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Terra Mura - Autazes

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Ivani Ferreira de Faria • Carla Cetina Castro • Guilherme Vilagelim

POR UMA GEOGRAFIA DECOLONIAL: CONFLITO


TERRITORIAL E O (DES)RECONHECIMENTO DO DIREITO
DO POVO MURA À TERRA INDÍGENA PANTALEÃO
FOR A DECOLONIAL GEOGRAPHY: TERRITORIAL CONFLICTS AND THE (DE) RECOGNITION OF
THE RIGHT OF THE MURA PEOPLE TO THE PANTALEÃO INDIGENOUS LAND

POR UNA GEOGRAFÍA DECOLONIAL: LOS CONFLICTOS TERRITORIALES Y EL (DE)


RECONOCIMIENTO DEL DERECHO DEL PUEBLO MURA A LA TIERRA INDÍGENA DE PANTALEÃO

Ivani Ferreira de Faria1


Carla Cetina Castro2
Guilherme Vilagelim3

RESUMO: Este artigo relata a experiência de um estudo técnico geográfico solicitado


pela Justiça Federal no Amazonas, visando à Reintegração/Manutenção de Posse da Terra
Indígena Pantaleão, de ocupação tradicional pelo povo Mura, localizada no município de
Autazes (AM). Uma ação iniciada em 1989 que tem, de um lado, a Fundação Nacional
do Índio (FUNAI) e, do outro, a Prefeitura de Autazes. O município foi criado em 1955
em sobreposição à TI Pantaleão, demarcada em 1918 pelo Serviço de Proteção ao Índio
(SPI). Pretende-se demonstrar o conflito territorial entre entes do Estado — Prefeitura do
Município de Autazes, Estado do Amazonas, Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA) e FUNAI — ao não reconhecerem, negando a existência da TI e a luta do
povo Mura pelo direito à terra, bem como o papel da Geografia para esse estudo.

Palavras-chave: Conflito Territorial. Terra Indígena. Entes Públicos. Indigenato. Amazônia.

ABSTRACT: This article reports the experience of a technical geographic study requested
by the Federal Court in Amazonas, aiming at the Reintegration/Maintenance of Possession
of the Pantaleão Indigenous Land, traditionally occupied by the Mura people, located in
the municipality of Autazes (AM). An action started in 1989 that has, on one side, the
National Indian Foundation (FUNAI) and, on the other, the Municipality of Autazes. The
municipality was created in 1955 to overlap the TI Pantaleão, demarcated in 1918 by
the Indian Protection Service (SPI). It is intended to demonstrate the territorial conflict
between state entities — Municipality of Autazes, State of Amazonas, National Institute

1 Pesquisadora do Laboratório Dabukuri/UFAM; docente do PPGEOG/UFAM e Professora Visitante do PPGG/UFGD; docente do curso de
Especialização Epistemologias do Sul/CLACSO-CES. ORCID https://orcid.org/0000-0002-7543-234805-0701 E-mail: [email protected].
2 Advogada, pesquisadora do Laboratório Dabukuri/UFAM; Mestre em Direito Ambiental/UEA; doutoranda em Ciências do Ambiente e
Sustentabilidade na Amazônia/UFAM. ORCID https://orcid.org/0000-0003-3220-860X. E-mail: [email protected].
3 Geógrafo, pesquisador do Laboratório Dabukuri/UFAM; Mestre em Geografia/UFAM e doutorando em Geografia/PPGEOG/
UFAM; professor de Geografia da Rede Pública do Estado do Amazonas. ORCID https://orcid.org/0000-0002-2905-0701. E-mail:
[email protected].

Artigo recebido em fevereiro de 2021 e aceito para publicação em junho de 2021.

584 Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021
Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

of Colonization and Agrarian Reform (INCRA) and FUNAI — by not recognizing,


denying the existence of the TI and the struggle of the Mura people for the right to land,
as well as the role of Geography for this study.

Keywords: Territorial Conflict. Indigenous Land. Public Entities. Indigenate. Amazon.

RESUMEN: Este articulo relata la experiencia de un estudio técnico geográfico que fue
solicitado por la Justicia Federal del Amazonas, que busca la Reintegración/Manutención
de Pose de Tierra Indígena Pantaleão, que es de ocupación tradicional por el pueblo Mura,
localizada esta en el municipio de Autazes (AM). Una acción iniciada en 1989 que por
un lado tiene a la Fundación Nacional del Indio (FUNAI) e por otro lado a la Alcaldía
de Autazes. El municipio fue creado en 1955 sobreponiéndose con la TI Pantaleão,
demarcada en 1918 por el Servicio de Protección al Indio (SPI). Se busca demostrar el
conflicto territorial entre entes del Estado – Alcaldía del Municipio de Autazes, Estado de
Amazonas, Instituto Nacional de Colonización y Reforma Agraria (INCRA) y FUNAI –
por no reconocer y negar la existencia de la TI y la lucha del pueblo Mura por el derecho
a tierra, así como el papel de la Geografía para este estudio.

Palabras clave: Conflicto Territorial. Tierra Indígena. Entes Públicos. Indigenato. Amazonia.

INTRODUÇÃO

As marcas deixadas ao longo do tempo e as conquistas atuais compõem cenas das constantes
transformações nos territórios indígenas, lançando sobre os povos indígenas marcas profundas
em suas territorialidades e culturas, o que os levaram a reorganizar seus territórios, inicialmente,
com a desestruturação das malocas, com os aldeamentos e, posteriormente, com a formação de
comunidades sempre ao longo dos rios, aumentando, dessa forma, a densidade populacional, pois
passaram a ocupar territórios mais permanentes do que ocorria antes da colonização.
Este artigo é parte de um estudo técnico geográfico elaborado pelos autores em 2018,
dentro da ação de Reintegração/Manutenção de Posse da Terra Indígena (TI) Pantaleão
no Estado do Amazonas. Tem como objetivo visibilizar o conflito territorial e a luta do
povo Mura pelo direito à sua terra, desconhecidos pela sociedade nacional e, por vezes, não
reconhecidos institucionalmente por alguns entes públicos, que marcam esse processo que
vem se arrastando por mais de 30 anos e que ainda permanece sem uma solução definitiva
— um dilema enfrentado pelos povos indígenas na Amazônia desde o início da colonização
— e, ainda, demonstrar a importância da Geografia e do profissional geógrafo nesse estudo,
tendo como ponto de partida metodologias participantes pautadas em princípios decoloniais,
almejando que a Ciência Geográfica seja participante e decolonial.
A ideia de uma Geografia Decolonial já vem sendo discutida em oposição a uma
ciência ocidental, eurocêntrica, etnocêntrica e colonial, pautada na monocultura do saber na
qual a ciência geográfica se originou. Porque não dizer também antropocêntrica, no sentido
de que, ao separar o homem da natureza e ao criar classificações como de vida e de humanos
e não humanos, acabou por não reconhecer outras epistemes como as dos povos indígenas,
cujas cosmovisões se fundamentam em outros saberes, outras formas de organizações
sociais, políticas, econômicas e culturais nas quais o conhecimento não é fragmentado em
áreas do conhecimento e tão pouco separa o homem da natureza, tornando-o superior a tudo.

Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021 585
Ivani Ferreira de Faria • Carla Cetina Castro • Guilherme Vilagelim

A Geografia, mesmo tendo passado por mudanças epistemológicas ao longo dos tempos,
ainda não conseguiu se desvencilhar desses princípios coloniais, portanto, é necessária uma
renovação do pensamento crítico na Geografia, diante do neocolonialismo que avassala o
mundo contemporâneo perpetuando o epistemicídio, as desigualdades, os racismos estruturais
e as mais diversas violências físicas e simbólicas. Nessa perspectiva, a geografia decolonial
deve ser participante e se apresenta como uma linha a partir de pressupostos teóricos e
metodológicos que afirmam, visibilizam e valorizam outras epistemes, outras formas de
saberes fundamentados em projetos societários emancipatórios que passam pela desconstrução
e pela descolonização dos saberes, das relações de poder e de visão de mundo.
Consideramos como metodologias participantes as práticas metodológicas não
extrativistas, fundamentadas numa visão decolonial e democrática/comunitária, em uma
construção conjunta e contínua que reúne os sujeitos sociais envolvidos diretamente em
projetos ou em atividades. Têm como pressupostos o envolvimento dos povos/comunidades
como sujeitos, visando legitimá-los, dando-lhes visibilidade, e maximizar o impacto
social tanto do resultado da pesquisa quanto dos processos pedagógicos e da partilha dos
conhecimentos ao longo do processo promovidos pela leitura crítica de suas sociedades.
É nesse sentido que o estudo apresentado se insere: não apenas teorizando sobre
uma geografia decolonial e participante, mas, na prática, interagindo e inserindo os Mura
no processo de discussão como sujeitos, buscando fundamentos jurídicos, históricos e
principalmente geográficos, que demonstram a ocupação do povo Mura na TI, no presente,
que vieram contrapor os argumentos dos entes públicos que negam a sua existência como
povo e, consequentemente, seus direitos à terra, dando respostas concretas às questões
para dirimir dúvidas sobre sua legitimidade.
O estudo técnico geográfico de Reintegração/Manutenção de Posse da Terra
Indígena Pantaleão, área em litígio (Figura 1), originou-se de um processo solicitado pela
intimação da juíza da 1ª Vara Federal, dentro do processo n.º 8900022962, tendo como
autora a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e como réus a Prefeitura Municipal de
Autazes e o Estado do Amazonas. O processo teve início em 1989 porque o município de
Autazes, desde sua constituição em 1955, estabeleceu a sua sede dentro da Terra Indígena
já demarcada em 1918 pelo antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), de ocupação
imemorial e tradicional pelo povo Mura.
Ressalta-se que os réus são entes do poder público que deveriam inicialmente
reconhecer o direito imemorial dos povos indígenas à terra, garantido tanto pela
Constituição Federal de 1988 quanto pela legislação internacional ratificada pelo Estado
brasileiro, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e pela
Lei do Indigenato, por serem os primeiros habitantes dessas terras, Abya Yala, sinônimo
de América, denominada pelo povo Kuna.

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Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

Fonte: Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 1. Terra Indígena Pantaleão: área em litígio.

Existe, em consequência disso, a polarização da propriedade dessa área, por um lado,


a Aldeia Indígena Pantaleão, que pretende a reivindicação do seu direito à Terra Indígena
Pantaleão, e por outro, o município de Autazes, que não reconhece a existência dessa Terra
Indígena, nem sua ocupação pelo povo Mura. O envolvimento do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) ocorre ao destinar terras ao município de Autazes
para sua expansão urbana. Com o objeto de elucidar o assunto, foi solicitada a elaboração
de um laudo antropológico e um geográfico, estabelecendo uma série de quesitos para dar
fundamento científico e técnico ao processo e, assim, poder elucidar o conflito em questão.
Algumas perguntas feitas pelas partes envolvidas foram4:
FUNAI — Qual a localização da terra denominada Pantaleão? Qual é a área e
o perímetro da terra denominada Pantaleão? Qual é a descrição dos limites da terra
denominada Pantaleão? A área Pantaleão é ocupada por índios? Qual a sua etnia e
população? A área Pantaleão está ocupada por não índios? Qual a sua população? Se
existem ocupações de não índios na área denominada Pantaleão, quais as benfeitorias
existentes? Os índios da terra Pantaleão mantêm contato com índios de outras aldeias?
Quais atividades produtivas praticadas no interior da área? Qual a área necessária aos
índios de Pantaleão para realizarem as suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições?
Prefeitura Municipal de Autazes — Se existem casas habitadas por autaenses, ruas
asfaltadas e escolas não indígenas na área disputada. Em caso positivo, desde quando as
edificações referidas foram realizadas? E qual o número aproximado dessas residências habitadas
por autaenses? Se a área em disputa é urbana ou rural. Se os índios Mura plantavam. Em caso
positivo, detalhar quais produtos. O que acontecia quando diminuía o alimento de sua principal
nutrição em um determinado lugar? Por que se diz que os Mura sempre andavam a corso?

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Procuradoria Geral do Estado do Amazonas — Qual a extensão do imóvel


denominado “Pantaleão”? Há indícios de ocupação da área por povos indígenas? Qual(is)
é(são) a(s) etnia(s) que supostamente ocupam a área de forma tradicional? Em caso de
existência de povos indígenas, é possível precisar se estes sofreram algum tipo de esbulho
ou foram expulsos das terras originalmente ocupadas? Quais as principais caraterísticas
da área, objeto da presente demanda? Há alguma caraterística peculiar, necessária à
sobrevivência de alguma etnia indígena ali localizada?
Como se pode observar, não é apenas a Prefeitura de Autazes que nega a existência da
terra e da aldeia Pantaleão, bem como a do povo Mura como habitantes da área em litígio.
Vale ressaltar que foram feitas outras perguntas que fazem parte de outro artigo,
as quais foram respondidas com base em dados históricos, documentais e de pesquisa de
campo, usando os conceitos geográficos, como território, territorialização e territorialidade
para demonstrar a ocupação ancestral e tradicional desse povo na região dos rios Madeira,
Amazonas e Purus, atual município de Autazes, Careiro da Várzea, Borba e Itacoatiara, e
especificamente da área objeto da causa em questão.
Da metodologia usada para desenvolver o estudo, constam levantamento bibliográfico
da literatura e documental em várias instituições públicas, como a FUNAI, o Museu do
Índio, o INCRA, a Secretaria Estadual de Política Fundiária (SPF), o Distrito Sanitário
Especial Indígena (DSEI-Manaus); e também trabalho de campo em várias visitas a essas
instituições públicas e, no período de 05 a 07 de abril de 2018, à Terra Indígena Pantaleão,
onde foi realizada uma reunião participante (gestão do conhecimento) com lideranças
do Conselho Indígena Mura, visita ao Polo Base Pantaleão, à Prefeitura Municipal de
Autazes, ao Cartório Brito no Município de Autazes, ocorrendo a observação direta com
registros fotográficos das vias públicas, das situações dos arruamentos, da organização
da zona urbana e dos estabelecimentos construídos, com georreferenciamento dos seus
limites (SPI, FUNAI), das benfeitorias dentro da Terra Indígena Pantaleão.

As oficinas participantes, denominadas de gestão do conhecimento parte do


conhecimento pré-existente dos sujeitos sociais envolvidos, valorizando suas
tradições culturais que, associadas ou não a outros conhecimentos e tecnologias
sociais, podem produzir um outro conhecimento coletivo, ou evidenciar um
conhecimento já existente, porém, posto em esquecimento. Não pode haver indução
ou imposição de outros conhecimentos ocidentais ou outros sobre os conhecimentos
próprios. O outro conhecimento vem à medida em que houver necessidade e não
pode se sobrepor ou inferiorizar aquele. Temos que deixar de lado o sentimento
colonial de consumidores do saber e, por meio da participação nas atividades e
experiências próprias, apoiar que construam ou reconstruam seus conhecimentos,
evidenciando suas epistemologias (FARIA, 2015, p. 121; 2018, p. 135).

Apresentamos, para responder aos questionamentos das partes envolvidas, o


reconhecimento formal da Terra Indígena Pantaleão, explicando como foi o processo
de demarcação pelo SPI em 1918 e o reestudo da delimitação no ano de 1999 e 2009
realizado pela FUNAI. Foram elaborados mapas por meio dos quais se demonstram a
localização, os limites da Terra Indígena Pantaleão e a sobreposição da expansão urbana.
Foi caraterizada a ocupação atual, população indígena e não indígena, do município
e da Terra Indígena Pantaleão, o número de domicílios, o processo de urbanização e

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Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

segregação socioespacial que tem sofrido o povo Mura e o georreferenciamento das


benfeitorias e das edificações que se encontram na Terra Indígena Pantaleão como
argumentos para legitimar e comprovar a ocupação pelos Mura.

O DIREITO À TERRA: DO INDIGENATO AO RECONHECIMENTO LEGAL

Por meio de indícios de ocupação ancestral do povo Mura na área em litígio,


a existência da aldeia Pantaleão, evidenciada pelas edificações (malocas, aldeias)
encontradas nos relatos de viajantes e em outras literaturas, indicando os primeiros contatos
desse povo com a sociedade envolvente; seu modo de vida e territorialidade; processos
de expulsão e esbulho da terra ocupada e forma de ocupação territorial decorrente desse
processo que promoveu o aldeamento com ocupação e uso mais permanente no território
atual, confirmou-se a tradicionalidade dessa ocupação segundo a Convenção 169 da OIT.
O processo de territorialização ocorre quando um povo/nação ou uma sociedade ocupa
uma porção do espaço, delimitando-o por meio de seus usos, conforme sua cultura e tradição,
resultando na territorialidade, que é uma identidade criada a partir da relação recíproca entre
as formas de usos culturais de um povo em um território. A cultura de um povo influencia na
organização do território, assim como o território influencia no modo de vida e na organização
sociocultural de um povo/nação ou sociedade. As formas de caçar, pescar, coletar, cultivar, o
modo de vida e a organização sociocultural estão intrinsecamente relacionadas à cultura e à
forma como um povo usa e ocupa o território (FARIA, 2007; 2015).
A Terra Indígena Pantaleão é de ocupação imemorial, assegurada pelo indigenato
e pela Constituição de 1988 como direito originário, bem como de ocupação tradicional,
conforme relatos históricos e geográficos datados desde 1714, confirmados com ocupação
de aldeias e registrados a partir de 1912 na atual área em litígio.
O indigenato assegura o direito e legitima a demarcação mesmo que a Terra Indígena
não tenha sido homologada pelo SPI em 1918, ou registrada em Cartório de Imóveis pelo
Governo do Estado ou mesmo pelo município de Itacoatiara, como podemos ver no caso
da Ação Cível Originária 312 (BRASIL, 2013) entre o Governo do Estado da Bahia e o
povo Pataxó Hã Hã Hãe, exposto adiante, uma vez que gera jurisprudência.
Mesmo que a área em litígio não fosse de ocupação imemorial, a Constituição
Brasileira de 1988 assegura a demarcação e reconhece a ocupação tradicional do povo
Mura na Terra Indígena Pantaleão, pois desvinculou o direito dos povos indígenas da
perspectiva arqueológica e da linearidade temporal, não exigindo uma posse imemorial e
nem a sua datação, mas a sua tradicionalidade.
A tradicionalidade é a forma como os povos indígenas relacionam-se com a terra, não
o tempo em que estes a habitam, e sim os costumes e as tradições que desenvolvem para
habitá-la, que podem ser comprovados pela territorialidade e pelas formas de uso do território
pelo povo Mura até a urbanização de Ambrósio Ayres, que promoveu um confinamento
territorial na área em litígio, alterando a relação com o território, por meio da expansão
urbana, da criação do município de Autazes e da pressão e especulação imobiliária.
O indigenato pode ser considerado como uma teoria que reconhece os povos
indígenas como os verdadeiros donos da terra que ocupam, por serem os primeiros
habitantes dessa terra antes da chegada dos europeus cujo reconhecimento como força
jurídica ocorreu no período colonial pelo 1º Alvará de 1680, confirmado pela Lei de 1755.
Antes da promulgação da Constituição de 1988, o tratamento jurídico para os povos
indígenas seguia uma linha assimilacionista, o que quer dizer que o Estado pretendia,

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seguindo a ideia de que somente tinha que existir uma sociedade homogênea, que os
povos indígenas, por meio de um processo “civilizatório”, se adaptassem e se integrassem
à sociedade dominante, não indígena.
Na Constituição de 1988, estabelece-se um marco jurídico avançado, outorgando
um capítulo específico sobre os direitos indígenas, esquecendo por completo a política
integracionista e reconhecendo o direito da diferença, direitos coletivos e outorgando a
capacidade de garantir esses direitos junto ao Ministério Público Federal em processos
judiciais, assim como afirmam Araújo et al. (2006, p. 38).
É assim que encontramos, no Capítulo VIII, no artigo 231, o reconhecimento dos direitos
aos povos indígenas, relativos à sua organização social, línguas, crenças, tradições e aos seus
costumes, direitos originários sobre as terras ocupadas tradicionalmente. Este estabelece:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas
em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-
estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições.
§2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e
dos lagos nelas existentes.
§3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados
com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-
lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos
sobre elas, imprescritíveis.
§5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum
do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua
população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso
Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por
objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou
a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes,
ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a
ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da
ocupação de boa-fé.
§7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174 §§3º e 4º (BRASIL,
1988, n.p.).

O direito originário sobre a terra indígena, embora já tenha sido reconhecido pela
legislação, por meio das resoluções ou das sentenças do Supremo Tribunal Federal, tem
sido fortemente reivindicado pelas interpretações e pela aplicação da teoria do indigenato.

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Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

Nas resoluções desse tribunal, podem-se encontrar aspectos que valem a pena
ressaltar. Por exemplo, na Ação Cível Originária 312 (BRASIL, 2012), no ano de
2012, foram declarados nulos os títulos de propriedade de imóveis, especificamente de
fazendeiros, que foram transferidos pelo Governo do Estado da Bahia, que se encontravam
dentro da Terra Indígena do povo Pataxó Hã Hã Hãe. No momento do julgamento da ação,
determinou-se que a terra, demarcada no ano de 1938, mesmo não tendo sido homologada,
não afetava o reconhecimento do direito sobre a terra desse povo:

[...] 5. A homologação ausente, da demarcação administrativa realizada em


1938, não inibe o reconhecimento da existência da reserva indígena no local,
originando a impossibilidade de ser ter por válidos atos jurídicos formados por
particulares com o Estado da Bahia.
[...] 7. O reconhecimento do direito à posse permanente dos silvícolas independe
da conclusão do procedimento administrativo de demarcação na medida em que
a tutela dos índios decorre, desde sempre, diretamente do texto constitucional.
8. A baixa demográfica indígena na região em conflito em determinados momentos
históricos, principalmente quando decorrente de esbulhos perpetrados por
forasteiros, não consubstancia óbice ao reconhecimento do caráter permanente
da posse dos silvícolas. A remoção dos índios de suas terras por atos de violência
não tem o condão de afasta-lhes o reconhecimento da tradicionalidade de sua
posse. In casu, vislumbra-se a persistência necessária da comunidade indígena
para configurar a continuidade suficiente da posse tida por esbulhada. A pose
obtida por meio violente ou clandestino não pode opor-se a posse justa e
constitucionalmente consagrada.
9. Nulidade de todos os títulos de propriedade cujas respectivas glebas estejam
localizadas dentro da are ade reserva indígena denominada Caramuru-Catarina-
Paraguaçu, conforme demarca o de 1938. Aquisição a non domino que acarreta a
nulidade dos títulos de propriedade na referida área indígena, porquanto os bens
transferidos são de propriedade da união (SUMULA 480 do STF: Pertencem ao
domínio e administração da União, nos termos dos artigos 4, IV, e 186, da Constituição
Federal de 1967, as terras ocupadas por silvícolas). [...] (BRASIL, 2013, p. 2-3).

Como se pode observar, o Supremo Tribunal Federal determinou que o procedimento


administrativo não determina a existência ou não do direito sobre o território dos povos indígenas,
já que este está reconhecido na legislação. Dentre dos argumentos dos juízes, pode-se ressaltar
como determinaram que o território é um elemento fundamental para a reprodução física e
cultural dos povos indígenas, e seu aspecto temporal não está determinado do mesmo jeito que no
direito privado. O território para os povos indígenas deve ser entendido numa temporalidade do
passado, presente e futuro, isto é, para os povos indígenas, o território representa seus ancestrais,
sua história, sua reprodução atual e fundamental para a existência de futuras gerações.
Ressalta-se que até 2018 essa era a visão do Supremo Tribunal Federal (STF), porém
a regulamentação do artigo 231 da CF de 1988 está em discussão desde 2019, tendo, por
um lado, o marco temporal, defendido por madeireiros, fazendeiros, mineradoras e parte da
ala política que representa esses grupos sociais e, por outro, a tradicionalidade supracitada
com base no indigenato, defendida pelo movimento indígena, pelos indigenistas, pelos
pesquisadores e por uma parte da ala política.

Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021 591
Ivani Ferreira de Faria • Carla Cetina Castro • Guilherme Vilagelim

TI PANTALEÃO: DA DEMARCAÇÃO À USURPAÇÃO DOS DIREITOS

A ocupação Mura, nesse território, data de tempos imemoriais. Mesmo antes da


criação do município de Autazes, já havia registros do povo Mura, da aldeia e da Terra
Pantaleão nesse território em litígio, objeto do estudo.
Após 1955, com a criação do município de Autazes, a área em litígio passou a
ser localizada na zona urbana, conforme definição do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE, 2018), porém, anteriormente, estava localizada nos domínios de
Itacoatiara, no estado do Amazonas.
Com base nos fatos e na documentação, a criação legislativa do município (1955),
o registro do imóvel (1984) e a expansão urbana do município sobrepuseram-se à Terra
Indígena Pantaleão, considerada como posse da União. Ressalta-se que as glebas Rio
Madeira II e Rio Madeira III da União foram arrecadadas para particulares e para a área
de expansão urbana de Autazes etc.

a) A demarcação pelo SPI em 1918.


O processo de reconhecimento da Terra Indígena Pantaleão inicialmente partiu da
Lei n.º 941, de 16 de outubro de 1917, do Governo do Estado do Amazonas (constante
dos autos do processo), sendo demarcada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI),
conforme Memorial Descritivo e planta da área (Figura 2), datado de 11 de dezembro de
1918, reconhecidamente sob ocupação do povo Mura com uma área de 518.772 m², um
perímetro de 3.131 m lineares, perfazendo um total de 51,877 hectares (Figura 3).

Fonte: Memorial Descritivo do SPI, 1918.


Figura 2. Planta da Terra Indígena Pantaleão.

592 Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021
Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

Fonte: Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 3. Terra Indígena Pantaleão demarcada pelo SPI em 1918.

Ressalta-se que a Lei Estadual n.º 941, de 16 de outubro de 1917, assegura em


seu artigo 5º a reserva das áreas/terras concedidas pelo regimento da presente lei. A
supracitada lei descreve o lote denominado Pantaleão (AMAZONAS, 1919, n.p.):

N.2 – Lote denominado “Pantaleão”. com uma área de 518.772 metros quadrados
abrangida por um perímetro de 3.131 metros lineares e a frente em linha recta,
para o Rio Autaz, de 330 metros. Limita-se ao Norte com o Rio Autaz, margem
direita e terras do sr. Luiz Magno Cardoso, a Oeste com terras de João N. Hermes
de Araudo, ao Sul com o igarapé sem nome e a Este com terras devolutas.

A Terra Indígena Pantaleão localizava-se, em 1917/1918, nos domínios territoriais


do município de Itacoatiara, cujo vilarejo era conhecido como Ambrósio Ayres. A partir
de 19 de dezembro de 1955 (IBGE, 2018), com a criação do município de Autazes, sua
localização passa para o domínio territorial desse município. Portanto, a Terra Indígena
Pantaleão antecede a criação do município de Autazes (ver Figura 3).
A sede do município de Autazes foi construída sobre o imóvel objeto de matrícula
134, datada de 16/11/1984, às folhas 135 do Livro 2 – A de Registro Geral da Serventia
Extrajudicial da Comarca de Autazes.

b) Reestudo de delimitação pela FUNAI (propostas 1999, 2009)5.


Em 1999, diante do processo em questão, impetrado pela FUNAI, houve uma visita
dos técnicos dessa Instituição à Terra Indígena Pantaleão com a finalidade de realizar um

Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021 593
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reestudo da delimitação, que resultou no mapeamento da Terra Indígena Pantaleão com


área de 523.680,076 m², 52.3680 ha, perímetro de 3.128 m (Figura 4).
Em 2009, novamente, uma equipe de técnicos da FUNAI fez uma outra visita
técnica à área em litígio, que resultou nas medidas de área 523.680,076 m², 52.3680 ha e
perímetro de 3.136,061 m (ou 3.13 km).
Existe uma pequena diferença entre a área demarcada pelo SPI em 1918 e a
delimitada pela FUNAI em 1999 e 2009, identificada na Figura 5. Apesar da pequena
diferença, a área suprimida é de alto valor imobiliário, localizada entre a orla e o cemitério.

Fonte: FUNAI, 2009.


Figura 4. Terra Indígena Pantaleão, reestudo da FUNAI, 1999.

594 Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021
Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

Fonte: Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 5. Terra Indígena Pantaleão. Demarcação SPI (1918), reestudo Delimitação (2009).

Atualmente, está em uma área de sobreposição com a organização urbana, sede do


município, realizada pela Prefeitura nos denominados bairros São José, Centro, Engenho,
parte de Santa Luzia, Olinda e Mutirão (Figura 6).

Fonte: Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 6. Terra Indígena Pantaleão: localização dos bairros.

No entanto, a Terra Indígena Pantaleão, demarcada tanto em 1918 pelo SPI quanto
delimitada em 2009 pela FUNAI, teve sua área reduzida pela criação da área de expansão urbana,
cuja doação foi feita pelo INCRA, desmembrada da gleba Rio Madeira II, já citada anteriormente,
demonstrando concretamente o avanço do município sobre área em litígio desde 1989 (Figuras 7
e 8), configurando-se, assim, como uma segunda sobreposição, usurpação e violação dos direitos
do povo Mura e da lei devido a área em questão está em litígio. E em hipótese alguma poderia ter
sido alvo de destinação a expansão urbana ou outro objetivo por parte de um ente público federal.

Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021 595
Ivani Ferreira de Faria • Carla Cetina Castro • Guilherme Vilagelim

Fonte: Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 7. Área de Expansão Urbana.

Fonte: Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 8. Sobreposição da Expansão Urbana na Terra Indígena Pantaleão.

OCUPAÇÃO ATUAL DA TERRA INDÍGENA PANTALEÃO: O PROCESSO DE


URBANIZAÇÃO E A SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL

Outro aspecto importante para poder determinar a existência da Terra Indígena


Pantaleão encontra-se na existência do Polo Base Pantaleão, dentro da terra em litígio.
Os povos indígenas têm o direito a uma saúde diferenciada, com o objetivo de fazer
isso possível, o Estado brasileiro criou uma estrutura específica para anteder a saúde dos

596 Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021
Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

povos indígenas. O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), assim como o Ministério
de Saúde (BRASIL, 2017, n.p.) o define, procura dar atenção à saúde dos povos indígenas:

[...] é a unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde


Indígena (SasiSUS). Trata-se de um modelo de organização de serviços –
orientados para um espaço etno-cultural dinâmico, geográfico, populacional
e administrativo bem delimitado–, que contempla um conjunto de atividades
técnicas, visando medidas racionalizadas e qualificadas de atenção à saúde,
promovendo a reordenação da rede de saúde e das práticas sanitárias e
desenvolvendo atividades administrativo-gerenciais necessárias à prestação da
assistência, com o Controle Social.

Existem 34 Distritos Sanitários, os quais, para desenvolver suas atividades de forma


descentralizada, estão conformados por Polos Base e Casas de Saúde Indígena (Casais). Os
Distritos estão estabelecidos de forma territorial dependendo à ocupação dos povos indígenas
e não pela divisão territorial administrativa convencional. Desses 34 distritos, 18 encontram-
se no norte do Brasil, deixando em evidência o elevado número de povos indígenas na região.
Esses Distritos Sanitários, por sua vez, estão constituídos em 351 Polos Base, que
prestam serviço da saúde para os povos indígenas, classificados em Polo Base Tipo I
e Polo Base Tipo II. O primeiro tipo “[...] caracteriza-se por sua localização em terras
indígenas [...]”, e os Polo Base Tipo II se localizam no município de referência. Sobre os
Polos Base Tipo II, o Ministério de Saúde (2017, n.p.) afirma:

A sua estrutura física é de apoio técnico e administrativo à Equipe


Multidisciplinar, não devendo executar atividades de assistência à saúde. Estas
atividades assistenciais serão realizadas em um estabelecimento do Sistema
Único de Saúde [...]

Portanto, a diferença entre esses dois tipos de Polo Base se centra na sua localização,
no entanto, um encontra-se em terra indígena, e o outro encontra-se na sede do município
de referência e não presta atendimento de saúde aos indígenas, sendo apenas um apoio
técnico e administrativo. Nos lugares onde existem Polos Base Tipo II, os indígenas são
assistidos no Sistema Único de Saúde.
Nas informações do Ministério da Saúde (BRASIL, 2017) acima, fica claro que os
Polos Base Tipo I encontram-se somente em terra indígena e que estes vão atender a uma
população determinada, se o Polo Base é Tipo II, não dão atendimento, já que sua função
é somente administrativa, e o Sistema Único de Saúde dentro da sede do município é
quem realiza o atendimento de saúde.
Diante disso, temos a existência do Polo Base Pantaleão, Tipo I, sobre o qual Araújo
(2016, p. 81) realizou uma tese de doutorado, tendo este como local de estudo, e afirma:

O estudo foi realizado no Polo-base do Pantaleão localizado na zona urbana do


município de Autazes, estado do Amazonas. O Polo-base do Pantaleão é uma
instância de atendimento aos índios, sendo a primeira referência para os AIS
(Agente Indígena de Saúde) que atuam nas aldeias, tanto na atenção primária
como no serviço de referência, e estão estruturados como Unidades Básicas de

Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021 597
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Saúde. A referida Unidade é composta por quatro enfermeiras, dois médicos,


cinco agentes indígenas de saúde, um agente indígena da malária, um agente
indígena de saneamento, um odontólogo, um vigilante de saúde, além de outras
profissionais como uma funcionária de serviço geral. Nesse Polo, a Equipe
Multidisciplinar de Saúde Indígena é responsável por 19 aldeias, estando uma
delas localizada na área urbana e 18 na área rural do município de Autazes.

Então, o autor afirma que a única aldeia indígena localizada na área urbana atendida
pelo Polo Base Pantaleão é a Terra Indígena Pantaleão. As outras aldeias de abrangência
do Polo Base continuam desenvolvendo suas práticas na agricultura, na pesca e na caça,
tendo, dentro da TI Pantaleão, a sede de várias instituições representativas do povo Mura,
como o Conselho Indígena Mura (CIM). Nesse sentido, Scopel (2007, p. 23) assegura:

Povo de grande mobilidade estende-se por vasta região cujo centro geográfico
e pólo econômico é a Cidade de Autazes. Inclusive ali há uma aldeia urbana
chamada Pantaleão. Para esta aldeia convergem movimentações dos Mura e
é na cidade que está sediado o Conselho Indígena Mura (CIM), entidade que
representa a etnia [...] No interior do município, no meio rural, onde está a
maioria das aldeias, os Mura dedicam-se a pesca e a agricultura. Na descrição
etnográfica, a produção de farinha para a subsistência da família, foi tomada como
processo social privilegiado para análise, evidenciando como são construídas
as relações de “reciprocidade” e “co-substancialidade”, duas noções teóricas
importantes para se pensar relações de parentesco entre os povos amazônicos e
para evidenciar formas de construção social de família indígena.

Destaca-se que o Polo Base Pantaleão mudou de local, antes localizado no bairro
Mutirão (Figura 9), para o atual endereço recentemente (Figuras 10 e 11), devido às
condições inadequadas para seu funcionamento. O imóvel atual é alugado pela Secretaria
Especial de Saúde Indígena (SESAI).

Fonte: Acervo do Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 9. Antiga sede do Polo Base Pantaleão sediado no Mutirão. Autazes, abril de 2018.

598 Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021
Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

Fonte: Acervo do Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018


Figura 10. Atual Polo Base Pantaleão. Localizado à rua Júlio Lobo. Autazes, abril de 2018.

Fonte: Acervo do Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 11. Placa da atual sede do Polo Base Pantaleão. Autazes, abril de 2018.

Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021 599
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A Terra Indígena Pantaleão é ocupada atualmente pelos Mura e por não indígenas.
Segundo dados do Censo IBGE 2010, o município de Autazes possui uma população
de 32.135 habitantes e autaenses como denominação gentílica (IBGE, 2010). Esse mesmo
órgão define os autaenses como os residentes e domiciliados no município de Autazes,
não fazendo discernimento entre pretos, indígenas, brancos ou pardos.
Segundo o Censo de 2010, a população indígena do município é de 6.877 pertencentes
ao povo Mura, sendo 2.788 residentes na área urbana.
Outros dados foram levantados junto ao DSEI/Manaus, sendo de 8.667 Mura
atendidos pelo polo Base Pantaleão, e destes, 2.791 com 743 famílias na área da aldeia
Pantaleão (Figura 12).
Salientamos que os dados do Polo Base/DSEI Manaus se referem apenas à população
atendida cadastrada, podendo ser maior esse número porque a atualização desses dados
está sendo processada pelos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) em suas bases no mês de
abril, cujos resultados serão enviados posteriormente à sede em Manaus6.

Fonte: Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 12. Pacientes atendidos pelo Polo Base Pantaleão.

Segundo o Censo (IBGE, 2010), existem 12 setores censitários (Figura 13) na área da
Terra Indígena Pantaleão, também denominados de zona urbana, que abrangem os bairros
de Santa Luiza, Centro, Engenho, São José e Olinda com aproximadamente 4 mil pessoas
residentes, sendo 2.788 (IBGE, 2010 – Figura 14) e 2.791, segundo o Sistema de Informação
da Atenção à Saúde Indígena (SIASI, 2018) de indígenas Mura e de 1.212 de não indígenas.
O mesmo Censo por setor apresenta aproximadamente 978 domicílios (Figura 15)
cadastrados na Terra Pantaleão. Não há como precisar quantos e quais são ocupados pelos
Mura, pois a Prefeitura Municipal, assim como o Cartório Brito não prestaram informações
sobre a quantidade e a identificação de pessoas com imóveis registrados para fins de
cobrança de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), mesmo que tais solicitações
tenham sido feitas formalmente por meio dos Ofícios n.º 012/2018 — Dabukuri, para
Prefeitura Municipal de Autazes, e n.º 013/2018 — Dabukuri, para o Cartório Brito,
sendo que o último respondeu ao ofício, mas não às questões 1 e 2.

600 Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021
Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

Fonte: Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 13. Setores censitários do IBGE, 2010.

Fonte: Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 14. População da TI Pantaleão (IBGE, 2010).

Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021 601
Ivani Ferreira de Faria • Carla Cetina Castro • Guilherme Vilagelim

Fonte: Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 15. Domicílios na TI Pantaleão (IBGE, 2010).

No entanto, no trabalho de campo realizado no dia 6de abril de 2018, conversamos com
um dos servidores do Cartório Brito, Sr. Daniel Alcântara, que nos informou verbalmente
que não havia cadastros de imóveis nos bairros Santa Luzia, São José, Engenho e parte do
Centro porque essa área era terra indígena. No mesmo dia, conversamos com o Sr. Elmer
Portugal de Alcântara, diretor do Departamento de Regularização Fundiária da Prefeitura
de Autazes, que nos informou verbalmente que a prefeitura não cobra IPTU desde 2007,
devido ao processo e por não ter imóveis regularizados na área de litígio, mas que o
cadastramento dos domicílios e moradores iria começar naquele ano (2018).
Nesse sentido, o Ministério Público do Estado do Amazonas, por meio da
Recomendação n.º 02/2013 – 5º Ofício Cível – PR/AM, recomendou à Prefeitura Municipal
de Autazes que suspendesse a cobrança de IPTU no território da Terra Indígena Pantaleão
durante o curso do procedimento demarcatório realizado pela FUNAI, tendo em vista que
este, cujo caráter é meramente declaratório, poderá reconhecer a ocupação tradicional da
Terra Indígena, implicando o reconhecimento da titularidade do bem em favor da União.
Registros sobre benfeitorias pelos não indígenas datam de 1912 no Relatório de
30 de maio de 2012 do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores
Nacionais (SPILTN, 2012, p. 3): “[...] em Pantaleão há uma escola pública do Estado com
um número de elevado de alunos matriculados, quase todos índios.”
No trabalho de campo, foram encontradas, na área em questão, várias edificações
públicas — escolas, postos de saúde, secretarias municipais (Figuras 16 a 20) — e
particulares, como posto de gasolina e outros estabelecimentos mostrados nas demais
fotos (Figuras 21 e 22) com arruamentos, alguns asfaltados e outros não, com residências
de madeira e de alvenaria.

602 Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021
Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

Fonte: Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 16. Propriedades Públicas dentro da Terra Indígena Pantaleão.

Fonte: Acervo do Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 17. Prefeitura Municipal de Autazes, rua Francisco Barroncas. Autazes, abril de 2018.

Fonte: Acervo do Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 18. Correios, rua do Engenho. Autazes, abril de 2018.

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Fonte: Acervo do Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 19. UBS São José, rua Mario Humberto. Autazes, abril de 2018.

Fonte: Acervo do Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 20. Praça Central de Autazes. Autazes, abril de 2018.

Fonte: Acervo do Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 21. Posto de gasolina Equador, Rua Júlio Lobo. Autazes, abril de 2018.

604 Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021
Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

Fonte: Acervo do Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 22. Igreja Católica da Matriz, rua 20 de Dezembro, praça central. Autazes, abril de 2018.

Constataram-se, também, conforme figuras abaixo (23, 24, 25), edificações


representativas do povo Mura localizadas na Terra Indígena Pantaleão, assim como na
sede do município de Autazes, como o Conselho Indígena Mura (CIM), a Associação
dos Produtores Indígena Mura (APIVA) e a Organização de Professores Indígenas Mura
(OPIM) que vem demonstrar a ocupação atualmente.

Fonte: Acervo do Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 23. Sede do Conselho Indígena Mura (CIM)

Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021 605
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Fonte: Acervo do Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 24. OPIM, Organização de Professores Indígenas Mura.

Fonte: Acervo do Laboratório Dabukuri/UFAM, 2018.


Figura 25. Associação dos Produtores Indígena Mura (APIVA).

O processo de urbanização do município promoveu a especulação imobiliária no


centro e nas áreas próximas ao porto, cuja consequência foi o confinamento territorial da
população Mura residente na Terra Pantaleão em alguns bairros conhecidos como violentos
e periféricos, onde há delinquência, ocupando pequenos lotes, como residências sem
condições físico-geográficas para sua sobrevivência, configurando-se como uma segregação
socioespacial. Não há como plantar nem pescar na área frente ao porto, dificultando sua
reprodução física e cultural sendo necessário recorrer a outras terras indígenas próximas.
Na reunião participante, gestão do conhecimento, realizada no dia 06 de abril de
2018, com as lideranças da Terra Pantaleão e a diretoria do CIM, em sua sede, houve
a discussão sobre a extensão territorial necessária à sua reprodução física e cultural
conforme seus usos, costumes e tradições para se manterem no presente e assegurar às
futuras gerações, como fazem para sobreviverem, o que produzem e onde.

606 Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021
Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

A resposta foi que gostariam e precisam de uma terra que seja próxima e apropriada
para o plantio, a pesca, a caça e a coleta com extensão de aproximadamente 60 ha por
família para um total de 743, segundo o SIASI. Diante dessa argumentação e do número
de famílias existentes, chegou-se à área total necessária para que o povo Mura pudesse
resistir para existir, conforme disposto na CF de 1988, que seria de 44.580 ha.
A pergunta realizada pela FUNAI quanto a “qual a área necessária aos índios de
Pantaleão para realizarem as suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação
dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução
física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” deve-se ao fato de que, dentre
as estratégias aventadas para a solução do conflito, poderia ser a permuta de terra que
envolvesse o território Mura, cuja ocupação ancestral se estendia pela região dos rios
Madeira, Amazonas e Purus, atual município de Autazes, Careiro da Várzea, Borba
e Itacoatiara, uma vez que os lotes habitados pelos Mura na área em litígio não são
suficientes à reprodução física e cultural. Vale ressaltar que mesmo havendo a permuta
para uma terra próxima, ainda estarão no seu território.
Nesse sentido, um Mapa da Situação Fundiária foi solicitado à Secretaria Estadual
de Política Fundiária que mostrasse as terras da União, Glebas Rio Madeira II e III; terras
do Estado, Gleba Autaz Mirim disponíveis e propriedades particulares para que, se fosse
do interesse do povo Mura, essa discussão pudesse ser realizada.
E caso fosse aceito pelos Mura, assim como todos os imóveis localizados na área de
litígio deveriam ser regularizados pela Prefeitura de Autazes, tanto para os Mura quanto
para não indígenas (que comprovassem sua ocupação), por regras estabelecidas entre as
partes e a legislação pertinente.
Nessa mesma reunião, lideranças Mura da Terra Indígena Pantaleão fizeram as seguintes
reivindicações à Prefeitura Municipal de Autazes: que fossem construídas e equipadas uma
escola indígena e uma quadra poliesportiva na zona urbana; que doassem um imóvel para a
instalação definitiva da sede do Polo Base Pantaleão dentro dos limites da Terra Indígena.
Para conseguirem sobreviver, os Mura, de acordo com Fernandes (2009) e reunião
supracitada, estão trabalhando em atividades de baixa renumeração como diaristas,
profissionais de limpeza pública, estivadores, pedreiros, carpinteiros, mecânicos,
borracheiros, fotógrafos, merendeiros, mototaxistas, artistas plásticos, agentes de saúde,
dirigentes de associações e professores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito à terra pelos povos indígenas é reconhecido pelo Estado brasileiro por meio
artigo 231 da Constituição Federal de 1988, porém, muitos entes públicos não aceitam e negam
esse direito constitucional e originário ao promoverem conflitos não apenas territoriais, mas
sociais (discriminação), podendo chegar à violência física, situações muitas vezes desconhecidas
pela sociedade nacional. Portanto, a FUNAI, ao entrar com esse processo no século passado, está
cumprindo sua obrigação enquanto ente público em prol dos povos indígenas.
O conflito em evidência, desconhecido pela sociedade nacional, demonstra a disputa
territorial entre os entes públicos das esferas municipal, estadual e federal, que insistem em
não reconhecer a existência da TI Pantaleão e sua ocupação pelo povo Mura, uma vez que a
criação do município a sobrepôs e posteriormente, mesmo estando em litígio, e a concessão do
INCRA de parte do território para área de expansão urbana, expropriando os Mura e negando o

Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021 607
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direito originário à terra. Tal conflito exalta a divergência de visão de mundo dos Mura — cuja
terra tem valor de uso, fonte de vida e casa dos espíritos e fundamental para sua reprodução
física e cultural — e dos entes públicos, com uma visão capitalista e neoliberal pautada em
interesses econômicos, nos quais a terra é uma mercadoria que pode ser expropriada dos
Mura, e políticos tanto eleitoreiros quanto geopolíticos enquanto domínio e afirmação dos
limites municipais sobre a terra e o direito originário do povo Mura.
Conforme dados histórico-geográficos, documentação apresentada e pontos
georreferenciados in loco, o estudo concluiu que é legítima a demarcação da Terra
Indígena Pantaleão pelo SPI em 1918 e que a extensão da área contínua necessária ao
povo Mura para realizarem suas atividades produtivas culturais, como caça, pesca, coleta
e plantio de roça, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a
seu bem viver e a sua reprodução física e cultural, é de 44.580 ha.
A terra indígena objeto de litígio é de posse permanente e tradicional do povo Mura desde
tempos imemoriais com registros de contatos datados do século XVIII, de propriedade da União,
enquanto Terra Indígena fundamentada nos preceitos da legislação brasileira concernente à Lei
do Indigenato, à Constituição Federal de 1988, no artigo 231, e à Convenção 169 da OIT.
Independentemente de a Terra Indígena Pantaleão não ter sido homologada pela FUNAI
até o momento, a Lei do Indigenato, assim como a jurisprudência brasileira no caso da Ação Civil
Originária — FUNAI representando o povo Pataxó Hã Hã Hãe contra o Governo do Estado da Bahia
em 2012, bem como a Lei Estadual n.º 941, de 16 de outubro de 1917, em seu artigo 5º, asseguram
e confirmam a legitimidade de posse ao povo Mura que ocupa esse território tradicionalmente
demonstrado pela territorialidade e pela territorialização dessa área consequentes do processo de
colonização com constantes ataques às suas embarcações e povoados, e aldeamentos forçados
vinculados a interesses mercantis e atualmente por interesses econômicos e comerciais.
A territorialidade do povo e o processo de territorialização decorrente dos
aldeamentos reduziram a dinâmica de circulação dos Mura, que passaram a ocupar
território com aldeias e terras mais próximas umas das outras, resultando nas 40 Terras
Indígenas demarcadas mesmo que em pequenas ilhas descontínuas.
O povo Mura passou por processos discriminatórios durante a colonização, gerando
conflitos territoriais, e hoje vem sofrendo a segregação socioespacial, confinado a pequenos lotes
em uma terra reconhecidamente dele, não sendo mais possível assegurar a sua sobrevivência
física e cultural, conforme disposto no artigo 231 da Constituição Federal de 1988.
ATerra Indígena Pantaleão foi objeto de esbulho, expropriação e sobreposição territorial,
inicialmente, pela criação legislativa do município de Autazes, em 1955, confirmado pelo
registro da matrícula 134 do imóvel em Cartório, em 1984, e mais recentemente pelo
avanço da expansão urbana, cuja terra foi doada pelo INCRA, desmembrada da Gleba da
União Rio Madeira II, como demonstrado no mapa das figuras 17 e 18, não reconhecendo,
assim, a demarcação feita pelo SPI, embora no Ofício n.º 046-SECA/2018, enviado pelo
Cartório Brito, haja referência de Terras do SPI quando faz a descrição dos limites do imóvel
adquirido mediante a matrícula 134, na folha 135 do livro 2 – A, registro geral datado de 16
de novembro de 1984. Com a expansão urbana, houve perda territorial da Terra Pantaleão.
Assim, mesmo reconhecendo a legitimidade da demarcação da Terra Pantaleão,
sua posse pelo povo Mura e propriedade da União, torna-se difícil mediante a situação
socioambiental a sua reprodução cultural de acordo com os usos e costumes dos 2.788
Mura residentes e aproximadamente 743 famílias, sendo observado também o crescimento
populacional e a composição familiar Mura que tem, em média, 6 a 8 pessoas.

608 Ciência Geográfica - Bauru - XXV - Vol. XXV - (2): Janeiro/Dezembro - 2021
Por uma geografia decolonial: conflito territorial e o (des)reconhecimento do direito do povo mura à terra indígena Pantaleão

A metodologia utilizada principalmente para verificar as formas de uso e ocupação


da TI e definição de uma alternativa para a questão é participante. O envolvimento e o
conhecimento dos Mura sobre o território no passado e no presente com uma visão crítica do
contexto em que vivem foram fundamentais para a análise deste estudo, contrapondo uma
visão colonial pelos entes do Estado e parte da sociedade local envolvida, na medida que
valoriza suas epistemes em relação à terra e à vida, trazendo os conceitos de territorialização
e territorialidade numa perspectiva intercultural e da ecologia dos saberes (SOUZA
SANTOS; MENEZES, 2010) legitimando a ocupação bem como visibilizando esse conflito
que consideramos uma violação de seus direitos e de manutenção da vida como povo.
Diante disso, a geografia decolonial e geógrafos que seguem essa vertente é de fundamental
importância para que possamos contribuir para uma sociedade mais justa e emancipatória.
O território é fundamental para a sobrevivência física e cultural do povo Mura e,
desse modo, garantido por lei, e este, para os povos indígenas, não é concebido na mesma
visão da sociedade ocidental. Deve ser entendido na temporalidade do passado, do
presente e do futuro, é onde se representam seus ancestrais, suas histórias, e a manutenção
atual fundamenta a existência de futuras gerações.

NOTAS

4 Ressalta-se que foram feitas várias perguntas e neste artigo constam apenas algumas
para demonstrar os conflitos territoriais, pois o estudo foi dividido em dois artigos devido
a sua extensão e complexidade.
5 Informações obtidas por meio do relatório da visitação realizada à Terra Indígena Pantaleão,
da etnia Mura, na cidade de Autazes, no município de Autazes no Amazonas de 2009, da
FUNAI, que consta nos autos do processo e cuja cópia impressa foi acessada no DSEI/Manaus.
6 Informações prestadas pelo funcionário Gustavo Barroncas no dia 18 de abril de 2018,
na sede do DSEI/Manaus.

REFERÊNCIAS

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