Técnicas de Golpe de Estado
Técnicas de Golpe de Estado
TÉCNICAS DE
GOLPE DE
ESTADO
Por:
Curzio Malaparte
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CONTEÚDOS:
CAPÍTULO UM
O GOLPE DE ESTADO BOLCHEVIQUE E AS TÁTICAS DE
TROTSKY.....................................................................................Pág. 4
CAPÍTULO DOIS
UM GOLPE DE ESTADO QUE FRACASSOU: TROTSKY vs.
STALIN.......................................................................................Pág. 23
CAPÍTULO TRÊS
1920 EXPERIÊNCIA DA POLÔNIA: A ORDEM REINA EM
VARSÓVIA.................................................................................Pág. 37
CAPÍTULO QUATRO
KAPP OU MARS vs. MARX....................................................Pág. 49
CAPÍTULO CINCO
BONAPARTE-OU O PRIMEIRO GOLPE DE ESTADO MO-
DERNO.......................................................................................Pág. 54
CAPÍTULO SEIS
PRIMO DE RIVERA E PILSUDSKI: UM CORTEZEIRO E UM
GENERAL SOCIALISTA.........................................................Pág. 62
CAPÍTULO SETE
MUSSOLINI...............................................................................Pág. 67
CAPÍTULO OITO
UM PRETENDENTE DITADOR, HITLER..........................Pág. 84
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Capítulo Um
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o que constituiu a novidade da situação política russa em 1917. A estratégia de
Lenin não apresenta, portanto, um perigo imediato para os governos da Europa. A
ameaça para eles, agora e sempre, vem das táticas de Trotsky.
Em suas observações sobre A Revolução de Outubro e as Táticas dos Comunis-
tas Russos, Stalin escreveu que quem quisesse fazer uma estimativa do que aconte-
ceu na Alemanha no outono de 1923 não deveria esquecer a situação peculiar na
Rússia em 1917. Ele acrescentou: “O camarada Trotsky deveria se lembrar disso, já
que ele encontra uma analogia completa entre a Revolução de Outubro e a Revolu-
ção Alemã e castiga o partido comunista alemão por seus erros reais ou supostos.”
Para Stalin, o fracasso da tentativa alemã de revolução durante o outono de 1923
foi devido à ausência dessas circunstâncias específicas, que são indispensáveis à
aplicação prática da estratégia de Lenin. Ele ficou surpreso ao encontrar Trotsky
culpando os comunistas alemães. Mas para Trotsky, o sucesso de uma tentativa de
revolução não depende de circunstâncias análogas às obtidas na Rússia em 1917.
A razão pela qual a revolução alemã no outono de 1923 falhou não foi porque era
impossível naquela época colocar a estratégia de Lenin em operação. O erro im-
perdoável por parte dos comunistas alemães estava em sua negligência das táticas
insurrecionais do bolchevismo. A ausência de circunstâncias favoráveis e a condi-
ção geral do país não afetam a aplicação prática das táticas de Trotsky. De fato, não
há justificativa para o fracasso dos comunistas alemães em atingir seu objetivo.
Desde a morte de Lenin, a grande heresia de Trotsky ameaçou a unidade
doutrinária do leninismo. Trotsky é um reformador que tem as probabilidades
contra ele. Ele agora é um Lutero no exílio, e aqueles de seus adeptos que não fo-
ram tão precipitados a ponto de se arrepender tarde demais se apressaram em
se arrepender — oficialmente — cedo demais. No entanto, ainda se encontra
frequentemente hereges na Rússia que não perderam o gosto pela crítica e que
continuam tirando as conclusões mais inesperadas do argumento de Stalin. Este
argumento leva à conclusão de que sem Kerenski não poderia haver Lenin, já que
Kerenski formou um dos principais elementos na condição peculiar da Rússia em
1917. Mas Trotsky não reconhece que haja qualquer necessidade de Kerenski, as-
sim como não há necessidade de Stresemann, Poincaré, Lloyd George, Giolitti ou
MacDonald, cuja presença, como a de Kerenski, não tem influência, favorável ou
desfavorável, na aplicação prática das táticas de Trotsky. Coloque Poincaré no lu-
gar de Kerenski, e o golpe de estado bolchevique de 1917 provaria ser igualmente
bem-sucedido. Em Moscou, como em Leningrado, às vezes me deparei com adep-
tos da teoria herética da “revolução permanente” que virtualmente sustentavam
que Trotsky poderia viver sem Lenin, que Trotsky poderia existir sem Lenin, o que
equivale a dizer que Trotsky poderia ter subido ao poder em outubro de 1917 se
Lenin tivesse permanecido na Suíça e não tivesse participado de forma alguma da
revolução russa.
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A afirmação é arriscada, mas somente aqueles que ampliam a importância da
estratégia em uma revolução a considerarão arbitrária. O que mais importa são
as táticas insurrecionais e a técnica do golpe de estado. Em uma revolução co-
munista, a estratégia de Lenin não é uma preparação indispensável para o uso de
táticas insurrecionais. Ela não pode, por si só, levar à captura do Estado. Na Itá-
lia, em 1919 e 1920, a estratégia de Lenin foi colocada em operação completa, e a
Itália naquela época era, de fato, de todos os países europeus, o mais maduro para
uma revolução comunista. Tudo estava pronto para um golpe de estado. Mas os
comunistas italianos acreditavam que o estado revolucionário do país, a febre da
sedição entre as massas proletárias, a epidemia de greves gerais, o estado paralisa-
do da vida econômica e política, a ocupação de fábricas pelos trabalhadores e de
terras pelos camponeses, a desorganização do exército, da polícia e do serviço pú-
blico, a fragilidade da magistratura, a submissão das classes médias e a impotência
do governo eram condições suficientes para permitir uma transferência de auto-
ridade para os trabalhadores. O parlamento estava sob o controle dos partidos de
esquerda e estava, na verdade, apoiando as atividades revolucionárias dos sindica-
tos. Não havia falta de determinação para tomar o poder, apenas de conhecimento
das táticas de insurreição. A revolução se esgotou na estratégia. Essa estratégia era
a preparação para um ataque decisivo, mas ninguém sabia como liderar o ataque.
A Monarquia (que costumava ser chamada de Monarquia Socialista) era, na ver-
dade, considerada um sério obstáculo a um ataque insurrecional. A maioria par-
lamentar da esquerda estava muito preocupada com as atividades dos sindicatos,
o que lhe dava motivos para temer uma tentativa de poder fora da esfera do Par-
lamento e até mesmo dirigida contra ele. Os sindicatos suspeitavam que o Parla-
mento tentava converter a revolução proletária em uma mudança de ministério
para o benefício das classes médias baixas. Como o golpe de estado poderia ser
organizado? Esse foi o problema durante todo o ano de 1919 e 1920, e não apenas
na Itália, mas em quase todos os países da Europa Ocidental. Trotsky disse que os
comunistas não sabiam como se beneficiar da lição de outubro de 1917, que não
era uma lição de estratégia revolucionária, mas de táticas de insurreição.
Esta observação de Trotsky é muito importante para a compreensão das tá-
ticas utilizadas no golpe de estado de outubro de 1917, isto é, da técnica do golpe
de estado comunista.
Pode-se sustentar que as táticas de insurreição são parte da estratégia revo-
lucionária e, de fato, seu objetivo e objeto. As ideias de Trotsky sobre esse ponto
são muito definidas. Já vimos que ele considera as táticas de insurreição como in-
dependentes da condição geral do país ou de um estado de coisas revolucionário
favorável à insurreição. A Rússia de Kerenski não oferece mais problemas do que
a Holanda ou a Suíça para a aplicação prática das táticas de outubro de 1917. As
quatro circunstâncias específicas definidas por Lenin
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em A Doença Infantil do Comunismo (isto é, a possibilidade de combinar a
revolução bolchevique com a conclusão de uma guerra imperialista; a chance de se
beneficiar por um curto período, por uma guerra entre dois grupos de nações que,
exceto por essa guerra, teriam se unido para lutar contra a revolução bolchevique;
a capacidade de sustentar uma guerra civil na Rússia durando o suficiente em re-
lação ao imenso tamanho do país e seus pobres meios de comunicação; a presença
de um movimento revolucionário democrático de classe média entre as massas
camponesas) são características da situação russa em 1917, mas não são indis-
pensáveis para
o resultado bem-sucedido de um golpe de Estado comunista. Se as
táticas de uma revolução bolchevique dependessem das mesmas circunstâncias da
estratégia de Lenin, não haveria um perigo comunista agora mesmo em todos os
estados da Europa.
Lenin, em sua ideia estratégica, carecia de senso de realidade; faltava-lhe pre-
cisão e proporção. Ele pensava em estratégia em termos de Clausewitz, mais como
uma filosofia do que como uma arte ou ciência. Após sua morte, entre seus livros
de cabeceira, uma cópia de Concerning War de Clausewitz foi encontrada, anotada
em sua própria escrita; e suas notas marginais para Civil War in France de Marx
mostram quão bem fundamentado era o desafio de Trotsky ao gênio estratégico de
seu rival. É difícil ver por que tal importância é oficialmente dada à estratégia revo-
lucionária de Lenin na Rússia, a menos que seja com o propósito de menosprezar
Trotsky. O papel histórico desempenhado por Lenin na Revolução torna desneces-
sário que ele seja considerado um grande estrategista.
Na véspera da insurreição de outubro, Lenin estava esperançoso e impa-
ciente. A eleição de Trotsky para a Presidência do Soviete de Petrogrado e para
o Comitê Militar Revolucionário e a conquista da maioria do Soviete de Moscou
finalmente o tranquilizaram sobre a questão da maioria nos Sovietes, que era seu
pensamento constante desde julho. Mesmo assim, ele ainda estava ansioso sobre o
segundo Congresso Soviético, que aconteceria nos últimos dias de outubro. “Não
precisamos obter a maioria”, disse Trotsky, “não será a maioria que terá que chegar
ao poder”. E Trotsky não estava enganado. “Seria simplesmente infantil”, concor-
dou Lenin, “esperar por uma maioria definitiva”. Ele gostaria de despertar as mas-
sas contra o governo de Kerenski; ele queria enterrar a Rússia sob o proletariado;
dar o sinal de insurreição a todo o povo russo; comparecer ao Congresso Soviético
e anular Dan e Skobelov, os dois líderes da minoria menchevique; e proclamar a
queda do governo de Kerenski e o advento da ditadura do proletariado. Táticas in-
surrecionais não lhe passavam pela cabeça; ele pensava apenas em termos de estra-
tégia revolucionária. “Tudo bem”, disse Trotsky, “mas antes de tudo, vocês devem
tomar posse da cidade, tomar as posições estratégicas e expulsar o governo. Para
fazer isso, uma insurreição deve ser organizada e grupos de ataque treinados. Pou-
cas pessoas são necessárias; as massas não servem para nada; uma pequena empre-
sa é suficiente.”
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Mas, de acordo com Lenin, a insurreição bolchevique nunca deve ser acu-
sada de ser uma especulação. “A insurreição”, ele disse, “não deve repousar
em uma conspiração nem em um partido, mas na seção avançada da comu-
nidade.” Esse foi o primeiro ponto. A insurreição deve ser sustentada pelo
impulso revolucionário de todo o povo. Esse foi o segundo ponto. A insur-
reição deve irromper na marca d’água alta da maré revolucionária, e esse foi
o terceiro ponto. Esses três pontos marcaram a distinção entre marxismo e
mera especulação. ‘‘Muito bem”, disse Trotsky, “mas toda a população é mui-
to incômoda para uma insurreição. Só precisa haver uma pequena compa-
nhia, de sangue frio e violenta, bem treinada nas táticas de insurreição.”
Lenin admitiu: “Devemos lançar todas as nossas unidades nas fábricas
e quartéis. Lá elas devem permanecer firmes, pois lá está o ponto crucial, a
âncora da Revolução. É lá que o programa OK deve ser explicado e desen-
volvido em discurso ardente e inflamado, com o desafio: Aceitação completa
deste programa, ou insurreição!”
“Muito bem”, disse Trotsky, “mas quando nosso programa for aceito
pelas massas, a insurreição ainda precisa ser organizada. Devemos recorrer
às fábricas e quartéis para adeptos confiáveis e intrépidos. O que precisamos
não é da massa de trabalhadores, desertores e fugitivos, mas tropas de cho-
que.”
“Se quisermos realizar a revolução como marxistas, isto é, como uma
arte”, concordou Lenin, “devemos também, e sem um momento de demora,
organizar o Estado-Maior das tropas insurrecionais, distribuir nossas for-
ças, lançar nossos regimentos leais contra as posições mais salientes, cercar
o teatro Alexandra, ocupar a Fortaleza de Pedro e Paulo e prender o Estado-
-Maior e os membros do governo, atacar os cadetes e cossacos com destaca-
mentos prontos para morrer até o último homem; em vez de permitir que o
inimigo penetre no centro da cidade, devemos mobilizar os trabalhadores
armados, chamá-los para o encontro supremo, assumir as centrais telefônicas
e telegráficas ao mesmo tempo, aquartelar nosso estado-maior insurrecional
na central telefônica e conectá-lo por telefone com todas as fábricas, regi-
mentos e pontos nos quais a luta armada está sendo travada.”
“Muito bem”, disse Trotsky, “mas...”
“Tudo isso é apenas aproximado”, reconheceu Lenin, “mas estou ansio-
so para provar que, neste estágio, não poderíamos permanecer leais a Marx
sem considerar a revolução como uma arte. Você conhece as principais re-
gras desta arte, como Marx as estabeleceu. Quando aplicadas à situação atual
na Rússia, essas regras implicam: uma ofensiva geral tão rápida e repentina
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em Petrogrado quanto possível; atacando tanto de dentro quanto de fora, dos distri-
tos operários na Finlândia, de Reval e de Kronstadt; uma ofensiva com toda a frota;
a concentração de tropas muito superiores às forças do Governo, que serão 20.000
fortes (cadetes e cossacos). Devemos reunir nossas três principais forças, a frota,
os trabalhadores e as unidades militares para assumir os escritórios de telefone e
telégrafo, as estações e as pontes e mantê-los a qualquer custo. Devemos recrutar
os mais tenazes entre nossos grupos de ataque para destacamentos cujo dever será
ocupar todas as pontes importantes e tomar parte em todos os combates decisivos.
Devemos também formar gangues de trabalhadores armados com rifles e granadas
de mão que marcharão sobre as posições inimigas, nas escolas de treinamento de
oficiais e nas centrais telefônicas e telegráficas, e cercá-los. O triunfo da revolução
russa e mundial depende de uma luta de dois ou três dias.”
“Isso tudo é bastante razoável”, disse Trotsky, “mas é muito complicado. O plano
é muito vasto e é uma estratégia que inclui muito território e muitas pessoas. Não é
mais uma insurreição; é uma guerra. Para tomar posse de Petrogrado, é desneces-
sário pegar o trem para a Finlândia. Aqueles que começam de uma distância muito
grande geralmente precisam parar no meio do caminho. Uma ofensiva de 20.000 ho-
mens de Reval ou Kronstadt com o propósito de tomar o teatro de Alexandra é mais
do que o necessário; é mais do que um ataque. No que diz respeito à estratégia, o
próprio Marx poderia ser superado por Kornilov. É preciso se concentrar em táticas,
mover-se em um espaço pequeno com poucos homens, concentrar todos os esforços
nos objetivos principais e atacar com força e em linha reta. Não acho que seja tão
complicado. Coisas perigosas são sempre extremamente simples. Para ter sucesso,
não se deve desafiar uma circunstância desfavorável nem confiar em uma favorável.
Bata no estômago do seu adversário, e o golpe será silencioso. Insurreição é uma
peça de maquinário silencioso. Sua estratégia exige muitas circunstâncias favoráveis.
Insurreição não precisa de nada. Ela é autossuficiente.”
“Suas táticas são extremamente simples”, disse Lenin: “Há apenas uma regra:
ter sucesso. Você prefere Napoleão a Kerenski, não é?”
As palavras que atribuo a Lenin não são inventadas. Elas podem ser encontra-
das, palavra por palavra, nas cartas que ele escreveu ao Comitê Central do Partido
Bolchevique em outubro de 1917.
Aqueles que estão familiarizados com todos os escritos de Lenin, e especial-
mente com suas notas sobre a técnica insurrecional dos Dias de Dezembro em Mos-
cou durante a Revolução de 1905, devem ficar bastante surpresos ao descobrir quão
ingênuas são suas ideias sobre as táticas e técnicas de uma insurreição na véspera
de outubro de 1917. E ainda assim não se deve esquecer que ele e Trotsky sozinhos,
após o fracasso da tentativa de julho, não perderam de vista o principal objetivo da
estratégia revolucionária, que era o golpe de Estado. Após alguma vacilação (em ju-
lho, o Partido Bolchevique tinha apenas
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um objetivo e era de natureza parlamentar: ganhar a maioria nos sovietes), a ideia
de insurreição, como disse Lunacharski, havia se tornado a força motriz de todas as
atividades de Lenin. Mas durante sua estadia na Finlândia, onde se abrigou após as
Jornadas de Julho para evitar cair nas mãos de Kerenski, toda sua atividade se con-
centrou na preparação da revolução em teoria. Não parece haver outra explicação
para a ingenuidade de seu plano de fazer uma ofensiva militar em Petrogrado que
seria apoiada pelos Guardas Vermelhos dentro da cidade. A ofensiva teria terminado
em desastre. Com a estratégia de Lenin em xeque-mate, as táticas de uma insurreição
teriam falhado e os Guardas Vermelhos teriam sido massacrados nas ruas de Petro-
grado. Como ele foi compelido a seguir o curso dos eventos à distância, Lenin não
conseguia compreender a situação em todos os seus detalhes. No entanto, ele visua-
lizou a tendência principal da revolução muito mais claramente do que certos mem-
bros do Comitê Central do partido que se opuseram a uma insurreição imediata. “É
um crime esperar”, escreveu ele aos Comitês Bolcheviques em Petrogrado e Moscou.
E embora o Comitê Central em sua reunião de 10 de outubro, na qual Lenin, re-
cém-retornado da Finlândia, estava presente, tenha votado quase unanimemente por
uma insurreição (apenas Kamenev e Zinoviev discordando), ainda havia uma oposi-
ção secreta entre certos membros do Comitê. Kamenev e Zinoviev foram os únicos
membros que protestaram publicamente contra uma insurreição imediata, mas suas
objeções eram as mesmas que aquelas fomentadas por muitos outros em segredo.
Aqueles que discordaram, em segredo, da decisão de Lenin trouxeram todo o seu
ódio para Trotsky, “o Trotsky pouco atraente”, um novo recruta nas fileiras do bolche-
vismo cujo orgulho estava começando a despertar uma boa dose de ciúme e atenção
entre os velhos guardas de Lenin.
Durante aqueles dias, Lenin se escondeu em um subúrbio de Petrogrado e, sem
perder o contato com a situação como um todo, observou cuidadosamente as ma-
quinações dos adversários de Trotsky. Em um momento como esse, a indecisão em
qualquer forma teria sido fatal para a revolução. Em uma carta ao Comitê Central,
datada de 17 de outubro, Lenin resistiu energicamente às críticas de Kamenev e Zi-
noviev, cujos argumentos pretendiam expor os erros de Trotsky. Eles disseram que
“sem a colaboração das massas e sem o apoio de uma greve geral, a insurreição será
apenas um salto no escuro e fadada ao fracasso. As táticas de Trotsky são uma aposta
pura. Um partido marxista não pode associar a questão de uma insurreição à de uma
conspiração militar.”
Em sua carta de 17 de outubro, Lenin defendeu as táticas de Trotsky: “Trotsky
não está brincando com as ideias de Blanqui”, ele disse. “Uma conspiração militar é
um jogo desse tipo somente se não for organizada pelo partido político de uma classe
definida de pessoas e se os organizadores desconsiderarem a situação política geral
e a situação internacional em particular. Há uma grande diferença entre uma cons-
piração militar, que é deplorável de todos os pontos de vista, e a arte da insurreição
armada.
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” Kamenev e Zinoviev podem responder: “Trotsky não tem repetido constante-
mente que uma insurreição deve desconsiderar a situação política e econômica do
país? Ele não tem afirmado constantemente que uma greve geral é um dos princi-
pais fatores em um golpe de Estado comunista? Como podemos confiar na coo-
peração dos sindicatos e na proclamação de uma greve geral se os sindicatos não
estão conosco, mas no campo do inimigo? Eles farão greve contra nós. Nós nem
mesmo negociamos diretamente com os ferroviários. Em seu Comitê Executivo
há apenas dois bolcheviques para quarenta membros. Como podemos vencer sem
a ajuda dos sindicatos e sem o apoio de uma greve geral?”
Essas objeções eram sérias: Lenin só poderia enfrentá-las com sua decisão ina-
balável. Mas Trotsky sorriu: ele estava calmo. “A insurreição”, ele disse, “não é uma
arte, é um motor. Especialistas técnicos são necessários para iniciá-la e somente
eles poderiam pará-la.”
O grupo de ataque de Trotsky consistia em mil operários, soldados e ma-
rinheiros. A escolha dessa companhia havia sido recrutada entre operários das
fábricas de Putilov e Wiborg, entre marinheiros da frota do Báltico e soldados dos
regimentos letões. Sob as ordens de Antonov-Ovseienko, esses Guardas Verme-
lhos se dedicaram por dez dias a uma série de “manobras invisíveis” no centro da
cidade. Entre a multidão de desertores que lotavam as ruas, em meio ao caos que
reinava nos prédios e escritórios do governo, no Quartel-General, nos Correios,
centrais telefônicas e telegráficas, nas estações, quartéis e sedes dos serviços técni-
cos da cidade, eles praticavam táticas insurrecionais, desarmados e em plena luz
do dia. E seus pequenos grupos de três ou quatro homens passavam despercebi-
dos.
As táticas de “manobras invisíveis” e a prática de ação insurrecional que
Trotsky demonstrou pela primeira vez durante o golpe de Estado de outubro de
1917 agora fazem parte da estratégia revolucionária da Terceira Internacional. Os
princípios que Trotsky aplicou são todos declarados e desenvolvidos nos manuais
do Comintern. Na Universidade Chinesa em Moscou, entre os assuntos ensina-
dos, há “as táticas de manobras invisíveis”, que Karakan, com a experiência de
Trotsky como orientação, aplicou com tanto sucesso em Xangai. Na Universidade
Sun-Yat-Sen em Moscou, os estudantes chineses aprendem os mesmos princípios
que as organizações comunistas alemãs colocam em prática todos os domingos
para entrar em treinamento para as táticas de insurreição; e eles fazem isso em
plena luz do dia, sob o nariz da polícia e dos cidadãos sóbrios de Berlim, Dresden
e Hamburgo.
Em outubro de 1917, durante os dias que antecederam o golpe de Estado, a
imprensa revolucionária reacionária, liberal, menchevique e socialista não deixou
de esclarecer a opinião pública sobre as atividades do Partido Bolchevique, que
preparava abertamente uma insurreição.
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Acusou Lenin e Trotsky de tentarem derrubar a república democrática para esta-
belecer uma ditadura do proletariado. Eles não estavam tentando disfarçar suas
intenções criminosas, disse a imprensa da classe média, a revolução proletária
estava sendo organizada em plena luz do dia. Quando os líderes bolcheviques fi-
zeram discursos para as massas de trabalhadores e soldados reunidos nas fábricas
e quartéis, eles proclamaram em voz alta que tudo estava pronto e que o dia da re-
volução estava se aproximando. O que o governo estava fazendo? Por que Lenin,
Trotsky e o outro membro: do Comitê Central não foram presos? Quais medidas
estavam sendo tomadas para proteger a Rússia do perigo bolchevique?
É incorreto dizer que o Governo de Kerenski não tomou as medidas necessárias
para a defesa do Estado. Kerenski deve receber o devido crédito por ter feito tudo
ao seu alcance para impedir um golpe de Estado. Se Poincarié, Lloyd George, Ma-
cDonald, Giolitti ou Stresemann estivessem em seu lugar, eles não teriam agido de
outra forma.
O sistema de defesa de Kerenski consistia em usar os métodos policiais que
sempre foram confiáveis e ainda são confiáveis hoje por governos absolutos e
liberais. Mas esses métodos policiais não podem mais defender adequadamente o
Estado da técnica moderna de insurreição. O erro de Kerenski foi o erro de todos
os governos que consideram o problema da defesa do Estado como um problema
policial.
Aqueles que acusam Kerenski de falta de previsão e incompetência esque-
cem a habilidade e coragem que ele demonstrou nas Jornadas de Julho contra a
revolta dos trabalhadores e desertores e novamente em agosto contra o empreen-
dimento reacionário de Kornilov. Em agosto, ele não hesitou em convocar os pró-
prios bolcheviques para impedir que os cossacos de Kornilov varressem as vitó-
rias democráticas da revolução de fevereiro. Nesta ocasião, ele surpreendeu Lenin:
“Devemos tomar cuidado com Kerenski”, disse ele, “ele não é tolo”. Kerenski deve
ter o que lhe é devido: era impossível para ele, em outubro, agir de forma diferen-
te da maneira como agiu. Trotsky havia dito que a defesa do estado era uma ques-
tão de método. Além disso, em outubro de 1917, apenas um método era conheci-
do; apenas um poderia ser aplicado, seja por Kerenski, Lloyd George, Poincaré ou
Noske: o método clássico de confiar na polícia.
Para enfrentar o perigo, Kerenski tomou o cuidado de guarnecer o Palácio
de Inverno, o Palácio de Tauride, os escritórios do Governo, as centrais telefôni-
cas e telegráficas e o Quartel-General com cadetes militares e cossacos leais. Os
20.000 homens com os quais ele podia contar dentro da capital foram assim mo-
bilizados para proteger os pontos estratégicos na organização política e burocráti-
ca do Estado. (Este foi o erro pelo qual Trotsky se beneficiaria.) Outros regimen-
tos confiáveis foram reunidos na vizinhança de Tsarkoié Selo,
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Kolpino, Gatchina, Oboukhovo e Pulkovo — um anel de ferro que a insurreição
bolchevique deveria romper se não quisesse ser sufocada. Todas as medidas que
poderiam salvaguardar o governo foram tomadas, e destacamentos de cadetes patru-
lhavam a cidade dia e noite. Havia grupos de metralhadoras nas encruzilhadas, nos
telhados, ao longo de toda a Nevski Prospect e em cada extremidade das ruas princi-
pais, para impedir o acesso às praças. Patrulhas militares passavam de um lado para
o outro entre as multidões: carros blindados se moviam lentamente, abrindo uma
passagem com o longo uivo de suas buzinas. O caos era terrível. “Aí está minha greve
geral”, disse Trotsky a Antovov Ovseienko, apontando para as multidões agitadas na
Nevski Prospect.
Enquanto isso, Kerenski não se contentou com meras medidas policiais; ele colo-
cou toda a máquina política em movimento. Ele não queria apenas reunir a direita,
mas também tornar a garantia duplamente segura por meio de um acordo com a
esquerda. Ele estava mais preocupado com os sindicatos. Ele sabia que seus líderes
não estavam de acordo com os bolcheviques. Esse fato explicava a crítica de Kamene-
v-Zinoviev à ideia de insurreição de Trotsky. Uma greve geral era um fator indispen-
sável para a insurreição. Sem ela, os bolcheviques não poderiam se sentir seguros e
sua tentativa estava fadada ao fracasso. Trotsky descreveu a revolução como “atingir
um homem paralisado”. Se a insurreição fosse bem-sucedida, a vida em Petrogrado
deveria ser paralisada por uma greve geral. Os líderes sindicais não simpatizavam
com os bolcheviques, mas sua base organizada se inclinava para Lenin. Se as massas
não pudessem ser conquistadas, então Kerenski gostaria de ter os líderes do seu lado:
ele entrou em negociações com elas e, finalmente, mas não sem luta, obteve sucesso
em obter sua neutralidade. Quando Lenin ouviu sobre isso, ele disse a Trotsky: “Ka-
menev estava certo. Sem uma greve geral para apoiá-lo, suas táticas só podem falhar.”
‘‘Eu tenho a desorganização do meu lado,” Trotsky respondeu, “e isso é melhor do
que uma greve geral.”
Para entender o plano de Trotsky, é preciso apreciar a condição de Petrogrado
naquela época. Havia enormes multidões de desertores que haviam deixado as trin-
cheiras no início da revolução de fevereiro e se amontoaram na capital e se jogaram
nela como se fossem destruir o novo templo da liberdade. Durante os últimos seis
meses, eles estavam acampados no meio das ruas e praças, esfarrapados como esta-
vam, sujos, miseráveis, bêbados ou famintos, tímidos ou ferozes, igualmente prontos
para se revoltar ou fugir, seus corações queimando com uma sede de vingança e paz.
Eles estavam sentados lá em uma fileira sem fim, na calçada da Nevski Prospect, ao
lado de um fluxo de humanidade que fluía lenta e turbulentamente. Eles vendiam
armas, folhetos de propaganda e sementes de girassol. Havia um caos indescritível na
Praça Zramenskaia, em frente à estação ferroviária de Moscou: a multidão se lançava
contra o muro, recuava e avançava novamente com vigor renovado até quebrar como
uma onda espumante em uma pilha de carroças, vans e bondes empilhados em fren-
te à estátua de Alexandre III, e com um barulho ensurdecedor que, de longe, soava
como o grito de um massacre.
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Sobre a ponte Fontanka, no cruzamento entre as avenidas Nevski e Liteyni, jor-
naleiros vendiam seus jornais: eles gritavam as notícias a plenos pulmões, sobre as
precauções tomadas por Kerenski, as proclamações do Comitê Militar Revolucio-
nário, do Soviete e da Duma Municipal, os decretos do Coronel Polkovnikov, que
estava no comando da praça e que ameaçava prender todos os desertores e proibia
manifestações, reuniões e brigas. Trabalhadores, soldados, estudantes, funcionários
e marinheiros nas esquinas debatiam a plenos pulmões e com gestos amplos. Nos
cafés e stalovaie em todos os lugares, as pessoas riam das proclamações do Coronel
Polkovnikov, que fingiam que os 200.000 desertores em Petrogrado poderiam ser
presos e que as brigas poderiam ser proibidas. Em frente ao Palácio de Inverno ha-
via dois canhões de 75 cm, e atrás deles os cadetes em seus longos sobretudos anda-
vam nervosamente de um lado para o outro. Em frente ao edifício do Estado-Maior,
duas fileiras de automóveis militares estavam dispostas. Perto do Almirantado, nos
Jardins de Alexandre, um batalhão de mulheres estava sentado no chão ao redor de
seus rifles empilhados.
A Praça Marinskaia estava lotada de trabalhadores, marinheiros e desertores
esfarrapados e abatidos. A entrada do Palácio Maria, onde o Conselho Republicano
se reunia, era guardada por um destacamento de cossacos, com suas altas chapkas
pretas inclinadas sobre uma orelha. Eles falavam em voz alta, fumando e rindo. Um
espectador do topo da Catedral de Isaac poderia ter visto pesadas nuvens de fuma-
ça sobre as fábricas de Putilov, onde os homens trabalhavam com rifles carregados
pendurados em volta dos ombros; além disso, o Golfo da Finlândia; e, atrás da ilha
de Rothine, Kronstadt, “a fortaleza vermelha”, onde os marinheiros de olhos azuis
esperavam o sinal de Dybenko para marchar em auxílio de Trotsky e massacrar os
cadetes. Do outro lado da cidade, uma nuvem avermelhada pairava sobre as inúme-
ras chaminés do subúrbio de Wiborg, onde Lenin estava escondido, bastante pálido
e febril, usando aquela peruca que o fazia parecer um pequeno ator provinciano.
Ninguém poderia ter tomado esse homem, sem barba e com seu cabelo falso bem
colado na testa, pelo terrível Lenin que podia fazer a Rússia tremer. Foi lá, nas fá-
bricas de Wiborg, que a Guarda Vermelha de Trotsky esperava o sinal de Antonov
Ovseienko. As mulheres nos subúrbios tinham rostos tristes e seus olhos se torna-
ram duros. Ao anoitecer, assim que a escuridão varreu as ruas, grupos de mulheres
armadas se moveram em direção ao centro da cidade. Esses foram dias de migração
proletária: enormes massas passavam de uma ponta a outra de Petrogrado, depois
voltavam para seus alojamentos após horas e horas de caminhada de ida e volta para
reuniões, manifestações e tumultos. Houve reunião após reunião no quartel e na
fábrica. “Todo o poder aos sovietes!” As vozes roucas dos oradores foram sufocadas
nas dobras das bandeiras vermelhas. Os soldados de Kerenski, operando as metra-
lhadoras nos telhados, ouviam as vozes roucas lá embaixo enquanto mastigavam
suas sementes de girassol e jogavam as conchas nas multidões que lotavam as ruas.
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A escuridão desceu sobre a cidade como uma nuvem negra. Na enorme Nevski Pros-
pect, o fluxo de desertores fluía em direção ao Almirantado. Havia centenas de solda-
dos, mulheres e trabalhadores acampados em frente à Catedral de Kazan, deitados no
chão. A cidade inteira estava em meio ao medo, à desordem e ao frenesi. E de repente,
dessa multidão, surgiam homens armados com facas e loucos de insônia, e se jogavam
nas patrulhas de cadetes e nos batalhões femininos que defendiam o Palácio de Inver-
no. Outros invadiam as casas para buscar o burguês em sua própria casa, pegando-o na
cama e bem acordado. A cidade estava sem dormir com a febre da insurreição. Como
Lady Macbeth, Petrogrado não conseguia mais dormir. Suas noites eram assombradas
pelo cheiro de sangue.
Os Guardas Vermelhos de Trotsky estavam ensaiando bem no centro da cidade
durante os últimos dez dias. Antonov Ovseienko foi quem organizou esses exercícios
táticos, esse tipo de ensaio geral do golpe de estado, em plena luz do dia, onde quer
que as ruas estivessem lotadas de movimento e em volta dos prédios, que eram da
maior importância estratégica nas fortalezas mentais e políticas do governo. A polícia
e as autoridades militares estavam tão obcecadas pela ideia de uma revolta repentina
das massas proletárias e tão preocupadas em enfrentar o perigo que não notaram as
gangues de Antonov Ovseienko em ação. Em meio a uma desordem tão generalizada,
quem deveria notar os pequenos grupos de trabalhadores desarmados — os soldados e
os marinheiros — que vagavam pelos corredores das centrais telefônicas e telegráficas,
no Correio Central, nos escritórios do governo e no Quartel-General, tomando nota da
disposição dos escritórios e vendo como os telefones e as luzes estavam instalados? Eles
visualizaram e se lembraram do plano desses edifícios e estudaram os meios de entrar
neles repentinamente e em um momento de aviso. Eles calcularam suas chances de
sucesso, estimando a oposição e procurando os lugares de menor resistência, os lugares
mais fracos e vulneráveis na organização defensiva dos serviços técnicos, militares e de
secretaria do estado. Na confusão geral, quem deveria notar alguns três ou quatro mari-
nheiros, alguns soldados ou um trabalhador perdido vagando por alguns edifícios, en-
trando e subindo as escadas — pessoas que nem mesmo se olhavam quando se encon-
travam? Ninguém sequer suspeitava que essas pessoas obedecessem a ordens precisas
e detalhadas, de executar um plano ou de passar por exercícios direcionados contra os
pontos estratégicos na defesa do estado. Mais tarde, os Guardas Vermelhos atacariam
efetivamente porque haviam conduzido suas manobras invisíveis no próprio solo onde
a batalha começaria em breve.
Trotsky conseguiu obter o plano dos serviços técnicos da cidade. Os marinheiros
de Dybenko, auxiliados por dois engenheiros e artífices da sala de máquinas, domina-
ram a tubulação subterrânea de gás e água, os cabos de energia elétrica e o sistema de
telefone e telégrafo. Dois deles exploraram os drenos sob a sede do Estado-Maior. O
isolamento de um distrito inteiro ou mesmo de um mero grupo de casas tinha que ser
tornado praticável em poucos minutos, então Trotsky dividiu a cidade em seções, de-
terminou quais eram os pontos estratégicos e distribuiu o trabalho, seção por seção, a
gangues de soldados e trabalhadores qualificados.
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Especialistas técnicos eram necessários, assim como soldados. A captura da
estação ferroviária em Moscou foi atribuída a dois esquadrões consistindo de 25
soldados letões, 2 marinheiros e 10 ferroviários. Três gangues de marinheiros,
operários e funcionários ferroviários, 160 homens no total, receberam ordens
para assumir a estação em Varsóvia. Para a captura de outras estações, Dybenko
designou um número de esquadrões de 20 homens cada. Um telegrafista ligado a
cada esquadrão controlava os movimentos nas linhas ferroviárias. Em 21 de ou-
tubro, agindo sob ordens de Antonov Ovseienko, que estava em contato próximo
com as manobras, todas as gangues ensaiaram a captura das estações ferroviárias,
e o ensaio geral foi perfeitamente bem ordenado e preciso em todos os detalhes.
Naquele dia, três marinheiros foram para a Usina Principal de Eletricidade perto
do porto; a usina, administrada pelos serviços técnicos da cidade, nem mesmo
era vigiada. O gerente perguntou aos marinheiros se eles eram os homens que
ele havia pedido ao Comandante da Praça para enviá-lo. Ele estava querendo um
guarda pelos últimos cinco dias. Os três marinheiros assumiram a defesa da usina
elétrica em caso de insurreição, eles disseram. Da mesma forma, algumas gangues
de artesãos de máquinas tomaram conta das outras três usinas municipais.
A polícia de Kerenski e as autoridades militares estavam especialmente pre-
ocupadas com a defesa das organizações oficiais e políticas do Estado: os escritó-
rios do Governo, o Palácio Maria onde o conselho republicano se reunia, o Palá-
cio Tauride, sede da Duma, o Palácio de Inverno e o Quartel-General do General.
Quando Trotsky descobriu esse erro, ele decidiu atacar apenas os ramos técnicos
do Governo nacional e municipal. A insurreição para ele era apenas uma questão
de técnica. “Para derrubar o Estado moderno”, ele disse, “você precisa de um gru-
po de ataque, especialistas técnicos e gangues de homens armados liderados por
engenheiros”.
Enquanto Trotsky organizava o golpe de Estado em uma base racional, o
Comitê Central do Partido Bolchevique estava ocupado organizando a revolução
proletária. Stalin, Sverdlov, Boubrov, Ouritzki e Dzerjinski, os membros deste
comitê que estavam desenvolvendo o plano da revolta geral eram quase todos
abertamente hostis a Trotsky. Esses homens não sentiam confiança na insurreição
como Trotsky a planejou, e dez anos depois Stalin deu a eles todo o crédito pelo
golpe de Estado de outubro.
De que serviam os mil homens de Trotsky? Os cadetes poderiam lidar com
eles tão facilmente. A tarefa certamente era despertar as massas proletárias, os
milhares e milhares de empregados das obras de Putilov e Wiborg, a enorme mul-
tidão de desertores e os simpatizantes bolcheviques dentro da guarnição de Petro-
grado, eram estes que deveriam ser incitados contra o governo. Uma grande re-
belião deveria ser iniciada. Trotsky, com seus grupos de ataque, parecia um aliado
inútil e perigoso.
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A Comissão considerou a revolução da mesma forma que Kerenski, como uma questão
principalmente relacionada à polícia. E, estranhamente, o homem que mais tarde criou
a polícia bolchevique (depois conhecida como G. P. U.) pertencia a esta Comissão. Dzer-
jinski, pálido e ansioso, estudou a defesa do governo de Kerenski e decidiu o plano de
ataque. Ele era o mais formidável e o mais traiçoeiro de todos os críticos de Trotsky, e era
tão tímido quanto uma mulher em seu fanatismo. Ele até se negou a olhar para suas mãos
para ver se estavam manchadas com seus atos. Dzerjinski morreu no Bench durante seu
processo contra Trotsky em 1926.
Na véspera do golpe de Estado, Trotsky disse a Dzerjinski que o governo de Ke-
renski deveria ser completamente ignorado pelos Guardas Vermelhos; que o principal era
capturar o Estado e não lutar contra o Governo com metralhadoras; que o Conselho Re-
publicano, os Ministérios e a Duma desempenhavam um papel sem importância nas tá-
ticas de insurreição e não deveriam ser os objetivos de uma rebelião armada; que a chave
para o Estado não estava em suas organizações políticas e secretariais, nem nos Palácios
de Tauride, Maria ou Inverno, mas em seus serviços técnicos, como as estações elétricas,
os escritórios de telefone e telégrafo, o porto, as fábricas de gás e as redes de água. Dzer-
jinski respondeu que a insurreição deveria ser planejada para antecipar os movimentos
do inimigo e que este último deveria ser atacado em suas fortalezas. “Devemos atacar o
Governo e derrotá-lo no próprio terreno onde ele está defendendo o Estado. Se o inimigo
recuar para os escritórios do Governo, para os Palácios Maria, Tauride ou de Inverno, ele
deve ser expulso deles. Para obter a posse do Estado”, disse Dzerjinski, “devemos lançar as
massas contra o Governo”.
O mais importante no plano da Comissão para a insurreição era a neutralidade
dos sindicatos. O estado poderia realmente ser derrubado sem a assistência da Greve do
Género 1? “Não”, disseram tanto o Comitê Central quanto a Comissão, “a greve deve ser
iniciada fazendo com que as massas participem da própria insurreição. As táticas de uma
insurreição geral e não as de revoltas isoladas vão nos permitir lançar as massas contra o
governo e promover uma greve geral. “Uma greve geral é desnecessária”, respondeu Trot-
sky. “O caos em Petrogrado é mais útil para o nosso propósito do que uma greve geral. O
governo não pode lidar com uma insurreição quando uma organização geral paralisa o
estado. Como não podemos confiar na greve, confiaremos no caos.”
Diz-se que a Comissão se opôs às táticas de Trotsky com base no fato de que sua
visão da situação era muito otimista. Trotsky, na verdade, estava inclinado a ser pessimis-
ta; ele julgou a situação mais séria do que a maioria das pessoas pensava. Ele não confiava
nas massas e sabia muito bem que a insurreição teria que ser feita por uma minoria. A
promoção de uma Greve Geral com a ideia de alistar as massas em uma batalha real con-
tra o Governo era uma ilusão. A insurreição só poderia ser feita por uma minoria. Trotsky
estava convencido de que se uma Greve Geral estourasse, ela seria direcionada contra os
Bolcheviques e que, para evitar tal Greve Geral, o poder deveria ser imediatamente toma-
do. Eventos subsequentes provaram que Trotsky estava certo. Quando os ferroviários, os
funcionários dos correios, telégrafos e telefones, as secretarias dos escritórios do Governo
e os funcionários dos serviços públicos deixaram o trabalho, era tarde demais. Lenin já
estava no poder: Trotsky havia quebrado a espinha dorsal da greve geral.
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As objeções dos Comitês Centrais às táticas de Trotsky eram um paradoxo que pode-
ria ter comprometido o sucesso da insurreição. Na véspera do golpe de Estado, havia duas
Sedes, dois planos de ação e dois objetivos diferentes. A Comissão, contando com a massa
de trabalhadores e desertores, queria capturar o Governo para tomar o Estado. Trotsky, que
contava com cerca de mil homens, queria capturar o Estado para derrubar o Governo. O
próprio Marx teria considerado as circunstâncias mais favoráveis ao plano da Comissão
do que ao de Trotsky. Mas Trotsky havia dito: “Uma insurreição não requer circunstâncias
favoráveis”.
Em 24 de outubro, em plena luz do dia, Trotsky lançou o ataque. O plano de opera-
ções havia sido elaborado por um ex-oficial do exército imperial, Antonov Ovseienko, que
também era conhecido como matemático, jogador de xadrez, revolucionário e exilado. Le-
nin, referindo-se às táticas de Trotsky, disse uma vez sobre Antonov Ovseienko que apenas
um jogador de xadrez como ele poderia organizar a insurreição.
Antonov Ovseienko tinha uma expressão melancólica e doentia. Ele parecia bastante
com Napoleão antes do 18 de Brumário, com seus longos cabelos caindo sobre os ombros:
mas seus olhos estavam sem vida e seu rosto fino e pálido era o de um homem triste e do-
entio.
Antonov Ovseienko estava jogando xadrez em um mapa topográfico de Petrogrado
em uma pequena sala no último andar do Instituto Smolny, o Quartel-General do Partido
Bolchevique. Abaixo dele, no andar seguinte, a comissão se reunia para fixar o dia da in-
surreição geral. A Comissão mal imaginava que Trotsky já havia lançado o ataque. Somente
Lenin havia sido informado, no último minuto, da decisão repentina de Trotsky. A Comis-
são manteve a palavra de Lenin. Ele não havia dito que tanto o dia 2 quanto o dia 24 seriam
muito cedo e o dia 26 muito tarde? Mal a Comissão se reuniu para decidir definitivamente
a data, Podvoisky chegou com notícias inesperadas. Os Guardas Vermelhos de Trotsky já
haviam tomado o principal escritório de telégrafo e as pontes de Neva. Essas pontes tiveram
que ser mantidas para garantir as linhas de comunicação entre o centro da cidade e o dis-
trito operário de Wiborg. Os marinheiros de Dybenko já ocupavam as estações municipais
de eletricidade, as usinas de gás e as estações ferroviárias. As coisas aconteceram com uma
velocidade e ordem inimagináveis. O principal escritório do telégrafo estava sendo defen-
dido por cerca de cinquenta policiais e soldados alinhados em frente ao prédio. A insufici-
ência das medidas policiais foi evidenciada por essas táticas de defesa chamadas de “serviço
de ordem e proteção”, que podem dar bons resultados quando direcionadas contra uma
multidão em revolta, mas não contra um punhado de combatentes determinados. As me-
didas policiais são inúteis diante de um ataque surpresa. Três dos marinheiros de Dybenko,
que haviam participado das “manobras invisíveis” e já conheciam o terreno, entraram entre
os que estavam defendendo, direto nos escritórios, e jogando algumas granadas de mão da
janela para a rua, conseguiram criar o caos entre a polícia e os soldados. Dois esquadrões
de marinheiros tomaram suas posições com metralhadoras no principal escritório do te-
légrafo. Um terceiro esquadrão, postado na casa em frente, estava pronto para enfrentar
um possível contra-ataque atirando na retaguarda dos agressores. As comunicações entre o
Instituto Smolny e os vários grupos que trabalhavam em diferentes distritos da cidade eram
asseguradas por carros blindados. Metralhadoras eram escondidas nas casas nas principais
encruzilhadas; esquadrões voadores vigiavam os quartéis daqueles regimentos que perma-
neceram leais a Kerenski.
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Por volta das seis horas daquela noite, Antonov Ovseienko, mais pálido do que o
normal, mas sorrindo, entrou no quarto de Lenin no Instituto Smolny. “Acabou”, ele
disse. Os membros do Governo, pegos de surpresa por esses eventos, buscaram refúgio
no Palácio de Inverno, defendido por algumas companhias de Cadetes e um batalhão
de mulheres. Kerenski havia fugido. Eles disseram que ele estava na Frente para reunir
tropas e marchar sobre Petrogrado. Toda a população saiu às ruas, ansiosa por notícias.
Lojas, cafés, restaurantes, cinemas e teatros estavam todos abertos; os bondes estavam
cheios de soldados e trabalhadores armados e uma enorme multidão na Nevski Pros-
pect fluía como um grande rio. Todos estavam falando, discutindo e xingando o Gover-
no ou os Bolcheviques. Os rumores mais selvagens se espalharam de grupo para grupo:
Kerenski morto, os chefes da minoria menchevique fuzilados em frente ao Palácio
Tauride; Lenin sentado no quarto do Czar no Palácio de Inverno.
Uma grande multidão se apressou continuamente em direção aos Jardins de
Alexandre, vindos da Nevski Prospect, das ruas Gorokovskaia e Vosnessenski (aquelas
três grandes estradas que se encontram no Almirantado), para ver se a Bandeira Ver-
melha já estava tremulando no Palácio de Inverno. Quando a multidão viu os cadetes
defendendo o palácio, recuou. As metralhadoras, as janelas iluminadas, a praça deserta
e os motores parados em frente ao Quartel-General eram uma visão perturbadora. A
multidão observava de longe, sem entender a situação. E Lenin? Onde ele estava? Onde
estavam os bolcheviques?
Enquanto isso, nenhum de seus oponentes, fossem liberais, reacionários, men-
cheviques ou socialistas revolucionários, conseguiam entender a situação. Eles se re-
cusavam a acreditar que os bolcheviques haviam capturado o Estado. Esses rumores,
eles argumentavam, provavelmente foram divulgados por agentes pagos do Instituto
Smolny: na verdade, os escritórios do governo só foram transferidos para o Palácio de
Inverno como medida de precaução; se as notícias do dia estivessem corretas, então
não houve um golpe de Estado, mas sim uma série de ataques armados mais ou menos
bem-sucedidos (nada definitivo ainda era conhecido) à organização dos serviços públi-
cos do Estado e da cidade. Os órgãos legislativos, políticos e administrativos ainda es-
tavam nas mãos de Kerenski. Os palácios Tauride e Maria, e os ministérios nem sequer
foram atacados. A situação era certamente paradoxal: nunca antes uma insurreição ha-
via alegado ter capturado o Estado sem sequer atacar o governo. Parecia que os bolche-
viques não se importavam com o governo. Por que os escritórios do governo não foram
tomados? Poderia alguém dominar o Estado e governar a Rússia sem sequer controlar a
administração do Estado? Os bolcheviques, é claro, capturaram todos os serviços pú-
blicos, mas Kerenski não renunciou. Ele ainda era o chefe do Governo, mesmo que, no
momento, os serviços públicos, as ferrovias, as usinas elétricas, o telefone, o telégrafo
e os Correios, o Banco do Estado e os depósitos de carvão, petróleo e grãos não esti-
vessem sob seu controle. Se, de fato, os Ministros no Palácio de Inverno não pudessem
governar; os escritórios do Governo não estavam funcionando, o Governo havia sido
cortado do resto da Rússia e todos os meios de comunicação estavam nas mãos dos
Bolcheviques. Todas as estradas nos subúrbios estavam barricadas; ninguém podia sair
da cidade. O Quartel-General estava cortado. Os Bolcheviques haviam assumido a
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principal estação de telegrafia sem fio; os Guardas Vermelhos estavam alojados na for-
taleza de Pedro e Paulo e vários regimentos pertencentes à guarnição de Petrogrado já
estavam agindo sob ordens do Comitê Militar Revolucionário. A ação deve ser tomada
imediatamente. Por que o Estado-Maior estava ocioso? Dizia-se que estava esperando
as tropas de Krasnov que marchavam para a capital. Todas as medidas necessárias para
a defesa do Governo tinham sido tomadas. Se os bolcheviques ainda não tinham deci-
dido atacar o Governo, isso devia significar que ainda não sentiam que sua posição era
poderosa o suficiente para fazê-lo. Nem tudo estava perdido ainda.principal estação de
telegrafia sem fio; os Guardas Vermelhos estavam alojados na fortaleza de Pedro e Pau-
lo e vários regimentos pertencentes à guarnição de Petrogrado já estavam agindo sob
ordens do Comitê Militar Revolucionário. A ação deve ser tomada imediatamente. Por
que o Estado-Maior estava ocioso? Dizia-se que estava esperando as tropas de Krasnov
que marchavam para a capital. Todas as medidas necessárias para a defesa do Governo
tinham sido tomadas. Se os bolcheviques ainda não tinham decidido atacar o Governo,
isso devia significar que ainda não sentiam que sua posição era poderosa o suficiente
para fazê-lo. Nem tudo estava perdido ainda.
No dia seguinte, 25 de outubro, durante a abertura do segundo Congresso Pan-Russo
do Soviete no Instituto Smolny, Trotsky ordenou que Antonov Ovseienko atacasse o
Palácio de Inverno, onde os ministros de Kerenski haviam se refugiado, e agora a ques-
tão era: os bolcheviques ganhariam a maioria no Congresso?
Os sovietes de toda a Rússia não acreditariam que a insurreição foi bem-sucedida
com o mero anúncio de que os bolcheviques capturaram o Estado. Eles devem ser in-
formados de que os Guardas Vermelhos capturaram os Membros do Governo. Trotsky
disse a Lenin: “Essa é a única maneira de convencer o Comitê Central e a Comissão de
que o golpe de Estado não foi um fracasso.”
“Você tomou sua decisão um pouco tarde”, respondeu Lenin.
“Eu não podia atacar o Governo antes de estar convencido de que a guarnição
não viria em seu socorro”, respondeu Trotsky, “eu tinha que dar tempo aos soldados
para virem para o nosso lado. Apenas os Cadetes permaneceram leais.”
Então Lenin, com sua peruca, sem barba e disfarçado de operário, deixou seu
esconderijo para o Instituto Smolny para participar do Congresso Soviético. Foi o
momento mais triste de sua vida, pois ele pensou que a insurreição havia fracassado.
Como o Comitê Central, a Comissão e a maior parte dos delegados no Congresso,
Lenin precisava de provas da queda do Governo e da captura dos Ministros de Kerenski
pelos Guardas Vermelhos. Ele desconfiava do orgulho de Trotsky, de sua autoconfiança
e de suas artimanhas imprudentes. Trotsky não era membro da Velha Guarda, ele não
era um bolchevique absolutamente confiável, mas um novo recruta que se juntou ao
Partido após os Dias de Julho. “Eu não sou um dos Doze”, disse Trotsky, “mas sou mais
como São Paulo, que foi o primeiro a pregar aos gentios”.
Lenin nunca foi muito atraído por Trotsky. Trotsky era geralmente impopular.
Sua eloquência era suspeita. Ele tinha aquele dom perigoso de influenciar as massas e
desencadear uma revolta. Ele podia dividir um Partido, inventar uma heresia - mas, por
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mais formidável que fosse, era um homem de que elas precisavam. Lenin havia notado há
muito tempo que Trotsky apreciava comparações históricas. Quando falava em reuniões
ou assembleias ou participava de um dos debates do Partido, ele constantemente se referia
à Revolta Puritana de Cromwell ou à Revolução Francesa. É preciso ter cuidado com um
homem que julga e estima os homens e os eventos da Revolução Bolchevique pelo padrão
dos homens e eventos da Revolução Francesa. Lenin nunca poderia esquecer como Trotsky,
assim que saiu da prisão de Kresty, onde havia sido trancado após os Dias de Julho, entrou
no Soviete em Petrogrado e, no decorrer de um discurso violento, defendeu a necessida-
de de um reinado de terror jacobino. “A guilhotina leva a um Napoleão”, os mencheviques
gritaram para ele. “Prefiro Napoleão a Kerenski”, Trotsky respondeu de volta. Lenin nunca
iria esquecer essa resposta. Dzerjinsky mais tarde costumava dizer sobre Trotsky: “Ele gosta
mais de Napoleão do que de Lenin.”
O segundo Congresso Soviético Pan-Russo estava se reunindo no salão principal do Ins-
tituto Smolny, e na sala ao lado, Lenin e Trotsky estavam sentados em uma mesa repleta de
papéis e jornais.
Um cacho da peruca de Lenin pendia em sua testa. Trotsky não pôde deixar de sorrir
ao ver um disfarce tão absurdo. Ele pensou que havia chegado o momento de Lenin tirar
a peruca, já que não havia mais perigo. A insurreição havia triunfado e Lenin era virtual-
mente o governante da Rússia. Agora, pelo menos, ele podia deixar sua barba crescer, tirar
a peruca e fazer uma aparição em público. Dan e Skobelov, os dois líderes da maioria men-
chevique, passaram na frente de Lenin a caminho do Salão do Congresso. Eles trocaram um
olhar e ficaram mais pálidos ao ver o pequeno ator provinciano de peruca, a quem pareciam
reconhecer como o homem que poderia aniquilar completamente a Santa Rússia.
“Está tudo acabado”, Dan disse suavemente para Skobelov. “Por que você ainda está
disfarçado?” Trotsky perguntou a Lenin. “Aqueles que venceram geralmente não se escon-
dem.” Lenin o examinou, seus olhos semicerrados, com um sorriso irônico apenas brin-
cando em seus lábios. Quem tinha vencido? Essa era a questão. De tempos em tempos, o
estrondo da artilharia e o rat-tat-tat das metralhadoras podiam ser ouvidos à distância. O
cruzador Aurora, ancorado no Neva, tinha acabado de abrir fogo contra o Palácio de Inver-
no para apoiar os Guardas Vermelhos que o estavam atacando.
Eles agora estavam acompanhados por Dybenko, muito alto, de olhos azuis, seu rosto
emoldurado por cabelos claros e macios: tanto os marinheiros de Kronstadt quanto Mada-
me Kollontai o amavam por seus olhos transparentes e por sua crueldade. Dybenko trouxe
a notícia de que os Guardas Vermelhos de AntonovOvseieniko haviam invadido o Palácio
de Inverno, que os Ministros de Kerenski eram prisioneiros dos Bolcheviques e que o Go-
verno havia caído. “Finalmente!”, gritou Lenin. “Você está 124 horas atrasado”, respondeu
Trotsky. Lenin tirou a peruca e passou a mão pela testa. (H. G. Wells disse uma vez sobre
Lenin que seu crânio tinha o mesmo formato do de Lord Balfour.) “Vamos”, disse Lenin,
entrando no Salão do Congresso. Trotsky o seguiu em silêncio. Ele parecia cansado e uma
espécie de sonolência escureceu seus olhos de aço. Lunacharski declara que Trotsky, du-
rante a insurreição, o lembrava de uma Garrafa de Leyden. Mas agora que o Governo havia
caído, Lenin tirou a peruca, como alguém tira uma máscara. O golpe de Estado foi um feito
de Trotsky. O homem que lucrou com isso, o Chefe e o Ditador, foi Lenin.
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Trotsky o seguiu em silêncio, com um sorriso duvidoso que nunca se transformou
em gentileza até a morte de Lenin.
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CAPÍTULO DOIS
Stalin foi o único estadista europeu que soube como se beneficiar da lição de outu-
bro de 1917. Se todos os comunistas europeus devem recorrer a Trotsky para obter seu
conhecimento da arte de capturar o Estado, então os governos liberais e democráticos
devem recorrer a Stalin se quiserem aprender a arte de defendê-lo com sucesso contra
as táticas comunistas de insurreição, ou seja, contra as táticas de Trotsky.
A luta entre Stalin e Trotsky é de longe o incidente mais edificante na história polí-
tica da Europa, nestes últimos dez anos. Oficialmente, a luta se originou muitos anos
antes da Revolução de Outubro de 1917. Foi depois do Congresso de Londres em 1903,
quando ocorreu a divisão entre Lenin e Martoff, entre bolcheviques e mencheviques,
que Trotsky discordou abertamente das ideias de Lenin. Embora ele não tenha se jun-
tado ao partido de Martoff, ele achou o programa menchevique muito mais atraente do
que o dos bolcheviques. Mas, na realidade, todas essas origens pessoais e doutrinárias,
e o fato de que o perigo do trotskismo (ou seja, de desvios, deformações e heresia) na
interpretação do pensamento de Lenin teve que ser suprimido, eram apenas pretextos
e justificativas oficiais para uma hostilidade cuja origem estava profundamente na pró-
pria mentalidade bolchevique, nos sentimentos e objetivos das massas camponesas e da
classe trabalhadora e na situação política, econômica e social na Rússia Soviética após a
morte de Lenin.
A história dessa luta entre Stalin e Trotsky é a história da tentativa de Trotsky de
capturar o Estado e do tipo de defesa do Estado que foi usada por Stalin e a velha Guar-
da Bolchevique. É a história de um golpe de Estado malsucedido. Stalin contrapôs a
teoria de Trotsky da “revolução permanente” com as ideias de Lenin sobre a Ditadura
do Proletariado. Ambas as facções lutaram entre si em nome de Lenin.
Mas eventos de importância muito mais grave do que meros ensaios sobre a in-
terpretação do leninismo estavam ocultos por trás dessas intrigas, discussões e sofismas.
O poder supremo estava em jogo. A questão de um sucessor para Lenin surgiu
muito antes de sua morte, quando os primeiros sintomas de sua doença apareceram, e
não era meramente uma questão teórica. Ambições pessoais estavam escondidas por
trás de problemas doutrinários: não devemos ser enganados pelos pretextos oficiais da
discussão. A principal preocupação de Trotsky nessa controvérsia era aparecer como
um defensor desinteressado do legado moral e intelectual de Lenin, como o guardião
dos princípios que guiaram a revolução de outubro e como um comunista intransigen-
te lutando contra a degeneração do partido em uma burocracia e contra o crescimento
de um espírito burguês no Estado Soviético. Mas Stalin, na controvérsia, queria prin-
cipalmente manter tanto os comunistas de outros países quanto os capitalistas, liberais
e democratas na Europa, na ignorância da verdadeira razão pela qual os discípulos de
Lenin, representantes genuínos da Rússia Soviética, estavam lutando entre si.
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Na verdade, Trotsky lutou para capturar o Estado, Stalin para defendê-lo. Sta-
lin não tem nenhum traço da apatia russa sobre ele, nada de sua submissão sem
esforço ao bem e ao mal, suas rebeliões vagas e auto-sacrifício perverso ou sua
gentileza cruel e infantil. Stalin não é russo, mas georgiano. Sua inteligência está
na paciência, força de vontade e bom senso. Ele é confiante e obstinado. Seus
inimigos o acusam de falta de conhecimento e inteligência; eles estão enganados.
Ele não é um homem culto no sentido europeu da palavra, não superalimentado
com sofismas e fanatismo psicológico. Stalin é um bárbaro, no sentido de Lenin
da palavra, um inimigo da cultura, psicologia e ética ocidentais. Seu intelecto é
inteiramente físico e instintivo, em um estado natural e sem os preconceitos ou o
senso moral de um homem culto. Foi dito que os homens revelam seu caráter em
seu comportamento. Eu vi Stalin em maio de 1929 no Congresso Pan-Russo So-
viético, subindo no palco do Grande Teatro de Moscou. Eu estava logo abaixo das
luzes da ribalta nas arquibancadas da orquestra quando ele apareceu por trás de
uma fileira dupla de Comissários do Povo, os delegados de Tzic e os membros do
Comitê Central do Partido, alinhados no palco. Ele estava vestido de forma bas-
tante simples com uma jaqueta cinza de corte militar e calças de pano escuro pre-
sas em suas botas altas. Ombros quadrados, baixo, atarracado, sua cabeça enorme
coberta por cabelos pretos cacheados e olhos estreitos acentuados por sobrance-
lhas muito pretas; seu rosto era escurecido por bigodes pretos desgrenhados; ele
andava devagar e pesadamente, batendo no chão com os calcanhares enquanto
andava; sua cabeça projetada para a frente e seus braços balançando o faziam
parecer um camponês, mas um camponês das terras altas - duro, paciente e obs-
tinado. Ignorando o trovão de aplausos que o saudou, ele caminhou lentamente,
tomou seu lugar atrás de Rykoff e Kalinin, levantou a cabeça, olhou para a enorme
multidão que o aclamava e ficou imóvel e ligeiramente curvado - seus olhos fixos
diretamente na frente dele. Cerca de vinte deputados tártaros, representando as
Repúblicas Soviéticas autônomas dos Bakirs, os mongóis Bouriat, Iakouts e Da-
guestão sozinhos observaram um silêncio rígido em seu camarote. Eles estavam
vestidos com caftãs de seda amarela e verde, com gorros tártaros bordados em
prata em seus longos cabelos pretos brilhantes e encaravam Stalin com pequenos
olhos estreitos: Stalin, o ditador, o punho de ferro da Revolução, inimigo mortal
do Ocidente e da Europa civilizada e burguesa. Quando os gritos delirantes da
multidão começaram a diminuir, Stalin lentamente virou a cabeça em direção aos
deputados tártaros: os olhos dos mongóis encontraram os do ditador. Um gran-
de grito encheu o teatro: era a saudação da Rússia Proletária à Ásia Vermelha, ao
povo das planícies, dos desertos e dos grandes rios asiáticos. Novamente Stalin
virou-se friamente para a multidão. Ele permaneceu curvado e imóvel, seus olhos
cegos fixos diretamente à sua frente.
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A força de Stalin estava em sua serenidade e paciência. Ele observava as ações de
Trotsky, estudava seus movimentos e seguia seus passos rápidos, irresolutos e ner-
vosos em seu próprio ritmo, que era o de um camponês, pesado e lento. Stalin era
reticente, frio e obstinado; Trotsky orgulhoso, violento, egoísta, impaciente, gover-
nado por sua ambição e sua imaginação. Ele era apaixonado, ousado e agressivo por
natureza. “Um judeu miserável”, diz Stalin, falando dele. “Um cristão miserável”, diz
Trotsky sobre Stalin. Stalin ficou de lado durante a insurreição de outubro quando
Trotsky, desconhecido do Comitê Central ou da Comissão, de repente colocou seus
Guardas Vermelhos na captura do Estado. Somente Stalin entendeu as falhas e erros
de Trotsky e previu as consequências remotas que eles teriam. Quando Lenin mor-
reu e Trotsky abruptamente levantou o problema da sucessão como uma questão
política, econômica e doutrinária, Stalin já havia assumido a máquina do Partido e
estava no comando do Estado. Então Trotsky acusou Stalin de ter tentado resolver o
problema da sucessão para sua própria vantagem muito antes da morte de Lenin, ele
fez uma acusação que ninguém pode refutar. E ainda assim, foi o próprio Lenin que,
durante sua doença, deu a Stalin uma posição de autoridade dentro do Partido. Sta-
lin, confrontado com as acusações de seu adversário, jogou uma carta forte quando
disse que tinha que tomar precauções oportunas contra os perigos que a morte de
Lenin inevitavelmente produziria.
“Você se aproveitou da doença dele”, acusou-o Trotsky. “Para evitar que você se
aproveitasse da morte dele”, respondeu Stalin.
Trotsky descreve sua luta contra Stalin com grande habilidade. Em suas me-
mórias, nada transparece da natureza real dessa controvérsia. Ele está principal-
mente e constantemente empenhado em provar tanto ao Proletariado internacional
quanto especialmente ao Proletariado Russo que ele não é o homem que é acusado
de ser, o homem que eles gostariam de fazer dele: um Catilina bolchevique pronto
para qualquer aventura ou intriga. De acordo com Trotsky, o que as pessoas chama-
ram de sua heresia é apenas a tentativa de interpretar a doutrina de Lenin de acordo
com os próprios ditames de Lenin. Sua teoria da “revolução permanente” não pode-
ria ser um perigo nem para a unidade doutrinária do Partido nem para a segurança
do Estado. Ele não estava tentando ser um Lutero ou um Bonaparte.
Como historiador, seu interesse é inteiramente de ordem controversa. Tanto
Trotsky quanto Stalin parecem estar vinculados por um acordo tácito quando se
esforçam para representar o que é, na realidade, uma luta pelo poder como um con-
flito de ideias. Além disso, Trotsky nunca foi oficialmente acusado de bonapartismo.
Tal acusação teria mostrado ao roletariado internacional muito claramente que a
revolução russa estava caminhando para aquela degeneração burguesa da qual o
bonapartismo é uma das características mais óbvias. Em seu prefácio ao panfleto in-
titulado Rumo a outubro, Stalin escreve: “A teoria da revolução permanente é outra
versão do menchevismo”. Essa foi a acusação oficial: Trotsky é considerado culpado
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de ter caído na heresia menchevique. Mas se o proletariado internacional podia
ser facilmente enganado quanto à natureza real do conflito entre Stalin e Trot-
sky, a situação real não poderia ser escondida do povo russo por muito tempo.
Todos entenderam que, em Trotsky, Stalin não estava lutando contra um tipo de
menchevique doutrinário que havia se perdido em um labirinto de interpretações
de Lenin, mas um Bonaparte vermelho, o único homem capaz de transformar a
morte de Lenin em um golpe de Estado e de colocar o problema da sucessão em
uma base insurrecional.
De 1924 até o final de 1926, a luta continuou a ser uma controvérsia entre os
partidários da teoria da “revolução permanente” e os guardiões oficiais do leni-
nismo, aqueles a quem Trotsky chamou de guardiões do cadáver embalsamado
de Lenin. Como comissário de guerra, Trotsky podia contar com o exército e os
sindicatos liderados por Tomski, que era hostil a Stalin porque este último busca-
va sujeitar os sindicatos aos interesses do Partido. Tomski reivindica a ação autô-
noma dos sindicatos em suas relações com o Estado. Desde 1920, Lenin previa a
possibilidade de uma aliança entre o Exército Vermelho e os sindicatos com al-
guma ansiedade. Após sua morte, o acordo persona 1 entre Trotsky e Tomski deu
seus frutos, e soldados e trabalhadores se juntaram em uma frente unida contra a
influência decadente na Revolução dos camponeses e das classes médias baixas e
contra o Termidor de Stalin, como Trotsky o chamou.
Stalin tinha o G.P.U. e os oficiais tanto do Partido quanto do Governo ao
seu lado e ele previu o perigo de um 18º de Brumário. A tremenda popularidade
que cercava o nome de Trotsky; a glória que ele trouxe de volta dessas campanhas
vitoriosas contra Yudenitch, Kolchak, Denikin e Wrangel; e seu orgulho arrogante
e cínico o transformaram em uma espécie de Bonaparte Vermelho apoiado pelo
exército, pelas massas trabalhadoras e pelo espírito de revolta dos jovens comu-
nistas contra a Velha Guarda de Lenin e contra a hierarquia do Partido.
O famoso trio, Stalin, Zinoviev e Kamenev, empregou os tipos mais sutis de
simulação, intriga e engano para comprometer Trotsky aos olhos das massas, pro-
vocar discórdia entre aliados, espalhar dúvidas e descontentamento nas fileiras de
seus partidários, lançar descrédito e suspeita sobre suas palavras, suas ações e suas
intenções.
O chefe da G. P. U., o fanático Dzerjinski, cercou Trotsky com uma rede de
espiões e agentes pagos. A misteriosa e terrível maquinaria da G. P. U. foi pos-
ta em movimento para cortar os tendões do adversário um por um. Dzerjinski
trabalhou no escuro, enquanto Trotsky trabalhou em plena luz do dia. De fato,
enquanto o trio prejudicou seu prestígio, manchou sua reputação, fez um grande
esforço para apresentá-lo como um alpinista decepcionado, um aproveitador da
revolução e um traidor da memória de Lenin,
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Trotsky atacou Stalin, Zinoviev e Kamenev, no Comitê Central, na Velha Guarda de
Lenin, nos burocratas do Partido. Ele denunciou o perigo de uma reação “Thermi-
dor” pela classe lojista e camponesa; e chamou a juventude comunista para ajudá-lo
contra a tirania da hierarquia revolucionária. A resposta do trio assumiu a forma de
uma campanha de difamação feroz. Toda a imprensa recebeu ordens de Stalin. Pou-
co a pouco, Trotsky se viu isolado. Muitos dos envolvidos eram tímidos, indecisos
ou se retiraram completamente da luta; mas os mais obstinados, radicais e corajosos
lutaram arduamente, embora cada um por conta própria e totalmente fora de contato
uns com os outros. Eles lutaram cegamente contra a coalizão, sendo pegos em uma
rede de intrigas, conspiração e traição, e terminando desconfiando uns dos outros.
Soldados e trabalhadores olhavam para Trotsky como o homem que criou o Exército
Vermelho, como o homem que derrubou Kolchak e Wrangel, como o defensor dos
sindicatos livres e da ditadura dos trabalhadores versus a reação que estava ameaçan-
do da N. E. P. e dos camponeses: os trabalhadores e soldados permaneceram leais ao
herói da insurreição de outubro e às suas ideias. Sua lealdade, no entanto, era bastan-
te passiva: tornou-se inativa por longa espera e era um peso morto no jogo violento e
agressivo de Trotsky.
Durante as primeiras fases da controvérsia, Trotsky realmente acreditava que po-
deria causar uma divisão no Partido, derrubar a “troika” com a ajuda do exército e
dos sindicatos e impedir o Termidor de Stalin com um décimo oitavo Brumário pró-
prio. O Partido e o Estado seriam capturados e ele poderia então traduzir seu progra-
ma de comunismo integral em fato real. Mas discursos, panfletos e discussões sobre
a interpretação do pensamento de Lenin não foram fortes o suficiente para causar
uma divisão no Partido. A ação era necessária. Restava apenas a Trotsky escolher
seu momento. As circunstâncias favoreciam seus planos. Stalin, Zinoviev e Kamenev
já estavam começando a discordar. Por que Trotsky não tomou nenhuma atitude?
Embora ele pudesse ter entrado em ação e abandonado o campo de argumentação
para a insurreição, ele estava perdendo tempo no estudo da situação social e política
na Grã-Bretanha, ensinando aos comunistas ingleses como eles deveriam começar a
capturar o Estado e tentando fazer comparações entre os Ironsides de Cromwell e o
Exército Vermelho, entre Lenin, Cromwell, Robespierre, Napoleão e Mussolini. “Le-
nin”, escreveu Trotsky, “não pode ser comparado nem a Bonaparte nem a Mussolini,
mas a Cromwell e Robespierre. Lenin é um Cromwell proletário do século XX. Defi-
ni-lo assim é fazer a melhor defesa possível do pequeno burguês do século XVII que
Cromwell foi.”
Enquanto isso, Trotsky, em vez de aplicar suas táticas de outubro de 1917 con-
tra Stalin, estava ocupado aconselhando as tripulações dos navios britânicos, os ma-
rinheiros, foguistas, equipes de mesa telefônica da sala de máquinas sobre como eles
deveriam cooperar com as classes trabalhadoras para provocar a captura do Estado.
Ele estava analisando a psicologia dos marinheiros e soldados britânicos para que
pudesse avaliar seu comportamento uma vez que
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eles tinham recebido ordens para atirar no trabalhador: ele estava ocupado dis-
secando o mecanismo do motim para ver, como em câmera lenta, cada gesto do
soldado que se recusa a atirar, do soldado que hesita e do soldado que está pronto
para atirar em seu camarada se este se recusar a atirar. Esses eram três movimen-
tos essenciais em todo o mecanismo: qual deles decidiria o resultado do motim?
Naqueles dias, Trotsky pensava apenas na Inglaterra: ele estava muito mais preo-
cupado com MacDonald do que com Stalin. “Cromwell não formou um exército,
mas um Partido: seu exército era um Partido armado: e nisso residia seu poder.”
Na batalha, os soldados de Cromwell eram apelidados de Ironsides. Trotsky ob-
serva: “Ironsides são sempre úteis para uma Revolução. Nesse aspecto, o traba-
lhador britânico tem muito a aprender com Cromwell.” Se assim fosse, por que
Trotsky não decidiu agir? Por que ele não lançou seus “Ironsides”, os soldados do
Exército Vermelho, contra os apoiadores de Stalin?
Os adversários de Trotsky se beneficiaram com seu atraso. Eles o demitiram de
seu posto de Comissário do Povo da Guerra e o privaram do controle do Exército
Vermelho. Logo depois, Tomski perdeu sua posição de liderança nos sindicatos.
O grande herege e formidável Catilina havia sido desarmado, e os dois principais
cúmplices do plano deste bolchevique Bonaparte para um 18º Brumário agora
eram hostis a ele. O G.P.U. gradualmente minou sua popularidade e a maioria de
seus apoiadores, desiludidos com seu comportamento ambíguo e fraqueza inex-
plicável, discretamente desapareceram. A saúde de Trotsky falhou e ele deixou
Moscou. Em maio de 1926, ele foi encontrado em uma casa de repouso em Ber-
lim: as notícias da Greve Geral na Inglaterra e do golpe de Estado de Pilsudski
fizeram sua temperatura subir. Ele teve que voltar para a Rússia e continuar a luta.
“Enquanto tudo não estiver perdido, nada está perdido.” Dzerjinski, o homem
cruel e fanático que criou a G.P.U., morreu em julho de 1926 enquanto fazia um
discurso violento contra Trotsky diante do Comitê Central. Mas a aliança de Ka-
menev e Zinoviev contra Stalin de repente revelou a discórdia que há muito tem-
po fervia entre os três membros da “troika”. A batalha entre os três defensores do
cadáver de Lenin começou. Stalin chamou Menjinski (o sucessor de Dzerjinski
como Diretor da G.P.U.) para ajudá-lo: Kamenev e Zinoviev foram até Trotsky. O
momento da ação havia chegado. A maré de sedição subiu ao redor do Kremlin.
No início da luta contra Stalin, Trotsky observou em conexão com a Ingla-
terra que as revoluções não são ocorrências arbitrárias. “Se pudessem ser feitas
para se desenvolver logicamente, provavelmente seriam evitadas.” Mas, na verda-
de, foi o próprio Trotsky quem estabeleceu uma sequência lógica na preparação
de uma revolução, por seus princípios e regras para as táticas modernas de insur-
reição. Foi Stalin quem colheu o benefício desse ensinamento em 1927 e, assim,
mostrou aos governos da Europa que era possível proteger o Estado burguês con-
tra o perigo de uma insurreição comunista.
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Em dois dos países mais policiados e mais bem organizados da Europa, ou seja,
Holanda e Suíça, onde a lei e a ordem não são meramente produtos da maquinaria
burocrática e política, mas uma característica natural do povo, a dificuldade de apli-
car as táticas comunistas de insurreição não seria maior do que era na Rússia de Ke-
renski. Em que bases tal paradoxo pode ser declarado? É porque o problema do golpe
de estado moderno é um problema técnico. “A insurreição é um motor”, disse Trot-
sky: “especialistas técnicos são necessários para ligá-lo e somente eles podem desligá-
-lo.” O arranque do motor é independente da situação política, social ou econômica
do país. Não são as massas que fazem uma revolução, mas um mero punhado de
homens, preparados para qualquer emergência, bem treinados nas táticas de insur-
reição, treinados para atacar dura e rapidamente os órgãos vitais dos serviços técnicos
do estado. Essas tropas de choque devem ser recrutadas entre trabalhadores especia-
lizados: mecânicos, eletricistas, operadores de telégrafo e operadores de rádio, agindo
sob as ordens de engenheiros técnicos que entendam o funcionamento técnico do
estado.
Em uma das reuniões do Comintern em 1923, Radek sugeriu que em cada país
europeu um corpo especial deveria ser treinado na arte de capturar o Estado. Ele
sustentou que mil homens, bem treinados e treinados, seriam capazes de tomar o po-
der em qualquer país europeu, seja França, Inglaterra, Alemanha, Suíça ou Espanha.
Radek suspeitava da qualidade revolucionária dos comunistas em outros países. Em
sua crítica aos homens e métodos da Terceira Internacional, ele nem mesmo poupa a
memória de Rosa Luxemburgo ou de Liebknecht. Radek foi o único que lutou contra
o otimismo generalizado que reinava em 1920, enquanto Trotsky estava engajado em
sua ofensiva contra a Polônia. O Exército Vermelho estava se aproximando do Vístula
e as notícias da queda de Varsóvia eram esperadas no Kremlin a qualquer momento.
O sucesso de Trotsky dependia em grande parte do apoio dos comunistas poloneses.
Lenin esperava cega e confiantemente que uma revolução proletária estourasse em
Varsóvia assim que os soldados vermelhos chegassem ao Vístula. Radek disse: “Não
se pode confiar nos comunistas poloneses. Eles são comunistas, mas não evolucionis-
tas.” Pouco depois, Lenin disse a Clara Zetkin: “Radek previu o que aconteceria. Ele
nos avisou. Fiquei muito bravo com ele e o tratei como um derrotista. Mas ele estava
certo, não eu. Ele conhece a situação fora da Rússia, e especialmente no Ocidente,
melhor do que nós.”
A proposta de Radek despertou a oposição de Lenin e de todos os membros do
Comintern. Lenin disse: “Se quisermos ajudar os comunistas estrangeiros a tomar o
poder em seus países, devemos tentar criar uma situação na Europa que seja compa-
rável à condição da Rússia em 1917.” Lenin estava permanecendo fiel à sua ideia de
estratégia e esqueceu a lição ensinada pelos eventos poloneses. Trotsky aprovou so-
zinho a proposta de Radek. Ele chegou até a mostrar a necessidade de uma escola de
Instrução Técnica em Moscou para comunistas que mais tarde formariam o núcleo de
um corpo especial em cada país para tomar o poder.
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Hitler recentemente reviveu essa ideia e está atualmente organizando uma escola
semelhante em Munique para suas tropas de choque. “Se eu puder ter uma tro-
pa de homens, mil homens fortes, recrutados entre os trabalhadores de Berlim e
fortificados pelos comunistas russos”, disse Trotsky, “eu me comprometerei a obter
o controle de Berlim em vinte e quatro horas”. Ele nunca confiou no entusiasmo
do povo ou na participação das massas em uma insurreição. “A intervenção das
massas pode ser útil”, ele disse, “mas apenas em segunda instância, quando a con-
traofensiva dos contrarrevolucionários tiver que ser repelida”. Ele também disse
que os comunistas na Alemanha sempre seriam derrotados pela Schutzpolizei
(polícia estadual) e pelo Reichwehr (exército) se adiassem a aplicação das táticas
de outubro de 1917. Trotsky e Radek realmente decidiram sobre um plano para o
golpe de Estado em Berlim. E, quando Trotsky estava na capital alemã em maio de
1926 para uma operação na garganta, ele foi acusado de vir a Berlim com o pro-
pósito de organizar uma rebelião comunista. Mas em 1926 ele já havia perdido o
interesse nas revoluções europeias. As notícias da Greve Geral na Inglaterra e do
golpe de Estado de Pilsudski na Polônia o deixaram febril e apressaram seu retor-
no a Moscou. Foi a mesma febre que o possuiu naqueles grandes dias de outubro,
quando ele foi transformado em um “fio desencapado”, como Lunacharski disse.
Enquanto isso, Trotsky retornou a Moscou, pálido e febril, para organizar as tro-
pas de choque para a derrubada de Stalin e para a captura do Estado.
Stalin, no entanto, sabia como transformar a lição de outubro de 1917 em
algo positivo. Com a ajuda de Menjinski, o novo chefe do G.P.U., ele organizou
um corpo especial para a defesa do Estado. A sede deste corpo especial ficava no
Palácio Lubianka, a casa do G.P.U. Menjinski supervisionou pessoalmente a esco-
lha de seus recrutas comunistas entre os trabalhadores dos Serviços Públicos do
Estado, entre ferroviários, mecânicos, eletricistas e telegrafistas. Suas únicas armas
eram granadas de mão e revólveres para que pudessem se mover rapidamente. O
Corpo especial consistia em cem esquadrões de dez homens cada, reforçados por
vinte carros blindados. Cada destacamento era provido de uma meia companhia
de metralhadores: as comunicações entre os vários esquadrões e a sede de Lu-
bianka eram mantidas abertas por mensageiros. Menjinski assumiu o comando
total de toda a organização e dividiu Moscou em dez setores. Uma rede de linhas
telefônicas secretas conectava os setores entre si e com Lubianka. Além de Men-
jinski, eram apenas os homens que tinham instalado os fios secretos que sabiam
de sua existência. Assim, todos os centros vitais na organização técnica de Mos-
cou estavam conectados telefonicamente com a Lubianka. Em pontos estratégicos
em cada setor, algumas casas eram ocupadas por uma série de “células” ou cen-
tros de observação, para controle e resistência, e estes forneciam elos na cadeia de
todo o sistema.
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O esquadrão era a unidade de combate neste corpo especial: cada esquadrão ti-
nha que continuar treinando com vistas a entrar em ação independentemente de
seus companheiros de esquadrão no pedaço de terreno que lhe era atribuído. Cada
homem tinha que estar completamente familiarizado com o trabalho de seu próprio
esquadrão e com o dos outros nove em seu setor. A organização, de acordo com
Menjinski, era “secreta e invisível”. Seus membros não usavam uniforme e não po-
diam ser reconhecidos por nenhum distintivo. Até mesmo sua filiação à organização
era comprometida com o segredo. Eles passaram por instruções técnicas, militares e
políticas, e foram criados para odiar seus adversários, conhecidos e desconhecidos,
fossem judeus ou seguidores de Trotsky. Nenhum judeu poderia pertencer à organi-
zação. A escola na qual os membros do corpo especial aprenderam a arte de defen-
der o estado contra as táticas insurrecionais de Trotsky era definitivamente antisse-
mita. A origem do antissemitismo de Stalin foi amplamente discutida na Europa, e
alguns a atribuíram a uma concessão aos preconceitos camponeses e a uma necessi-
dade de oportunismo político. Outros consideraram isso uma parte da luta de Stalin
contra Trotsky, Zinoviev e Kamenev, todos judeus. Stalin foi acusado de violar a lei
(já que o antissemitismo foi declarado um crime contrarrevolucionário severamente
punível por lei), mas tal acusação não considera o antissemitismo de Stalin em rela-
ção à necessidade urgente de defender o estado e como parte de suas táticas contra a
tentativa de insurreição de Trotsky.
O ódio de Stalin pelos três judeus, Trotsky, Zinoviev e Kamenev, não justificava
por si só o reaparecimento, dez anos após a revolução de outubro de 1917, de um
antissemitismo nacional que lembra os dias de Stolypine. Nem a origem da luta de
Stalin contra os judeus pode ser razoavelmente atribuída ao fanatismo religioso ou
preconceito tradicional, mas sim à luta que teve de ser travada contra os perigosos
confederados de Trotsky. Menjinski dissera que quase todos os principais apoiadores
de Trotsky, Zinoviev e Kamenev eram israelitas e, de fato, todos os judeus no Exér-
cito Vermelho, nos sindicatos e nas fábricas estavam do lado de Trotsky. No Soviete
de Moscou, onde Kamenev gozava da maioria, e no Soviete de Leningrado, que era o
coração e a alma de Zinoviev, o cerne da oposição a Stalin era judeu. Tudo o que era
necessário para afastar o exército, os sindicatos e as massas da classe trabalhadora
em Moscou e Leningrado de Trotsky e de Kamenev e Zinoviev era reacender todos
os velhos preconceitos antissemitas e o ódio instintivo do povo russo pelos judeus.
Em sua luta contra a revolução permanente, Stalin confiou no egoísmo comum dos
“kulaks” e na ignorância das massas camponesas, nenhuma das quais havia renun-
ciado a nada de seu ódio secular pelos judeus.
Ao acender esse antissemitismo, Stalin conseguiu formar uma frente unida de
soldados, trabalhadores e camponeses, contra os perigos do trotskismo. Menjinski
estava caçando com sucesso os membros de uma sociedade secreta organizada por
Trotsky com o propósito de chegar ao poder. Em cada judeu, Menjinski suspeitava e
perseguia um Catilina.
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Assim, a luta contra o partido de Trotsky logo passou a possuir todas as características
de uma política de antissemitismo, definitivamente patrocinada pelo estado. Judeus
foram sistematicamente removidos do Exército, de sindicatos, de escritórios governa-
mentais e partidários, e de administrações de trusts industriais e comerciais. O partido
de Trotsky, que havia se infiltrado em todos os órgãos políticos, econômicos e admi-
nistrativos do estado, foi gradualmente desfeito. Muitos dos judeus perseguidos pela
G.P.U., privados de sua vida, seu trabalho e seus salários, presos, exilados, dispersos ou
compelidos a viver além dos limites da sociedade soviética, não tinham nada a ver com
a conspiração de Trotsky: “Eles devem sofrer pelos outros, e os outros devem sofrer
por todos”, disse Menjinski. Trotsky ficou perplexo com as táticas de Stain; ele era im-
potente contra o ódio instintivo do povo por ele. Todos os preconceitos da velha Rússia
estavam se voltando contra essa Catilina, que era “tão corajosa quanto um tártaro e tão
vil quanto um judeu”. O que Trotsky poderia fazer diante dessa renovação inesperada
dos instintos e preconceitos do povo russo? Todos os seus seguidores o abandonaram,
desde os mais pobres e fiéis, os trabalhadores que o reconheceram como seu líder em
outubro de 1917, até os soldados que ele levou à vitória contra os cossacos de Kolchak
e Wrangel. Aos olhos das massas, Trotsky havia se tornado um mero judeu.
Enquanto isso, Zinoviev e Kamenev estavam começando a perder a fé em Trotsky e
sua destemor violento, sua força de vontade, seu orgulho, seu ódio por qualquer um
que o traísse e em seu desprezo por qualquer um que se opusesse a ele. Kamenev era
o mais fraco dos dois, mais carente de decisão e mais covarde do que Zinoviev, mas
ele não traiu Trotsky: ele o abandonou. Na véspera da insurreição contra Stalin, Ka-
menev tratou Trotsky como havia tratado Lenin na véspera da insurreição de outubro
de 1917. Mais tarde, para se justificar, ele diria: “Eu não acreditava em métodos insur-
recionais”. “Ele nem acreditava em traição”, foi a resposta de Trotsky, pois ele nunca
perdoou Kamenev pela falta de coragem em não traí-lo abertamente. Zinoviev, no
entanto, não abandonou Trotsky. Ele o traiu no último momento, quando sabia que o
ataque repentino a Stalin já havia falhado. “Zinoviev não é covarde; ele só foge quando
há perigo.”
Trotsky havia dito a Zinoviev para ir a Leningrado e organizar a captura da ci-
dade por esquadrões de trabalhadores assim que ele ouvisse que a insurreição em
Moscou havia obtido sucesso. Assim, Trotsky havia evitado a proximidade de Zinoviev
no momento crucial. Mas Zinoviev não era mais o ídolo das massas em Leningrado.
Quando manifestações foram organizadas na antiga capital em homenagem ao Comitê
Central do Partido, que se reuniu lá em outubro de 1927, os manifestantes de repente
transformaram tudo em uma demonstração de lealdade a Trotsky. Se Zinoviev ainda
tivesse alguma influência entre os trabalhadores de Leningrado, esse incidente por si só
teria dado origem a uma revolta. Mais tarde, ele alegou ter sido responsável pela ma-
nifestação sediciosa, mas, na verdade, nem ele nem Menjinski a previram. Até Trotsky
foi pego de surpresa, mas ele foi sábio o suficiente para não tirar vantagem disso. As
massas trabalhadoras de Leningrado não eram mais as de dez anos atrás. E o que acon-
teceu com os Guardas Vermelhos de outubro de 1917?
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Stalin percebeu a fraqueza da organização secreta de Trotsky enquanto observa-
va a procissão de trabalhadores e soldados que marchavam, assobiando, passando
pelo Palácio Tauride sob a tribuna do Comitê Central e se aglomeravam na tribu-
na onde Trotsky estava, aplaudindo o herói da insurreição de outubro, fundador
do Exército Vermelho e defensor da liberdade nos sindicatos. Naquele dia, um
mero punhado de homens determinados poderia ter capturado a cidade sem que
um tiro fosse disparado. Mas não havia mais um Antonov Ovseienko para assu-
mir o comando dos esquadrões de trabalhadores e das tropas de choque da insur-
reição. Os Guardas Vermelhos de Zinoviev temiam que seu líder os traísse. Se a
facção de Trotsky não se mostrasse mais forte em Moscou do que em Leningrado,
Menjinski acreditava que a luta já estava vencida. O chão estava escorregando
sob os pés de Trotsky. Por um tempo considerável, ele tinha visto seus seguidores
serem perseguidos, presos, reduzidos à inatividade e exilados, e muitos daqueles
cuja coragem e confiabilidade até então eram inquestionáveis agora o abandona-
vam diariamente. Ele se jogou na luta com coragem desesperada, com todo o or-
gulho invencível do judeu perseguido em seu sangue, e com aquela força de von-
tade cruel e vingativa que às vezes dava à sua voz uma espécie de sotaque bíblico
de desespero e revolta. O orador que discursava nas reuniões naqueles dias, no
pátio da fábrica e do quartel, e enfrentava as multidões de soldados e trabalhado-
res desconfiados e recreacionais, era pálido, míope, seus olhos dilatados pela febre
e insônia. Não era mais o Trotsky de 1922, 1923 e 1924, tão divertido, inteligente
e irônico, que estava diante deles agora, mas o Trotsky de 1917, 1912, 1919, 1920 e
1921, da Revolução de Outubro e da Guerra Civil, o bolchevique Catilina Trotsky
do Smolny e dos campos de batalha, o Grande Amotinado. As massas trabalha-
doras de Moscou o reconheceram por sua palidez e violência como o Trotsky dos
dias mais vermelhos de Lenin. A chama da rebelião já estava acesa nas fábricas
e quartéis, mas Trotsky manteve suas táticas. Não as multidões, mas as tropas de
choque secretamente organizadas deveriam ser enviadas para capturar o Estado.
Ele buscou o caminho para o poder não por meio de uma insurreição ou rebelião
das massas trabalhadoras, mas por uma organização científica do golpe de Estado.
O décimo aniversário da Revolução seria celebrado em algumas semanas.
Representantes de todos os países da Europa, os membros de diferentes seções da
Terceira Internacional, deveriam chegar a Moscou. Mas Trotsky estava preparan-
do uma celebração do décimo aniversário de sua vitória sobre Kerenski por uma
vitória sobre Stalin. As delegações dos trabalhadores deveriam testemunhar um
violento renascimento da revolução proletária contra o Termidor da burguesia de
mente estreita dentro do Kremlin. “Trotsky está trapaceando”, sorriu Stalin. Ele
estava observando atentamente cada um dos movimentos de seu adversário.
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Cerca de mil trabalhadores e soldados, antigos partidários de Trotsky, ainda leais
à ideia revolucionária do bolchevismo, estavam de prontidão para o grande dia. Es-
quadrões de especialistas técnicos e trabalhadores especializados estavam há muito
tempo envolvidos em “manobras invisíveis”. Os homens de Menjinski em seu corpo
especial ouviam o pulsar da máquina insurrecional de Trotsky onde quer que a es-
cutassem, e uma centena de pequenos presságios sugeriam que havia perigo à frente.
Menjinski tentou embaraçar os movimentos de seus adversários por todos os meios
ao seu alcance, mas a sabotagem nas ferrovias, nas estações de energia elétrica e nos
correios e telégrafos aumentava dia a dia. Os agentes de Trotsky tinham conseguido
entrar em todos os lugares; eles testavam cada raio da roda dos serviços públicos do
estado e, de tempos em tempos, impediam que ela girasse completamente. Essas eram
meras escaramuças que levavam à própria insurreição. Enquanto isso, os especialistas
técnicos de Menjinski estavam permanentemente mobilizados e vigiavam a máquina
do estado. Eles também estavam constantemente testando sua eficiência, suas reações
e seu poder de resistência. Menjinski teria desejado a prisão imediata de Trotsky e de
seus confederados mais perigosos, mas Stalin negou seu pedido. A prisão de Trotsky
na véspera do décimo aniversário da Revolução de Outubro produziria uma impres-
são desfavorável nas massas e nas delegações de trabalhadores que haviam chegado a
Moscou de todos os cantos da Europa para participar das cerimônias oficiais. Trotsky
dificilmente poderia ter escolhido um momento mais adequado para sua tentativa
contra o estado. Sua sabedoria tática lhe mostrou como cobrir sua posição. Stalin nun-
ca ousaria prendê-lo por medo de aparências tirânicas. Se e quando ele ousasse fazê-
-lo, certamente seria tarde demais, disse Trotsky. A essa altura, as fogueiras do décimo
aniversário da revolução teriam se apagado, e Stalin não estaria mais no comando do
estado.
A insurreição propriamente dita deveria começar com a captura das sedes dos
serviços públicos do Estado, após o que os Comissários do Povo e os membros do
Comitê Central e da Comissão de Controle do Partido seriam presos. Mas Menjinski
estava bem preparado para isso: quando os Guardas Vermelhos de Trotsky chegaram,
as casas estavam vazias. Todos os chefes do partido de Stalin se refugiaram dentro do
Kremlin, onde Stalin esperava pacientemente e silenciosamente o resultado da luta
entre as tropas de choque da insurreição e o corpo especial de Menjinski. A data era 7
de novembro de 1927. Moscou parecia estar vestida de escarlate. Procissões de delega-
dos das Repúblicas Federais da URSS de todas as partes da Rússia e dos distritos mais
remotos da Ásia marchavam pelos hotéis Savoy e Metropole, onde os delegados euro-
peus estavam hospedados. Milhares e milhares de bandeiras carmesins tremulavam
sobre o mausoléu de Lenin sob os muros do Kremlin na Praça Vermelha. No final da
Praça, perto da Igreja Vassili Blayenni, a cavalaria de Budyonni estava alinhada e ao
lado dela a infantaria de Tukachevski e os veteranos de 1918, 1919, 1920 e 1921, todos
eles soldados que Trotsky havia levado à vitória nas várias frentes da Guerra Civil. En-
quanto Voroshilov, o Comissário da Guerra Popular, estava revisando as forças milita-
res da U.R.S.S., Trotsky tentou capturar o Estado com mil homens.
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Menjinski tomou suas precauções. Suas táticas defensivas não estavam na proteção
de edifícios ameaçados por uma grande exibição de tropas, mas sim na defesa deles
com um mero punhado de homens estacionados dentro dos muros. Ele defendeu o
ataque invisível de Trotsky com uma defesa invisível. Nenhuma tentativa foi feita para
espalhar suas tropas ao redor do Kremlin, dos Comissariados do Povo, das sedes de
trustes industriais e comerciais, ou ao redor dos sindicatos e administrações governa-
mentais. Ele concentrou seu corpo especial na defesa dos serviços públicos, enquanto
destacamentos da polícia da G.P.U. vigiavam a organização política e administrativa
do estado. Trotsky não havia previsto as táticas de Menjinski, e já era tarde demais
quando ele descobriu que seus adversários haviam aprendido a lição em outubro de
1917. Quando lhe disseram que seus ataques repentinos a estações de telégrafo, te-
lefone e ferrovia foram um fracasso e que coisas inesperadas e inexplicáveis estavam
acontecendo, ele imediatamente percebeu que sua insurreição havia encontrado uma
defesa organizada muito mais complicada do que meras medidas policiais. Mas, até
então, ele não estava ciente da situação real. Quando as notícias de seu fracasso em
tomar a principal estação de energia elétrica finalmente chegaram até ele, ele repen-
tinamente mudou de ideia e decidiu tomar a organização política e administrativa
do estado. Vendo que suas tropas de choque tinham sido derrotadas e espalhadas em
todas as direções pelo ataque repentino e violento de seus oponentes, ele abandonou
suas táticas e concentrou todos os seus esforços em uma tentativa suprema — uma
insurreição popular.
O apelo de Trotsky às massas proletárias em Moscou naquele dia foi ouvido
por alguns milhares de estudantes e trabalhadores. Enquanto uma enorme multidão
enchia a Praça Vermelha em frente ao túmulo de Lenin e se aglomerava em volta de
Stalin, em volta dos chefes do Partido e do Governo e em volta dos representantes
estrangeiros da Terceira Internacional, os adeptos de Trotsky correram para o salão
da Universidade, afastaram um ataque da polícia e partiram para a Praça Vermelha à
frente de uma coluna de estudantes e trabalhadores.
A conduta de Trotsky era facilmente aberta a críticas. O apelo à população, as
táticas de esquina que equivaliam a uma espécie de tumulto desarmado, eram táticas
que equivaliam a uma espécie de tumulto desarmado, eram todas uma aventura louca.
Mas aconteceu que com o fracasso da insurreição, Trotsky perdeu o controle. No pas-
sado, e especialmente nos momentos decisivos de sua vida, sua inteligência fria havia
temperado sua imaginação vívida com previsão e suas grandes paixões com um certo
cinismo, mas agora ele parecia bêbado de desespero. Tendo deixado a situação sair do
controle, ele deu lugar à sua natureza apaixonada, e isso o estimulou àquela tentativa
desesperada de derrubar Stalin por meio de um tumulto. Talvez ele soubesse que o
jogo havia acabado, que as massas haviam perdido a fé nele e que apenas alguns pou-
cos amigos ainda eram leais a ele. Ele deve ter sentido que agora podia confiar apenas
em si mesmo, embora o jogo não esteja perdido enquanto ainda houver uma carta a
ser jogada.
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Trotsky foi até acusado de um plano precipitado para apreender o corpo embalsama-
do de Lenin de seu caixão de vidro no mausoléu sombrio aos pés do Kremlin. Então ele
chamaria o povo em volta do fetiche da Revolução e o usaria como aríete contra a tira-
nia de Stalin. A ideia, embora horrível, tinha elementos de grandeza nela. Possivelmen-
te a ideia de apreender o corpo de Lenin cruzou a mente febril de Trotsky enquanto ele
ouvia os gritos da multidão e observava seu pequeno exército de estudantes e trabalha-
dores cantando a Internacional enquanto marchavam para a Praça Vermelha cheia de
soldados e pessoas, eriçadas de baionetas e flamejantes com bandeiras.
No primeiro encontro, a pequena procissão foi repelida e dispersa. Trotsky olhou
ao redor. Onde estavam seus amigos leais, os chefes de sua facção, os generais daquele
pequeno exército que deveria capturar o Estado? Judeus não são adequados para bata-
lhas reais, para lutas corpo a corpo ou insurreição. O único judeu que se manteve firme
naquela contenda foi Trotsky, o Grande Amotinado e Catilina da Revolução Bolchevi-
que. “Um soldado atirou no meu carro como se para me avisar”, escreve Trotsky. “Al-
guém mais estava mirando seu rifle. Aqueles que tinham olhos para ver naquele sétimo
dia de novembro testemunharam uma tentativa de outro Termidor nas ruas de Mos-
cou.”
Em seu exílio fatigante, Trotsky acredita que a Europa proletária pode aprender
sua lição com esses eventos. Ele esquece que a Europa de classe média pode igualmente
lucrar com eles.
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CAPÍTULO TRÊS
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Pilsudski era cuidadoso, embora briguento, e sendo também desdenhoso da
aristocracia polonesa ao ponto da indiferença, ele se vingou de Sapieha nomean-
do-o embaixador na corte de St. James: este Sulla criado em Cambridge voltou
para a Inglaterra para terminar sua educação.
Não foi apenas entre os reacionários (que temiam o perigo que a desordem
parlamentar ameaçava à Polônia) que um plano para tomar o poder por meios
violentos foi concebido. Joseph Haller, o General, voltou da guerra depois de ter
lutado na frente francesa e ficou de pé, à frente de um exército de voluntários que
eram devotados a ele. Ele era um inimigo de Pilsudski e estava pronto a qualquer
momento para reivindicar a sucessão. O General Carton de Wiart, o chefe da Mis-
são Militar Britânica, que lembrou os poloneses de Nelson porque ele havia perdi-
do um olho e um braço na Guerra, costumava dizer que Pilsudski deveria tomar
cuidado com Haller. Haller mancava como Talleyrand.
Enquanto isso, a situação interna piorou constantemente. Quando Pade-
rewski caiu, a luta partidária tornou-se mais feroz novamente e o novo Presidente
do Conselho, Skulslti, não estava apto a lidar com os distúrbios políticos ou ad-
ministrativos, as reivindicações de cada facção ou as conspirações que estavam
sendo secretamente tramadas. No final de março, em uma reunião do Conselho
de Guerra em Varsóvia, o General Haller se opôs definitivamente aos planos mili-
tares de Pilsudski. Quando a decisão de capturar Kiev foi tomada, Haller retirou-
-se para o país e manteve-se distante em uma atitude de reserva que dificilmente
parecia justificada em relação à importância estratégica da decisão.
Em 26 de abril de 1920, o Exército polonês cruzou a fronteira ucraniana
e ocupou Kiev em 8 de maio. As vitórias fáceis de Pilsudski despertaram uma
imensa quantidade de entusiasmo por toda a Polônia. Em 18 de maio, o herói
conquistador foi recebido pelos habitantes de Varsóvia com uma recepção triunfal
que os mais ingênuos de seus seguidores fanáticos ficaram satisfeitos em compa-
rar à recepção do herói de Marengo. Enquanto isso, no início de junho, o Exér-
cito Bolchevique sob Trotsky começou a ofensiva. Em 10 de junho, a cavalaria
de Budyonni havia reocupado Kiev. Quando as notícias de repente chegaram a
Varsóvia, o medo e a desorganização resultantes despertaram todas as partes para
a ação e aguçaram as pretensões de todos que tinham alguma ambição. Skulski,
Presidente do Conselho, entregou seu cargo a Grabski, e o Ministro das Relações
Exteriores, Patek, foi substituído pelo Príncipe Sapieha, o embaixador em Lon-
dres, que voltou pacificamente imbuído do Liberalismo Inglês. Todo o povo se
levantou em armas contra a invasão vermelha: o próprio Haller, embora em ini-
mizade com Pilsudski, correu para o resgate de seu rival humilhado e trouxe seus
voluntários com ele. Mas o barulho das facções do partido ainda parecia predo-
minar. Tão alto era que o relinchar dos cavalos de Budyonni mal podia ser ouvi-
do.
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No início de agosto, o exército de Trotsky estava nos portões de Varsóvia. Entre as
multidões silenciosas e ansiosas da cidade buscando notícias em cada esquina, havia
bandos de desertores, refugiados e camponeses em fuga; o barulho estrondoso da
batalha se aproximava a cada dia. O novo presidente do Conselho, Grabski, caiu, e
Witos, seu sucessor, que não gozava da confiança da direita, fez um esforço inútil para
enterrar as diferenças partidárias e organizar a resistência civil. Nos distritos da classe
trabalhadora e no bairro Nalevki do gueto de Varsóvia, onde 300.000 judeus estavam
ansiosamente observando cada eco da batalha, já havia sinais de revolta. Os rumores
mais estranhos eram ouvidos no saguão da Dieta, nas salas de espera dos Ministé-
rios, em bancos e escritórios de jornais, em cafés e quartéis. Falava-se de interven-
ção militar alemã, que Witos teria pedido para conter a ofensiva bolchevique. Mais
tarde, ouvimos que as negociações com Berlim tinham de fato sido realizadas, mas
por Witos em total acordo com Pilsudski. A chegada do general Weygand parecia de
alguma forma estar conectada com essas conversas, e sua vinda foi certamente uma
frustração do plano dos Witos e um descrédito para Pilsudski. Os homens da direita,
que sempre defenderam a cooperação com a política francesa, acusaram Witos de
ineficiência e jogo duplo e clamaram por um governo forte. Witos involuntariamente
aumentou a confusão geral por ser totalmente incapaz de reprimir o tumulto das fac-
ções do partido e por atribuir toda a responsabilidade pelo desastre primeiro à direita
e depois à esquerda.
O inimigo estava às portas da cidade. A fome e a sedição já tinham tomado
conta de Varsóvia. Procissões marchavam para cima e para baixo nas ruas dos subúr-
bios, e nas calçadas da Krakowskie Przedmiescie, bandos de desertores de rostos fun-
dos e olhos cansados vagavam em frente aos bancos, aos palácios e às casas dos ricos.
Em 6 de agosto, Monsenhor Ratti, o Núncio Papal (agora Papa Pio XI), cha-
mou o Presidente do Conselho e como Doyen do Corpo Diplomático ele foi com os
Ministros da Grã-Bretanha, Itália e Romênia para pedir a Witos que nomeasse ime-
diatamente a cidade6 para a qual o Governo seria transferido caso a capital tivesse
que ser evacuada. A decisão de tomar essa medida foi tomada no dia anterior, após
uma longa discussão entre todos os membros do Corpo Diplomático no escritório do
Núncio. A maioria dos presentes seguiu o exemplo dos ministros britânico e alemão,
Sir Horace Rumbold e Conde Oberndorff, ao defender a transferência imediata do
Corpo Diplomático para um lugar mais seguro, como Posen ou Czenstochowa. Sir
Horace Rumbold até sugeriu que o Governo polonês deveria ser pressionado a esco-
lher Posen como capital provisória. Os únicos dois que eram a favor de permanecer
em Varsóvia até o último momento eram o Núncio, Monsenhor Ratti, e o Ministro
italiano, Tommasini. A atitude deles na reunião foi profundamente criticada e não
foi recebida favoravelmente pelo Governo polonês: se o Núncio Papal e o Ministro
italiano estavam ansiosos para permanecer em Varsóvia, era certamente porque se-
cretamente esperavam que uma saída no último momento fosse impossível e que eles
então permaneceriam sob uma ocupação bolchevique.
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Assim, o Núncio Papal teria uma oportunidade para abrir negociações entre o Vaticano e o
Governo Soviético sobre questões religiosas de interesse da Igreja. A Igreja há muito tempo
era uma observadora dos eventos russos e estava apenas esperando por uma oportunidade
para ampliar sua esfera de influência na Europa Oriental. Isso ficou claro não apenas pela
nomeação de Monsenhor Genocchi como Visitador Apostólico na Ucrânia, mas também
pela franca proteção estendida pelo Papa ao Arcebispo Metropolitano Uniata de Heópolis,
Monsenhor André Szeptychi. A Santa Sé sempre considerou a Igreja Uniata Galega como
uma intermediária natural na conquista católica da Rússia.Assim, o Núncio Papal teria uma
oportunidade para abrir negociações entre o Vaticano e o Governo Soviético sobre questões
religiosas de interesse da Igreja. A Igreja há muito tempo era uma observadora dos eventos
russos e estava apenas esperando por uma oportunidade para ampliar sua esfera de influên-
cia na Europa Oriental. Isso ficou claro não apenas pela nomeação de Monsenhor Genocchi
como Visitador Apostólico na Ucrânia, mas também pela franca proteção estendida pelo
Papa ao Arcebispo Metropolitano Uniata de Heópolis, Monsenhor André Szeptychi. A Santa
Sé sempre considerou a Igreja Uniata Galega como uma intermediária natural na conquista
católica da Rússia.
Quanto ao Ministro italiano, Tommasini, pensava-se que ele estava cumprindo as ordens
de seu Ministro das Relações Exteriores, Conde Sforza, que também estava inclinado a
entrar em relações amigáveis com a Rússia por razões de política interna, ditadas principal-
mente pelas demandas exigentes dos Socialistas Italianos. Se Varsóvia fosse ocupada pelos
Bolcheviques, a presença do Ministro italiano Tommasini daria ao Conde Sforza uma opor-
tunidade adequada para abrir relações diplomáticas com o Governo em Moscou.
Witos, o Presidente do Conselho, saudou a mudança do Monsenhor Ratti com grande
frieza. No entanto, foi acordado que o Governo Polonês se mudaria para Posen e cuidaria
da transferência do Corpo Diplomático ~ em caso de perigo. No dia seguinte, 8 de agosto,
muitos secretários da Legação deixaram Varsóvia.
A vanguarda do exército bolchevique já havia alcançado os portões da cidade. Nos
subúrbios dos trabalhadores, os primeiros tiros foram ouvidos. Agora era o momento para
um golpe de Estado.
Varsóvia hoje em dia parecia uma cidade esperando para ser saqueada. O grande ca-
lor parecia sufocar todas as vozes e ruídos. As multidões nas ruas estavam perfeitamente si-
lenciosas. De vez em quando, um comboio interminável de bondes transportando os feridos
passava lentamente por essas multidões. Os feridos às vezes olhavam pelas janelas, sacudiam
os punhos e xingavam. Um zumbido incessante se espalhava de calçada em calçada, de rua
em rua. Um grupo de prisioneiros bolcheviques, espancados, curvados e mancando, com
estrelas vermelhas na frente de seus uniformes, marchava entre sebes de ulanos montados. A
multidão se abriu em silêncio para deixá-los passar e imediatamente se fechou novamente.
Brigas eclodiam aqui e ali apenas para serem esmagadas de uma vez pelas multidões cres-
centes. Às vezes, uma pequena procissão de soldados magros e febris marchava, carregando
cruzes pretas bem alto sobre o mar de cabeças. A população avançava lentamente em on-
das, e então uma corrente seguia as cruzes, redemoinhava ao redor deles, fluía de volta e se
perdia no mar agitado de seres humanos. Na ponte do Vístula, outra multidão ouvia atenta-
mente o trovão distante da batalha. Nuvens pesadas carregadas de calor e poeira escureciam
o horizonte, que vibrava e trovejava como se um aríete o tivesse atacado.
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As principais estações ferroviárias eram sitiadas dia e noite por bandos de deserto-
res famintos, refugiados de todas as raças e condições. Somente os judeus pareciam se
sentir em casa durante esses dias caóticos. O bairro de Nalevski, o gueto de Varsóvia,
estava se regozijando. Aqui, o ódio pelos perseguidores poloneses dos filhos de Israel
era feroz e, consequentemente, havia prazer em testemunhar o fim miserável da Polônia
católica e intolerante. Os judeus de Nalevski, geralmente tão silenciosos e passivos tanto
por prudência quanto por tradição, traíram seus sentimentos por atos muito excepcio-
nais de coragem e violência. Os judeus estavam se tornando sediciosos: um mau pressá-
gio para os poloneses.
As notícias trazidas pelos refugiados das áreas ocupadas reacenderam o espírito
de sedição: eles disseram que em cada vila e cidade ocupada pelos bolcheviques, um
soviete composto principalmente por judeus locais havia sido criado. Os judeus per-
seguidos estavam realmente se tornando perseguidores? Liberdade, vingança e poder
eram frutos tão deliciosos que os miseráveis habitantes de Nalevski ansiavam por pro-
vá-los. O Exército Vermelho, a apenas alguns quilômetros de Varsóvia, encontrou um
aliado natural na enorme população judaica da cidade, que se tornava diariamente mais
numerosa e mais excitada. No início de agosto, havia pelo menos 500.000 deles em
Varsóvia. Muitas vezes eu me perguntava o que impedia essa grande massa sediciosa de
pessoas de tentar se revoltar, cheias como estavam de um ódio fanático e famintas por
liberdade.
Com um Estado desmembrado, um governo em seu leito de morte, uma grande
parte do país invadida e a capital sitiada e em desordem, apenas mil homens deter-
minados e prontos para tudo poderiam ter tomado posse da cidade sem disparar um
único tiro. Mas minha experiência daqueles dias me ensinou que, embora um Catilina
possa ser judeu, os instrumentos do golpe de Estado não devem ser recrutados entre
os filhos de Israel. Em Petrogrado, em outubro de 1917, a Catilina da insurreição bol-
chevique foi o judeu Trotsky e não o russo Lenin: mas os executores, os Catilina, eram
praticamente todos marinheiros, trabalhadores e soldados russos. Em sua luta com Sta-
lin em 1927, Trotsky aprendeu às suas custas o quão perigoso era confiar em seguidores
principalmente judeus para executar seu golpe de Estado.
O Corpo Diplomático se reunia quase todos os dias no escritório do Núncio para
discutir a situação. Eu frequentemente acompanhava o Ministro italiano Tommasini,
que não estava nada satisfeito com a atitude de todos os seus colegas, que apoiavam
Sir Horace Rumbold e o Conde Oberndorf. Apenas o Ministro francês, M. de Pana-
fieu, achava a situação mais crítica e não escondia seu medo de que a partida do Corpo
Diplomático para Posen daria a impressão de fuga e despertaria a indignação pública.
Junto com Monsenhor Ratti e o Ministro italiano, ele acreditava que Varsóvia não de-
veria ser abandonada até o último momento e que o conselho de Sir Horace Rumbold
e do Conde Oberndorf de deixar a capital imediatamente não deveria ser seguido, a
menos que a situação interna entrasse em colapso e a defesa militar da cidade fosse,
portanto, comprometida.
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A visão de M. de Panafieu era, na realidade, mais próxima daquela dos ministros
britânico e alemão do que daquela do núncio papal e do ministro italiano. Este último,
é claro, queria ficar em Varsóvia mesmo que os bolcheviques entrassem na cidade, mas
eles estavam francamente esperançosos sobre a situação militar e interna. Eles não viam
perigo para o Corpo Diplomático em atrasar sua partida para Posen até o último minu-
to.
Mas para M. de Panafieu era apenas a situação militar que parecia esperançosa.
Ele não podia desconfiar muito de Weygand. Como um general francês agora havia
sido encarregado da defesa da cidade, o Ministro francês fingiu concordar com Sir
Horace Rumbold e o Conde Oberndorff não porque duvidasse da situação militar, mas
apenas por causa dos perigos inerentes à situação interna. Os Ministros francês e ale-
mão estavam especialmente com medo de que Varsóvia caísse nas mãos do exército
bolchevique. Apenas uma revolta judaica ou comunista poderia oficialmente preocu-
par M. de Panafieu. “O que temo”, disse o Ministro francês, “é que Pilsudski e Weygand
possam ser esfaqueados nas costas”.
De acordo com Monsenhor Pellegrinetti, Secretário do Nunciado, o Núncio
Papal não acreditava em um golpe de Estado. “O Núncio”, disse o General Carton de
Wiart, chefe da Missão Militar Britânica, “não consegue imaginar essa multidão mise-
rável do gueto e dos subúrbios de Varsóvia ousando tentar tomar o poder”. Mas a Polô-
nia não é como a Igreja, na qual apenas Papas e Cardeais dão golpes de Estado.
Monsenhor Ratti estava convencido do fracasso da rebelião, embora não estives-
se impressionado com as precauções contra novos e mais sérios perigos tomadas pelo
governo, os líderes militares e as classes governantes — isto é, por aqueles que eram
responsáveis pelos eventos. Mas os argumentos de M. de Panafieu eram de natureza sé-
ria demais para não despertar algumas dúvidas na mente do Núncio. Portanto, a visita
de Monsenhor Pellegrinetti ao Ministro Tommasini uma manhã não foi uma surpresa
para mim. O prelado veio assegurar-lhe que o governo havia tomado todas as medidas
de precaução para lidar com qualquer tentativa futura de rebelião. O Ministro italiano
imediatamente me chamou e, na presença de Monsenhor Pelegrinetti, ele explicou as
dúvidas do Núncio e me disse para descobrir quais precauções o governo havia toma-
do para evitar desordens e suprimir uma revolta. O General Romei, chefe da Missão
Militar Italiana, acabara de trazer notícias confirmando o avanço contínuo da ofensiva
bolchevique, o que não lhe deixou a menor dúvida sobre o destino de Varsóvia. Era 12
de agosto. Naquela noite, o exército de Trotsky estava a cerca de vinte milhas da cidade.
“Se as tropas polonesas puderem resistir por mais um ou dois dias”, disse o ministro. “O
movimento do general Weygand ainda pode ser bem-sucedido. Mas não devemos espe-
rar muito.” Ele me disse para ir até os distritos da classe trabalhadora e para o bairro de
Nalevski, onde eles temiam desordens; para descobrir no local os centros mais críticos
da cidade; e para descobrir se Weygand e Pilsudski tinham sido adequadamente prote-
gidos e o governo suficientemente garantido contra um possível golpe de mão. ‘‘Seria
melhor”, ele concluiu, “se você não fosse sozinho.” E ele me aconselhou a ir com o capi-
tão Rollin, um adido na Legação Francesa.
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O capitão Rollin, um oficial de cavalaria, estava no “segundo bureau” da equipe.
Ele era um dos colaboradores mais capazes e talentosos de M. de Panafien e do
general Henrys, o chefe da missão militar francesa. Ele visitava frequentemente
a legação italiana e tinha excelentes relações com o ministro italiano, de fato, eles
eram amigos cordiais. Eu o encontrei novamente em Roma durante a Revolução
Fascista em 1921 e 1922, quando ele estava ligado à embaixada francesa no Palá-
cio Farnese. As táticas revolucionárias de Mussolini haviam conquistado comple-
tamente sua admiração.
Depois que o exército bolchevique sitiou Varsóvia, eu costumava ir com ele
todos os dias aos postos avançados poloneses para acompanhar mais de perto as
vicissitudes da batalha. Mas os soldados bolcheviques não pareciam muito for-
midáveis, exceto por aqueles cossacos vermelhos que eram cavaleiros terríveis
e dignos de uma causa mais nobre. Os outros entraram na batalha lentamente e
lamentavelmente. Eles pareciam uma multidão faminta e esfarrapada que é mo-
vida apenas pelo medo e pela fome. Com toda a minha experiência de guerra nas
frentes francesa e italiana, eu não conseguia entender como os poloneses podiam
recuar diante de tais soldados.
O capitão Rollin parecia pensar que o governo polonês não tinha noção da
arte de defender um Estado moderno. A mesma crítica pode ser aplicada a Pil-
sudski em outro sentido. Dizem que os soldados poloneses são destemidos. Mas
qual é a utilidade de soldados destemidos se seus líderes não sabem que a arte
da defesa está no conhecimento de seus próprios pontos fracos? As medidas de
precaução que o governo tomou para enfrentar qualquer tentativa de rebelião
provaram que ele não tinha conhecimento dos pontos mais fracos de um Estado
moderno.
A técnica do golpe de Estado avançou consideravelmente desde os dias
de Sulla: obviamente, então, os meios que Kerenski usou para impedir Lenin de
capturar o poder deveriam ser muito diferentes daqueles empregados por Cícero
para proteger a República contra a conspiração de Catilina. Antigamente, era uma
questão para a polícia resolver: hoje, tornou-se um problema técnico. Quando em
Berlim, em março de 1920, tanto as medidas policiais quanto as técnicas foram
postas à prova, o contraste era óbvio.
O governo polonês seguiu o exemplo de Kerenski: de fato, agiu de acordo
com a experiência de Cícero. Mas a arte de capturar e defender o Estado mudou
com os séculos, lado a lado com as mudanças que ocorreram na natureza do Es-
tado. Se a sedição de Catilina pôde ser suprimida com sucesso por certas medidas
policiais, medidas semelhantes foram inúteis contra Lenin. O erro de Kerenski es-
tava em sua tentativa de proteger os lugares vulneráveis em uma cidade moderna:
seus bancos, estações ferroviárias, centrais telefônicas e telegráficas, por métodos
que Cícero usou para defender o Fórum e os Subúrbios na Roma de sua época.
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Em março de 1920, von Kapp havia esquecido que, além do Reichstag e dos Ministé-
rios na Wilhelmstrasse, Berlim também tinha suas estações elétricas e de rádio, fábricas
e ferrovias. Os comunistas aproveitaram seu erro e paralisaram a vida de Berlim, cau-
sando o colapso do Governo provisório que havia chegado ao poder por um golpe de
força dos métodos da polícia militar. Na noite de 2 de dezembro, Luís Napoleão co-
meçou seu golpe de Estado tomando posse de todas as impressoras e torres de relógio.
Mas o povo polonês nunca se lembra de suas próprias experiências, muito menos das
de outros povos. A história polonesa é cheia de eventos que os poloneses consideram
peculiares a si mesmos. Eles não acreditam que um único evento em sua vida nacional
possa ser encontrado na história de outro povo: eles o vivenciam pela primeira vez;
nunca ocorreu em nenhum outro lugar.
As precauções tomadas pelo governo Witos eram as medidas policiais usuais.
Apenas quatro soldados estavam posicionados em cada extremidade das pontes sobre o
Vístula, a ponte ferroviária e a ponte de Praga. A principal estação elétrica estava des-
protegida; não encontramos nenhum vestígio de um vigia ou sentinela em lugar ne-
nhum. O gerente nos disse que o governador militar da cidade tinha acabado de telefo-
nar para dizer que se alguma das máquinas fosse sabotada ou a corrente interrompida,
o próprio gerente seria responsabilizado. A Cidadela além do bairro Nalevski, na pe-
riferia de Varsóvia, estava cheia de ulanos e cavalos. Entramos e saímos livremente; as
sentinelas nunca pediram nossos passes. Aliás, havia um estoque de armas e pólvora na
Cidadela. Mais confusão reinou na estação ferroviária: grupos inteiros de fugitivos in-
vadiram os trens, uma multidão indisciplinada lotou as plataformas e a linha, e grupos
de soldados bêbados dormiam profundamente, estendidos no chão. “Somno vinoque
sepulti”, disse o capitão Rollin, que sabia latim. Seriam necessários apenas dez homens
armados com granadas de mão. . . .
Como de costume, quatro sentinelas guardavam o Quartel-General do Exército
na praça principal de Varsóvia sob a sombra de uma igreja russa que já foi demolida. A
porta e o corredor estavam bloqueados pelo vai e vem contínuo de oficiais e ordenanças
cobertos de poeira da cabeça aos pés. Aproveitamos a confusão para subir as escadas e
descer um corredor através de uma sala pendurada com mapas topográficos onde um
oficial, sentado em uma mesa no canto, levantou a cabeça e nos cumprimentou com
um olhar entediado no rosto. Descemos outro corredor e chegamos a uma espécie de
sala de espera onde alguns oficiais, cinzentos de poeira, estavam esperando perto de
uma porta entreaberta, e então descemos novamente para o corredor. Quando passa-
mos mais uma vez pelos dois sentinelas na praça, o capitão Rollin se virou para mim e
sorriu. O Hotel des Postes era guardado por um tenente com um piquete de soldados.
Este oficial nos disse que tinha ordens de manter a multidão fora do hotel caso ela se
soltasse. Eu sugeri que tal piquete de soldados ordeiros sem dúvida teria sucesso em re-
pelir uma multidão rebelde, mas dificilmente conseguiria lidar com um ataque repenti-
no feito por dez homens determinados. O tenente sorriu e, apontando para a multidão
entrando e saindo silenciosamente do prédio, ele respondeu que aqueles dez homens
talvez tivessem entrado separadamente ou estivessem no processo de fazê-lo sob nossos
olhos: “Meu trabalho é suprimir uma revolta, não impedir um golpe de mão.”
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Soldados se reuniam aqui e ali em frente aos Ministérios e observavam atenta-
mente o público em geral e os funcionários enquanto eles passavam de um lado
para o outro. A Dieta estava cercada por policiais montados e ulanos: deputados
chegavam e saíam, conversando entre si em vozes abafadas. No Lobby, encon-
tramos Trompczinski, o Marechal da Dieta, que nos cumprimentou distraida-
mente. Ele estava cercado por alguns deputados posnanianos, alertas e calmos.
Trompczinski era um posnaniano da direita e francamente hostil à política de
Pilsudski. Sua manobra secreta para derrubar o Governo Witos estava sendo mui-
to discutida na época.
Naquela noite no Hunt Club, o Marechal da Dieta disse a Cavendish Ben-
tinck da Legação Britânica, “Pilsudski não sabe como defender a Polônia, e Witos
não sabe como defender a República.” Para Trompczinski, a República significava
a Dieta. Como todos os homens gordos, Trompczinski nunca se sentiu realmente
seguro.
Durante todo aquele dia, nós vagamos pela cidade em todas as direções,
indo para os subúrbios mais distantes. Às dez da noite, quando passamos em fren-
te ao Savoy Hotel, o capitão Rollin ouviu seu nome ser chamado. Era o general
Bulach Balachowitch, parado na porta, que nos chamou para entrar. Ele era um
“partidário” de Pilsudski, mas no sentido russo e polonês da palavra: o general
russo Balachowitch liderou as famosas tropas dos cossacos negros que lutaram
pela Polônia contra os cossacos vermelhos de Budyonni.
Ousado e inescrupuloso, habilidoso em banditismo, treinado em todos os
truques da guerrilha partidária, Balach Balachowitch era o trunfo de Pilsudski.
Pilsudski o usou e ao Hetman Petlura para fomentar levantes contra os bolchevi-
ques e Denikin na Rússia Branca e na Ucrânia. O quartel-general de Balachowi-
tch ficava no Hotel Savoy, onde ele às vezes aparecia apressadamente, entre duas
escaramuças, para observar os desenvolvimentos políticos. Uma crise no governo
o teria afetado seriamente, seja favorável ou desfavoravelmente. Os assuntos inter-
nos concentravam sua atenção mais de perto do que os movimentos dos cossacos
de Budyonni. Os poloneses desconfiavam dele e o próprio Pilsudski só o usava
com extrema cautela, como se ele fosse um aliado perigoso.
Balachowitch imediatamente começou a discutir a situação. Ele não escon-
deu sua crença na necessidade de um golpe de Estado da direita se Varsóvia fosse
salva do inimigo e a Polônia mantida longe da devastação. “Witos não está apto
a lidar com a situação”, concluiu, “nem pode proteger a retaguarda do exército de
Pilsudski. Se ninguém decidir tomar o poder e pôr fim à desordem, organizar a
resistência civil e defender a República contra os perigos que a ameaçam, teremos
um golpe de Estado comunista em um ou dois dias”. O capitão Rollin pensou que
era tarde demais para impedir uma revolta comunista e que não havia homens
aptos para tamanha responsabilidade entre os partidos da direita.
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Entre os nobres e grandes proprietários de terras no clube Hunt naquela noite, além
de Sapieha e Trompczinski, encontramos alguns dos membros mais representativos da
Oposição a Pilsudski e Witos. Os únicos diplomatas estrangeiros eram o conde Obern-
dorff, o ministro alemão, o general britânico Carton de Wiart e o secretário da legação
francesa. Todos pareciam à vontade, exceto Sapieha e Oberndorff. Sapieha fingiu não
ouvir as propostas que estavam sendo feitas ao seu lado e ocasionalmente se inclinava
para dizer algumas palavras ao general Carton de Wiart, que estava discutindo a posi-
ção militar com o conde Potocki. Naquele dia, as tropas bolcheviques avançaram consi-
deravelmente no setor Radzymin, uma vila a cerca de vinte quilômetros de Varsóvia.
O Conde Potocki havia deixado Paris apenas alguns dias antes, mas já estava plane-
jando voltar o mais rápido possível, assim que a sorte sorrisse para a Polônia novamen-
te.
“Vocês são todos como o seu famoso Dombrovski que liderou a legião polonesa
na Itália na época de Napoleão”, disse Carton de Wiart, “Dombrovski costumava dizer
que sempre estarei pronto para morrer pelo meu país, mas não para viver nele”.
Tais eram os homens e tais eram suas ideias. Você podia ouvir o estrondo de
armas à distância. Antes de nos deixar naquela manhã, o Ministro italiano nos disse
para esperá-lo no Hunt Club. Estava ficando muito tarde: eu estava prestes a ir quando
Tommasini chegou. Nossas notas sobre o despreparo do Governo Witos o impressiona-
ram como sendo sérias o suficiente, mas não o pegaram desprevenido. Apenas algumas
horas antes, Witos confessou a ele que não se sentia mais o mestre da situação. Tomma-
sini não estava menos convencido de que entre os inimigos de Pilsudski e Witos não
havia ninguém apto a tentar um golpe de Estado. Os comunistas sozinhos poderiam
causar algum desconforto. Mas eles estavam com medo de comprometer a situação
por algum movimento incauto e, portanto, mantiveram-se afastados de uma aventura
que poderia ter se mostrado perigosa, se não inútil. Obviamente, o jogo estava ganho
e eles estavam apenas esperando a chegada de Trotsky. “Até mesmo Monsenhor Ratti”,
acrescentou o Ministro, “decidiu não abandonar a visão que até agora mantivemos por
consenso comum. O Núncio Papal e eu ficaremos em Varsóvia até o fim: aconteça o que
acontecer.”
“Que pena”, comentou o Capitão Rollin alguns minutos depois e não sem ironia,
“que pena se nada acontecer”.
Quando chegaram as notícias na noite seguinte de que o Exército Bolchevique
havia ocupado a vila de Radzymin e estava atacando a outra ponta da ponte de Var-
sóvia, o Corpo Diplomático saiu correndo da capital e se abrigou em Posen. Apenas o
Núncio Papal, o Ministro Italiano e os Encarregados de Negócios dos EUA e da Dina-
marca ficaram em Varsóvia.
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A cidade ficou em pânico a noite toda. No dia seguinte, que era 15 de agosto e
dia de Santa Maria, toda a população marchou em procissão atrás da estátua da
Virgem, implorando a ela para salvar a Polônia da invasão.
Tudo parecia perdido. A enorme procissão, cantando suas ladainhas, espe-
rava ver um grupo de Cossacos Vermelhos aparecer na próxima esquina. Então,
chegaram as notícias das primeiras vitórias do General Weygand. Elas se espalha-
ram como fogo selvagem. O exército de Trotsky estava batendo em retirada em
todos os pontos ao longo da linha.
O aliado indispensável de Trotsky, Catilina, falhou com ele.
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CAPÍTULO QUATRO
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A Europa estava madura para a revolução, mas os partidos revolucionários eram
claramente incapazes de fazer bom uso dessas circunstâncias favoráveis ou da expe-
riência de Trotsky. Eles sustentavam que o sucesso da insurreição bolchevique em
outubro de 1917 foi devido à condição peculiar da Rússia naqueles dias e aos erros de
Kerenski. Mas naquela época quase todas as nações europeias tinham um Kerenski à
frente do governo: eles esqueceram que quando Trotsky formou seu plano para um
golpe de Estado e o colocou em execução, ele não tomou a menor nota da situação
especial da Rússia. A novidade nas táticas insurrecionais de Trotsky estava neste com-
pleto desrespeito à situação geral do país. Os erros de Kerenski poderiam influenciar
apenas o plano e a execução do golpe de Estado bolchevique; as táticas de Trotsky
teriam sido as mesmas mesmo se a situação russa tivesse sido diferente.
Os erros de Kerenski foram, e ainda são, típicos de toda a burguesia liberal na
Europa. Os governos eram extremamente fracos e sua sobrevivência era uma questão
de organização policial. Enquanto isso, os governos liberais tiveram sorte porque os
Catilinos também consideravam a revolução como uma questão de organização poli-
cial.
O Putsch de Kapp é uma lição para todos aqueles que pensam em táticas revolu-
cionárias em termos de política e não de técnica.
Na noite de 12 para 13 de março de 1920, várias divisões de regimentos bálticos
comandados pelo general von Luttwitz se reuniram perto de Berlim. Eles enviaram
um ultimato ao governo de Bauer ameaçando ocupar a capital a menos que o governo
renunciasse em favor de Kapp. Mesmo que Kapp se orgulhasse da natureza parlamen-
tar de seu golpe de Estado e de ser o Siéyès de von Luttwitz, sua tentativa de revolução
foi um golpe de Estado puramente clássico e militar desde o início, tanto na concep-
ção quanto na execução. O governo de Bauer recusou o pedido e tomou as medidas
policiais necessárias para a defesa do Estado e a manutenção da ordem. Como sempre
acontece em tais casos, o governo neutralizou o plano militar com um plano policial.
Os dois são semelhantes e é por isso que a sedição militar não é revolucionária de for-
ma alguma. A polícia defende o Estado como se fosse uma cidade: os soldados atacam
o Estado como se fosse uma fortaleza.
Bauer disse à polícia para barricar as praças e ruas principais e ocupar todos
os edifícios públicos. Para executar seu golpe de Estado, Von Luttwitz substituiu os
policiais no cruzamento das ruas principais, na entrada de uma praça, em frente ao
Reichstag e aos Ministérios na Wilhelmstrasse, por suas próprias tropas. Poucas horas
após sua entrada na cidade, ele era o mestre da situação. A cidade havia sido tomada
sem derramamento de sangue, tão regularmente quanto qualquer troca de guarda.
Mas se von Luttwitz era um soldado, Kapp, o ex-diretor de Agricultura, era um alto
funcionário e um burocrata. Von Luttwitz pensou que havia capturado o Estado ape-
nas substituindo seus próprios homens pela polícia na manutenção da ordem pública,
enquanto Kapp, o novo chanceler, estava convencido de que a ocupação dos Minis-
térios garantiria suficientemente o funcionamento normal da máquina do Estado e
confirmaria a legalidade do Governo Revolucionário.
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Bauer era um homem comum, mas dotado de bom senso, bem familiarizado
com os generais e principais oficiais do Reich. Ele viu imediatamente o quão inútil
seria enfrentar o golpe de Estado de von Luttwitz com um contra-ataque armado.
A ocupação de Berlim pelas tropas do Báltico não poderia ser evitada. Os poli-
ciais não teriam chance contra esses soldados endurecidos;. Eles eram uma arma
útil contra tumultos e conspirações, mas sem esperança quando se tratava de vete-
ranos. Quando os primeiros capacetes de aço apareceram na frente da barricada
que bloqueava a entrada da Wilhelmstrasse, o esquadrão policial de lá se rendeu
aos rebeldes. O próprio Noske, um homem enérgico e determinado a resistir até
o fim, decidiu apoiar Bauer e os outros ministros quando soube das primeiras
deserções. Bauer pensou corretamente que o Governo Revolucionário era o mais
fraco em seu controle da máquina do Estado. Se a máquina pudesse de alguma
forma ser parada, ou pelo menos impedida de ir, então o Governo Kapp seria
mortalmente ferido. Se o pulso do Estado pudesse ser interrompido, então toda a
vida pública ficaria necessariamente paralisada.
A atitude de Bauer era a de um pequeno burguês educado na escola de
Marx. Ele era o único homem ousado o suficiente para tentar uma reviravolta
completa e violenta da vida pública a fim de impedir Kapp de afirmar seu poder
com a ajuda da lei e da ordem constituídas: e tal homem só poderia ser um bur-
guês de classe média, um homem de ordem, cheio de ideias socialistas, acostuma-
do a julgar homens e eventos bastante estranhos à sua mentalidade, sua educação
ou seus interesses, com uma imparcialidade e um ceticismo dignos de um funcio-
nário do governo.
Antes de deixar Berlim para se abrigar em Dresden, o governo de Bauer
lançou um apelo ao proletariado, convidando os trabalhadores a proclamar uma
greve geral. A decisão de Bauer significava ~ perigo para Kapp. Uma nova ofensi-
va das forças que ainda eram leais ao governo de Bauer ~ teria sido muito menos
perigosa para Kapp do que uma greve geral, porque as tropas de von Luttwitz po-
deriam facilmente ter vencido. Mas como uma enorme multidão de trabalhadores
poderia ser persuadida a voltar ao trabalho? Certamente não pelo uso da violên-
cia. Ao meio-dia, Kapp pensou que tinha a situação bem controlada, mas naquela
mesma noite, em 13 de março, ele se viu cercado por um inimigo imprevisto. A
vida de Berlim foi paralisada em alguns momentos. A greve estava se espalhando
por toda a Prússia. A escuridão reinava na capital, as ruas do centro estavam de-
sertas, embora tudo estivesse perfeitamente tranquilo nos subúrbios dos trabalha-
dores. Uma paralisia geral atingiu os serviços técnicos como um raio: até mesmo
as enfermeiras deixaram seus hospitais. As comunicações com a Prússia e o resto
da Alemanha cessaram no início da tarde: Berlim passaria fome em poucas horas.
Não havia sinal de violência ou rebelião nas multidões e os trabalhadores deixa-
ram suas fábricas com a maior frieza. A desordem geral era perfeita.
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Berlim parecia ter mergulhado em um sono pesado na noite de 13 para 14 de mar-
ço, exceto no Hotel Adlon, onde as Missões Aliadas tinham seus alojamentos e onde
todos ficaram acordados a noite toda esperando por acontecimentos mais sérios. Ao
amanhecer, a capital estava quieta, embora privada de pão, água e jornais. Nos distri-
tos mais populosos, os mercados estavam desertos: a greve ferroviária havia cortado o
suprimento de alimentos da cidade e a greve geral havia se espalhado como uma praga
entre todos os funcionários do governo e privados. Operadores de telefone e telégrafo
nunca apareceram em seus escritórios. Bancos, lojas e cafés estavam fechados. Vários
funcionários nos escritórios do governo se recusaram a reconhecer o Governo Re-
volucionário. Bauer havia previsto o quão infecciosa a greve seria. Kapp pediu a seus
próprios engenheiros e trabalhadores qualificados que tentassem consertar o delicado
mecanismo dos serviços técnicos, mas era tarde demais. A própria máquina do Estado
já havia sido atingida pela paralisia.
A população operária dos subúrbios não estava mais tão quieta quanto nos pri-
meiros dias; pequenos sinais de impaciência, inquietação e revolta começavam a ser
perceptíveis em todos os lugares. As notícias vindas de todos os estados do sul obri-
garam Kapp a escolher uma de duas alternativas: render-se à Alemanha, que sitiou
Berlim, ou render-se a Berlim, que mantinha o governo ilegal como prisioneiro. Ele
deveria entregar o poder a Bauer ou aos conselhos operários, que já haviam obtido a
maioria nos subúrbios? Apenas o Reichstag e os Ministérios foram conquistados no
golpe de estado. A posição de Kapp estava ficando mais séria a cada hora: seu governo
estava sendo lentamente privado das próprias possibilidades e chances de um movi-
mento político. Negociações com os partidos de esquerda ou acordos com os de direita
pareciam estar fora de questão. Um movimento violento poderia ter levado a consequ-
ências imprevistas. Quando as tropas de von Luttwitz tentaram obrigar os trabalhado-
res a voltarem ao trabalho, o único resultado foi um derramamento de sangue inútil.
As primeiras vítimas jaziam mortas na calçada aqui e ali, como prova do erro fatal de
um governo revolucionário que se esqueceu de tomar as principais usinas elétricas e
estações ferroviárias.
Essas primeiras gotas de sangue produziram uma ferrugem indelével na engre-
nagem do Estado, e no terceiro dia a falta de disciplina evidentemente havia corroído
seu caminho para dentro da burocracia, a julgar pela prisão de vários altos funcioná-
rios do Ministério das Relações Exteriores. Em 15 de março, a Assembleia Nacional foi
convocada em Stuttgart e Bauer disse ao presidente Ebert, ao falar dos incidentes san-
grentos em Berlim: “Kapp cometeu seu erro quando interferiu na desordem”.
O mestre da situação era Bauer, o Bauer moderado, com seu respeito pela or-
dem. Só ele sabia que a tentativa de revolução de Kapp poderia ser decisivamente re-
primida por uma desordem generalizada. Nem um conservador cheio de princípios
autoritários, nem um liberal com respeito pela lei, nem ainda um democrata leal ao
Parlamento como um canal para lutas políticas, jamais ousaria como ele a despertar a
intervenção ilegal das massas proletárias e defender o Estado confiando em uma greve
geral.
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O Príncipe de Maquiavel teria ousadamente convocado o povo para lutar contra um ata-
que repentino ou uma conspiração do Governo, e o Príncipe de Maquiavel era certamente
mais Conservador do que um Tory dos dias da Rainha Vitória, embora o Estado não fosse
responsável por seus preconceitos morais ou sua educação política. Mas então ele foi educado
naqueles exemplos históricos comuns das tiranias da Ásia, Grécia e os Signorias Italianas do
Renascimento.
Por outro lado, a tradição em governos europeus conservadores ou liberais proíbe
qualquer apelo à ação ilegal pelas massas proletárias, qualquer que seja o perigo que tenha de
ser enfrentado. Mais tarde, as pessoas na Alemanha se perguntaram o que Stresemann teria
feito se estivesse no lugar de Bauer. Podemos ter certeza de que Stresemann teria considerado
o apelo de Bauer ao proletariado como um procedimento extremamente incorreto.
A educação de Bauer, deve ser lembrada, foi marxista, de modo que ele naturalmente
não tinha dúvidas quanto à escolha dos meios com os quais lutar uma revolução. A ideia de
usar uma Greve Geral como um método legal de defender um Estado democrático contra um
ataque repentino de quartéis militares ou comunistas não poderia ser estranha a um homem
criado nos ensinamentos de Marx. Bauer, no entanto, foi o primeiro a aplicar um dos prin-
cípios fundamentais de Marx na defesa do Estado. Seu exemplo é da maior importância na
história das revoluções modernas.
A fé do povo alemão em Bauer durante os cinco dias de governo ilegal começou a
vacilar e deu lugar à inquietação e ao medo quando Kapp proclamou em 17 de março que
estava renunciando ao poder porque “a condição extremamente crítica da Alemanha exigia a
união de todos os partidos e cidadãos para enfrentar o perigo de uma Revolução Comunista”.
O Partido Socialista havia perdido o controle sobre a Greve Geral, e os verdadeiros donos da
situação eram os comunistas. A República Vermelha havia sido proclamada em alguns subúr-
bios de Berlim. Conselhos de trabalhadores estavam surgindo aqui e ali por toda a Alemanha.
Na Saxônia e no Ruhr, a Greve Geral havia inaugurada a revolta e o Reichswehr enfrentou um
exército comunista perfeitamente bom, equipado com canhões e metralhadoras. O que Bauer
faria? Kapp havia sido expulso pela Greve Geral - Bauer desapareceria em uma guerra civil?
Diante da necessidade de suprimir uma revolta dos trabalhadores, a educação marxista
de Bauer revelou sua fraqueza. Marx disse que “A insurreição é uma bela arte”. Mas sua arte é
a captura do poder, não a defesa dele. A estratégia revolucionária de Marx visa a captura do
estado; seu método é a guerra de classes. Lenin teve que perturbar alguns dos princípios bási-
cos do marxismo para permanecer no poder, como Zinoviev observou quando escreveu: “Da-
qui em diante, o verdadeiro marxismo é impossível sem Lenin”. A Greve Geral tinha sido a
arma de Bauer na defesa do Reich contra Kapp: se o Reich fosse poupado de uma insurreição
proletária, a Reichswehr deveria ser chamada. As tropas de Von Luttwitz ficaram perplexas
com a greve geral, mas poderiam facilmente ter superado uma revolução comunista. Kapp,
no entanto, havia renunciado ao poder no exato momento em que o proletariado lhe deu a
oportunidade de lutar em seu próprio território. Tal erro por parte de um reacionário como
Kapp é incompreensível e injustificável. Mas um marxista como Bauer não conseguia ver que
a Reichswehr naquele momento era a única arma possível para enfrentar uma insurreição
proletária, e seu erro é facilmente explicado. Enquanto isso, após várias tentativas inúteis de
concordar com os líderes da revolta comunista, Bauer entregou a Muller. Foi um fim miserá-
vel para um homem de ideias tão destemidas, honestas e moderadas. Tanto os conspiradores
europeus quanto os liberais ainda têm muito a aprender com Lenin e Bauer.
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CAPÍTULO CINCO
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O erro mais grave de Bonaparte foi o de fundar seu plano do XVIII Brumá-
rio ou um respeito pela lei e no mecanismo do procedimento parlamentar. Este
“erro” prova que Bonaparte tinha uma percepção tão aguçada de certos proble-
mas contemporâneos do Estado e uma preocupação tão inteligente sobre os peri-
gos inerentes às muitas e delicadas relações entre o cidadão e o Estado, a ponto de
ser um homem essencialmente moderno e um europeu de nossos tempos. Apesar
das falhas no plano e na execução, o XVIII Brumário ainda é o modelo de um
golpe de Estado parlamentar. Sua característica saliente reside no próprio fato de
que nenhum golpe de Estado parlamentar na Europa moderna pode ocorrer sem
as mesmas falhas no plano e na execução. Isso nos leva a Bauer, Primo de Rivera
e Pilsudski.
Nas planícies da Lombardia, estudando os exemplos clássicos de Sula,
Catilina e César, Bonaparte preparou sua tentativa contra o Estado. Eles eram
exemplos famosos, mas inúteis para ele. A conspiração de Catilina não poderia
ter interesse prático para Bonaparte. Catilina quase não era um herói e era um
político sedicioso, escrupuloso demais e sem ousadia. No entanto, Cícero era
um maravilhoso Prefeito de Polícia. Catilina e seus companheiros conspiradores
foram cuidadosamente atraídos para sua rede e seu poderoso cinismo os atacou
como uma campanha de jornal moderna. Cícero certamente sabia como colher
os benefícios de todos os erros de seus oponentes, de todos os procedimentos
burocráticos, as armadilhas, a fraqueza, as ambições e os instintos inferiores dos
nobres e da plebe. Naqueles dias, Bonaparte de boa vontade e livremente deu
vazão ao seu desprezo pelos sistemas policiais. Ele considerava Catilina um mero
conspirador, muito incauto, obstinado e indeciso, cheio de boas resoluções e más
intenções, como um revolucionário que nunca conseguia escolher a hora, o lugar
ou os meios; que era incapaz de enfrentar o povo no momento certo, um rebelde
oscilando entre barricadas e conspirações, perdendo momentos preciosos en-
quanto ouvia o “quo usque tadem” de Cícero ou organizava a campanha eleitoral
contra o Bloco Nacional. Catilina tinha o jeito de um Hamlet muito caluniado
e parecia ser uma presa tanto das intrigas de um advogado famoso quanto das
armadilhas policiais. E Cícero era inútil e ao mesmo tempo necessário. Pode-se
dizer dele o que Voltaire disse uma vez sobre os jesuítas: “Se os jesuítas devem ser
de alguma utilidade, eles devem ser impedidos de se tornarem necessários”. Em-
bora Bonaparte desprezasse os métodos policiais, e a ideia de uma revolta policial
repentina o revoltasse tão fortemente quanto uma revolução violenta de quartel,
ele era fascinado pela esperteza de Cícero. Um homem assim poderia ter se mos-
trado útil um dia. Nunca se poderia dizer. O deus do acaso, como Janus, encara
dois caminhos: um o caminho de Cícero e outro o caminho de Catilina.
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Como todos os homens que se preparam para tomar o poder por meios violentos, Bonaparte tinha
medo de cortar, aos olhos da França, a figura de Catilina que favorecia qualquer meio útil aos seus
planos sediciosos, que era um azarão em uma conspiração mais sombria, ambicioso, ousado, capaz
de quaisquer excessos, um criminoso pronto para saquear, massacrar e queimar, mas determinado
a vencer a qualquer preço, mesmo que fosse sufocado junto com seus inimigos sob as ruínas de seu
país. Bonaparte estava ciente do fato de que a reputação de Catilina era feita por lendas e calúnias.
Ele sabia que o julgamento de Cícero não tinha qualquer fundamento e que a teoria ciceroniana era
um tecido de mentiras. Ele também sabia que o caso contra Catilina era legalmente um crime e que
o “criminoso”, ou o “conspirador sinistro”, não era outro senão um político muito comum, inábil em
jogo político e tão obstinadamente não confiável que a polícia poderia facilmente se livrar dele com a
ajuda de alguns espiões e agentes provocadores. Bonaparte reconheceu o grande erro de Catilina no
fracasso deste último em vencer depois de deixar o mundo inteiro saber que ele estava preparando
um golpe de estado em grande segredo, o que ele nunca realizou. Se ele tivesse tentado a sorte! Cer-
tamente não faltaram oportunidades; a situação em casa era tal que o governo não poderia ter lidado
com uma tentativa de revolução. Cícero não pode desfrutar de todo o crédito pelo fato de que a Re-
pública, por meio de alguns discursos e medidas policiais, foi poupada de uma ameaça tão séria. Mas
como Catilina morreu no campo de batalha, seu fim foi realmente o do grande patrício e soldado
corajoso que ele era. Bonaparte, no entanto, não estava menos correto em sua suposição de que tanto
alvoroço era desnecessário e que era desnecessário que Catilina se envolvesse a tal ponto e causasse
tantos infortúnios se, no final, ele apenas iria voar para as montanhas e lá morrer uma morte digna
de um romano. Napoleão pensou que Catilina poderia ter desfrutado de um final melhor para sua
vida.
As carreiras de Sula e Júlio César foram assuntos de longe da maior especulação para Bo-
naparte quando ele pensou sobre seu próprio destino. Eles compartilhavam seu gênio e também
compartilhavam o espírito de seu tempo. As ideias que inspiraram Bonaparte a preparar e executar o
golpe de Estado do XVIII Brumário ainda não estavam totalmente desenvolvidas. A arte de capturar
o poder parecia-lhe uma arte essencialmente militar na qual as táticas de guerra eram aplicadas a
uma luta política e na qual as manobras militares se transformavam em uma disputa civil.
A estratégia usada na conquista de Roma não foi uma prova do gênio político, mas do gênio
militar comum a Sula e Júlio César. Os obstáculos que eles tiveram que superar para capturar Roma
eram exclusivamente militares. Eles tiveram que lutar contra exércitos e não assembleias políticas. O
desembarque em Brindisi e a travessia do Rubicão não inauguraram o golpe de Estado: ambos eram
pura estratégia e sem importância política. Sula e César, Aníbal e Belisário, todos tinham o mesmo
objetivo estratégico: a captura de uma cidade. Esses homens eram como grandes capitães para os
quais a arte da guerra não guardava segredo. O gênio militar de Sula, como o de César, era muito
maior do que seu senso político. Quer desembarcassem em Brindisi ou cruzassem o Rubicão, suas
campanhas não eram, é claro, inteiramente limitadas por um plano estratégico, e havia uma políti-
ca subjacente em cada movimento de suas legiões. A arte da guerra inclui uma centena de políticas
menores e planos de longo alcance. Turenne, Charles XII, Foch, de fato, todo capitão é o instrumento
da política de seu país e sua estratégia deve estar em conformidade com os interesses políticos do
Estado. As guerras sempre foram travadas por fins políticos e são apenas um aspecto da política da
nação. A história não oferece nenhum exemplo de um capitão que praticou a arte da guerra por si
só e, no entanto, não há amadores entre esses capitães, grandes ou pequenos, nem mesmo entre os
Condottiere italianos. Foi Giovanni Acuto (John Hawkwood), o Condottiere inglês contratado pela
República Florentina, que disse “A pessoa vai à guerra para viver e não para morrer”, o que não era
nem a sagacidade de um diletante nem o lema de um mercenário. Seu ditado contém todo o espírito
e justificativa da guerra. César, Frederico, o Grande, Nelson ou Bonaparte poderiam muito bem tê-lo
escolhido como lema.
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Quando Sula e César partiram para conquistar Roma, eles naturalmente tinham um
fim político em vista, mas devemos dar a César as coisas que são de César e a Sula o
que lhe é devido. Nenhum deles jamais fez um golpe de estado. As famosas campanhas
pelas quais esses dois grandes capitães capturaram a República estavam mais distantes
de um golpe de estado do que qualquer conspiração sediciosa comum. Sula levou um
ano para lutar seu caminho ao longo da estrada de Brindisi para Roma, ou, em outras
palavras, para coroar sua tentativa revolucionária com sucesso final após seu início em
Brindisi. Esse espaço de tempo foi muito longo para um golpe de estado. Todos sabem
que a arte da guerra tem suas regras e exceções às suas regras; estas últimas foram obe-
decidas apenas por Sula. Quanto às regras e exceções da política, tanto Sula quanto
César só começaram a segui-las depois de entrar em Roma. Mesmo assim, eles obede-
ceram às exceções em vez das regras, uma vez que isso é costumeiro e característico de
todos os capitães quando começam a fazer novas leis e uma nova ordem nas cidades
que capturaram.
Nas planícies da Lombardia em 1797, um ano cheio de promessas para um gene-
ral inescrupuloso que seria ousado em vez de ambicioso, Napoleão deve ter começado
a sentir que os exemplos de Sula e César poderiam ser desastrosos para ele. Ele viu que
os erros de Hoche em se oferecer descuidadamente para fazer o golpe de Estado para o
Diretório, quando comparados com os de Sula e César, eram muito menos sérios. Em
14 de julho, em uma proclamação aos soldados italianos, Bonaparte avisou o Clube de
Clichy que estava se preparando para cruzar os Alpes e marchar sobre Paris para pro-
teger a Constituição, a liberdade, o Governo e os Republicanos. Suas palavras parecem
soletrar sua própria ansiedade para que ele não fosse antecipado pela impaciência de
Hoche em vez de sua paixão secreta para competir com César. O ponto principal era
manter termos amigáveis com o Diretório e não simpatizar muito abertamente com
seus oponentes.
Já em 1797, Napoleão começou a ver que o instrumento adequado para capturar
o Estado deve ser o exército. Na aparência, esse instrumento deve estar sujeito às leis, e
no uso dele a legalidade não deve ser violada. É nessa atenção à legalidade que encon-
tramos Bonaparte chegando a uma noção da captura do Estado amplamente diferente
de seus modelos antigos — aqueles exemplos ilustres, mas perigosos.
Entre os muitos atores do caso Brumário, Bonaparte é aquele que parece menos à
vontade.
Desde seu retorno do Egito, ele tem se esforçado continuamente para seguir em
frente e excitar admiração, ódio, ridículo e suspeita, passo a passo. Ele se comprometeu
desnecessariamente. Siéyès e Talleyrand estão perturbados com seus erros. O que ele
pode estar procurando? Por que ele não deixa os outros fazerem nada? Siéyès e Lucien
Bonaparte têm sua atenção firme em todo o plano, que é fixado até os mínimos deta-
lhes. Siéyès, escrupuloso e cuidadoso, considera que o estado não pode ser capturado
em um único dia e que a impaciência de Bonaparte é um grande perigo, e seu gosto
pela retórica é outro, acrescenta Talleyrand. Por que arrastar César e Cromwell dessa
maneira? É Bonaparte sozinho que está no caso. Se as aparências legais devem ser res-
peitadas, se o estado deve ser capturado não por meio de uma mera revolução
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campestre ou uma conspiração policial, mas por métodos parlamentares com a cumpli-
cidade dos Antigos e dos Quinhentos e ao longo das linhas de procedimentos delicados e
complexos, então Bonaparte simplesmente não deve persistir em certas de suas atitudes.
Um general vitorioso prestes a tomar o poder no estado não deve implorar por aplausos ou
perder seu tempo em intrigas.
Siéyès previu todas as dificuldades possíveis e tomou medidas antecipadas contra elas, até
mesmo aprendendo a montar a cavalo para fins de triunfo ou desastre, conforme o caso. O
presidente eleito do Conselho dos Quinhentos propôs os nomes de quatro de seus íntimos
para o cargo de Inspetor da Assembleia. Pois em uma revolução parlamentar, até mesmo
esses assistentes podem ser importantes. Os assistentes da Assembleia dos Antigos, enquan-
to isso, foram capturados por Siéyès. Um pretexto era agora necessário para convocar ambas
as casas para uma reunião fora de Paris em St. Cloud — alguma conspiração, alguma cons-
piração jacobina, algum perigo público. Siéyès colocou a polícia para produzir tal pretexto:
o resultado foi a “terrível conspiração jacobina”, pela qual a República foi oficialmente decla-
rada em perigo. Então as assembleias se reuniriam silenciosamente em St. Cloud, e o plano
seria realizado em todos os seus detalhes.
Bonaparte concordou com as opiniões de seus amigos. Sua maneira doravante era
mais reservada, suas intrigas conduzidas com mais prudência e sua autoconfiança mais con-
tida. Ele gradualmente chegou à conclusão de que era o deus et machina da cena e estava,
portanto, convencido de que tudo aconteceria exatamente como ele desejava. No entanto,
foram os outros que o guiaram pelas complexidades do momento; Séyès segurou sua mão
e lhe mostrou o caminho. Afinal, Bonaparte não era nada além de um soldado ainda; seu
gênio político seria revelado somente após o décimo oitavo Brumário. Todos os grandes ca-
pitães, Sula, César e Bonaparte, não menos que eles, não eram mais do que soldados durante
a preparação da execução do golpe de estado. Eles podem fazer grandes esforços para man-
ter formas de legalidade e mostrar muito respeito pelo estado, mas isso é apenas um sinal
da maior ilegalidade de seus procedimentos como resultado de seu desprezo pelo estado.
Eles desmontaram do cavalo para participar da luta política, mas se esqueceram de tirar as
esporas. Lucien Bonaparte, enquanto isso, observava seu irmão com atenção especial a cada
gesto, não ao mais secreto de seus pensamentos. E ele sorriu, já com um toque de amargura,
sentindo-se mais seguro de seu irmão do que de si mesmo. Tudo estava pronto agora. O que
mais poderia acontecer para mudar o curso dos acontecimentos e frustrar o golpe de Esta-
do?
O plano de Bonaparte tinha um erro fundamental: respeito pela legalidade. Desde o
início, Siéyès se opôs à noção de que a conspiração poderia ser mantida dentro dos limites
da lei. Em sua opinião, ele deve dar muita margem para eventualidades imprevistas, que são
sempre a ocasião para as melhores demonstrações de violência revolucionária. É sempre
perigoso ser forçado a passar por uma passagem estreita. Além disso, para esse filósofo do
direito, a noção de um golpe de estado legal parecia absurda. Mas Bonaparte não se abalou.
Ele correria riscos antes de infringir formas legais. Na noite de Brumário, dezessete e dezoi-
to, Siéyès o avisou que havia problemas nos subúrbios e que seria bem aconselhado prender
algumas dezenas de deputados; Bonaparte se recusou a tolerar o ato ilegal. Seu plano era
uma rebelião parlamentar. Ele capturaria o poder civil sem quebrar a lei ou usar a violência,
e quando Fouch6 lhe ofereceu seus serviços, ele respondeu que não precisava da polícia; seu
prestígio e a glória de seu nome bastariam. Então, com toda simplicidade, ele acreditou.
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Na verdade, porém, o impetuoso General, o guerreiro retórico, não tinha noção de
como prosseguir dentro dos limites da estrita legalidade. Assim que apareceu na manhã
do décimo oitavo Brumário perante o Conselho dos Antigos, ele esqueceu completa-
mente que sua parte era oferecer sua espada vitoriosa para o serviço dos representantes
do povo. Ele esqueceu completamente que deveria se apresentar aos Antigos não como
um segundo César, mas como um defensor da Constituição contra os conspiradores
jacobinos. Ele não deveria ser mais do que um General encarregado pelo Conselho dos
Antigos de garantir a transferência pacífica da Assembleia para St. Cloud, e ele deveria
pacientemente desempenhar esse papel menor em uma comédia parlamentar na qual
a Assembleia seria o ator principal. Mas o discurso que ele fez para a Assembleia de
cidadãos de classe média de óculos, enquanto ele estava entre seus oficiais alegres com
tranças de ouro e prata, parecia ter sido colocado em sua boca por alguma divindade
hostil.
Ele não conseguia falar nada além de um sentimento heróico simulado derivado
de seus próprios estudos apressados sobre os empreendimentos de Alexandre e César:
“O que queremos é uma república fundada na verdadeira liberdade, liberdade civil e
representação do povo — e juro que a teremos.” Os oficiais ao redor dele ecoaram o
juramento. Os Antigos, enquanto isso, observavam em espanto silencioso. Não havia
nada que impedisse qualquer membro desta assembleia domesticada, não importa
quão insignificante, de se levantar para atacar Bonaparte em nome da Liberdade, da
República, da Constituição, aquelas grandes palavras, tão vazias, naquela época, de sig-
nificado, mas ainda tão perigosas para os propósitos da retórica. Siéyès também previ-
ra esse perigo. Durante a noite, os assistentes da Assembleia destruíram a convocação
para a reunião dirigida a deputados de opiniões duvidosas. Mas, ainda assim, Bonapar-
te estava em perigo por causa de indivíduos insignificantes que escaparam da atenção
de Siéyès. De fato, o deputado Garat se levantou para falar. “Nenhum desses soldados”,
declarou ele, “fez o juramento à Constituição.” Bonaparte empalideceu diante da repre-
ensão. Mas o presidente interveio a tempo, e a reunião foi suspensa em meio a gritos de
“Viva a República”.
Bonaparte revelou-se ainda mais completamente no curso da revisão de suas
tropas no Parque das Tulherias. Em uma voz aguda, ele havia falado francamente com
Bottot quando ele deixou a Assembleia dos Antigos, e agora seu discurso para suas tro-
pas era desafiador e ameaçador. Ele se sentia seguro de si mesmo. Quando, no entanto,
Fouché insistiu que os deputados mais turbulentos deveriam ser presos, Bonaparte se
recusou a dar a ordem, dizendo que era desnecessário agora que tudo estava indo tão
bem. Mais algumas formalidades, e a captura do estado seria concluída. Acreditando
nisso, Bonaparte estava obviamente fora de sua profundidade em meio às correntes
perigosas do momento. No dia seguinte, o décimo nono Brumário, em St. Cloud Siéyès,
o próprio começou a tomar consciência de todos os erros que haviam sido cometidos e
a mostrar-se alarmado quanto ao futuro, mas Bonaparte continuou a demonstrar tanta
confiança em seu prestígio e nas perspectivas do plano e tanto desprezo pelos advoga-
dos da Assembleia, como os chamava, que Talleyrand se perguntou se deveria chamá-lo
de simplório ou estúpido.
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Siéyès havia concebido todo o plano em termos de formas legais e regras de pro-
cedimento parlamentar, mas ele havia deixado de lado certos detalhes práticos. Por
que a Assembleia foi convocada em St. Cloud no dia dezenove de Brumário e não no
dia dezoito? Por que essas vinte e quatro horas foram deixadas para os oponentes es-
tudarem a situação e organizarem a resistência? E por que, se a reunião de St. Cloud
deveria ser adiada para o dia dezenove, as duas casas foram convocadas para uma
hora tão tardia quanto duas horas em vez de meio-dia? Os deputados tinham duas
horas para trocar suas impressões, suas opiniões e seus projetos e concordar com
uma ação conjunta contra tentativas de fraude ou violência. Os Quinhentos estavam
determinados a lutar. Eles ficaram exasperados ao ver os soldados reunidos ao redor
deles. Eles correram para cima e para baixo nas passagens e pátios, perguntando uns
aos outros por que haviam concordado em deixar Paris e exigindo nomes e detalhes
da suposta conspiração jacobina. Siéyès havia esquecido de forjar provas da conspi-
ração. Ele percebeu alguns dos deputados sorrindo, alguns deles pálidos de excita-
ção. Ele viu que a situação estava longe de ser clara, que tudo poderia se transformar
em uma única palavra ou gesto. Se ele tivesse apenas ouvido Fouché, mas agora era
tarde demais, eles deveriam confiar no acaso, pois não havia mais nada em que con-
fiar. Essas eram novas táticas para provocar uma revolução.
Às duas horas, o Conselho dos Antigos se reuniu. Os planos de Siéyès foram
verificados logo no início. Os cidadãos respeitáveis estavam em frenesi; felizmente, o
tumulto era tal que não pôde haver discursos. Na Orangerie, os Quinhentos recebe-
ram seu presidente, Lucien Bonaparte, com uma tempestade de juramentos, acusa-
ções e ameaças. Tudo estava perdido, pensou Siéyès, e com o rosto pálido dirigiu-se
à porta para escapar do tumulto. Ele havia providenciado uma carruagem para es-
perá-lo na orla do parque, caso precisasse escapar. Uma carruagem era mais confor-
tável e segura do que um cavalo. O prudente Siéyès não era provável que negligen-
ciasse tal detalhe ao elaborar seus planos para capturar o estado. Nem era a única
pessoa desconfortável durante aqueles minutos em que Bonaparte e seus amigos, no
apartamento do primeiro andar, aguardavam impacientemente os votos das assem-
bleias. Se os Antigos rejeitassem o decreto de dissolução, se nomeassem três cônsules
temporários e estivessem determinados a reformar a Constituição, o que aconteceria
com o plano revolucionário tão minuciosamente desenhado por Siéyès em todos os
seus detalhes? Siéyès, para essa eventualidade, não havia planejado nada mais do que
escapar em uma carruagem.
Até aquele momento, Bonaparte, preocupado acima de tudo em manter a
forma da legalidade e agir dentro dos limites do procedimento parlamentar, tinha se
comportado como um liberal moderno. E nisso ele foi o originador de uma tradição.
Todos os soldados que subsequentemente buscaram capturar o poder civil foram
fiéis a essa regra até o último momento, ou seja, até o momento em que a violência
se torna necessária. O liberalismo dos militares é sempre perigoso, hoje mais do que
nunca.
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Assim que viu que os planos de Siéyès foram verificados além da esperança pela opo-
sição dos Antigos e dos Quinhentos, Bonaparte estava determinado a colocar o Parla-
mento à prova comparecendo pessoalmente. Este ainda era, de certa forma, um método
liberal de procedimento, embora reforçado pela violência — liberalismo interpretado
por um soldado. Ao ver Bonaparte, os Antigos se acalmaram. Mas o discípulo de César
e Cromwell foi mais uma vez traído por sua eloquência. Seu discurso, ouvido primeiro
em silêncio respeitoso, foi pontuado depois por murmúrios de desaprovação. Quando
ele pronunciou as palavras, “Se eu sou um traidor, cada um de vocês pode desempe-
nhar o papel de Brutus”, houve risos nos recessos do salão. O orador foi posto para fora,
hesitou, murmurou e então retomou em voz alta, “Lembre-se de que sou apoiado pelo
Deus da Guerra, o Deus da Fortuna”. Os deputados se levantaram e cercaram a plata-
forma; eles estavam rindo. “General, você não sabe o que está dizendo,” murmurou o
fiel Bourienni e agarrou-o pelo braço. Bonaparte se deixou levar para longe do salão.
Poucos momentos depois, ele cruzou o limiar da Orangerie, escoltado por quatro
granadeiros e vários oficiais. Os Quinhentos o receberam com gritos: “Fora da lei, tira-
no, abaixo com ele.” Eles o atacaram com insultos e até mesmo golpes. Os quatro grana-
deiros se fecharam em volta dele para protegê-lo enquanto os oficiais abriam caminho
para ele através do tumulto. Foi Gardanne quem conseguiu levá-lo para fora do salão. A
única coisa agora, pensou Siéyès, era a fuga; a única esperança agora, disse Bonaparte a
seus amigos, era a força. No Salão dos Quinhentos, um decreto de proscrição foi colo-
cado em votação. Em poucos minutos, os sucessores de César e Cromwell seriam pros-
critos e condenados.
Bonaparte montou em seu cavalo e confrontou suas tropas. “Às armas”, ele gri-
tou. Os soldados responderam com aplausos, mas nada mais. Esta foi a cena mais típica
dos dois dias famosos. Atormentado e tremendo de raiva, Bonaparte olhou ao redor. O
herói de Arcole não conseguiu levar consigo um único batalhão. Se Lucien não tivesse
chegado naquele momento, tudo estaria perdido. Foi Lucien quem fez os soldados se
moverem e salvou a situação, enquanto Murat desembainhando sua espada liderou os
Granadeiros para o ataque dos Quinhentos.
César e Cromwell naquele momento Montron deveria protestar que o General
havia desempenhado mal seu papel. Montron (“Um Talleyrand a cavalo”, ele era cha-
mado por Roedeor) estava toda a sua vida convencido de que o herói das páginas de
Plutarco tinha em St. Cloud por um momento tremido de medo, e que qualquer peque-
no cidadão obscuro, qualquer um dos advogados do Parlamento, poderia sem perigo
para si mesmo durante aqueles dois dias famosos ter frustrado o destino de Bonaparte
e salvado a República.
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CAPÍTULO SEIS
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O Parlamento aceita o fato consumado e o torna constitucional, transformando
o golpe de estado em uma mudança de ministério, ou os conspiradores dissolvem o
Parlamento e dão a uma nova Assembleia a tarefa de legalizar a ação revolucionária.
Mas um Parlamento que se compromete a legalizar um golpe de estado está apenas
assinando sua própria sentença de morte. Na história da revolução, não há exceção
à regra de que uma assembleia que uma vez legalizou a ação revolucionária é a pri-
meira vítima dessa ação. O objetivo é aumentar o prestígio, o poder e a autoridade
do estado, o método bonapartista de alcançá-lo é meramente a reforma constitucio-
nal e a redução das prerrogativas parlamentares. Para um golpe de estado bonapar-
tista, a única garantia de legalidade está em uma reforma constitucional que limita
os direitos públicos e parlamentares. A liberdade é seu principal inimigo.
As táticas onapartistas devem a todo custo permanecer dentro do campo da
lei. Elas contam com o uso da violência apenas para manter sua posição neste cam-
po ou para lutar para voltar a ele se forem forçadas a recuar. Que ação Bonaparte
tomou, o Bonaparte constitucional do 18 de Brumário, quando soube que os Qui-
nhentos o haviam “proscrito”? Ele teve que recorrer à violência: ordenou que seus
soldados evacuassem o “Orangery”; ele perseguiu e dispersou os representantes da
nação. Mas algumas horas depois, Lucien Bonaparte, presidente do Conselho dos
Quinhentos, convocou às pressas vários deputados, realizou outra reunião do Con-
selho e, com a chamada Assembleia, começou a trabalhar para legalizar o golpe de
Estado. As táticas do 18 de Brumário só podem ser aplicadas dentro dos limites
constitucionais. A existência do Parlamento é uma condição indispensável para um
golpe de Estado bonapartista. Uma monarquia absoluta não permitiria nada mais
sério do que uma cabala ou sedição militar.
Os adeptos de um ditador geralmente o transformam em um herói plutar-
quiano. É o destino de todos os ditadores. Embora esse fosse o destino de Primo de
Rivera e de Pilsudski, eles sem dúvida teriam encontrado dificuldades muito mais
sérias se as Cortes e a Dieta tivessem sido a Câmara dos Comuns ou o Palais-Bour-
bon.
Mas seu sucesso não dependia do fato de que as Cortes e a Dieta não eram a
Câmara dos Comuns ou o Palais-Bourbon, e que na Espanha em 1923 e na Polônia
em 1926 não havia uma democracia parlamentar forte o suficiente para defender os
direitos públicos. Um dos perigos mais graves que confronta um estado moderno
é a vulnerabilidade do Parlamento. Todos os Parlamentos, sem exceção, são mais
ou menos vulneráveis. As democracias parlamentares cometem o erro de depositar
muita fé nos triunfos da liberdade, enquanto na realidade nada é mais frágil do que
o estado europeu moderno. É uma ilusão perigosa acreditar que o Parlamento é a
melhor defesa do estado contra um empreendimento bonapartista e que a liberdade
pode ser protegida pela própria liberdade e por medidas policiais. Foi isso que os
deputados das Cortes e da Dieta receberam até a véspera dos golpes de estado de
Primo de Rivera e Pilsudski.
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Entre os heróis das Vidas Ilustres de Plutarco, dificilmente há um único cavalheiro.
Talvez seja por isso que Primo de Rivera, cavalheiro e general, não entrará para a histó-
ria como um dos heróis de Plutarco.
Nada na história infeliz deste ditador é tão trágico quanto sua lealdade e sua sin-
ceridade. Ele não pode ser acusado de ter servido seu país com inteligência medíocre;
em vez disso, ele deve ser acusado de ter colocado seu alto caráter à disposição do Rei.
Os ditadores devem ter cuidado com os reis constitucionais, assim como Metternich
fez. A cumplicidade do Rei é o mais interessante, talvez o único elemento interessante
na ditadura espanhola. Não fosse o conluio de Afonso XIII, Primo de Rivera não teria
tomado o poder, dissolvido as Cortes, suprimido os direitos públicos e, ainda assim,
governado dentro dos limites da Constituição. O verdadeiro deus ex machina do golpe
de estado, responsável pela ditadura, não foi Primo de Rivera, mas o Rei. Dizem que de
Rivera era um Bonaparte apesar de si mesmo naquela paródia do XVIII Brumário, mas
ao longo da comédia sem esperança de um golpe de estado e uma ditadura “em nome
do Rei”, Primo de Rivera meramente desempenhou o papel de um “Mussolini apesar de
si mesmo” a serviço político de um rei sedicioso. Em uma monarquia constitucional,
não há espaço para ditadores; somente cortesãos podem, por um espírito de bajulação,
tentar a sorte em um golpe de estado. O conluio do Rei e Primo de Rivera não foi tanto
um compromisso entre a Constituição e a ditadura, mas um pacto equívoco entre um
cortesão e seu rei. Primo de Rivera não era um ditador; ele era meramente um cortesão.
Essa trama cujas apostas eram salvaguardas constitucionais, os direitos do Parlamento e
a liberdade política, só poderia terminar em traição. Foi uma história ruim, na qual um
rei acrescentou traição à cumplicidade em um empreendimento pelo qual somente ele
poderia ser responsabilizado perante a Constituição e o povo.
A lição a ser aprendida da Espanha é desfavorável às ditaduras “por ordem do
Rei”. Para justificar a atitude de Afonso XIII em relação ao seu cúmplice e explicar o ad-
vento da República, foi dito que, em vez de dar ao estado uma “democracia autocrática”,
ele apenas lhe deu uma ditadura. Devemos acreditar que Primo de Rivera não serviu
seu rei fielmente? Não era o objetivo de sua ditadura atacar os direitos do Parlamento
e a liberdade constitucional e, de fato, criar uma “democracia autocrática”? Que Primo
de Rivera, como um servo fiel da coroa, obedeceu apenas à vontade do Rei foi provado
pelo curso dos eventos. Ele não pode ser culpado por esse resultado lógico da ditadura,
mas um monarca constitucional não deveria ter esquecido disso. Essa sequência lógica
de eventos deu origem à República Espanhola.
De todos os golpes de estado que podem ser comparados ao XVIII Brumário, o
de Pilsudski em maio de 1926 é talvez o mais interessante. Em 1920, Lloyd George cha-
mou Pilsudski de Bonaparte Socialista (ele nunca gostou de Generais Socialistas). E Pil-
sudski mostrou que sabia como alistar Karl Marx a serviço de uma ditadura burguesa.
O novo elemento no golpe de estado de Pilsudski foi a cumplicidade das massas traba-
lhadoras. Aqueles que executaram suas táticas insurrecionais não eram trabalhadores,
mas soldados de regimentos que se amotinaram. Foram esses soldados que ocuparam
as pontes, os depósitos de provisões e munições, as encruzilhadas, as estações
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ferroviárias, as agências telefônicas e telegráficas e os bancos. As massas não participaram
do ataque aos pontos estratégicos de Varsóvia, que eram defendidos por tropas fiéis ao go-
verno de Witos, nem do cerco de Belvedere, onde o Presidente da República e seus minis-
tros se refugiaram. Mais uma vez, os soldados desempenharam seu papel clássico nas táti-
cas bonapartistas. O elemento novo nessa insurreição foi uma greve geral proclamada pelo
Partido Socialista para ajudar Pilsudski a lutar contra a coalizão da direita e, assim, cortar
o chão sob os pés de Witos. Esse fator original no jogo deu uma nova justificativa social
ao ato violento de sedição militar. Como os trabalhadores estavam envolvidos, os soldados
de Pilsudski pareciam estar defendendo a liberdade do povo. Graças à participação das
massas trabalhadoras nas táticas da revolução, uma greve geral rapidamente transformou
a revolta militar em uma insurreição popular apoiada por uma parte do exército. Assim,
Pilsudski, nada mais do que um general rebelde no início do golpe de estado, tornou-se
uma espécie de capitão do povo, um herói proletário, como Lloyd George havia dito: um
Bonaparte socialista.
Mas uma greve geral por si só não conseguiu colocar Pilsudski dentro dos limites da lei.
Ele também tinha medo de ser banido. No fundo, esse general socialista era apenas um
Catilina burguês engajado no planejamento e execução dos esquemas mais audaciosos
dentro das tradições cívicas e históricas de seu tempo e de seu povo. Ele era um rebelde
que se comprometeu a derrubar o estado sem ser banido. Tal era seu ódio por Witos que
ele negou a ele o direito de defender o estado. Quando as tropas que permaneceram fiéis
ao governo resistiram ao ataque, Pilsudski, como um verdadeiro polonês lituano, “selva-
gem e teimoso”, ficou completamente agitado. Ele respondeu metralhadora com metralha-
dora. Foi o polonês lituano que impediu o general socialista de se tornar um instrumento
legal do governo e de tirar vantagem dos eventos subsequentes para desfazer os erros
cometidos no início. Um golpe de estado parlamentar não é iniciado por uma expedição
militar ativa. Como Montron diria, “Não é feito”.
Pilsudski encontrou um conspirador no Partido Socialista e força tática em uma
greve geral, mas ele tinha que ganhar o Marechal da Dieta como um aliado. Pilsudski iria
derrubar o estado por meio da Constituição. Enquanto a batalha estava sendo travada nos
subúrbios de Varsóvia e o General Haller se preparava para vir da Posnânia para resgatar
o governo, dentro do sitiado Belvedere, Woitciekowski, Presidente da República, e Witos,
Presidente do Conselho, decidiram colocar o poder nas mãos do Marechal da Dieta, de
acordo com o costume constitucional. A partir de então, o garantidor da Constituição não
era mais o Presidente da República, mas o Marechal da Dieta. Este foi apenas o começo
do golpe de estado parlamentar; até então, não era mais do que uma revolta militar, forta-
lecida por uma greve geral. Pilsudski disse depois que se Woitciekowski e Witos tivessem
esperado até a chegada de suas tropas leais, o ataque revolucionário provavelmente teria
falhado. Uma decisão muito precipitada por parte do Presidente da República e de Witos
transformou a insurreição em um golpe de estado parlamentar. Agora, cabia ao Marechal
da Dieta deixar Pilsudski tomar posição em terreno legal. “Não desejo estabelecer uma
ditadura”, anunciou Pilsudski, assim que sentiu seus pés em terreno parlamentar. “Pre-
tendo agir apenas de acordo com a Constituição, para aumentar o prestígio, o poder e a
autoridade do estado.” Como todos os conspiradores reacionários que tomam o poder pela
força, sua única ambição era passar por um servo fiel do estado.
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E Pilsudski fez sua entrada em Varsóvia como um verdadeiro servo do Estado,
sua carruagem puxada por quatro cavalos e escoltada por ulanos sorridentes. As
multidões alinhadas nas calçadas da Krakowski Przedmiescie o receberam com
gritos de “Viva Pilsudski! Viva a República!” O Marechal da Dieta não acharia
difícil chegar a um acordo com ele sobre a Constituição. Ele pensou: “Agora que a
Revolução acabou, seremos capazes de nos entender.”
Mas o golpe de Estado parlamentar tinha apenas começado. E mesmo hoje,
quando a Constituição gradualmente se tornou um instrumento de ditadura, e
quando a Polônia democrática e proletária é uma apoiadora voluntária da insur-
reição, e ainda inimiga do General Socialista, depois de tantas conspirações e tan-
tas ilusões perdidas, Pilsudski ainda não encontrou uma maneira de reconciliar a
violência com a legalidade.
Em 1926, o golpe de Estado parlamentar de Pilsudski estava apenas come-
çando. Hoje é um golpe de Estado que ainda não teve sucesso
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CAPÍTULO SETE
MUSSOLINI
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Era o primeiro dia da insurreição. Os eventos pareciam seguir um padrão que não
foi aquele projetado pelo governo. Israel Zangwill mal conseguia acreditar que já es-
távamos no meio de uma revolução. “Em Paris, em 1789”, ele objetou, “houve revolu-
ção não apenas nas mentes dos parisienses, mas nas ruas”. Verdade seja dita, Florença
naquele momento não se parecia em nada com Paris em 1789. As pessoas nas ruas
pareciam calmas e indiferentes; sorriam com ironia educada, como os florentinos fize-
ram ao longo dos tempos. Lembrei-me de que em Petrogrado, em 1917, no mesmo dia
em que Trotsky deu início à insurreição, ninguém poderia ter percebido nenhum sinal
externo do que estava acontecendo. Os teatros, cinemas, restaurantes e cafés permane-
ceram abertos. “Pois”, disse eu, “a técnica da revolução evoluiu muito nos tempos mo-
dernos”.
“Essa revolução de Mussolini não é uma revolução”, respondeu Zangwill, “é uma
comédia”. Como muitos liberais e democratas italianos, Zangwill supôs que havia um
entendimento entre o rei e a Mussolini e que a insurreição não foi mais do que uma di-
versão para encobrir os desenhos da monarquia. A opinião de Zangwill estava engana-
da, mas, como todas as opiniões em inglês, era muito sério para ser levemente descar-
tado. Zangwill começou a partir da suposição de que os eventos daqueles dias foram
o resultado de uma manobra política em que astúcia e cálculo contavam muito mais
do que violência e entusiasmo revolucionário. Na sua opinião, Mussolini derivou de
Maquiavel e não de Catilina. E essa era uma visão então amplamente realizada em toda
a Europa, como ainda é. Desde o início do século XIX, a Europa tem sido usada para
julgar homens e eventos na Itália como produtos de uma filosofia e estilo de vida mui-
to antigos. Em grande parte, a história da Itália moderna é interpretada dessa maneira,
devido à disposição natural dos italianos em relação à retórica, em direção a uma ma-
neira eloquente e literária de expressão. Nem todos os italianos têm isso falhando, mas
muitos deles têm além da esperança de recuperação. As pessoas são geralmente julga-
das por suas falhas e não por seus méritos. Mas, mesmo assim, não posso acreditar que
os pontos de vista dos estrangeiros na Itália moderna sejam de alguma forma justifica-
dos, mesmo que o excesso de eloquência e literatura retórica seja tal que a história do
país às vezes apareça como uma comédia em que seus heróis são os principais atores e
todo mundo é o coro e os espectadores.
Para entender a Itália contemporânea, você deve vê -la objetivamente, esquecen-
do que já havia romanos antigos e italianos renascentistas. “Se você fizer isso”, disse
Israel Zangwill, “você perceberá que não há nada antigo em Mussolini. Ele é sempre
um homem da era atual, mesmo quando gostaria de parecer algo diferente. Sua polí-
tica não tem nada a ver com as de Caesar Borgia. O que ele aprendeu com Maquiavel
não é muito diferente do que Gladstone ou Lloyd George aprenderam. Sua noção de
revolução é totalmente remota da de Sulla ou de Júlio César. Nos próximos dias, você
ouvirá muita conversa sobre César e do Rubicon. Essa será apenas uma retórica ho-
nesta, e Mussolini não deixará de elaborar ou aplicar um plano de insurreição que será
completamente moderno. Contra, o governo não terá nada a se opor, mas medidas
policiais. ”
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Israel Zangwill observou um pouco ironicamente que conta Oxenstierna em suas
célebres memórias traça a derivação do nome “César” a uma palavra cartais que sig-
nifica elefante. “Espero”, disse ele, “que Mussolini será menos desajeitado do que um
elefante e mais moderno que César em suas táticas revolucionárias”.
Enquanto isso, Zangwill desejava muito ver de perto o que eu chamei de meca-
nismo da insurreição fascista. Ele não podia imaginar uma revolução sem barricadas,
brigas de rua e cadáveres na calçada. “Mas aqui tudo está completamente em ordem”,
ele reclamou. “É uma comédia e nada além de uma comédia”. De tempos em tempos,
no meio de Florença, caminhões carregados com camisas pretas zanadas. Esses jovens
fascistas usavam capacetes de aço e rifles, baionetas e granadas de mão. Eles cantaram
luxuriosamente e acenaram bandeiras negras nas quais eram a cabeça da morte borda-
da em fios de prata. Zangwill se recusou a acreditar que esses jovens, dificilmente mais
que os rapazes, eram as célebres tropas de choque de Mussolini, conhecidas por seus
métodos de agressão rápidos e violentos. “O uso da violência pelo fascismo é imper-
doável”, afirmou.
Mas o exército revolucionário de Mussolini não era o Exército da Salvação. As
camisas negras estavam equipadas com baionetas e bombas não para fins filantrópi-
cos, mas para fazer guerra civil. Aqueles que tentaram eliminar o elemento violento
do fascismo e passar as camisas negras como discípulos de Rousseau e Tolstoi são as
mesmas pessoas que vivem em uma névoa de eloqüência e literatura retóricas. São as
mesmas pessoas que gostariam de disfarçar Mussolini como um romano antigo, um
bucaneiro do século XV ou um Senhor do Renascimento com mãos brancas macias,
hábil em veneno e em platonismo. Com discípulos de Rousseau ou Tolstoi, você não
pode provoluções de projetar, mas no máximo algo como comédias. Com essas tropas,
não se pode nem sequer arrebatar um estado de um governo liberal. “Bem, você não é
hipócrita”, disse Zangwill, “mas você poderia me mostrar algum sinal pelo qual posso
ter certeza de que essa revolução não é uma comédia?”
Ofereci -me para conduzi -lo naquela mesma noite para uma visão estreita do
que chamei de mecanismo fascista de insurreição. Naquela noite, Tambulrini teve que
sair para Roma à frente de sua Legião. Eu fui escolhido, juntamente com Negolini,
para tomar seu lugar à frente das camisas negras da província de Florença. Na sede,
onde fui receber ordens, encontrei o general Balibo, um dos quatro membros do co-
mitê militar revolucionário. O general Balbo não estava bem satisfeito com a situação
em Florença. As camisas pretas realmente fizeram uma captura surpresa de todos os
pontos estratégicos da cidade e da província, ou seja, os centros vitais da organiza-
ção técnica - Gas e eletricidade, correios gerais, trocas de telefone e telégrafo, pontes
e ferrovias estações. As autoridades políticas e militares foram pegas despreparadas.
Depois de algumas tentativas vãs de expulsar os fascistas da estação ferroviária, dos
correios e das trocas de telefone e telégrafo, a polícia havia se aposentado para o Pala-
zzo Riccardi, anteriormente a residência de Lorenzo, o magnífico e agora o escritório
do Prefeito Real.
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O Palazzo Riccardi foi defendido por alguns esquadrões de carabineers e guardas reais
apoiados por dois carros blindados. O próprio prefeito, Signor Pericoli, foi sitiado por
dentro, interrompido da comunicação com o governo em Roma e com as autoridades
da cidade e da província. As linhas telefônicas foram cortadas; As metralhadoras mon-
tadas nas casas circundantes cobriam todo acesso ao palácio. As tropas da guarnição,
infantaria, artilharia, cavalaria, cavalaria e guardas reais estavam confinados a quartéis.
No momento, as autoridades militares estavam observando a neutralidade benevolente.
Mas era bom não confiar muito nessa neutralidade, pois se a situação não fosse liberada
dentro de vinte e quatro horas, deve-se esperar que o príncipe Gonzaga, o comandante
do Corpo do Exército, tomasse medidas para restaurar a ordem por todos os meios em
seu poder. Um conflito com o exército seria um teste terrível para a causa da revolução.
Florence, juntamente com Pisa e Bolonha, é a chave para as comunicações entre o norte
e o sul da Itália. Para garantir o transporte das tropas fascistas do norte para a província
de Roma, era da maior importância manter o controle do centro estratégico da Itália
até o momento em que o exército fascista marchando na capital deve obrigar o governo
a entregar O poder de Mussolini. Havia apenas um meio de se apegar a Florença, e isso
foi ganhar tempo.
Violência e astúcia não são mutuamente exclusivas. Por ordens do general Balbo,
levei um esquadrão fascista para os escritórios da Nazione, o principal jornal diário da
Toscana. Eu me aproximei do editor, Signor Borelli, agora editor da Corriera Della Sera,
e pedi que ele imediatamente publicasse uma edição especial anunciando que o general
Cittadini, o assessor do rei, havia ido a Milão para conferir com Mussolini e That That
That That That That That That That That That That Thates Mussolini tinha concordado
em formar um novo ministério, as notícias eram falsas, mas tinham uma aparência de
verdade. Geralmente, sabia -se que o rei estava em residência em San Rossore, perto de
Pisa, mas não se sabia que ele havia deixado a mesma noite para Rome acompanhado
pelo general Cittadini. Duas horas depois, centenas de caminhões fascistas divulgaram
cópias da Toscana desta edição especial da Nazione. Foram formados a procissão: sol-
dados e carabineers fraternizados com camisas pretas com prazer comemorando uma
solução tão digna de crédito à prudência e patriotismo de Mussolini e do rei. O próprio
príncipe Gonzaga veio à sede fascista para obter a confirmação das boas notícias, que
o libertaram do conflito de espírito e de uma grave responsabilidade. Ele exigiu con-
firmação das notícias do acordo entre o rei e a Mussolini em uma mensagem sem fio a
Roma, mas disse que o Ministério da Guerra não faria uma declaração definitiva. Eles
responderam que o nome do rei não deve estar envolvido em conflitos do partido e
que as notícias provavelmente eram prematuras. “Eu sei por experiência”, acrescentou o
príncipe Gonzaga com um sorriso, “essa verdadeira notícia é sempre denominada pre-
matura no Ministério da Guerra”.
Durante a noite, o general Balbo partiu para Perugia, a sede da revolução. O Con-
sul Tamburini pegou o trem com sua Legião para o Campagna Romano, onde ele deve-
ria se juntar ao corpo principal do Exército de Camisas Negras. Deixei a sede fascista às
duas da manhã e fui ao hotel de Zangwill, onde ele estava esperando por mim. Eu esta-
va prestes a assumir uma inspeção no campo e queria que ele me acompanhasse
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para que eu pudesse lhe mostrar certos sinais de que a revolução fascista não era uma
comédia. Zangwill me recebeu com um sorriso satisfeito. Na mão dele havia uma cópia
da edição especial do The Natione. “Você ainda está convencido”, ele perguntou, “que o
rei estava de acordo com Mussolini? Você deve permitir que uma revolução constitucio-
nal não possa ser nada além de uma performance teatral. ” Expliquei a ele a origem da
informação falsa, na qual ele parecia muito envergonhado. “E a liberdade da imprensa?”
ele perguntou. Obviamente, um monarca constitucional não pôde concordar com os re-
volucionários para pisar na liberdade da imprensa. A comédia estava se tornando sério.
A liberdade da imprensa, no entanto, nunca impediu os jornais de publicar informações
falsas. Para minhas observações, Zangwill só podia responder que, em um país livre
como a Inglaterra, não são as falsas notícias que expressam a liberdade da imprensa.
A cidade estava deserta. Nos cantos da rua, patrulhas de fascistas ficaram imóveis
na chuva, seus fezzes pretos empoleirados em suas cabeças. Na Via De ‘Pecori, um ca-
minhão estava estacionado em frente à entrada da central telefônica; Era um daqueles
caminhões blindados equipados com metralhadoras, que os fascistas chamavam de
tanques. A troca telefônica havia sido ocupada pelas tropas de choque do esquadrão
“Red Lily”, que carregava esse emblema no peito. O esquadrão “Red Lily” e o esquadrão
“desesperado” estavam entre os mais violentos das tropas florentinas. Perto da estação
ferroviária de Campo di Marte, encontramos cinco caminhões carregados com rifles e
metralhadoras, que as fascistas “células” no quartel de San Giorgio haviam entregado
ao comandante em chefe das legiões. Para todos os lugares das fábricas, os regimentos,
os bancos e os escritórios públicos, havia células fascistas, que eram o núcleo secreto da
organização revolucionária. Os rifles e metralhadoras foram destinados a mil ou mais
camisas pretas de Romagna, que estavam armadas apenas com baionetas e revólveres.
A chegada deles de Faenza foi aguardada a qualquer momento. O comandante militar
da estação me disse que acreditava que em Bolonha e Cremona houve conflitos com os
carabineers nos quais as perdas fascistas haviam sido consideráveis. As camisas pretas
haviam atacado o quartel dos carabineers, e estes se defenderam com grande energia.
Em Pisa, Lucca, Livorno, Siena, Arezzo e Grosseto, a notícia foi melhor. Toda a organi-
zação técnica das cidades e da província estava nas mãos dos fascistas.
“Quantos mortos?” perguntou Israel Zangwill. Ele ficou surpreso ao saber que
não houve derramamento de sangue em nenhum lugar da Toscana. “Aparentemente,
então”, ele disse, “sua revolução é muito mais séria em Bolonha e Cremona do que aqui”.
Em outubro de 1917, a insurreição bolchevique ocorreu quase sem perdas. As únicas
mortes registradas foram por ocasião da contra -revolução alguns dias após a captu-
ra bolchevique do estado, quando os guardas vermelhos de Trotsky tiveram a tarefa
de derrubar o movimento dos oficiais, repelindo os cossacos de Kerenski e lidar com
o general Krasnoff. Então eu observei: ‘‘ pelo derramamento de sangue em Bolonha e
Cremona, demonstrou que havia alguma falha lá o mecanismo fascista de insurreição.
Quando a máquina funciona perfeitamente, como na Toscana, os acidentes são muito
raros. ” Israel Zangwill não poderia, mas sorrir ironicamente. “Seu rei”, ele disse, “é um
mecânico de som. É devido a ele que sua máquina pode funcionar sem falhas. ”
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Naquele momento, um trem chegou a uma nuvem de fumaça e um barulho de gritos,
músicas e drumbeats “Esses são os fascistas de Romagna”, comentou um funcionário
da ferrovia que estava andando na estação com rifle na mão. Em alguns minutos, es-
távamos no meio de uma multidão de camisas pretas, um conjunto de companheiros
pitorescos, mas desconfortável . Os rostos queimados pelo sol que eles tiveram com as
características difíceis comuns entre os camponeses da romagna e com pequenas bar-
bas pontiagudas. Eles pareciam aventureiros, ferozes, até ameaçadores, e Zangwill foi
obviamente inquietação. No entanto, ele sorriu agradavelmente e tentou passar pelo
meio dessa multidão barulhenta com gestos educados, nos quais os jovens armados
mostraram muita surpresa. “Eles parecem muito difíceis”, ele reclamou comigo. “Bem,
você dificilmente esperaria suavidade nas tropas de choque de uma revolução, não é?”
Eu respondi. “A batalha política de Mussolini nos últimos quatro anos não foi travada
com gentileza ou astúcia, mas com a violência, a mais difícil, a violência científica mais
inexorável”.
Israel Zangwill estava realmente tendo uma aventura extraordinária. Preso por
uma patrulha de Jacobins de camisa negra e libertada, agora ele estava sendo transpor-
tado por automóvel no meio da noite para ver por si mesmo os sinais de que a revolu-
ção dos fascistas não era uma comédia. “Eu não devo parecer Candide entre os jesuí-
tas”, ele comentou sorrindo. Ele parecia de fato um pouco com Candide no meio desses
guerreiros, se é concebível que um inglês com o nome de Israel seja como Candide.
Esses camponeses hercúleos, com seus olhos duros, maxilares robustos e grandes mãos
ásperas, pesquisaram de cabeça aos pés, olhando e desprezível e, além disso Nem pare-
cia um policial ou um membro do Parlamento burguês.
Montamos nosso transporte novamente e, enquanto atravessávamos as ruas va-
zias, observei para Israel Zangwill: “Seu desprezo pela revolução fascista, que você cha-
ma de comédia, está certamente em contradição com você - tocou as camisas negras, a
quem inglês Os liberais todos os dias denunciam pelo uso da violência. Se os revolucio-
nários são homens de violência, como a revolução pode ser mera ação de reprodução?
Mas eu digo que as camisas pretas não são apenas violentas; Eles são impiedosos. É
verdade que às vezes seus jornais protestam contra o que seus oponentes dizem sobre
sua violência. Mas isso é hipocrisia para o consolo da classe média baixa. Afinal, o pró-
prio Mussolini não é vegetariano, cientista cristão ou social -democrata. Ele foi criado
como marxista e, portanto, está bastante livre de Crupals de Tolstoyan: nunca aprendeu
em Oxford a se comportar como um cavalheiro na política, e qualquer gosto por ro-
mance ou filantropia foi expulso por seu conhecido com Nietzsche. Se Mussolini fosse
um cavalheiro de olhos lentos com uma voz tranquila, seus seguidores certamente o
deixariam para outro líder. Por que, um ano atrás, quando Mussolini propôs fazer uma
trégua com os socialistas, havia realmente rebeliões e disputas dentro do partido fas-
cista. A grande maioria das camisas negras se destacou para continuar a Guerra Civil.
Você deve se lembrar que as camisas pretas se originam principalmente das partes da
extrema esquerda. Muitos deles eram ex-soldados com corações endurecidos por qua-
tro anos de guerra. Muitos novamente são homens jovens com emoções fortes. E não se
esqueça que o deus dos homens armados deve ser um Deus de violência. “
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“Não vou esquecer”, respondeu Zangwill.
Quando voltamos a Florença ao amanhecer, Israel Zangwill teve uma visão de
perto, em epítome, dos eventos da Itália durante esses dias. Eu o levara rapidamente
pelo campo florentino de Empoli a Mugello, de Pistoia a San Giovanni Valdarno. Pon-
tes, estações, encruzilhadas, viadutos, canais, celeiros, depósitos de munição, obras de
gás e eletricidade - todas essas posições estratégicas foram ocupadas por esquadrões
fascistas. De repente, da escuridão, as patrulhas nos faria a pergunta: “Quem vai lá?”
Em intervalos de duzentos metros ao longo das linhas ferroviárias, foram postados sen-
tinelas de camisa preta. Nas estações de Pistoia, Empoli e San Giovanni Valdarno, gan-
gues de homens ferroviários, totalmente equipados, estavam prontos para interromper
o tráfego em caso de extrema necessidade. De fato, todas as medidas para garantir ou
impedir a passagem do tráfego haviam sido adotadas. O único perigo era que os refor-
ços de carabineers e soldados deveriam ser enviados para a Úmbria e o Latium para
atacar as legiões de camisas negras na parte traseira enquanto marcharam na capital.
Um trem cheio de carruagens que procedia de Bolonha foi parado perto de Pistoia, a
cerca de centenas de metros da famosa noiva de Vaioni. Os tiros de rifle foram troca-
dos, após o que o trem se desviou para trás, o motorista que não ousava arriscar a pon-
te. Havia escaramuças também em Serravalle a caminho de Lucca. Os caminhões carre-
gados com guardas reais foram demitidos pelos metralhadores que guardavam o acesso
à planície de Pistoia.
“Sem dúvida, você leu na vida de castracane de Maquiavel a história da Batalha
de Serravalle”, comentei com meu companheiro. “Eu não li Maquiavel”, respondeu Zan-
gwill. Já era a luz do dia quando passamos por Prato, uma pequena cidade no bairro de
Florença, um importante centro da indústria têxtil com vinte e cinco mil trabalhadores
em duzentas fábricas. É conhecido como Manchester da Itália. Francesco di Marco Da-
tini nasceu lá, disse ter sido o inventor da Lei de Câmbio. Politicamente, Prato tem uma
má reputação. É uma cidade notória para greves e problemas trabalhistas, e é o local de
nascimento de Bresci, que matou Humbert, o segundo rei da Itália, em 1900. O povo de
Prato é de bom coração, mas apto para ver vermelho.
Todas as estradas estavam cheias de trabalhadores a caminho de suas ocupações.
Eles pareciam indiferentes aos eventos e andavam em silêncio, nem mesmo olhando
para as proclamações do Comitê Revolucionário Militar postadas nas paredes durante
a noite. “Talvez você esteja interessado em saber que D’Annunzio recebeu sua educação
clássica no Cicognini College aqui em Prato?” Perguntei. “No momento presente”, res-
pondeu Israel Zangwill: “O que estou interessado em saber é o que seus trabalhadores
estão fazendo sobre a revolução. O perigo para você não é nada que o governo possa
fazer, mas uma greve. ”
No final de 1922, o problema que o fascismo tinha que resolver não era como
superar o governo liberal ou um partido socialista, que se tornara cada vez mais parla-
mentar e, ao mesmo tempo, cada vez mais um elemento de problemas na vida constitu-
cional da o país. O problema dos fascistas era como superar os sindicatos, a única força
revolucionária capaz de defender o estado burguês contra os comunistas e fascistas.
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Giolitti entendeu a parte que as organizações dos trabalhadores haviam desempenhado
quando foram usadas por Bauer em março de 1920 contra a tentativa de Kapp. Ele aprendeu
essa lição, embora cautelosamente. Os partidos políticos não tinham poder para se opor ao
fascismo, que estava lutando por métodos não políticos, justificados como uma resposta à
violência dos guardas vermelhos comunistas. O programa dos partidos políticos era proibir
todas as forças revolucionárias que se recusaram a se submeter ao processo de “parlamenta-
rização” ou (como foi dito) para “retornar à legalidade”. Isso não era como forçar fascistas ou
comunistas a renunciar aos métodos de violência. O que o governo poderia fazer para se opor
às atividades revolucionárias das camisas negras e dos guardas vermelhos? O único uso a que
as partes das massas, socialistas e católicas poderiam ser colocadas, uma vez reduzidas ao
papel dos partidos constitucionais, era apoiar e de uma maneira para justificar como consti-
tucional qualquer ação repressiva realizada pelo governo. Mas algo mais necessário do que as
medidas policiais para reduzir o distúrbio em que a Itália foi atormentada.
Em vez de enviar as forças armadas para suportar o impulso revolucionário dos fascis-
tas e comunistas, Giolitti decidiu prudentemente neutralizá -lo, confrontando -o com a ação
do trabalho organizado. Esse era o método de Bauer, aplicado como uma medida preventiva
contra a revolução. Mas o método que Bauer havia aplicado como marxista, Giolitti aplicou
como liberal. Assim, os sindicatos se tornaram um instrumento a serviço do governo para
combater, por métodos ilegais, a ação ilegal das camisas negras e dos guardas vermelhos. Nas
mãos de Giolitti, a greve tornou -se uma arma tão perigosa para os fascistas e os comunistas
quanto até agora para o governo. A epidemia de greves pelos quais os anos de 1920 e 1921
foram marcados pareciam para os burgueses e até para a classe trabalhadora como uma doen-
ça do estado, um sinal avançado da revolução proletária, uma crise necessária que o resultado
deve ser a crise de poder pelas massas. Na realidade, foi apenas um sintoma de uma profunda
mudança na situação. Essas greves não foram, como em 1919, dirigidas contra o Estado, mas
contra as forças revolucionárias, que propuseram aproveitar o poder independentemente dos
sindicatos dos trabalhadores e talvez nos dentes de sua oposição. A origem da fenda longa
entre os sindicatos dos trabalhadores e o Partido Socialista foi a questão da independência
dos sindicatos. Mas as classes trabalhadoras agora tiveram que se defender dos projetos das
forças revolucionárias não apenas da independência, mas também da própria existência de
suas organizações. Os trabalhadores estavam defendendo a liberdade de sua classe contra os
fascistas. A atitude dos sindicatos em relação aos comunistas era como a dos sindicatos russos
contra os bolcheviques na véspera da apreensão do poder de outubro de 1917.
Mas a noção de aplicação de Giolitti, em linhas liberais, o método marxista de Bauer
apenas agravou a situação. O liberalismo de Giolitti era simplesmente otimismo sem escrúpu-
los. Giolitti era cínico e desconfiado; Ele é melhor descrito como um ditador parlamentar, in-
teligente demais para a crença em qualquer idéia, prejudicada demais para respeitar qualquer
homem. De alguma forma, ele conseguiu conciliar sua própria mente cinismo e desconfiança
com o otimismo. Assim, ele inventaria situações sem parecer se interessar por eles e as com-
plicaria com inúmeras pequenas intrigas enquanto aparentemente esperavam que eles ama-
durecessem. Ele não tinha a menor crença no estado; Pelo contrário, o segredo de sua política
era precisamente seu desprezo pelo estado. Sua interpretação liberal do método marxista de
Bauer consistia em substituir a força revolucionária dos sindicatos pela força repressiva do
Estado. Para os sindicatos, ele cometeu a defesa do estado burguês contra fascistas e comunis-
tas para que ele pudesse ter suas próprias mãos livres para a tarefa de parlamentares, que está
corrompendo o proletariado.
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No final de 1920, uma situação havia desenvolvido na Itália que era incomparável
na história política da Europa moderna. D’Annunzio, tendo capturado Fiume, amea-
çou a qualquer momento para marchar para a Itália à frente de seus legionários com o
objetivo de controlar o governo. Mesmo entre os trabalhadores organizados, ele tinha
amigos. As relações eram notoriamente cordiais entre a união dos marinheiros e o go-
verno de Fiuma. Os chefes do movimento sindical consideraram Dannunzio não como
um inimigo, mas como um sujeito perigoso que poderia envolver o país em problemas
internacionais. De qualquer forma, no entanto, ele não foi seriamente levado em con-
sideração como um possível aliado na luta contra o fascismo, apesar de seu ciúme co-
nhecido de Mussolini e do papel desempenhado por sua organização revolucionária na
política interna italiana. Mas essa rivalidade entre D’Annunzio e Mussolini não era uma
carta má nas mãos de Giolitti, que sempre jogava suas cartas ruins corretamente, em-
bora ele nunca pudesse jogar suas boas cartas honestamente. Enquanto isso, os comu-
nistas presos entre os ataques dos fascistas de um lado e do governo do outro haviam
perdido toda a influência sobre a massa dos trabalhadores. Eles passaram a ser um
mero elemento secundário na luta pelo poder no estado em razão da tolice criminal de
seus métodos terroristas. Incomodando totalmente o problema revolucionário na Itália,
eles não conseguiram abandonar as táticas de agressões e assassinatos isolados e revol-
tas esporádicos nos quartéis e nas fábricas, levando a uma série inútil de escaramuças
nos subúrbios. No máximo, a parte deles era a de protagonistas ousados e selvagens
em uma causa obviamente perdida. Recentemente, as oportunidades foram perdidas
ou totalmente mal administradas durante o ano vermelho de 1919, quando qualquer
pequeno Trotsky, qualquer pequena catilina provincial com um pouco de espírito, um
punhado de homens e algumas fotos de rifle poderiam ter capturado o estado sem
muito perturbador ou o rei, o governo ou a história da Itália. No Kremlin, o desamparo
romântico dos comunistas italianos era um tópico regular de conversas leves. O sábio e
alegre Lenin costumava rugir de rir com as notícias da Itália: “Os comunistas italianos,
ha, ha, ha”. Ele teve um prazer infantil nas mensagens que D’Annunzio costumava en-
viar de Fiume.
Enquanto isso, o problema de Fiume estava se tornando cada vez mais um pro-
blema de política externa desde que D’Annunzio, em setembro de 1919, criou um esta-
do da França, o relógio da história no local havia sido colocado de volta séculos no de-
correr de alguns meses. A noção de D’Annunzio era que o estado de Fiuma deveria ser
o primeiro núcleo de uma poderosa organização revolucionária e que, de Fiume, um
exército de insurreição deve sair para conquistar Roma. No final de 1920, o estado de
Fiume era um despotismo italiano do Renascimento, alugou com lutas internas, pertur-
badas pela ambição, pelo luxo e pela retórica de um príncipe, muito gosta de palavras
para seguir o conselho de Maquiavel. Além do defeito de seu anacronismo, o Estado
de Fiuma estava afetado por sua existência um problema de política externa e não de
política doméstica. O estado de Fiume não havia sido capturado por meio da revolução,
nem sua criação modificou a situação interna da Itália.
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O único efeito dessa criação foi que um assentamento internacional para Fiume contrário
ao princípio da autodeterminação dos povos havia sido frustrado. Essa foi a grande con-
quista de D’Annunzio, mas também foi a causa de sua fraqueza na luta revolucionária inter-
na na Itália. Através da criação do estado de Fiuma, ele passou a ser um elemento básico na
política externa da Itália, mas abandonou a política interna em todos os eventos como uma
influência direta. O papel atribuído por D’Annunzio através de seu exército legionário caiu
naturalmente para as camisas negras. Enquanto D’Annunzio manteve o estado em Fiume
como o príncipe de um domínio independente com seu governo constitucional, exército,
finanças e embaixadores, Mussolini espalhou sua organização revolucionária cada vez mais
ampla em toda a Itália. As pessoas costumavam dizer que D’Annunzio era “o príncipe” e
Mussolini era sua maquiavel. Mas para a juventude da Itália, D’Annunzio era apenas um
símbolo, uma espécie de Júpiter Nacional, e a questão de Fiuma era simplesmente um pre-
texto para Mussolini atacar a política externa do governo.
Mussolini pode lucrar com a posição em Fiume através da eliminação de um rival
perigoso da luta revolucionária, mas ele também tinha motivos para ser perturbado por ela.
O efeito de sua rivalidade com D’Annunzio eu era considerável na posição e no arquivo de
seus seguidores. Aqueles que se originaram na política da direita estavam perturbadora-
mente apegados a D’Annunzio. Aqueles que vieram do partido da esquerda, republicanos,
socialistas e comunistas, de fato, a melhor parte da fascisi: tropas de choque, eram indisgui-
damente hostis em relação ao ressuscitador do século XV.
Nas mãos de Giolitti, essa rivalidade era uma carta com que repetidamente, mas sem
sucesso, ele tentou falsificar o jogo. Ele pensou a princípio que poderia provocar uma luta
aberta entre D’Annunzio e Mussolini, mas Simon percebeu que estava perdendo seu tempo
em tal projeto. Mas a questão de Fiume teve que ser resolvida rapidamente, e ele decidiu
capturar o estado de D’Annunzio pela força das armas. Na véspera de Natal de 1920, ele
lucrou com a coincidência de circunstâncias favoráveis para enviar vários regimentos para
atacar Fiume.
Os protestos doloridos dos legionários de D’Annunzio ecoaram em um coro indigna-
do em toda a Itália. Os fascistas ainda não estavam prontos para uma insurreição geral. A
luta deveria ser severa. No campo e nos arredores das cidades, as bandeiras pretas e verme-
lhas já estavam acenando, emblemas da Guerra Civil, no vento frio daquele inverno ansio-
so dos pressentimentos. A tarefa de Mussolini não era simplesmente vingar os legionários
mortos de Fiuma. Ele teve que se defender dos reacionários que teriam sufocado o fascismo
em meio às ruínas do estado de D’Annunzio. O governo e as organizações dos trabalha-
dores já estavam em campo com perseguições policiais por um lado e provocação a derra-
mamento de sangue do outro lado, pois os trabalhadores haviam se tornado os agressores.
Giolitti planejava aproveitar a oportunidade oferecida pela luta interna dentro do partido
fascista após o trágico Natal de Fiuma e proibir Mussolini. Os líderes sindicais abriram
sua campanha com uma série de greves. Cidades inteiras, províncias e até grandes regiões
seriam subitamente afastadas de ação por meio de algum distúrbio em qualquer pequena
vila. Assim que o primeiro tiro foi disparado, os trabalhadores saíram em greve. No sinal
de alarme dos Hooters de fábrica, os homens saíam das obras, as portas da casa e as janelas
seriam aparafusadas, o tráfego parou e a estrada deserta assumiu a aparência sombria de
um homem de guerra liberado para ação.
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Nas fábricas, os trabalhadores estavam se preparando para a luta. Os braços estavam sendo
empilhados de todos os lados, atrás das chaminés, entre os teares, os dínamos e as caldeiras.
Entre o carvão amontoado, pode ser uma grande parte massa de rifles e cartuchos. Entre as
máquinas presas, em meio aos pistões, prensas, bigornos e guindastes, homens passaram com
rostos manchados de óleo, com intenção calmamente. Eles subiram os degraus de ferro das
chaminés de fábrica, as pontes oscilantes e os telhados de vidro. A tarefa deles era converter to-
das as fábricas em uma fortaleza. No topo das chaminés, estava empoleirada bandeiras verme-
lhas. Nas áreas, os trabalhadores se juntavam e organizavam empresas, seções e esquadrões. Os
líderes escolhidos marcados por barbas de braço vermelhas davam ordens e as patrulhas foram
enviadas para espionar a terra. Ao retornar, os trabalhadores deixariam a fábrica e se moveriam
silenciosamente sob a cobertura das paredes em direção aos pontos estratégicos da cidade. Os
esquadrões especialmente treinados para a guerra nas ruas foram convocados para as trocas de
trabalho, 1 para defender a sede dos sindicatos contra ataques de camisa preta. As metralha-
doras foram publicadas em todas as saídas, no ângulo das escadas, no final das passagens e nos
telhados. Granadas de mão foram amontoadas nos escritórios perto das janelas. Os motoristas
do motor desconectaram seus motores, largaram os trens no meio do país e ficaram no vapor
em alta velocidade nas estações. Nas aldeias, os vagões dos agricultores foram empilhados nas
estradas para impedir o transporte de camisas negras de uma cidade para outra. Os camponeses
da Guarda Vermelha estavam em emboscada atrás das sebes, armadas com armas esportivas,
forças, espadas e foice para espionar a passagem dos caminhões fascistas. Ao longo das estradas
das ferrovias de vila em vila, os tiros tocaram em intervalos, até os subúrbios das cidades, com
sua profusão de estamenha vermelha. Assim que a greve foi anunciada pelo chefe do apito de
fábrica, carabineers, guardas reais e policiais se retirou para o quartel. Giolitti era uma libra1
demais para interferir na luta que os trabalhadores estavam conduzindo tão admiravelmente
sozinhos contra os inimigos do Estado.
Assim, perigosamente isolado pela greve, os esquadrões fascistas especialmente treinados
na 3ª guerra nas ruas foram publicados na encruzilhada, enquanto os designados para a tarefa
de atacar e defender casas foram mantidas em prontidão para reforçar pontos fracos, defender
posições ameaçadas ou libertar -se Ataques curtos e acentuados no coração da organização ini-
miga. As tropas de choque, compostas por camisas pretas treinadas para serem readas em meio
a multidões, para levar manobras repentinas às vezes isoladamente, armadas com baionetas,
bombas e fogueiras, estavam perto dos caminhões destinados a transportá -los para o campo
da luta. Eles foram especialmente projetados para infligir represálias. As represálias eram uma
parte muito importante das táticas de camisa preta. Assim que a morte de um fascista foi relata-
da em um trimestre ou uma vila, as tropas de choque foram para infligir represálias. As trocas
de trabalho, os clubes dos trabalhadores e as casas dos líderes socialistas foram atacados, de-
mitidos e queimados. No começo, quando as represálias ainda eram uma novidade, os guardas
vermelhos dispararam contra seus agressores, e uma luta sangrenta seria aberta ao redor das
trocas de trabalho e dos clubes dos trabalhadores e nas ruas do trimestre ou vila. Logo a terrí-
vel arma de represálias se mostrou bem -sucedida. O espírito de luta dos guardas vermelhos foi
minado. Eles perderam a coragem de se defender; A resistência das organizações dos trabalha-
dores foi quebrada no coração. Na aproximação das camisas negras, guardas vermelhos, líderes
socialistas, secretários sindicais e agitadores de greves para o país e se escondiam na floresta. Lá
eles seriam caçados - a terrível perseguição sem chifres ou halloing era frequentemente prolon-
gada durante a noite. Às vezes, toda a população de uma vila onde um fascista havia sido morto
levava aos seus calcanhares. Os choques chegaram para encontrar casas vazias, estradas desertas
e um único cadáver de camisa preta se estendida na calçada.
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Os líderes dos sindicatos fizeram mais, no entanto, para se opor às táticas rápidas,
violentas e impiedosas dos fascistas do que apenas para oferecer o que eles chamavam
de resistência desarmada. Oficialmente, de fato, eles assumiram a responsabilidade por
nada além de greves, mas sentiram -se em despertar o espírito de luta dos trabalhado-
res de todas as maneiras possíveis. Eles fingiram não saber que nas trocas de trabalho e
nos clubes dos trabalhadores havia ações de armas e bombas, mas nunca pretenderam
que a greve fosse uma manifestação pacífica. Era para ser um ato de guerra, o histórico
necessário para as táticas de guerra de rua dos trabalhadores. “A greve é a nossa ma-
neira de represálias”, declararam. Mas eles sabiam muito bem que os trabalhadores se
arrastaram nas trocas de trabalho. Os cordeiros sangrados por lobos negros, eram tão
ridículos quanto os escrúpulos de Tolstoiyan de certos fascistas de origem liberal que
se recusaram a permitir que os seguidores de Mussolini tivessem disparado uma bala,
empunhava um espancamento ou forçou uma gota de petróleo de mamona a descer a
garganta de um oponente.
Apesar de toda a hipocrisia dos líderes sindicais, houve vítimas entre as camisas
negras também. É totalmente falso supor que os fascistas não sofreram reversão grave.
Subúrbios, aldeias e regiões inteiras às vezes se levantaram contra eles, um sinal sendo
dado pelo ataque geral. As camisas negras foram atacadas em suas casas, barricadas
foram criadas nas ruas, enquanto faixas de trabalhadores e camponeses armados com
armas e granadas ocupavam as aldeias, invadiram as cidades e caçaram os fascistas.
Que os trabalhadores eram menos hipócritas do que seus líderes é comprovado pelo
massacre de sarzana. Nesta cidade, em julho de 1921, cinquenta camisas pretas foram
massacradas, aquelas meramente feridas tendo suas gargantas cortadas enquanto es-
tavam em ninhadas em frente ao hospital. Cem outros que procuraram segurança em
voo no campo foram perseguidos até a floresta por mulheres armadas com forçados e
foice. A história da Guerra Civil na Itália em 1920 e 1921, o prefácio da captura fascista
de poder, é composta por episódios de tão violência feroz.
Para acabar com as greves revolucionárias e as insurreições dos trabalhadores e
camponeses que estavam se tornando mais frequentes, mais amplamente organizados
e mais sérios, impedindo a atividade de regiões inteiras, os fascistas adotaram as táticas
de ocupando sistematicamente as regiões ameaçadas. De um dia para outro, as camisas
negras se concentrariam de acordo com um plano de mobilização nos pontos indica-
dos. Milhares e milhares de homens armados, às vezes não menos de quinze ou vinte
mil, seriam reunidos em uma única cidade, país ou área da vila, sendo rapidamente
transportados em caminhões de uma província para outra. Em poucas horas, toda a
região ocupada estava em um estado de cerco. Tudo o que restava das organizações so-
cialistas e comunistas, trocas de trabalho, sindicatos, clubes de trabalhadores, jornais e
cooperativas seria metodicamente dissolvido ou esmagado. Os guardas vermelhos, que
não tiveram tempo de esclarecer, foram dosados, dublos e virados de dentro para fora.
Em dois ou três dias, os Budgens estariam trabalhando mais de centenas de milhas qua-
dradas. Até o final de 1921, essas táticas, cada vez mais amplamente e sistematicamente
aplicadas, foram bem -sucedidas: organizações políticas e sindicalistas do proletariado
haviam recebido um golpe de nocaute.
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O perigo de uma revolução vermelha havia sido evitado para sempre: o cidadão
Mussolini “merecia bem de seu país”. Então agora, cidadãos respeitáveis de todas as
aulas, as camisas pretas vão para casa para suas camas. Mas logo eles descobriram que o
fascismo havia dado um golpe nocaute no estado, bem como nas classes trabalhadoras.
As táticas pelas quais Mussolini conquistou o poder no estado só poderia ter sido
pensado por um marxista: nunca se esqueça de que Mussolini foi criado para ser mar-
xista. A coisa surpreendente sobre a situação revolucionária na Itália na visão de Lenin
e Trotsky foi que os comunistas não conseguiram tirar proveito de qualquer coincidên-
cia excepcional de circunstâncias favoráveis. Nas greves insurrecionais gerais de 1919
e 1920, as fábricas do norte da Itália haviam, como culminado, foram ocupadas pelos
trabalhadores, mas nenhum homem havia emergido capaz de liderar um punhado de
seguidores para capturar o estado. Com o apoio de uma greve geral, qualquer Trotsky
provincial poderia ter obtido controle sem perguntar a licença do rei.
Mussolini julgou a situação como marxista: ele não podia acreditar no sucesso da
insurreição dirigido simultaneamente contra o poder do governo e o poder das classes
trabalhadoras. Enquanto ele desprezava os líderes socialistas e comunistas, ele também
desprezava todos aqueles que, como D’Annunzio, planejavam derrubar o governo sem
pelo menos garantir o apoio ou a neutralidade das organizações da classe trabalhadora.
Mussolini não deveria realmente ser nocauteado por uma greve geral. Nem como aque-
le Júpiter nacional, Dannunzio, ele subestimou a importância da classe trabalhadora em
uma revolução. Ele era muito moderno em sentir; Ele havia absorvido a visão marxista
dos problemas políticos e sociais modernos, muito profundamente, para se iludir em
copiar no ano de 1920 as teorias nacionalistas de Blanqui.
Não foi com táticas reacionárias que os fascistas decidiram conquistar o estado.
Mussolini era muito diferente de D’Annunzio ou de Kapp, Primo de Rivera ou Hitler.
Ele resumiu a força do proletariado e sua parte na revolução e na situação de 1920 do
ponto de vista marxista, e a partir desse ponto de vista, ele concluiu que sua primei-
ra tarefa era esmagar os sindicatos dos trabalhadores em que o governo confiaria na
defesa do estado. Ensinado pela história de Kapp e Bauer, ele temia a greve geral. Os
historiadores oficiais do fascismo apóiam seu argumento de que Mussolini não foi rea-
cionário ao recordar seu programa do ano de 1919. E, na verdade, aquele programa em
que as camisas negras acreditavam sinceramente, fruto do mesmo espírito em que os
veteranos fascistas ainda são fiéis, era um programa republicano e democrático. Mas a
educação marxista de Mussolini não foi mostrada no programa de 1919, mas nas táti-
cas com as quais o fascismo se propôs a capturar o estado e no método consistente com
o qual ele aplica esses princípios. Mais tarde será mostrado como as táticas marxistas
são deformadas quando tentadas por um reacionário como Hitler.
Aqueles que estavam ansiosos para considerar o fascismo simplesmente como
um baluarte do Estado contra o perigo comunista, uma mera reação contra as conquis-
tas políticas e sociais do proletariado, consideraram que, no meio de 1921, Mussolini
havia cumprido sua tarefa e desempenhou seu papel. Giolitti chegou à mesma conclu-
são em março de 1921, embora por motivos bastante diferentes, imediatamente após os
ataques gerais em que o poder perigoso do fascismo havia sido tão claramente revelado.
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A Guerra Civil estava agora em um tom alto de violência com fortes perdas registradas de
ambos os lados, mas a conclusão dessas lutas selvagens, o fim de todos os episódios surpre-
endentes dos anos vermelhos, foi a derrota das forças proletárias. Giolitti, tendo usado os
sindicatos como um cartão contra o fascismo, de repente encontrou seu blefe chamado, e as
organizações dos trabalhadores haviam desmoronado em pedaços. Os fascistas emitiram da
briga com um humor agressivo e com intenções não escondidas. Além disso, eles estavam
formidivelmente equipados para entrar em campo contra o estado. O que Giolitti deveria se
opor ao fascismo? A defesa constituída pelos sindicatos foi feita. Os partidos políticos que
formavam a maioria parlamentar eram impotentes contra uma organização fortemente ar-
mada que estava pronta para dar o ataque tanto dentro da Constituição quanto em termos de
força física.
Giolitti tinha mais uma possibilidade: era tentar e parlamentar os fascistas. Esse era o plano
familiar de um ministro liberal que, durante os trinta anos anteriores, desempenhou o papel
na Itália de um ditador parlamentar que serve uma monarquia sem preocupação excessiva
pela Constituição. Mussolini, cujo programa político de forma alguma interferiu em suas
táticas revolucionárias, respondeu a essas propostas apenas com a maior cautela. No decorrer
das eleições de maio de 1921, os fascistas consentiram em entrar no bloco nacional pelo qual
Giolitti esperava comprometer e corromper o exército de camisa preta. O movimento deveria
ser dissolvido pelo sufrágio universal.
Ele teve uma grande dificuldade em formar o bloco nacional. Os partidos constitu-
cionais se opuseram fortemente a tomar seu lugar nele na mesma base que uma organização
armada com um programa francamente republicano. Mas Giolitti não estava pensando no
programa, com seu tom republicano e democrático, de 1919; Ele estava pensando no objetivo
das táticas fascistas. O objetivo de Mussolini era capturar o estado. Evidentemente, o progra-
ma fascista deve ser aceito para os propósitos da eleição se o fascismo for desviado de seu ob-
jetivo revolucionário. Giolitti poderia jogar suas cartas ruins de maneira magistral, mas não
suas boas cartas. Mais uma vez, ele não teve mais sucesso do que quando tentou atrapalhar
o problema, fomentando o ciúme de Mussolini por D’Annunzio. Longe de se submeter a ser
parlamentares, o fascismo mantinha firmemente o seu objetivo. Enquanto uma pontuação de
fascistas, eleita para a câmara, estava interrompendo ativamente a unidade do bloco nacio-
nal, as camisas negras estavam se voltando sobre os sindicatos republicanos e católicos para
esmagá -los com a mesma violência que ultimamente havia sido tão bem -sucedida usado
contra os sindicatos socialistas.
Em preparação para a captura do estado, o solo teve que ser limpo por todas as outras
forças organizadas, seja da esquerda, direita ou centro. Ninguém deve ser deixado em uma
condição para apoiar o governo ou impedir o fascismo no momento crucial da insurreição
com um golpe incapacitante. As precauções devem ser tomadas não apenas contra a greve
geral, mas contra as ações unidas pelo governo, Parlamento, Proletariat. Os fascistas não
podiam deixar de se esforçar para limpar todo o terreno ao seu redor, eliminando todas as
forças organizadas rivais, seja político ou sindicalista, da classe trabalhadora da classe média.
Sindicatos, cooperativas, clubes de trabalhadores, trocas de trabalho, jornais, partidos políti-
cos - todo o lote deve ser varrido. Grande foi a surpresa da classe média reacionária e liberal.
Eles supuseram que a tarefa do fascismo foi concluída quando, para o deleite dos trabalhado-
res e camponeses, as camisas negras, já tendo dissolvido as organizações republicanas e cató-
licas, agora se estabeleceram nos liberais, nos democratas, nos maçons, nos conservadores, e
todo tipo de seção respeitável da classe média.
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Os fascistas do seu lado empreenderam o descendente da classe média com muito mais
entusiasmo do que quando seus inimigos eram o proletariado. As tropas de choque dos fascis-
tas eram amplamente compostas por trabalhadores, pequenos artesãos e camponeses. Além
disso, a luta contra a classe média foi realmente dirigida contra o governo e o próprio estado.
Os liberais, democratas e conservadores, quando trouxeram os fascistas para o bloco nacio-
nal, haviam conferido a Mussolini, como muitos antes dele, o título não oficial “Salvador de
seu país”. Nos últimos cinquenta anos, a Itália invadiu “Salvador no país”. Degenerou em uma
espécie de profissão oficial - um grande perigo, pois nenhum país pode ser “salvo” com muita
frequência. E agora essas mesmas pessoas respeitáveis não estavam dispostas a reconhecer que
Mussolini tinha outro objetivo além de “salvar” a Itália da maneira tradicional. Eles não podiam
entender que ele estava disputando o estado, uma ambição muito mais sinceramente estimada
do que qualquer coisa no programa de 1919. A violência dos fascistas, que havia sido tão calo-
rosamente aplaudida desde que fosse usada contra a classe trabalhadora As organizações, agora
pareciam dolorosamente ilegais e desagradáveis para a classe média liberal. Quem poderia ter
acreditado que Mussolini, o excelente patriota que lutou contra os comunistas, os socialistas
e os republicanos, se tornaria subitamente um sujeito perigoso livre de escrúpulos burgueses
determinados a capturar poder contra os desejos do rei e do parlamento?
Mas se o fascismo se tornasse um perigo para o estado que Giolitti era o culpado. O mo-
vimento deveria ter sido suprimido e proibido muito antes, quando ainda havia tempo, esma-
gado por armas como D’Annunzio. Mas agora o “bolchevismo nacionalista” havia se tornado
muito mais perigoso do que o bolchevismo do tipo russo do medo do qual as classes médias
foram lançadas. A questão era se um novo governo sob Bonomi poderia reparar os erros do
governo de Giolitti.
Bonomi era socialista; O único meio que ele sabia de lidar com o fascismo era pelas me-
didas policiais. No final de 1921, a luta mais feroz estava engajada entre Bonomi, o marxista que
estava disposto a suprimir o fascismo pelas medidas policiais antes de estar pronto para captu-
rar o estado, e Mussolini, que estava disposto a ganhar tempo - uma luta impiedosa em termos
de perseguição, violência e derramamento de sangue. Bonomi conseguiu consolidar as classes
médias e as classes de trabalho contra as camisas negras. Com o apoio do governo, os trabalha-
dores fizeram muito para reconstituir suas organizações de classe. Mas Mussolini desenvolveu
sistematicamente seus planos. Uma trégua nas armas entre socialistas e fascistas foi tentada em
vão. Os trabalhadores foram desmoralizados pela conduta infantil e míope da classe de classe
média e pelo total egoísmo daqueles cuja resposta à violência da camisa preta não era nada me-
lhor do que intriga bruta, velada com patriotismo loquaz.
Nos meses de origem de 1922, prevaleceram o seguinte estado de coisas vagas e infeli-
zes. Com a violência metódica, os fascistas estavam gradualmente obtendo o controle de todos
os centros vitais do país; A organização política, militar e sindical do fascismo se espalhou por
toda a Itália. Mussolini segurou em sua mão todo o mapa da Itália, repleto de cidades, mu-
nicípios e suas ardentes populações brigues. Esse mapa era como tatuado na mão direita de
Mussolini. Bonomi ficou impressionado com a poeira e as ruínas dos partidos políticos e dos
sindicatos. O estado estava à mercê das camisas negras, que sitiaram Roma e ocupavam todo o
país. A autoridade do Estado foi mantida totalmente em algumas centenas de posições isoladas,
onde prefeitos, prefeitos e policiais eram sitiados em seus aposentos, enquanto entre a força da
revolução governava diariamente. O rei e o governo se separaram, ambos temendo assumir a
responsabilidade. Eles recorreram a um antigo dodge constitucional; O rei contou com o exérci-
to e o Senado, o governo da polícia e da câmara baixa. A classe média liberal e os trabalhadores
estavam profundamente inquietos.
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Em agosto de 1922, Mussolini informou ao país que o fascismo estava pronto para
tomar o poder. Com um ótimo esforço final, o governo procurou antecipar a insur-
reição, estimulando uma revolta dos trabalhadores e camponeses, a fim de romper as
linhas de cerco dos fascistas. Por ordem de um tipo de comitê de segurança pública, na
qual os partidos democratas, socialistas e republicanos estavam associados ao Congres-
so Sindical, uma greve geral foi proclamada em agosto. Isso foi chamado de greve legal
ou constitucional; Foi a última luta apresentada pelos defensores da liberdade, demo-
cracia, legalidade e o estado contra o exército de camisas negras. Por fim, Mussolini
enfrentaria seu adversário mais perigoso, o único obstáculo sério à captura fascista do
estado. Ele ia enfrentar e superar a greve geral, que havia sido ameaçada por três anos
como um golpe nocaute na revolução, a greve geral contra a revolução, que tinha sido
o objetivo de sua luta de três anos contra a classe trabalhadora organizações para desa-
tivar. O governo e as classes médias liberais e reacionárias soltaram a contra-revolução
dos trabalhadores, contando com o entusiasmo das camisas negras pela insurreição e
removendo o estado por um tempo, pelo menos a ameaça saliente de um ataque repen-
tino. Mas os fascistas enviados de suas próprias fileiras revezamentos de especialistas e
de trabalhadores especializados para substituir os atacantes nos serviços públicos, en-
quanto ao mesmo tempo, com uma terrível demonstração de violência, as camisas ne-
gras em vinte e quatro horas quebraram o O Exército dos Defensores do Estado variou
sob a bandeira vermelha do Congresso Sindical. A vitória decisiva para a conquista do
estado foi conquistada pelo fascismo, não em outubro, mas em agosto. Após o fiasco
da “greve constitucional”, a FACTA, um político fraco, mas honrado, contratou o cargo
apenas para dar semblante ao rei.
Enquanto isso, no entanto, o rei não tinha mais necessidade de esse tipo de leal-
dade. O programa fascista de 1919 ainda reverenciou a velha guarda fascista, era repu-
blicana, mas na véspera da insurreição Mussolini deu o sinal “Long Live the King”.
Certos cronistas oficiais, bêbados com retórica e literatura, fizeram relatos teatrais
da insurreição fascista. Estes são falsos. Não havia grandes palavras ou poses brilhantes,
nem gestos lembrando Júlio César, Cromwell ou Bonaparte. As legiões que marcharam
em Roma não eram, misericordiosamente, os veteranos de César retornando da Gá-
lia, nem Mussolini estava vestido em fantasia romana. Ilustrações de jornais e pinturas
oficiais são guias ruins para a escrita da história. Quando se observa o retrato de David
de Napoleão, é difícil conceber que Napoleão era o gênio moderno claro e preciso que o
conhecemos. O histórico Napoleão era tão diferente da pintura de David e escultura de
Canova quanto Mussolini é diferente de Julius Caesar ou de Bartolomeo Colleoni. Em
certas impressões coloridas, as camisas pretas são mostradas avançando em outubro de
1922 em uma Itália lotada de arcos imperiais, túmulos, mausoléus, colunas, pórticos e
estátuas, enquanto o céu é espesso de águias, como se a insurreição fascista tivesse sido
encenada em A Itália de Ovídio e Horace, com legionários romanos para seus heróis e
o próprio Júpiter gerenciando a cena de maneira a salvar as aparências constitucionais
da tradição clássica. Em outras ilustrações, Mussolini, o homem de 1922, é mostrado
com olhos como um herói de 1830. Uma figura romântica descobriu vagando por uma
paisagem neoclássica, agora a pé, agora a cavalo, chega suas legiões, uma personagem
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pálida e sorridente perfeitamente harmonioso com a história, conforme registrado em
placas coloridas. Contra um fundo de aquedutos em ruínas na paisagem severa e fraca do
Campagna Roman, Mussolini parece uma figura de uma foto de Poussin, uma elegia de
Goethe, um drama de pietrocossa, um poema de Carducci ou D’Anunzio; Os bolsos de
suas calças pareciam estar cheios de volumes de Nietzsche. Mas essas placas coloridas são
o cume de mau gosto na cultura e literatura da Itália dos últimos cinquenta anos. Diante
dessas ilustrações da insurreição, é difícil acreditar que Mussolini possa derrubar o go-
verno de Facta e capturar o poder. Mas a verdadeira mussolini de outubro de 1922 não é
mostrada nas placas de cores. O verdadeiro Mussolini era um homem moderno frio, au-
dacioso, violento e calculista. Na véspera da insurreição, todos os oponentes do fascismo
- os sindicatos, comunistas e partidos políticos dos trabalhadores - socialistas, republica-
nos, católicos, democratas e liberais - estavam fora de ação. A greve geral foi derrubada
em agosto; A insurreição nunca mais foi desativada por esse meio, pois os trabalhadores
não se atrevem mais a deixar seu trabalho e sair nas ruas. As represálias sangrentas con-
tra os “atacantes constitucionais” finalmente quebraram o espírito combativo dos traba-
lhadores.
Quando Mussolini levantou a bandeira negra da insurreição em Milão, os revezamen-
tos fascistas de técnicos e trabalhadores especialistas rapidamente capturaram os pontos
estratégicos da organização técnica do estado. Em vinte e quatro horas, toda a Itália esta-
va sob ocupação militar de 200.000 camisas negras. A polícia, os carabineiros e a Guarda
Real foram incapazes de restaurar a ordem. Onde quer que a polícia tentasse expulsar
os Camisas Negras de suas posições, eles eram repelidos por tiros de metralhadora. Os
quatro membros do Comitê Militar da Revolução, Bianchi, Balbo, de Vecchi e de 3ono,
supervisionaram o funcionamento da insurreição em um plano que havia sido fixado por
Mussolini em todos os detalhes. Perugia era a sede da revolução, e foi lá que os Quatro
emitiram suas ordens. Cinquenta mil homens estavam reunidos na Campagna Romana,
prontos para marchar sobre a capital. O exército dos Camisas Negras sitiou Roma, gri-
tando “Viva o Rei”, e Roma é a sede não apenas do governo, mas também do rei. A leal-
dade de Mussolini ao Rei, enquanto marchava à frente de seu exército revolucionário, era
de data muito recente, mas do ponto de vista do Rei constitucional, era mais valiosa do
que a de um governo desarmado. Quando o Gabinete decidiu submeter uma ordem esta-
belecendo um estado de sítio em toda a Itália para a assinatura do Rei, diz-se que o Rei se
recusou a assinar. Não se sabe exatamente o que aconteceu, mas é certo que o estado de
sítio foi proclamado e então retirado após meio dia. Isso foi muito curto se o Rei assinou
o decreto, mas muito longo se ele realmente não o assinou.
Na realidade, o fascismo havia capturado o estado muito antes da entrada dos
Camisas Negras em Roma, durante todo o curso de três anos de táticas revolucionárias
sistemáticas. A insurreição apenas derrubou o Governo. Em 1922, a captura do estado
pelo fascismo não poderia ter sido evitada por um estado de sítio, nem mesmo pela ile-
galização de Mussolini, nem por qualquer tipo de resistência armada. Giolitti observou:
“Mussolini me ensinou a lição de que um estado deve ser defendido não contra o pro-
grama de uma revolução, mas contra suas táticas”. Ele confessou com um sorriso que não
conseguiu lucrar com a lição.
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CAPÍTULO OITO
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Seus inimigos afirmam que, embora ele não mereça ser confundido com ne-
nhum vendedor de loja ou garçom de café de Braunau ou Landshut, o segredo de
seu sucesso pessoal — o de um homem que tem todos os traços físicos da medio-
cridade intelectual burguesa alemã — não é outro senão sua eloquência: sua elo-
quência nobre, ardente e vivaz.
Hitler não deve ser criticado por ter conseguido, por pura eloquência, impor
uma disciplina de ferro a centenas de milhares de homens racionais que foram re-
crutados entre ex-soldados, endurecidos por quatro anos de guerra. Seria injusto
culpá-lo por ter persuadido com sucesso milhões de eleitores a apoiar um progra-
ma político, social e econômico, o que em si é parte de sua eloquência. Não esta-
mos preocupados em descobrir se o segredo de seu sucesso pessoal está em suas
palavras ou em seu programa. Catilina não é julgada por sua eloquência nem por
seus esquemas, mas por suas táticas revolucionárias. A questão é se a Alemanha
de Weimar está realmente ameaçada por um golpe de estado hitleriano, e quais
são as táticas revolucionárias desta Catilina extremamente eloquente, que espera
capturar o Reich e impor sua ditadura pessoal ao povo alemão?
A organização militante do Partido Nacional Socialista é modelada na orga-
nização revolucionária do fascismo entre 1919 e 1922, antes do golpe de estado.
Uma rede de centros nervosos hitlerianos, cuja sede fica em Munique, se espalhou
de cidade em cidade por toda a Alemanha. As tropas de choque nacional-socia-
listas, recrutadas entre ex-soldados e organizadas em linhas militares, formam o
esqueleto revolucionário do partido. Nas mãos de um líder que soubesse como
usá-las, elas poderiam muito bem constituir uma séria ameaça ao Reich. Compos-
tas por ex-oficiais imperiais, armadas com revólveres, granadas de mão e porretes
(depósitos de munições, rifles, metralhadoras e morteiros de trincheira estão es-
palhados por toda a Baviera, Renânia e Fronteira Oriental), elas constituem uma
unidade militar totalmente armada e completamente treinada para a ação revo-
lucionária. Submetidas a uma disciplina férrea, oprimidas pela vontade tirânica
do seu chefe, que se vangloria de ser infalível e que exerce, no seio do seu partido,
uma ditadura inexorável, as tropas de choque nazis não são o exército de um povo
alemão rebelde no seu conjunto, mas o instrumento cego das ambições de Hitler.
Esses veteranos da grande guerra que sonhavam em marchar para conquis-
tar o Reich e lutar sob a bandeira da Cruz de Ferro pela liberdade da Pátria agora
se encontram reduzidos a servir aos desígnios ambiciosos e aos interesses priva-
dos de um político cínico e eloquente cuja única concepção de Revolução assume
a forma de uma escaramuça suburbana comum com guardas comunistas verme-
lhos, de uma série interminável de conflitos inglórios com trabalhadores em suas
melhores roupas de domingo, ou com desempregados famintos, ou de uma con-
quista eleitoral do Reich apoiada por alguns tiros de revólver nos subúrbios peri-
féricos das grandes cidades.
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Em Königsburg, Stuttgart, Frankfurt, Colônia, Düsseldorf e Essen, oficiais das tro-
pas de choque de Hitler confessaram-me que se sentem degradados ao nível da guarda
pretoriana de um líder revolucionário — um líder manobrando contra seus próprios
seguidores com os métodos policiais que, um dia, ele usará para estabelecer sua ditadura
pessoal sobre o povo alemão. No coração do partido nacional-socialista, o livre-arbítrio,
a dignidade pessoal, a inteligência e a cultura são perseguidos com aquele ódio estúpido e
brutal típico de ditadores de terceira categoria. Embora austríaco, Hitler não é inteligen-
te o suficiente para entender que certas fórmulas da disciplina jesuíta são hoje bastante
obsoletas, mesmo na companhia de Jesus, e que é perigoso tentar aplicá-las a um partido
cujo programa é uma luta pela liberdade nacional do povo alemão. Batalhas travadas em
nome da liberdade não são vencidas por soldados cujos olhos nunca deixam o chão.
Hitler não só rebaixa seus seguidores por métodos policiais, por ameaças secretas
habituais e hipocrisia, mas também por suas táticas revolucionárias. Desde a morte de
Stresemann, a eloquência de Hitler se tornou cada vez mais histriônica e ameaçadora,
mas suas táticas revolucionárias evoluíram lentamente para uma solução parlamentar
para o problema da captura do estado. Os primeiros sintomas dessa evolução datam de
1923. Após o golpe de estado abortado feito por Hitler, Kahr e Ludendorff em Munique
em 1923, toda a violência revolucionária de Hitler assumiu a forma de retórica. As tropas
de choque nazistas foram transformadas pouco a pouco em uma espécie de Camelots do
Rei Hitler. Eles são Camelots armados, mas dóceis. Seu líder é cada vez menos dado à
violência. Ele se encolhe com o barulho de tiros. Mas é desde a morte de Stresemann que
o partido de Hitler sofreu sua verdadeira crise. Este grande oponente sozinho poderia
forçar Hitler a colocar suas cartas na mesa e impedi-lo de trapacear no jogo da revolução.
Stresemann não tinha medo de Hitler; ele era um homem amante da paz, embora não
totalmente oposto a medidas violentas. Em um discurso proferido em uma reunião de
industriais em 23 de agosto de 1923, Stresemann declarou que não hesitaria em recorrer
a medidas ditatoriais se as circunstâncias as exigissem. Em 1923, as tropas de choque de
Hitler ainda não haviam se tornado os Camelots do Rei Hitler ou um corpo pretoriano a
serviço de um oportunista analfabeto; essas tropas ainda eram um exército revolucioná-
rio que acreditava estar lutando pela liberdade de seu país. A morte de Stresemann deu a
Hitler a oportunidade de abandonar táticas violentas, com o resultado de que suas tropas
de choque perderam grande influência no partido.
Tropas de choque são o verdadeiro inimigo. São os extremistas em seu próprio
partido que Hitler mais teme. O poder deles está no uso da violência. Ai de Hitler se suas
forças de batalha se tornarem muito fortes: pode muito bem haver um golpe de Estado,
mas não com Hitler como ditador.
O que a revolução nazista precisa não é de um exército, mas de um líder. As tropas
de choque que, até ontem, acreditavam estar lutando para subjugar o Reich estão agora
começando a ver que uma troca de golpes de cassetete e tiros de revólver com trabalha-
dores comunistas não é um meio de capturar o estado. Hitler alega que os motins que
ocorreram recentemente entre os nacional-socialistas são devidos à ambição frustrada de
alguns subordinados, mas eles realmente surgiram de um descontentamento profundo
entre as tropas com a incapacidade de Hitler. A cada dia, ele é cada vez menos capaz de
empurrar o problema da captura do poder para o reino da insurreição ativa.
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Os extremistas de seu partido não estão errados em julgar Hitler como um falso
rebelde, um oportunista, um “homem da lei” que pensa que pode fazer uma revo-
lução com discursos, desfiles militares, ameaças parlamentares e chantagem. Desde
sua brilhante vitória política, quando cerca de cem membros de seu partido foram
eleitos para o Reichstag, uma oposição se desenvolveu no próprio núcleo do partido
que rejeita as táticas oportunistas de Hitler e está cada vez mais definitivamente a
favor da insurreição ativa como uma solução para o problema de conquistar o esta-
do. Hitler é acusado de ser insuficientemente corajoso para enfrentar as consequên-
cias das táticas revolucionárias e de ter medo da revolução. Um capitão de tropas de
choque me disse em Berlim que Hitler era Júlio César que não sabia nadar e estava
nas margens de um Rubicão que era muito profundo para vadear. A única maneira
de explicar seus maus-tratos a seus próprios seguidores é seu medo, para que eles
não forcem sua própria mão, para que os extremistas, as tropas de choque, os cabe-
ças-quentes o levem ao longo do caminho para a insurreição. Ele parece assombrado
por uma ansiedade de se proteger contra a Ala Esquerda de seu partido, de subjugar
suas tropas de choque e de torná-las um instrumento de seus próprios planos. Como
todos os conspiradores que oscilam entre o compromisso e a insurreição ativa, Hi-
tler é obrigado de vez em quando a dar uma gorjeta aos extremistas; tal foi a retirada
do Reichstag de todos os membros nacional-socialistas. Mas suas concessões nunca
o fazem perder de vista o objetivo principal de seu oportunismo revolucionário, isto
é, a conquista legal do poder. Não há dúvida de que, ao renunciar à violência, à ati-
vidade rebelde e à agressão armada contra o estado, ele se afasta cada vez mais do
espírito revolucionário de seus partidários; não há dúvida de que toda vitória con-
quistada pelos nacional-socialistas no campo parlamentar é perdida por Hitler no
campo revolucionário. Ao mesmo tempo, Hitler se sente ainda mais certo do apoio
de uma massa cada vez maior do eleitorado e de ganhar para sua plataforma políti-
ca a adesão de uma grande maioria nas classes médias baixas. Com isso, ele espera
abrir mão do papel perigoso de catilina para poder desempenhar o papel mais segu-
ro de demagogo.
De fato, a crise que confronta o Nacional-Socialismo pode muito bem ser cha-
mada de um processo de “social-democratização”. É uma evolução lenta em direção
à legalidade, em direção às formas e métodos legais de uma luta política. O Parti-
do Nacional-Socialista é um exército revolucionário em processo de se tornar uma
formidável organização eleitoral, uma espécie de “Bloco Nacional” olhando para trás
em façanhas com o porrete como uma explosão equivocada de inexperiência juvenil,
que pode sobrecarregar o partido com uma má reputação, mas não impediria um
casamento lucrativo. Os homens de Hitler são o “Exército da Salvação” do patrio-
tismo alemão. Eles não poderiam ter um líder mais digno do que Hitler. Como os
alemães não podem levar Mussolini a sério, seus patriotas aceitam essa caricatura
dele. É notório que o patriota na Alemanha é apenas uma paródia do bom cidadão
alemão.
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Entre as concessões prometidas recentemente por Hitler aos extremistas de seu partido está a
fundação de uma escola em Munique para o treinamento de tropas de choque em táticas revo-
lucionárias. Mas quais são as táticas de Hitler? O líder nacional-socialista não considera o pro-
blema da captura do estado da mesma forma que um marxista consideraria. Obviamente, ele
subestima a importância dos sindicatos na defesa do estado. Ele julga seu papel não como um
marxista ou um mero rebelde, mas como um reacionário. Em vez de atacar os sindicatos pro-
letários, ele ataca os próprios trabalhadores. Quando ele persegue o comunismo, ele está ape-
nas perseguindo o trabalhador. As táticas brutais que os Camisas Negras de Mussolini usaram
contra as organizações trabalhistas foram justificadas pela necessidade de demolir toda força
organizada, seja política, sindical, proletária ou burguesa, seja na forma de um sindicato, uma
sociedade cooperativa, um jornal, um clube de trabalhadores, uma bolsa de trabalho ou um
partido político. Greves gerais tinham de ser prevenidas de alguma forma, e a frente unida do
governo, parlamento e proletariado tinha de ser rompida. Mas nada pode justificar o ódio estú-
pido e criminoso dos hitleristas pelos trabalhadores. Um partido reacionário que tenta capturar
um estado democrático nunca avançou um passo na estrada para a insurreição perseguindo os
trabalhadores. Para libertar seu partido do peso morto das massas organizadas, Hitler deveria
lutar contra os sindicatos de forma sistemática e completa. A defesa do estado não foi confiada
apenas ao Reichswehr e à polícia, já que a política do Reich é confrontar as tropas de choque de
Hitler com corpos armados de Guardas Vermelhos Comunistas e com os sindicatos.
As melhores armas de defesa do Reich contra os perigos do hitlerismo são as greves. O
oportunismo de Hitler está à mercê de uma greve geral, que paralisaria toda a vida econômica
de uma cidade ou região e que daria um golpe fatal aos interesses das mesmas classes médias
que votam em Hitler. O proletariado alemão entrou em greve e atingiu as tropas de choque
nacional-socialistas nas costas, forçando Hitler a abandonar as táticas fascistas de lutar contra
os sindicatos. Hoje, ele usa seu exército revolucionário, uma esplêndida arma para a conquista
do estado, como uma espécie de força policial voluntária em escaramuças suburbanas contra
os comunistas. Na realidade, essa guerra nos subúrbios é, na maioria das vezes, um ataque aos
trabalhadores. Isso é tudo o que resta dos métodos revolucionários de Mussolini nas mãos de
um reacionário.
Hitler não leva a sério nada, exceto o que ameaça sua política oportunista. Após várias
tentativas frustradas, ele decidiu abandonar as táticas mussolinianas contra os sindicatos por-
que tinha medo de enfraquecer a influência desfrutada por suas tropas de choque dentro do
partido e, assim, reduzir o prestígio político de seu papel revolucionário. Além disso, ele sabia
muito bem que o proletariado deve inevitavelmente reagir declarando uma greve geral e que
isso seria um golpe muito forte para os interesses do eleitorado. Acima de tudo, o apoio da
burguesia é um fator indispensável em sua estratégia eleitoral. Seu único objetivo é conquistar
o estado derrubando o Reichstag. Ele recua diante de um encontro com o poder formidável das
organizações trabalhistas proletárias, que podem barrar o caminho da insurreição para ele. É
no eleitorado e no campo da legalidade que ele quer desafiar o governo do Reich e o proletaria-
do para a batalha decisiva pelo poder. Todos os domingos, nos arredores das maiores cidades
alemãs, as tropas de choque de Hitler (prisioneiros eternos de uma massa de milhões de eleito-
res nacional-socialistas) entram em choque com bandos armados de Guardas Vermelhos Co-
munistas. Essa inútil guerra de guerrilha nos subúrbios é vantajosa não apenas para os grandes
sindicatos e a social-democracia parlamentar, mas também para o governo do Reich, o corpo
eleitoral dos nacional-socialistas e os partidos de direita. Alguém tem que ensinar aos comunis-
tas um pouco de cautela e modéstia.
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Mas Hitler pode ter certeza de que suas tropas de batalha sempre concordarão em
desistir de seu verdadeiro papel revolucionário? Seu verdadeiro propósito não é lutar
contra os Guardas Vermelhos nos subúrbios dos trabalhadores, mas tomar o controle
do estado. Não é apenas com o propósito de marchar contra esquadrões comunistas, no
interesse de todos aqueles que temem o perigo do bolchevismo — isto é, para o bene-
fício da burguesia patriótica, bem como dos social-democratas — não é apenas por
isso que eles se submetem ao jugo da ditadura violenta e cínica de Hitler. Eles querem
marchar contra o governo do Reich, contra o Parlamento, contra a social-democracia,
contra os sindicatos, contra toda obstrução que barra o caminho para a insurreição. E
se o próprio Hitler não o fizer...
Apesar de seus sucessos arrebatadores nas urnas, Hitler ainda está longe de con-
trolar a Alemanha de Weimar. A força do proletariado ainda está intacta; seu formidá-
vel exército de trabalhadores, o único inimigo poderoso de uma revolução nacional-
-socialista, está mais forte do que nunca. Ele permanece firme, inabalável e pronto para
defender a liberdade do povo alemão até o amargo fim. Metralhadoras sozinhas ainda
podem abrir a brecha para um ataque hitlerista. Amanhã, pode já ser tarde demais.
O que induziria Hitler a desistir de seu oportunismo perigoso? Ele está espe-
rando o Parlamento colocar a revolução nacional-socialista sob seu controle? Ele tem
medo de ser banido. Hitler, uma imitação pobre de Mussolini, não está se passando por
Sulla, César, Cromwell, Bonaparte ou Lenin quando afirma ser o libertador da Pátria;
mas ele se passa por um defensor da lei, um restaurador da tradição nacional e um ser-
vo do estado. Deve-se sempre ter cuidado com o patriotismo de um ditador. O futuro
desse tipo de herói cívico não empresta nenhum brilho ao seu passado revolucionário.
Como Giolitti diria, “Hitler é um homem com um grande futuro atrás dele”. Ele perdeu
tantas oportunidades. Ele poderia ter derrubado o estado inúmeras vezes se soubesse
como tirar vantagem de circunstâncias favoráveis. Apesar de sua eloquência, seus su-
cessos eleitorais, seu exército insurrecional, apesar do prestígio inegável de seu nome
e das lendas que foram tecidas sobre ele como um agitador, um homem que influencia
multidões, um conspirador violento e inescrupuloso; apesar das paixões que ele inspira
naqueles que o cercam e de sua influência perigosa sobre a imaginação e o espírito de
aventura na juventude alemã, Hitler é apenas um líder em potencial. Em Moscou, ouvi
um bolchevique, que foi um dos instrumentos mais ativos das táticas revolucionárias de
Trotsky durante o golpe de estado de outubro de 1917, passar este julgamento singular
sobre Hitler: “Ele tem todas as qualidades boas e ruins de Kerenski e, como Kerenski,
ele também é apenas uma mulher.”
A inteligência de Hitler é, de fato, profundamente feminina; sua mente, suas
ambições, até mesmo sua vontade não são nem um pouco viris. Ele é um homem fraco
que se abriga na violência para poder esconder sua falta de energia, suas falhas inespe-
radas, seu egoísmo mórbido e seu orgulho desajeitado. Uma qualidade comum a quase
todos os ditadores e que é característica de sua maneira de julgar os homens em relação
aos eventos é seu ciúme. A ditadura não é apenas uma forma de governo; é também a
forma mais completa de ciúme em todos os seus aspectos: político, moral e intelectual.
Como todos os ditadores, Hitler é guiado muito mais por suas paixões do que por sua
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mente. Sua atitude em relação a seus partidários mais antigos, as tropas de choque que
o seguiram desde o início, que o apoiaram na adversidade, que compartilharam sua hu-
milhação, perigos e prisão, que foram sua glória e seu poder, só podem ser explicadas
pelo ciúme. Isso surpreenderá apenas aqueles que desconhecem a verdadeira natureza
dos ditadores, ou seja, sua psicologia violenta e tímida. Hitler tem ciúmes daqueles que
o ajudaram a se tornar uma das principais figuras da vida política alemã. Ele tem medo
do orgulho deles, da energia deles e do espírito de luta deles — aquele entusiasmo des-
temido e desinteressado que transforma as tropas de choque de Hitler em uma perigosa
arma de poder. Ele exerce toda a sua brutalidade para humilhar o orgulho deles, esma-
gar sua liberdade de vontade, obscurecer seus méritos individuais e transformar seus
partidários em lacaios despojados de toda dignidade. Como todos os ditadores, Hitler
ama apenas aqueles que ele pode desprezar. Sua ambição é ser capaz de um dia rebaixar
e humilhar toda a nação alemã e reduzi-la a um estado de servidão, em nome da liber-
dade, glória e poder alemães.
Há algo confuso, equívoco, algo morbidamente sexual nas táticas oportunistas de Hi-
tler, em sua aversão à violência revolucionária e em seu ódio a toda forma de liberdade
e dignidade individual. Na história das nações, após momentos de grande infortúnio,
após guerras, invasões ou fomes, há sempre um homem que se eleva acima das massas
e impõe sua vontade, sua ambição e sua amargura; que “desempenha uma vingança
feminina” sobre todo o povo por toda a liberdade, poder e felicidade que foram perdi-
dos. Na história dos países europeus, é a vez da Alemanha agora: Hitler é o ditador, a
“mulher” que a Alemanha merece. O lado feminino dele explica o sucesso de Hitler, seu
domínio da multidão e o entusiasmo que ele desperta na juventude da Alemanha. Aos
olhos do povo comum, Hitler é imaculado, asceta, um intérprete místico da ação, uma
espécie de santo. Não é como Catilina que ele ganha aprovação. “Nenhuma história
de uma mulher é associada ao seu nome”, dizem seus biógrafos. Deve-se dizer, em vez
disso, dos ditadores, em geral, que nenhuma história de um homem é associada ao seu
nome.
Na vida de todo ditador, há momentos que revelam as profundezas turvas, do-
entias e sexuais de seu poder; essas são as crises que revelam o lado totalmente femi-
nino de seu caráter. Nas relações entre um líder e seus seguidores, essas crises mais
frequentemente assumem a forma de revoltas. Quando ele é ameaçado de dominação
por aqueles que ele uma vez humilhou e escravizou, o ditador se defende com ener-
gia flamejante contra a rebelião de seus partidários; é a mulher nele que se defende.
Cromwell, Lenin e Mussolini conheceram esses momentos. Cromwell não hesitou em
usar fogo e espada para esmagar a revolta dos “niveladores”, que defendiam uma espé-
cie de comunismo do século XVII na Inglaterra. Lenin não teve pena dos marinheiros
amotinados em Kronstadt; Mussolini foi duro com os Camisas Negras Florentinas, cuja
revolta durou um ano, até a véspera do golpe de estado. É surpreendente que Hitler ain-
da não tenha enfrentado sedição generalizada entre suas tropas de choque. Os motins
parciais que surgiram por toda a Alemanha nas fileiras dos esquadrões de batalha de
Hitler são talvez apenas os primeiros sintomas de um confronto inevitável. Oportunis-
mo no curso de uma revolução é um crime que acarreta sua própria punição. Infeliz
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do ditador que lidera um exército revolucionário, mas se esquiva da responsabilidade
de um golpe de estado. Ele pode, graças a truques e compromissos, ser capaz de tomar
o poder por meios legais, mas ditaduras que surgem de um compromisso são apenas
semiditaduras. Elas não duram. É a violência revolucionária que legitima uma ditadura;
o golpe de estado em si é sua base mais sólida. Talvez seja o plano de Hitler chegar ao
poder por meio de um compromisso parlamentar. Tudo o que ele pode fazer, se quiser
evitar uma revolta entre seus esquadrões de combate, é distrair sua atenção da captura
do estado e concentrar seu zelo revolucionário não na política interna, mas nos assun-
tos externos. O problema das fronteiras orientais não tem sido, por algum tempo, o
tema principal da eloquência de Hitler? É significativo que o futuro da Alemanha possa
depender de um compromisso parlamentar em vez de um golpe de estado. Um ditador
que não ousará tomar o poder por ação revolucionária nunca poderia intimidar a Eu-
ropa Ocidental, que está pronta para defender sua liberdade a qualquer custo.
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EPÍLOGO
O atual estado de coisas na Alemanha deve parecer estranho para aqueles que sabem quão
grande é o senso de dignidade cívica que o povo alemão sempre teve. Alguém teria que
admitir que a Alemanha de Weimar está seriamente doente, que suas classes dominantes,
sua burguesia e sua intelectualidade estão completamente desmoralizadas ou corrompidas,
se alguém pensasse que elas estariam dispostas a se submeter sem luta a uma ditadura que o
próprio Hitler não ousa impor pela força. Ditaduras não são aceitas; elas têm que ser supor-
tadas. Mesmo quando impostas por uma revolução, elas só são submetidas, após resistência
desesperada. É absurdo dizer que a burguesia russa não resistiu aos bolcheviques.
Quanto aos eventos de outubro de 1917, nunca deixei de defender Kerenski contra a
acusação de incapacidade de proteger o estado contra a rebelião dos Guardas Vermelhos.
Como no caso de todos os governos liberais e democráticos, as medidas policiais eram a
única arma que o governo de Kerenski tinha para a defesa do estado. Mas essa técnica liberal
para a defesa do estado era e é impotente contra a técnica de um golpe de estado comunista.
Também é impotente contra a de um golpe de estado fascista. Além disso, seria ridículo afir-
mar que o governo liberal, os sindicatos e os partidos constitucionais na Itália não tentaram
se defender contra as táticas revolucionárias de Mussolini. Na Itália, a batalha pelo poder foi
travada por quatro anos, com muito mais derramamento de sangue do que na Alemanha.
Nem Lenin nem Mussolini puderam impor suas ditaduras sem uma luta amarga. Que poder,
que necessidade terrível poderia induzir as classes dominantes da Alemanha, sua burguesia
e sua intelectualidade a aceitar uma ditadura à qual nenhuma ação revolucionária força sua
submissão? Nem seu espírito de revolta contra a paz de Versalhes nem sua vontade de se
elevar acima das consequências políticas e econômicas da guerra podem justificar suficiente-
mente sua atitude em relação à possibilidade de uma ditadura hitleriana. Entre todas as cala-
midades da derrota, entre todas as consequências da Paz de Versalhes, o maior desastre que
poderia acontecer ao povo alemão seria a perda de sua liberdade civil. Uma Alemanha que
aceitasse a ditadura de Hitler sem resistência, uma Alemanha escravizada por um Mussolini
de segunda categoria, nunca poderia se manter entre as nações livres da Europa Ocidental.
Aqui, de fato, está o nadir da burguesia alemã.
Na Alemanha, a atitude geral em relação ao problema do estado não pode ser atri-
buída, como algumas pessoas o fazem, a uma decadência do pensamento liberal na Europa
moderna. As condições morais e intelectuais da burguesia não são as mesmas na Alemanha
como em outros lugares. Alguém teria que admitir uma decadência muito séria para acredi-
tar que a burguesia da Europa não pode mais defender sua liberdade e que o futuro da Eu-
ropa está na escravidão civil. Mas se é verdade que o caráter moral e intelectual da burguesia
alemã não é o mesmo que em outros países, se é verdade que todos os povos europeus não
têm o mesmo grau de devoção à liberdade, não é menos verdade que a Alemanha enfrenta
o mesmo problema de governo que outros países europeus. O problema do governo não é
apenas de autoridade; é também um problema de liberdade. Se as forças policiais se mostra-
rem incompetentes para defender o estado contra a possibilidade de um ataque comunista
ou fascista, que medidas um governo pode e deve adotar sem colocar em risco a liberdade
do povo? É nestes termos que devemos encarar a questão da defesa do Estado em quase to-
dos os países.
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A situação atual oferece grandes chances de sucesso às ambições dos conspiradores
da direita ou da esquerda. Tão inadequadas são as medidas propostas ou adotadas pelos
governos para acabar com qualquer possível tentativa revolucionária que o perigo de um
golpe de estado deveria ser examinado mais seriamente em muitos países europeus. A
natureza peculiar do estado moderno com suas funções complexas e delicadas e a gravida-
de dos problemas políticos, econômicos e sociais que ele é chamado a resolver fazem dele
o índice barométrico das esperanças e medos do povo, o que aumenta os obstáculos que
se interpõem no caminho de sua defesa. O estado moderno está mais exposto ao perigo
da revolução do que é geralmente reconhecido. É inútil objetar que mesmo os métodos
liberais de defesa do estado são obsoletos; os conspiradores, por sua vez, frequentemente
mostram sua ignorância dos próprios fundamentos da técnica moderna de um golpe de
estado. Mesmo que seja verdade hoje que os conspiradores em muitos casos não souberam
como tirar vantagem das circunstâncias favoráveis às suas tentativas de tomar o controle,
não é menos verdade que o perigo da revolução existe.
Em países onde a ordem é baseada na liberdade, a opinião pública deve ter em men-
te a possibilidade de um golpe de estado. Em seu estado atual, a Europa está em todos os
lugares diante dessa possibilidade, assim como em um estado livre, bem organizado e po-
liciado, para usar uma expressão do século XVIII ainda apropriada em nossos dias, como
em um país infestado de desordem.
Em Varsóvia, em 1920, participei de uma dessas reuniões que o Corpo Diplomáti-
co realizava quase todos os dias na Residência do Núncio Papal, para rever a situação da
Polônia, então invadida pelo Exército Vermelho de Trotsky e dilacerada por facções inter-
nas. Houve uma discussão muito animada e pouco ortodoxa sobre a natureza e o perigo
das revoluções entre o Ministro Britânico, Sir Horace Rumbold, e Monsenhor Ratti, agora
Papa Pio XI, e então Núncio Papal em Varsóvia.
Foi uma sorte incomum ouvir um futuro Papa defendendo a teoria de Trotsky sobre
a revolução moderna contra as teorias de um ministro britânico, e na presença de repre-
sentantes diplomáticos das principais nações do mundo. Sir Horace Rumbold declarou
que a Polônia estava em um estado de extrema desordem, que uma revolução deveria ine-
vitavelmente estourar a qualquer momento, e que, consequentemente, o Corpo Diplomáti-
co deveria abandonar Varsóvia sem demora. Monsenhor Ratti respondeu que havia de fato
grande desordem em todo o país, mas em sua opinião isso não levaria necessariamente à
revolução, e que, portanto, ele achava que seria um erro evacuar a capital, especialmente
porque o perigo de revolução não era mais iminente na Polônia do que em qualquer outro
país europeu. Ele concluiu que ele, por exemplo, não deixaria Varsóvia. O ministro britâ-
nico respondeu que em um país civilizado onde um governo é forte, o perigo de revolução
não existe; que as revoluções nascem apenas da desordem. Monsenhor Ratti, involunta-
riamente defendendo a teoria de Trotsky, insistiu que a revolução era tão possível em um
país civilizado fortemente organizado e policiado, como a Inglaterra, quanto em um país
invadido por anarquistas, abalado por facções políticas opostas e invadido por um exército
hostil, como a Polônia era naquela época. “Oh, nunca!”, gritou Sir Horace Rumbold. Ele
parecia tão aborrecido, tão escandalizado, por essa calúnia de que a revolução era possível
na Inglaterra, quanto a Rainha Vitória ficou quando Lorde Melbourne revelou a ela pela
primeira vez que uma mudança de ministério era uma possibilidade.
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O objetivo deste livro não é chocar aqueles que compartilham as opiniões de Sir Ho-
race Rumbold. Nem é discutir os programas políticos, econômicos e sociais dos cons-
piradores, mas mostrar que o problema da conquista e defesa do Estado não é político,
que é um problema técnico, que a arte da defesa do Estado é guiada pelos mesmos
princípios que guiam a arte de sua conquista, e que as circunstâncias favoráveis a um
golpe de estado não são necessariamente de ordem política e social e não dependem
da condição geral do país. Sem dúvida, isso não deixará de criar alguma ansiedade
entre os liberais dos países mais estáveis e bem policiados da Europa Ocidental. É essa
ansiedade, tão natural em um amante da liberdade, que deu origem ao meu desejo de
mostrar como um Estado moderno pode ser derrubado e como pode ser defendido.
Bolingbroke, duque de Hereford, de Shakespeare, que disse: “Eles não amam veneno,
que precisam de veneno”, talvez também fosse um amante da liberdade.
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OBRAS SELECIONADAS: