artistas da Bahia e outros atores das capitais mencionadas. Por
estarem atuando nos espaços midiáticos de maior concentração, ainda no resquício da
bossa nova e no surgimento de várias frentes de criação, como as da jovem guarda, da
segunda geração da bossa nova, da música de protesto etc., os músicos tenderam para
uma discussão da música popular brasileira como um dado “nacional”, ou seja, o que
era característico como “local”, presente na poética dos músicos do tropicalismo, já
havia sido diluído e ressignificado diante do novo território de embates a que eles
estavam agora inseridos, ou seja, no centro da indústria cultural brasileira, que se
desenvolvia, principalmente, pela relação que as tevês estabeleciam com a música
brasileira, na criação de festivais e programas musicais específicos.
Portanto, os dados “universais” e “locais” se valem muito mais como poéticas
possíveis para a criação, do que como simplesmente uma relação binária, de oposição
entre essas forças. A música está posta sobre essa aparente contradição, justamente para
pôr em fricção essas forças, ou seja, diluir possíveis barreiras para fazer do “local” o
“universal”, e vice-versa.
No diálogo entre o “universal” e o “local”, é possível estabelecer que “O
mangue se pretendeu universal, transgressivo, inovador; mas em nenhum momento
deixou de querer fazer parte da cultura de massa.” (LEÃO, 2002, p. 98). Ou como “A
Tropicália inaugurou um país colorido, fragmentado e universal [...] A cor local é
recuperada, sem dúvida, embora não atenda a expedientes exóticos, folclorizantes.”
(NAVES, 2010, p. 104).
57
Ao desconstruir essas relações binárias, a “fase heroica” do tropicalismo, ainda,
segundo Santuza Cambraia Naves, introduziu uma novidade ao contexto cultural do
período, por substituir o “[...] compromisso nacional por uma articulação do local com o
global, bem como a da categoria “povo” – tão cara às concepções políticas de várias
tendências muito arraigadas – por “massas”.” (NAVES, 2015, p. 59). Essa articulação
entre o “local e o global” esteve no cerne do manguebeat, de certa maneira, como
unidade formadora. No tópico “Mangue – a cena”, do manifesto “Caranguejos com
cérebro”, Zero Quatro escreve:
Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em: quadrinhos,
tv interativa, anti-psiquiatria, Bezerra da Silva, Hip Hop, midiotia, artismo,
música de rua, John Coltrane, acaso, sexo não-virtual, conflitos étnicos e
todos os avanços da química aplicada no terreno da alteração e expansão da
consciência.44
Esta forma de lidar com as referências coloca em diálogo diferentes formas de
criação sem, no entanto, pôr nenhuma delas em hierarquia. Há nessa atitude uma visão
“dessacralizante” da criação, ou mesmo da arte. A música “pop” como experiência
estética e midiática também assume essa “dessacralização” em seu cerne, assim como
no tropicalismo, em que diferentes vozes, lugares, podem ocupar espaços parecidos,
ainda que essa “convergência” implica em tensões das mais diversas. Assim, no estudo
Tropicália, alegoria, alegria, lançado em 1979, Favaretto já considerava que:
O pop foi em grande parte responsável pela vitalidade do tropicalismo, que,
assim, distinguiu-se da idealização estetizante que predominava na música
brasileira. Combinando o folclore urbano com uma concepção
dessacralizadora de arte, o pop se adequou à atividade desestetizada do
tropicalismo. (FAVARETTO, 2007, pp. 47-48, grifo do autor).
Com uma variedade de camadas críticas que destoavam do lugar comum e
binário de tratar a música brasileira no final dos anos 1960, as canções tropicalistas
fundiram-confundiram temas e sonoridades específicas de determinadas regiões do país
num movimento que tornava essas culturas, a partir da experimentação, como matéria
que podia dialogar com a música feita em qualquer outro lugar do mundo. Assim sendo,
“Enquanto outros músicos da MPB usavam ideias e temas musicais do Nordeste pobre
para denunciar o subdesenvolvimento do Brasil, Caetano e Gil propunham um “som
44
Primeiro manifesto “Caranguejos com Cérebro”, tópico “Mangue – a cena”. In: Chico Science &
Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro: Sony Music, 1994.
58
universal” que pretendia participar da modernidade internacional.” (DUNN, 2009, p.
91).
Essa tomada crítica, como temos observado, também esteve presente no
manguebeat, quase 30 anos depois, num outro ato da história da música brasileira, mas
que comungavam em torno das discussões sobre “cultura de massa”, “global”, “local”,
“modernidade” etc. Como reflete Paula Lira, em recente pesquisa sobre o movimento
pernambucano:
A mistura e sobretudo a fusão frequentemente conotam homogeneidade. Não
era isso que buscavam os mangueboys. Faziam música pop, na qual é
característica a dinâmica. Esta pode ser traduzida como o diálogo de diversas
expressões, sejam elas originárias da cultura de massa, cultura no sentido
étnico, cultura erudita (que são parte de um sistema, e como parte, inter-
relacionam-se entre si, algumas vezes sendo menos e mais que o todo).
(Idem, 2014, p. 56).
Ao analisarmos os aspectos críticos de canções que tratem sob esses aspectos,
que justamente ponham em conflito esses sons universais-locais, dentro do contexto da
“música pop”, “indústria cultural” e “cultura de massa”, responsáveis por absorver essa
produção “nova”, onde os artistas se inseriam no momento em que lançaram seus
primeiros discos, podemos encontrar essas reflexões em canções como “Parque
Industrial”, de Tom Zé, “2001”, de Tom Zé e Rita Lee, “Cérebro eletrônico” e
“Futurível”, de Gilberto Gil, “Computadores fazem arte”, de Zero Quatro, “Enquanto o
mundo explode” e “Um satélite na cabeça (bitnik generation)”, com letras de Chico
Science e música de Chico Science & Nação Zumbi.
A partir destas canções é possível traçar uma linha de reflexão que passa pela
ironia em torno do desenvolvimento industrial brasileiro a par de um contexto político e
cultural de repressão, presente em “Parque Industrial”; o deslumbre do futuro e suas
possibilidades de criação, em “2001”, não com menos ironia, mas do ponto de vista
sonoro, o dado mais experimental da canção avança essas reflexões para o próprio
objeto canção, com dualidades mais específicas, como no diálogo entre a sonoridade da
versão dos Mutantes – moderna, pop, cosmopolita –, e a do canto e sonoridades
caipiras, presente em estrofes da música com o pastiche de música caipira; a relação do
homem e da tecnologia nesse futuro-presente que colocam novas questões a serem
discutidas, tanto do âmbito cultural quanto político.
Essa máquina-homem, suas construções e contradições, estão presentes em
“Cérebro eletrônico”, “Futurível” e “Computadores fazem arte”, com sonoridades
59
totalmente díspares. As duas primeiras interpretadas por Gilberto Gil, que comenta
sobre essas composições, a partir de uma visão crítica e irônica sobre a relação com a
tecnologia:
Em relação às perspectivas de um 'mundo novo' e suas implicações,
diferentemente de Lunik 9, que reagia contrariamente a elas, Cérebro
Eletrônico já as admitia, mas com uma certa ironia; ali, o homem diz para o
computador: 'Tudo bem você, mas eu sou mais eu' (o que, aliás, é o
pressuposto básico da cibernética e continua sendo o pressuposto do que está
a serviço do homem, as novas inteligências artificiais colocadas sob o
controle da inteligência original, a humana, a dos neurônios).
Futurível vai além, ao ponto de propor um futuro possível ('futurível': mais
uma vez, o procedimento concretista). O eu da música é o cientista detentor
da tecnologia (ou o extraterreno mais avançado) falando para o homem
comum (a cobaia...) do teste de iniciação aos novos tempos a que ele será
submetido, nesses termos: 'Olha, você está sendo trazido pra um novo estágio
de humanidade, mas não se preocupe, isso é muito natural'.45
Já a terceira, em versões de Chico Science & Nação Zumbi e mundo livre s/a,
com arranjos bem distintos. CSNZ desenvolve a música a partir das experimentações
que vinham trabalhando na relação entre os ritmos com base percussiva e as
sonoridades massivas. A curta letra é repetida diversas vezes, numa sonoridade em
espiral, como numa ciranda, enquanto a versão da mundo livre s/a é mais urgente, com
quebras na estrutura da letra, fragmentando-a e encerrando a canção com “sons
aleatórios”, dando “voz” ao que a poética da letra sugere-questiona:
Computadores fazem arte
Artistas fazem dinheiro
Computadores avançam
Artistas pegam carona
Cientistas criam o novo
Artistas levam a fama46
O arrefecimento das tecnologias e os questionamentos que elas trouxeram, em
“Um satélite na cabeça (bitnik generation)” e “Enquanto o mundo explode”, alcançam
um outro estado. A relação com espaço é de questionamento muito mais violento. Essa
“violência” está presente nas duas canções, com a guitarra tendo uma presença
constante a partir do diálogo com a voz-satélite de Chico Science.
45
Disponível em < http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=4> Acesso em 05 de março
de 2016.
46
In: Mundo Livre S/A. Guentando a Ôia. São Paulo: Banguela Records, 1996.
60
eu sou como aquele boneco
que apareceu no dia da fogueira
e controla seu próprio satélite
andando por cima da terra
conquistando o seu próprio espaço47
Espaço este que “explode” no ambiente urbano, também violento. “não conseguimos
acompanhar o motor da história/ mas somos batizados pelo batuque e apreciamos a
agricultura celeste”, destaca a canção entre o “batuque” outrora folclorizado, localizado,
limitado, e a partir dessas novas entonações, “universal”, “globalizado”.
As canções são críticas sob o ponto de vista das discussões entre o “universal” e
o “local” por destituírem, através de poéticas passíveis de comparação, relações
simplistas que diminuíam ou limitem o campo de atuação de artistas, como os dos
localizados especialmente nos movimentos aqui tratados. Não se trata, portanto de
analisar comparativamente “canção tropicalista” com “canção manguebeat”, mas sim
expandir o aspecto crítico que emana dessas canções; este sim, mais rico como objeto
comparativo.
Ao tratar sobre a noção em torno dos “gêneros musicais deslocados”, tão
presentes como abordagem crítica das canções do tropicalismo e manguebeat, o
próximo tópico tratará justamente de distender as sonoridades, ao refletir como elas não
se fixam num mesmo território. Uma vez quebradas as barreiras dos sons “universais” e
“locais”, é chegado o momento de desestabilizar gêneros mais tradicionais da música
brasileira, como o samba, por exemplo. Tendo em vista os aspectos geracionais que
permeiam os artistas dos movimentos, já que “samba”, “rock”, “pop” assumem vozes
diferentes em vista de suas determinadas épocas.
4.3 Sonoridades, distensões
Há no cancioneiro tropicalista um frevo rasgado, um samba que não quer “andar na
fossa/ cultivando tradição embalsamada”, o saudosismo d’a bossa, a fossa “e o mundo
dissonante”. No mangue, o samba é makossa, é do lado, sai da favela, é noise. O
maracatu é de tiro certeiro, é psicodélico. O berimbau é elétrico, a capoeira é da pesada,
o hip-hop é na (minha) embolada; “frevo, samba, cores” assumem diversas direções.
47
“Um satélite na cabeça (bitnik generation)”, in: Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de
Janeiro: Sony Music, 1996.
61
As sonoridades do tropicalismo e do manguebeat se estendem para muitos lugares.
Os exemplos citados no parágrafo anterior são justamente recortes dos compositores em
canções nos quais ritmos e gêneros musicais são citados textualmente, seja nos títulos
de canções ou nas letras de música, sobretudo aquelas em que tais ritmos ou gêneros
têm papel central nas músicas, seja na própria sonoridade ou na letra da canção. No
entanto, frevo, samba, ciranda, maracatu apresentam significados também diferentes. O
samba de Tom Zé é diferente do samba de CSNZ, assim como a ciranda dos Mutantes é
diferente do ritmo característico da própria ciranda – também presente em algumas
canções de CSNZ.
Essa apropriação dos gêneros musicais no corpo das canções (letra e música) de
modo experimental, no qual a metalinguagem que é assumir um gênero enquanto se
canta sobre/e através deste próprio gênero, no caso dos músicos do tropicalismo e
manguebeat, é um dos elementos que tornam essas canções críticas, porque ao tratar
nominalmente os gêneros de modo totalmente diverso, os compositores alargam,
distendem as categorias, aparentemente fixas, ou pelo menos culturalmente rígidas,
mesmo que as destinações, ou os caminhos que essas distensões seguem sejam
diferentes, dada as características de cada um dos artistas.
Essa música de invenção – pop, popular – dá a cada gênero musical uma nova
reinscrita a partir de sua simples citação. O que aparentemente poderia soar simplório –
o mero fato de intitular uma canção de “Frevo Rasgado”, como na faixa de abertura do
primeiro disco tropicalista de Gilberto Gil, em 1968 – tem um significado especial
justamente por pôr em instabilidade os lugares marcados de alguns dos gêneros
musicais, sobretudo os gêneros de maior tradição na música brasileira, como é o caso do
frevo, do samba, ou mesmo nas citações à bossa nova – “Saudosismo”, de Caetano, na
gravação de Gal Costa em 1968 – e até mesmo ao samba ou ao maracatu, como é o caso
mais emblemático para o grupo CSNZ, ademais pela ligação histórica que se fez a partir
da gravação de “Maracatu Atômico”.
Sob este ângulo, as canções tropicalistas adquirem grande importância, pois
provocam um curto-circuito na estrutura da canção até então praticada,
originando um movimento de renovação que não mais cessou. O trabalho dos
tropicalistas aguçou e explicitou a função crítica da produção artística:
apontou, conforme afirmou Caetano Veloso, para "necessidade de que cada
gesto, cada modo de se apresentar, cada arranjo, cada instrumento escolhido,
opinassem sobre o panorama geral da música popular no país”. O
conhecimento do Brasil proposto pelo tropicalismo volta-se simultaneamente
para a tradição e o presente e vincula-se a esta forma crítica de compor e
cantar. (FAVARETTO, 2007. p. 37).
62
Quando falamos em ato tropicalista, compreendemos nele esta atitude “crítica
de compor e cantar”, a que se refere Favaretto. Ao entreato de quase 30 anos que se
passa entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1990, quando em Recife os primeiros
shows e discos começam a circular com maior intensidade entre os vários agentes da
cena mangue, esse aguçamento explícito da “função crítica da produção artística” é
também um ato mangue, ao que recorrer a esses dois atos como reflexão da música
brasileira, sobretudo a produzida pelos menos nos últimos 70 anos no Brasil, faz todo o
sentido dentro dos recortes críticos que estamos estabelecendo nessa análise. Ao passo
que partilhar estéticas e sons se põem como uma atitude de descoberta, distante da
descrição normativa de ritmos, notas, alturas, padrões.
A este cardápio de instabilidades, de apropriações, devoramentos,
[...] do célebre “estilo oswaldiano”, o prato principal é o “outro”. O “outro”
do imaginário social do país, do inconsciente coletivo; da consciência plural,
da cultura global. Um “outro” que por muito tempo foi conhecido, no campo
da mídia, através do samba como música popular legitimadora de uma
identidade nacional. E que a música pop dos anos 90 acrescenta, a esta
identidade, diversos elementos intertextuais (novos ritmos, composições e
influências) estabelecidos pelo processo de mundialização da cultura que
alcança indiscriminadamente todas as esferas das sociedades
contemporâneas. (LEÃO, 2002, p. 46).
Com essa mirada múltipla, é possível analisarmos como essas canções se firmam
como críticas ao nomear gêneros musicais ao mesmo tempo em que deslocam seus
sentidos sonoros mais estáveis. As canções “Saudosismo”, de Caetano Veloso, na
interpretação de Gal Costa em seu disco homônimo de 1968, “Frevo rasgado”, de
Gilberto Gil e Bruno Ferreira no álbum de Gil de 1968 e “Quero sambar meu bem”, de
Tom Zé, cantada pelo mesmo em disco autoral de 1968, trazem algumas posições
importantes sobre esse aspecto dos gêneros nomeados a que estamos nos referindo. O
grupo de canções do manguebeat que poderíamos traçar paralelo sob o ponto de vista
crítico dos gêneros musicais são “Samba makossa”, do disco Da lama ao caos (1994), e
“Samba do lado”, do disco Afrociberdelia (1996), ambos de CSNZ.
A “saudade” emblemática como tema de canções da Bossa Nova, em Caetano,
no tropicalismo, transforma este “saudosismo” numa nova realidade, mas a faz a partir
de quem funda a bossa como gênero (João Gilberto), mas, ao mesmo tempo, ensina a
ser desafinado, a permanecer desafinados. As referências às principais canções da Bossa
Nova se multiplicam na letra da canção. No entanto, o filtro joão gilberto é o que
permanece como guia, como estética.
63
A gravação de Gal Costa sob o arranjo do maestro Rogério Duprat persegue esse
guia por toda a gravação. O canto está no mesmo campo de João Gilberto, na
composição entre canto-fala, tão característico do início da Bossa Nova. O arranjo
mantém a sonoridade limpa, com comentários orquestrais como pequenas ondas a
refletirem no canto de Gal. No entanto, o ápice da canção se dá justamente no seu
desvirtuamento sonoro, quando da repetição dos versos “Chega de saudade/ Chega de
saudade/ Chega de saudade/ Chega de saudade”, que na referência à canção de Tom
Jobim e Vinicius de Moraes e, sobretudo, ao primeiro álbum, de mesmo nome, de João
Gilberto, em 1959, é um marco da bossa como gênero musical, ou mesmo como
movimento, mas em Caetano/Gal/Duprat/tropicalismo, o verso “chega de saudade”
assume outro universo, é imperativo, com a presença do solo de guitarra ao fundo e da
bateria de forma mais violenta, com andamento totalmente diverso de todo o restante da
canção. Esse comentário crítico dura apenas alguns segundos, justamente os finais
“chega de saudade”. Esse “acerto de contas com a Bossa Nova48”, como o próprio
compositor afirma, assume a posição de canção crítica tropicalista, ademais dentro do
álbum de Gal, o seu primeiro solo, do mesmo período.
Uma visão crítica sobre a bossa nova, como a que Caetano faz, em Tom Zé se
manifesta sobre o samba. Num primeiro momento, sua atitude é de quem não quer
“andar na fossa/ cultivando tradição embalsamada”, mas quer sambar um outro samba.
É preciso ter em conta o contexto cultural em torno de nacionalismos e defesas da
tradição.
[...] segundo as representações mais comuns da “cultura brasileira”, o samba
é o gênero musical que melhor traduz a “brasilidade”. Estudá-lo de forma
crítica, desmontando seus clichês, jogando com sua diversidade inaudita,
remete o ouvinte a um pathos de diferença, isto é, a um recorte patológico e
desviante, uma tentativa de deslocar o ato de criação das armadilhas impostas
pelo hábito. (OLIVEIRA, 2014, p. 65, grifo do autor).
Mesmo que ainda imberbe, visto que Tom Zé viria a “estudar de forma crítica” o
samba de maneira mais profunda, anos depois, no disco Estudando o samba (1976);
mesmo assim, como partícipe do tropicalismo e ao mesmo tempo “estrangeiro”,
“alienígena”, as experimentações de Tom Zé, sobretudo o tom mais irônico, tanto das
letras, uso dos gêneros, temas urbanos, coadunam com essa postura metalinguística em
torno dos gêneros musicais, numa tentativa de fazê-lo alcançar novos espaços. “Quero
48
(VELOSO, 2003, p. 63)
64
Sambar Meu Bem” tem justamente essa condução rítmica, calcada num arranjo pop,
entre guitarra e sopros. Atentem para a dicção dos versos “saudade perfumada” e
“tradição embalsamada”, de forma irônica, Tom Zé canta ao mesmo tempo que debocha
no canto, dando maior ênfase a essas críticas. Assim como nos estudos do samba
posteriores de Tom Zé, em que “o tema é o samba, apanágio da cultura popular,
circunscrito a um contexto que envolve crítica, experimentação e canção popular.”
(OLIVEIRA, 2014, p. 64).
As saudades do tropicalismo debocham de seu “perfume” (lirismo, floreio) e sua
continuidade como repetição (segunda geração da bossa nova). Elas gritam “chega”,
mas que não comportam acabar com a bossa ou com o samba, na verdade, desconstruí-
los, é disso que trata a canção crítica tropicalista.
Essa retomada crítica dos gêneros é presente no manguebeat, mas dada a
distância temporal que separam esses dois momentos, os artistas de Pernambuco
lidaram menos com gêneros hegemônicos nacionais, mas com sonoridades localizadas
na região nordeste, com uma abordagem crítica dessas sonoridades.
No entanto, apesar de os músicos não terem tratado sobre o frevo em suas
canções, ao terem voltado suas poéticas para o maracatu, coco, ciranda, entre outros, o
frevo, dentre todos esses gêneros, é o que continua a manter-se estável, como tradição,
visto que são escassos os artistas a lidarem com ele de forma inovadora. Ainda nos anos
1960, é emblemático que o disco tropicalista de Gil seja aberto por um frevo, ainda que
rasgado, o adjetivo não pressupõe uma mirada radical ao gênero. A canção serve mais
como marcação de posição de liberdade do tropicalismo, na lida em sua poética com
gêneros musicais quaisquer. A relação universal-local a que tratamos anteriormente,
aqui, nessa faixa, se justifica como referência. Ao tropicalismo cabia o frevo, como
caberia (coube) uma infinidade de gêneros. É notório no tropicalismo, como temos
demonstrado, que:
Ao tropicalismo caberia, portanto, promover a mistura ou, em outras
palavras, salientar que a canção brasileira precisa do bolero, do tango, do
rock, do rap, do reggae, dos ritmos regionais, do brega, do novo, do obsoleto,
enfim, de todas as tendências que já cruzaram, continuam cruzando ou ainda
cruzarão o país em algum momento. (TATIT, 2004, p. 211).
Essa posição de lidar com as tendências musicais que fazem parte da diversidade
cultural característica do país tem nos “sambas” de CSNZ uma de suas forças. A música
“Samba Makossa” remete justamente a isso, ao tratar-se de uma canção que reflete
65
sobre a própria canção, sobre o uso dos ritmos e gêneros como potência criativa.
“Samba” e “makossa” já assumem essa posição criativa, de conexão, além do mais, pelo
fato de “makossa” vir de outra canção, “Soul makossa”, do músico camaronês Manu
Dibango, assim como essa, põe em diálogo gêneros massivos e locais, numa junção que
promove a quebra das fronteiras e desloca o tempo todo os ritmos e suas geografias.
CSNZ constroem a sua “makossa” através do samba subvertido através de sample, do
canto imperativo, da aceleração constante, através de uma noção festiva do samba,
daquele que consagra a festa, a celebração, como num samba-de-roda, ao mesmo tempo
que trata da “responsabilidade de tocar o seu pandeiro”, de “manter-se inteiro”, ao passo
que este samba também é “bom na cabeça”, assim como o “Samba da minha terra”, de
Caymmi, de “Quem não gosta do samba/ Bom sujeito não é/ É ruim da cabeça/ Ou
doente do pé”. Cuícas, guitarras, conduções do baixo, colagens e repetições do canto
dos versos “samba” e “makossa”, dão ao fim da canção um momento extremamente rico
do arranjo, fazendo essa confluência de ritmos sua grande força.
“Samba do lado”, presente no segundo disco de CSNZ, apresenta um
aprofundamento dessas experiências. Essa concepção de “samba” como festa ou
celebração também está presente na canção,
faminto e calmo o samba chegou
domingo de todos os lados
daqui pra ali, de lá pra cá
pode-se escutar o som aqui no Brasil49
Ao contrário da canção anterior, em que colagens e agrupamentos sonoros dos arranjos
apresentavam-se como pequenos recortes, nesta canção há sonoridade é mais coesa,
construída pela presença constante da voz e guitarra num jogo de pergunta e resposta,
com maior ênfase em:
e você samba de que lado
de que lado você samba
e você samba de que lado
de que lado você samba
de que lado, de que lado
de que lado, de que lado
você vai sambar50
49
De Chico Science, in: Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music,
1996.
50
In: Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music, 1996.
66
Esses dois lugares de construção do arranjo, a voz e a guitarra, se colocam em
“confronto” e ao passo dos versos vão subindo de tom até a pergunta final, “de que lado
você vai sambar (?)”.
Ao remetermos ao samba como construção estética e seus diferentes
desenvolvimentos e hibridações sofridas pelo modo como, nos exemplos citados, nas
canções do tropicalismo e manguebeat, são referenciadas e reconstruídas musicalmente,
a aproximação do samba a sonoridades presentes mais recentemente na música
contemporânea, como o rap ou, de forma mais abrangente, na cultura hip-hop, que está
presente de modo crítico em CSNZ, já que esses elementos estão sempre em prol do
deslocamento, no livro O Atlântico Negro (2012), do pesquisador Paul Gilroy, ao tratar
da música negra, na especificidade do uso da colagem ou sample, e que trata da “arte
negra na era da simulação digital”, no qual afirma que:
[...] instrumentos acústicos e elétricos são inorganicamente combinados com
sintetizadores digitais, uma multiplicidade de sons encontrados; gritos
típicos, fragmentos mordazes de discurso ou canto e amostra de gravações
anteriores – tanto vocais como instrumentais – cuja textualidade aberta é
atacada em afirmações brincalhonas do espírito insubordinado que amarra
essa forma radical a uma importante definição de negritude. (GILROY, 2012,
p. 212).
Assim, compreendemos no uso crítico do samba, rap, funk, soul, em CNSZ, um
“espírito de subordinação” que faz todo o sentido se pensarmos no modo crítico como
esse mesmo “espírito” se faz presente no tropicalismo, mas atentando para as diferenças
históricas e de repertório e referências que naturalmente separam esses artistas. Gilroy
também faz uma comparação entre tempos históricos distintos, e associa o contador de
histórias africano ao rapper atual, com isso, reflete como:
Velho e novo, Oriente e Ocidente simplesmente se dissolvem um no outro,
ou melhor, no receptáculo fornecido para sua interação pela grandiosidade
narrativa da força e durabilidade cultural africano-americana. (Ibidem, p.
219).
Com essa visão, temos demonstrado como é possível pôr em perspectiva
períodos histórico distintos, a partir de uma retomada de seus aspectos críticos, por
hora, aqueles que se deslocam sonoramente de suas canções.
A seguir, procuraremos discorrer sobre como a letra das canções também
assume um lugar crítico importante, em como a materialidade de sua poética, na junção
67
entre letra e música é uma das forças da música brasileira, e como essa força se
comporta na comparação entre as poéticas presentes nos movimentos aqui tratados.
4.4 Palavras cantadas, palavras
A canção brasileira guarda na relação entre a letra e a música uma de suas forças,
sobretudo por equilibrar e manter o diálogo criativo e inventivo entre o texto e o som.
Essa relação remonta aos primeiros passos da poesia, na sua origem oral.
Pode-se dizer que o nascimento do homem está atrelado ao da poesia. Podemos
imaginar, nos primórdios da humanidade, a nossa história sendo contada e passada, de
geração em geração, através dos versos. Assim sendo, a musicalidade desses versos era
de extrema importância, pois era preciso guardar na memória as histórias contadas para
depois passá-las às próximas gerações. O poeta Octavio Paz afirmou que “os astecas
recitavam, cantavam e, o mais admirável, dançavam seus poemas.51”
Depois, com a evolução da humanidade, a escrita começa a tomar forma. Do
período grego, Paz afirma que:
As coletâneas de textos poéticos, verdadeiras escrituras de fundação,
constituíam o que nossa sociedade secular chama agora um cânone clássico.
Sem esses poemas é impossível conhecer e compreender essas sociedades.52
Ou seja, a nossa história, como a conhecemos, deve muito à poesia. A Grécia, por
exemplo, não seria o que é se não fosse pela existência de poemas como a Odisseia e a
Ilíada. A nossa noção histórica e cultural desse período passa, necessariamente, pela
existência e sobrevivência desses poemas.
Mas é no período conhecido como Trovadorismo, surgido no século XII, na idade
média, que surgem certas características bastante próximas do que conhecemos hoje
entre os compositores e cantores da música popular brasileira, ou mais precisamente dos
cantautores, ou seja, daqueles que cantam as canções de sua autoria. A poesia no
Trovadorismo era acompanhada por instrumentos musicais, como o alaúde, o cistre e a
vielle (viola). Os trovadores utilizavam-se dos instrumentos para cantar o que
compunham, e posteriormente, esses poemas cantados eram registrados em
Cancioneiros. Ao refletirmos historicamente sobre a relação da poesia com a música,
51
(PAZ, 1993, p. 97).
52
(Idem).
68
tratando-a de contextualizá-la com o período dos trovadores, vamos ao encontro das
discussões em torno das fronteiras limítrofes entre o poema e a letra de música. O
poema como palavra, a canção como palavra cantada, em que essas duas palavras
conferem características de poesia. Para o autor de poemas e canções, Waly Salomão,
A língua portuguesa tem tradição na fusão entre a poesia e a letra de uma
música. Existem sutis diferenças entre as duas, claro, mas elas estão muito
próximas. Não há uma regra definida para o que pode ou não ser poesia. Eu
não aceito quando alguns professores de Português, estrategicamente, tentam
fazer uma separação entre as duas áreas. A única coisa que eles conseguem
dizer é que poesia é aquele texto que se sustenta na página. Para mim, este
argumento não faz o menor sentido.53
Essa visão aposta mais em evidenciar similaridades do que a, normativamente, expor
diferenças. Já o sociólogo e músico Sebastião Vila Nova destaca a origem da poesia
como ponto crucial para a aproximação, mas deixa clara a separação entre essas formas
de criação, quando afirma que:
A letra de uma música é uma coisa bastante diferente de um poema. A poesia
e a música têm relação por suas origens. Elas nasceram juntas e é por isso
que a poesia tem um certo ritmo. Por outro lado, eu admito que
excepcionalmente alguns artistas conseguem se superar e fazer letras poéticas
independente da música. Chico Buarque, por exemplo, em Brejo da Cruz.
Essa letra pode ser lida no papel como um poema. Caetano Veloso também
atinge isso quando faz letras experimentais.54
Muito mais do que discorrer sobre as relações entre poesia e canção, o que nos
interessa na análise das canções do tropicalismo e manguebeat, é destacar como a
palavra da canção assume uma posição crítica importante, quando pomos em evidência
a materialidade da poética das canções, ou em como essa evidência caracteriza tanto a
estética tropicalista quanto a mangue.
Reconhecer na poesia a musicalidade que se oferece ao compositor, é dado
histórico importante, mas muito mais do que afirmar o que é poesia ou o que é letra,
será o de assumir a palavra da canção como um dos elementos principais para o
reconhecimento das trajetórias que firmam a singularidade das composições e suas
53
CONTINENTE Online. Poetas e compositores expõem as diferenças entre o poema e a canção.
Disponível em < http://www.revistacontinente.com.br/secoes/artes-visuais/926-a-
contenente/revista/especial/18612-Poetas-e-compositores-exp%C3%B5em-as-diferen%C3%A7as-entre-
o-poema-e-a-can%C3%A7%C3%A3o.html> Acesso em 20 de março de 2016.
54
(Idem).
69
formas de pôr o texto, assim como os gêneros e sonoridades, em deslocamento, visto
que:
Como não é um poema musicado, o texto não pode ser examinado em si,
independentemente da melodia – se isso for feito, pode-se ter, quando muito,
uma análise temática. (FAVARETTO, 2007, p. 33).
Com isso, poderemos refletir sobre as fronteiras limítrofes a que nos referimos, entre as
formas de lidar com a palavra, nas canções do tropicalismo e manguebeat, sobretudo,
por serem formas críticas de acionar tais questões. Mas sem nos separarmos dos
aspectos musicais que envolvem tais palavras, já que se tratam de palavras cantadas.
Ainda que “palavras poéticas”, como ensaia Barthes:
Cada palavra poética é assim um objeto inesperado, uma caixa de Pandora de
onde saem voando todas as virtualidades da linguagem; é portanto produzida
e consumida com uma curiosidade particular, uma espécie de gulodice
sagrada. (BARTHES, 2000, pp. 44-45).
As canções do tropicalismo e manguebeat têm um modo especial de lidar com a
palavra, enquanto Augusto de Campos fala em “poesia cantada” para se referir aos
compositores Gil e Caetano:
Gil e Caetano reabilitaram um gênero meio morto: a poesia cantada. [...] Eles
atingiram um grande refinamento nessa modalidade de melopéia, nesta arte
rara que Pound evocando os trovadores provençais, denomina motz el son,
isto é, a arte de combinar palavra & som. (CAMPOS, 2015, p. 292, grifo do
autor).
As composições de CSNZ se caracterizam pelo rhythm and poetry, ou seja, pelo rap. No
entanto, esse gênero, dentro da cultura hip-hop, encontra diálogo com a embolada,
[...] o canto atua na interseção de entoações do rap (gênero midiático) e da
embolada (regional). (LIMA, 2007, p. 96)
Fortemente enquadrado na cultura hip-hop, creditada a sua origem ao músico
nova-iorquino Afrika Bambaata, nos anos 1970, o rap nasce como uma cultura
periférica, de combate às hegemonias sociais, políticas, bem como da dominação do
aparato tecnológico e de difusão das grandes corporações da indústria cultural. Ao
rapper basta a palavra e a vontade inata de criticar o establishment, denunciar a
violência sofrida pelos jovens, majoritariamente negros, das periferias das metrópoles.
70
Dos desafios de improviso entre os rappers, para o contexto brasileiro, há um
diálogo possível, pelo menos do ponto de vista do desafio ou duelo entre os
improvisadores, com a cultura dos repentistas e dos emboladores, sobretudo da região
Nordeste. Mas o rap enquanto gênero se estabelece, principalmente, nas capitais de São
Paulo e Rio de Janeiro, na primeira revelando como principal expoente, o grupo
Racionais MC’s, já no Rio de Janeiro, artistas como MV Bill e Marcelo D2, de modos
diferentes, alimentaram o rap com outras características, tanto sonoras quanto
discursivas.
Como força discursiva do rap, de uma forma geral,
O discurso engendrado pelo rap se constitui como relatos de uma experiência
não apenas visível no campo do poético, mas manifesta na força da dicção,
da atitude do rapper diante do que canta, do que celebra ou do que denuncia.
A palavra, nesse caso, assume sua dupla capacidade: por um lado, revela seu
poder encantatório, já que se mostra como síntese do vivido e do
experimentado; por outro lado, articula novos sonhos, novas esperanças,
velhas mazelas. (INÁCIO, 2008, p. 57-58).
O caráter de testemunho presente nas letras é característica fundamental para a
compreensão do rap. Há nas letras uma forma muito sutil de personificação do presente
através das narrativas desenvolvidas em muitas das músicas, no qual personagens,
situações e denúncias são reescritas a partir da realidade vivida por um grupo
caracterizado como marginalizado, para criar um efeito de sentido em que a mensagem
de cada testemunho seja personalizada pelos ouvintes. À música cabe traduzir os sons
da cidade com o aparato tecnológico possível, ao discurso sintetizar medos e esperanças
que comuniquem a uma comunidade um caminho que difira do habitual, como no
trecho de “A cidade”, de Chico Science:
Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu
Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu
Pra gente sair da lama e enfrentar os urubu
Num dia de sol Recife acordou
Com a mesma fedentina do dia anterior55
Para os artistas, o rap é muito mais que um gênero musical, mas uma forma de
sobrevivência e posicionamento político e social, por isso mesmo crítica. Naves (2010)
lembra que uma corrente mais tradicional do rap brasileiro se constrói a partir de uma
perspectiva predominantemente realista. De forma naturalista, os artistas descrevem os
55
In: Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro: Sony Music, 1994.
71
espaços urbanos onde vivem como “mundo sinistro”, “pesadelo periférico” e “filme de
terror”, respectivamente, em trechos de musicas de MV Bill, Racionais MC’s e Nega
Gizza. Esse procedimento de descrição em analogia pretende intensificar a denúncia de
como os espaços urbanos são marginalizados e relegados pelo Estado. Em CSNZ essa
perspectiva do espaço está tanto em “A cidade”, como por exemplo, em “Antene-se”,
Entulhados à beira do Capibaribe
Na quarta pior cidade do mundo56
Do ponto de vista sonoro, os grupos de rap, em sua maioria, se formaram tendo
como referência um DJ responsável pela base musical, a utilizarem da colagem a partir
de recortes de diversos outros gêneros e artistas, como os oriundos da soul music, funk,
samba, rock e da música popular do brasil. Em CSNZ não propriamente a figura do DJ,
mas a estética da colagem está presente em muitas das canções, assim como os gêneros
acima mencionados também estão presentes.
Em que pesem as semelhanças do artista moderno e do rapper como
bricoleurs, radicaliza-se no rap o procedimento da colagem. A própria
linguagem do rap se estrutura a partir da colagem, levando o recurso às
citações do repertório legado pela tradição (musical, cinematográfica,
literário etc.) às últimas consequências. Ao agir dessa forma, o rapper cria
uma tensão entre a suposta referencialidade à realidade dura contida em sua
narrativa e procedimento intertextual que costuma adotar (NAVES, 2010, p.
137).
De tal modo, o rap contempla aspectos culturais, sociológicos, políticos e
estéticos; de forte cunho ideológico, os artistas aproximam o discurso presente nas letras
ao caráter de testemunho de uma realidade subjugada pela sociedade. É pela canção,
crítica, que os grupos oriundos da cultura hip-hop fazem do rap sua voz mais atuante.
Essa característica do uso da palavra cantada é uma das grandes forças de Chico
Science, como poética, enquanto na mundo livre s/a a palavra não é propriamente
inclinada pela dicção do rap, mas pela entoação do samba, mas como se trata de um
samba noise, deslocado, haverá sempre um grito entre a melodia, um rasgo entre a voz e
o canto. Zero Quatro se equilibra entre melodias e dicções do samba e rock, mas uma
canção como “Militando na contrainformação”, em que a letra é lida pelo músico, traz
uma abordagem totalmente diferente, visto que a letra é a transcrição de uma conversa
entre Rubens Ricupero e Carlos Monforte, conhecida como “escândalo da parabólica”,
56
(idem)
72
resultado de uma transmissão televisiva vazada em 1 de setembro de 1994. No encarte
do disco o compositor se apropria criativamente do vazamento ao afirmar que foi
“captada pelas parabólicas do mangue”.
Mesmo que majoritariamente tratemos de canções e não de poemas ou textos
musicados, vale destacar algumas exceções do tropicalismo, como “Objeto semi-
identificado”57, de Gilberto Gil e Rogério Duarte e “Acrilírico”58, de Caetano Veloso,
ambas em parceria com o maestro Rogério Duprat, em álbuns solos lançados em 1969.
As duas canções se valem pela palavra sem melodia. As leituras dos textos se fazem ao
redor de arranjos experimentais conduzidos por Duprat, com sons orquestrais, ruídos,
paisagens sonoras, intervenções de improviso, colagens e leituras por várias vozes.
O texto na música de Gil se comporta a partir de vários fragmentos, abertos por
“- Diga lá. - Digo eu. - Diga você.”59, seguidos de uma prosa atravessada por
sonoridades desvinculadas de um gênero musical específico. Já o texto de Caetano
Veloso se vincula entre prosa e poesia, pela linguagem poética adotada pelo compositor.
Seja pelos elementos visuais que se fundem em palavras inventadas, neologismos, com
as vozes intercaladas entre os versos a partir de uma sonoridade que amplia a
visualidade e espacialidade do texto, no arranjo orquestral e de ruídos de Duprat.
Olhar colírico
Lírios plásticos do campo e do contracampo
Telástico cinemascope teu sorriso tudo isso
Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido
Na minha adolescidade
Idade de pedra e paz
[...]
Acre e lírico o sorvete
Acrilíco Santo Amargo da Putrificação60
57
In: Gilberto Gil. Gilberto Gil. Rio de Janeiro: CBD/Philipis, 1968.
58
In: Caetano Veloso. Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Phillips, 1967.
59
“Uma leitura de pequenos excertos dos nossos cadernos de anotações - meu e de Rogério Duarte -,
fruto das longas conversas que tivemos durante os três meses [após a prisão no Rio] em que convivemos
então em Salvador; das nossas especulações sobre sobrenaturalidade e hiper-realidade; das nossas leituras
sobre yoga; das elaborações que fiz de minhas meditações na prisão. O Rogério Duprat colocou a música
depois.” Disponível em < http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=4> Acesso em 05 de
março de 2016.
60
“É um caso raro de texto que escrevi sem ser para letra de música. Também não sabia se era prosa ou
poesia. O meu interesse era pelas palavras inventadas, pela mistura que se podia fazer com elas [...]. O
acrílico era um material novo, tinha justo aparecido, e como o texto tem várias reminiscências, a palavra
acrilírico dava uma espécie de nó no tempo.” (VELOSO, 2003, p. 63, grifo do autor).
73
Com isso, nessa vinculação entre palavras cantadas e palavras, gêneros
deslocados, sonoridades distendidas e estéticas que se afirmam entre o global/universal
e o local, temos um escopo crítico importante para colocarmos em diálogo, entre atos,
outras canções críticas do tropicalismo e manguebeat.
74
5. ENTREATOS
I – Movimento, ações
Afora as canções “Tropicália” e “Manguebit”, tratadas no primeiro capítulo
como canções-manifesto, muitas outras músicas do tropicalismo e manguebeat possuem
chaves interessantes para a análise sob esse ponto de vista. Ou seja, canções que
criticamente se comportam como gérmen das movimentações artísticas – por
características estéticas intrínsecas a elas – que posteriormente resultariam em
movimentos culturais que marcariam, em seus determinados contextos, um período e
recorte importante da música popular brasileira.
“Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, de seu disco homônimo de 1967, e
“Domingo no parque”, de Gilberto Gil, lançado em 1968, são também marcos
inaugurais, sobretudo pela presença cênica-musical das duas canções apresentadas no
festival da Record de 1967. Além do aspecto sonoro das canções, a simples presença
das guitarras (em Caetano), bem como o diálogo entre o arranjo orquestral, jogo
discursivo (a narrativa e a linguagem cinematográfica da letra da canção) e outras
guitarras mais berimbau (em Gil, arranjos de Rogério Duprat mais participação dos
Mutantes), deram a esta presença um aspecto crítico que somado ao próprio corpo das
canções, sua linguagem, foi fundamental para a compreensão que temos acerca do
tropicalismo.
Outra canção do período, sobretudo pelo aspecto de manifesto da letra da canção
e deu seu arranjo-colagem, de Torquato Neto e Gilberto Gil, do disco coletivo
Tropicália - Ou Panis et Circencis (1968), é a música “Geleia Geral”, com seu acento
de anunciação (do movimento, do período histórico) e paródia que percorre toda a
canção.
No manguebeat, as canções “Monólogo ao pé do ouvido”, do disco Da lama ao
caos (1994), e “Manguetown”, de Afrociberdelia (1996), de Chico Science & Nação
Zumbi, e “Cidade Estuário”, de Samba esquema noise (1994), da mundo livre s/a,
apresentam outros pontos de inflexão que localizam algumas ideias fundadoras do
manguebeat, como a visão sobre a cidade como espaço para a reflexão, ao mesmo
tempo em que dela se tira o seu sustento criativo, também é sobre ela que se tecem suas
críticas. Outro aspecto presente são as reflexões sobre música e criação que Chico
Science canta-declama em tom introdutório, do que se manifesta na faixa que abre o
75
primeiro álbum do grupo, por consequência, cronologicamente, o primeiro do
manguebeat.
Na relação entre essas canções, poderemos observar as sonoridades expandidas,
o jogo entre local e universal, o eu-lírico que se movimenta, observa e canta/conta a
geografia que o cerca, e em como cada canção é também um retrato bastante
característico do cerne dos movimentos.
5.1 Caminhando contra o vento. Andando por entre os becos
Há um movimento contínuo e imagético entre letra e música e as ações narradas,
cantadas, nas canções “Alegria, alegria”, “Domingo no parque”, “Manguetown” e
“Cidade estuário”, sobretudo pelo seu aspecto visual, das imagens que as canções
suscitam. O eu-lírico em “Alegria, alegria” e “Manguetown” está em movimentação,
mas o faz por caminhos diversos. Um país, uma cidade, um corpo que personifica sua
condição perante o contexto que o cerca, são partes das condições que se destacam das
poéticas que atravessam essas canções, ao menos o que transborda pela margem das
próprias músicas. Esse mover-se, no entanto, é feito sob condições adversas, mas de
afirmação:
Eu vou
Por que não, por que não61
Trata-se de caminhar em meio a um caos que, aparentemente poderia paralisar as
ações, mas, pelo contrário, de dentro do labirinto caótico de imagens do Brasil nos anos
1960 ou da Recife dos anos 1990, é sua condição.
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone
No coração do Brasil62
andando por entre os becos
andando em coletivos
ninguém foge à vida suja
dos dias da manguetown63
61
“Alegria, Alegria”, in: Caetano Veloso. Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Phillips, 1967.
62
(Idem).
63
“Manguetown”, in: Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music, 1996.
76
Há, no entanto, no deslocamento dos gêneros musicais muitas disparidades. Se
em “Alegria, Alegria” e em “Domingo no parque”, uma marcha, um toque de capoeira,
uma rima, uma narrativa está a serviço dos arranjos de forma convergente; no
manguebeat a violência que retratam da manguetown está convulsionada dentro do
corpo sonoro da canção. O balanço das guitarras da Nação Zumbi e do mundo livre s/a
(em “Cidade estuário”) quer essa violência como partícipe do arranjo. Ao contrário de
outras canções do grupo, em que o punk ou o rock mais “pesado” dialogam diretamente
com os temas sobre violência e desigualdade, dessa vez, a melodia e ritmo presente nas
canções acompanham um arranjo da ordem da dança, como se o mote da diversão
pudesse se organizar/desorganizar dentro da canção de forma mais plural.
fui no mangue catar lixo
pegar caranguejo
conversar com urubu64
Mangue – Manguetown
Cidade complexo
Caos portuário
Berçário/caos
Cidade estuário65
Não se trata do homem moderno do tropicalismo, que se liberta das amarras do
conservadorismo e está a par da fragmentação, das cores, da cultura de massas.
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas66
[...]
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot67
Mas o homem animalesco do manguebeat, alimentando-se, rastejando-se, voando,
sobrevivendo na cidade-estuário:
esta noite sairei, vou beber com meus amigos
e com as asas que os urubus me deram ao dia
eu voarei por toda a periferia68
64
(Idem)
65
“Cidade estuário”, in: Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo: Banguela Records, 1994.
66
“Alegria, Alegria”, in: Caetano Veloso. Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Phillips, 1967.
67
(Idem).
68
“Manguetown”, in: Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music, 1996.
77
Água, Salobra, Desova e criação
Matéria orgânica, troca e produção
Recife – Cidade – Estuário
És – Tu...69
Essas distinções são passíveis porque localizadas em contextos de produção
distintos. No entanto, nessas canções há uma visível preocupação em refletir sobre a
condição do homem urbano, mesmo que de um lado você tenha o eu-lírico que canta
“eu vou”, enquanto de outro lado a narrativa em 3ª pessoa de “Domingo no parque”,
com seu aspecto cinematográfico, aglutina diferentes cortes e ações e tem no plano
sonoro um arranjo que dialoga de maneira estrita com a narrativa da canção, quase que
como uma trilha sonora de um roteiro nunca filmado, apenas imaginado por quem ouve
a canção. Em “Cidade estuário”, a cidade, diferentemente de “Manguetown”, é
observada, como que à distância, o eu-lírico se despe da presença e faz da cidade ela
própria uma presença: “És – Tu”.
Cidade Estuário é fiel aos discursos mais constantes na produção identificada
como manguebeat. Embora não enfatize sonoridades regionais em sua
configuração plástica, na esfera linguística a canção traz índices peculiares ao
local de origem da cena mangue, citando Recife, e abordando a proposta de
revitalização da cidade a partir do modelo de pluralidade orgânica que ocorre
nos manguezais. (LIMA, 2007, p. 148, grifo da autora).
Mesmo que por poéticas distintas, uma das características que estas canções
provocam ao pormos elas em diálogo, é que mesmo dentro do tropicalismo e
manguebeat, como vemos demonstrando durante a pesquisa, não há uma unidade
estética que vincule os movimentos, por exemplo, a um único gênero musical, ou
mesmo que “tropicalismo” e “manguebeat”, como termos isolados, sejam considerados
eles próprios gêneros musicais. Ao contrário, a característica que os aproxima é a de
justamente deslocar os gêneros musicais de seus espaços, por características e poéticas
que são singulares, ou seja, criticamente dentro do bojo de canções, álbuns e artistas de
ambos os movimentos, será possível percebermos canções (e críticas) muito diferentes
umas das outras.
Os próprios exemplos citados nesse tópico reverberam tal condição, com
Caetano Veloso e Gilberto Gil explorando nuances totalmente diversas umas das outras,
assim como CSNZ e mundo livre s/a, ainda assim, ambientados pela visão crítica em
69
“Cidade estuário”, in: Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo: Banguela Records, 1994.
78
tratar a canção brasileira como fluxos constantes em que temas possam ser analisados
como premissas para a análise comparativa, ainda que por períodos históricos distintos.
Assim, a desfragmentação das canções é posta visto que nos interessa abordar os
aspectos críticos, estéticos e poéticos tensionados pelas canções críticas, quando
comparadas não entre si, mas a partir dos elementos outrora mencionados.
5.2 Modernizar o passado. Ê, bumba-yê-yê-boi
É sintomático na trajetória crítica que vimos estabelecendo nas canções do
manguebeat e do tropicalismo, que a canção crítica, como instrumental teórico, possa
ser vinculada como base para que temas e abordagens de várias ordens transpassem
livremente pelas próprias canções. “Modernizar o passado”70, a afirmação em si,
poderia muito bem estar vinculada a um texto crítico sobre a música brasileira, ou a um
manifesto artístico contra a sujeição a modos de criação fora do estabelecido como
cultura popular, tradição.
No entanto, são esses os versos que abrem o primeiro disco de CSNZ, Da lama ao
caos (1994). Essa mirada crítica não está vinculada somente à letra da canção. A música
soa como prenúncio, chamamento do que viria a ser celebrado no corpo maior de
canções que comporiam o primeiro disco do grupo, com as características sonoras e
poéticas que a fortuna crítica sobre o movimento cristalizou, como a que afirma que:
Da Lama ao Caos estabelece pontes mais frequentes com o hard rock, o
heavy metal e o rock psicodélico; com a música black afro-americana (rap,
funk, soul music); com as matrizes do african pop (highlife, Ju-Ju e makossa)
e com as matrizes regionais geralmente associadas ao folclore (maracatu,
coco, pastoril, ciranda etc.). (LIMA, 2008, p. 04).
Esse abre-alas da canção (do movimento) é vinculado pelo canto como um “monólogo”,
mas que alude ao “homem coletivo (que) sente a necessidade de lutar”, e essa “luta”
será posta no campo da arte, sem, no entanto, desvincularmos os aspectos estéticos e
políticos expostos a essa luta. Para tal, outras personagens/referências são lembradas,
como expressão de suas forças, proeminentemente políticas, mas como artífices
deslocados da política institucional:
70
“Mónologo ao pé do ouvido”, in: Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro:
Sony Music, 1994.
79
Viva zapata!
Viva sandino!
Viva zumbi!
Antônio Conselheiro!
Todos os panteras negras
Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia71
O tom discursivo faz com que a sonoridade se estabeleça como que em
suspensão, com o ritmo marcado pela força das alfaias e pela marcação de um gonguê
eletrônico (cf. VARGAS, 2007, p. 38) que atravessa o “monólogo” até a canção
seguinte, “Banditismo por uma questão de classe”. O tema da música encontra eco na
canção “Sangue de bairro”, presente em Afrociberdelia e também na trilha sonora de
Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, ambos os trabalhos lançados em
1996, no qual a figura de Lampião e seu bando põe em conflito o lugar do marginal, do
bandido, perante a discussão sobre política e violência na sociedade brasileira72.
Mas, ainda sobre o mote da “modernidade do passado”, o verso seguinte, que
afirma sê-lo “uma evolução musical”, a nosso ver – tendo em vista as próprias canções,
discos e proposições estéticas (não restritivas a um modelo) que se expandem sonora e
poeticamente nas obras dos artistas – tratar-se-ia mais de uma “reinvenção musical”, ou
seja, a partir de uma desconstrução e releitura crítica da música produzida até então, seja
ela categorizada como “regional”, “local” ou “globalizada”, o manguebeat tratou do
maracatu, da ciranda, entre outros ritmos mais localizados em Pernambuco, como
sonoridades tão contemporâneas quanto as dos rock, pop, rap, música eletrônica etc.
Por isso, é que entendemos, na comparação com outra proposição crítica, agora
do período tropicalista, cunhado por Caetano Veloso, de “retomada da linha evolutiva”
da música brasileira, também o seja como retomada da linha inventiva na música,
sobretudo na canção brasileira, por esse aspecto reconstrutivo das tradições e
sonoridades mais globalizadas, com que ambos os movimentos, cada qual com suas
poéticas distintas, trataram.
71
(Idem)
72
Ainda que não guarde relação direta, a obra Seja marginal, seja herói (1968), do artista visual Hélio
Oiticica, esteve presente no tropicalismo, quando estampada em bandeira na apresentação musical de
Caetano Veloso, Gilberto Gil e os Mutantes no bar Sucata, no Rio de Janeiro, em 1968. A “marginália”
ou “cultura marginal” se desenvolveria no mesmo período do tropicalismo e, sobretudo, posteriormente a
ele, com a presença de artistas como o próprio Oiticica, o cineasta Rogério Sganzerla, o poeta e letrista
Waly Salomão, Torquato Neto, um dos principais atuantes no tropicalismo, entre outros. Para
aprofundamento deste tema, acessar a publicação: Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado:
cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970 (2010), do pesquisador e ensaísta Fred Coelho.
80
Ao analisarmos uma das canções mais significativas do tropicalismo, pelo seu
aspecto paródico, irônico e crítico, como “Geleia geral”, letra de Torquato Neto e
música de Gilberto Gil, também poderemos vislumbrar das “estratégias” que marcaram
o tropicalismo como um movimento a par da “reinvenção” e “desconstrução” dos
lugares estáveis da canção popular brasileira (e da cultura brasileira), pelo menos
aqueles localizados no centro nervoso das discussões estéticas e políticas no final dos
anos 1960.
A canção se porta como uma colcha de retalhos a trilhar os caminhos que
compõem a narrativa do tropicalismo. Quando mencionamos “a canção”, não
vinculamos apenas a extensa letra, mas em como o arranjo é todo composto de forma
paródica, propondo diálogo com o que menciona a letra, nas menções ao “LP de
Sinatra”, aos “Três destaques da Portela”, por exemplo, e vai compondo por recortes,
por “devoramentos” e ritmos variados, ao que o canto também percorre esse mesmo
caminho, com as entonações de Gilberto Gil, sobretudo no trecho declamado da canção:
É a mesma dança na sala
No Canecão, na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela
Carne-seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade jardim73
É importante ressaltar, sobretudo por nos apoiarmos no conceito de canção
crítica, e sua derivação do compositor crítico, que Torquato Neto, autor dessa letra, teve
papel fundamental dentro dos debates que estavam em voga durante o período
tropicalista, pois além da atuação como letrista, foi autor de inúmeros artigos sobre os
temas que circundavam o movimento, ainda no período pré-tropicalista e subsequente a
ele, se considerarmos os anos de 1967 a 1969 como o cerne do movimento, pelo menos
73
“Geleia Geral”, in: Vários. Tropicália - Ou Panis et Circencis. Rio de Janeiro: Phillips, 1968.
81
do ponto de vista de sua discografia principal. Como jornalista, Torquato assinou a
coluna de mesmo nome da canção, “Geleia Geral”, no jornal carioca Última Hora. Além
de colaborações em outros jornais e publicações, portanto, sua atuação se expandia para
além das canções.
Em textos como a entrevista “Capinam dá as cartas”74, com o letrista e poeta
José Carlos Capinan (atuante no tropicalismo, parceiro dos músicos baianos desde
período anterior ao movimento), nos artigos “Compositores e críticos” e “Tropicalismo
para iniciantes”, na conversa “Diálogo”75, com o designer Rogério Duarte (atuante no
tropicalismo com projetos gráficos de discos e também das discussões com os outros
participantes), no quase manifesto “Torquatália III” e na entrevista “Lembranças
tropicalistas”, é possível percebermos como o compositor abria novas vias de tensão e
crítica que não cabiam na poética das canções, mas que no espaço narrativo-
argumentativo dos textos ocupavam lugar de atuação importante, dentro do espaço
midiático que o movimento tropicalista veio a ocupar, seja nos textos dos próprios
participantes, artigos críticos ao que eles estavam propondo, debates na tv, entrevistas
diversas, entre outros.
Assim, vemos o autor se movimentar como crítico e compositor, ou como vemos
defendendo a partir das proposições de Santuza Cambraia Naves, como compositor
crítico, seja no campo das canções, como está posta em “Geleia Geral”, por exemplo, na
sua multiplicidade de referências, como nos textos que destacamos, no qual podemos
elencar algumas de suas ideias, como:
Foi em 1917 que apareceu em disco, pela primeira vez, a palavra “samba”.
Durante muito tempo, esse ritmo foi sinônimo e símbolo da música popular
brasileira. Agora talvez não seja mais: os novos compositores parecem
dispostos a tomar outros caminhos e uma reação já se organiza para combatê-
76
los .
Assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem
preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas
vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda
77
desconhecido .
74
Originalmente publicado no Jornal dos Sports, em 19 de março de 1967. (COELHO; COHN, 2008, p.
34).
75
Conversa realizada em 1968, e publicada em Os últimos dias de paupéria (Max Limonad, 1982)
(Ibidem, p. 136).
76
“Compositores e críticos”, originalmente publicado no Jornal dos Sports, em 27 de setembro de 1967.
(Ibidem, p. 40).
77
“Tropicalismo para iniciantes”, originalmente escrito em fevereiro de 1968, publicado em Os últimos
dias de paupéria, 1973 (Ibidem, p. 92).
82
Na geleia geral brasileira, a repressão é um fenômeno muito mais amplo do
que geralmente se vê. na música popular brasileira (1968), a repressão é
absolutamente evidente: ninguém, a bem da verdade, esconde o seu jogo.
estamos todos ao redor da mesa, a mesma mesa, e somos vistos. pois é: é
78
preciso virar a mesa (hélio oiticica) .
O que se chamou de tropicalismo (esse nome nunca foi dado por nós, foi pela
imprensa) foi uma tentativa de propor uma certa liberdade de criação dentro
da MPB “pura” versus iê-iê-iê, essa coisa meio histérica e absolutamente
reacionária e alienada de nossa época. [...] Fizemos aquele disco manifesto
Tropicália, onde tem bolero, onde tem Coração Materno, onde a gente
79
desenterrou todos os fantasmas da música autêntica brasileira .
Eu prefiro chamar Tropicália. “Ismo” enquadra o negócio demais, nem
corresponde ao que a gente estava querendo. Nós começamos o movimento
na música, que refletiu em todas as manifestações de cultura brasileira80.
Como vemos, questões como tradição e gênero musical, estética, identidade
nacional, estética tropicalista, relações com a imprensa, noções de grupo ou movimento,
processos de criação e conjecturas sobre as consequências críticas do movimento estão
na ordem do que forma a obra crítica de Torquato, consequentemente, são questões que
margeavam entre crítica e criação, ou seja, entre o material publicado como artigo ou
entrevistas na imprensa, e as canções compostas durante o período citado.
Porém, há uma síntese poética presente na canção “Geleia Geral”, como
manifesto e crítica, que converge muitas das questões retratadas por Torquato e pelos
tropicalistas, localizado, estrategicamente como refrão da música:
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi81
Nele, se posiciona o que Torquato trouxe como “certa liberdade de criação dentro da
MPB ‘pura’ versus iê-iê-iê”, que congrega a tradição do bumba-meu-boi, ou seja, uma
das formas tradicionais que caracterizam a cultura brasileira, mais a presença do rock,
sobretudo o da jovem guarda, de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, entre
outros, de grande sucesso comercial na mesma época, tão debatida/rebatida nos final
dos anos 1960. O refrão se faz como “dança” que liberta e amplia as possibilidades para
78
“Torquatália III”, originalmente publicado no O Estudo, jornal estudantil de Ivan Cardoso, em 1968.
(Ibidem, pp. 196-197. Grifo do autor).
79
“Lembranças tropicalistas”, originalmente publicada no Jornal Opinião, em 31 de janeiro de 1971.
(Ibidem, pp. 253-254).
80
(Ibidem, p. 254)
81
“Geleia Geral”, in: Vários. Tropicália - Ou Panis et Circencis. Rio de Janeiro: Phillips, 1968.
83
a música. Assim, essa aglutinação “bumba-yê-yê-boi” é uma das coisas que forma a
estética da “geleia geral brasileira”, em como se caracteriza um de seus pontos de
tensão, proeminentemente críticos.
Ao sugerir as possibilidades de novos híbridos culturais baseados em danças
tradicionais e no rock, a música contestava as noções vigentes de
autenticidade cultural no Brasil. (DUNN, 2009, p. 118).
A consequência de tal atitude foi a de aperfeiçoar e deixar mais claro, seja do
ponto de vista das canções, ou mesmo dos embates, o que significaria no plano estético
a música tropicalista, o que estava sendo posto em questão/ação.
Por conseguinte, poderemos analisar no tópico seguinte, o que já atravessamos
do ponto de vista teórico-crítico, sobre a noção de gênero deslocado, agora, presente no
corpo de outras canções que são/não são cirandas, sambas e têm nesses deslocamentos
uma ação metalinguística, ou seja, cantar uma canção enquanto se tematiza sobre o
próprio objeto.
II – Gênero, sons
A desestabilização dos gêneros musicais se comporta como uma poética crítica que
encontrou na história da música brasileira algumas importantes vertentes de criação. Na
linha que vimos traçando acerca do deslocamento que os artistas do tropicalismo e
manguebeat empreenderam em muitas de suas canções, no que concerne ao tratamento
crítico dado aos gêneros musicais, ou seja, desfazendo-se dos engessamentos ou
limitações de ordem estética, muitas vezes associada a uma defesa da tradição, ou pela
manutenção de especificidades rítmicas, instrumentação etc. Sem, com isso, criarem um
gênero ou estilo novo, o que fizeram foi o de optar por embaralhar certas noções de
gênero e destituir fronteiras entre o que era considerado como música “universal” e
“local”.
Com essa atitude crítica, de um lado o tropicalismo convulsionou a sigla MPB, ao
mesmo tempo que nela incluía sonoridades rejeitadas por parcela significativa dos
músicos de sua geração, de outro lado, o manguebeat experimentou fazer da cor local
uma das principais referências de sua paleta de cores, expandindo o aspecto sonoro para
os temas das letras, a simbologia em torno do “mangue”, a performance, o aspecto
84
visual, sem com isso criar dicotomias entre gêneros musicais, ou seja, essa cor estava na
ordem da experiência com outras cores, e transparecia nas canções dos artistas.
As canções críticas que desenvolvem poética e musicalmente uma linguagem
metalinguística, por tratarem, seja na titulação das músicas ou em aspectos presentes nas
próprias letras, sobre a canção em si, como reflete Dunn (2009), ao analisar a música
“Divino, maravilhoso”, de Caetano e Gil:
A segunda estrofe incita o ouvinte a prestar “atenção para o refrão” da música
enquanto sugere ser necessário refletir de forma crítica sobre seu significado.
Nesse sentido, trata-se de outra metamúsica sobre o posicionamento do
artista, o papel da recepção e a importância da interpretação aberta. (Idem, p.
137)
É um outro modo crítico de tratar a canção, sob o ponto de vista da reflexão sobre ela
mesma, ou seja, uma “metamúsica”, assim como é significativa na presença discursiva
de ritmos como “ciranda”, “maracatu”, “samba”, “samba pesado”, “noise”, “embolada”,
presentes em algumas canções de CSNZ e mundo livre s/a, no corpo das letras e na
titulação das músicas, juntam-se aos “atenção para o refrão”, ou “escute essa canção”82,
em músicas do tropicalismo, como expressão metalinguística, que coadunam de outra
forma como reflexão sobre a canção, ou, de um modo geral, sobre a própria música.
Como procuraremos destacar na análise dessas e de outras canções.
5.3 Gira, ciranda. Vou dançar uma ciranda pra beber
A “ciranda”83 dos Mutantes desestabiliza o ritmo pelo desmembramento rítmico a
partir das conexões que estabelece com o rock e a psicodelia, imanada pela referência
aos Beatles e ao rock inglês, pelo uso de efeitos sonoros diversos que tematizam a
“mágica” como tom alegórico presente na sonoridade de “Mágica”, a faixa do grupo.
Por essa estética, os Mutantes evidenciam um lugar paródico-experimental, também
caracterizado pela estética tropicalista, mas que nessa canção traz uma nuance própria,
pelo aprofundamento na construção do arranjo a partir da guitarra, dos vocais e da
relação de desconstrução com o ritmo “ciranda”, ou seja, pela forma como ele é pré-
82
“Qualquer Bobagem”, de Tom Zé e Os Mutantes, in: Os Mutantes. Os Mutantes. São Paulo:
Polydor/Polygram, 1969.
83
“Mágica”, dos Mutantes, in: Os Mutantes. Os Mutantes. São Paulo: Polydor/Polygram, 1969.
85
concebido na cultura popular. Presente, de um lado, na própria letra da canção, no
encadeamento das rimas entre os versos e na temática usual da letra:
Gira, ciranda
Na palma da mão
Pé de roseira
Levanta a poeira do chão
Gira, a menina
Na palma da mão
Gira, menina, que um dia
Eu te ponho no chão84
Ao retirarmos o aspecto sonoro, instrumental da música, analisando a letra de forma
crua, poucos indícios poderiam ser observados como experimentação em torno da
“ciranda”, visto que a letra está na ordem do comum, do que é natural como cantiga
incorporada pelos ritmos em torno da ciranda. No entanto, o compositor Arnaldo
Baptista afirma o seguinte, sobre a relação entre a música dos Mutantes e a estética do
tropicalismo: “Tenho a impressão de que a principal característica do nosso
tropicalismo é a ironia que introduzimos em todas as formas musicais acabadas”.
(CALADO, 1995, p.124, grifo do autor).
Essa “ironia” é o componente crítico que transforma a “forma musical acabada”
da ciranda, como poética, que se mantém estável na letra dos Mutantes, mas que é
desconstruída quando incorporada pelo arranjo musical e instrumentação.
Abri o portão de ouro
Da máquina do tempo
Ouvi ciranda ao longe
A rodar...
As caras giram rindo
Eu amo todas elas
Os vestidos tão compridos
A rodar...85
A segunda parte da canção exposta pelas estrofes que versam sobre uma
“máquina do tempo”, “uma ciranda ao longe”, “a rodar...” se desenvolvem na canção
por esse campo circular e cíclico que é presente no ritmo da ciranda, mas o faz pelo
caminho da sonoridade paródica, pela citação no final da música aos Rolling Stones, na
música “(I Can't Get No) Satisfaction”, e sobrepostos aos “Hey hey hey” que os
84
(idem).
85
“Mágica”, in: Os Mutantes. Os Mutantes. São Paulo: Polydor/Polygram, 1969.
86
Mutantes cantam, deslocam cirandas, cultura popular, música pop, rock ’n’ roll para um
mesmo espectro sonoro, num mesmo tempo possível como que por “mágica”.
À época dos festivais de música popular, o pesquisador Carlos Calado descreve
como a canção foi recebida por parcela significativa do público, durante apresentação
ao vivo:
Mágica, uma ciranda temperada com rock, foi a canção inscrita pelos
Mutantes nesse festival. Era uma das primeiras composições coletivas do trio,
com letra de Rita e Arnaldo, melodia de Serginho e arranjo de Rogério
Duprat. Para interpretá-la, os três convocaram o próprio Duprat, tocando seu
violoncelo eletrificado (Cláudio César instalou um captador no instrumento),
e Liminha (na época, guitarrista dos Baobás, conjunto que estava
acompanhando Caetano Veloso), no violão de 12 cordas. O resultado não
poderia ser melhor. Da terceira eliminatória, que aconteceu, dia 7 de julho, no
auditório da TV Excelsior, na rua Nestor Pestana, o trio já saiu como o
vencedor... em vaias: “Fora! Isto é um festival de música brasileira!”,
gritaram, entre outras coisas, da plateia. [...] Era difícil saber o que mais
chocara a ala conservadora do público: as guitarras elétricas e a mistura de
cantiga de roda com rock ou as roupas extravagantes do trio. (Idem, 1995,
pp.124-125, grifo do autor).
Tal reação da plateia nos é especialmente interessante para refletirmos como as
concepções de “música brasileira” puderam ser alargadas pelos Mutantes, sobretudo
pelos aspectos paródicos e irônicos presentes na sonoridade do grupo.
Diferentemente dos Mutantes, a relação do grupo CSNZ com os ritmos
tradicionais, apesar das hibridações e experimentações empreendidas, não se dava por
esse caminho irônico, mas pela reiteração de seus lugares de construção, revelando na
abordagem dos ritmos como mais um espaço poético para a criação e fusão de
sonoridades. Em “A praieira”, a ciranda está presente como uma paisagem sonora
presente na geografia do eu-lírico:
No caminho é que se vê a praia melhor pra ficar
Tenho a hora certa para beber
Uma cerveja antes do almoço é muito bom
Pra ficar pensando melhor
E eu piso onde quiser, você está girando melhor, garota!
Na areia onde o mar chegou, a ciranda acabou de começar, e ela é!
E é praieira! Segura bem forte a mão
E é praieira! Vou lembrando a revolução, vou lembrando a revolução
87
Mas há fronteiras nos jardins da razão86
Na canção, riffs de guitarra conduzem a sonoridade da faixa com a base percussiva
reiterando o ritmo da ciranda, visto que a ciranda está presente discursivamente na letra
da canção. Comumente identificada por estar presente em regiões litorâneas, a ciranda,
a que podemos exemplificar com a cantora Lia de Itamaracá, a principal expoente do
ritmo, em Pernambuco, o tema da canção converge o espaço referente na letra com uma
sonoridade característica de tal espaço. No entanto, a “ciranda” de CSNZ tem na
sonoridade rock o seu principal elemento narrativo, ou seja, é pela rítmica da guitarra
que a canção comunica criticamente como o ritmo da ciranda pode se conectar a outras
experiências instrumentais, sonoras.
E na praia é que se vê, a areia melhor pra deitar
Vou dançar uma ciranda pra beber
Uma cerveja antes do almoço é muito bom
Pra ficar pensando melhor87
“A praieira” mantém os versos se repetindo, com pequenas alterações, e conjuga
poéticas da música pop com a presença do fecho do refrão, com isso, mantém no plano
expressivo a célula rítmica da ciranda em diálogo com a sonoridade rock, sobretudo
pela presença constante do riff que caracteriza a música.
Por vias antagônicas, mas como canções críticas, apesar das diferenças com que
deslocam a ciranda de sua poética, CSNZ e Mutantes tiveram nesse modo de construção
crítica uma forma original de tratar sobre os gêneros musicais, ainda que por acessos de
criação distintos.
5.4 Eu tenho feito samba pesado. Atenção para o refrão.
A mundo livre s/a mantém no segundo álbum do grupo, Guentando a ôia, de 1996,
as poéticas críticas que caracterizariam a sua estreia com Samba esquema noise, de
1994, em diálogo com a estética manguebeat, em suma, com os artistas da cena musical
pernambucana de sua geração, sem que tal atitude significasse imposições estéticas de
86
De Chico Science, in: Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro: Sony Music,
1994.
87
(Idem).
88
qualquer ordem. Visto que os motes da diversidade/diversão estavam em voga à época e
se expandiam entre canções, performances, debates, entrevistas ou textos-manifestos.
A canção “Destruindo a camada de ozônio”, letra de Zero Quatro e música de Zero
Quatro, Tony Regalia e Fábio Malandragem, presente no segundo disco do grupo,
contém no corpo da letra aspectos que temos configurado como metalinguísticos e que
convergem para o conceito de canção crítica, já que o próprio objeto-canção, ou seja, a
unidade letra e música, apresenta aspectos críticos, seja sobre a música, a cultura de um
modo geral, política, sociedade etc.
Não espere nada do centro
Se a periferia está morta
Pois o que era velho no norte
Se torna novo no sul88
Tratando os espaços centro, periferia, norte e sul como locais de disputa e tensão, a
canção reflete sobre as hierarquizações culturais que definem novidades mais pelo seu
aspecto geográfico do que propriamente estético. O canto é urgente, de várias vozes, a
instrumentação mantém as linhas do baixo e guitarra em diálogo enquanto os teclados
desenham outros contornos para a sonoridade da faixa, entre o rock e o ska, sem
necessariamente estar vinculado estritamente a esses gêneros, sobretudo pelo eu-poético
que afirma fazer “samba pesado”, na estrofe seguinte:
Eu tenho feito samba pesado
Misturado sons, inventado estilos
Eu venho repensando o sucesso
E destruindo a camada de ozônio89
Essa reiteração através da nomeação de um gênero musical, mas acompanhado da
adjetivação “pesado”, como outrora o próprio grupo já o classificou como “noise”,
assim, ambos conjugam de forte relação, de um samba que se faz pela violência, pelo
ruído, grito, elementos mais característicos do punk ou mesmo do rock, com os quais o
mundo livre s/a têm influência. Ao “misturar sons”, “inventar estilos”, o compositor
crítico desajusta os lugares demarcados de sonoridades, ritmos ou gêneros musicais via
canção crítica.
88
“Destruindo a camada de ozônio”, in: Mundo Livre S/A. Guentando a ôia. São Paulo: Banguela
Records, 1996.
89
(Idem).
89
A canção dá uma virada para outros temas, não menos críticos, mas que não se
desenvolvem para a questão do gênero musical, mas se assume como voz às violências
institucionais que se afirmam pelas políticas públicas desenvolvidas pelo Estado:
Eu venho perseguindo bandidos
Pedindo a pena de morte
Recitando psicotrópicos
Aplicando eletrochoques
E destruindo a camada de ozônio90
O verso que encerra a canção, que diz: “Eu só queria ser Romário...”, desloca todos
os temas da canção para o principal jogador de futebol da seleção brasileira na copa do
mundo de 1994, ano de vitória com o tetra campeonato (e ano de lançamento do disco
que contém esta canção), e está mais para uma ironia que revela na figura do jogador
uma personagem de poder alheia a todas essas questões tratadas na canção.
A um outro elemento metalinguístico de tratar a canção, para além da reiteração, ou
“autorreferência” a gêneros musicais, ou seja, aquele que reclama na própria canção
elementos que são constitutivos à sua poética. “Divino, maravilhoso”, de Caetano
Veloso e Gilberto Gil, gravada por Gal Costa em seu álbum solo de 1968 guarda essa
característica.
Lançada no período da ditadura militar, a canção se apresenta como interlocutora a
chamar a atenção para os perigos iminentes da luta contra o regime imposto.
É muito política, do período das passeatas, da preparação para a luta
clandestina. Foi feita com muita consciência. Muitos não entenderam,
achavam que os tropicalistas eram alienados porque não fazíamos o papel do
esquerdista convencional. (VELOSO, 2003, p. 35)
À época enquadrada como “canção de protesto”, por seu tom de denúncia mais
direto, em nossa análise se comporta como canção crítica por justamente desconstruir
com os arquétipos da canção brasileira de protesto, ao conceber numa sonoridade pop
uma de suas características poéticas, diferentemente do tom nacionalista das canções da
época. Visto que incluir elementos da música estrangeira em sua base de referências,
como fez o tropicalismo, para a “esquerda convencional”, como afirma Caetano,
desviava a crítica dos lugares mais comuns da música de protesto.
90
(Idem).
90
A figura de Gal Costa, antes associada estritamente ao canto bossanovista, tinha
na sua interpretação agressiva para os padrões da MPB da época, uma expansão da
canção que era incorporada por sua performance, seu grito, sua dicção mais próxima de
cantoras como Janis Joplin ou Mick Jagger, na explosão do corpo-canto como unidade
poética. Seu canto explorava o equilíbrio entre os campos da fala e da melodia, mas
incorporava, nessa canção, o ruído, a agressividade, a violência, assim, incorporava na
sonoridade elementos que estavam sendo referenciados no corpo do texto da canção.
Os tropicalistas realizaram a vinculação de texto e melodia, explorando o
domínio da entoação, o deslizar do corpo da linguagem, na materialidade do
canto e da fala, operados na conexão da língua e sua dicção [...]
(FAVARETTO, 2007, p. 37).
Afora isso, a “metamúsica”, como bem lembra Dunn (2009), é outra
consequência da canção crítica como autorreferência e, por consequência, reflexão:
Atenção
Ao dobrar uma esquina
Uma alegria
Atenção, menina
Você vem?
Quantos anos você tem?
Atenção
Precisa ter olhos firmes
Pra este sol
Para esta escuridão
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino, maravilhoso
Atenção para o refrão:
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte91
A canção se volta para uma juventude estudantil e urbana, e relaciona o que é
“perigoso” ao o que é “divino, maravilhoso”, como forças correlatas para quem luta
contra a ditadura militar. O “refrão”, a “estrofe”, a “palavra de ordem”, o “samba-
exaltação”, são outras forças de convergência para o aspecto metalinguístico e de
interlocução que a canção (imperativa) conclama. A essa altura a música se constrói sob
acentuada sonoridade rock, com vocais que acompanham o canto de Gal Costa a criar
sobreposições como se outras vozes a acompanham-se nesse “refrão” necessário para a
91
“Divino, maravilhoso”, in: Gal Costa. Gal Costa. Rio de Janeiro: Phillips, 1968.
91
luta contra a ditadura militar. As vozes se complementam, se dão força contra o regime
imposto.
Atenção
Para a estrofe, pro refrão
Pro palavrão
Para a palavra de ordem
Atenção
Para o samba-exaltação92
É relevante também notarmos a referência ao “samba-exaltação” numa canção
que notadamente quer ser imperativa e manifestar, exaltar as suas “palavras de ordem”
como poéticas críticas contra ao que está posto no contexto político e cultural dos anos
1960, mas que o faz como um pop-exaltação, sem elementos do samba implícitos na
música.
Além desses elementos, a canção ressalta a geografia urbana e as grandes
passeatas e manifestações do período, com menções claras à violência militar. Ao isolar
o refrão no final da canção, que diz: “É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de
temer a morte”, sem a interlocução do verso: “Atenção para o refrão:”, que precedia as
estrofes anteriores, ressalta o caráter coletivo, simbólico e de síntese da canção, que é
repetido pelo canto de Gal e pelas vozes que a circundam, como se ao caminha sobre o
“asfalto”, sobre o “mangue”, esse refrão pudesse ser cantando em uníssono e ressoar por
esta geografia, apesar do “sangue sobre o chão”, do temor pela morte.
Atenção
Para as janelas no alto
Atenção
Ao pisar o asfalto, o mangue
Atenção
Para o sangue sobre o chão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte93
Outra canção metalinguística do tropicalismo, “Não identificado”, de Caetano
Veloso, gravada pelo próprio músico em 1969 e também por Gal Costa, em seu disco
solo de 1968, no arranjo de Duprat para Gal, explode a princípio com uma infinidade de
sons aleatórios, de modo imagético, como que em referência à presença de um “objeto
(voador) não identificado”, mas que se desfaz a par de uma sonoridade pop com
referências à Jovem Guarda, o que no plano do texto, é explicitado em “Eu vou fazer
92
(Idem).
93
(Idem).
92
um iê-iê-iê romântico”. A canção é construída toda por um eu-lírico-compositor que
tem no plano do arranjo um diálogo entre os sons orquestrais e o que é cantado na letra,
como pequenas variações da sonoridade justamente em ideias-chave como “romântico”,
“sentimental”, “canção de amor”, “disco voador”, “espaço sideral”, como se o arranjo
também se comportasse de forma imagética, ou seja, o que está sendo dito no plano da
letra encontra consonância no plano sonoro. A canção se encerra com os mesmos sons
aleatórios, caóticos, deste “objeto não identificado”, ou “Como um objeto não
identificado”.
Eu vou fazer uma canção pra ela
Uma canção singela, brasileira
Para lançar depois do carnaval
Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico
Um anticomputador sentimental
Eu vou fazer uma canção de amor
Para gravar um disco voador
Uma canção dizendo tudo a ela
Que ainda estou sozinho, apaixonado
Para lançar no espaço sideral
Minha paixão há de brilhar na noite
No céu de uma cidade do interior
Como um objeto não identificado94
De outro lado, os Mutantes exploravam a ironia como característica de sua
canção crítica, elemento este que estava presente também nas canções do primeiro
disco de Tom Zé, Grande Liquidação (1968), como crônicas urbanas a par de uma
poética ao mesmo tempo rural e cosmopolita. O tom irônico de “Qualquer Bobagem”,
vide o período de intensos debates sobre música e política, sobretudo pelo tom de
protesto de muitas canções do período, fizeram dessa parceria dos Mutantes e Tom Zé
um dos emblemas tropicalistas que faziam a esquerda de forma contumaz classificar os
músicos do tropicalismo como alienados, com sua “canção” ou “qualquer bobagem”.
Escute esta canção
Ou qualquer bobagem
Ouça o coração, amor
Escute esta canção
Ou qualquer bobagem
Ouça o coração, amor
Que mais, sei lá95
94
“Não identificado”, in: Gal Costa. Gal Costa. Rio de Janeiro: Phillips, 1968.
95
“Qualquer Bobagem”, in: Os Mutantes. Os Mutantes. São Paulo: Polydor/Polygram, 1969.
93
A gravação no segundo disco dos Mutantes, em 1969, tem um tom também irônico na
dicção “quebrada” de Arnaldo Baptista, na repetição de sílabas, como se gaguejasse ao
cantar, reforçando o tom despojado da letra. A sonoridade da música é grandiloquente
com teclados e sopros carregados sob os vocais de Arnaldo, Rita Lee e Sergio Baptista.
De tal forma, podemos concluir como os gêneros musicais e as canções críticas
convergem poeticamente a partir das referências explícitas nas letras das canções, como
estratégia de deslocamento de suas sonoridades, assim como o ouvinte é chamado para a
interpretação da canção, para o jogo reflexivo que os elementos metalinguísticos das
canções suscitam.
No tópico a seguir, procuraremos demonstrar como a cidade e os espaços
estiveram presentes como poética nas canções críticas do tropicalismo e manguebeat.
De antemão, vale advertir que os contextos históricos, políticos e geográficos que
separam esses dois movimentos, sobretudo nesta abordagem, apresentam muitas
diferenças. No entanto, a nossa análise buscará tão somente refletir sobre os elementos
críticos que as canções que tratam a partir das geografias de cada período estudado. Sem
procurar comparar de forma binária “cidade tropicalista” versus “cidade manguebeat”,
mas entender como as cidades e os espaços estavam representados em suas canções, e,
sobretudo, como as críticas se davam em cada um dos movimentos.
III- Cidades, espaços
Os diversos espaços, cidades, lugares, paisagens que circulam pelas canções dos
principais álbuns do tropicalismo e manguebeat revelam distinções claras, vide o arco
de tempo que separa esses dois momentos, e, sobretudo, a distância geográfica entre a
eclosão do tropicalismo nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo e as movimentações
oriundas dos músicos em Pernambuco, nas cidades, principalmente de Recife, Olinda e
Jaboatão dos Guararapes.
No entanto, das canções emergem trânsitos, ações e paisagens incorporadas por
violências que poeticamente fazem parte do corpo das canções como retratos críticos
dos períodos e geografias analisadas: um país sob a ditatura no final dos anos 1960 e
uma cidade “esclerosada, destituída, depauperada, embrutecida”96 no Nordeste do país.
Sob essas duas geografias, os compositores distenderam em suas poéticas um
96
“Cidade estuário”, de Zero Quatro, in: Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo: Banguela
Records, 1994.
94
emaranhado de referências de quem é trânsito e transitório, enquanto críticos dos
espaços em que circulavam como artistas e cidadãos.
Num grupo de canções do tropicalismo, destacaremos como a violência e o estado
de luta e tensão provocado pelo regime ditatorial imposto esteve presente em músicas
como “Enquanto seu lobo não vem”, “Lindonéia”, “Mamãe coragem” e “Marginália II”.
De outro modo, a violência da cidade no manguebeat se move como provocação
para a criação crítica, como na arquitetura de personagens e espaços de “A cidade”, na
crônica marginal de “Banditismo por uma questão de classe” ou do eu-caranguejo que
se move em “Da lama caos” e “Antene-se”, enquanto fotografa o que vê ao seu redor.
Enquanto neste primeiro grupo a violência se põe como um tema geral, num
segundo grupo de canções analisadas, os espaços, personagens e eu-poéticos estarão
invariavelmente em trânsito, por rios, pontes, calçamentos, mangues, ruas, como corpos
de lama de passagem, em Recife, na “Ilha Grande”, nas canções de CSNZ e mundo livre
s/a.
Já outros espaços se desenvolvem no tropicalismo pelo trânsito novo que os artistas
assumem na vida urbana, entre o amor e a dor de Tom Zé em “São São Paulo”, na
irônica “Não buzine que eu estou paquerando” ou nas profusões de personagens e eu-
líricos convivendo entre estórias e cidades, como nas músicas de Gil e Torquato Neto,
“A coisa mais linda que existe” e “Domingou”, e sobretudo, para a nossa análise de
canção crítica a visão lírica-paródica do espaço de Caetano em “Paisagem Útil” e as
experimentações de um eu-no-mundo nas canções-em-movimento dos Mutantes,
“Caminhante noturno” e “Fuga n° II”.
Nessas e em outras canções tropicalistas,
As “ações” ocorrem nas ruas, praças públicas, parques, que são lugares de
passagem e mudanças rápidas; ou, então, em interiores e exteriores
(psicológicos ou ideológicos) – salas de jantar, quintais, corredores, portões,
prateleiras, balcões. (FAVERETTO, 2007, pp. 92-93).
Será importante, na análise das canções, articular como tais “ações” convergem
criticamente para uma leitura dos espaços retratados.
Assim, nesses dois grupos de canções, entre cidades, violências, trânsitos e espaços,
procuraremos analisar as poéticas que tais geografias sugerem a partir de pontos de vista
e de criação diferentes.
95
5.5 Debaixo da lama. Num dia de sol
Uma alegórica canção abre espaços para o passeio-passeata “Enquanto seu lobo não
vem”97, sob a cadência de violões e os sopros e vozes que repetem “os clarins da banda
militar”, a manter sob esta batuta a posição de ordem. Por isso, a “floresta escondida”
se dá como partida para a “avenida”, as “veredas, no alto”, ou numa “cordilheira sob o
asfalto”. De modo paródico e alegórico, essa outrora história infantil é o mote para sob
uma sonoridade que parodia bandas militares marciais, chamar à rua o “meu amor”, a
população a se manifestar na “Avenida Presidente Vargas”, no Rio de Janeiro, mas
como faz em plena ditadura militar, deverá ser:
Debaixo das roupas das bombas
Das bandeiras, debaixo das botas
Debaixo das rosas dos jardins, debaixo da lama
Debaixo da cama, debaixo da cama
Debaixo da cama…98
As “bombas”, “bandeiras”, “botas” se contrapõem às “rosas”, “jardins”, “lama”
entre o que é violento, de fato, e que representa oficialmente o país, na presença das
“bandeiras”, “botas” e “bombas”, d’os clarins da banda militar que Gal Costa canta por
toda a canção, ao que é da ordem do delicado, do cuidado das “rosas”, “jardins”, mas
que debaixo da “lama”, “cama”, insurgem para o caos que tal violência proporciona e
que faz que “meu amor”, a população, mantenha-se retraída, “escondido”, distante das
“ruas largas”, permaneça ameaçado, com medo, “debaixo da cama”.
O tom paródico da canção como que crítica pela alusão às bandas marciais em
sua sonoridade, tem em “Mamãe Coragem” um arranjo coeso que mantém a melodia e
ritmo da canção num equilíbrio de um canto-confissão da “filha” que quer a
“felicidade”, “Na cidade que eu plantei pra mim/ E que não tem mais fim”.
Mamãe, mamãe, não chore
A vida é assim mesmo
Eu fui embora
Mamãe, mamãe, não chore
Eu nunca mais vou voltar por aí
Mamãe, mamãe, não chore
A vida é assim mesmo
Eu quero mesmo é isto aqui99
97
De Caetano Veloso, in: Tropicália - Ou Panis et Circencis. Rio de Janeiro: Phillips, 1968.
98
(Idem).
96
Enquanto a “cama” (reclusão interna) e a “lama” (reclusão externa) se
complementavam, aqui, por baixo de uma voz doce, duma melodia que passeia entre
vários pedidos-desejos,
Leia um romance
Veja as contas do mercado
Pague as prestações
Ser mãe
É desdobrar fibra por fibra
Os corações dos filhos
Seja feliz
Seja feliz100
A personagem está na “cidade”, na “lama”, por sua “felicidade”, distante da vida
familiar ordinária, indo “embora”. As duas canções se desdobram criticamente, visto
que as sirenes da polícia que reprimem passeatas e manifestações em “Enquanto seu
lobo não vem”, insurgem como paisagens sonoras na abertura de “Mamãe Coragem”, a
canção subsequente do álbum coletivo Tropicália - Ou Panis et Circencis; assim como
nesse espelhamento, os tropicalistas constroem uma narrativa crítica sobre a repressão e
as transformações da juventude nos final dos anos 1960, nessa cidade “que não tem
mais fim”.
Em “Lindonéia” retorna o tom paródico, através de um bolero recortado por
orquestrações que procuram mimetizar a narrativa da canção, cantada por Nara Leão.
Nela, destacamos a imagem poética de extrema violência que é construída pelos
compositores Caetano e Gil, num retrato mais cru do período retratado:
Despedaçados
Atropelados
Cachorros mortos nas ruas
Policiais vigiando
O sol batendo nas frutas
Sangrando101
99
De Caetano Veloso e Torquato Neto, cantada por Gal Costa, in: Tropicália - Ou Panis et Circencis.
Rio de Janeiro: Phillips, 1968.
100
(Idem).
101
“Lindoneia”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, cantada por Nara Leão, in: Tropicália - Ou Panis et
Circencis. Rio de Janeiro: Phillips, 1968.
97
A sonoridade paródica do tropicalismo se reflete num retrato do Brasil dos anos
1960, que aos músicos tropicalistas significava uma visão reflexiva sobre a situação
política e cultural que eles vivenciavam.
A importância coletiva da prática paródica sugere uma redefinição da paródia
como uma repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da
diferença no próprio âmago da semelhança. (HUTCHEON, 1991, p. 47).
De tal modo, as canções desenhavam geografias críticas através de poéticas que
ao se distanciarem da “música de protesto”, propunham uma fuga dos lugares comuns,
ao remeter a gêneros como bolero ou a arranjos que lembrassem bandas marciais
militares; essas escolhas tinham uma função crítica dentro do corpo das canções.
A paródia [...] que provoca, de forma paradoxal, uma confrontação direta
com o problema da relação do estético com o mundo de significação exterior
a si mesmo, com um mundo discursivo de sistemas semânticos socialmente
definidos (o passado e o presente) – em outras palavras, com o político e o
histórico (HUTCHEON, 1991, p. 42).
Com essa visão, compreendemos que a linguagem musical paródica é um elemento que
funciona como paisagem aos espaços discursivamente descritos dos espaços, ações e
cidades do tropicalismo.
Com as imagens de Marginália II102, de Gil e Torquato Neto: “fim do mundo”,
“Terceiro Mundo”, “Entre cascatas, palmeiras”, “Araçás e bananeiras”, “Minha terra
tem palmeiras” e “A bomba explode lá fora”, são construídas imagens desse Brasil de
“Tropical melancolia”, entre a imagem tropical estrangeira, de artistas como Carmem
Miranda, referenciada nos versos “Oh, yes, nós temos banana”, em canção gravada pela
cantora, de icônica imagem com cachos de banana como adereços que ornam o
penteado sobre sua cabeça, são o Brasil da matéria prima, repleto de cores, alegria. Esse
dado “tropical” é acompanhado pela “melancolia” que explode nesse mundo-país
repleto de contradições, a que os tropicalistas tratam de recriar, mais uma vez
parodicamente, nessa terra que tem palmeiras, da “Canção do exílio”, do poeta
Gonçalves Dias, nutre a canção da “marginália” tropicalista que brasileiro, confessa,
sua culpa, seu pecado103.
A “confissão tropicalista” desconstrói a imagem do país, idílica, pacífica, numa
sonoridade repleta de imagens poéticas violentas, mas, em especial, em “Marginália II”,
102
In: Gilberto Gil. Gilberto Gil. Rio de Janeiro: CBD/Philipis, 1968.
103
“Marginália II”, In: Gilberto Gil. Gilberto Gil. Rio de Janeiro: CBD/Philipis, 1968.
98
o tom é grandiloquente, de anúncio efusivo, festivo: “Aqui é o fim do mundo/ Aqui é o
fim do mundo/ Aqui é o fim do mundo”104, exaltam. Assim, “debaixo da lama”105,
explode o país tropicalista a redesenhar mapas do país e da música popular brasileira.
Enquanto os tropicalistas desconstruíam a imagem de “Brasil” através da
composição de ações em espaços e cidades sob a tensão política da ditadura militar,
num país em face de um desenvolvimento urbano, nas canções “[...] faz intervir, como
elemento contrastante, a sensibilidade moderna, urbano-industrial – múltipla,
fragmentária, que não se deixa aprisionar por um único referencial”. (FAVARETTO,
2007, pp. 95).
No manguebeat, a instabilidade provocada pelo regime militar não estava mais
presente. A cidade está estabilizada e não se trata mais de descontruir a sua visão, mas o
de escancarar, mostrar as feridas abertas que imobilizam culturalmente e socialmente os
cidadãos que nela habitam. Como descreve Zero Quatro num dos manifestos do
manguebeat:
Emergência! Um choque rápido, ou o Recife morre de infarto! Não é preciso
ser médico pra saber que a maneira mais simples de parar o coração de um
sujeito é obstruir as suas veias. O modo mais rápido também, de enfartar e
esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os
seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que
paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo deslobotomizar e recarregar as
baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco da energia na lama e
estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.106
Diferentemente do tropicalismo, a paródia e ironias são substituídas por um eu que está
constantemente em trânsito, na busca de uma visão realista dos espaços, sem filtros. As
linguagens musicais extraídas como poéticas de gêneros como rap e punk são as
referências que historicamente tratam o texto de forma mais crua, mas conectados a
ritmos e sonoridades como ciranda, maracatu, samba, entre outros, no caso específico
do manguebeat.
No entanto, o homem não é o homem, é o caranguejo (como personificação), a
cidade é o mangue, os rios são ruas, as ruas são rios, o trânsito não é só asfalto, também
é a lama. São desses trânsitos metafóricos que canções como “A cidade”, “Banditismo
104
(Idem).
105
“Enquanto seu lobo não vem”, in: Tropicália - Ou Panis et Circencis. Rio de Janeiro: Phillips, 1968.
106
Primeiro manifesto “Caranguejos com Cérebro”, escrito por Fred Zero Quatro. Trecho retirado no
tópico “Mangue – a cena”. In: Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro: Sony
Music, 1994.
99
por uma questão de classe”, “Da lama ao caos” e “Antene-se” representam importantes
retratos para a cidade, sua violência desvelada.
“A cidade” se abre fazendo uma analogia entre o desenvolvimento urbano de
uma cidade que “cresce” com suas “pedras evoluídas” enquanto “pedreiros suicidas”
são estes “de baixo” que descem enquanto edifícios, torres e construções “evoluem”
nessa cidade como “centro das ambições”. O refrão é analógico entre a ideia de
crescimento social da população e o crescimento vertiginoso das cidades.
A cidade não para, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce107
E mantém-se na canção essa relação de forças, “Sempre uns com mais e outros com
menos”. Na letra, um arco importante de personagens delineiam essa metrópole de
contradições, “cavaleiros” e “pedreiros”, “mendigos” e “ricos”, sempre numa relação de
oposição, mas que se abrangem no mapeamento de outros atores da cidade:
O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que cresceram com a força de pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
Não importa se são ruins, nem importa se são boas
E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs108
É importante ressaltar como contexto histórico acerca do manguebeat, que as
primeiras movimentações se originaram em festas na zona portuária do Recife, no
bairro do Recife Antigo, hoje somente bairro do Recife. Àquela altura o Recife Antigo
era um espaço relegado da cidade, com casarões abandonados pelo poder público. Os
produtores e artistas envolvidos na cena mangue alugaram prostíbulos na região do cais
para realizar as suas primeiras festas. Hoje, o “antigo” do bairro já não existe mais,
porém espaços culturais, polos de tecnologia, festejos do carnaval e outras atrações
turísticas e atividades deram nova vida ao bairro. Com essa revitalização, o bairro
“novo” do Recife se transformou num outro “centro das ambições”, com torres gêmeas
cobrindo paisagens históricas e espaços públicos loteados para iniciativas privadas,
enquanto outros espaços culturais (como o Casarão das Artes) e prédios antigos
107
“A cidade”, de Chico Science, in: Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro:
Sony Music, 1996.
108
(Idem).
100
continuam a conviver entre o “novo” e a ruína, como contradições que se verificam
numa caminhada pelo bairro, entre ruas de comércio intenso, shopping, livraria, bares,
lanchonetes etc.
Escrever hoje sobre o manguebeat e a cidade, sua relação, deverá passar
necessariamente por uma observação sobre movimentações como as do Ocupe Estelita e
do Direitos Urbanos, que em suas ações têm tido, além do debate sobre a cidade, a
música e artes de uma forma geral, como formas de ação e ocupação para aglutinar
cidadãos e para chamar a atenção de um maior número de pessoas para a discussão
sobre os rumos da cidade, em suma, sobre que cidade se quer construir.
Em “A cidade”, como tratamos no capítulo anterior, CSNZ reafirma através da
canção os aspectos sonoros que o acompanham enquanto artista no manguebeat,
Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu
Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu
Pra gente sair da lama e enfrentar os urubu109
Por essa poética, o grupo se torna bastante coerente com as intervenções que
propõem executar na música, tendo o maracatu a base da canção, além de um teclado
que norteia a canção de forma repetitiva e de uma guitarra mais suingada, a par de um
canto falado que canta/conta a sua história: “Num dia de sol Recife acordou/ Com a
mesma fedentina do dia anterior.”110
Em “Antene-se”, essa construção da cidade a partir de um eu que transita
também se faz presente, mas aqui os “homens caranguejos” se revelam como metáforas
em diálogo com fatos concretos sobre Recife111,
Entulhados à beira do Capibaribe
Na quarta pior cidade do mundo
Recife, cidade do mangue
Incrustada na lama dos manguezais
Onde estão os homens caranguejos112
109
(Idem).
110
“A cidade”, in: Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music, 1996.
111
“Nos últimos trinta anos a síndrome da estagnação, aliada à permanência do mito da ‘metrópole’, só
tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano. O Recife detém hoje o maior
índice de desemprego do país. Mais da metade dos seus habitantes moram em favelas e alagados.
Segundo um instituto de estudos populacionais de Washington, é hoje a quarta pior cidade do mundo para
se viver.”, do manifesto “Caranguejos com Cérebro”. Trecho retirado no tópico “Mangue – a cidade”. In:
Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro: Sony Music, 1994.
112
“Antene-se”, de Chico Science, in: Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro:
Sony Music, 1996.
101
As relações entre a cidade e o mangue estão mais às claras, pois Recife é a
“cidade do mangue/ Onde a lama é a insurreição”. No entanto, a canção clama por
“antenar boas vibrações”, “antenar boa diversão”, seguida dos ecos: “Sou, Sou, Sou,
Sou, Sou Mangueboy!”. Assim, a cidade se faz como crítica e criação, é a partir dela
que os artistas constroem suas identidades, fincam suas antenas.
Em “Da lama ao caos” e “Banditismo por uma questão de classe” a violência
urbana encontra no canto e efeitos de distorção das guitarras um tom mais agressivo. As
duas canções, apesar de tematizarem assuntos diferentes, evocam a violência tanto
discursivamente como sonoramente. CSNZ adotou tal sonoridade e, na primeira, deixou
espaços mais amplos para que a guitarra pudesse soar, enquanto no canto Chico Science
subia o tom e volume para cantar; na segunda canção a velocidade da dicção encontra
ecos com o rap e embolada, enquanto na anterior o rock se torna a principal referência.
Com vimos, no manguebeat e tropicalismo as formas diferentes de tratar a
violência urbana revelada pelas canções são possíveis por estarem vinculadas a
contextos políticos diferentes. Enquanto os tropicalistas se valeram da paródia e ironia
em muitas de suas soluções estéticas, no manguebeat, a metáfora do mangue, do homem
caranguejo, penetrou no próprio corpo da cidade, na sua própria condição histórica. Por
sonoridades e estratégias bem distintas, violências e cidades foram compostas como
canções críticas enquanto objetos sonoros em transformação e como textos que
recorriam, ora à linguagem paródica, no caso geral do tropicalismo, ora ao verso cru da
estética rap e da metáfora mangue, nas canções por agora analisadas.
No entanto, canções bastante representativas como “Manguetown” ou “Cidade
estuário” não foram por nós analisadas neste tópico por já terem sido observadas em
capítulos anteriores. Portanto, mesmo na divisão crítica que fazemos entre as canções,
compreendemos que muitas delas poderiam ser passíveis de análise em mais de uma
ocasião. No tópico a seguir, vamos nos concentrar em analisar como o trânsito, a
circulação entre os espaços são retratados nas canções, e de que forma esses retratos
também se posicionam como críticos.
102
5.6 Rios, Pontes & Uma lua oval da ESSO
As músicas “Rios, pontes e overdrives”113, de Chico Science e Zero Quatro, e “Rios
(smart drugs), pontes e overdrives”114, de Zero Quatro, dos primeiros álbuns de CSNZ e
mundo livre s/a, se fixam nas imagens que se tornaram centrais na geografia do
manguebeat, ao caracterizar a “Veneza esclerosada”115 através da menção aos rios e
pontes do centro do Recife. A partir dessas fixações, em uma das canções a cidade se
expande para outros bairros e localidades:
É Macaxeira, Imbiribeira, Bom pastor, é o Ibura, Ipsep, Torreão, Casa
Amarela, Boa Viagem, Genipapo, Bonifácio, Santo Amaro, Madalena,
BoaVista, Dois Irmãos, é o Cais do porto, é Caxangá, é Brasilit, Beberibe,
CDU, Capibaribe e o Centrão116
Os rios e pontes se insurgem como símbolos do trânsito que a cena mangue
pretendia se movimentar ao “desobstruir”117 as veias da cidade, se conectando com a
periferia e outras zonas das cidades. A afluência da estética mangue partiria desse bem
comum, natural, da capital pernambucana, mas com um dado crítico sobre essas
imagens-símbolos:
Rios, veias, vias
Fios, margens, canais
Braços, berços, fontes
Plugues, leitos, marginais
Rios (smart drugs)
pontes, overdrives118
“Rios, veias, vias” convergem como elementos de passagem, “Fios, margens,
canais” como geografias que encorpam tal trânsito, “Braços, berços, fontes” são a
energia, a referência, a matéria prima, o gérmen de onde se nutre para a caminhada. No
entanto, essa natureza é fraturada pelo ruído, pelo estranho, que se conecta por
“Plugues, leitos, marginais”, a enraizar na terra os ecos que são cantados em repetição:
113
In: Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro: Sony Music, 1994.
114
In: Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo: Banguela Records, 1994.
115
“Cidade estuário”, in: Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo: Banguela Records, 1994.
116
Esse trecho de “Rios, pontes e overdrives” foi escrito originalmente pelo músico Otto, por ocasião de
um jingle gravado para uma campanha política.
117
Do primeiro manifesto “Caranguejos com Cérebro”, escrito por Fred Zero Quatro. No tópico “Mangue
– a cena”. In: Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro: Sony Music, 1994.
118
“Rios (smart drugs), pontes e overdrives”, in: Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo:
Banguela Records, 1994.
103
“Mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue”119, a partir de
“overdrives”, ou seja, na alteração da sonoridade com efeitos e trânsitos distintos dos
gêneros e ritmos característicos de Pernambuco. Ao incluírem “overdrives” no título e
refrão da canção, os compositores incorporaram tal efeito como um efeito crítico sobre a
música e a geografia da cidade. São “rios, “pontes” e o ruído, o que se desloca da
natureza e da arquitetura urbana. Com “(smart drugs)”, Zero Quatro inclui um novo
ruído à canção, como uma outra alteração do trânsito comum, visto que alterações de
consciência e psicodelia estavam na ordem do dia para os músicos do manguebeat,
presente inclusive como referência em textos e manifestos.
Em “Um passeio no mundo livre”120 a canção expande os caminhos para novas
trajetórias, outras cidades:
eu só quero andar
nas ruas de peixinhos
andar pelo Brasil
ou em qualquer cidade
andando pelo mundo
sem ter “sociedade”
andar com os meus amigos de eletricidade
andar com as meninas
sem ser incomodado121
Nela, o passeio parte das ruas de Peixinhos, em Olinda, para o Brasil, qualquer
cidade, andar pelo mundo. Assim como em “Rios, pontes e overdrives”, os
compositores assumem uma geografia local; na anterior a referência transita por bairros
diversos do Recife, já aqui, Peixinhos é eleita como geografia de partida. Não à toa, já
que é desta região o grupo percussivo Lamento Negro e o Daruê Malungo, espaço
cultural de Chão de Estrelas, ambos da origem do manguebeat, nos primeiros ensaios de
Chico Science ao que posteriormente viria a se tornar CSNZ.
Outro elemento de trânsito e espaços é o “corpo de lama” que une num mesmo
lugar o sujeito e a natureza:
este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que sou
este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que é tu122
119
“Rios, pontes e overdrives”, In: Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro:
Sony Music, 1994.
120
Letra: Chico Science, música: Dengue, Lúcio Maia, Gira, Jorge Du Peixe e Pupilo, in: Chico Science
& Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music, 1996.
121
(Idem).
104
Assim, as “impressionantes esculturas de lama” da música “Rios, pontes e overdrives”
se corporificaram na canção “Corpo de lama” com a imagem de um eu-tu que transita:
se o asfalto é meu amigo eu caminho
como aquele grupo de caranguejos
ouvindo a música dos trovões123
E o “corpo de lama” se transforma durante os refrãos na “chuva de longe”, “sol bem
longe”, “rua de longe” e “mangue de longe”, como podemos observar, ao isolarmos os
mesmos:
este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que sou
este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que é tu
essa chuva de longe que tu vê
é apenas a imagem que sou
esse sol bem longe que tu vê
é apenas a imagem que é tu
essa rua de longe que tu vê
é apenas a imagem que sou.
esse mangue de longe que tu vê
é apenas a imagem que é tu124
Assim, corpos, lama, mangue, chuva e rua se entrelaçam na canção também como uma
imagem que transita entre um eu e um tu que encorpora sujeitos, natureza e geografias
ao “longe”, como trajetórias a serem alcançadas, percorridas por tais sujeitos. Portanto,
a metáfora do “mangue” se alimenta de tais condições.
Enquanto nestas canções analisadas a corrente por onde os sujeitos transitam se
mostram mais homogêneas em torno da estética do manguebeat, sobretudo pela
geografia mais usual das cidades de Recife e Olinda, a mundo livre s/a recorre a uma
outra geografia, com novos mapeamentos, simbologias e, por conseguinte, sonoridades.
Enquanto em CSZN as hibridações e temáticas em torno do mangue e da fusão, na
desconstrução de ritmos que se davam, em “Sob o calçamento (se espumar é gente)”,
“Pastilhas coloridas” e “Musa da Ilha Grande” outros matizes são postos em profusão.
122
“Corpo de lama”, letra: Chico Science e Jorge Du Peixe, música: Dengue, Lúcio Maia e Gira, in:
Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music, 1996.
123
(Idem).
124
(Idem).
105
Da “Musa da Ilha Grande”125, para essa análise, nos interessa localizar essa
“musa” numa geografia local dos músicos da mundo livre s/a, a “Ilha Grande”, que
segundo José Teles (2012), era “[...] o ‘pedaço’ da praia, onde desde 1984 ele (Zero
Quatro) e sua turma reuniam-se no bairro de Candeias, em Jaboatão.” (Ibidem, p. 269).
Em “Pastilhas coloridas”126 essa geografia é rememorada por situações que se
expandiam para além da praia, como dá observação em torno do desenvolvimento
urbano do local, o que na letra nos mostra uma relação temporal mais longínqua, com o
surgimento de novos prédios e o sumiço dos campos de futebol. A situação social e
econômica também é rememorada de um ponto particular (mesadas) a problemas da
sociedade como um todo (desemprego).
Quando eu vim morar na Ilha Grande
Meu prédio era o only one da rua
Mas uns moleques já brincavam de trocar
Pastilhas coloridas
Nossos campos de pelada de repente sumindo
E as mesadas diminuindo
Nossos pais na pressão
Desemprego em massa
A vizinhança gravando direto
E a marcação cerrada dos prestativos
Mas nem sempre gentis homens da lei127
A canção se desenvolve num canto mais próximo da fala, a partir de uma letra que faz
uma leitura do passado. O arranjo se mantém circular a partir da unidade entre baixo,
teclado, bateria e guitarra, enquanto a prosa memorialista do texto é cantada. Outro
trecho da canção revolve a Ilha Grande, e estabelece distâncias, não apenas geográficas,
se considerarmos que o “mundo livre” pode se desdobrar na própria banda mundo livre
s/a, em face das dificuldades da banda em gravar, produzir, circular com a sua música
nos anos 1980, o que só seria concretizado de fato, a partir do manguebeat:
125
De Zero Quatro, in: Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo: Banguela Records, 1994.
126
Letra: Zero Quatro, música: Zero Quatro, Tony Regalia e Fábio Malandragem, in: Mundo Livre S/A.
Guentando a ôia. São Paulo: Banguela Records, 1996.
127
(Idem).
106
Os ratos engordando dia-a-dia
Com os nossos sonhos podres
E a gente inventando regras
Para sobreviver na Ilha Grande
Pois o continente parecia muito longe
E talvez não houvesse lugar para nós
No mundo livre128
Enquanto esta canção, do segundo disco, assume um tom de memória, em “Sob
o calçamento (se espumar é gente)”, do primeiro disco do grupo, é perceptível que a
violência ao retratar os espaços e seu trânsito é mais presente, tanto sonoramente quanto
na parte discursiva da canção. O arranjo se faz com uma voz e sonoridades mais tensas,
com um efeito de guitarra com maior peso, além da presença de outras guitarras e
colagens que se misturam ao som que os músicos tocam, dando uma sensação de caos.
O que é urbano (calçamento) se sobrepõe ao que é natural (mangue).
Terra por si só
não vira asfalto
Entre o concreto e o Pirelli
o cheira-cola morre
A carne gruda
O sangue escorre
Onde há calçamento
pode crer que havia – Mangue.129
A analogia que a música traz entre a proliferação urbana – representada aqui
pelo calçamento e o concreto sobre o mangue – e a do crescimento populacional, que na
referência ao verso “o cheira-cola morre”, se faz presente como consequência da falta
de políticas públicas, que no contexto dos centros urbanos e periferias das principais
capitais brasileiras transforma as populações de baixa renda em suas principais vítimas,
no qual o “cheira cola”, geralmente uma criança ou pessoa mais jovem, se utiliza da
cola para “enganar” a fome. A música se desenvolve a partir dessa ideia, e estabelece
uma relação de continuidade:
Nada como um poste
após o poste
Por baixo dos trens
estão os trilhos
Nada como um século
atrás de um século
Os filhos vão nos bagos
Saem dos pênis
Caem dos sacos dos filhos dos filhos130
128
(Idem).
129
De Zero Quatro, in: Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo: Banguela Records, 1994.
107
Os versos finais “Os filhos vão nos bagos/ Saem dos pênis/ Caem dos sacos dos
filhos dos filhos” são cantados em repetição, mas com alteração da ordem original da
letra, a partir de uma dicção mais próxima do rap, o que na ficha técnica é descrito
como “rap psicopata”, cantado por Sérgio Boneka. Esses versos são ditos enquanto o
verso “se espumar é gente” é repetido por Zero Quatro. Assim, a canção se faz de forma
análoga e se constrói a partir do imaginário do mangue, mas de uma forma crítica sobre
personagens que afluem pela cidade, de forma marginal, tornando-se por seu sangue
uma vítima do desenvolvimento social e político da cidade. Não há a metáfora do
homem caranguejo, do mangueboy, pois a imagem do sangue do cheira-cola, anônimo,
entre o concreto e uma marca famosa de pneus, Pirelli, retrata uma outra poética crítica
dentro das poéticas críticas que outras canções do manguebeat desenvolveram.
No tropicalismo, os espaços e sua consequente circulação apresentaram poéticas
distintas entre os compositores por nós destacados, como nas canções “Paisagem Útil” e
“Onde andarás”, do álbum de Caetano Veloso, “São São Paulo” e “Não buzine que eu
estou paquerando”, de Tom Zé, “Domingou”, “Luzia Luluza” e “A coisa mais linda que
existe” de Gilberto Gil e Gal Costa e “Caminhante noturno” e “Fuga n° II” de álbuns
dos Mutantes.
Caetano Veloso constrói imagens do Rio de Janeiro a partir de paródia no título
de “Inútil paisagem”, de Tom Jobim e as imagens icônicas da bossa nova e do Rio de
Janeiro, com seu céu, mar, ondas que se quebram, inúteis paisagens para a canção de
um eu-lírico que caminha sozinho, mas são substituídas pela “Paisagem útil”,131
construídas inicialmente pelo mesmo lirismo, de vento, mar, céu, sob um arranjo que
marcha sob uma base orquestral, até que o espaço naturalista é quebrado por um “Frio
palmeiral de cimento”, “Em luzes de luas mortas”, “Luzes de uma nova aurora” que
incidem em elementos urbanos da paisagem, como o “cinema”, o “teatro” e a “avenida”
onde “automóveis parecem voar”, e com os quais o canto de Caetano se transforma
numa outra paródia de cantores de rádio, com a afetação de sua voz, ao cantar:
Mas já se acende e flutua
No alto do céu uma lua
Oval, vermelha e azul
No alto do céu do rio
Uma lua oval da Esso
Comove e ilumina o beijo
Dos pobres tristes felizes
Corações amantes do nosso Brasil132
130
(Idem).
131
De Caetano Veloso, in: Caetano Veloso. Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Phillips, 1967.
132
(Idem).
108
Sua entonação que imita cantores como Orlando Silva ou Nelson Gonçalves também é
acompanhada pelo arranjo que se transforma como pastiche de canções sentimentais,
mas entre o “céu”, a “lua”, a voz de Caetano retorna ao seu registro original para cantar
“Uma lua oval da Esso”, quebrando a narrativa lírica a partir de uma desconstrução da
paisagem mais comum, na evocação ao luar, mas aqui por um elemento publicitário e
icônico da Esso, a sua lua oval, por onde, também “Os automóveis parecem voar”.
Essa relação entre paisagem, pastiche, paródia também está presente em “Onde
andarás”133, num bolero construído por arranjo orquestral que mimetiza nos versos
“tarde vazia” e “o mar bate azul em Ipanema” uma sonoridade que se faz pela sensação
de espacialidade e vazio que o arranjo suscita, até que, como na canção anterior, a
entonação de Caetano se refaça, assim como no arranjo, num outro pastiche. Segundo
Augusto de Campos (2015), “[...] o processo de utilização consciente do mau gosto
atinge pleno nível crítico na interpretação de Caetano, quando emposta a vocalização e a
pronúncias típicas de Nelson Gonçalves” (Idem, p. 168), nos versos:
Eu sei, meu endereço apagaste do teu coração
A cigarra do apartamento
O chão de cimento existem em vão
Não serve pra nada a escada, o elevador
Já não serve pra nada a janela
A cortina amarela, perdi meu amor134
Com essas formas de paródia, Caetano, ao mesmo tempo que descreve paisagens
do Rio de Janeiro, de forma discursiva, seja nos lugares mais comuns, ou através de luas
ovais da Esso, também mapeia a música popular brasileira de “mau gosto” e as coloca
juntas numa mesma geografia de um Rio de Janeiro urbano, moderno, contemporâneo,
mas o faz de forma crítica, através dos elementos poéticos destacados nas canções, ou
seja:
Caetano vai, propositadamente, de um extremo ao outro dos padrões musicais
populares. Do bom ao mau gosto (mas um mau gosto intencional, crítico,
como nas criações da pop' art). Montágem. Da música fina à cafona. Baião ou
beguin. Bolero e latim. Berimbau e beatles. Bossa e Debussy. (CAMPOS,
2015, p. 162)
133
De Caetano Veloso e Ferreira Gullar, in: Caetano Veloso. Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Phillips,
1967.
134
(Idem).
109
Já as duas primeiras canções que abrem o primeiro disco de Tom Zé, “São São
Paulo” e “Não buzine que eu estou paquerando” se formam a partir do retrato que o
estrangeiro-compositor constrói, num olhar que é dual entre a “dor” e o “amor”, para a
primeira faixa, e a velocidade da grande cidade e a calma de quem “paquera” no meio
do trânsito. As duas canções trazem ações que se sobrepõem umas às outras enquanto a
paisagem vai também mudando. O arranjo orquestral procura dialogar com a letra, com
maior ênfase na segunda música, com imitações de sons de buzina e de uma contagem
numérica antes mesmo da canção iniciar, de forma apressada, ininteligível.
São oito milhões de habitantes
De todo canto e nação
Que se agridem cortesmente
Correndo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Gaseados a prestação
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito135
Sei que o seu relógio
Está sempre lhe acenando
Mas não buzine
Que eu estou paquerando
Eu sei que você anda
Apressado demais
Correndo atrás de letras,
Juros e capitais
Um homem de negócios
Não descansa, não:
Carrega na cabeça
Uma conta-corrente
Não perde um minuto
Sem o lucro na frente
Juntando dinheiro,
Imposto sonegando,
Passando contrabando,
Pois a grande cidade não pode parar136
Assim, diferentemente de Caetano, o compositor Tom Zé apresenta uma linha
poética que se move pela construção de uma dicção crítica que não parodia na
construção de suas imagens sobre a cidade, mas sim por uma narrativa de
estranhamento e de ironia com as ações que se sucedem na “grande cidade (que) não
pode parar”. Sua música se revela como crônica urbana de uma olhar de fora para
135
“São São Paulo”, in: Tom Zé. Grande Liquidação. Recife: Rozemblit, 1968.
136
“Não buzine que eu estou paquerando”, in: Tom Zé. Grande Liquidação. Recife: Rozemblit, 1968.
110
dentro da cidade. Por esse ponto de vista de quem vem de fora, o músico revela as
contradições de São Paulo, que ama com todo ódio, odeia com todo amor, com seus oito
milhões de habitantes, a sua aglomerada solidão.
Gilberto Gil compõe com as canções “Domingou” e “A coisa mais linda que
existe”, ambas em parceria com Torquato Neto, e em “Luzia Luluza”, um sucinto
mosaico de personagens e espaços a partir de narrativas que são atravessadas pela
cidade. A transição de imagens se desenvolve como que num roteiro, com arranjos de
vertentes distintas. “Domingou” tem uma sonoridade pop, com diálogo entre violão e
guitarra e vocais que se apresentam de forma constante, em resposta ao canto de Gil.
“Luzia Luluza” traz um arranjo orquestral que acompanha a letra da canção, mais
narrativa, pontuando o que o texto narra. Já “A coisa mais linda que existe”, em
gravação de Gal Costa, tem um acento pop com sopros e metais incorporados ao arranjo
da canção. Nessas canções, as personagens e eu-líricos transitam entre os espaços de
forma ordinária, sem as quebras da ordem ou a partir de contradições, como nos casos
de Caetano e de Tom Zé, como percebemos nos trechos abaixo:
Da janela a cidade se ilumina
Como nunca jamais se iluminou
São três horas da tarde, é domingo
Na cidade, no Cristo Redentor - ê, ê
É domingo no trolley que passa - ê, ê
É domingo na moça e na praça - ê, ê
É domingo, ê, ê, domingou, meu amor137
Eu pego você pelas mãos como um raio
E saio com você descendo a avenida
A avenida é comprida, é comprida, é comprida...
E termina na areia
Na beira do mar
E a gente se casa
Na areia, Luluza
Na beira do mar
Na beira do mar138
Na cidade em que me perco
Na praça em que me resolvo
Na noite da noite escura
É lindo ter junto ao corpo
Ternura de um corpo manso
Na noite da noite escura
A coisa mais linda que existe
É ter você perto de mim139
137
“Domingou”, letra: Torquato Neto, música: Gilberto Gil, in: Gilberto Gil. Gilberto Gil. Rio de
Janeiro: CBD/Philipis, 1968.
138
“Luzia Luluza”, de Gilberto Gil, in: Gilberto Gil. Gilberto Gil. Rio de Janeiro: CBD/Philipis, 1968.
111
Em Os Mutantes, as representações da cidade aparentemente partem de
elementos comuns como “chão de asfalto”, da música “Caminhante noturno”, ou na
presença dos “Faróis altos e baixos”, dos “automóveis” ou dos “sinais vermelhos” da
faixa “Fuga n° II”, mas esses vestígios se desfazem pela ausência de narrativas
ordinárias, visto que a fragmentação da canção, seja no plano sonoro ou textual,
contribui para que a transição de imagens poéticas e sonoras se desdobrarem em muitos
lugares. Uma sucessão de sirenes irrompem e silenciam para que uma guitarra conduza
as vozes que se desenvolvem do mínimo para o máximo, ao que os arranjos também se
refletem na ascendência musical de “Caminhante noturno”:
Vai, caminhante
Antes do dia nascer
Vai, caminhante
Antes da noite morrer
Vai140
A música vai se formando na condução desse “caminhante” que “Pisa o silêncio”,
“Foge do amor”, e que posteriormente rompe a estruturação da canção, ainda que
fragmentária, com a repetição de “Vai”, na profusão de vozes e sons.
Como que numa outra face espacial, “Fuga n° II” é quase silenciosa, e tem no
trânsito desconhecido a sua trajetória.
Hoje eu vou fugir de casa
Vou levar a mala cheia de ilusão
Vou deixar alguma coisa velha
Esparramada toda pelo chão
Vou correr num automóvel enorme e forte
A sorte, a morte a me esperar
Vultos altos e baixos
Que me assustavam só em olhar141
O canto de Rita Lee é um sussurro que se equilibra entre o medo e a coragem de partir,
mas que no refrão encontra outras vozes a lhe fazer companhia:
139
“A coisa mais linda que existe”, de Gilberto Gil e Torquato Neto, in: Gal Costa. Gal Costa. Rio de
Janeiro: Phillips, 1968.
140
“Caminhante noturno”, de Rita Lee e Arnaldo Baptista, in: Os Mutantes. Os Mutantes. São Paulo:
Polydor/Polygram, 1969.
141
“Fuga nº II”, de Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias Baptista, in: Os Mutantes. Os Mutantes.
São Paulo: Polydor/Polygram, 1969.
112
Pra onde eu vou, ah
Pra onde eu vou, venha também
Pra onde eu vou, venha também
Pra onde eu vou142
A narrativa se torna fantástica como alucinação entre o eu-lírico que foge e os
elementos do espaço que agem sobre ele:
Faróis altos e baixos que me fotografam
A me procurar
Dois olhos de mercúrio iluminam meus passos
A me espionar
O sinal está vermelho e os carros vão passando
E eu ando, ando, ando...
Minha roupa atravessa e me leva pela mão
Do chão, do chão, do chão143
Assim, compreendemos, que a partir de poéticas tão distintas, mesmo sob os
guarda-chuvas do tropicalismo e manguebeat, as canções neste capítulo analisadas,
recortadas temática e criticamente por uma noção de movimento e estética, gêneros
musicais, metalinguagem e pela representação das cidades e espaços nas canções,
formaram um importante elo crítico, seja por similaridades ou distinções, pois,
poderíamos refletir que: “Uma ênfase estética é atribuída à distância social e cultural
absoluta que anteriormente separava os elementos diversos agora deslocados em novos
significados por sua provocativa justaposição auditiva.” (GILROY, 2001, p. 213), visto
que ao deslocar os elementos característicos de cada movimento, por consequência, suas
canções, através dos temas escolhidos para análise e dos componentes críticos postos
sob tensão, no diálogo entre as poéticas das músicas, consideramos abranger em “novos
significados” acerca do tropicalismo e manguebeat por força da fricção entre algumas
das canções críticas desses movimentos.
142
(Idem).
143
(Idem).
113
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
(Oswald de Andrade)
A música popular brasileira, por sua força simbólica, cultural e poética, fez com
que, naturalmente, os estudos acadêmicos, sobretudo a partir da bossa nova, no final dos
anos 1950, voltassem os olhos para os compositores de música brasileira. Os críticos
Antonio Candido e Silviano Santiago, por exemplo, orientaram dissertações em que há
a interação entre música e literatura, nas quais são pautadas discussões sobre a música
na Semana de Arte Moderna, escrita por José Miguel Wisnik, hoje uma referência nos
estudos que convergem essas duas vertentes.
Ainda a partir dos anos 1950 a letra de música passava a ser vista não como um
mero suporte à melodia, mas como elemento primordial da canção e que revelava
também uma poética e linguagem singulares. Estudos mais recentes, como os de
Claudia Neiva de Matos e Elizabeth Travassos, no livro Ao encontro da palavra
cantada (2001), têm na investigação pela poética da canção o seu foco principal.
Demonstrando que o estudo “[...] envolvendo várias formas, inclusive a confluência do
literário com o musical, mostrasse crucial para a compreensão da própria história e da
própria cultura” (OLIVEIRA, 2001, p. 295-296).
No entanto, segundo o pesquisador Jamile de Assis (2007) nas dissertações que
buscam analisar a música popular, há uma tendência em se desenvolver uma análise
extrínseca da obra, que prioriza “[...] um recorte temático, seja ao tratar das
particularidades da cultura de massas, ou ao priorizar tanto questões de gênero, como
aqueles relativos à identidade étnica e nacional” (ASSIS, 2007, p. 4). No campo dos
estudos comparados, os autores Machado & Pageux (1998, p. 120), consideram que a
análise comparativa deve partir de duas leituras concomitantes: “[...] em primeiro lugar,
o texto é, no plano da criação literária, um universo coerente; em segundo lugar, a
procura dum sentido deve ser feita no interior do texto e também no conjunto do campo
cultural a que esse texto pertence”.
Com essa pesquisa, caminhamos entre os estudos em comunicação, literatura e
música, principalmente, por considerarmos que o corpus formado pelas canções do
tropicalismo e manguebeat não comportariam, para o que desejávamos refletir, uma
única área de atuação, ainda que consideremos que essas áreas de estudo não são
114
estanques e se conectam com muitas outras áreas. Ao elegermos a canção como o nosso
objeto de estudo, procuramos expandi-la em nossas análises, partindo de seu corpo
formado por letra e música, grosso modo, ou seja, a sua característica intrínseca, para
refletir sobre elementos externos a ela. Foi através desse método que procuramos não
hierarquizar em nossa análise os elementos discursivos dos musicais, visto que ao
incluirmos instrumentalmente o conceito de canção crítica como base para a nossa
dissertação, a própria abordagem crítica desse conceito tornava a análise sobre a canção
mais abrangente, incluindo num mesmo espaço os elementos textuais e contextuais. É
fato que a escolha dos álbuns do tropicalismo e manguebeat também influíram para uma
reflexão que os abarcasse poética, estética e politicamente.
Com essas premissas expostas, o estudo comparado de obras de artistas de
períodos históricos e lugares distintos tornaram a pesquisa uma obra aberta, visto que a
fricção entre as canções, sua escuta, contextualização, leituras da fortuna crítica e
ensaios sobre hipóteses e comparações, que evidenciavam ora similitudes, ora
diferenças, transformavam-se à medida que os capítulos e as canções se sobrepunham
umas as outras, estabelecendo, muitas das vezes, conexões (e tensões) anteriormente
não imaginadas.
Por tratarmos de obras que se firmaram historicamente como movimentos
musicais/culturais, com fortuna crítica extensa e de diferentes abordagens;
consideramos que a pesquisa pôde – muito mais do que correlacionar referências
bibliográficas, ou partilhar leituras prévias já consagradas pela literatura sobre o tema –
ensaiar criticamente pequenas fraturas sobre a música brasileira moderna que
historicamente se desloca entre referências várias, ainda que a distância e as geografias
sejam também muito diferentes. Essas “fraturas” se deram pela tentativa de imprimir
uma escritura que pudesse pôr em equilíbrio uma forma ensaística de escrita, mais
interpretativa, na defesa de posições inéditas, com as argumentações de outros autores e
autoras, como base teórica e conceitual para as análises que empreendíamos, como nos
casos exemplares de Santuza Cambraia Naves, Augusto de Campos, Jomard Muniz de
Britto, Christopher Dunn, Celso Favaretto, Benedito Nunes, Afonso Romano de
Santanna, Luiz Tatit, Herom Vargas, entre outros.
Com essa problematização em vista, procuramos identificar nas vanguardas
históricas europeias um espaço de invenção que coube como referência para o
modernista Oswald de Andrade, nos anos 1920, e que na produção de seus manifestos,
sobretudo o antropófago, provocou um rasgo na cultura brasileira, que até hoje não está
115
saturado, já que a depender das estratégias e lugares de atuação, muitas das ideias ali
esboçadas podem assumir vertentes de criação das mais diversas. Com esse rasgo nas
mãos, consideramos atravessar os movimentos do tropicalismo e manguebeat através da
noção de “canibal” que perpassava a estética dos movimentos. Ao analisarmos as
canções críticas, percebemos que as poéticas do devoramento eram distintas mesmo
dentro dos movimentos, já que os principais núcleos de criação não se supunham
estáveis, ao que “devorar” criticamente gêneros, ritmos, linguagens etc. poderiam se dar
de diferentes maneiras, mesmo dentro do arcabouço dos movimentos. Por essa visão
instável, optamos por desfragmentar as canções por toda a pesquisa, partindo das
canções-manifesto “Tropicália” e “Manguebit”, pela simbologia que seus nomes
carregam, mas que tal análise da canção como manifesto, não pudesse se restringir
somente a esses dois exemplos, o que viria a se confirmar em capítulos posteriores, na
análise de canções como “Alegria, alegria”, “Geleia geral”, “Cidade estuário” e
“Manguetown”.
Enquanto no primeiro capítulo procuramos partir de convergências em torno dos
ismos e beats, o desenvolvimento da pesquisa nos levou a nos aprofundarmos sobre as
relações entre canção e crítica, separadamente, para em seguida refletirmos sobre o
conceito de canção crítica, a sua origem, ampliarmos para a noção de compositor
crítico e elencarmos análises de canções como que expandidas, através das escritas
sobre performance e performance da linguagem/performance da canção.
Com tal aprofundamento teórico e crítico, mesmo que rodeado por exemplos
práticos de canções do tropicalismo e manguebeat, essa base foi de suma importância
para desenvolvermos, a partir das referências sobre gênero musical e midiático, uma
proposição crítica em torno da ideia de gênero deslocado, com um grande grupo de
canções agrupadas tematicamente, na análise de seus aspectos sonoros e rítmicos, a
partir duma abordagem desconstrutiva de lugares comuns dos gêneros, numa
contextualização da discussão sobre os limites e imposições sobre “global” e “local”, o
que acabaria por pôr as canções analisadas num plano mais aberto de análise, em que a
comparação evidenciaria mais claramente tanto pontos de convergência como de
divergência, além do tratamento à palavra na canção, por consequência das poéticas
adotadas pelos artistas. Essas análises foram de suma importância pelo aprofundamento
das poéticas adotadas pelos artistas em suas canções. Nelas, procuramos fazer da escuta
das canções uma de nossas formas de crítica aberta, procurando revelar os aspectos
sonoros advindos das músicas.
116
Com os capítulos “das vanguardas”, “das canções críticas” e “dos gêneros
deslocados”, pudemos compor sucinto quadro crítico sobre as canções do tropicalismo e
manguebeat, bem como expandir desses estudos comparados uma espécie de
metodologia para a análise cultural comparada, principalmente na relação entre história
e cultura, visto que os contextos históricos, políticos e culturais do Brasil dos anos 1960
e do Recife dos anos 1990 foram de suma importância para a música brasileira
produzida nessas determinadas épocas. Essa metodologia se constituiu por traçar várias
linhas de tensão que mutuamente estabeleciam relações entre si, sem necessariamente
pôr os fatos e as canções numa ordem cronológica. A partir dessas linhas foi possível
estabelecer temáticas que abarcariam um número considerável de canções e, com essa
abordagem crítica, envolver os aspectos poéticos e estéticos que germinavam das
canções e dos movimentos.
Assim sendo, a partir desse método, pudemos ensaiar as canções em vários
agrupamentos, que se desdobravam criticamente em função das análises postas
anteriormente. No capítulo “entreatos”, o diálogo entre as canções críticas do
tropicalismo e manguebeat, a despeito de seus aspectos convergentes e divergentes,
reconstruíam novas linhas de tensão por onde a análise comparada caminhava
estabelecendo suas relações. De tal modo, a partir das análises e hipóteses levantadas
durante esta pesquisa, pudemos concluir que as movimentações culturais se constituem
também como grandes obras abertas. A passagem do tempo e a sobreposição de escritos
sobre esses temas, de maneira alguma esgotam as possibilidades de reflexão.
Ao recortar um número considerável de canções e destrinchar os seus elementos
críticos, pudemos perceber que a despeito de alguma pretensa homogeneidade formal
que os movimentos suscitem, foi notória a percepção de que as canções são objetos
artísticos arredios, difíceis de “enquadrar”, ou mesmo posicionar criticamente para
promovermos uma análise coerente.
Ainda assim, a partir de algumas tematizações e da escritura refeita a par da
escuta constante das canções, consideramos abrir novas frestas para a reflexão sobre a
própria materialidade da canção, abrangendo ainda mais os seus limites críticos, bem
como arquitetando pontes críticas para a reflexão histórica e cultural de obras e artistas
de gerações distintas (mas chega de saudade, nunca soubemos o que era urbano,
suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Recife –
Cidade – És – Tu...).
117
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janeiro/junho 2004.
SANTANNA, Afonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira.
Petrópolis: Vozes, 1986.
TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.
TELES, José. Do Frevo ao manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2000.
VARGAS, Herom. Hibridismos musicais de Chico Science & Nação Zumbi. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2007.
VELOSO, Caetano. Sobre as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
DISCOGRAFIA
Caetano Veloso. Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Phillips, 1967.
______________. Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Phillips, 1969.
Gal Costa. Gal Costa. Rio de Janeiro: Phillips, 1968.
Chico Science & Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Sony Music, 1996.
______________. Da Lama ao caos. Rio de Janeiro: Sony Music, 1994.
Gilberto Gil. Gilberto Gil. Rio de Janeiro: CBD/Philipis, 1968.
______________.Gilberto Gil. Rio de Janeiro: CBD/Philipis, 1969.
Mundo Livre S/A. Samba esquema noise. São Paulo: Banguela Records, 1994.
______________. Guentando a Ôia. São Paulo: Banguela Records, 1996.
120
Os Mutantes. Os Mutantes. São Paulo: Polydor/Polygram, 1968.
______________. Os Mutantes. São Paulo: Polydor/Polygram, 1969.
Tom Zé. Grande Liquidação. Recife: Rozemblit, 1968.
Vários. Tropicália - Ou Panis et Circencis. Rio de Janeiro: Phillips, 1968.
121
ANEXO A
Manifesto Pau-Brasil144
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul
cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os
cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A
cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o
lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo
revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no
Catumbi. Falar difícil.
O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas
selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de
doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas
lianas da saudade universitária.
Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como
borrachas sopradas. Rebentaram.
A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa tratando de
cozinha.
A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.
Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo : o teatro de tese e a luta no palco entre
morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e
dourados como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Agil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a
poesia.
A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars : – Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a
manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta
ao vosso destino.
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos
como chineses na genealogia das idéias.
144
In: ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica / Oswald Canibal. 4ª edição. São Paulo: Globo,
1979.
122
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos
os erros. Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.
Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil,
de exportação.
Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se
o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A
interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho...
Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina
fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade
de olho virado – o artista fotógrafo.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram
pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs
para a pleyela. Stravinski.
A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.
Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram
desmanchando. Duas fases: 10) a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o
caos voluntário. De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 20) o lirismo, a
apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva.
O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no
movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.
Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores
destrutivos.
A síntese
O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil
O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo
equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
123
Uma nova perspectiva.
A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão ética. Os objetos
distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência.
Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem:
sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
Uma nova escala:
A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos. O
redame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da
aviação. Postes. Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas
e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa
física em arte.
A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo
monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O quadro histórico, uma aberração. A escultura
eloquente, um pavor sem sentido.
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.
A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata
resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o
jornal. No jornal anda todo o presente.
Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.
Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a
algebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de "dorme nenê
que o bicho vem pegá" e de equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas; nas usinas produtoras, nas
questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.
Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A
energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os
campos de aviação militar. Pau-Brasil.
O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito.
O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.
A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor
de nossa demonstração moderna.
124
Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de
balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem
reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.
Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O
Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.
OSWALD DE ANDRADE
(Correio da Manhã, 18 de março de 1924.)
Manifesto Antropófago
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os
coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou
com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo
exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da
saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.
Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o
que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a
mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as
revoltas eficazes na direção do homem. Sem n6s a Europa não teria sequer a sua pobre
declaração dos direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaig-ne. O homem
natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à
Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos..
125
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer
na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-
analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-
se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da
vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições
exteriores.
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A
transformação permanente do Tabu em totem.
Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é
dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças
românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O instinto Caraíba.
Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu.
Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.
Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império.
Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju
A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos
bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas
gramaticais.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da
possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia.
Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?
126
Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não
rubricado. Sem Napoleão. Sem César.
A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os
transfusores de sangue.
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o
Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo,
porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos
vegetais.
Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da
distribuição. E um sistema social-planetário.
As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os
Conservatórios e o tédio especulativo.
De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.
O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de
imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus. Mas a caraíba não
precisava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com
isso?
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de
D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas.
Suprimarnos as ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos
instrumentos e nas estrelas.
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
A alegria é a prova dos nove.
127
A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do
homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção
do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade.
Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto
sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá
não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De
carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se
e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de
catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e
cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João
Ramalho fundador de São Paulo.
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe
essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso
expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem
complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.
OSWALD DE ANDRADE em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.
(Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)
Manifesto Tropicalista: Porque somos e não somos tropicalistas145
1. Constatamos (sem novidade) o marasmo cultural da província. (Por que insistimos em viver
há dez anos da Guanabara e há um século de Londres? Por fidelidade regionalista? Por defesa e
amor às nossas tradições?)
2. Recusamos o “comprometimento” com nossos “antigos professores”. (Porque eles continuam
mais “antigos” do que nunca: do alto de sua benevolência, de sua vaidade, de sua irritação, de
seu histrionismo, de sua menopausa intelectual).
3. Lamentamos que os da “nova e novíssima geração” (a maioria pelo menos) continuem a se
valer da tutela sincretista, lusotropical, sociodélica, joaocabralina, t-p-n-ística, etc. e tal.
4. Comprovamos (sem ressentimento) a decadência da esquerda festiva. (A exemplo do faz
escuro, mas eu canto, das manhãs de liberdade, do vietnam por ti e por mim, e outros
“protestos” puramente retórico-panfletários).
5. Afirmamos: “Dessacralizando e corrompendo a esquerda festiva, o tropicalismo investe e
arrebenta, explode e explora os seus adeptos tanto quanto os seus atacantes”. (Qua, qua, qua,
para os que “não nos entendem”…)
6. Somos (sem subserviência) por Glauber Rocha, José Celso Martinez Corrêa, Nelson Motta,
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Hélio Oiticica, Adão Pinheiro, José Cláudio, os poetas de
vanguarda. Tudo que for legitimamente NOVO.
145
Originalmente publicado no Jornal do Commercio. Recife, 20 de abril de 1968. In: Clarissa Diniz;
Gleyce Kelly Heitor; Paulo Marcondes Soares. (Org.). Crítica de Arte em Pernambuco: Escritos do
Século XX. 1ed. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012.
128
7. Reconhecemos a transitoriedade (o trânsito e o transe) do tropicalismo, junto ao perigo de
comercialização, de mistificação, de idolatria. Assim como dizemos “abaixo a festiva”,
acrescentamos: “abaixo o fanatismo tropicalista!” (Por isso, quem tentar nos apelidar, sorrindo,
de “tropicalistas” – ou não tem imaginação, ou é dogmático, ou quer bancar o engraçadinho, ou
é burro mesmo).
8. A vanguarda contra a retaguarda! A loucura contra a burrice! O impacto contra a
mediocridade! O sexo contra os dogmas! A realidade contra os suplementos! A radicalidade
contra o comodismo!
9. “Tropicalistas de todo mundo, uni-vos”
– Jomard Muniz de Britto, professor e ensaísta; Aristides Guimarães, compositor de
música popular; e Celso Marconi, repórter e crítico de cinema.
II Manifesto Tropicalista: Inventário do nosso feudalismo cultural146
1) O ALGO MAIS QUE OS SIMPLES RÓTULOS NÃO DIZEM
O que é tropicalismo: posição de radicalidade crítica e criadora diante da realidade brasileira
hoje; vanguarda cultural como sinônimo de militância, da instauração de novos processos
criativos, da utilizaçãoo da “cultura de massa” (radio, tv, etc.) com a finalidade de desmascarar
e ultrapassar o subdesenvolvimento através da explosão de suas contradições mais agudas; “ver”
com olhos “livres”.
O que é tropicanalha: atitude conservadora e purista em face da cultura e da realidade brasileira
hoje; retaguarda cultural significando alheamento, de tentar dar respostas passadas aos
problemas, revelando o passadismo através da nostalgia, do donzelismo, do pitoresco do cartão
postal, da carência de informação, contribuindo assim para uma perpetuação do
subdesenvolvimento; enxergar com viseiras e preconceitos. Além e aquém dessas posições
podem existir muitas outras.
2) VAMOS SOLTAR O TIGRE DAS PERGUNTAS
Por que os departamentos de cultura de nossas “Universidades” não ouvem os estudantes na
programação de suas promoções? Pode haver reforma universitária sem a participação efetiva
dos estudantes? Pode existir universidade livre num país sem liberdade? Onde encontra a
Imprensa Universitária justificativa para suas publicações? Correspondem elas aos interesses
das classes estudantis e intelectuais? Foi realmente “Extinto” o acordo “Mec-Usaid”, ou apenas
ficou mais disfarçado? Até quando os representantes da cultura oficial se utilizarão dos cargos
que ocupam com o objetivo de promoção pessoal? Por que o dedodurismo (da queimação
pessoal e profissional) em todas as repartições públicas, especialmente na Sudene? Por que não
foram ouvidos os técnicos da Sudene em seu parecer contrario à “Cruzada ABC”?
146
Publicado originalmente em exposição individual de Raul Córdula na Oficina 154. Olinda, 1968. In: .
In: Clarissa Diniz; Gleyce Kelly Heitor; Paulo Marcondes Soares. (Org.). Crítica de Arte em
Pernambuco: Escritos do Século XX. 1ed. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012.
129
Já que nenhum serviço prestam à coletividade, por que não se “Extinguem” os Conselhos de
Cultura e as Academias de Letras? O que se pode esperar de certos grupos teatrais que se
afirmam, confirmam como “propriedades privadas”, casas de fulano ou beltrano? Por que
alguns jovens artistas ainda persistem numa política de completa subserviência aos industriais-
artistas e aos intelectuais conselheiros, comprometidos com o poder constituído?
Quando terminarão a erudição, a desatualização e o impressionismo gagá de nossos
suplementos literários? Por que os nossos críticos em geral não saem de seus castelos para
debaterem publicamente suas ideias? Por que se teme tanto a “Vanguarda Poética”? Será que os
críticos preferem ser “guardiães de cemitérios” – ou apenas não estão capacitados
metodologicamente para julgar o novo?
Por que os nossos críticos de cinema ainda continuam a promover mais o cinema made in
Hollywood? O desentendimento do público é maior que o da crítica especializada?
Constituímos, em verdade, um dos centros cinematográficos mais importantes do país?
Por que não “Desobedecer” aberta e radicalmente a Censura – incompetente, arbitrária e
estúpida? Como admitir a censura exercida pelos “conselhos universitários”?
Como se justificam o bom comportamento e a aceitação das normas impostas pela engrenagem
de certos festivais de música, por parte de certos “compositores” sequiosos de promoção?
DEBAIXO DAS PERGUNTAS E LONGE DO FEUDALISMO.
a) Por toda iniciativa de cultura “não oficial”, descomprometida com a política cultural
dominante.
b) Pelo “Poder Jovem” (compreendido não apenas como um fenômeno de luta entre gerações)
representado pelo movimento radical-estudantil e pelos intelectuais independentes.
c) Por qualquer movimento de vanguarda cultural (pois não queremos impor unicamente a nossa
posição) que se caracterize pelo rompimento com todos os padrões: morais, sociais, literários,
sexuais, etc. e tal.
por Jomard Muniz de Britto e Aristides Guimarães (PE), Alexis Gurguel (RN), Anchieta
Fernandes (RN), Caetano Veloso (BA), Carlos Antônio Aranha (PB), Celso Marconi (PE),
Dailor Varela (RN), Falves da Silva (RN), Gilberto Gil (BA), Marcus Vinícius de Andrade
(PB), Moacyr Cirne (RJ) e Raul Córdula Filho (PB).
130
Caranguejos com Cérebro147
por Zero Quatro.
MANGUE, O CONCEITO
Estuário. Parte terminal de um rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens
se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos
movimentos dos mares. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os
mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.
Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados
estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação
para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies
comercialmente importantes dependem dos alagadiços costeiros.
Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha.
Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas os
mangues são tidos como os símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.
MANGUETOWN, A CIDADE
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada, é cortada por seis rios. Após a expulsão
dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade "maurícia" passou a crescer desordenadamente à
custa do aterramento indiscriminado e da destruição dos seus manguezais.
Em contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção de "progresso", que elevou a
cidade ao posto de "metrópole" do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.
Bastaram pequenas mudanças nos "ventos" da história para que os primeiros sinais de esclerose
econômica se manifestassem no início dos anos 60. Nos últimos trinta anos a síndrome da
estagnação, aliada à permanência do mito da "metrópole", só tem levado ao agravamento
acelerado do quadro de miséria e caos urbano. O Recife detém hoje o maior índice de
desemprego do país. Mais da metade dos seus habitantes moram em favelas e alagados.
Segundo um instituto de estudos populacionais de Washington, é hoje a quarta pior cidade do
mundo para se viver.
MANGUE, A CENA
Emergência! Um choque rápido, ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico pra
saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruir as suas veias. O
modo mais rápido também, de enfartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar
os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que
paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo deslobotomizar e recarregar as baterias da
cidade? Simples! Basta injetar um pouco da energia na lama e estimular o que ainda resta de
fertilidade nas veias do Recife.
147
Primeiro manifesto encartado no disco: Chico Science & Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de
Janeiro: Sony Music, 1994.
131
Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de
pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo é engendrar um "circuito energético", capaz de
conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop.
Imagem símbolo, uma antena parabólica enfiada na lama.
Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em: quadrinhos, tv interativa, anti-
psiquiatra, Bezerra da Silva, Hip Hop, midiotia, artismo, música de rua, John Coltrane, acaso,
sexo não-virtual, conflitos étnicos e todos os avanços da química aplicada no terreno da
alteração e expansão da consciência.
Quanto vale uma vida148
por Zero Quatro, com a colaboração de Renato L.
I - LONGA VIDA AO GROOVE!
Os alquimistas estão chorando. A indignação ruidosa de Lúcio Maia com a ferocidade carniceira
da imprensa nos faz lembrar que nem tudo tem que ser movido a cinismo e oportunismo no -
cada vez mais - cínico e vulgar circuito pop.
Antes de mais nada, salve Lúcio, Jorge, Dengue, Gilmar, Toca, Gira e Pupilo. Salve Paulo
André e longa vida ao Nação Zumbi, com seu groove imbatível, mix epidêmico e urgente de
química e magia que cedo ou tarde vai varrer o mundo!
A primeira vez que vimos Chico juntando a Loustal com o Lamento Negro (o embrião do que
seria a Nação Zumbi, ainda no início de 91), comentamos arrepiados, eu e Renato L. : "não
importa que estejamos no fim do mundo e sem dinheiro no bolso; não tem errada, não há nada
no mundo que possa deter esse som!" Na nossa ficha, constava a produção de vários programas
de Rock na cidade, onde nos esforçávamos para mostrar sons novos e interessantes de todos os
cantos do mundo. E não havia dúvida de que naquele momento estávamos diante de algo
absurdamente novo e irresistível. Começamos imediatamente a viajar num conceito capaz de
colocar o Recife no mapa. Claro que houve momentos nos últimos anos em que chegamos a
pensar que talvez tivéssemos ajudado a criar uma espécie de monstro incontrolável. Mas hoje
sabemos que agimos bem, não poderíamos agir de outro modo.
- E agora, mangueboys?
Chico era referência e inspiração para muita gente, talvez para toda uma geração de recifenses.
E a perda para a Nação Zumbi é irreparável em termos de carisma, energia vocal, gestual, etc.
Ninguém questiona isso. Mas o que muita gente esquece é que a fórmula criada por Chico tinha
uma base muito sólida em termos de cozinha, acompanhamento, groove. A maioria das pessoas
desconhece alguns fatos. Quando eu conheci Francisco França, ele era o lado mais extrovertido
da mais nova dupla do barulho da cidade. Chico e Jorge eram inseparáveis como unha e carne,
egressos da "Legião Hip Hop", que reunia no final dos anos 80, alguns dos melhores dançarinos
148
Segundo manifesto publicado originalmente no Jornal do Commercio, Recife, em 21 de fevereiro de
1997, in: LIRA, Paula. A grande serpente. Recife: Fundarpe, 2014.
132
e djs que o Recife já conheceu ( alguém aí já viu Jorge Du Peixe dançando "street"? A galera
que hoje em dia ensina funk nas academias de dança não daria nem pro caldo...).
Jorge sempre foi um pouco mais tímido, mas não menos engraçado, e os dois se completavam
em termos de gosto, idéias, visão e criatividade. Chico sempre teve mais iniciativa e era, como
todos sabemos, um letrista formidável. Mas alguém aí se lembra quem é o autor da letra do
clássico "Maracatu de Tiro Certeiro"? Isso mesmo, Jorge Du Peixe...
Quanto a Lúcio Maia, qualquer um que acompanhe a Guitar Player, sabe que é cada vez maior o
número de pessoas que o consideram um dos mais talentosos e ecléticos guitarristas brasileiros,
uma verdadeira revelação dos últimos tempos. Dengue, então, é aquele baixista contido,
discreto, mas super-eficiente. Desde os tempos do Loustal, ele sempre conseguiu encaixar a
levada perfeita para o estilo fragmentado dos versos de Chico. E quanto aos tambores e à
bateria, nem é preciso comentar. Não se via, no rock and roll, uma engrenagem tão potente e
envenenada desde a morte de John Bonham.
Quando toda a crítica brasileira caiu de quatro sob o impacto avassalador do "Da Lama ao
Caos", houve no Recife quem apostasse que Chico despontaria em carreira solo já no segundo
disco. Argumentavam que, por um lado Chico tinha luz própria de sobra e por outro a fórmula
do Nação Zumbi não renderia mais nada interessante, pois já teria se esgotado. Eu e Renato
torcemos para que acontecesse o contrário, para que Chico não se rendesse à vaidade pessoal e
injetasse todo gás possível no fortalecimento da banda. Ele não decepcionou, mostrou que não
era nem um pouco ingênuo ou deslumbrado e que sabia muito bem do que precisava para se
manter no topo. O resultado foi o brilhante "Afrociberdelia", um trabalho coletivo - com Lúcio
mais ativo do que nunca do que nunca na produção.
Portanto, se existe uma banda que tem total autoridade e potencial para ocupar condignamente o
lugar que o inesquecível Chico Science deixou vago no topo, essa banda é sem dúvida a Nação
Zumbi. Por sinal, o próprio Chico nem cogitava em dar por esgotado o formato da banda, tanto
que já planejava entrar com os brothers no estúdio ainda este ano para gravar o terceiro disco.
LONGA VIDA AO GROOVE!!!
II - BUSCANDO RESPOSTAS
"Something is happening here, but you don´t know what it is. Do you, Mr Jones?" Essa frase de
Bob Dylan me vem à mente sempre que eu penso no tom de alguns comentários publicados nos
maiores jornais do país a respeito da morte de Chico. Talvez com intenção de pintar o fato com
as cores mais chocantes, expurgando, assim, a dor e a revolta da perda, as matérias acabavam
invariavelmente emitindo um tom derrotista ou até desolador.
Se o caso é especular sobre o que pode acontecer daqui em diante, o mais oportuno seria tentar
identificar na história do Pop, fatos ou situações semelhantes que possam servir de exemplos.
Em se tratando de movimentos de cultura Pop; gerados em focos isolados; situados na periferia
do mercado; e com reconhecimento mundial, os fenômenos mais correlatos ao Mangue Beat que
se tem notícia - ainda que os estágios de desenvolvimentos sejam distintos - são a Jamaica pós-
Bob Marley e Salvador pós-Tropicalismo.
Sobre Salvador, minha experiência como mangueboy me diz que o Tropicalismo não surgiu lá
por acaso. Nada no mundo poderia ter impedido o caldo cultural da cidade de gerar
133
posteriormente (e na sequência) os Novos Baianos, A Cor do Som, os trios elétricos, a Axé
Music, o Samba - Reggae, a Timbalada, etc.
Também não foi por milagre que a Jamaica se tornou berço do Calipso, do Ska, do Reggae, do
Dub, do Raggamuffin e de todas as variantes do Dancehall que hoje, quase 20 anos depois da
morte de Marley, contaminam as paradas de sucesso de todo o mundo.
Esses dois fenômenos foram condicionados por combinações específicas de fatores geográficos,
econômicos, políticos, sociológicos, antropológicos, enfim, culturais, cuja história eu não seria
capaz de analisar. Mas em se tratando de focos isolados que a partir de um determinado
estímulo geram uma reação em cadeia capaz de contaminar toda a história futura de uma
comunidade, meu depoimento talvez possa ser útil.
III - UMA VISITA MUITO ESPECIAL
Lembro-me muito bem do nervosismo que tomou conta da cidade quando, em 93 (logo após o
primeiro Abril Pro Rock), a diretoria da Sony anunciou que mandaria um representante ao
Recife para contratar Chico Science... Fun! Fun! Zoeira Total! Diversão a qualquer custo, e a
mais barulhenta possível! Esse havia sido o nosso lema quando, dois anos antes, sentindo o
descompasso - o fundo do poço, o infarto iminente - , resolvêramos tentar de tudo para detonar
adrenalina no coração deprimido da cidade. Depois de vários shows e eventos muito bem
sucedidos, e do manifesto "Caranguejos com Cérebro" (que transformou, de uma hora para
outras centenas de arruaceiros inocentes em "mangueboys" militantes), parecia que a cidade
realmente começava a despertar do coma profundo em que esteve mergulhada desde o início da
guerra dos 80.
Parêntese: não é exagero. Segundo os levantamentos mensais do DIEESE, Recife conseguiu
manter sem muito esforço a impressionante e isolada posição de campeã nacional do
desemprego e da inflação por nada menos que dez anos seguidos!!! Imaginem o efeito
devastador que uma situação como essa pode provocar na alma de uma comunidade com mais
de 400 anos de história e que só neste século havia gerado nomes da dimensão de Manuel
Bandeira, Gilberto Freyre, Josué de Castro e João Cabral de Melo Neto. Para nós, que mal
havíamos saído da adolescência só restavam duas saídas: tentar uma bolsa na Europa ou ganhar
as ruas...
Então, a chegada da Sony representava uma espécie de prêmio coletivo. O significado simbólico
era que finalmente podia estar se abrindo um canal de comunicação direta com o mercado
mundial, como os caranguejos do asfalto haviam almejado em seu primeiro manifesto. Para
todos os agentes e operadores culturais que viam seu talento e potencial atrofiados pela
desmotivação, era o estímulo concreto que faltava. Afinal, queiram ou não, discos pop lançados
por multinacionais movimentam várias áreas de expressão ao mesmo tempo: moda, fotografia,
design, produção gráfica, vídeos, relações públicas, assessoria, imprensa, marketing, música,
etc.
Daí em diante, pode-se dizer que teve início um efetivo "renascimento" recifense. Todo mundo
gritou mãos à obra! e partiu para o ataque. As ruas viraram passarelas de estilistas
independentes; bandas pipocaram em cada esquina; palcos foram improvisados em todos os
bares; fitas demo e clipes novos eram lançados toda semana, e assim por diante, gerando uma
verdadeira cooperativa multimídia autônoma e explosiva, que não parava de crescer e mobilizar
toda a cidade. De headbangers a mauricinhos, de punks a líderes comunitários, de surfistas a
134
professores acadêmicos, ninguém ficou de fora. Para se ter uma ideia, a frase " computadores
fazem arte, artistas fazem dinheiro" ( Mundo Livre SA ) virou tema de redação de vestibular de
uma faculdade local.
IV - MANGUETOWN, 5 ANOS DEPOIS
O renascimento segue de vento em popa. A noite mais concorrida do último Abril Pro Rock foi
a que reuniu três bandas locais. Mais de cinco mil pessoas pagaram ingresso e enfrentaram uma
chuva intensa para aplaudir e cantar junto com Mundo Livre SA, Mestre Ambrósio e Chico
Science e Nação Zumbi. O festival "Viva a Música", realizado em setembro passado, reuniu
mais de 50 novas bandas. O disco de estréia da campeã, Dona Margarida Pereira e os Fulanos,
está em fase de gravação. O programa Mangue Beat (Caetés FM 99.1) ocupa há 2 anos os
primeiros lugares de audiência, tocando fitas demo e lançamentos locais, além de novidades de
todos os cantos do planeta. O "Manguetronic", um programa de rádio idealizado especialmente
para a Internet, vem se firmando como um dos sites mais acessados do Universo on Line. Os
últimos cds do Chico Science e Nação Zumbi e do Mundo Livre SA e a estréia do Mestre
Ambrósio figuraram na lista dos dez melhores do ano da revista Showbizz. Estão em fase de
finalização os aguardados albuns de estreia das bandas Eddie e Devotos do Ódio. O Abril pro
Rock 97 entrou pela primeira vez no calendário de eventos oficiais do Estado, ganhando assim
uma ampla divulgação nacional e uma infra-estrutura mais organizada. A estréia em longa-
metragem dos cineastas pernambucanos Lírio Ferreira e Paulo Caldas - o filme "O Baile
Perfumado", cuja trilha é assinada por Chico Science, Siba (do Mestre Ambrósio) e Zero Quatro
- ganhou vários prêmios, entre eles o de melhor filme, no último Festival de Cinema de Brasília.
O estilista Eduardo Ferreira já recebeu vários prêmios nas últimas edições do Phytoervas
Fashion. O Mundo Livre S.A. acaba de fazer 4 shows e um clipe no México, devendo participar
de vários festivais europeus no segundo semetre...
(Pausa para respirar)
Temos como objetivo imediato pressionar a Prefeitura do Recife para tirar do papel e colocar no
ar a rádio Frei Caneca FM, uma emissora sem fins lucrativos cujo orçamento para 97, ao que
parece, já foi aprovado pela Câmara Municipal. Afinal, o único e mais difícil obstáculo que
ainda não superamos foi o das rádios comerciais. Sabemos que na Jamaica e em Salvador foi
preciso o uso até de ações violentas para pressionar os disc - jóckeis. No estágio atual, não
achamos que recursos sejam necessários. O Popspace não é invulnerável e a história está do
nosso lado.
Quem acompanhou no Recife as últimas homenagens a Chico, sentiu a força de um
compromisso coletivo. Hoje cada recifense tem no olhar um pouco de guerrilheiro da Frente
Pop de Libertação. E o recado que queremos enviar para o mundo não é muito diferente daquele
que nos mandam as comunidades indígenas de Chiapas- que têm no subcomandante Marcos o
seu porta-voz. VIVA SANDINO! VIVA ZAPATA! VIVA ZUMBI! A utopia continua...
"- Quanto vale a vida de um homem, em quanto cada um avalia a sua própria vida, a troco de
quê está disposto a muda-lá? Nós avaliamos muito alto o preço de nossas vidas. Valem um
mundo melhor, nada menos. Homens e mulheres, dispostos a dar suas vidas, têm direito a pedir
tanto quanto valem. Há os que avaliam suas vidas por uma quantidade de dinheiro, mas nós a
avaliamos pelo mundo, esse é o custo do nosso sangue..." (Subcomandante Marcos).
135
Texto da contracapa por Caetano Veloso (1967)149
Que maravilhoso país o nosso, onde se pode contratar quarenta músicos para tocar ‘um’
uníssono. (Miles Davis, durante uma gravação). antes havia orlando silva & flautas e até mesmo
no meio do meio dia, antes havia os prados e os bosques na gravura dos meus olhos, antes de
ontem o céu estava muito azul e eu & ela passamos por baixo desse céu, ao mesmo tempo com
medo dos cachorros e sem muita pressa de chegar do lado de lá. do lado de cá não resta quase
ninguém, apenas os sapatos polidos refletem os automóveis que, por sua vez, polidos, refletem
os sapatos assim per omnia até que (por absoluta falta de vento) tudo sobe num redemoinho
leve, me deixando entrever um resto de rosto ou outro, pedaços, amém. marina sabe a história
do pelicano etc. etc. o peito aberto e rasgado etc. etc. mas que nada: quando a gente não tem
nenhuma necessidade de ir para os states não há mesmo mais esperança. eu gostaria de fazer
uma canção de protestos de estima e consideração, mas essa língua portuguesa me deixa louco
rouco. os acordes dissonantes já não bastam para cobrir nossas vergonhas, nossa nudez
transatlântica. e no entanto Ele é um gênio: quem ousaria dedicar este disco a João Gilberto?
quantos anos você tem? como é que você se chama, quando é que você me ama, onde é que
vamos morar? os automóveis parecem voar os automóveis parecem voar por cima (mas mais
alto que o caravelle) dos telhados azuis de lisboa, dos teus olhos, dos mais incríveis umbigos de
todas as mulheres em transe, dos teus cabelos cortados mais curtos que os meus, meu amor,
porque eu não quero, porque eu não devo explicar absolutamente nada.
P.S.: Gil, hoje não tem sopa na varanda de Maria.
149
In: Caetano Veloso. Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Phillips, 1967.
136
ANEXO B
1. Das vanguardas
Tropicália
(Caetano Veloso)
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No Planalto Central do país
Viva a bossa-sa-sa
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça
O monumento é de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás de verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada de uma rua antiga, estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente, feia e morta
Estende a mão
Viva a mata-ta-ta
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta
No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina
E faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira
Entre os girassóis
Viva Maria-ia-ia
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
No pulso esquerdo bang-bang
Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração balança a um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
pelos cinco mil alto-falantes
Senhora e senhores ele põe os olhos grandes
Sobre mim
Viva Iracema-ma-ma
Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
137
Domingo é o fino da bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém
O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem
Viva a banda-da-da
Carmem Miranda-da-da-da-da
Manguebit
(Zero Quatro)
Sou eu um transistor?
Recife é um circuito?
O país é um chip?
Se a terra é um radio,
qual é a música?
Manguebit - Manguebit
Um vírus contamina
pelos olhos-ouvidos, línguas,
narizes-fios (elétricos),
ondas sonoras, vírus
conduzidos a cabo, UHF,
antenas-agulhas
Eletricidade alimenta
tanto quanto oxigênio
(meus pulmões ligados)
informações entram pelas
narinas
e da cultura sai
mau hálito (ideologia)
Sou eu um transistor?
Se a terra é um radio,
qual é a música?
Manguebit – Manguebit
2. Das canções críticas
Panis et circenses
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)
Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei fazer
138
De puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei plantar
Folhas de sonho no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas na sala de jantar
Essas pessoas da sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e em morrer
Samba esquema noise
(Zero Quatro)
A felicidade (como a morte)
é como um concurso milionário
da TV.
Existe um infinito globo
Com bilhões de bolinhas
Girando em algum lugar.
A cada instante uma deusa
retira um número, que pode
ser o meu.
Por isso, nada
de pudores.
Ou você explora
o próximo, ou o próximo
é você.
Esta é a única moral do Mundo
Livre.
Livre iniciativa
(música: Zero Quatro e Tony Montenegro letra: Zero Quatro)
Trabalho
Trabalho novo
Trabalho
Trabalho novo
Uma jóia fumegante na mão
(uma Uzi reluzente)
Uma arma fumegante na mão
e uma ideia na cabeça
Quem se importa de onde vem
a bala?
Qualquer dia tu acorda cheio
Quem se importa de onde vem o
dinheiro?
Tu tem que ter o bolso sempre
cheio
(só não dê um passo em falso)
139
Coração materno
(Vicente Celestino)
Disse um campônio à sua amada: “Minha idolatrada, diga-me o que quer
Por ti vou matar, vou roubar, embora tristezas me causes mulher
Provar quero eu que te quero, venero teus olhos, teu porte, teu ser
Mas diga, tua ordem espero, por ti não me importa matar ou morrer”
E ela disse ao campônio, a brincar: “Se é verdade tua louca paixão
Parte já e pra mim vá buscar de tua mãe inteiro o coração”
E a correr o campônio partiu, como um raio na estrada sumiu
Sua amada qual louca ficou, a chorar na estrada tombou
Chega à choupana o campônio
E encontra a mãezinha ajoelhada a rezar
Rasga-lhe o peito o demônio
Tombando a velhinha aos pés do altar
Tira do peito sangrando da velha mãezinha o pobre coração
E volta à correr proclamando: “Vitória, vitória, tens minha paixão”
Mas em meio da estrada caiu, e na queda uma perna partiu
E à distância saltou-lhe da mão sobre a terra o pobre coração
Nesse instante uma voz ecoou: “Magoou-se, pobre filho meu?
Vem buscar-me filho, aqui estou, vem buscar-me que ainda sou teu!”
Maracatu atômico
(letra: Jorge Mautner música: Nelson Jacobina)
Atrás do arranha-céu tem o céu, tem o céu,
e depois tem outro céu sem estrelas.
Em cima do guarda-chuva tem a chuva, tem a chuva
que tem gotas tão lindas que até dá vontade de comê-las
No meio da couve-flor tem a flor, tem a flor
que além de ser uma flor tem sabor.
Dentro do porta-luva tem a luva, tem a luva
que alguém de unhas tão negras e tão afiadas esqueceu de pôr
No fundo do para-raio tem o raio, tem o raio
que caiu da nuvem negra do temporal
Todo quadro-negro é todo negro é todo negro,
e eu escrevo seu nome nele só pra demonstrar o meu apego.
O bico do beija-flor, beija a flor, beija a flor,
E toda fauna, flora, grita de amor.
Quem segura o porta-estandarte tem a arte, tem a arte
e aqui passa com raça, eletrônico, o maracatu atômico!
3. Dos gêneros deslocados
Coco dub (afrociberdelia)
(Chico Science)
Cascos, cascos, cascos
Multicoloridos, cérebros, multicoloridos
Sintonizam, emitem, longe
Cascos, cascos, cascos
Multicoloridos, homens, multicoloridos
Andam, sentem, amam
Acima, embaixo do Mundo
Cascos, caos, cascos, caos
Imprevisibilidade de comportamento
140
O leito não-linear segue
Para dentro do universo
Música Quântica?
Quilombo groove
(música: Chico Science e Nação Zumbi)
(Instrumental)
Baião ambiental dub
(música: Lúcio Maia, Dengue e Gira)
(Instrumental)
Batmacumba
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)
batmacumbaieiê batmacumbaobá
batmacumbaieiê batmacumbao
batmacumbaieiê batmacumba
batmacumbaieiê batmacum
batmacumbaieiê batman
batmacumbaieiê bat
batmacumbaieiê ba
batmacumbaieiê
batmacumbaie
batmacumba
batmacum
batman
bat
ba
bat
batman
batmacum
batmacumba
batmacumbaieiê
batmacumbaieiê ba
batmacumbaieiê bat
batmacumbaieiê batman
batmacumbaieiê batmacum
batmacumbaieiê batmacumba
batmacumbaieiê batmacumbao
batmacumbaieiê batmacumbaobá
Parque industrial
(Tom Zé)
Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.
Tem garota-propaganda
Aeromoça e ternura no cartaz,
Basta olhar na parede,
Minha alegria
Num instante se refaz
Pois temos o sorriso engarrafado
141
Já vem pronto e tabelado
É somente requentar
E usar,
É somente requentar
E usar,
Porque é made, made, made, made in Brazil.
Porque é made, made, made, made in Brazil.
Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.
A revista moralista
Traz uma lista dos pecados da vedete
E tem jornal popular que
Nunca se espreme
Porque pode derramar.
É um banco de sangue encadernado
Já vem pronto e tabelado,
É somente folhear e usar,
É somente folhear e usar.
Dois mil e um
(Tom Zé e Rita Lee)
Astronauta libertado
Minha vida me ultrapassa
Em qualquer rota que eu faça
Dei um grito no escuro
Sou parceiro do futuro
Na reluzente galáxia
Eu quase posso palpar, a minha vida que grita
Emprenha e se reproduz, na velocidade da luz
A cor do céu me compõe, o mar azul me dissolve
A equação me propõe, computador me resolve
Astronauta libertado
Minha vida me ultrapassa
Em qualquer rota que eu faça
Dei um grito no escuro
Sou parceiro do futuro
Na reluzente galáxia
Amei a velocidade, casei com 7 planetas
Por filho cor e espaço, não me tenho nem me faço
A rota do ano luz, calculo dentro do passo
Minha dor é cicatriz, minha morte não me quis
Nos braços de 2000 anos, eu nasci sem ter idade
Sou casado, sou solteiro, sou baiano, estrangeiro
Meu sangue é de gasolina, correndo não tenho mágoa
Meu peito é de sal de fruta, fervendo num copo d’água
Astronauta libertado
Minha vida me ultrapassa
Em qualquer rota que eu faça
Dei um grito no escuro
Sou parceiro do futuro
Na reluzente galáxia
142
Cérebro eletrônico
O cérebro eletrônico faz tudo
Faz quase tudo
Quase tudo
Mas ele é mudo
O cérebro eletrônico comanda
Manda e desmanda
Ele é quem manda
Mas ele não anda
Só eu posso pensar se Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar quando estou triste
Só eu
Eu cá com meus botões de carne e osso
Hum, hum
Eu falo e ouço
Hum, hum
Eu penso e posso
Eu posso decidir se vivo ou morro
Porque
Porque sou vivo, vivo pra cachorro
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Em meu caminho inevitável para a morte
Porque sou vivo, ah, sou muito vivo
E sei
Que a morte é nosso impulso primitivo
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro
Com seus botões de ferro e seus olhos de vidro
Futurível
(Gilberto Gil)
Você foi chamado, vai ser transmutado em energia
Seu segundo estágio de humanóide hoje se inicia
Fique calmo, vamos começar a transmissão
Meu sistema vai mudar
Sua dimensão
Seu corpo vai se transformar
Num raio, vai se transportar
No espaço, vai se recompor
Muitos anos-luz além
Além daqui
A nova coesão
Lhe dará de novo um coração mortal
Pode ser que o novo movimento lhe pareça estranho
Seus olhos talvez sejam de cobre, seus braços de estanho
Não se preocupe, meu sistema manterá
A consciência do ser
Você pensará
Seu corpo será mais brilhante
A mente, mais inteligente
Tudo em superdimensão
O mutante é mais feliz
143
Feliz porque
Na nova mutação
A felicidade é feita de metal
Computadores fazem arte
(Zero Quatro)
Computadores fazem arte
Artistas fazem dinheiro
Computadores avançam
Artistas pegam carona
Cientistas criam o novo
Artistas levam a fama
Um satélite na cabeça (bitnik generation)
(letra: Chico Science música: Chico Science & Nação Zumbi)
como um pássaro, o tempo voa
à procura do exato momento
onde o que você pode fazer fosse agora
com as roupas sujas de lama
porque o barro arrodea o mundo
e a tv não tem olhos pra ver
eu sou como aquele boneco
que apareceu no dia da fogueira
e controla seu próprio satélite
andando por cima da terra
conquistando o seu próprio espaço
é onde você pode estar agora
Enquanto o mundo explode
(letra: Chico Science música: Chico Science & Nação Zumbi)
a engenharia cai sobre as pedras
um curupira já tem o seu tênis importado
não conseguimos acompanhar o motor da história
mas somos batizados pelo batuque e apreciamos a agricultura celeste
mas enquanto o mundo explode
nós dormimos no silêncio do bairro
fechando os olhos e mordendo os lábios
sinto vontade de fazer muita coisa
Saudosismo
(Caetano Veloso)
Eu, você, nós dois
Já temos um passado, meu amor
Um violão guardado
Aquela flor
E outras mumunhas mais
Eu, você, João
Girando na vitrola sem parar
E o mundo dissonante que nós dois
Tentamos inventar tentamos inventar
Tentamos inventar tentamos
A felicidade a felicidade
A felicidade a felicidade
Eu, você, depois
Quarta-feira de cinzas no país
144
E as notas dissonantes se integraram
Ao som dos imbecis
Sim, você, nós dois
Já temos um passado, meu amor
A bossa, a fossa, a nossa grande dor
Como dois quadradões
Lobo, lobo bobo
Lobo, lobo bobo
Eu, você, João
Girando na vitrola sem parar
E eu fico comovido de lembrar
O tempo e o som
Ah! Como era bom
Mas chega de saudade
A realidade é que
Aprendemos com João
Pra sempre
A ser desafinados
Ser desafinados
Ser desafinados
Ser
Chega de saudade
Chega de saudade
Chega de saudade
Chega de saudade
Frevo rasgado
(música e letra: Gilberto Gil música: Bruno Ferreira)
Foi quando topei com você
Que a coisa virou confusão
No salão
Porque parei, procurei
Não encontrei
Nem mais um sinal de emoção
Em seu olhar
Aí eu me desesperei
E a coisa virou confusão
No salão
Porque lembrei
Do seu sorriso aberto
Que era tão perto, que era tão perto
Em um carnaval que passou
Porque lembrei
Que esse frevo rasgado
Foi naquele tempo passado
O frevo que você gostou
E dançou e pulou
Foi quando topei com você
Que a coisa virou confusão
No salão
Porque parei, procurei
Não encontrei
Nem mais um sinal de emoção
Em seu olhar
A coisa virou confusão
Sem briga, sem nada demais
No salão
145
Porque a bagunça que eu fiz, machucado
Bagunça que eu fiz tão calado
Foi dentro do meu coração
Porque a bagunça que eu fiz, machucado
Bagunça que eu fiz tão calado
Foi dentro do meu coração
Quero sambar meu bem
(Tom Zé)
quero sambar,
meu bem
quero sambar
também
não quero é vender
flores
nem saudade
perfumada
quero sambar,
meu bem
quero sambar
também
mas eu não quero
andar na fossa
cultivando tradição
embalsamada
meu sangue é de
gasolina
correndo, não tenho
mágoa
meu peito é de
sal de fruta
fervendo no copo
d´água
Samba makossa
(Chico Science)
Samba maioral
Onde é que você se meteu antes de chegar na roda, meu irmão
A responsabilidade de tocar o seu pandeiro
É a responsabilidade de você manter-se inteiro é de você manter-se inteiro
Por isso chegou a hora dessa roda começar
Samba Makossa da pesada, vamos todos celebrar
Cerebral, é assim que tem de ser
Maioral, é assim que é, bom na cabeça e um foguete no pé
Samba Makossa, sem hora marcada, é da pesada
Samba, samba, samba, samba, samba, samba
Samba do lado
(Chico Science)
faminto e calmo o samba chegou
domingo de todos os lados
daqui pra ali, de lá pra cá
pode-se escutar o som aqui no Brasil
lembro quase tudo que sei
e organizando as ideias
lembro que esqueci de tudo
146
mas, eu escuto o samba
e você samba de que lado
de que lado você samba
e você samba de que lado
de que lado você samba
de que lado, de que lado, de que lado, de que lado
você vai sambar?
o problema
são problemas demais
se não correr atrás da maneira certa de solucionar
olha o samba do teu lado
do teu lado olha o samba
olha o samba do teu lado
do lado olha o samba
do teu lado, do teu lado
do teu lado, do teu lado
o samba chegar
olha o zambo do teu lado
do lado olha o zambo
olha o zambo do teu lado
do teu lado olha o zambo
olha o zambo , olha o zambo
o problema são problemas demais
e não correr atrás da maneira certa de solucionar
lembro quase tudo que sei
e organizando as ideias
lembro que esqueci de tudo
mas, eu escuto o samba
e você samba de que lado
de lado você samba
você samba de que lado
de que lado você samba
de que lado, de que lado
de que lado, de que lado
de que lado você vai sambar
Objeto semi-identificado
(letra: Gilberto Gil e Rogério Duarte música: Rogério Duprat)
- Diga lá.
- Digo eu.
- Diga você.
- E línguas como que de fogo tornaram-se invisíveis.
E línguas como que de fogo tornaram-se invisíveis. E se distribuíram e sobre cada um deles assentou-se
uma. E todos eles ficaram cheios de espírito santo e principiaram a falar em línguas diferentes.
- Eu gosto mesmo é de comer com coentro. Uma moqueca, uma salada, cultura, feijoada, lucidez, loucura.
Eu gosto mesmo é de ficar por dentro, como eu estive na barriga de Claudina, uma velha baiana cem por
cento.
- Tudo é número. O amor é o conhecimento do número e nada é infinito. Ou seja: será que ele cabe aqui
no espaço beijo da fome? Não. Ele é o que existe, mais o que falta.
- O invasor me contou todos os lances de todos os lugares onde andou. Com um sorriso nos lábios ele
disse: "A eternidade é a mulher do homem. Portanto, a eternidade é seu amor".
Compre, olhe, vire, mexa. Talvez no embrulho você ache o que precisa. Pare, ouça, ande, veja. Não custa
nada. Só lhe custa a vida.
147
- Entre a palavra e o ato, desce a sombra. O objeto identificado, o encoberto, o disco-voador, a semente
astral.
- A cultura, a civilização só me interessam enquanto sirvam de alimento, enquanto sarro, prato suculento,
dica, pala, informação.
- A loucura, os óculos, a pasta de dentes, a diferença entre o 3 e o 7. Eu crio.
A morte, o casamento do feitiço com o feiticeiro. A morte é a única liberdade, a única herança deixada
pelo Deus desconhecido, o encoberto, o objeto semi-identificado, o desobjeto, o Deus-objeto.
- O número 8 é o infinito, o infinito em pé, o infinito vivo, como a minha consciência agora.
- Cada diferença abolida pelo sangue que escorre das folhas da árvore da morte. Eu sou quem descria o
mundo a cada nova descoberta. Ou apenas este espetáculo é mais um capítulo da novela "Deus e o Diabo
etc. etc. etc."
- O número 8 dividido é o infinito pela metade. O meu objetivo agora é o meu infinito. Ou seja: a metade
do infinito, da qual metade sou eu, e outra metade é o além de mim.
- E fim de papo.
- Tá legal.
Acrilírico
(Caetano Veloso e Rogério Duprat)
Olhar colírico
Lirios plásticos do campo e do contracampo
Telástico cinemascope teu sorriso tudo isso
Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido
Na minha adolescidade
Idade de pedra e paz
Teu sorriso quieto no meu canto
Ainda canto o ido o tido o dito
O dado o consumido
O consumado
Ato
Do amor morto motor da saudade
Diluído na grandicidade
Idade de pedra ainda
Canto quieto o que conheço
Quero o que não mereço
O começo
Quero canto de vinda
Divindade do duro totem futuro total
Tal qual quero canto
Por enquanto apenas mino o campo ver-te
Acre e lírico o sorvete
Acrilíco Santo Amargo da Putrificação
4. Entreatos
Alegria, alegria
(Caetano Veloso)
Caminhando contra o vento
148
Sem lenço, sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas
Eu vou
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço, sem documento, eu vou
Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone
No coração do Brasil
Ela nem sabe até, pensei,
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou,
sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou
Por que não, por que não…
Domingo no parque
(Gilberto Gil)
O rei da brincadeira - ê, José
O rei da confusão - ê, João
Um trabalhava na feira - ê, José
Outro na construção - ê, João
A semana passada, no fim da semana
149
João resolveu não brigar
No domingo de tarde saiu apressado
E não foi pra Ribeira jogar
Capoeira
Não foi pra lá pra Ribeira
Foi namorar
O José como sempre no fim da semana
Guardou a barraca e sumiu
Foi fazer no domingo um passeio no parque
Lá perto da Boca do Rio
Foi no parque que ele avistou
Juliana
Foi que ele viu
Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana, seu sonho, uma ilusão
Juliana e o amigo João
O espinho da rosa feriu Zé
E o sorvete gelou seu coração
O sorvete e a rosa - ô, José
A rosa e o sorvete - ô, José
Oi, dançando no peito - ô, José
Do José brincalhão - ô, José
O sorvete e a rosa - ô, José
A rosa e o sorvete - ô, José
Oi, girando na mente - ô, José
Do José brincalhão - ô, José
Juliana girando - oi, girando
Oi, na roda gigante - oi, girando
Oi, na roda gigante - oi, girando
O amigo João - João
O sorvete é morango - é vermelho
Oi, girando, e a rosa - é vermelha
Oi, girando, girando - é vermelha
Oi, girando, girando - olha a faca!
Olha o sangue na mão - ê, José
Juliana no chão - ê, José
Outro corpo caído - ê, José
Seu amigo, João - ê, José
Amanhã não tem feira - ê, José
Não tem mais construção - ê, João
Não tem mais brincadeira - ê, José
Não tem mais confusão - ê, João
Manguetown
(letra: C. Science música: C. Science, Lucio e Dengue)
estou enfiado na lama
é um bairro sujo
onde os urubus têm casas
e eu não tenho asas
mas estou aqui em minha casa
onde os urubus têm asas
vou pintando, segurando as paredes do meu quintal
manguetown
andando por entre os becos
150
andando em coletivos
ninguém foge ao cheiro sujo
da lama da manguetown
andando por entre os becos
andando em coletivos
ninguém foge à vida suja
dos dias da manguetown
esta noite sairei, vou beber com meus amigos
e com as asas que os urubus me deram ao dia
eu voarei por toda a periferia
vou sonhando com a mulher
que talvez eu possa encontrar
ela também vai andar
na lama do meu quintal
manguetown
andando...
fui no mangue catar lixo
pegar caranguejo
conversar com urubu
Cidade estuário
(Zero Quatro)
Maternidade – Diversidade –
Salinidade
Fertilidade – Produtividade
Recife – Cidade – Estuário
Recife – Cidade – És – Tu...
Água, Salobra, Desova e criação
Matéria orgânica, troca e produção
Recife – Cidade – Estuário
És – Tu...
(O mangue injeta,
abastece, alimenta,
recarrega as baterias
da Veneza esclerosada,
destituída,
depauperada,
embrutecida...)
Mangue – Manguetown
Cidade complexo
Caos portuário
Berçário/caos
Cidade estuário
Monólogo ao pé do ouvido
(letra: Chico Science música: Chico Science & Nação Zumbi)
Modernizar o passado
É uma evolução musical
Cadê as notas que estavam aqui
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
151
O orgulho, a arrogância, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios os que destroem o poder
Bravio da humanidade
Viva zapata!
Viva sandino!
Viva zumbi!
Antônio Conselheiro!
Todos os panteras negras
Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia
Geleia geral
(Gilberto Gil e Torquato Neto)
Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplandente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o "Jornal do Brasil" anuncia
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
A alegria é a prova dos nove
E a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o sol é mais limpo
E Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
É a mesma dança na sala
No Canecão, na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela
Carne-seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade jardim
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
152
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
Plurialva, contente e brejeira
Miss linda Brasil diz "bom dia"
E outra moça também Carolina
Da janela examina a folia
Salve o lindo pendão dos seus olhos
E a saúde que o olhar irradia
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
Um poeta desfolha a bandeira
E eu me sinto melhor colorido
Pego um jato, viajo, arrebento
Com o roteiro do sexto sentido
Voz do morro, pilão de concreto
Tropicália, bananas ao vento
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
Mágica
(Os Mutantes)
Gira, ciranda
Na palma da mão
Pé de roseira
Levanta a poeira do chão
Gira, a menina
Na palma da mão
Gira, menina, que um dia
Eu te ponho no chão
Abri o portão de ouro
Da máquina do tempo
Ouvi ciranda ao longe
A rodar...
As caras giram rindo
Eu amo todas elas
Os vestidos tão compridos
A rodar...
Gira menina na palma da mão
Pé de roseira, levanta a poeira do chão
A rodar...
A praieira
(Chico Science)
No caminho é que se vê a praia melhor pra ficar
Tenho a hora certa para beber
Uma cerveja antes do almoço é muito bom
153
Pra ficar pensando melhor
E eu piso onde quiser, você está girando melhor, garota!
Na areia onde o mar chegou, a ciranda acabou de começar, e ela é!
E é praieira! Segura bem forte a mão
E é praieira! Vou lembrando a revolução, vou lembrando a revolução
Mas há fronteiras nos jardins da razão
E na praia é que se vê, a areia melhor pra deitar
Vou dançar uma ciranda pra beber
Uma cerveja antes do almoço é muito bom
Pra ficar pensando melhor
Você pode pisar onde quer
Que você se sente melhor
Na areia onde o mar chegou
A ciranda acabou de começar, e ela é!
E é praieira! Segura bem forte a mão
E é praieira! Vou lembrando a revolução, vou lembrando a revolução
Mas há fronteiras nos jardins da razão
No caminho é que se vê a praia melhor pra ficar
Tenho a hora certa para beber
Uma cerveja antes do almoço é muito bom
Pra ficar pensando melhor
Destruindo a camada de ozônio
(música: Zero Quatro/ Tony Regalia/ Fábio Malandragem. letra: Zero Quatro)
Não espere nada do centro
Se a periferia está morta
Pois o que era velho no norte
Se torna novo no sul
Eu tenho feito samba pesado
Misturado sons, inventado estilos
Eu venho repensando o sucesso
E destruindo a camada de ozônio
Eu venho perseguindo bandidos
Pedindo a pena de morte
Recitando psicotrópicos
Aplicando eletrochoques
E destruindo a camada de ozônio
Eu só queria ser Romário...
Divino, maravilhoso
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)
Atenção
Ao dobrar uma esquina
Uma alegria
Atenção, menina
Você vem?
Quantos anos você tem?
Atenção
Precisa ter olhos firmes
Pra este sol
154
Para esta escuridão
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino, maravilhoso
Atenção para o refrão:
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção
Para a estrofe, pro refrão
Pro palavrão
Para a palavra de ordem
Atenção
Para o samba-exaltação
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino, maravilhoso
Atenção para o refrão:
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção
Para as janelas no alto
Atenção
Ao pisar o asfalto, o mangue
Atenção
Para o sangue sobre o chão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Não identificado
(Caetano Veloso)
Eu vou fazer uma canção pra ela
Uma canção singela, brasileira
Para lançar depois do carnaval
Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico
Um anticomputador sentimental
Eu vou fazer uma canção de amor
Para gravar um disco voador
Uma canção dizendo tudo a ela
Que ainda estou sozinho, apaixonado
Para lançar no espaço sideral
Minha paixão há de brilhar na noite
No céu de uma cidade do interior
Como um objeto não identificado
Qualquer bobagem
(Os Mutantes/ Tom Zé)
Chegue perto de mim
Não precisa falar
Acenda o meu cigarro
155
Não queira me agradar
Queira
Queira
Não decida nem pense
Não negue nem se ofereça
Não queira se guardar
Não queira se mostrar
Queira
Queira
Escute esta canção
Ou qualquer bobagem
Ouça o coração, amor
Escute esta canção
Ou qualquer bobagem
Ouça o coração, amor
Que mais, sei lá
Enquanto seu lobo não vem
(Caetano Veloso)
Vamos passear
Na floresta escondida, meu amor
Vamos passear na avenida
Vamos passear nas veredas, no alto
Meu amor
Há uma cordilheira sob o asfalto
A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas
Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas
Presidente Vargas
Presidente Vargas
Presidente Vargas
Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil
Vamos passear escondidos
Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou
Vamos por debaixo das ruas
Debaixo das roupas das bombas
Das bandeiras, debaixo das botas
Debaixo das rosas dos jardins, debaixo da lama
Debaixo da cama, debaixo da cama
Debaixo da cama…
Mamãe coragem
(Caetano Veloso, Torquato Neto)
Mamãe, mamãe, não chore
A vida é assim mesmo
Eu fui embora
Mamãe, mamãe, não chore
Eu nunca mais vou voltar por aí
Mamãe, mamãe, não chore
A vida é assim mesmo
Eu quero mesmo é isto aqui
Mamãe, mamãe, não chore
Pegue uns panos pra lavar
Leia um romance
156
Veja as contas do mercado
Pague as prestações
Ser mãe
É desdobrar fibra por fibra
Os corações dos filhos
Seja feliz
Seja feliz
Mamãe, mamãe, não chore
Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz
Mamãe, seja feliz
Mamãe, mamãe, não chore
Não chore nunca mais, não adianta
Eu tenho um beijo preso na garganta
Eu tenho um jeito de quem não se espanta
(Braço de ouro vale 10 milhões)
Eu tenho corações fora peito
Mamãe, não chore
Não tem jeito
Pegue uns panos pra lavar
Leia um romance
Leia "Alzira morta virgem"
"O grande industrial"
Eu por aqui vou indo muito bem
De vez em quando brinco Carnaval
E vou vivendo assim: felicidade
Na cidade que eu plantei pra mim
E que não tem mais fim
Não tem mais fim
Não tem mais fim
Lindonéia
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)
Na frente do espelho
Sem que ninguém a visse
Miss
Linda, feia
Lindonéia desaparecida
Despedaçados
Atropelados
Cachorros mortos nas ruas
Policiais vigiando
O sol batendo nas frutas
Sangrando
Ai, meu amor
A solidão vai me matar de dor
Lindonéia, cor parda
Fruta na feira
Lindonéia solteira
Lindonéia, domingo
Segunda-feira
Lindonéia desaparecida
Na igreja, no andor
157
Lindonéia desaparecida
Na preguiça, no progresso
Lindonéia desaparecida
Nas paradas de sucesso
Ai, meu amor
A solidão vai me matar de dor
No avesso do espelho
Mas desaparecida
Ela aparece na fotografia
Do outro lado da vida
Marginália II
(letra: Torquato Neto música: Gilberto Gil)
Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição
Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui, o Terceiro Mundo
Pede a bênção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti
Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá
A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá
Aqui é o fim do mundo
158
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
A cidade
(Chico Science)
O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que cresceram com a força de pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
Não importa se são ruins, nem importa se são boas
E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs
A cidade não para, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce
A cidade se encontra prostituída
Por aqueles que a usaram em busca de saída
Ilusora de pessoas de outros lugares
A cidade e sua fama vai além dos mares
No meio da esperteza internacional
A cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos
A cidade não para, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce
Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu
Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu
Pra gente sair da lama e enfrentar os urubu
Num dia de sol Recife acordou
Com a mesma fedentina do dia anterior
Antene-se
(Chico Science)
É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo
Escutando o som das vitrolas, que vem dos mocambos
Entulhados à beira do Capibaribe
Na quarta pior cidade do mundo
Recife, cidade do mangue
Incrustada na lama dos manguezais
Onde estão os homens caranguejos
Minha corda costuma sair de andada
No meio das rua, em cima das pontes
É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo
Procurando antenar boa vibrações
Preocupando antenar boa diversão
Sou, Sou, Sou, Sou, Sou Mangueboy!
Recife, cidade do mangue
Onde a lama é a insurreição
Onde estão os homens caranguejos
Minha corda costuma sair de andada
No meio da rua, em cima das pontes
É só equilibrar sua cabeça em cima do corpo
Procure antenar boas vibrações
Procure antenar boa diversão
Sou, Sou, Sou, Sou, Sou Mangueboy!
159
Da lama ao caos
(Chico Science)
Posso sair daqui para me organizar
Posso sair daqui para desorganizar
Da lama ao caos
Do caos à lama
Um homem roubado nunca se engana
O sol queimou, queimou a lama do rio
Eu vi um Chié andando devagar
Vi um aratu pra lá e pra cá
Vi um caranguejo andando pro sul
Saiu do mangue, virou gabiru
Oh Josué, eu nunca vi tamanha desgraça
Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça
Peguei o balaio, fui na feira roubar tomate e cebola
Ia passando uma véia, pegou a minha cenoura
Aí minha véia, deixa a cenoura aqui
Com a barriga vazia não consigo dormir
E com o bucho mais cheio comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar
Da lama ao caos
Do caos à lama
Um homem roubado nunca se engana
Banditismo por uma questão de classe
(Chico Science)
Há um tempo atrás se falava em bandidos
Há um tempo atrás se falava em solução
Há um tempo atrás se falava em progresso
Há um tempo atrás que eu via televisão
Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna cabeluda
Biu do Olho Verde fazia sexo, fazia
Fazia sexo com seu alicate
Oi sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela
Acontece hoje, acontecia no sertão
Quando um bando de macaco perseguia Lampião
E o que ele falava outros hoje ainda falam
“Eu carrego comigo: coragem, dinheiro e bala”
Em cada morro uma história diferente
Que a polícia mata gente inocente
E quem era inocente hoje já virou bandido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fodido
Pra poder comer um pedaço de pão todo fodido
Banditismo por pura maldade, banditismo por necessidade
Banditismo por pura maldade, banditismo por necessidade
Banditismo por uma questão de classe!
Rios, pontes e overdrives
(Chico Science e Zero Quatro)
Porque no rio tem pato comendo lama
Rios, pontes e overdrives - impressionantes esculturas de lama
Mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue
Rios, pontes e overdrives - impressionantes esculturas de lama
Mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue
160
E a lama come mocambo e no mocambo tem molambo
E o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio-dia
O carro passou por cima e o molambo ficou lá
Molambo eu, molambo tu, molambo eu, molambo tu
É Macaxeira, Imbiribeira, Bom pastor, é o Ibura, Ipsep, Torreão, Casa Amarela
Boa Viagem, Genipapo, Bonifácio, Santo Amaro, Madalena, BoaVista
Dois Irmãos, é o Cais do porto, é Caxangá, é Brasilit, Beberibe, CDU
Capibaribe e o Centrão
Rios, pontes e overdrives – impressionantes esculturas de lama
Mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue
Rios, pontes e overdrives – impressionantes esculturas de lama
Mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue
E a lama come mocambo e no mocambo tem molambo
E o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio-dia
O carro passou por cima e o molambo ficou lá
Molambo eu, molambo tu, molambo eu, molambo tu
Rios, pontes e overdrives – impressionantes esculturas de lama
Mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue
Rios, pontes e overdrives – impressionantes esculturas de lama
Mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue
Molambo eu, molambo tu, molambo eu, molambo tu
Molambo boa peça de pano pra se costurar mentira
Molambo boa peça de pano pra se costurar miséria
Rios (smart drugs), pontes e overdrives
(Zero Quatro)
Quase sempre vale a pena
a gente ter uma sombra
- Cante mais uma vez, Bob
(Quase sempre vale a pena)
- Estão fazendo teu caixão!!!
Rios, veias, vias
Fios, margens, canais
Braços, berços, fontes
Plugues, leitos, marginais
Rios (smart drugs)
pontes, overdrives
Um passeio no mundo livre
(letra: Chico Science música: Dengue, Lúcio Maia, Gira, Jorge Du Peixe e Pupilo)
(um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar)
eu só quero andar
nas ruas de peixinhos
andar pelo Brasil
ou em qualquer cidade
andando pelo mundo
sem ter “sociedade”
andar com os meus amigos de eletricidade
andar com as meninas
sem ser incomodado
na na na
eu só quero andar nas ruas do Brasil.
andar no mundo livre
sem ter “sociedade”
andando pelo mundo
161
de todas as cidades
andar com os meus amigos
sem ser incomodado
andar com as meninas de eletricidade
na na na
Corpo de lama
(letra: Chico Science e Jorge Du Peixe música: Dengue, Lúcio Maia e Gira)
este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que sou
este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que é tu
que o sol não segue os pensamentos
mas a chuva mude os sentimentos
se o asfalto é meu amigo eu caminho
como aquele grupo de caranguejos
ouvindo a música dos trovões
essa chuva de longe que tu vê
é apenas a imagem que sou
esse sol bem longe que tu vê
é apenas a imagem que é tu
fiquei apenas pensando
que seu rosto parece com minhas ideias
fiquei apenas lembrando que há muitas garotas sorrindo em ruas distantes
há muitos meninos correndo em mangues distantes
essa rua de longe que tu vê
é apenas a imagem que sou.
esse mangue de longe que tu vê
é apenas a imagem que é tu
se o asfalto é meu amigo...
(deixar que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer
deixar que os olhos vejam pequenos detalhes lentamente
deixar que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes
como móveis inofensivos
pra lhe servir quando for preciso
e nunca lhe causar danos morais, físicos ou psicológicos).
Pastilhas Coloridas
(letra: Zero Quatro música: Zero Quatro, Tony Regalia e Fábio Malandragem)
“Os sonhos murcham feito maracujá velho”
Quando eu vim morar na Ilha Grande
Meu prédio era o only one da rua
Mas uns moleques já brincavam de trocar
Pastilhas coloridas
Nossos campos de pelada de repente sumindo
E as mesadas diminuindo
Nossos pais na pressão
Desemprego em massa
A vizinhança gravando direto
E a marcação cerrada dos prestativos
Mas nem sempre gentis homens da lei
Amigos nas farmácias
162
E quando a erva faltava
Qualquer droga era boa
As verdes valem dez
As amarelas oito
As brancas valem cinco
Mas se dá bem quem tem azul
Os ratos engordando dia-a-dia
Com os nossos sonhos podres
E a gente inventando regras
Para sobreviver na Ilha Grande
Pois o continente parecia muito longe
E talvez não houvesse lugar para nós
No mundo livre
Amigos nas farmácias
E quando a erva faltava
Qualquer droga era boa
Sob o calçamento (se espumar é gente)
(Zero Quatro)
Nada como um poste
atrás do poste
Por baixo dos trens
estão os trilhos
Nada como um século
após o outro
Nos buchos das mães
incham os filhos
Terra por si só
não vira asfalto
Entre o concreto e o Pirelli
o cheira-cola morre
A carne gruda
O sangue escorre
Onde há calçamento
pode crer que havia - Mangue.
Nada como um poste
após o poste
Por baixo dos trens
estão os trilhos
Nada como um século
atrás de um século
Os filhos vão nos bagos
Saem dos pênis
Caem dos sacos dos filhos dos filhos
Paisagem Útil
(Caetano Veloso)
Olhos abertos em vento
Sobre o espaço do aterro
Sobre o espaço sobre o mar
O mar vai longe do Flamengo
O céu vai longe e suspenso
Em mastros firmes e lentos
163
Frio palmeiral de cimento
O céu vai longe do Outeiro
O céu vai longe da Glória
O céu vai longe suspenso
Em luzes de luas mortas
Luzes de uma nova aurora
Que mantém a grama nova
E o dia sempre nascendo
Quem vai ao cinema, quem vai ao teatro
Quem vai ao trabalho, quem vai descansar
Quem canta, quem canta
Quem pensa na vida
Quem olha a avenida
Quem espera voltar
Os automóveis parecem voar
Os automóveis parecem voar
Mas já se acende e flutua
No alto do céu uma lua
Oval, vermelha e azul
No alto do céu do rio
Uma lua oval da Esso
Comove e ilumina o beijo
Dos pobres tristes felizes
Corações amantes do nosso Brasil
Onde andarás
(Caetano Veloso e Ferreira Gullar)
Onde andarás nesta tarde vazia
Tão clara e sem fim
Enquanto o mar bate azul em Ipanema
Em que bar, em que cinema te esqueces de mim?
Enquanto o mar bate azul em Ipanema
Em que bar, em que cinema te esqueces…
Eu sei, meu endereço apagaste do teu coração
A cigarra do apartamento
O chão de cimento existem em vão
Não serve pra nada a escada, o elevador
Já não serve pra nada a janela
A cortina amarela, perdi meu amor
E é por isso que eu saio pra rua
Sem saber pra quê
Na esperança talvez de que o acaso
Por mero descaso me leve a você
Na esperança talvez de que o acaso
Por mero descaso
Me leve… eu sei
São São Paulo
(Tom Zé)
São São Paulo quanta dor
São São Paulo meu amor
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São oito milhões de habitantes
De todo canto e nação
Que se agridem cortesmente
Correndo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Gaseados a prestação
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito
São São Paulo quanta dor
São São Paulo meu amor
Salvai-nos por caridade
Pecadoras invadiram
Todo o centro da cidade
Armadas de ruge e batom
Dando vivas ao bom humor
Num atentado contra o pudor
A família protegida
O palavrão reprimido
Um pregador que condena
Um festival por quinzena
porém com todo defeito
Te carrego no meu peito
São São Paulo quanta dor
São São Paulo meu amor
Santo Antonio foi demitido
E os ministros de Cupido
Armados da eletrônica
Casam pela tevê
Crescem flores de concreto
Céu aberto ninguém vê
Em Brasília é veraneio
No Rio é banho de mar
O país todo de férias
E aqui é só trabalhar
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito
São São Paulo quanta dor
São São Paulo meu amor
Não buzine que eu estou paquerando
(Tom Zé)
Sei que o seu relógio
Está sempre lhe acenando
Mas não buzine
Que eu estou paquerando
Eu sei que você anda
Apressado demais
Correndo atrás de letras,
Juros e capitais
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Um homem de negócios
Não descansa, não:
Carrega na cabeça
Uma conta-corrente
Não perde um minuto
Sem o lucro na frente
Juntando dinheiro,
Imposto sonegando,
Passando contrabando,
Pois a grande cidade não pode parar
Sei que o seu relógio está sempre lhe acenando,
Mas não buzine, que eu estou paquerando
A sua grande loja
Vai vender à mão farta
Doença terça-feira,
E o remédio na quarta,
Depois em Copacabana e Rua Augusta,
Os olhos bem abertos,
Nunca facilitar,
O dólar na esquina
Sempre pode assaltar
Mas netos e bisnetos
Irão lhe sucedendo
Assim, sempre correndo,
Pois a grande cidade não pode parar,
(sei que seu relógio...)
Domingou
(letra: Torquato Neto música: Gilberto Gil)
Da janela a cidade se ilumina
Como nunca jamais se iluminou
São três horas da tarde, é domingo
Na cidade, no Cristo Redentor - ê, ê
É domingo no trolley que passa - ê, ê
É domingo na moça e na praça - ê, ê
É domingo, ê, ê, domingou, meu amor
Hoje é dia de feira, é domingo
Quanto custa hoje em dia o feijão
São três horas da tarde, é domingo
Em Ipanema e no meu coração - ê, ê
É domingo no Vietnã - ê, ê
Na Austrália, em Itapuã - ê, ê
É domingo, ê, ê, domingou, meu amor
Quem tiver coração mais aflito
Quem quiser encontrar seu amor
Dê uma volta na praça do Lido
O-skindô, o-skindô, o-skindô-lelê
Quem quiser procurar residência
Quem está noivo e já pensa em casar
166
Pode olhar o jornal, paciência
Tra-lá-lá, tra-lá-lá, ê, ê
O jornal de manhã chega cedo
Mas não traz o que eu quero saber
As notícias que leio conheço
Já sabia antes mesmo de ler - ê, ê
Qual o filme que você quer ver - ê, ê
Que saudade, preciso esquecer - ê, ê
É domingo, ê, ê, domingou, meu amor
Olha a rua, meu bem, meu benzinho
Tanta gente que vai e que vem
São três horas da tarde, é domingo
Vamos dar um passeio também - ê, ê
O bondinho viaja tão lento - ê, ê
Olha o tempo passando, olha o tempo - ê, ê
É domingo, outra vez domingou, meu amor
Luzia Luluza
(Gilberto Gil)
Passei toda a tarde ensaiando, ensaiando
Essa vontade de ser ator acaba me matando
São quase oito horas da noite
E eu nesse táxi
Que trânsito horrível, meu Deus
E Luzia, e Luzia, e Luzia
Estou tão cansado, mas disse que ia
Luzia Luluza está lá me esperando
Mais duas entradas, uma inteira, uma meia
São quase oito horas, a sala está cheia
Essa sessão das oito vai ficar lotada
Terceira semana em cartaz James Bond
Melhor pra Luzia, não fica parada
Quando não vem gente, ela fica abandonada
Naquela cabine do Cine Avenida
Revistas, bordados, um rádio de pilha
Na cela da morte do Cine Avenida, a me esperar
No próximo ano nós vamos casar
No próximo filme nós vamos casar
Luzia, Luluza, eu vou ficar famoso
Vou fazer um filme de ator principal
No filme eu me caso com você, Luluza
No carnaval
Eu desço do táxi, feliz, mascarado
Você me esperando na bilheteria
Sua fantasia é de papel crepom
Eu pego você pelas mãos como um raio
E saio com você descendo a avenida
A avenida é comprida, é comprida, é comprida...
E termina na areia
Na beira do mar
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E a gente se casa
Na areia, Luluza
Na beira do mar
Na beira do mar
A coisa mais linda que existe
(Gilberto Gil e Torquato Neto)
Coisa mais linda nesse mundo
É sair por um segundo
E te encontrar por aí
E ficar sem compromisso
Pra fazer festa ou comício
Com você perto de mim
Na cidade em que me perco
Na praça em que me resolvo
Na noite da noite escura
É lindo ter junto ao corpo
Ternura de um corpo manso
Na noite da noite escura
A coisa mais linda que existe
É ter você perto de mim
O apartamento, o jornal
O pensamento, a navalha
A sorte que o vento espalha
Essa alegria, o perigo
Eu quero tudo contigo
Com você perto de mim
Caminhante noturno
(Rita Lee e Arnaldo Baptista)
No chão de asfalto
Ecos, um sapato
Pisa o silêncio, caminhante noturno
Fúria de ter nas suas mãos dedos finos de alguém
A apertar, a beijar...
Vai, caminhante
Antes do dia nascer
Vai, caminhante
Antes da noite morrer
Vai
Luzes, câmera
Canção, que horas são
Sombra na esquina
Alguém, Maria
Sente a pulsar um amor musculoso
Vai encontrar esta noite o amor
Sem pagar, sem falar, a sonhar
Vai caminhante...
No chão, vê folhas
Secas de jornal
Sombra na esquina
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Alguém, Maria
Pisa o silêncio, caminhante noturno
Foge do amor
Que a noite lhe deu sem cobrar
Sem falar, sem sonhar
Vai caminhante...
Fuga n° II
(Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias Baptista)
Hoje eu vou fugir de casa
Vou levar a mala cheia de ilusão
Vou deixar alguma coisa velha
Esparramada toda pelo chão
Vou correr num automóvel enorme e forte
A sorte, a morte a me esperar
Vultos altos e baixos
Que me assustavam só em olhar
Pra onde eu vou, ah
Pra onde eu vou, venha também
Pra onde eu vou, venha também
Pra onde eu vou
Faróis altos e baixos que me fotografam
A me procurar
Dois olhos de mercúrio iluminam meus passos
A me espionar
O sinal está vermelho e os carros vão passando
E eu ando, ando, ando...
Minha roupa atravessa e me leva pela mão
Do chão, do chão, do chão