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COLEÇÃO COMUNICAÇÃO
Coordenação
Luciana Pinsky
A arte de escrever bem Dad Squarisi e Arlete Salvador
A arte de entrevistar bem Thaís Oyama
A arte de fazer um jornal diário Ricardo Noblat
A mídia e seus truques Nilton Hernandes
Assessoria de imprensa Maristela Mafei
Comunicação corporativa Maristela Mafei e Valdete Cecato
Correspondente internacional Carlos Eduardo Lins da Silva
Escrever melhor Dad Squarisi e Arlete Salvador
Hipertexto, hipermídia Pollyana Ferrari (org.)
Jornalismo científico Fabíola de Oliveira
Jornalismo cultural Daniel Piza
Jornalismo de rádio Milton Jung
Jornalismo de revista Marília Scalzo
Jornalismo de TV Luciana Bistane e Luciane Bacellar
Jornalismo digital Pollyana Ferrari
Jornalismo econômico Suely Caldas
Jornalismo esportivo Paulo Vinicius Coelho
Jornalismo e Publicidade no Rádio Amadeu Nogueira de Paula e Roseann Kennedy
Jornalismo internacional João Batista Natali
Jornalismo investigativo Leandro Fortes
Jornalismo literário Felipe Pena
Jornalismo político Franklin Martins
Jornalismo popular Márcia Franz Amaral
Livro-reportagem Eduardo Belo
Manual do foca Thaïs de Mendonça Jorge
Manual do jornalismo esportivo Heródoto Barbeiro e Patrícia Rangel
Os jornais podem desaparecer? Philip Meyer
Os segredos das redações Leandro Fortes
Perfis & entrevistas Daniel Piza
Teoria do jornalismo Felipe Pena
A Editora não é responsável pelo conteúdo da obra, com o qual não necessariamente
concorda.
A Autora conhece os fatos narrados, pelos quais é responsável,
assim como se responsabiliza pelos juízos emitidos.
Copyright © 2008 Thaís Oyama
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.)
Capa
Antonio Kehl
Diagramação
Gapp Design
Preparação de textos
Lilian Aquino
Revisão
Victor Del Franco
Ilustrações
Dan
Foto da autora
Laílson Santos
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Oyama, Thaís
A arte de entrevistar bem /
Thaís Oyama. – 2. ed., 2ª
reimpressão. – São Paulo :
Contexto, 2014.
Bibliografia.
ISBN 978-85-7244-498-9
1. Entrevistas (Jornalismo)
2. Entrevistas (Jornalismo) –
Técnicas I. Título.
08-01352 CDD-070.431
Índice para catálogo sistemático:
1. Entrevistas : Reportagens : Jornalismo 070.431
2014
EDITORA CONTEXTO
Diretor editorial: Jaime Pinsky
Rua Dr. José Elias, 520 – Alto da Lapa
05083-030 – São Paulo – SP
PABX:(11) 3832 5838
[email protected] www.editoracontexto.com.br
Proibida a reprodução total ou parcial.
Os infratores serão processados na forma da lei.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: DO QUE ESTAMOS FALANDO
ANTES
Agendando a entrevista
A pesquisa
Por telefone, por e-mail
Gravar ou não gravar
Bloco de anotações, modo de usar
Dress code: por que não desprezá-lo
Você, senhor ou vossa excelência? Como tratar seu entrevistado
Quebrando o gelo
DURANTE
Perguntar não é fazer discurso
Saber ouvir: o mais importante
Como conquistar a confiança do entrevistado
Poker face, falsos elogios e outras dissimulações: pode, sim
A pergunta “delicada”: como fazê-la?
O lugar-comum: formas de evitá-lo
DEPOIS
A edição
O entrevistado e seus pedidos impossíveis
OUTRAS MÍDIAS
Entrevista para a TV
Entrevista para rádio
ENTREVISTADOS DIFÍCEIS, COMO LIDAR
O hostil
O prolixo
O evasivo
O disperso
O mil vezes entrevistado
O fragilizado
O que não tem jeito
Criminosos, acusados e suspeitos
UM ESTILO PARA CHAMAR DE SEU
Oriana Fallaci, a provocadora
Roger Martin, o ansioso
Jeremy Paxman, o rottweiler
Gay Talese, o tímido
COMO TRANSFORMAR UMA ENTREVISTA EM UM
DESASTRE
Como Policarpo Júnior aprendeu a não começar uma entrevista pelo lide
A pior entrevista de Oriana Fallaci
O pesadelo de moreno
A não entrevista de Joel Silveira com Getúlio Vargas
BIBLIOGRAFIA
A AUTORA
INTRODUÇÃO: DO QUE ESTAMOS
FALANDO
É impossível fazer uma boa reportagem – seja ela policial, de economia,
um relato de guerra ou um serviço informando o que abre e o que fecha no
feriado – tendo feito entrevistas ruins: boas entrevistas sempre rendem boas
reportagens. O mesmo princípio vale para entrevistas ruins: é inevitável que
acabem em reportagens igualmente ruins.
Boas entrevistas para jornal, no entanto, são diferentes de boas
entrevistas para televisão. Da mesma forma que entrevistas “em pé” não
têm nada a ver com entrevistadas “sentadas” – abordar o presidente da
República na saída de um evento, por exemplo, ao lado de um batalhão de
colegas, requer perguntas, táticas e postura bem diferentes das exigidas em
uma conversa agendada no Palácio do Planalto.
Uma entrevista também pode tomar rumos muito diferentes
dependendo das razões que levaram o entrevistador a procurar o
entrevistado. Se o segundo é um especialista em uma doença, digamos, ou
no estudo de um determinado fenômeno social, e esse é o motivo da
conversa, a tarefa do repórter será a de tentar extrair dele análises, números,
estudos, exemplos de casos – ou seja, informação. Se, ao contrário, o
entrevistado é um escritor, diretor de cinema ou qualquer um que possa
despertar a curiosidade do leitor por sua obra ou gênio, as questões – e a
maneira de abordá-las – serão outras. Aqui, a tarefa do repórter não é mais
a de extrair informação, mas, sobretudo, a de mostrar quem é o
entrevistado e o que ele pensa.
O jornalista Nilson Lage, professor da Universidade Federal de Santa
Catarina, em seu livro A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa
jornalística, classifica a entrevista, do ponto de vista do objetivo, em quatro
categorias: “ritual” (brevíssima, feita “em pé” e que, embora possa resultar
em declarações surpreendentes, quase sempre não passa de mera
formalidade), “temática” (em que o entrevistado fala sobre um assunto que,
supostamente, domina), “testemunhal” (quando ele discorre sobre algo de
que participou ou assistiu) e “em profundidade” (aquela em que o foco está
na figura do entrevistado, na atividade que desenvolve ou na sua
personalidade). É uma divisão clássica e, em certa medida, bem resolvida.
Aqui, preferi simplificar e dividir a entrevista em apenas duas categorias: a
de informação – que pode ser breve, longa, testemunhal ou temática – e a
de perfil – aquela em que se procura, por meio de perguntas e respostas,
mostrar quem é o entrevistado. Reuni a minha experiência na profissão,
quase toda baseada no jornalismo impresso, as palestras que tenho dado
sobre o tema desde 2003, e a generosa contribuição de 11 jornalistas
talentosos para descrever os encantos, segredos e ciladas daquilo que é a
base da reportagem e, na minha opinião, seu momento mais prazeroso.
ANTES
Como marcar uma entrevista, preparar-se para ela, escolher o local do
encontro e o equipamento a ser usado. E, ainda: a importância do dress code do
entrevistador elegante.
AGENDANDO A ENTREVISTA
Políticos, empresários, cientistas, celebridades e celebridades instantâneas,
todo mundo, hoje em dia, tem um assessor de imprensa. As únicas pessoas que
parecem ter mantido o hábito de atender pessoalmente telefonemas de
jornalistas são professores, cientistas e pesquisadores. No universo acadêmico, a
figura do assessor de imprensa (ainda) é algo raro. Em condições normais, o
melhor é recorrer a ele antes de qualquer coisa. Tentar atropelá-lo ligando
diretamente para o entrevistado não só costuma ser ineficiente (na maior parte
das vezes, o repórter intrépido irá esbarrar em uma secretária ou assistente que
se limitará a dar o telefone... do assessor de imprensa), como pode transformar
em inimigo alguém de quem se dependerá muito.
É para o assessor, em primeiro lugar, que o repórter irá apresentar-se, dizer
para qual veículo trabalha, qual o teor da matéria que está fazendo e por que
gostaria de falar com o entrevistado. Bons assessores de imprensa são de grande
ajuda para o repórter. Os melhores não se limitam a fazer a ponte entre o
jornalista e o entrevistado: muitas vezes, colaboram para tornar a entrevista
mais interessante. Próximos do chefe, eles têm conhecimento de seus mais
recentes movimentos, interesses, alianças, dissabores, projetos. E sabem que
relatá-los antecipadamente ao repórter pode ser bom para os dois lados.
Quando acompanha uma entrevista do superior, o assessor experiente, em vez
de atrapalhar, usa da sua habilidade para “puxar” casos interessantes, encorajar
confidências – naturalmente quando considera que sua divulgação é, pelo
menos, inofensiva para o entrevistado – e aparar eventuais tensões entre ele e o
jornalista. Em Brasília, Ana Tavares, ex-assessora de Fernando Henrique
Cardoso na presidência da República, faz isso brilhantemente. Assessores como
Ana sabem que, para merecer destaque, uma entrevista não pode se limitar a
ser confortável para o entrevistado – e anódina e previsível para o leitor.
Na minha casa ou na sua?
O território do entrevistado é sempre preferível. Deixa a fonte mais
confiante e mais à vontade. Depois, se a entrevista for do tipo perfil – ou seja,
se for girar mais em torno da figura do entrevistado do que das informações
que ele possa dar –, o repórter, estando em sua casa, tem a oportunidade de
observar livros, fotos, objetos de arte e outros itens reveladores da
personalidade do personagem. Essas informações servirão para conhecer
melhor o entrevistado, inspirar perguntas e ajudar a compor o texto de
apresentação da entrevista. Como conseguir que o entrevistado marque a
entrevista na casa dele? Responde o jornalista Joel Silveira, que entrevistei para
este livro poucos meses antes de sua morte, em agosto de 2007: “Se ele marca
no gabinete, eu digo: ‘Não, presidente, eu prefiro na sua casa. Se o senhor me
permitir’”. Simples assim? “Simples assim”, respondeu Joel. “E sempre deu
certo.” Em 60 anos de carreira, o jornalista entrevistou seis presidentes da
República, todos em suas casas.
Depois da casa do entrevistado, os melhores locais para fazer uma
entrevista são:
1) Restaurante
2) Avião
3) Escritório do entrevistado
Restaurantes inspiram conversas mais íntimas – deixam o entrevistado, em
geral, mais amigável, mais falante. E se a refeição incluir uma taça de vinho,
tanto melhor. É preciso só ter certeza de que o lugar é tranquilo e de que tem
acústica razoável. Do contrário, o momento de tirar a fita pode virar um
pesadelo. Avião é ótimo, sobretudo no caso de entrevistados com agenda
atribulada, como candidatos em campanha eleitoral. Eles podem não ter uma
brecha para receber jornalistas naquela semana, mas sempre terão um voo
marcado para algum lugar. Tendo a colaboração do assessor de imprensa e
convencendo a sua chefia de reportagem a bancar o dinheiro da passagem, é só
apertar os cintos e ser feliz – quanto mais longe o destino, maiores as chances
de sucesso. A melhor entrevista que fiz com Luiz Inácio Lula da Silva,
publicada na revista Veja em 1998, ocorreu durante um voo entre Belém do
Pará e São Paulo. Ele falou pela primeira vez de seu desânimo em partir pela
terceira vez para uma disputa pela presidência da República, que sabia perdida,
criticou o PT, revelou desafetos e relatou episódios em que se sentiu vítima de
preconceito por ser “pobre e famoso” – condição que o impedia, por exemplo,
de ir a um restaurante de luxo que sonhava conhecer ou de “levar a Marisa para
um baile e beber e dançar até me acabar”. Certamente colaborou para o
resultado da entrevista o fato de ela ter sido feita em um avião. Tudo lá joga a
favor do repórter: assessores não entram para interromper a conversa, o serviço
de bordo ajuda a relaxar o entrevistado, o celular dele não toca e ele só
consegue se desvencilhar do repórter se tiver um paraquedas à mão.
Quanto aos escritórios, eles estão incluídos na lista das boas opções por
terem vantagens parecidas com aquelas que casas oferecem: o entrevistado fica
mais confiante, já que está em território próprio, e o ambiente pode ajudar o
repórter a entender melhor o personagem ou inspirar perguntas.
Já os piores locais para entrevistar alguém são:
1) Qualquer lugar em que o entrevistado possa ser interrompido a toda
hora. A opção por um restaurante, por exemplo, não vale para entrevistas com
jogadores de futebol, artistas de TV e celebridades em geral. É a alegria dos fãs e
a desgraça do entrevistador.
2) No escritório do advogado ou assessor de imprensa do entrevistado.
Primeiro, porque indica, logo de saída, que o repórter encontrará um
interlocutor precavido e defensivo. Depois, porque o ambiente inspira uma
formalidade excessiva – e formalidades excessivas resultam em entrevistas chatas
(veja o item Quebrando o gelo, p. 24).
Há ainda situações especiais, como as que envolvem entrevistas secretas, em
que o entrevistado, por algum motivo, não pode ser visto na companhia do
repórter. Nesse caso, a saída é alugar um quarto ou sala de reunião de um hotel.
Outra alternativa é arriscar o interior de um carro ou um parque afastado da
cidade. Esse tipo de situação ocorre frequentemente quando o entrevistado é
alguém que está fazendo uma denúncia que envolve alguma espécie de risco
para ele. Ou quando algum episódio de grande repercussão desloca dezenas de
jornalistas para uma mesma cidade, como no caso do Dossiêgate em 2007.
Nele, o centro das investigações estava em Cuiabá (MT), onde o empresário
Luis Antonio Vedoin – acusado de chefiar a máfia dos sanguessugas e de vender
a petistas material comprometedor sobre políticos tucanos – havia sido preso.
Eu e o repórter Alexandre Oltramari, da sucursal da Veja em Brasília, estávamos
na cidade, participando da cobertura do caso. Um dos investigadores
envolvidos aceitou falar conosco, mas, como queria que a conversa ficasse em
off, não podia ser visto, por jornalistas ou conhecidos, na nossa companhia.
Para assegurar que isso não aconteceria, fizemos a entrevista dentro do carro do
investigador, enquanto ele guiava a esmo pela cidade. Um encontro num
restaurante ou lobby de hotel seria inviável numa cidade como Cuiabá, onde os
repórteres esbarravam-se a todo instante.
A PESQUISA
Uma entrevista bem-sucedida resulta de um conjunto de fatores que,
desgraçadamente, independe do repórter. O humor do entrevistado, o domínio
que ele tem da pauta ou o tempo disponível para a conversa, por exemplo,
podem influenciar bastante o resultado, mas são elementos que o entrevistador
não controla. Dentre todas as variáveis que determinam o destino de uma
entrevista, a única que é de exclusivo domínio do repórter, excetuando-se,
evidentemente, o seu talento, é a pesquisa. Obrigatória, imprescindível, uma
pesquisa bem feita aumenta enormemente as chances de uma boa entrevista. E
o contrário é igualmente verdadeiro. Acostumado a entrevistar, o jornalista
Edney Silvestre sentiu o que é ser vítima de um colega despreparado quando se
viu no papel de entrevistado. Em 1995, ele lançou seu primeiro livro de
crônicas (Dias de cachorro louco: 27 histórias de Nova York). Convidado a falar
sobre a obra em um programa de televisão transmitido ao vivo, o jornalista
ficou perplexo quando o apresentador, depois de dar-lhe as boas-vindas, pediu-
lhe que falasse sobre “o seu novo guia turístico”. “Foi uma situação rara”,
lembra Edney. “Não se tratava de um repórter que não lera a obra do
entrevistado, como não chega a ser incomum, mas de um jornalista que não se
dera ao trabalho de olhar o título do livro!” Desnecessário dizer que a entrevista
foi um fracasso. “Em compensação, a experiência reforçou para mim a
necessidade de fazer o dever de casa antes de entrevistar quem quer que seja”,
diz Edney, que já foi correspondente internacional da TV Globo e do jornal O
Globo e, desde 2002, apresenta o programa de entrevistas Espaço Aberto, na
GloboNews.
A pesquisa serve para conhecer o entrevistado e seu trabalho e, a partir daí,
elaborar uma pauta interessante. Mas também para saber o que já lhe foi
perguntado. Não necessariamente para não perguntar de novo, mas para evitar
que o entrevistado venha com aquela ótima frase que ele já disse em vinte
entrevistas anteriores. Isso acontece com mais frequência com personalidades
que têm grande experiência com a imprensa. Lula, por exemplo, ao falar da sua
infância, irá contar os mesmíssimos episódios que todo mundo já leu: o trauma
pelo fato de o pai truculento ter-lhe dito que ele não sabia chupar sorvete ou o
choque diante da descoberta de que seus meio-irmãos usavam sapatos com
meia enquanto ele andava descalço. São episódios reveladores da história do ex-
metalúrgico e podem mesmo ser importantes para entender sua formação. O
problema é que, ao repeti-los com frases idênticas e idêntica carga emocional,
Lula tira qualquer impacto que a “revelação” possa ter: “esfria” a entrevista.
O que fazer nesse caso? Deixar que o entrevistado exponha seu episódio de
estimação, sim, mas fazer com que ele vá além do script. No caso de Lula, seria
possível perguntar, por exemplo, em que medida o episódio ao qual ele se refere
com tanta frequência o influenciou na vida adulta. Melhor do que engolir uma
resposta usada. Evidentemente, estamos falando aqui de uma entrevista
exclusiva e previamente agendada, uma entrevista “sentada” – mais comum em
revistas e edições dominicais dos jornais. Mas, ainda que se trate de uma
entrevista surgida na última hora, exclusiva ou coletiva, e marcada para dali a
trinta minutos – ocorrência frequente na vida de repórteres de jornal –, o
princípio é o mesmo: não se chega diante do entrevistado sem um mínimo de
conhecimento a respeito dele, do seu trabalho ou do assunto do qual ele está se
ocupando naquele momento. Se não houve tempo nem sequer de dar um
google antes de sair da redação e imprimir alguma coisa para ir lendo no
caminho, telefone do carro da reportagem para um colega, uma fonte,
qualquer um que esteja mais inteirado a respeito do assunto ou do personagem
em questão – um mínimo de preparo sempre dá para conseguir.
Como eu faço
Antes de fazer uma entrevista, seja ela de informação ou de perfil,
mergulho na leitura da maior quantidade possível de material publicado sobre
e pelo entrevistado. No caso da entrevista-perfil, aquela em que o foco está no
entrevistado e não no assunto do qual ele trata, gosto também de conversar
antes com seus amigos e inimigos. Faço isso sempre que o prazo permite,
porque sei que a entrevista ficará muito melhor. Antes de entrevistar Paulo
Coelho para as Páginas Amarelas da Veja, em agosto de 2001, por exemplo,
ouvi de um amigo do escritor a sugestão para que lhe perguntasse se
continuava falando por telepatia com “J”, o misterioso empresário que mora na
Holanda e a quem Paulo Coelho se refere, em alguns de seus livros, como
“mestre”. O amigo não revelou o motivo da sugestão, mas eu fiz a pergunta
assim mesmo e ela foi fundamental para a entrevista. Paulo Coelho respondeu
a ela de forma bastante irritada, dizendo que achava telepatia “um negócio
sacal” e que fax era muito mais prático. Somada a outras respostas do escritor, a
frase deixou claro que ele, na ocasião empenhadíssimo em conseguir uma vaga
na Academia Brasileira de Letras, queria a todo custo distanciar-se da figura do
“mago” – termo que ele mesmo usava para se apresentar durante a sua fase
esotérica.
Tendo lido o máximo possível sobre o entrevistado e conversado com seus
amigos e desafetos, processei tudo e tentei identificar as curiosidades que me
restaram sobre o personagem: o que ele ainda não disse, que traço de sua
personalidade é desconhecido do leitor, que faceta sua me interessaria conhecer.
Definidas as questões, está definido o rumo da entrevista: é com base nelas que
eu vou montar a minha lista de perguntas – que, na verdade, não contém
perguntas, mas tópicos e lembretes (leia o item Bloco de anotações, modo de usar,
p. 20).
“Gera interferências e distorce ou destrói qualquer naturalidade que possa
existir entre o observador e o observado: o nervoso beija-flor e seu predador
potencial.”
(O “predador potencial” Truman Capote, explicando por que não usa
gravadores nas suas entrevistas).
POR TELEFONE, POR E-MAIL
O escritor Gay Talese, perguntado por Robert Boynton, autor do livro The
New New Journalism, se costumava fazer entrevistas por e-mail ou telefone,
respondeu que nem endereço eletrônico tinha e que telefone, para ele, servia só
para marcar entrevistas. Gay Talese pode se dar ao luxo de exagerar, mas o fato
é que todo jornalista que já fez mais de dez entrevistas concorda que, numa
escala de valores, a melhor entrevista é a pessoal. Em segundo lugar, vem a
entrevista feita por telefone e, por último, a entrevista por e-mail. A entrevista
por telefone, por não permitir o “olho no olho”, diminui a capacidade de
persuasão e percepção do repórter: fica mais complicado, por exemplo,
convencer a fonte a dar uma informação que ela hesita em fornecer ou perceber
se ela se mostra particularmente vulnerável diante de um determinado tema.
Não vejo um único aspecto positivo no uso do telefone, além do fato
evidente de que ele permite alcançar gente de outra forma inalcançável. Já em
relação ao e-mail, nem essa vantagem existe – uma vez que, na pior das
hipóteses, a conversa pode se dar... por telefone. E-mails retiram a
espontaneidade da fala, deixam o entrevistado preguiçoso (é muito mais fácil
falar do que escrever) e podem induzir a erro – não se tem nem mesmo a
garantia de que se está falando com quem se deseja falar. Mas o pior de tudo é
que eles anulam uma das principais prerrogativas do repórter, que é a de
contestar uma resposta mediante uma outra pergunta. O repórter pergunta
tudo de uma só vez e o entrevistado responde de uma só vez – e da maneira
que quiser. Confortável demais – para o entrevistado, claro.
A jornalista Regina Echeverria, que assinou entrevistas memoráveis com
artistas em geral e cantores em especial, e que é também autora de Furacão Elis,
detesta tanto o correio eletrônico que prefere perder uma entrevista a ter de
recorrer a ele. “Além de tirar a naturalidade da fala e não permitir o
contraditório, ele impede a ‘conquista’ do entrevistado”, diz ela. “E a entrevista
é a arte da conquista.” Nos Estados Unidos, o hábito de responder entrevistas
por e-mail é muito mais disseminado do que aqui. Sérgio Dávila,
correspondente da Folha de S.Paulo em Washington e autor do livro Diário de
Bagdá, a guerra segundo os bombardeados, adotou uma prática que minimiza os
prejuízos da entrevista eletrônica. “Se o entrevistado só aceita conversar desse
jeito, eu negocio com ele um formato ‘vaivém’. Ou seja: eu mando as
perguntas, ele manda as respostas, mas eu posso fazer outras perguntas com
base nas primeiras respostas.”
GRAVAR OU NÃO GRAVAR
Truman Capote odiava gravadores. Não gostava nem mesmo de usar bloco
de notas. Reza a lenda que, para escrever A sangue frio, o escritor contou apenas
com a memória. Entre os repórteres que conheço, só Jorge Moreno tem
capacidade parecida. O colunista de O Globo tem quase quarenta anos de
carreira, entrevistou todos os maiores políticos brasileiros e orgulha-se de ter
uma memória capaz de arquivar uma entrevista de página inteira em formato
pingue-pongue. Sua capacidade de gravar o que ouve é tamanha que ele chega
a memorizar até o que não quer. Conta Moreno que, em 1978, estava em
Fortaleza cobrindo um evento do qual participava Paulo Brossard, então
candidato a vice-presidência da República pelo MDB na chapa encabeçada pelo
general Euler Bentes. A reunião do Colégio Eleitoral que definiria a chapa
vencedora estava prestes a ocorrer (o indicado seria o general João Figueiredo,
com Aureliano Chaves de vice). Terminado o evento, Moreno voltou ao hotel e
começou a escrever a matéria para enviá-la à redação. Ao seu lado, um colega
trabalhava na degravação do discurso de Brossard, cuja íntegra o chefe pedira.
“Ele punha a fita e voltava, punha e voltava. Fez isso tantas vezes que eu acabei
decorando o texto todo. Até hoje, o discurso está na minha cabeça.” A
memorização involuntária não foi de todo inútil. “O Brossard virou ministro
do Supremo Tribunal e, às vezes, quando eu queria falar com ele e ele vinha
com aquela conversa de que ministro não fala, eu começava a recitar trechos do
tal discurso dele. Ele ficava todo embevecido e amolecia.”
Eu, como não tenho nem um byte da memória de Moreno ou de Capote,
embora concorde que o gravador muitas vezes ajuda a inibir o entrevistado,
considero-o imprescindível em alguns casos – alguns. Digamos que o repórter
esteja envolvido em uma matéria de saúde sobre, por exemplo, obesidade. Ela,
certamente, vai envolver uma série de entrevistas com médicos, pesquisadores
e, eventualmente, portadores da doença. Os especialistas falarão por vários
minutos, ajudarão o repórter a entender o assunto, esclarecerão suas dúvidas e
aparecerão na matéria com uma ou duas aspas, no máximo. Nesse caso, é
muito mais produtivo fazer anotações. Mesmo porque, se for gravar cada uma
de suas conversas com os diferentes especialistas, o repórter não fará outra coisa
a não ser escutar fitas, degravá-las e editá-las – perda de tempo. Agora, digamos
que haja na matéria um box com o depoimento de alguém contando o que é
ser obeso. É o tipo de entrevista que não pode deixar de ser gravada. Nela, o
“colorido” da fala do entrevistado é fundamental: ritmo, vocabulário, estilo,
tudo cresce em importância e pode enriquecer a informação que se quer
transmitir (“o que é ser gordo”).
Gravadores, em resumo, são fundamentais, no caso de depoimentos em
primeira pessoa, entrevistas pingue-pongue, entrevistas em outra língua e
entrevistas difíceis (porque são longas, porque o entrevistado pode voltar atrás
ou porque o assunto é complexo ou muito técnico). Algumas vantagens:
→ Preservam a fala do entrevistado tal como ela é.
→ São ótimos backups para entrevistas por telefone, em que o repórter
digita diretamente na tela do computador (e corre o risco de ver as
palavras sumirem subitamente, em caso de pane).
→ Dispensam o repórter da tarefa de tomar notas e possibilitam que ele
se dedique exclusivamente a ouvir o entrevistado, olhando-o nos olhos.
→ Possibilitam ao entrevistador que ouça quantas vezes quiser a
entrevista, de maneira a poder analisar a sua performance e corrigi-la.
Mas gravadores quebram. E, pior do que descobrir isso no meio de uma
entrevista é perceber isso DEPOIS da entrevista. A sensação de apertar a tecla
“play” e deparar com o mais puro silêncio é aterradora. Só quem já passou por
isso sabe do que eu estou falando (Cf. item Como transformar uma entrevista em
um desastre – O pesadelo de Moreno, p. 95). Adotei há pouco tempo uma tática
simples e infalível para evitar essas surpresas: levo – e deixo ligados – dois
gravadores. Assim, se um falhar, o outro já está a postos, funcionando. Além
disso, dois gravadores eliminam aquela desconfiança que tensiona o repórter e
faz com que ele, volta e meia, se volte para o aparelho para checar se a fita está
rodando.
Etiqueta para uso do gravador
→ Perguntar ao entrevistado se ele se incomoda em ter a entrevista
gravada.
→ Dizer-lhe para que fique à vontade se também quiser gravar a
conversa em seu próprio aparelho.
→ Avisar o momento em que o gravador for ligado (principalmente se
estiver fazendo uma entrevista por telefone).
→ Desligar o aparelho quando o entrevistado disser que o que vai falar
ou está falando é off (leia mais sobre off na p. 47).
→ Desligar o aparelho se o entrevistado interromper a conversa para
falar ao telefone, por exemplo.
→ Ter sempre fitas e pilhas extras à mão para não ser forçado a
interromper a entrevista antes do tempo.
BLOCO DE ANOTAÇÕES, MODO DE USAR
Eu adoro blocos de anotação e não dispenso um nem quando uso gravador.
Ele é útil porque:
→ Faz as vezes de backup no caso de o gravador pifar (partindo do
princípio de que o repórter anotou os principais trechos da conversa)
ou, ao menos, ajuda a rememorar a conversa (supondo que o
entrevistador tenha registrado as melhores frases ou a sequência do
diálogo).
→ O lado interno da capa é um lugar perfeito para anotar as perguntas
que se pretende fazer (ou os tópicos que irão inspirar as questões):
escrita lá, a lista pode ser consultada facilmente e de forma discreta. E
ainda fica protegida de eventuais olhares curiosos da parte do
entrevistado.
→ Ainda que o repórter leve um gravador, pode usar o bloco para
anotar palavras-chave referentes a raciocínios a que o entrevistado deu
início mas não finalizou. O recurso é útil para evitar que, diante de
entrevistados dispersos (Cf. o item O disperso do capítulo Entrevistados
difíceis, como lidar, p. 67), o jornalista também se perca.
→ Servem como um roteiro para orientar a edição da entrevista –
supondo que o repórter tenha anotado pelo menos as palavras-chave
referentes aos momentos mais importantes da conversa.
→ Blocos – abertos, fechados, em uso ou ociosos – servem ainda para
sinalizar mensagens para o entrevistado, como ensina Sérgio Dávila.
Diante de um entrevistado prolixo ou que não consegue dizer nada de
interessante, Dávila usa uma tática aprendida com Élio Gaspari: para
de fazer anotações. Mensagem implícita: “O(a) senhor(a) não está
agradando. Trate de ser mais conciso(a) ou de mudar de assunto”.
Fechar discretamente o bloco é outro “gesto-recado” – nesse caso:
“Estou satisfeito com a conversa e preciso ir embora”. Sim, blocos
também falam.
DRESS CODE: POR QUE NÃO DESPREZÁ-LO
É desnecessário gastar mais do que algumas linhas para lembrar: não se
entrevista um presidente de empresa ou ministro de tribunal vestindo calça
jeans detonada ou aquele modelo ultraconceitual desenhado pelo amigo
estilista, a não ser que a ideia seja fazer um fashion statement e não uma
reportagem. Vestir-se “errado” – o que, nesse caso, significa vestir-se de maneira
a causar estranheza no entrevistado – ajuda a criar uma distância entre o
repórter e o objeto da sua entrevista, que é tudo o que não se quer nesse
momento (sinto dizer que cortes exóticos de cabelo produzem igual efeito, pelo
menos no caso de repórteres que não trabalham na Rolling Stone).
Agora, o que é “errado” em Brasília, pode não ser “errado” no Rio ou São
Paulo. Na capital federal, onde o trabalho jornalístico gira em torno da
cobertura política, os repórteres se vestem invariavelmente de terno e gravata e
as mulheres exibem um estilo formal, com preferência para o tailleur ou
terninho. Qualquer produção que fuja radicalmente desse padrão causará
estranheza. Já no Rio, o que espanta é o excesso de formalidade. Da mesma
forma, na maior parte das capitais do nordeste, repórteres só usam terno para
entrevistar de governador para cima. São Paulo talvez seja a cidade que tenha as
redações mais ecléticas, em matéria de figurino de repórteres. Nos grandes
veículos, a diversidade de editorias torna a paisagem bem mais heterogênea.
Quem cobre artes, por exemplo, tem mais liberdade para exercitar o próprio
estilo – assim como o pessoal da moda. A turma da política deixa sempre um
paletó pendurado na cadeira, ao passo que a de esportes se sente à vontade para
trabalhar de tênis. Em suma: em se tratando de figurino, tudo o que não
afugente o seu entrevistado está certo.
VOCÊ, SENHOR OU VOSSA EXCELÊNCIA? COMO
TRATAR SEU ENTREVISTADO
Carlos Tramontina era ainda um jovem repórter quando, em 1985, foi
escalado para cobrir o encontro que o então candidato à prefeitura de São
Paulo, Jânio Quadros, teria com o banqueiro e então ministro das Relações
Exteriores, Olavo Setúbal. A reunião seria decisiva para definir se o PP (Partido
Popular), partido de Setúbal, iria ou não apoiar a candidatura de Jânio. Ao final
do encontro, candidato e ministro adentraram a sala onde se apinhavam
dezenas de repórteres que os aguardavam. Tramontina, pela TV Globo, foi
escalado pelos colegas para fazer a primeira pergunta da coletiva. Ele conta o
episódio em seu livro Entrevistas: “Enchi o peito, orgulhoso da
responsabilidade, e soltei a indagação mais óbvia para a situação: “O que vocês
conversaram?”. Ao que Jânio Quadros, “irado e com os olhos esbugalhados”,
respondeu: “‘Vocês’ o senhor diga aos seus iguais, a mim trate-me de senhor!”.
Tramontina conta que, para ele, a entrevista terminou naquele momento.
“Afastei-me atordoado, como se tivesse recebido um potente soco no
estômago.” O trauma só passou depois que, ao longo das muitas entrevistas que
fez com Jânio, o jornalista percebeu que fazia parte do estilo histriônico do
político “provocar os jornalistas como forma de se valorizar, ser notícia”. De
qualquer forma, Tramontina não só nunca se esqueceu do episódio como até
hoje só chama seus entrevistados de “senhor” e “senhora”. “Apenas em dois
casos abro mão desse princípio: quando vou fazer uma pergunta a alguém que
é flagrantemente mais jovem do que eu – e, nesse caso, sempre pergunto, logo
na abertura da entrevista, se há algum problema em eu chamá-la de você – e no
caso de artistas e esportistas, em que a praxe e o senso comum permitem que se
trate por você. Ninguém vai se dirigir ao Pelé chamando-o de ‘senhor Pelé’,
nem à Gal Costa como ‘dona Gal’”, diz.
Ou seja: a regra geral, prescrita pelos manuais de redação e pela boa
educação, pede que tratemos o entrevistado, a princípio, sempre por “senhor”.
Mais do que isso é exagero. Ao menos nos países ocidentais – tirando o papa,
monarcas e outros representantes da nobreza – o tratamento é perfeitamente
adequado. O que eu noto, no entanto, é que não apenas determinadas
categorias de entrevistados parecem combinar melhor com um tratamento mais
informal como também alguns repórteres têm a capacidade de chamar os
entrevistados de “você” de maneira que isso soe bastante natural. Nesse caso, e
também quando o próprio entrevistado solicita o tratamento, não vejo
problemas em adotá-lo. O que é triste de se ver é o repórter que, em busca de
uma intimidade que não lhe foi oferecida, sai logo, como se diz no Nordeste,
“batendo na barriga” da fonte, como se fosse seu compadre.
Uma vez ministro, sempre ministro
Políticos são um caso à parte. O tratamento continua sendo “senhor”, com
a diferença de que costumamos chamá-los pelos seus cargos. “Senador, o
senhor é contra ou a favor da proposta do governo?” E, não, obviamente,
“Senhor Tasso Jereissati, o senhor apoia ou não...”. Em Brasília, repórteres que
cobrem o Congresso costumam caprichar na etiqueta. Deputados eleitos líderes
de seus respectivos partidos na Câmara, por exemplo, não são chamados
simplesmente de deputados, mas de líder mesmo: “Líder, qual vai ser a
orientação que o senhor dará à sua bancada na próxima votação?”. Outra regra
do protocolo político é a de se chamar o sujeito pelo cargo mais importante
que ele ocupou. Assim, Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, ainda que
concorra e se reeleja senador, será sempre “presidente”. O mesmo se aplica a
fontes que já ocuparam um cargo público e hoje estão momentaneamente sem
nenhum, ou já aposentadas. Uma vez ministro, sempre ministro. Chame-os
assim. Eles adoram.
QUEBRANDO O GELO
Trabalhei numa ocasião com um repórter recém-formado numa
universidade de São Paulo de ótima reputação e que queria se especializar em
política. Penso que, como era muito jovem, esforçava-se para mostrar uma
postura “profissional” e, por causa disso, parecia sempre muito sério. Chegava
sério, falava sério e, ao fazer entrevistas por telefone, era também seriíssimo.
Mais de uma vez ouvi seus diálogos com o entrevistado. Era algo do tipo:
“Deputado fulano de tal, boa tarde. Sou sicrano de tal, repórter do veículo X, e
fui incumbido de entrevistá-lo. O senhor poderia me conceder uma
entrevista?”. Em caso de resposta positiva, lá ia ele: “Agradecido, deputado.
Primeira pergunta, dois pontos”. Tirando a formalidade excessiva, não há nada
de errado nessa fala, mas fico imaginando como esse repórter se comportaria
em uma entrevista pessoal. Ele, provavelmente, entra marchando na sala do
entrevistado, aperta sua mão e aguarda a ordem para sentar-se. Sentado, abre
imediatamente o bloco e começa: “Primeira pergunta, dois pontos”.
Horrível. Não funciona. Uma entrevista tem de ser uma conversa. E uma
conversa, para começar, exige um mínimo de cordialidade, simpatia e palavras
jogadas fora.
No extremo oposto do repórter a que me referi, está Eduardo Logullo, que
além de jornalista, é autor de livros como Meu mundo caiu: a bossa e a fossa de
Maysa. Simpático por natureza, Logullo é da opinião de que se mostrar à
vontade é o primeiro passo para deixar à vontade o seu interlocutor. “Se você se
mostra intimidado – seja pelo ambiente, seja pelo nome do artista –, a conversa
não flui. É preciso relaxar: comentar um quadro, falar sobre um amigo comum,
aceitar o que lhe oferecem: água, café. Quando fui entrevistar o Paulo Coelho
pela primeira vez, ele ainda morava em um apartamento bem pequenininho
em Copacabana. Eu me lembro que ele se sentou no chão e nós tomamos
quase meia garrafa de uísque juntos. Quando você chega a esse ponto, pergunta
qualquer coisa.”. Evidentemente, não é o tipo de comportamento fácil de
forjar: para agir assim, é preciso ser assim. Mesmo tímidos e fóbicos, no
entanto, não perderão nada investindo naquela troca de amenidades que faz
parte de todo encontro entre duas pessoas que não têm intimidade. Numa
entrevista, esse tipo de exercício não serve apenas para quebrar o gelo entre
entrevistador e entrevistado, mas também para que ambos se observem. O
repórter, por razões óbvias; o entrevistado, para analisar se quem vai inquiri-lo
tem uma cara confiável, se parece ter intenções amigáveis etc. Óbvio que esse
ritual deve ser breve (dependendo do caso, brevíssimo), mas dedicar alguns
segundos comentando a vista da janela ou um episódio que nada tenha a ver
com a entrevista, só irá melhorar os resultados do encontro. Como diz o
jornalista e professor da Universidade de Oregon, Ken Metzler, autor de
Creative Interviewing: the writer’s guide to gathering information by asking
questions: “Por mais formalidade que a ocasião exija, é preciso lembrar que uma
entrevista é, antes de tudo, uma conversa entre humanos – não uma tarefa
mecânica que se resume a “um pergunta o outro responde”.
DURANTE
Pronto: você conseguiu a entrevista, preparou-se para ela e agora,
bloquinho em punho, está diante do entrevistado. A brincadeira vai
começar. Vamos a ela:
PERGUNTAR NÃO É FAZER DISCURSO
Recebi o seguinte bilhete de um jornalista recém-formado em uma
palestra que fiz para estudantes do Curso Abril, da Editora Abril. “Não
gosto de fazer perguntas simples, que possam soar para o entrevistado como
falta de preparo, mas sei que questões elementares também são importantes
para que eu possa obter boas respostas para o leitor. Como equilibrar essa
relação?”.
Esse tipo de pergunta se repete frequentemente. Jornalistas em início de
carreira preocupam-se muito em fazer perguntas que “pareçam”
inteligentes. Eu defendo ardentemente as perguntas simples. Não estou
falando daquelas que clamam por um lugar-comum como resposta
(“Como se sente, Fernanda Montenegro, ao receber seu octogésimo prêmio
de melhor atriz?”), mas das que são feitas de forma objetiva, clara e concisa.
Há quem ache que ganha alguma coisa rebuscando bem sua questão,
enfeitando-a com citações, hipérboles e arabescos. Eu penso que não
apenas se perde tempo com isso, como se corre o risco de desestimular o
entrevistado a falar, já que ele tem a impressão de que o repórter está mais
interessado em exibir sua sabedoria e verve do que em ouvi-lo. Para
produzir um bom texto, costumava dizer Winston Churchill, que entendia
do assunto, é preciso escolher “das palavras, a mais simples; da mais
simples, a menor”. O mesmo vale para perguntas numa entrevista. Quanto
mais diretas, do ponto de vista da compreensão, melhor.
SABER OUVIR: O MAIS IMPORTANTE
Saber conversar é diferente de saber entrevistar. Se você é um sucesso
social, um entertaineur por natureza, um conversador charmoso, pode
aspirar o lugar de Jô Soares, mas não será por causa disso que chegará a Gay
Talese (leia o item Gay Talese, o tímido, p. 90). O bom entrevistador é
aquele que, antes de tudo, sabe ouvir. E saber ouvir implica, antes de tudo,
ser curioso. Quando um repórter tem genuína curiosidade sobre o
entrevistado ou sobre o assunto do qual ele trata, isso fica evidente na
maneira como ele se comporta, reage, fala – e isso estimula o entrevistado a
expor-se cada vez mais.
O inverso também é verdadeiro. Nada mais desanimador do que falar
para quem dá a impressão de estar entediado, com pressa ou, pior, já ter
opinião formada sobre o assunto. Às vezes, na pressa de liquidar todas as
perguntas que trouxe no bolso ou por medo de que o entrevistado pare de
falar, muitos jornalistas inexperientes mal ouvem a resposta do seu
interlocutor. No meio da frase, eles já estão de olho no bloquinho,
preparados para emplacar a próxima questão. Esse comportamento cria
uma situação bizarra, com as perguntas do entrevistador apresentando uma
esquisita independência das respostas do entrevistado. Como se o último
falasse: “E, por causa disso, eu fui obrigado a matar a minha mãe, que
acabo de enterrar no quintal”. Ao que o repórter – disciplinado seguidor de
sua lista de perguntas – responderia: “Hãhã. Agora, gostaria que o senhor
falasse do seu último livro.”.
Ouvir com propriedade também significa não julgar o entrevistado.
Ou, melhor: não expressar seu julgamento. Uma revista publicou certa vez
uma entrevista com a ex-primeira-dama Rosane Collor. Na ocasião, ela
havia acabado de se mudar para Miami, depois do processo de
impeachment do marido, Fernando Collor, em 1990. A entrevistadora abria
a conversa com a seguinte “pergunta”: “Sua casa, no bairro de Bay Harbour,
tem 500 metros quadrados de área construída e fica em um terreno de mil
metros quadrados, de frente para a ilha onde Julio Iglesias tem casa. Nada
mau esse caviar do autoexílio...”. Sem entender a ironia da repórter, a ex-
primeira-dama prosseguiu alegremente. Descreveu o quão “intensa e
maravilhosa” era sua nova vida nos Estados Unidos, onde ela estava
descobrindo prazeres até então desconhecidos, como lavar louça – Rosane
lembrava que, lá, ao contrário do Brasil, ela não tinha empregados. A frase
da jornalista, que se seguiu à resposta da ex-primeira-dama, soou mais um
libelo anti-imperialista e antiescravagista com endereço certo do que
propriamente como uma questão. “Depois, quando caímos de novo no
Brasil Colônia, voltamos ao confortável sistema escravocrata, como se isso
fosse o normal, não é?”.
O fato de Rosane, aparentemente, não ter de novo compreendido a
pergunta, é o que menos importa. Ela é um claro exemplo do que não se
deve fazer numa entrevista – menos por uma questão moral (jornalistas
julgam, sim, autorizados ou não) do que tática: na imensa maioria das vezes
(eu disse “imensa”; exceções existem, leia na p. 59 o item O hostil do
capítulo Entrevistados difíceis, como lidar), demonstrar uma eventual
indisposição para com o entrevistado, deixar claro que pensamos diferente
dele ou adotar posturas intimidantes só contribui para que a entrevista seja
um fracasso. Por um motivo lógico: o entrevistado não vai acreditar que
você está lá para saber o que ele pensa.
Menos ego, por favor
Saber ouvir é também saber o momento certo de abrir e fechar a boca,
procedimento aparentemente fácil de se aprender: abre-se a boca quando o
entrevistado para de falar e fecha-se a boca quando ele abre a dele. Parece
simples, mas quem se der ao trabalho de ouvir com calma a fita de uma
entrevista que fez na véspera, verá como é espantosa a nossa capacidade de
ignorar essa lógica elementar. Atropelamos o entrevistado, interrompemos
o seu raciocínio e cortamos suas falas nos momentos mais preciosos. Na
maioria das vezes, fazemos isso por ansiedade. Em outras, porque, numa
perfeita inversão de papéis, queremos ser ouvidos pelo entrevistado. Não
pode haver equívoco maior do que esse.
Para ser um bom ouvinte e, consequentemente, um bom entrevistador,
é necessário controlar o próprio ego. Ou, em outras palavras: esquecer
quem você é, o que sabe, o que pensa sobre o assunto em questão e lembrar
que só o entrevistado existe neste momento: ele é o centro do universo e
todos os seus sentidos estão voltados para ele. Assim, em vez de
interrompê-lo para demonstrar seu conhecimento sobre o assunto ou
preocupar-se em articular lindamente uma frase, dedique-se a ouvi-lo e a
estimulá-lo a ir além do que ele está disposto a contar.
Para Jorge Moreno, jornalistas exercitam tão pouco a capacidade de
ouvir que, muitas vezes, as notícias passam por eles e não percebem. Quer
dizer: não ouvem. Ele cita o exemplo de um episódio ocorrido no
Congresso durante o governo José Sarney (1985-1990). Tanto no Senado
quanto na Câmara há salas reservadas para jornalistas que cobrem o
cotidiano das duas casas. Lá os repórteres leem os jornais, tomam café,
telefonam e, no fim do dia, digitam suas matérias para enviá-las à redação.
O comitê de imprensa da Câmara, conta Moreno, sempre teve seus
“síndicos”: parlamentares que frequentam diariamente o local para bater
papo com os repórteres. Até o estouro do escândalo do mensalão, um deles
era o deputado José Genoíno (PT-SP). Mas o precursor da categoria foi
Roberto Cardoso Alves, o Cardosão, que, naquele tempo, era deputado
pelo PMDB. “Ele não saía do comitê”, lembra Moreno. “Todo dia, entrava lá
e, comentando o troca-troca de partidos que os deputados costumam fazer
por interesse, dizia: ‘Pois é, é aquela velha história: é dando que se recebe’.
Todo mundo estava cansado de ouvir aquela frase da boca dele: ‘É dando
que se recebe’. Até que um dia chegou um repórter novo no comitê. Eu
não me lembro o nome dele, mas foi um repórter que pensou: ‘Mas essa
frase é muito esquisita. Essa frase é uma apologia do fisiologismo!’ A frase
foi publicada e foi um escândalo.” A máxima virou um símbolo da Nova
República e acompanhou Cardosão até sua morte, em 1996. “Embora os
jornalistas estivessem cansados de ouvi-la – eu, inclusive –, ninguém
percebeu que aquilo era notícia. Isso é a dessensibilização do jornalista, isso
é não saber ouvir.”.
COMO CONQUISTAR A CONFIANÇA DO
ENTREVISTADO
O que diferencia uma entrevista fria e protocolar de outra
surpreendente, emocionante e reveladora? Eu não tenho dúvidas de que é,
sobretudo, o grau de confiança que o entrevistador consegue inspirar no
entrevistado.
Para conquistar essa confiança, ter agido de forma honesta com
entrevistados anteriores – ou seja, ter uma boa reputação – é o principal.
Demonstrar conhecimento sobre a pessoa ou sua obra e genuína
curiosidade de ouvir o que ela tem a dizer também. Mas essa confiança
pode ruir no meio da entrevista se, por exemplo, o entrevistado perceber
que o repórter não entendeu algo que ele disse e optou por disfarçar a
ignorância no lugar de pedir explicações. Toda dúvida deve ser esclarecida,
seja ela referente a um raciocínio ou a um termo técnico. Pedir explicações
ao entrevistado vai deixá-lo mais seguro. O contrário fará com que ele
receie pelo resultado da conversa – e passe a desconfiar de quem está diante
dele. Para deixar claro para o entrevistado que suas palavras estão sendo
bem compreendidas, o repórter pode, de tempos em tempos, resumir o que
ele, entrevistado, acaba de dizer – usando, preferencialmente, as palavras
literais. Para entrevistados aflitos, inseguros ou ansiosos, ouvir as próprias
palavras, e certificar-se de que elas estão colocadas nos lugares certos, é
altamente tranquilizador.
O jornalista americano Lawrence Grobel, famoso pelas entrevistas que
fez para a revista Playboy, usa uma técnica que aprendeu com um amigo
fotógrafo para deixar seu entrevistado mais seguro e à vontade. Encarregado
de retratar diferentes tribos nômades africanas, o amigo gastava as primeiras
horas trabalhando sem filme na máquina, apenas para que os nativos se
acostumassem com a sua presença e desistissem de “fazer pose” para a
câmera. Grobel recomenda o uso de recurso semelhante nas entrevistas:
deixar o entrevistado falar sobre o que quiser até que esteja suficientemente
confortável e relaxado – para começar a falar sobre aquilo que o repórter
deseja.
Truman Capote, para atingir o mesmo objetivo, usava uma técnica
bastante heterodoxa e, sob diversos pontos de vista, discutível. Ela rendeu
ao escritor tantas glórias quanto desafetos. Foi-lhe ensinada por George
Davis, um famoso editor de revistas femininas da década de 1950, com
quem Capote trabalhou. Dizia Davis: “A melhor maneira de se conhecer
um segredo é revelar outro – ainda que ele pertença a outra pessoa”. Capote
usou a tática com sucesso em várias ocasiões. Uma delas foi quando fez o
histórico perfil de Marlon Brando para a New Yorker (1956). O ator estava
em Tóquio, no Japão, filmando Sayonara, e a conversa aconteceu no quarto
do hotel em que ele estava hospedado. Capote entrou lá às 19h, sem nunca
ter entrevistado o astro antes. Saiu às 00h30 com um perfil memorável que,
dada a natureza das confissões que continha, foi descrito por críticos da
época como uma “vivissecção”. Brando revelou, entre outras coisas, que já
dormira com homens e que se achava incapaz de amar. Falou da angústia
que sentia quando criança diante do alcoolismo da mãe e da indiferença
que passou a experimentar mais tarde, quando era capaz de pular por cima
dela ao vê-la, mais uma vez, caída no chão depois de beber.
Mais tarde, Capote contou como “pegou” Brando: “O segredo da arte
de entrevistar – e é mesmo uma arte – é fazer com que a pessoa pense que é
ela quem está entrevistando.”, disse. “A gente fala de si, e lentamente, vai
tecendo a teia para que o outro fale e conte tudo a seu respeito.”. Histórias
pungentes para contar não faltavam ao escritor, ele mesmo filho de mãe
alcoólatra, morta aos 48 anos de uma overdose de barbitúricos. Ao diretor
de Sayonara, Joshua Logan, Brando confirmou que Capote usou e abusou
do recurso “eu também sofri”: “Aquele pequeno canalha passou metade da
noite me contando os seus problemas. Achei que o mínimo que eu poderia
fazer era contar-lhe os meus.”. Não é uma tática para qualquer um.
POKER FACE, FALSOS ELOGIOS E OUTRAS
DISSIMULAÇÕES: PODE, SIM
Diante de uma declaração bombástica, cara de paisagem – é a melhor
atitude que um entrevistador pode ter. Jorge Moreno conta um episódio
que ilustra a necessidade e a boa aplicação da tática. Era 1995 e Fernando
Henrique Cardoso acabara de suceder Itamar Franco na presidência da
República. Num bar de Brasília, o jornalista encontrou um grupo de
políticos que saíra de um jantar no Palácio do Jaburu, casa do então vice-
presidente Marco Maciel. Moreno sentou-se à mesa com eles e o grupo
começou a comentar as conversas que haviam se desenrolado no tal jantar.
Numa delas, Antonio Britto, que fora ministro da Previdência de Itamar,
falara sobre um estranho hábito que o ex-presidente mantivera durante o
seu governo: o de gravar as conversas telefônicas de seus ministros. Britto
dissera que Itamar não fazia questão de esconder a prática, já que certa vez
viera comentar com ele, Britto, uma conversa privada que o ex-ministro
tivera com um enteado. O grupo relembrava o relato de Britto entre risos e
exclamações de espanto. Ao ouvir a bombástica revelação de que Itamar
Franco, no exercício da presidência da República, grampeava os próprios
auxiliares, o que fez Moreno? Abanou-se. E reclamou do calor in-su-por-tá-
vel que andava fazendo na cidade. Em seguida, puxou outro assunto e logo
depois se despediu. “Saí de fininho e fui apurar a história completa com os
participantes do jantar, um por um. Se eu tivesse reagido de forma a
mostrar ao grupo que o que eles haviam comentado era uma bomba, eles
poderiam pedir que eu não publicasse a notícia.”.
Outro exemplo da eficácia da cara de paisagem – esse pertencente à
categoria dos que entraram para a história: em março de 1966, em uma
entrevista para Maureen Cleave, do jornal Evening Standard, John Lennon
declarou: “O cristianismo vai desaparecer. Eu não sei o que vai primeiro, se
o cristianismo ou o rock’n’roll.”. Em seguida, Lennon disse: “Nós somos
mais populares do que Jesus Cristo.”. A frase mais famosa da história do
rock provavelmente não teria vindo a público se, ao ouvi-la, Maureen
Cleave tivesse arregalado os olhos, saltado da cadeira ou começado a dar
pulos de alegria diante do cantor. Atitudes que revelam o impacto causado
pela frase ou revelação-bomba assustam o entrevistado e fazem com que ele
tenda a voltar atrás na afirmação ou, ao menos, a reformulá-la. No caso de
Maureen, imagino que ela tenha levantado os olhos um pouco só do bloco
de anotações e pronunciado o mais casual dos “really?” – para, em seguida,
passar para a próxima pergunta.
Ah, a vaidade
Saber encontrar o ponto fraco do entrevistado e explorá-lo é uma
qualidade preciosa para a técnica da entrevista. E, muitas vezes – mas
muitas mesmo – esse ponto fraco será a vaidade. Ela faz as pessoas
contarem o que não gostariam e revelarem mais do que deveriam. A
vaidade, ou seu excesso, em muitos casos, por si só já é notícia. Fazer com
que ela desabroche em todo o seu esplendor depende de um certo
descompromisso do repórter com a sinceridade – ou, em claro português,
exige uma boa dose de fingimento.
A jornalista italiana Oriana Fallaci, que aparecerá muitas vezes ao longo
deste livro, sabia ser franca e até rude com seus entrevistados. Mas podia
também se transformar na mais meiga e cândida das criaturas quando
sentia que isso a ajudaria a alcançar seu objetivo: desnudar um personagem.
Em 1972, Fallaci entrevistou Henry Kissinger, então secretário de Estado
do governo Richard Nixon. No segundo encontro, passou a desconfiar que
o pior inimigo do todo-poderoso secretário americano era o seu próprio
ego. No que veio a ser um dos melhores momentos da conversa, Fallaci
perguntou a Kissinger: “Doutor Kissinger, como o senhor explica esse
inacreditável status de estrela de cinema do qual o senhor desfruta? Como o
senhor explica o fato de ser quase mais famoso e popular do que o próprio
presidente da República?”. A resposta que um satisfeitíssimo Kissinger deu
à jornalista tornou-se o assunto favorito da imprensa americana por meses.
Disse ele: “Acredito que isso se deva em grande parte ao fato de eu agir
sempre sozinho. Os americanos adoram isso. Os americanos gostam do
caubói que segue cavalgando sozinho ao lado de um trem, o caubói que
chega sozinho na cidade, o caubói que conta com seu cavalo e nada mais.
Que talvez não traga nem mesmo uma pistola, já que ele não precisa disso.
É apenas o sujeito certo no lugar certo. Esse personagem impressionante e
romântico sou eu: como um caubói, sempre agi sozinho. Isso sempre fez
parte do meu estilo – ou da minha estratégia, se você preferir.”.
Caso Oriana Fallaci tivesse cedido à vontade de cair na gargalhada
diante das primeiras palavras de Kissinger, o mundo jamais teria tido o
prazer de saborear uma das frases mais desastrosas já pronunciadas por um
secretário de Estado americano. E de Henry Kissinger, ninguém pode dizer
que seja ingênuo. Aliás, nenhum político o é, ou, ao menos, deveria ser. E é
por causa disso que o jornalista Jorge Moreno afirma, sem pestanejar:
“Numa entrevista com um político, vale qualquer coisa. Vale fingir que
você concorda com ele, falar mal dos inimigos dele e indignar-se quando
ele se mostrar indignado. Isso é seduzir o entrevistado. E a capacidade de
seduzir é uma arma do jornalista, assim como a capacidade de persuadir”.
Ele dá um exemplo: “Você chega para o entrevistado e fala: ‘Ah, meu jornal
disse que só eu conseguiria essa entrevista com o senhor. Se eu não
conseguir, eles são capazes até de me demitir’. Eu digo: para conseguir uma
entrevista ou arrancar coisas de um político, só não vale vender a mãe.”.
Faço minhas as palavras do Moreno. E quando não se tratar de um
político, mas de uma pessoa sem qualquer experiência com a imprensa? Há
uma história famosa que serve como resposta. Na década de 1970, o
jornalista americano Joe McGinnis aceitou a oferta de escrever um livro. O
proponente era um médico que, condenado à morte pelo assassinato da
mulher e das duas filhas, jurava inocência e queria divulgar a sua versão da
história. Ocorre que, ao longo da convivência com o médico – Jeffrey
McDonalds era seu nome –, o jornalista não só não se convenceu da sua
alegada inocência, como concluiu que ele era um psicopata – e escreveu
isso. O fato de que, para fazer sua reportagem, McGinnis conviveu
intensamente com o médico e conquistou a sua confiança, serviu de
argumento para que a jornalista Janet Malcom escrevesse O jornalista e o
assassino – um livro que defende a sua tese de que todo jornalista carrega
consigo o gene da traição. Vale a pena reproduzir o primeiro parágrafo do
texto, um lide de altíssimo impacto.
Diz Malcom: “Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou
cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é
moralmente indefensável. Ele é uma espécie de confidente, que se nutre da
vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas. Tal como a viúva
confiante, que acorda um belo dia e descobre que aquele rapaz encantador
e todas as suas economias sumiram, o indivíduo que consente em ser tema
de um escrito não ficcional aprende – quando o artigo ou livro aparecem –
a sua própria dura lição. Os jornalistas justificam a própria traição de várias
maneiras, de acordo com o temperamento de cada um. Os mais pomposos
falam de liberdade de expressão e do ‘direito do público a saber’; os menos
talentosos falam sobre a arte; os mais decentes murmuram algo sobre
ganhar a vida”.
A críticas como a de Malcom, McDonalds respondeu com o argumento
de que havia preferido romper o combinado com a fonte do que ir contra a
sua consciência.
A PERGUNTA “DELICADA”: COMO FAZÊ-LA?
Não só acredito que não exista pergunta “delicada” demais para ser feita
como tenho certeza de que, muitas vezes, é um alívio para o entrevistado
respondê-las.
Um exemplo que exige uma breve contextualização histórica: Em 1991,
Pedro Collor de Mello, irmão do então presidente da República, Fernando
Collor de Mello, começa a fazer uma série de denúncias contra o
empresário Paulo César Farias, que o estaria prejudicando em seus
negócios. As denúncias acabam envolvendo também o presidente, de quem
PC Farias havia sido tesoureiro na campanha eleitoral. Familiares de Pedro
Collor o pressionam para que pare de falar. Como ele se recusa a obedecer,
sua mãe, Leda Collor, destitui-o do comando das empresas da família e
declara que o filho está “psicologicamente perturbado”. Pedro Collor, no
lugar de recuar, ataca mais forte, concedendo uma entrevista histórica à
revista Veja. A primeira pergunta feita pelos jornalistas Luís Costa Pinto e
Eduardo Oinegue ao irmão do presidente foi: “Senhor Pedro Collor, o
senhor é louco?”. Pedro Collor respondeu que não, de jeito nenhum. Os
jornalistas prosseguiram, perguntando se ele já havia passado por
tratamentos psiquiátricos – o que o irmão do ex-presidente novamente
negou. A partir daí, teve início a conversa que, publicada no dia 27 de
maio de 1992, viria a ser o pontapé inicial de um processo que terminou
quatro meses depois com o afastamento de Collor da presidência da
República. Pedro Collor afirmou, entre outras coisas, que Fernando Collor
tinha no empresário PC Farias seu testa de ferro e que PC, operador de
uma extensa rede de corrupção e tráfico de influência no governo, dizia,
para quem quisesse ouvir, que o lucro das operações era repartido com o
presidente.
Uso esse exemplo porque ele mostra duas coisas: 1) que certas
perguntas, por mais difíceis que sejam, têm de ser feitas, como era o caso da
pergunta dos jornalistas sobre a sanidade mental do entrevistado, que
acusava de desonestidade o irmão, presidente da República, e que havia
sido acusado pela própria mãe de estar “psicologicamente perturbado”; 2)
que quando uma pergunta “delicada” é feita da maneira certa e num
contexto que a justifique, não ofende o entrevistado. Por “maneira certa”,
entenda-se: respeitosamente e com genuína curiosidade. Essa mesma
pergunta – “o senhor é louco?” – poderia ser altamente ofensiva se, ao fazê-
la, os repórteres dessem a impressão de que já sabiam a resposta – e que a
questão, portanto, não passava de provocação. O que diferencia as duas
situações, muitas vezes, é o tom que o repórter empresta à sua inquirição e
a maneira como, ao fazê-la, ele se dirige ao entrevistado.
→ Abordagem 1: “Senhor Pedro Collor, o senhor é louco?” (falando
baixo e olhando enviesado)
→ Abordagem 2: “Senhor Pedro Collor, o senhor É louco?”
(sublinhando o verbo e olhando firmemente no olhos dele)
A segunda abordagem diminui as chances de o entrevistado interpretar
a pergunta como uma provocação.
Há ainda uma outra tática tão difundida quanto eficiente para fazer
perguntas difíceis: atribuir a terceiros a acusação ou afirmação desagradável.
Exemplos:
→ “Seus adversários dizem que o senhor comanda um dos governos
mais corruptos da história do estado X. Como o senhor responde a
isso?”
Ou
→ “O que o senhor diria aos que afirmam que o senhor é
autoritário e arrogante?”
Dessa maneira, o repórter consegue fazer uma pergunta difícil e o
entrevistado, no lugar de se sentir ultrajado, pode ficar satisfeito com a
oportunidade de contradizer seus inimigos.
A pergunta delicada, lembra Sérgio Dávila, deve ser feita ao final da
entrevista e nunca no começo. “Se você está entrevistando o Gabriel Garcia
Márquez e as cinco primeiras perguntas são sobre o apoio dele à ditadura
de Fidel, é provável que a conversa dure quinze minutos. Mas se as cinco
primeiras perguntas forem sobre a obra literária dele e as cinco últimas
sobre Fidel, aí é provável que você consiga uma hora e ele fale tudo o que
você quer.”.
Um dos maiores erros que um entrevistador pode cometer é resignar-se
à ideia de que um determinado assunto é proibido – ou porque a assessoria
do entrevistado assim disse ou, pior, porque “todo mundo sabe que Fulano
não fala sobre isso”. As pessoas mudam de ideia e, com um pouco de sorte
ou persistência do repórter, podem resolver fazê-lo justamente no meio
daquela entrevista. Foi o que aconteceu com a rainha Silvia, da Suécia. Fui
incumbida de entrevistá-la em 2000 pelo então diretor da Veja, Tales
Alvarenga, que morreu em 2005. Na época, a rainha havia começado um
projeto que tinha por objetivo dar assistência a crianças e adolescentes
vítimas de abuso sexual e estava interessada em divulgá-lo no Brasil. Tales
deixou claro que estava menos interessado numa matéria a respeito do
projeto da rainha do que numa entrevista que mostrasse o “lado humano”
da soberana. Pouco antes de eu embarcar para a Suécia, ele me fez diversas
recomendações nesse sentido, entre elas a de que eu não deixasse de
perguntar sobre a anorexia da princesa Vitória, a filha mais velha da rainha.
Ao chegar ao Palácio Real, em Estocolmo, fui recebida por uma
assessora da rainha que me deu duas péssimas notícias. A primeira era de
que a entrevista, que seria de duas horas, havia tido seu tempo reduzido
para quarenta minutos. A segunda era de que eu poderia tratar de todos os
assuntos com a soberana – à exceção da doença da sua filha, a princesa
Vitória.
Por sorte, a rainha Silvia é uma das pessoas mais gentis e elegantes com
quem já estive. Talvez por ter notado a minha tensão, começou pedindo
que eu dispensasse o tratamento “Sua Majestade” (que me havia sido
fortemente recomendado pelo consulado no Brasil) e disse que, se eu não
me incomodasse, gostaria de falar em português, porque estava com
“saudade” da língua (ela nasceu na Alemanha, mas sua mãe era brasileira).
A entrevista foi seguindo maravilhosamente bem, mas, na minha cabeça,
martelavam duas imagens: a dos ponteiros do relógio avisando que meu
tempo estava se esgotando e a do Tales dizendo que eu não deixasse de falar
sobre a princesa Vitória. Quando já havia gasto metade do meu tempo
regulamentar, resolvi arriscar. No meio de uma conversa sobre o quanto a
afligia a perseguição da imprensa a ela e sua família, perguntei se esse tipo
de comportamento a tinha incomodado especialmente no que dizia
respeito à doença da princesa. A rainha hesitou por um instante e eu pude
sentir o olhar de sua assessora me fuzilando. Antes que ela respondesse,
completei dizendo que perguntava aquilo porque sabia que, diferentemente
de tantos pais cujas filhas padecem do mesmo mal, a rainha havia
surpreendido a todos pela coragem de falar abertamente sobre o assunto
(coisa que ela nunca havia feito).
Para minha felicidade, Sua Majestade não só não me colocou para fora
como falou longamente sobre o assunto, incluindo seu sentimento de culpa
pela doença da filha e o fato de a doença ter afetado sua relação com ela. A
entrevista foi um sucesso e teve grande repercussão, inclusive na Suécia.
“O time está muito motivado. Sabemos que o adversário é difícil, mas, se
Deus quiser, nós vamos chegar lá.”
(Qualquer jogador de futebol, respondendo a qualquer pergunta sobre
qualquer partida).
O LUGAR-COMUM: FORMAS DE EVITÁ-LO
Quem não quer ouvir um lugar-comum como resposta, deve, antes de
tudo, evitar usar um lugar-comum como pergunta. Como lembra Eduardo
Logullo: “Algumas pessoas, principalmente as que estão acostumadas a dar
muitas entrevistas, algumas vezes se colocam diante do repórter com o
script pronto. Mas esse script só vale para responder àquelas perguntas que
elas já estão cansadas de ouvir. Quando as questões são originais, as
respostas também tendem a ser.” Agora, se mesmo diante de uma pergunta
sensacional, o entrevistado vier com uma resposta medíocre, a única coisa a
fazer é: tentar de novo. Peça mais: “como assim?”, “pode me dar um
exemplo?”, “pode explicar isso melhor?” Repórteres, sobretudo os
iniciantes, tendem a se contentar com a primeira resposta – ainda que ela
seja vaga, vazia ou pouco clara. Fazem isso quase nunca por preguiça, mas
por timidez. E esse é outro motivo pelo qual um bom entrevistador tem de
matar seu ego. Quem não tem ego, não tem timidez. E, dessa maneira,
pode dar vazão à sua curiosidade, até que ela se esgote. Pode também ser
insistente e um pouco chato.
DEPOIS
Entrevista feita, hora de colocar as palavras na tela. Escolher o que
destacar e o que jogar fora, organizar o texto e penteá-lo: isso é editar.
Ainda: como lidar com os pedidos do entrevistado.
A EDIÇÃO
Uma das perguntas que ouço com muita frequência de estudantes diz
respeito à edição de uma entrevista: até que ponto se pode mudar a fala do
entrevistado? Até onde é permitido resumi-la? Deslocá-la do lugar original?
Se essas perguntas não partissem de estudantes – pessoas que,
presumivelmente, ainda não viveram a situação na prática –, eu diria que
seriam questões hipócritas. Porque a resposta para elas é muito clara e todo
mundo que já editou uma entrevista sabe disso. Podemos fazer quase tudo
– incluindo mudar a ordem das perguntas, cortar palavras e frases
redundantes, emendar pensamentos correlatos que tenham ficado dispersos
e eliminar falas prolixas – desde que isso não altere o que o entrevistado
quis dizer. Pelo simples motivo de que a linguagem oral – desorganizada,
prolixa, redundante e descontínua – é completamente diferente da
linguagem escrita. Tirando o jornalista Otavio Frias Filho, portanto – a
única pessoa que já fala “editado”, segundo afirma quem já o entrevistou –,
todo mundo precisa de uma “penteada” no texto.
Degravar, organizar, “pentear”
Depois de muito entrevistar, concluí que, quanto mais articulado e
inteligente é o entrevistado, menos tempo gastamos com ele. Se, pelo
contrário, o personagem é difícil – tem um raciocínio difuso, dificuldade
em organizar o pensamento e ideias inconsistentes ou é prolixo e confuso –,
o mais provável é que voltemos à redação com um pilha de fitas cassete
para degravar. Para fazer uma entrevista na seção Páginas Amarelas da
revista Veja, um pingue-pongue de três páginas, costumo gravar uma média
de duas fitas (o que dá, mais ou menos, duas horas de entrevista).
Prefiro degravá-las eu mesma porque, dessa forma, já vou fazendo uma
pré-edição – eliminando trechos dispensáveis, resumindo uma resposta,
corrigindo uma frase. O tempo que esse trabalho toma, novamente,
depende do entrevistado. Se ele é articulado, encadeia de forma organizada
o seu raciocínio e fala em uma velocidade normal, o trabalho pode ir bem
rápido. Entrevistados que falam em rotação 78 ou devagar demais são um
pesadelo para degravar. Gosto muito do senador Eduardo Suplicy, um dos
políticos de mais boa-vontade que eu já conheci, mas entrevistá-lo é uma
tarefa penosa. Conversei com ele para as Páginas Amarelas de Veja em 2000
e sua franqueza impressionante ajudou a produzir uma matéria muito boa.
Mas a entrevista levou quase cinco horas, divididas em dois encontros, e,
no momento de tirar a fita, quase não precisei tocar na tecla “stop” – liguei
o “play” e fui digitando direto, com toda a calma do mundo. Nunca havia
tido essa experiência antes.
Voltando ao meu método de edição: fitas tiradas, imprimo o texto e
procuro identificar nele alguns “blocos”, conjunto de trechos que se
referem a um mesmo assunto. Nem sempre esses trechos estão juntos, já
que é comum as pessoas começarem a desenvolver um tema, passar para
outro e voltar ao anterior tempos depois. Meu primeiro trabalho é
organizar o texto de forma que os trechos que tenham afinidade entre si
fiquem próximos um do outro. Organizados os blocos, defino qual deles é
mais interessante para abrir a entrevista, qual é melhor para fechá-la e como
os demais serão encadeados. Começo, então, a trabalhar no texto de forma
a torná-lo mais claro, mais sucinto e mais objetivo.
Perguntas frequentemente feitas por estudantes:
1. Esqueci de perguntar algo importante ou meu chefe
sentiu falta de uma determinada questão que eu não fiz.
O que fazer?
Voltar ao entrevistado sem nenhum constrangimento. Esquecer de fazer
uma pergunta não é crime inafiançável nem denigre um repórter pelo resto
da vida, pelo contrário: é natural, frequente e faz parte do jogo. Além disso,
muitas vezes, apenas no momento da edição é que o repórter percebe que, a
partir de uma determinada resposta, poderia fazer outra que melhoraria
muito a entrevista. Apenas recomendo que se faça uma lista com todas as
dúvidas (suas e da sua chefia) e questões que ficaram faltando para
apresentá-las de uma só vez ao entrevistado – de preferência, por telefone, o
que economiza o tempo dele e do repórter, que, a essa altura, já deve estar
em fechamento. Se o entrevistado for a Rainha da Inglaterra ou alguém
menos disponível ainda, a coisa pode complicar um pouco, mas não custa
tentar. Mandar perguntas por e-mail para o assessor de imprensa do
entrevistado e contentar-se com respostas igualmente por e-mail ou
transmitidas oralmente pelo assessor pode ser uma saída.
2. Meu chefe mudou um trecho da entrevista e eu
discordo da mudança. O que fazer?
Repórteres são seres suscetíveis e jovens repórteres, mais ainda.
Evidentemente, há chefes ruins, que em vez de melhorar o produto do
trabalho do jornalista, pioram. Ocorre que, em geral (acreditem, crianças),
acontece o contrário: os editores, por serem mais experientes, costumam
mudar o texto para melhor. Portanto, antes de tomar qualquer atitude
drástica, sugiro que se examine desapaixonadamente a alteração e que se
pergunte se, de fato, ela piorou o trabalho ou – mais grave que isso –
distorceu-o. Se a resposta continuar sendo sim, é obrigação do repórter
procurar sua chefia e apontar o problema. Afinal, quem assina o texto é ele.
O ENTREVISTADO E SEUS PEDIDOS IMPOSSÍVEIS
“Posso ler a entrevista antes de você publicar?”
O mais comum dos pedidos (na maioria das redações pelo menos – na
de Caras, diz uma amiga, a mais frequente é: “Você pode diminuir a minha
idade? Não sei se é verdade...”), para o qual a resposta obrigatória é “não”.
Primeiro porque a prática fere a, digamos assim, soberania do jornalista e a
do veículo para o qual ele trabalha. Depois, porque, imagine se toda
entrevista publicada em uma revista ou jornal tivesse de ser submetida
previamente à aprovação de quem a concedeu? Inviável. Como a maioria
dos manuais de redação brasileiros não faz referência a essa situação, a
decisão de mostrar ou não a matéria ao entrevistado acaba ficando a cargo
do jornalista. Sou absolutamente contra a prática. Mas há uma situação em
que a considero tolerável e outra, recomendável. A tolerável: quando fica
acordado entre o repórter e o entrevistado que o segundo poderá ler o
material não publicado desde que, feito isso, solicite mudanças apenas no
caso de detectar erros factuais no texto. A recomendável: quando se trata de
entrevista sobre assunto demasiado técnico ou que o repórter não domine.
Nesse caso, a disposição do entrevistado de checar termos e colocações
pode ser valiosa.
“Essa frase pode ser em off?”
Feito durante ou depois da entrevista, o pedido tem duas interpretações
possíveis – e é preciso checar a qual delas o entrevistado se refere.
Literalmente, a expressão “off the records” significa “fora da gravação”. Ou
seja, indicaria uma informação que não deve ser publicada. Na prática, no
entanto, a expressão costuma ser usada para classificar informações cuja
fonte pede para ser mantida no anonimato. Tomemos como exemplo uma
entrevista com o ministro do planejamento, em que o tema seja o novo
pacote de medidas lançado pelo governo para acelerar o crescimento do
país. Em dado momento, o ministro revela que determinada medida
incluía a liberação de uma verba muito maior, mas que o dinheiro foi
cortado pela metade em função da pressão feita pelo ministro da economia.
Pede que essa informação fique “em off”. Ou seja, ela pode ser publicada,
mas deve ser assumida pelo repórter, sem que este revele a sua origem. E o
jornalista pode fazer isso em duas situações: se conseguir cruzar a
informação e checar sua veracidade ou se confiar cegamente na fonte.
Ultimamente, o off vem sendo usado com muita frequência sem que
nenhum desses requisitos seja atendido – um prato cheio para fontes
manipuladoras e oportunistas.
“Dá para tirar aquela parte?”
É o tipo de pedido que indica que o repórter fez uma boa entrevista. O
entrevistado disse algo que não planejou dizer, fez uma inconfidência ou
pensou melhor e acha que determinada declaração pode ter consequências
graves ou ser ruim para ele. Na maioria das vezes, a parte que o
entrevistado pede para tirar é a melhor da matéria, ao menos do ponto de
vista jornalístico. E aí reside o problema. Pessoalmente, compartilho,
resignada, da orientação do Manual de Redação do jornal O Globo, que diz
que o entrevistado é dono da entrevista até o momento em que ela for
publicada e, nessa condição, tem o direito de retificar o que disse. E nós, o
dever de acatar suas marcha-rés. Mas, entre receber o pedido e ceder a ele,
existe um vasto espaço para negociação. Cabe ao bom repórter usar de sua
capacidade argumentativa para convencer o entrevistado das vantagens de
manter a declaração ou informação.
OUTRAS MÍDIAS
Câmeras, luzes e um entrevistado diante de você. Para piorar, a transmissão
é ao vivo. E se der branco? E se o entrevistado for ruim? E se ele estourar o
tempo da matéria? Entrevistas para TV e para rádio são muito parecidas entre si.
Mas bem diferentes das que fazemos para jornais e revistas.
ENTREVISTA PARA A TV
Carlos Tramontina já foi repórter, editor-chefe e apresentador de diversos
programas e telejornais. Com a experiência de quase trinta anos de televisão,
ele escreveu um livro em que relata episódios da carreira e dá dicas sobre o que
fazer e o que não fazer quando se está diante de uma câmera e com o
microfone na mão.
Tramontina já entrevistou todo tipo de gente. Para ele, o pior entrevistado
é aquele que “não traz informação, não tem o que dizer e está interessado
apenas em fazer propaganda de si ou da sua turma. Em geral, esse sujeito é o
político.”. Diz o jornalista: “O político, muitas vezes, está mais interessado em
falar o nome do governador que é o líder do partido dele ou o do prefeito que
o colocou no cargo do que propriamente em esclarecer uma questão ou prestar
uma informação. Eles gostam muito de usar entrevistas de TV para se
autopromover. É preciso tomar cuidado com isso.”.
Para evitar situações constrangedoras no ar, Tramontina procura deixar as
regras claras antes de começar a entrevista: “Digo, por exemplo: ‘eu já vou
apresentá-lo como secretário de Estado, então, eu pediria que o senhor não
ficasse repetindo o nome da sua pasta ou o do governador’”. Se na opinião do
jornalista, políticos, de forma geral, compõem a categoria mais complicada de
se entrevistar, individualmente, o ex-ministro Delfim Netto é, para ele, o
entrevistado mais difícil: “O Delfim é um homem inteligente, competente na
sua área e, além de tudo, um bom frasista, o que faz dele um entrevistado
qualificado. O problema é que ele usa da estratégia de invariavelmente embasar
seus argumentos recitando uma torrente de números. Isso faz com que só um
jornalista da área econômica e com muito conhecimento e memória possa
contraditá-lo ou argumentar com ele. As minhas piores entrevistas foram com
o Delfim Netto. Eu sempre saí delas com a sensação de que havia sido
incompetente e enganado. Incompetente por não ter conhecimento suficiente
para encarar uma discussão no nível que ele propunha e enganado porque,
diante desse desconhecimento, eu nunca podia ter certeza de que ele estava
absolutamente certo no que dizia.”
A seguir, as dicas do jornalista para:
→ Evitar o “branco”
O temível “branco”, aquela súbita catatonia que costuma acometer mesmo
os mais experientes repórteres no meio de uma entrevista, é, para Tramontina,
evitável. “Ele só ocorre quando o entrevistador está mal preparado”, diz.
“Pesquisar previamente a respeito do entrevistado e do assunto que será tratado
não só é a forma mais eficaz de evitar aquele buraco que fica no ar e que, ainda
que dure cinco segundos, parece um precipício, como é também a única
maneira de ter informações para contradizê-lo e argumentar com ele.” Ou seja,
é a única maneira de fazer uma boa entrevista.
→ Não ser “enrolado”
Faça perguntas simples. Tente ser o mais objetivo, claro e conciso possível.
“Eu não enfeito, não faço pronunciamentos anteriores e não dou opiniões
pessoais na formulação das questões. Esse método estimula o entrevistado a
fazer o mesmo: ser objetivo, conciso e ir diretamente ao ponto na resposta.”
Perguntas pouco claras, confusas ou longas demais, diz o jornalista, “dão
chances para que o entrevistado seja também pouco claro ou fuja da questão
principal”.
→ Fazer perguntas incômodas
Se a pergunta estiver bem formulada e não contiver nenhum desrespeito,
não há por que deixar de fazê-la. Não há sensação pior do que se despedir do
entrevistado com uma pergunta engasgada na garganta. O repórter Caco
Barcellos é, na opinião do jornalista, o que melhor consegue fazer esse tipo de
questão. “Suas perguntas são objetivas, respeitosas e corajosas ao mesmo
tempo.”
→ Colaborar para a edição
“Se tem uma situação que é um desastre em TV é aquela em que vinte
jornalistas ficam de pé com o microfone na boca do entrevistado. Todo mundo
faz perguntas ao mesmo tempo e o sujeito, diante dessa situação, escolhe a
pergunta que quer responder. Como é interrompido a toda hora, as respostas
ficam todas picadas. O resultado é que o editor não consegue extrair uma frase
com começo, meio e fim e, por causa disso, algumas vezes, o material todo
acaba indo para o lixo.” O que fazer, então, numa situação como essa? “O ideal
é que o repórter espere e, no final faça uma entrevista sozinho. Ou, se isso for
impossível, ele tem de segurar a ansiedade e, quando parte considerável do
pessoal já tiver se afastado, dizer ao entrevistado que gostaria de perguntar
algumas coisas que não ficaram claras: ‘Tal coisa vai ser assim ou assado?’,
‘Quando o senhor disse tal coisa, o senhor se referia a isso ou aquilo?’. Isso
exige do repórter clareza para perceber as questões que não foram respondidas e
um bom autocontrole para que não se deixe levar pela ansiedade e pela
confusão da situação.”.
→ Não estourar o tempo da entrevista
Não tenha receio de interromper o entrevistado, diz Tramontina. Na TV, o
tempo determina a forma de fazer as perguntas, a abrangência das questões e o
ritmo da conversa. “Se for uma entrevista de um minuto e meio é uma coisa,
de três minutos é outra e de cinco é outra completamente diferente. Quanto
menor for o tempo de que o repórter dispõe, mais objetivo ele tem que ser nas
perguntas e mais rigoroso ele precisa ser para com o entrevistado. “Digo:
‘Desculpe, o senhor está desviando o foco da nossa questão. Estamos tratando
do assunto X e eu gostaria que o senhor voltasse a ele’.” Ou, então: “desculpe,
nosso tempo é curto e eu gostaria que o senhor fosse mais objetivo”.
Tramontina refere-se aqui a entrevistas feitas para um telejornal, por
repórteres que estão na rua ou apresentadores que estão no estúdio. Nessas
situações, uma entrevista, quando muito longa, dura cinco ou seis minutos (o
mais comum é que não passe de um). É diferente do que ocorre em um
programa especializado em entrevistas, como o de Jô Soares, na Globo, ou o de
Larry King, na CNN. Acho incrível como eles conseguem fazer o que fazem. Se
um dos requisitos para a boa entrevista é um certo clima intimista, que ajuda a
ganhar a confiança do entrevistado e dá a impressão de que a entrevista não
passa de uma conversa entre quatro paredes, o que dizer de um diálogo em que
os protagonistas estão sob a mira de uma câmera, cegados por holofotes,
instalados num pouquíssimo aconchegante ambiente de estúdio e observados
por cinegrafistas, iluminadores, operadores de som e diretor de estúdio –
quando não por milhões de pessoas, no caso de programas ao vivo?
Surpreendentemente, algumas pessoas conseguem obter ótimos resultados
nessas condições. Edney Silvestre é um exemplo. Desde 2002 apresentando o
quadro Espaço Aberto, da GloboNews, ele já entrevistou dezenas de escritores,
artistas e intelectuais. O jornalista, que também já foi correspondente em Nova
York do jornal O Globo, concorda que uma entrevista para a mídia impressa é
algo bem mais confortável de se fazer do que uma entrevista para TV. Mas ele
considera que muitas das imposições que a televisão coloca para o entrevistador
podem ser neutralizadas, ou suavizadas, se o jornalista cumprir as tarefas que
uma entrevista para qualquer mídia requer, como fazer uma boa pesquisa a
respeito do seu personagem. “Conhecer profundamente o entrevistado e a sua
obra é o melhor jeito de aproximar-se dele”, diz. Alguns truques também
ajudam. Edney tenta sentar-se sempre o mais próximo possível do entrevistado
e manter as câmeras o mais longe deles que puder. Jamais conversa de pé (“Não
há qualquer naturalidade possível nessa posição”) e procura não interromper o
seu interlocutor. “Detesto o entrevistador que fala mais que o entrevistado e o
corta a todo momento. Primeiro, porque é impossível editar vozes sobrepostas.
Depois, porque você tem de ter interesse em ouvir, não em falar. Considero
muito irritante o entrevistador ou apresentador que quer expor o que é ou o
que pensa e usa o entrevistado como escada.”
E quando, em vez de falar demais, o jornalista fala “de menos” – quer dizer,
quando um “branco”, seu ou do entrevistado, instala aquele terrível silêncio no
ar? O que fazer nessa hora? Pois Edney aprendeu que certos silêncios podem ser
mais reveladores do que uma resposta. Durante uma entrevista que fez para o
programa Milênio, também da GloboNews, em 1997, com a atriz Liv
Ullmann, Edney, a certa altura, perguntou-lhe como ela se via como mãe. A
atriz responde que é uma pergunta difícil. Em seguida, se cala e fica um longo
tempo em silêncio – silêncio que Edney não tenta preencher. A partir daí, a
atriz começa a falar de forma emocionada – e sempre entrecortada por longas
pausas – da relação conflituosa que tem com a filha Linn, fruto de seu
casamento com o diretor Ingmar Bergman. Linn, hoje uma escritora bem-
sucedida, na juventude tentou, sem sucesso, ser cantora de ópera e atriz. Da
segunda carreira, desistiu depois que sua professora de teatro lhe disse que ela
era uma péssima atriz. “No que minha mãe concordou”, contou Linn em uma
entrevista. Liv Ullman, na conversa com Edney Silvestre, deixou claro que a
relação com a filha não estava resolvida e que sofria com isso. Nada disso teria
vindo à tona se o jornalista não tivesse se mantido impávido diante do primeiro
silêncio da atriz.
ENTREVISTA PARA RÁDIO
Nunca fiz uma entrevista para rádio, mas a minha opinião é de que se trata
de uma coisa dificílima. Primeiro, porque as características do veículo não
permitem que se escolha um entrevistado com base nos critérios utilizados no
jornalismo impresso e mesmo na TV. “O sujeito pode ser uma sumidade em
determinado assunto, mas, se falar mal, não serve”, explica Milton Jung, âncora
do programa CBN São Paulo, da rádio CBN, e autor do livro Jornalismo de rádio.
Ou seja: em rádio, não é só o repórter que precisa saber falar com clareza e
objetividade – o entrevistado também precisa. E isso reduz drasticamente a lista
de opções do jornalista. No dia em que entrevistei Milton Jung para este livro,
o ex-prefeito de Bogotá, Antanas Mockus, estava em São Paulo. Viera para uma
série de palestras cujo tema era o bem-sucedido projeto que ele havia
implantado na capital colombiana entre 2001 e 2003 e que resultou numa
significativa redução dos índices de violência na cidade. Como o programa que
o jornalista apresenta na Rádio CBN trata fundamentalmente de assuntos
relacionados à capital, uma entrevista com Mockus teria tudo para ser
proveitosa – “caso ele falasse português”, comentou um frustrado Jung. Se, na
TV, existe o recurso óbvio da legenda, em rádio, isso não funciona. Assim como
não funciona a alternativa da tradução: cansa o ouvinte e, se for simultânea
então, transforma a conversa numa confusão só.
Mas esse tipo de limitação que o veículo impõe não é nada diante do fato,
este sim, na minha opinião, assustador, de que a quase totalidade das
entrevistas em rádio é feita ao vivo. Na TV, mais de 90% delas sofrem edição.
Isso muda muita coisa? Muda tudo. A preocupação com o didatismo, por
exemplo, tem de ser elevada à máxima potência. Digamos que o entrevistado
seja um economista falando sobre juros. Se, em determinado momento, ele
menciona termos como o spread bancário, cabe ao repórter perguntar o que
significa aquilo ou, ao menos, emendar um comentário explicativo (“O senhor
está se referindo à diferença entre as taxas de juro que o banco paga e a que
cobra quando empresta o dinheiro, não é?”). Em uma entrevista ao vivo, não
dá para acrescentar informações entre parênteses, como se faz na hora de editar
um texto.
Outra situação que, numa entrevista para a mídia impressa é facilmente
contornável, mas que numa entrevista ao vivo pode assumir proporções de
desastre é aquela em que, por descuido do repórter ou da produção, o
entrevistado revela-se um grande equívoco: deixa claro que não tem domínio
do que está falando. Numa entrevista gravada ou feita para jornal, o repórter
simplesmente despreza a entrevista e vai atrás de outra fonte. Numa
transmissão ao vivo, o erro da escolha fica evidente e não há nada o que se
possa fazer para salvar a situação, a não ser abreviar o mais rapidamente possível
a conversa. Pior do que entrevistar gente mal preparada, lembra Milton Jung, é
falar com um entrevistado que não é o entrevistado, como aconteceu com um
colega do radialista que entrevistou um homônimo do goleiro Waldir Peres
achando que falava com o próprio – e foi corrigido no ar pelo interlocutor,
que, consternado, ainda explicou que atendeu ao telefonema da rádio achando
que se tratava de uma promoção.
Aqui, dicas de Jung e de Heródoto Barbeiro, gerente de jornalismo da
Rádio CBN, para uma boa entrevista de rádio:
→ Não ficar repetindo “hãhã”, “mmm” ou “ahh”, enquanto o
entrevistado fala. Esses sons, que Jung chama de “mugidos”, podem
funcionar como um estímulo para o entrevistado em conversas
destinadas a publicação em jornais ou revistas. No rádio (e também na
TV)servem apenas para “sujar” a transmissão e irritar o ouvinte.
→ Antes de começar a entrevista, checar o nome do entrevistado e a
forma correta de pronunciá-lo. O cuidado evita o constrangimento de
começar uma entrevista sendo corrigido pelo entrevistado. “E é uma
questão de respeito para com as pessoas”, diz Heródoto Barbeiro – que
já foi chamado de “Herodes”, “Herodato”, “Herodouto” e, ele jura, até
de “Aeródromo Carneiro”. “Essa veio de um repórter do interior da
Bahia com quem eu falava no ar sobre a queda de um avião.”
→ Depois de checar nome e cargo do entrevistado, anotar as
informações em um papel, ou qualquer lugar visível, ainda que esse
lugar seja a palma da mão. “Em rádio, pesquisas indicam que o público
muda a cada quinze minutos. É por isso que, em entrevistas mais
longas, identificamos várias vezes quem está sendo ouvido, na
apresentação, no meio da conversa, no fim da entrevista. Para que não
haja problemas, melhor não confiar na memória”, diz Milton Jung.
→ Nunca deixar de informar-se antes sobre a pessoa que será
entrevistada e o assunto que será tratado. “Correria da rádio não é
desculpa para fazer uma entrevista ruim”, diz Heródoto.
→ Não colocar o entrevistado no ar sem avisá-lo antes. Tão antiético
quanto gravá-lo sem avisar.
→ Encerrar a entrevista imediatamente se perceber que o entrevistado
não domina o assunto para o qual foi convidado a falar. “Ainda que a
entrevista esteja programada para durar dez minutos, se não rendeu, eu
agradeço a participação da pessoa e encerro. A entrevista tem de ser do
tamanho da notícia. Se não tem notícia, acabou a entrevista”, diz
Heródoto.
→ Não fazer perguntas que já contenham a resposta: “Depois da vitória
de hoje, você acha que o time estará mais motivado para o jogo de
domingo?”, gostam de dizer alguns repórteres esportivos. “Depois
reclamam que jogador de futebol não sabe dar entrevista”, diz Jung.
→ Jamais fazer perguntas que comecem com “O que o senhor acha de
tal coisa...” ou “como o senhor vê isso...” Se, para entrevistas de jornal
ou revista elas já são perda de tempo, imagine em rádio, onde cada
segundo é precioso. “Questões assim fazem com que o entrevistado leve
o repórter a nocaute: ele responde qualquer coisa. Em rádio, é preciso
ter o máximo de objetividade, não se pode permitir enrolação”, diz
Heródoto, para quem um bom entrevistador é aquele que “tira do
entrevistado o que ele não quer dizer e impede que ele responda o que
não lhe foi perguntado”.
ENTREVISTADOS DIFÍCEIS, COMO LIDAR
O HOSTIL
Um entrevistado hostiliza um repórter, normalmente, quando:
1) está passando por um problema que nada tem a ver com a entrevista
ou 2) acredita ter algum motivo para se ressentir do jornalista ou de algum
outro que o precedeu, do veículo para o qual ele trabalha ou da imprensa
em geral. Para os dois casos, o jornalista e professor Ken Metzler, que
estudou por quase duas décadas as relações entre repórteres e suas fontes,
recomenda a transparência. “Simplesmente perguntar ao entrevistado se ele
está com algum problema pode desarmá-lo e fazer com que a entrevista
retome o seu curso normal”. Quando o problema é um trauma com a
mídia, Metzler recomenda lembrar o entrevistado algo óbvio: o fato de que,
assim como ele não é culpado pelos males de sua profissão, também o
repórter não pode ser responsabilizado pelos erros que a imprensa comete.
Indispor-se com o entrevistado hostil é tática absolutamente não
recomendável. Pelo menos é o que dizem todos os manuais de jornalismo e
era também o que eu costumava dizer nas minhas palestras sobre técnicas
de entrevista: “Não é papel do repórter polemizar com o entrevistado,
buscar a empatia é sempre mais eficiente do que procurar o confronto etc.”.
Não chego ao ponto de recomendar o contrário hoje, mas passei a acreditar
que, em situações MUITO peculiares, uma certa tensão pode ser bem-vinda,
e pode, inclusive, melhorar a entrevista.
Essa mudança aconteceu depois que eu entrevistei Adriane Galisteu,
dias depois da sua separação do publicitário Roberto Justus, com quem a
apresentadora ficou casada oito meses. Adriane, ela mesmo diz isso, foi
bastante julgada e criticada no início da sua vida pública – que coincidiu
com a morte do piloto Ayrton Senna, seu então namorado e ídolo
nacional. “Adriane Galisteu, a oportunista. Essa palavra, oportunista, virou
meu sobrenome. Você não sabe o que é o Brasil inteiro brigando com você.
Parecia que eu tinha matado o Ayrton.”. Essa frase, dita durante a
entrevista, para mim explica a postura defensiva que ela adotou durante a
nossa conversa. Talvez tenha achado que eu também a estava julgando.
Além disso, por causa da separação, a apresentadora estava
compreensivelmente mais sensível. O resultado de tudo isso foi que ela me
recebeu com os dois pés atrás e algumas pedras na mão. A entrevista seguiu
fria por algum tempo. Ela, fumando um cigarro atrás do outro, não se
soltava. Eu, me esforçando para deixá-la à vontade, fracassava a cada
tentativa. Assim, a uma certa altura, desisti de tentar contemporizar.
Comecei a provocá-la com perguntas bastante diretas, do tipo: “Você gosta
de dinheiro?”.
Continuo não sendo fã de Adriane Galisteu, mas uma coisa tem de ser
dita: ela não foge de uma briga. Como boa lutadora, portanto, virou a
entrevista naquele momento. Em tom desafiador, respondeu que adorava
dinheiro, sim, mas detestava hipocrisia. Que gostava de luxo, de viajar de
primeira classe e que, ao contrário de muitos artistas, não ficava fazendo
demagogia com isso. Que não tinha motorista nem segurança porque
estava cansada de ver suas intimidades reveladas na imprensa por seus
próprios amigos, que não confiava em ninguém a não ser na mãe e que, ao
contrário do que pensavam, ela não estava brincando de ser famosa:
pretendia ir muito mais longe e não se considerava nem no meio da escada
ainda. Duvido que eu teria conseguido esse resultado na base da
cordialidade.
Na categoria das “entrevistas-confronto” que deram certo está a que
Expedito Filho fez em 2002, juntamente com os repórteres Gerson
Camarotti e Ronald Freitas, com o então candidato à presidência da
República Ciro Gomes para a revista Época. Essa entrevista tem como
mérito principal o fato de escancarar o hoje notório destempero do ex-
ministro – característica que, na ocasião, apenas começava a se fazer notar.
Candidato pelo PPS, Ciro Gomes estava convicto de que a revista, como, de
resto, toda a imprensa, apoiava o tucano José Serra, seu principal adversário
na disputa pelo segundo turno com Lula e entrevistado recente da revista.
Assim, recebeu os repórteres com um ânimo bem pouco amigável. Alguns
trechos da conversa:
Época: Como o senhor está financiando a sua campanha?
Ciro: Não tem financiamento até o momento (...). Viajo em avião de
carreira. Até a convenção, essas viagens eram pagas por entidades que me
convidavam para palestras. Eu tenho a lista com todos os voos e
informando quem pagou. Essa pergunta não teve para o Serra.
Época: Teve, sim. Leia a entrevista.
Ciro: Eu li a entrevista. Não teve.
Época: Teve. É só pegar a revista. Se o senhor ficar nessa defesa toda, é
melhor não ter entrevista.
Ciro: É melhor. Também acho. Então vamos suspender a entrevista.
Vocês escrevem o que quiserem.
Breve discussão. A entrevista é retomada, para ser novamente
interrompida segundos depois, quando o repórter pergunta por que Ciro
resolvera colocar o irmão Lúcio como tesoureiro da campanha e obtém
como resposta um inacreditável “não é da sua conta”. Seguem-se críticas
mútuas – os repórteres acusam o candidato de “deselegante” e
“antidemocrático”, Ciro responde que não tem “medo de jornalista” e diz
que os repórteres estão a serviço do candidato Serra. Os lados finalmente se
acertam e a entrevista prossegue. A partir daí, no entanto, nenhuma
resposta dada por Ciro Gomes consegue desviar a atenção do leitor para
aquilo que virou o ponto fulcral da matéria: o comportamento
destemperado do entrevistado. “Ciro no ataque: o candidato do PPS fala
mal do governo, da elite, de José Serra e até dos jornalistas que o
entrevistam”, era o título da matéria. Fosse outro o entrevistado, os editores
talvez tivessem optado por valorizar o conteúdo da conversa, em vez de
chamar a atenção para o tom que a dominou. Intuíram, no entanto, que
aquele traço de Ciro Gomes, em particular, era “mais notícia” do que o que
ele eventualmente dissera. Acertaram, como seu viu. Um mês mais tarde,
Ciro Gomes, que havia chegado ao segundo lugar nas pesquisas de opinião,
daria a declaração que, segundo analistas, foi fundamental para que ele se
autoejetasse da disputa – aquela em que dizia que o papel de sua mulher, a
atriz Patrícia Pillar, na campanha, era dormir com ele.
“O fato de termos partido para cima do Ciro em resposta à sua atitude
melhorou a entrevista.”, afirma Expedito. “A maneira como o material foi
editado, na linha reality show, mostrando quem era o Ciro Gomes, também
funcionou. Agora, esse tipo de postura jornalística não pode ser uma regra.
Você tem de ter sensibilidade para administrar o conflito. E cuidar para que
o entrevistado não apareça como vítima.”.
O PROLIXO
O entrevistado prolixo pode ser prolixo motivado pela própria
incapacidade de ser objetivo ou pela incompetência do repórter em deixar
claro que está compreendendo perfeitamente o que ele diz. Isso porque o
entrevistado que sente que não está sendo compreendido tende a repetir
seus argumentos ou detalhá-los mais do que o necessário. Em quaisquer
dos dois casos, a solução é a mesma: aproveitar a pausa que ele terá de fazer
para respirar e pedir licença para resumir o que foi dito, a pretexto de se
certificar de que captou a mensagem. “Só para eu ter certeza de que
entendi: o senhor quis dizer que patati, patatá, certo? Ótimo, talvez agora
seja bom falarmos do assunto X, já que nosso tempo é curto.” Segue a
próxima pergunta.
O EVASIVO
Neste caso, existem duas situações diferentes.
A primeira é frequente em reportagens de natureza investigativa: o
entrevistado é evasivo porque detém informações que não pode ou não
quer contar. Aqui, cabe ao repórter insistir e usar dos meios disponíveis
para persuadi-lo a falar (leia o item “Criminosos, acusados e suspeitos”, na p.
76). A segunda costuma ser mais comum entre celebridades: o entrevistado
é evasivo porque não está com a mínima disposição de falar e foi forçado a
fazê-lo por sua assessoria. Ou topou falar espontaneamente, mas mudou de
ideia na hora porque está de mau humor. A entrevista de Marília Gabriela
com Madonna, em 1998, é o exemplo clássico dessa situação. Ao longo dos
cinco blocos em que a conversa foi ao ar, pelo SBT, o que se viu foi uma
Madonna lacônica, mal-humorada e evidentemente contrariada por estar
onde estava. Pessoalmente, acho bastante enfadonhas algumas das
perguntas que Marília Gabriela costuma fazer, do tipo “o que é a verdade
para você”, mas nenhuma delas justifica o desrespeito com que a cantora
tratou a jornalista – a ponto de, no último bloco, Marília Gabriela
implorar: “Por favor, não seja tão monossilábica” (ao que Madonna
respondeu com um nada sincero pedido de desculpas – para, logo em
seguida, continuar monossilábica).
Vivi situação parecida em 2000, quando entrevistei o jogador Ronaldo
pela primeira vez. Ele vinha de uma temporada ruim, estava sendo
hostilizado pela torcida e machucara seriamente o joelho. A vida pessoal,
em compensação, ia bem: o jogador havia acabado de se casar com Milene
Domingues e seu primeiro filho nasceria em poucos meses. A entrevista foi
na casa dele no Rio, na Barra da Tijuca. Estavam lá sua mãe, mulher, pai e
seu então assessor de imprensa, Rodrigo Paiva. Todos foram muito gentis,
Ronaldo inclusive. Mas, quando fiquei sozinha na varanda com ele e seu
assessor, o suplício começou. Qualquer que fosse a pergunta que eu fizesse,
a resposta não era diferente de “sim”, “não” e “não sei”. Quando muito,
Ronaldo me presenteava com um lugar-comum ou uma frase feita.
Pergunta: “Você teve o carro apedrejado na Itália, está sendo cobrado por
ter comprado uma Ferrari e por estar sem jogar. Sente-se pressionado?”.
Resposta: “Normal. Tenho fé em Deus que vou me recuperar. (Silêncio)”.
Pergunta: “Seu filho está para nascer. Em relação à maneira como você foi
criado, o que pretende mudar na educação dele?”. Resposta: “Vou criá-lo
como todo pai cria seu filho, com muito amor e carinho. (Silêncio)”. E
assim foi.
Ao final de uma hora, tive certeza de que sairia de lá sem a entrevista,
mas fiz questão de usar integralmente minhas duas horas para não ser
acusada depois de ter abandonado o barco e de ser responsável pelo fiasco
do encontro. Ao final desse tempo, me despedi educadamente do jogador
e, assim que ele atravessou a porta da varanda em direção ao interior da
casa, despejei toda a minha fúria sobre Rodrigo Paiva, o assessor. Disse a ele
que não teria perdido meu tempo viajando de São Paulo para o Rio se ele
tivesse me avisado que Ronaldo não estava nem um pouco disposto a dar
entrevistas – e isso estava evidente –, que não havia gostado de ter sido feita
de palhaça e que ele me ligasse quando Ronaldo aprendesse a lidar com a
imprensa. Paiva, hoje assessor da CBF, é, na unânime opinião de quem
cobre futebol, um profissional admirável. Nesse episódio, fez o que todo
assessor de imprensa deveria fazer em situação semelhante: ouviu os meus
impropérios e, assim que eu me fui, chamou Ronaldo para uma conversa,
cujo teor eu desconheço, mas que teve efeitos milagrosos sobre o jogador.
Quando cheguei de volta à redação, naquele mesmo dia, Paiva já havia
deixado um recado na minha secretária eletrônica. Dizia que Ronaldo
pedia desculpas pela não entrevista e que estava à disposição para me
encontrar novamente na data em que eu quisesse. Disse ainda que, dessa
vez, a conversa seria diferente. Ela aconteceu uma semana depois em um
restaurante no Leblon. Durou outras duas horas e, tenho certeza, resultou
em uma das melhores entrevistas já dadas por Ronaldo.
Minha conclusão sobre o assunto: quando o entrevistado se comporta
mal, restam poucas opções ao repórter: dar-lhe as costas e ir embora,
engolir sua má educação e publicar (ou levar ao ar) uma entrevista ruim, ou
tentar resolver o assunto com seu assessor de imprensa – que é pago, entre
outras coisas, para civilizar clientes que não sabem se relacionar com a
mídia. Dessas três opções, só não gosto da segunda.
O DISPERSO
Costanza Pascolato é uma entrevistada charmosa e inteligente. Quando
fala dos assuntos de que gosta e que estuda (estilo, comportamento, história
da moda, por exemplo), é incapaz de proferir um lugar-comum, fazer uma
avaliação banal ou apresentar um raciocínio vulgar. Ela dá aos seus
entrevistadores aquilo que eles mais gostam: respostas francas, análises
surpreendentes e inteligentes. Entrevistá-la é um prazer. Em compensação,
Costanza é ter-ri-vel-men-te dispersiva. Uma afirmação rende uma
lembrança, que resulta numa associação, que remete a um livro e assim por
diante. O que fazer com um entrevistado disperso? Quase nada, uma vez
que é assim que ele funciona e se expressa – não é o repórter quem vai
mudá-lo. Uma providência, no entanto, tem de ser tomada: forçá-lo a
fechar os parênteses que vai deixando abertos pelo caminho. Sim, porque,
no momento de editar a conversa, sempre será possível juntar uma frase
que está no início da fita 1 com outra correlata, que está no fim da fita 3,
mas adivinhar o resto de uma história ou completar uma análise que ficou
em aberto é coisa que não dá mais para fazer. Para não interromper a todo
momento o elíptico raciocínio do entrevistado disperso, deixo-o seguir seu
ritmo, mas vou anotando os tópicos que precisam ser finalizados (leia na
pág. 20 “Bloco de anotações, modo de usar”). Ao final da conversa, lembro-o
de cada um dos assuntos que ficaram para trás e peço que os conclua. Se
puder fazer isso com calma, muito bem. Se não, apenas digo ao
entrevistado: “Estou um pouco preocupada, porque nossa entrevista está
chegando ao fim e eu gostaria de explorar melhor algumas coisas muito
interessantes que o senhor mencionou há pouco. Podemos voltar a elas?”.
O MIL VEZES ENTREVISTADO
Aqui, é fundamental aplicar a regra número um da entrevista: pesquisar
o entrevistado à exaustão. Para falar com Pelé, Lula ou qualquer outra
personalidade que tenha mais do que alguns anos de fama efêmera é
necessário não só preparar-se como preparar-se a ponto de conseguir
adivinhar a resposta que o entrevistado daria para determinada pergunta –
e forçá-lo a ser mais criativo. Como diz Eduardo Logullo: “Você tem de
fugir das questões óbvias. Uma vez eu fiquei com Roberto Carlos uma
noite inteira sem perguntar em nenhum momento sobre a obra dele.
Falamos de música, de Jorge Benjor, de feijão tropeiro. Não perguntei nada
sobre a parceria dele com o Erasmo Carlos, essas chatices. A entrevista ficou
ótima.”
Na categoria dos “mil vezes entrevistado”, está uma raça, segundo Jorge
Moreno, atualmente em extinção: a da “raposa política”. Pertenciam a ela,
por exemplo, Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, de quem Moreno foi
amigo e assessor de imprensa, quando o então deputado federal
candidatou-se à presidência da República, em 1989. “De uma raposa, você
não tira nada que ela não queira falar. Um repórter que está diante de uma
tem de ter humildade para reconhecer isso.” Hoje, ele diz que a única
raposa sobrevivente, verdadeira e genuína, atende pelo nome de José
Sarney.
O FRAGILIZADO
Uma vez, fazendo uma reportagem sobre o luto, entrevistei pessoas que
haviam perdido recentemente alguém ou que estavam, elas próprias,
condenadas a morrer em breve. Andréa se encaixava na segunda categoria.
Ela tinha 16 anos e nenhuma esperança de passar disso. Morava em
Goiânia, já havia tido as duas pernas amputadas em função de um câncer
disseminado e, por decisão da família, deixara o hospital para passar os
últimos dias em casa. Ficava as 24 horas do dia presa a uma cama, vendo
TV. Seus pais mantiveram apenas os tratamentos contra dor e a equipe de
psicólogos que a atendia por meio de um convênio com uma ONG. Foi por
meio dessas psicólogas que cheguei à Andréa. Fui alertada por elas de que
não iria encontrar uma paciente dócil. A menina, disseram, sempre teve
personalidade forte. A doença, que ela nunca aceitou, a havia deixado
“revoltada”. Até aí, continuava a achar que poderia fazer uma boa
entrevista. Comecei a duvidar disso quando, minutos antes de chegar à casa
da menina, uma das psicólogas me comunicou que havia apenas um
assunto que eu não poderia tratar com ela: a sua morte. “Mas é justamente
esse o motivo que me levou a vir de São Paulo até aqui”, disse eu,
lembrando que havia deixado claro que precisava entrevistar um paciente
terminal que tivesse consciência de seu estado. As psicólogas se justificaram
dizendo que era esse o caso de Andréa. O problema é que ela nunca havia
falado sobre isso. Fazê-la abordar o assunto (a iminência da sua morte) era
justamente um dos objetivos que as psicólogas perseguiam no momento e
se eu a pressionasse nesse sentido, estragaria todo o trabalho delas. Como, a
essa altura, já estávamos no portão da casa da menina, entrei. Depois de
cumprimentar a família, fui ao quarto da doente para dizer uma das frases
mais idiotas da minha vida: “Oi, Andréa, tudo bem com você?”, perguntei
à menina sem pernas e condenada à morte aos 16 anos. Fechei os olhos e,
numa rápida avaliação da situação, concluí que estava diante de uma
entrevistada que me odiava, junto com familiares dela e psicólogas, que, a
essa altura, também estavam me odiando, e estava proibida de fazer as
perguntas que haviam motivado a minha viagem. Quando abri os olhos de
novo, deparei com um caderno que estava em cima da cama – a capa
escrita com letra infantil. Perguntei: “Você gosta de escrever, Andréa?”. Ela:
“Não. Esse caderno é de desenhos”. Tentei de novo: “Que pena que você
não gosta de escrever. Porque sua vida daria um livro, pelo que eu sei”. Ela
me olhou pela primeira vez e disse: “Eu já pensei nisso”. Eu: “Se você fosse
escrever um livro, como ele começaria?”. Andréa se ajeitou na cama, cruzou
os braços no colo. Tinha um jeito decidido de falar, o olhar firme, sempre
parecendo um pouco brava: “Eu ia começar dizendo que minha vida era
muito boa até os 14 anos. Depois, veio a doença e estragou tudo”. A partir
daí, ela não parou mais de falar. Contou o quanto se desesperou quando o
médico avisou que seus cabelos iriam cair por causa da quimioterapia, falou
do arrependimento que sentia pelo fato de que “conversava demais na aula”
e não “dava valor” para a escola (“Agora não posso estudar mais”), contou
dos amigos que fez no hospital (todos já haviam morrido), da alegria que
sentiu quando sua classe toda veio visitá-la em casa e, por fim, reclamou da
mãe, que vivia dizendo que podia morrer antes dela e tentando consolá-la
afirmando que ela ainda iria ter um namorado. Diante das psicólogas
aturdidas, Andréa disse que sabia que nunca teria um namorado e que a
morte estava mais próxima dela do que dos outros. Disse ainda que tinha
muito medo de morrer porque, embora a família fosse evangélica e dissesse
sempre que quem cuida da alma vai para o céu, ela não sabia “como é do
outro lado”. Isso a deixava apavorada.
Conto essa história para falar de um dilema pelo qual todo repórter já
passou ou passará: aquele que surge quando, por diferentes motivos,
ficamos tentados a “proteger” o entrevistado de suas próprias palavras. No
caso da Andréa, a ideia era fazer um depoimento dela em primeira pessoa,
com foto. Embora nem ela nem seus pais tivessem feito qualquer restrição à
publicação de imagens ou àquilo que a entrevistada havia dito, fiquei em
dúvida se não deveria sugerir à minha editora, Vilma Gryzinski, que
suprimisse a foto da menina e cortasse certos trechos de seu depoimento
em que eu achava que ela tinha se exposto demais. Afinal, ela era muito
jovem e seus pais eram pobres e desinformados. Reli o depoimento várias
vezes e confesso que decidi não sugerir cortes porque o achei muito bom,
dos pontos de vista humano e jornalístico. Ou seja, muito bom para a
matéria. Ele foi publicado e acabou sendo também muito bom para
Andréa, como me disseram seus pais numa carta enviada depois da morte
da menina. Contavam que a filha havia ficado contente por ver sua foto e
sua história contada na revista e, mais do que isso, por ter recebido dezenas
de cartas de todo o Brasil – enviadas por leitores que se solidarizaram com a
sua situação. Moral da história? Confesso que não sei. Aos repórteres cabe
reportar – e não agir como árbitros, “decidindo” destinos, “poupando” ou
deixando de “poupar” entrevistados. Mas admito que já me vi outras vezes
diante de situações parecidas com a que experimentei nessa matéria. E nem
sempre minha opção foi a mesma. Então, esse tópico terá de permanecer
em aberto, ao menos neste livro.
O QUE NÃO TEM JEITO
Sim, às vezes, não tem jeito. Eduardo Logullo tem uma saída para os
casos em que, por motivos diversos, a entrevista é um fracasso irrecorrível.
No lugar de voltar para a redação de mãos abanando, Logullo aproveita o
olhar agudo e o texto afiado para fazer do limão uma limonada. “Não dou
murro em ponta de faca. Se a entrevista não rende, uso os elementos que
observo para compor um perfil, por exemplo.”
A técnica já lhe serviu para resolver o caso de uma reservadíssima Gal
Costa, um surpreendentemente tímido Golias, uma arisca e monossilábica
Tati Quebra-Barraco. E foi particularmente útil no caso do encontro que
Logullo teve, em 1989, com o já quase centenário arquiteto e urbanista
Lúcio Costa, morto em 1998. “Na hora em que eu entrei no seu
apartamento, achei que ele tivesse sido assassinado. Parecia um cenário de
teatro do absurdo. Havia pilhas e mais pilhas de jornais velhos até o teto.
Deviam ter mais de vinte anos e estavam por todos os cantos, bloqueando a
passagem nos corredores. Era uma bagunça inacreditável. Fui andando e
chamando: “Doutor Lúcio, doutor Lúcio!” Ele já tinha 90 e tantos anos.
Encontrei-o sozinho num quarto, sentado em uma cadeira, com um
cachecol vermelho enrolado no pescoço. Vi logo que a conversa não iria
render. Ele estava lúcido, mas já era um homem muito idoso, não tinha
mais paciência de responder àquilo tudo que já haviam perguntado a ele a
vida inteira. Então, extrair algo do homem àquela altura seria muito difícil.
Preferi concentrar o texto no ambiente. A descrição daquele ambiente era
muito superior a qualquer coisa que ele pudesse falar.”.
Evidentemente, a tática não é para qualquer um. Para fazer jornalismo
literário – e de boa qualidade – é preciso tarimba. Para quem quiser se
aventurar no estilo, Joel Silveira (leia “A não entrevista de Joel Silveira com
Getúlio Vargas”, no capítulo Como transformar uma entrevista em um
desastre, p. 96) é leitura obrigatória.
CRIMINOSOS, ACUSADOS E SUSPEITOS
Por que alguém acuado, pressionado e exposto à execração pública,
como um acusado de corrupção ou assassinato, aceitaria dar uma
entrevista? Por vários motivos, como mostra o jornalista Policarpo Júnior,
autor de nove entre dez dos furos jornalísticos recentes que mudaram a
história do Brasil. Ele conta aqui como conseguiu duas importantes
entrevistas (ambas para a revista Veja) que, inicialmente, pareciam
improváveis. A primeira delas foi com José Carlos Santos, o economista de
Brasília cuja vida começou a ruir em outubro de 1993. Nesse mês, JCS,
como ficou conhecido no noticiário mais tarde, um alto funcionário da
Comissão Mista de Orçamento no Congresso, foi preso por ocultar em sua
casa, debaixo do colchão, 800 mil dólares – incluindo algumas notas frias.
Dez meses antes, sua mulher, Ana Elizabeth Lofrano, havia desaparecido
em circunstâncias misteriosas: JCS dissera à polícia que ela havia sido vítima
de um assalto seguido de sequestro. A polícia suspeitava que JCS havia
mandado matar Ana Elizabeth. Mas seu pesadelo não terminava aí. Ao
longo das investigações, divulgou-se que o economista tinha uma
movimentadíssima vida sexual, que incluía uma agenda com telefones de
quase 200 mulheres e uma invejável coleção de acessórios sexuais. JCS estava
encarcerado e moralmente destruído quando recebeu na prisão a visita do
repórter Policarpo Júnior.
“O camarada estava um trapo. Um cara que, dias antes, era um
funcionário público modelo, competente, bem-sucedido, de uma hora para
outra estava algemado, preso numa cela comum. ‘JCS é um arquivo vivo da
corrupção no Congresso’, havia me dito uma fonte. O problema é que o
mundo inteiro sabia disso. Todos os jornalistas de Brasília já haviam
tentado entrevistá-lo – e nada. Pedir a entrevista, simplesmente,
provavelmente resultaria em mais uma negativa. Tinha de fazer uma coisa
diferente. Pensei: o que mais me interessa é tirar dele o que ele sabe sobre
corrupção. Resolvi arriscar: quando o delegado o trouxe da cela, me
apresentei e, antes que ele pudesse falar alguma coisa, disse que entendia
sua situação, mas que meu interesse se limitava ao trabalho dele no
Congresso. Não queria saber se ele fazia orgias em seu apartamento ou se
usava cocaína. Nada disso. A entrevista giraria em torno de seu trabalho e,
fora disso, eu abriria para ele a possibilidade de se defender contra a
acusação do assassinato da mulher. A estratégia deu certo. Ele topou falar e
o resultado foi aquele que se viu: CPI, cassações etc.”
Na entrevista a Policarpo Júnior, JCS explicou como a Comissão Mista
de Orçamento se transformara em uma máquina de desviar dinheiro
público. Entregando nomes e sobrenomes, o economista contou que
parlamentares aprovavam verbas para obras superfaturadas em troca de
propinas pagas por empreiteiras e desviavam recursos para entidades
filantrópicas de fachada, que repassavam o dinheiro para suas campanhas
eleitorais. A entrevista resultou numa das mais explosivas CPIs da história
do Congresso e na cassação de um bloco de parlamentares conhecidos
como Anões do Orçamento. Ela só existiu porque Policarpo Júnior fez duas
apostas que se mostraram corretas: a primeira era de que JCS, na verdade,
queria falar. Isso porque, ao entregar as histórias de corrupção envolvendo
personagens conhecidos do Congresso, ele desviaria a atenção que estava
concentrada nele. De fato, depois da entrevista, as pessoas esqueceram por
algum tempo que ele era suspeito de ter matado a mulher e JCS passou a ser
visto e dar depoimentos como denunciante. A segunda aposta do jornalista
era de que JCS, embora quisesse falar, precisava ter algumas condições
mínimas para isso. E ele acertou na mosca quais eram elas: não falar sobre
assuntos pessoais e embaraçosos e, sobretudo, não ser acuado sobre o
assassinato da mulher – que, como se provou mais tarde, ele de fato
cometera.
A segunda entrevista inicialmente improvável que Policarpo Júnior
lembra de ter conseguido foi com Vladimir Poleto. Em 2005, o repórter
teve a informação de que a campanha presidencial de Lula em 2002
recebera três milhões de dólares de Cuba. O dinheiro teria vindo
acondicionado em caixas de bebida e passara por Brasília e Campinas em
um avião particular até chegar ao comitê eleitoral de Lula em São Paulo.
Policarpo já havia confirmado a história com um dos envolvidos na
operação, Rogério Buratti, o ex-assessor do então ministro da Fazenda
Antonio Palocci. Era necessário cruzá-la com uma segunda fonte. Júnior
procurou Vladimir Poleto, outro ex-assessor de Palocci que, segundo
Buratti, havia transportado o dinheiro no trecho Brasília-Campinas.
O relato do jornalista: “Com o Poletto a coisa foi mais complicada. Eu
cheguei a Ribeirão Preto para entrevistá-lo já sabendo de tudo. Quer dizer,
eu não tinha 100% da história. Tinha 80% e precisava muito dos outros
20% que estavam com ele. De início, ele quis negar, dizendo que não sabia
de nada. Eu disse a ele que não estava ali para confirmar a história, que já
estava confirmada por um colega dele, o Buratti, mas para ouvi-lo, já que
ele tinha uma participação direta. Ele ficou preocupado. Aí eu comecei a
mostrar para ele que tinha as informações. Ao mesmo tempo, tentava ir
arrancando as que faltavam, como o modelo do avião que havia
transportado os dólares: “Você levou o dinheiro de Brasília para Campinas
no dia tal, tal hora. Foi num jatinho, né?”. Ele: “Jatinho nada, rapaz, foi
num Cessna mesmo”. Assim foi indo. No início, ele dizia que não queria se
meter naquilo, que era coisa de gente grande. Mais tarde, disse que só
soube da existência do esquema depois de ter transportado o dinheiro. Aos
poucos, a história foi saindo. Depois de duas horas, ele havia contado tudo
em detalhes.”.
A história da entrevista de Policarpo com Poletto não terminou na
publicação da matéria. Em novembro de 2005, convocado pela CPI dos
Bingos, Poletto primeiro insinuou aos parlamentares que não dissera o que
o repórter afirmou que ele havia dito. Depois, mudou a tática, afirmando
que estava embriagado no momento da conversa. Só parou de mentir
quando a fita do diálogo mantido entre ele e o repórter chegou à CPI.
Constrangido, Poletto foi obrigado a ouvir, diante dos parlamentares, a
impecável entrevista de Policarpo, e sua própria voz, nada embriagada,
confirmando que havia transportado os dólares. O conselho de Policarpo:
“Se você precisa da informação, nunca acue o entrevistado. Na hipótese de
ele estar envolvido na história, deixe-o concluir que você sabe do que está
falando e que, se ele contar apenas a parte que não o prejudica, já é lucro.
Mesmo que ele tente minimizar a participação dele, você pode conseguir
metade da história. A outra metade você apura com outra fonte”.
Blefe, sangue frio, poker face. Entrevistas no contexto de uma
reportagem investigativa exigem nervos de aço – e uma boa dose de
criatividade. Um dos mestres na arte de arrancar informações explosivas
para suas reportagens bombásticas, Expedito Filho, tem as duas coisas de
sobra. Aqui, ele conta como conseguiu fazer com que, em 1994, o então
ministro da Integração do ex-presidente Fernando Collor, Ricardo Fiúza,
confessasse ter recebido um jet ski e cem mil dólares de uma empreiteira
que prestava serviços para o governo.
“O tema da matéria era lobby em Brasília. Tínhamos a informação de
que deputados ligados ao antigo Centrão estavam recebendo dinheiro de
federações de empresários e presentinhos de empresas. O Fiúza era do
Centrão e era minha fonte: me contava bastidores do governo, reuniões
ministeriais e tal. Fui procurá-lo, tomei café da manhã com ele, mas nada
de ele querer falar sobre o assunto. Quando estávamos indo embora, eu
contei que estava estreando um carro novo e me ofereci para dar-lhe uma
carona para o ministério. Quando chegou na descida da rodoviária, eu
coloquei uns cem quilômetros no carro. Ele dizia: ‘Você é louco, vai bater!’.
Cantei pneu, fiz uma papagaiada. E ele: ‘Para, para’. Eu: ‘Só paro se você
me der a entrevista’. Aí, ele disse: ‘Eu vou falar, eu vou falar’. É preciso
lembrar que ele era minha fonte há tempos, tínhamos uma certa
intimidade para eu fazer o que fiz. Aquilo serviu para descontrair, quebrar o
gelo. E fazer com que ele topasse falar sobre o assunto. Quando sentei na
frente dele, olhei nos seus olhos e disse: ‘Eu tenho uma lista de políticos
que ganharam presentinhos e dinheiro de empresas’. Ele se levantou com
uma cara bem ingênua e falou: ‘Eu ganhei um presentinho’. Não
demonstrei nenhuma reação, só perguntei: ‘Que tipo de presentinho?’. Ele
disse: ‘Um jet ski da OAS’. E continuou: ‘É que eu queria comprar um na
Mesbla, alguém soube, falou com não sei quem da OAS e aí a OAS me deu.
Eu não conseguia achar um jet ski na Mesbla e a OAS achou. Comprou para
mim’. ‘E dinheiro, você não recebeu?’, perguntei. Ele: ‘Só cem mil dólares’.
Eu não tinha gravação nenhuma, só aquela conversa. Publiquei a história e
ele não desmentiu uma palavra.”.
UM ESTILO PARA CHAMAR DE SEU
ORIANA FALLACI, A PROVOCADORA
Ninguém desenvolveu um método tão particular de entrevistar
poderosos quanto Oriana Fallaci. A legendária jornalista e escritora italiana,
morta em 2006, viveu o apogeu da sua carreira entre as décadas de 1960 e
1980, quando entrevistou líderes mundiais da importância de Indira
Ghandi, Golda Meir, Yasser Arafat, Muammar Kadafi, Henry Kissinger e
Deng Xiaoping. Personalista, provocadora, agressiva e com um forte
pendor para performances dramáticas, ela costumava passar como uma
Masserati em alta velocidade por cima de certas regras dos manuais de
jornalismo. Oriana frequentemente falava mais do que ouvia, dispensava
sutilezas no momento de fazer perguntas incômodas e ignorava
solenemente o princípio de que o entrevistado é a principal estrela da
entrevista. Muitas vezes, Fallaci acabava compartilhando esse título com
seus interlocutores famosos. Neta de anarquistas e filha de um líder do
movimento antifascista italiano, ela própria participou da resistência a
Mussolini quando adolescente, transportando armas e mensagens entre os
membros do grupo do pai.
No prefácio de seu livro Interview with History, a escritora resume seu
sentimento em relação ao poder e aos poderosos: “Venha de um soberano
despótico ou de um presidente eleito, de um general assassino ou de um
líder amado por seu povo, eu vejo o poder como um fenômeno detestável e
desumano.”. A declaração ajuda a explicar tanto a fixação da jornalista por
entrevistas com líderes mundiais quanto o rumo que muitas dessas
conversas acabaram tomando. A mais célebre delas talvez seja a que a
jornalista teve com o aiatolá Khomeini. O encontro com o líder da
revolução islâmica aconteceu em 1979, na cidade sagrada de Qom, no Irã.
Fallaci compareceu a ele vestida num xador, como manda a tradição
islâmica, os pés descalços e a língua afiada de sempre. Começou a entrevista
questionando a intolerância do governo iraniano no que dizia respeito ao
adultério, prostituição e homossexualismo. Prosseguiu perguntando o
motivo pelo qual as mulheres iranianas eram obrigadas a usar xador: “Se
participaram da guerra contra o Iraque, foram presas e sofreram tortura,
não mereceriam ao menos vestir coisa mais confortável?”. O aiatolá não
gostou da insolência e respondeu: “As mulheres que contribuíram para a
revolução eram, e são, mulheres que usam vestes islâmicas, não mulheres
elegantes e maquiadas como a senhora, que andam por aí descobertas,
puxando um cordão de homens atrás.”. Fallaci foi adiante, perguntando
por que as iranianas não podiam ir à universidade como os homens, por
que não podiam trabalhar com eles, frequentar a mesma praia... “A
propósito, imã, como se nada no mar vestindo um xador?”
Para Khomeini, foi demais. Sua resposta furiosa: “Não é da sua conta.
Os nossos costumes não são da sua conta. Se a senhora não gosta da veste
islâmica, não é obrigada a usá-la. Porque vestes islâmicas são para mulheres
boas e direitas.”. Fallaci foi rápida: “Isso é muito gentil da sua parte, e já
que o senhor permite, vou tirar agora mesmo este estúpido trapo
medieval.”. Assim que viu o xador no chão, o aiatolá se levantou e bateu
em retirada, não sem antes ouvir uma última provocação da jornalista: “Ei,
imã, onde o senhor vai? Vai fazer pipi?”. A entrevista, no entanto, não se
encerrou aí. Ao ver Khomeini dar-lhe as costas, a jornalista recusou-se a ir
embora. Disse que só deixaria o local quando o aiatolá voltasse. Sentada no
chão da sala, manteve-se impassível diante dos apelos do filho de Khomeini
para que fosse embora, e só aceitou levantar-se depois de saber que o
religioso havia jurado sobre o Corão que a receberia novamente no dia
seguinte. Assim foi feito e a entrevista foi publicada em setembro de 1979
no New York Times. Nesse segundo round, no entanto, Oriana continuou
sendo Oriana. Minutos antes de retornar à presença do líder islâmico, ela
foi alertada pelo filho do aiatolá, Ahmed, de que o pai ainda estava bravo
com o episódio do dia anterior e de que ela não deveria mencionar a
palavra “xador” diante dele. Ganha um turbante branco quem adivinhar a
que se referia a primeira pergunta que a jornalista fez ao encontrar
Khomeini. Exatamente: xador. É Oriana quem descreve a reação do aiatolá:
“Primeiro, ele olhou para mim perplexo”, disse ela. “Totalmente perplexo.
Então, seus lábios se moveram numa sombra de sorriso. Essa sombra foi se
transformando em um sorriso verdadeiro até finalmente virar uma
gargalhada. Sim, ele gargalhou. E quando a entrevista terminou, Ahmed
me cochichou: ‘Acredite, eu nunca vi meu pai gargalhar. Eu acho que você
é a única pessoa no mundo que já o fez gargalhar’.”.
O aiatolá não foi o único a capitular no primeiro round diante das
provocações da jornalista. Heilan Selassié, imperador da Etiópia, também
abandonou o ringue antes do final da entrevista. Fallaci o entrevistou em
1972, na capital do país, Adis Abeba. Reproduzo aqui os trechos principais
da conversa, menos para chamar a atenção para o seu desfecho, à moda
Fallaci, do que para sublinhar a habilidade com que a jornalista conseguiu
extrair um retrato inédito do patético imperador da Etiópia. Assim que se
viu na presença do “Rei dos Reis”, no interior de seu luxuoso palácio,
Fallaci mencionou uma visita que ele fizera à cidade de Gonder, onde seus
soldados distribuíram moedas e restos de comida para hordas de pessoas
famintas: “Majestade, há uma questão que vem me incomodando desde
que eu vi aquelas pessoas miseráveis correndo atrás do senhor e esmagando-
se umas às outras por causa de um dólar. Majestade, como o senhor se
sente dando esmolas para o seu povo? O que o senhor sente diante da visão
da miséria?”.
Selassié expôs sua tese de que a pobreza ou a riqueza são resultado de
mérito individual. Ao que Fallaci, demonstrando todo o seu choque,
replicou: “Majestade, o senhor quer dizer que quem quer que seja pobre
merece a pobreza?”. “Cada pessoa é responsável pela sua própria tragédia,
seu próprio destino. Não é correto esperar ajuda de cima, como um
presente: as pessoas têm de fazer por merecer a prosperidade. Trabalhar é
um dos mandamentos do Criador!”. Sentindo que o imperador começava a
ficar desconfortável, Fallaci prosseguiu com questões amenas. Rodeou,
rodeou, até que deu seu bote. O imperador já havia se recusado a falar de
um dos mais importantes episódios de seu longo reinado: a tentativa de
golpe contra ele perpetrada em 1960 por dois de seus ex-homens de
confiança, os irmãos Mengistu e Germane Neway, durante uma viagem do
soberano ao Brasil. Ambos morreram pouco depois da tentativa. Quando,
foragidos, viram-se na iminência da captura, Germane atirou em Mengistu
e depois se suicidou. Mengistu sobreviveu e, condenado à forca, declarou
não temer a morte, já que, desde que decidira lutar contra a injustiça, sabia
que poderia morrer. Por determinação do imperador, seu corpo, assim
como o de seu irmão, ficou pendurado por oito dias em uma árvore, diante
da catedral da capital.
Para abordar o assunto proibido, Fallaci fez ao imperador a seguinte
pergunta: “Majestade, se o senhor não deseja falar de certos assuntos, fale-
me do senhor. Diz-se que o senhor ama muito animais e crianças. Permita-
me perguntar-lhe se o senhor ama os homens na mesma intensidade?” O
imperador respondeu que amava apenas os homens dignos e corajosos.
Fallaci viu aí a chance de trazer à tona o assunto proibido. “Os dois homens
que tentaram o golpe de estado contra o seu governo eram dignos e tinham
coragem, Majestade.” Selassié ficou transtornado. “Basta desse assunto,
basta desse assunto!”, gritou. O golpe de misericórdia veio pouco depois.
Fallaci sabia que o imperador nutria horror à ideia da morte e que a simples
menção ao assunto o fazia empalidecer. Diante disso, perguntou-lhe: “E a
morte, majestade? O senhor é bastante idoso já. Tem medo de morrer?”.
Foi o que bastou. Furioso, Selassié ordenou que Fallaci fosse retirada da sua
presença: “Quem é essa mulher? De onde ela veio? Fora com ela! Acabou!
Acabou!”. Ainda que obtida por meio de seus personalíssimos métodos,
considero essa entrevista de Fallaci admirável. Embora o imperador na
verdade pouco fale, as provocações da jornalista e as reações que elas
suscitam traçam um acurado retrato do soberano que reinou por mais de
quatro décadas na Etiópia, cercado de luxos extravagantes (entre os quais
um serviçal cuja única função era colocar-lhe uma almofada sob os pés, de
modo a evitar que as digníssimas pernas imperiais, bastante curtas,
balançassem no ar) e temendo, a todo instante, ver-se apeado do poder.
Fallaci, como escreveu o jornalista Christopher Hitchens, “esquadrinhou o
globo atormentando famosos e poderosos até eles concordarem em falar
com ela, para então, reduzi-los à escala humana”.
Quando criança, era fascinada por Oriana Fallaci. Lembro de tê-la visto
entrevistando o então primeiro ministro italiano Aldo Moro e de dizer a
minha mãe que queria ser como ela. Meio desalentada, meio compadecida,
minha mãe respondeu: “Filha, você não tem jeito para isso.” Era verdade.
Nunca consegui imitar o estilo do meu ídolo de infância e não tenho
dúvidas de que, se tivesse tentado, o resultado seria um desastre. O que
quero dizer é que, por mais que admiremos um jornalista, suas técnicas
nem sempre serão as mais úteis para nós. Porque se trata de uma
personalidade muito diferente da nossa ou simplesmente porque o contexto
ou a área em que ele atua são outros. Que utilidade teria o estilo Fallaci
para um jornalista tímido? Ou para um repórter especializado em saúde?
Evidentemente, nenhuma.
Costanza Pascolato costuma dizer que a chave para a elegância está em
encontrar o próprio estilo. “Quando encontrar, agarre-se a ele”, diz. Para
facilitar a tarefa, ela recomenda como primeiro passo uma autoanálise, fria
e cruel, junto ao espelho. Porque encontrar um estilo exige, antes de tudo,
conhecimento das próprias virtudes e defeitos. O mesmo vale para
jornalistas interessados em fazer boas entrevistas. O primeiro passo é
encontrar o próprio estilo. O segundo é aprimorá-lo.
ROGER MARTIN, O ANSIOSO
O jornalista americano Roger Martin, especializado em ciência,
considera-se um ansioso em grau máximo. Resignado a essa condição,
resolveu tirar proveito dela e tem sido muito bem-sucedido. A descrição
que faz de si mesmo é engraçada e eu consigo reconhecer nela alguns
(ótimos) jornalistas com quem convivi. “Quando estou entrevistando,
exponho minha ignorância a cada espaço de segundos. Interrompo, faço
perguntas elementares. Olho fixamente para o entrevistado, me debruço
sobre ele, estico o meu pescoço na sua direção, falo com as mãos. E uso o
meu vocabulário mais básico. É o princípio do espelho. Conforme os
cientistas me observam e me ouvem, vão falando de uma maneira mais e
mais simples, que é o que me interessa.” Martin acredita que seu modo de
se comportar estimula a boa vontade e o didatismo dos cientistas. “É como
se eles pensassem: ‘Calma, Joãozinho, fique tranquilo que já, já você vai
entender tudo o que eu tenho para dizer’.”. Martin diz ter por princípio
perguntar absolutamente tudo o que lhe vem à cabeça, por mais idiota que
pareça. “Às vezes, reouvindo minhas entrevistas, não acredito que perguntei
tanta bobagem. Mas o que eu tenho a dizer é que, comigo, essa maneira de
trabalhar tem funcionado.”
JEREMY PAXMAN, O ROTTWEILER
O estilo do inglês Jeremy Paxman, apresentador do programa
Newsnight, da BBC, chega a beirar a grosseria. Uma de suas entrevistas de
maior repercussão foi com Michael Howard, ex-secretário do Interior.
Então candidato a líder do Partido Conservador, Howard havia deixado o
cargo há 13 dias. Pouco antes, no meio de uma crise do sistema
penitenciário inglês, havia sido acusado de ter tentado interferir numa
decisão do diretor do serviço prisional inglês, Derek Lewis. Na transmissão,
ao vivo, Paxman perguntou a Howard se ele havia ou não tentado
pressionar Lewis. O ex-secretário deu-lhe uma resposta evasiva. Diante
disso, o jornalista repetiu a pergunta mais uma vez. E mais uma, e mais
uma, e mais uma – até atingir a marca recorde de 12 insistências. Nas 12
vezes em que respondeu à pergunta, Howard foi inconclusivo. O ex-
secretário saiu massacrado do programa. Na última pergunta, recebeu o
golpe de misericórdia de Paxman. Forjando o seu mais incrédulo olhar, o
jornalista, transbordando de sarcasmo, perguntou a Howard: “O senhor
pensa seriamente em ser líder do Partido Conservador?”. Noutra ocasião,
em 2002, ao entrevistar Charles Kennedy, líder liberal-democrata com
fama de beberrão, perguntou a ele se costumava beber sozinho e se chegava
a acabar com uma garrafa de uísque nessas ocasiões. Obteve de Kennedy
não mais do que uma resposta polida e constrangida – e ainda foi obrigado
a pedir-lhe desculpas públicas mais tarde. É o tipo de jornalismo que
pretende ser puro show – e algumas vezes, de mau gosto.
GAY TALESE, O TÍMIDO
Filho de um alfaiate italiano, Gay Talese nasceu em Ocean City, Nova
Jersey. Na infância, foi aluno medíocre e atleta pior ainda. Não tinha
amigos, não tinha namorada e não era convidado para as festas do colégio,
onde os alunos caçoavam dos ternos que ele vestia, feitos por seu pai. Para
completar, sua família era católica (Talese foi coroinha) enquanto Ocean
City inteira era protestante. Tanta infelicidade durou até os 13 anos de
idade, quando o adolescente Gay começou a fazer o jornalzinho da escola.
Foi então que os seus sofrimentos começaram a arrefecer. “Percebi que você
pode ser tímido, como eu era, mas mesmo assim conseguir se aproximar de
gente que nunca viu e fazer perguntas”, disse, em entrevista a Francis Ford
Coppola, para a revista Esquire, em 1981. “Eu me sentia isolado do mundo
e olhava as pessoas com uma curiosidade imensa, que acho que nasceu
comigo. Queria saber como elas viam o mundo.” Em 1953, Talese
graduou-se em Jornalismo pela Universidade do Alabama (segundo conta,
porque nenhuma outra o aceitou). Formado, mandou currículo para o New
York Herald Tribune e outros cinco jornais de Nova York. Foi rejeitado por
todos. Conseguiu ser contratado como copydesk do New York Times dois
anos depois. Lá trabalhou como repórter e, mais tarde, como editor. Os dez
anos que permaneceu no mais influente jornal do mundo resultaram no
livro O reino do poder.
Hoje, o mais festejado representante do “new journalism” (estilo
difundido a partir dos anos 1960 nos Estados Unidos e que pode ser
resumido como jornalismo com ambições literárias), Gay Talese continua
se valendo de suas duas ferramentas mais preciosas: apuração extenuante e
ouvidos atentos. Suas pesquisas são lendárias. Para escrever A mulher do
vizinho, por exemplo, um painel sobre o comportamento sexual americano
nas décadas de 1960 e 1970, o jornalista e escritor viveu meses em um
campo de nudismo e chegou a trabalhar como gerente de uma casa de
massagens. O livro demorou nove anos para ficar pronto. Talese gastou
cinco pesquisando o assunto e quatro escrevendo sobre ele. O escritor se
diz fascinado por perdedores, com os quais afirma identificar-se. Trata
frequentemente deles, como fez no texto sobre os restaurantes fracassados
da rua 63, no Upper East Side, ou no capítulo sobre a jogadora chinesa de
futebol que errou um pênalti decisivo na Copa de 1999, levando seu time a
perder o campeonato para os Estados Unidos, ambos no seu último livro, A
Writer’s Life, ainda não lançado no Brasil.
Sua receita para uma boa entrevista, como ele conta a Jack Huber e
Dean Diggins, no livro Interviewing America’s Top Interviewers, é exercer a
curiosidade: “É o passo número um. Eu não acho que se possa ensinar isso.
Você tem ou não tem. E a segunda coisa, que eu acho igualmente
impossível de obter por meio da educação ou qualquer outro meio, é a
paciência. Você tem de sentar lá, algumas vezes num ambiente de estresse,
diante de alguém relutante ou desconfiado e ser capaz de comunicar a ele
sua genuína curiosidade e seu interesse nele como um companheiro da
espécie humana, que não tem intenção de machucá-lo. Você tem de ter
paciência para perseverar (...). Eu escuto com um cuidado que eu penso,
está se tornando cada vez menos parte dos hábitos de uma geração nova de
entrevistadores. Desenvolver a escuta, saber como ouvir, guardar o que se
ouve e, ao mesmo tempo, saber que o que se ouve não é tudo o que pode
ser dito, saber que voltando com mais perguntas e mais perguntas e mais
perguntas faz com que o seu entrevistado se compreenda melhor e que você
o compreenda melhor ou o assunto no qual ele é especialista. Eu acredito
que as pessoas falam comigo porque sentem que eu tenho genuíno interesse
em ouvi-las.”
COMO TRANSFORMAR UMA ENTREVISTA
EM UM DESASTRE
Você já sabe o que fazer para conseguir uma boa entrevista. Saiba agora
o que não fazer caso não queira arruiná-la. Aqui, mestres da arte de
perguntar revelam suas maiores gafes. Comecemos pelo dia em que
Policarpo Júnior foi golpeado por um porta-lápis de acrílico lançado em
suas costas por um entrevistado furioso.
COMO POLICARPO JÚNIOR APRENDEU A NÃO
COMEÇAR UMA ENTREVISTA PELO LIDE
Policarpo Júnior conta: “Fui entrevistar um parlamentar de Rondônia,
Nobel Moura, acusado de comandar um esquema de compra de deputados
para o seu partido, o PSD. Tinha apenas uma dica de um colega dele,
nenhum documento, nenhuma declaração em on. Era sexta-feira, dia do
fechamento da matéria. O deputado fugiu de mim o dia inteiro. Só perto
das três da tarde foi que eu descobri que ele estava escondido na liderança
do partido. A essa altura, meu dead line (prazo final da entrega da matéria)
estava se esgotando. Fui direto ao gabinete e fiquei lá apenas por alguns
segundos. Fui embora com o deputado me xingando, depois de atirar um
porta-lápis de acrílico nas minhas costas. Não foi para menos: a minha
primeira e única pergunta foi: ‘Quanto o senhor está oferecendo para os
deputados para que eles troquem de partido?’. Erro meu. Aprendi com o
porta-lápis que é fundamental estudar o personagem antes de abordá-lo (no
caso de Moura, isso seria especialmente valioso, uma vez que uma rápida
pesquisa ou conversa com parlamentares lembraria o repórter de que o
rondoniense era o mesmo que tempos atrás havia esmurrado uma deputada
no rosto). Outra coisa que se deve fazer sempre é começar a entrevista pelo
que menos interessa, numa espécie de pirâmide ao contrário. Nunca
comece pelo lead.”.
A PIOR ENTREVISTA DE ORIANA FALLACI
Em 1993, em entrevista ao escritor e professor de línguas da
Universidade do Mississipi Santo L. Aricò, que a biografou, Oriana Fallaci
disse que a pior entrevista de sua vida foi a que fez com Lech Walesa. “Eu
não fui honesta”, diz. Fallaci se refere ao modo como retratou o líder do
Solidariedade, a central sindical que se opôs ao regime comunista da
Polônia dos anos 1980. “Ele era estúpido e eu fiz com que ele parecesse
inteligente. Era um homenzinho e eu fiz com que parecesse grande.” A
Aricò, a jornalista contou que seu dilema emergiu quando ela começou a
transcrever as fitas da conversa com o sindicalista: “Pensei: escrevo a
verdade sobre Walesa, dizendo que ele é um blefe inventado pela Igreja
Católica, que é arrogante e fascista, e, dessa forma, faço um favor para os
russos e para os poloneses comunistas que querem acabar com ele e com o
Solidariedade? Ou escrevo, como todo mundo escreveu, que é uma ótima
pessoa e ofereço assim a minha pequena contribuição para a democracia
polonesa?”. A jornalista ficou com a segunda alternativa. E arrependeu-se:
“É a única entrevista da qual não me orgulho.”
O PESADELO DE MORENO
Jorge Moreno foi o primeiro jornalista a entrevistar a primeira-dama
Marisa Letícia da Silva, que talvez não tenha dado mais do que duas
entrevistas em sua vida inteira. Na época da campanha presidencial de
2003, o colunista de O Globo havia falado com todas as mulheres de
candidatos. Ficou faltando só Marisa – cuja assessora, depois da vitória de
Lula, continuou prometendo encontro, marcando, adiando, prometendo
de novo e assim por diante. Na tentativa de conseguir chegar à primeira-
dama, o jornalista recorreu a amigos no governo, colegas que trabalhavam
no Palácio do Planalto, parlamentares petistas, Deus e o mundo. Todos
sabiam que ele queria uma entrevista com Marisa. Um dia, Moreno
encontrou-se casualmente com ela e Lula no restaurante Porcão, no Rio.
Quando foi cumprimentar o presidente, Lula virou-se para a mulher e
disse: “Esse cara aqui está querendo falar com você. Fala com ele, é amigo
nosso”. Mais alguns encontros e desencontros com a assessoria da primeira-
dama e Moreno finalmente conseguiu marcar o encontro, no hotel Glória,
no Rio, onde ela estaria acompanhando o marido em compromissos.
Ocorre que, por algum imprevisto da agenda presidencial, Lula, que não
deveria estar no hotel no momento da entrevista, estava. E resolveu não só
acompanhá-la como ajudar Moreno a fazê-la, já que, inicialmente, Marisa
não parecia muito à vontade com o repórter.
“Ele ficou fazendo perguntas a ela: e aquela vez em que você fez isso,
me conta o que você mais gosta na vida e tal.” Eu estava emocionado com
aquilo, já via a entrevista impressa, a página pronta: “Marisa Letícia da
Silva, entrevistada por Jorge Moreno e Luiz Inácio Lula da Silva”.
Encerrada a entrevista, o jornalista despediu-se do casal, subiu para o
quarto para tirar a fita e, nesse momento, viu seu mundo desabar.
Materializava-se diante dele o pesadelo dos pesadelos. O comando “pausa”,
involuntariamente acionado, tinha produzido uma fita em branco. “Eu
chorei, chorei e chorei”, conta Moreno. Não houve jeito de repetir a
conversa. Moreno ainda telefonou para Marisa, contando sua tragédia. A
primeira-dama, condoída, aceitou encontrá-lo de novo, mas aí novo azar:
marcaram de ver-se no aeroporto Santos Dumont, antes do embarque de
volta para Brasília, mas um mal-entendido fez com que se
desencontrassem. Como já se contou no início deste livro, no entanto,
Moreno é dotado de uma memória de alguns terabytes, que faz, inclusive,
com que ele opte muitas vezes por dispensar o gravador. Foi essa memória
excepcional que salvou o jornalista de voltar para a redação de mãos
abanando. Em vez de transcrever a entrevista em formato pingue-pongue –
o que nem mesmo ele conseguiria, já que, por achar que teria a conversa
gravada, não se preocupou em memorizá-la – a saída foi reunir os melhores
momentos e frases do encontro em um texto corrido. A matéria foi
publicada e fez grande sucesso. Mas Moreno não se conforma até hoje de
ter perdido a oportunidade de assinar uma entrevista em parceria com o
presidente.
A NÃO ENTREVISTA DE JOEL SILVEIRA COM
GETÚLIO VARGAS
Minha história preferida de entrevista fracassada é a que conta o
excepcional Joel Silveira no seu livro A feijoada que derrubou o governo. O
veteraníssimo Joel entrevistou mais presidentes do que alguns colegas
entrevistaram gente. Trabalhou com Nelson Rodrigues, morou com
Rubem Braga, tomou uísque com Jânio Quadros, cobriu a Segunda
Guerra, viu o corpo de Benito Mussolini dependurado em Milão, escreveu
reportagens memoráveis e livros deliciosos de contos e de crônicas. Pouco
antes de morrer, aos 88 anos de idade, ainda morando em Copacabana,
passava as madrugadas ouvindo música clássica, já que, por conta de uma
catarata, não escrevia nem lia – limitação que ele minimizava com charme.
“Já li tudo o que me interessava – e o que não me interessava também. Até
hoje não me perdoo por ter lido Jorge Amado”, dizia. Joel se encontrou
com Getúlio Vargas pela primeira e única vez em abril de 1954, quatro
meses antes do ex-presidente se suicidar. Na ocasião, havia acabado de
assumir o cargo de redator-chefe da Revista da Semana, semanário carioca
que começou a circular em 1900, teve seus dias de glória, mas, naquele
momento, encontrava-se em fase aparentemente terminal (mais tarde, a
revista foi absorvida pelo Jornal do Brasil e durou até 1962).
Empenhado em reerguer o título, Joel buscava “a” matéria – aquela que
pudesse ter para a publicação a força de um choque elétrico sobre um
coração infartado. Uma entrevista com Getúlio! Foi o que lhe ocorreu
numa madrugada insone. Acontece que o presidente já andava, naquele
tempo, arredio e acuado. Não era mais visto em público, vivia enclausurado
em seu palácio e tampouco dava entrevistas. Para diminuir mais ainda as
chances de Joel, desde que Getúlio se instalara no poder, o jornalista nunca
havia escrito uma palavra amiga a seu respeito, pelo contrário. Gratuliano
de Brito, o dono da Revista da Semana, reagiu com ceticismo à ideia do
subordinado. “Você não vai nem chegar à porta do Catete”, disse. Contra
tudo e todos, Joel insistiu no plano e, para levá-lo a cabo, traçou uma
estratégia baseada em quatro passos. O primeiro seria chegar, por meio de
amigos, a Lourival Fontes, o todo-poderoso assessor de Getúlio que,
durante o Estado Novo, havia sido chefe do não menos poderoso DIP
(Departamento de Imprensa e Propaganda). O segundo passo seria expor a
Lourival “de maneira mais ou menos difusa e reticente” o que pretendia
com Getúlio. Joel já decidira que teria que dar a entender que não iria ao
presidente “na qualidade de atacante, mas de soldado rendido” – a palavra
“entrevista”, dessa maneira, deveria ser evitada a todo custo. No
singelíssimo plano traçado, o terceiro passo seria convencer Lourival Fontes
a conseguir-lhe o encontro com o presidente; e o quarto, chegar ao
presidente. O plano estava pensado só até ali.
Tudo correu mais ou menos conforme o previsto: amigos fizeram a
ponte para o encontro com Lourival, Joel reuniu-se com o assessor, que,
por sua vez, concordou em marcar o encontro com Getúlio. A única coisa
que não saiu bem conforme o esperado foi que a tentativa de expor “de
maneira mais ou menos difusa e reticente” os motivos pelos quais precisaria
encontrar o presidente foi frustrada pela objetividade de Lourival: “Não é
entrevista?”, perguntou o assessor, na lata. “Não, em absoluto.”, Joel foi
obrigado a responder. “Nada de entrevista. Sei perfeitamente que o
presidente não iria me dizer coisa alguma, agora que está mais calado do
que nunca... Nada de entrevista.” A ideia que ficou subentendida na
conversa com o assessor era de que Joel queria encontrar-se com Getúlio
para fazer-lhe um pedido de ordem pessoal, como um emprego.
A descrição dos dez ou quinze minutos em que o jornalista ficou diante
do presidente, em seu gabinete no Catete, até ser sumariamente
despachado por ele, é o ponto alto da crônica Primeiro, único e desastrado
encontro com Getúlio, um dos 17 textos que compõem A feijoada que
derrubou o governo. Ao finalmente ouvir Joel confessar o real motivo da sua
presença (“Gostaria que Vossa Excelência respondesse algumas
perguntas...”), o presidente simplesmente retirou-se do gabinete, deixando
um consternado Joel plantado no meio da sala. “O homenzinho levantou-
se, esmagou no cinzeiro de cristal o que restava do charuto e desapareceu
por uma porta ao lado, que bateu com força. Nem ao menos me estirou a
mão. Apenas a chicotada, e como doeu! E como ainda dói.” O plano
arquitetado por Joel Silveira para entrevistar Getúlio Vargas pode figurar
facilmente entre os piores já traçados por um repórter na busca de uma
matéria. Mas, em compensação, resultou em uma das mais deliciosas peças
do new journalism nativo. Ela termina com o autor saindo do bar onde
passou a madrugada, afogando as mágoas da entrevista fracassada: “Lá para
a meia-noite entrei no Danúbio Azul, um bar que não existe mais numa
Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse
encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo
surgidas, desde que existem mundo e manhãs de abril.”.
BIBLIOGRAFIA
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A AUTORA
Thaís Oyama é redatora-chefe da revista Veja, onde está desde 1999. Já
trabalhou na TV Globo (sucursal de Brasília), nas revistas Marie Claire e
República (já extinta) e nos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo.
Desde 2003 dá palestras sobre técnicas de entrevista para jornalistas e
estudantes de jornalismo.